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1 CONTRIBUIÇÕES DE HUGO DE SÃO VÍTOR PARA AS UNIVERSIDADES FAETHE, Sílvia Berbert de Andrade. Introdução Neste artigo, temos o objetivo de analisar as contribuições de Hugo de São Vitor para a universidade e a ciência, desde o século XII, considerando a riqueza da obra num período de efervescência na Alta Idade Média. Didascalicón: Da arte de ler, obra produzida em 1127, precedeu todos os outros escritos do Vitorino. Foi traduzida para o português por Antonio Marchionni em 2001, (versão que utilizamos). É um manual para estudantes que introduz as regras necessárias para a leitura: saber o que ler, em que ordem se deve ler e como se deve ler. Dentro dessa obra, estaremos ressaltando a ciência em Hugo, como também a sua importância para a universidade. Analisaremos, ainda, como foi formado o pensamento de Hugo, suas origens, sua influência e em qual período foi formado. Entendemos que a produção desta obra veio a contribuir para a formação do pensamento dos estudantes da época, os quais aumentavam, pois já havia cessado o período de invasões na Europa, e ascendia um espírito humano, ainda de caráter teológico, que ansiava por novas descobertas. O Da arte de ler inaugura a era do livro que daria vida a Universidade no século XIII. Hugo de São Vítor esboça um pensamento de como adquirir a ciência por meio da Sapiência, a importância da filosofia e o trabalho a partir do saber filosófico, introduzindo pioneiramente as ciências mecânicas à filosofia. São várias as faces de análise da obra, poderíamos ressaltar o caráter filosófico, místico, ético e pedagógico. Trata-se de uma obra clássica que apresenta um método medieval de estudos imbuído de uma racionalidade filosófica que pode contribuir em nossa atualidade.

CONTRIBUIÇÕES DE HUGO DE SÃO VÍTOR PARA AS … · Nesta citação evidencia-se a estrutura em forma de pirâmide da sociedade feudal, como também a condição de subordinação

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CONTRIBUIÇÕES DE HUGO DE SÃO VÍTOR PARA AS

UNIVERSIDADES

FAETHE, Sílvia Berbert de Andrade.

Introdução

Neste artigo, temos o objetivo de analisar as contribuições de Hugo de São Vitor para

a universidade e a ciência, desde o século XII, considerando a riqueza da obra num período de

efervescência na Alta Idade Média. Didascalicón: Da arte de ler, obra produzida em 1127,

precedeu todos os outros escritos do Vitorino. Foi traduzida para o português por Antonio

Marchionni em 2001, (versão que utilizamos). É um manual para estudantes que introduz as

regras necessárias para a leitura: saber o que ler, em que ordem se deve ler e como se deve ler.

Dentro dessa obra, estaremos ressaltando a ciência em Hugo, como também a sua importância

para a universidade. Analisaremos, ainda, como foi formado o pensamento de Hugo, suas

origens, sua influência e em qual período foi formado.

Entendemos que a produção desta obra veio a contribuir para a formação do

pensamento dos estudantes da época, os quais aumentavam, pois já havia cessado o período

de invasões na Europa, e ascendia um espírito humano, ainda de caráter teológico, que

ansiava por novas descobertas. O Da arte de ler inaugura a era do livro que daria vida a

Universidade no século XIII.

Hugo de São Vítor esboça um pensamento de como adquirir a ciência por meio da

Sapiência, a importância da filosofia e o trabalho a partir do saber filosófico, introduzindo

pioneiramente as ciências mecânicas à filosofia. São várias as faces de análise da obra,

poderíamos ressaltar o caráter filosófico, místico, ético e pedagógico. Trata-se de uma obra

clássica que apresenta um método medieval de estudos imbuído de uma racionalidade

filosófica que pode contribuir em nossa atualidade.

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Período histórico que contribuiu para a formação do pensamento de Hugo de São Vítor

Hugo de São Vítor nasceu no ano de 1096, período da Alta Idade Média.

Primeiramente, é importante ressaltar que o período que se estende a Idade Média vai de 476,

ano do fim do império Romano do Ocidente, e em torno aproximadamente de 1492, quando

foram descobertas as Américas (CAMBI, 1999, p.155).

Após um período que houve muitas invasões muçulmanas e germânicas na Europa,

iniciando com a proximidade da virada do milênio, a Igreja tornou-se palco de mudanças

sociais, econômicas. O poder era dividido entre o príncipe e a igreja, no qual alguns

governantes como o imperador Carlos Magno (sec. X) beneficiou-se para tentar manter a

ordem de seu império fortemente embasado na capacidade unificadora da igreja. Numa época

em que os fiéis apavoravam-se pela proximidade do novo milênio e, portanto; “medo do fim

do mundo”, a igreja viu-se num momento propício para difundir sua influência nos fiéis

através do medo e, a partir disto, propagar as indulgências, os dogmas e mitos da igreja

católica. Período este, caracterizado pela sociedade feudal e o império carolíngio:

A sociedade feudal é, portanto, uma sociedade fixa, com escassa mobilidade social e pouca reciprocidade; é uma sociedade de ordens, em que os homens se acham colocados e têm um papel social bem determinado. No vértice estão os bellatores (os guerreiros) e os oratores (os clérigos), embaixo estão os laboratores (camponeses, artesãos, ou seja, o povo), mas, cada ordem tem direitos precisos... são bastante impositivos e caracterizam a condição dos laboratores como de servidão (os “servos da gleba” eram, de fato, os camponeses, colocados no degrau mais baixo da sociedade feudal) (CAMBI, 1999, p.155-156).

Nesta citação evidencia-se a estrutura em forma de pirâmide da sociedade

feudal, como também a condição de subordinação das classes ao senhor do feudo. Nesse

contexto, se faz saber que o sistema feudal foi baseado economicamente na posse da terra e no

direito de cobrar um certo número de taxas, o que gerou uma hierarquia social e de poderes

(PIRENNE,1968, p. 45-49).

O desaparecimento da vida urbana ocorrida no séc. VIII na Europa deveu-se

principalmente a invasão islâmica que bloqueou os portos do mar Tirreno, depois de submeter

o litoral africano e espanhol, importante entrada de meios de capital. Desta forma as cidades

perderam sua população de artesãos e comerciantes que foram se aglomerar nos feudos. Nesse

contexto, se faz saber que o sistema feudal foi baseado economicamente na posse da terra e no

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direito de cobrar um certo número de taxas, o que gerou uma hierarquia social e de poderes.

(PIRENNE,1968, p. 45-49)

Segundo Le Goff, na base dessa pirâmide social está a massa dos leigos, que somam

90% dos camponeses, uma parte deles, até o séc XI, não é livre. Ainda existem escravos e

servos, e as alforrias libertam grande parte deles. Acima deles estão os senhores, que são os

proprietários, os beneficiários da terra e dos produtos econômicos em geral. Ao lado e acima

deles, uma hierarquia política dividida em governos urbanos com magistrados urbanos e

governos que, pouco a pouco, a partir do séc XI e XII, assumem um aspecto estatal e geram

monarquias, das quais as principais são a inglesa, francesa e castelhana. (LE GOFF, 2007,

p.66).

Após a queda do império carolíngio, passou-se por um período instável e houve a

formação de castelos fortificados edificados pelos príncipes feudais e que serviam de proteção

aos seus homens. Estes castelos, chamados de burgus, possuíam, quase sempre, uma muralha

de terra ou de pedra, rodeada por um fosso, em que se abriam várias portas. Os homens

subsistiam apenas pela atividade agrícola, e em caso de perigo refugiavam-se no castelo

(PIRENE, 1968, p.47).

Depois da segunda metade do séc. X, com o ressurgimento do comércio através dos

mercadores que se arriscavam de uma terra a outra, num período no qual o saque era um meio

de existência da pequena nobreza, havia necessidade de refugiar-se nas muralhas dos castelos.

Nota-se, portanto, que a Idade Média não foi um momento estático, e a partir deste

aquecimento do comércio inicia-se novos anseios na sociedade medieval.

Com o aumento do comércio, as proximidades dos castelos, agora cada vez mais

habitadas tornou-se ponto de passagem dos comerciantes. Mais tarde, necessitou-se formar

aglomerações ao redor dos burgus (castelos) chamados foris-burgus. As pessoas que ali

viviam levavam uma vida em contraste com as de dentro das muralhas, aumentando até a

formação das cidades do medievo (PIRENNE, 1968, p.45-49).

Com estas aglomerações de pessoas cada vez maiores a sociedade da época viu a

necessidade de criar as corporações de ofício (OLIVEIRA, 2002, p.58). Estas corporações

construíam-se a partir da necessidade de especializar-se em algumas profissões. Ainda neste

período, agrupamentos de pessoas eram obrigados a morar em arruamentos determinados,

essa população se emancipava do feudalismo, subdividindo-se territorialmente, eram as

comunas que nasciam.

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A instrução, segundo Bonni, ficou a cargo da Igreja, e esta, através de diversos tipos

de escolas, ministrou ensino a grupos relativamente pequenos. Tais instituições eram

nitidamente eclesiásticas (monacais ou episcopais). Mas, adiante disso após a virada do

milênio, houve idéias novas e algumas delas opostas à tradição cristã. Dentro deste contexto, a

Igreja: Da parte da Igreja, intensificou-se a preocupação com as escolas: toda catedral e todo mosteiro deviam possuir a sua, pois era preciso preparar o clero e os monges para a nova situação... Agora, requería-se algo mais: era preciso encontrar resposta para novas questões, ser capaz de argumentar ante inimigos da fé... formação de elite apta a enfrentar os desafios de uma nova situação (BONNI, 2002, p. 21).

Percebe-se como a Igreja estava acompanhando de perto todas as transformações

ocorridas no medievo e, procurava adaptar-se a cada uma delas. Além do que, a Igreja foi a

grande depositária do conhecimento na Idade Média, graças ao trabalho dos monges copistas.

De dentro da Igreja surgiram grandes pensadores como, Hugo de São Vítor, que é uma

das expressões fortes neste período.

Surgimento das Universidades

O surgimento das universidades tem relação com o fortalecimento da vida nas cidades,

e também de uma nova classe social; a burguesia e com as corporações de ofício na Europa do

séc XIII.

Segundo Verger (1990), nas primeiras Universidades, os cursos eram dados em salas

alugadas pelos mestres, e as cerimônias realizavam-se em conventos ou igrejas, pois, não

havia prédio próprio. Nota-se o ensino caminhando de mãos dadas com a Igreja.

Segundo Bonni, a universidade formou-se como corporação de mestres e alunos –

studium generale – onde a produção do saber foi o principal interesse:

O exercício de uma atividade, reservado ao especialista, é algo que caracteriza a corporação. Foi nesse contexto corporativo que surgiram as universidades: corporações de pessoas voltadas ao estudo. E, se olharmos para a organização moderna do ensino superior, percebemos que ela ainda preserva, também nisso, o legado medieval: ainda hoje a comunidade acadêmica divide-se em aprendizes (alunos), acompanhantes (professores auxiliares e adjuntos) e mestres (professores titulares) (BONNI, 2002, p.20).

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Percebemos, que a Universidade é uma instituição formada na Idade Média, e que,

ainda apresenta traços fortes de sua origem nos dia de hoje. Observamos também, o desejo de

especializar-se em uma área de conhecimento manifesto na necessidade das corporações de

ofício, que se tornou um dos objetivos dos mestres da época.

Ensino

Segundo Cambi (1999), a escola foi produzida na Idade Média e era ligada a presença

de um professor que ensinava a muitos alunos de várias procedências.

Sobre os alunos no período anterior ao das universidades, destaca-se a questão da

mobilidade, naquela época seguiam à busca dos mestres. Podemos assim dizer, que os

estudantes mais abastados, tinham melhor possibilidade de ir ao encontro do conhecimento.

Nestas escolas, permeou-se neste período a escolástica, que foi um método de

pensamento e de ensino que surgiu e se formou nas escolas medievais tornando-se mais sólida

nas universidades do séc. XIII. Esse pensamento divide-se entre auctoritas e razão. O

pensamento medieval fundamentado em dois fatores principais: auctoritas e da razão. Assim:

Auctoritas em teologia é o ensinamento da Igreja, é o texto da Sagrada Escritura, são as obras dos Santos Padres e as Atas dos Concílios. Em filosofia, são as obras de Aristóteles, os livros de Boécio e de Santo Agostinho, etc. Nas áreas do direito...Corpus Iuris Civilis, e em medicina, as obras de Hipócrates e Galeno, dos médicos e judeus (NUNES, 1979, p.245).

Já a razão humana, através da reflexão filosófica, a instiga e só admite uma

conclusão depois de maduro exame (quaestio e disputatio). O Vitorino se insere nesta escola e

busca a ciência juntamente com outros grandes pensadores.

Hugo de São Vítor, juntamente com Abelardo, Adelardo de Bath , Thierry de Chartres, Gilberto de Poitiers, Guilherme de Conches, John de Salisbury, Pedro Lombardo e São Bernardo, integra o grupo de pensadores que, na primeira metade do século XII, interpretam um novo papel da razão no estudo do mundo natural e supranatural. Anteriores de 100 anos ao espírito empírico de Roger Bacon, eles aparecem nas cidades em desenvolvimento da França e da Inglaterra. Discutem literatura, medicina, lógica, gramática, dialética, retórica, geografia, preocupados em descerrar a Razão, a constituição profunda das coisas, e as regras da linguagem na interpretação da ciência”¹. “Ninguém pode discutir sobre as coisas – afirma Hugo – se antes não conhecer o modo de falar correta e verdadeiramente”. Trata-se de uma nova

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forma de debruçar sobre as coisas da natureza. (Apud, MARCHIONNI, pág 18).

Observa-se que os pensadores medievais inquietavam-se em todas as áreas de

conhecimento da época. Mas que isso, deram passos para pré-estabelecer critérios para a

pesquisa da ciência.

Segundo Spinelli, a ciência como a filosofia remonta dos gregos. O “fazer ciências”

era uma atividade própria do filósofo, e condizente com o conteúdo e objeto da própria

filosofia na Antiguidade. Uma das contribuições dos gregos para o mundo ocidental foi,

segundo Spinelli, a tradição racional e tradição de livre debate. Ou seja, uma discussão

científica que se esforça para compreender o mundo em que vivem com interesse na busca da

verdade, sendo orientada por uma criticidade, através da discussão com uma atitude racional

reflexiva e investigadora (SPINELLI, 1990, p.59-60)1.

Faz-se interessante notar que o conceito de ciência foi modificando-se com as

mudanças culturais, sociais, históricas e econômicas dos povos, e que, no período medieval

ganhou um caráter teológico, místico, aliado a uma estrutura ética. Porém mais tarde ainda na

Idade Média, a ciência vai se separar da filosofia, já preparando a base para a ciência

moderna, de cunho aristotélico baseada no apelo científico, ou seja, no conhecimento racional

objetivo e de base empírica que será corporificado no séc XVIII¹. Apesar de haver indícios

dessa natureza no séc XII.

A partir destes conceitos, retomamos a influência do Vitorino com a Escola de São

Vítor e outras como a de Chatres, a de Notre-Dame, delas nascerá, em 1215, a universidade

de Paris. Portanto, estas integram um pensamento que embala um novo período que toma

corpo na universidade medieval. (MARCHIONNI, 2001, p.11-12).

O desenvolvimento intelectual da Escola de São Vítor registra algumas décadas de

ouro, que vão de 1125 a 1185. Estimulada pelo ensino de Hugo, a escola viu florescer

teólogos, filósofos, sábios, poetas, pregadores, confessores.

Este período efervescente do séc. XII foi sintetizado por Bruno Nardi (Apud,

MARCHIONNI, 2001, p.21) nestes termos: “a uma física lida em chave teológica se junta uma

1 De acordo com o mais lídimo espírito aristotélico - gosto da observação sensível, da demonstração científica e das investigações biológicas – Em Salerno vários tratados de anatomia indicam a prática da demonstração anatômica em sala de aula e baseada na dissecação de animais. Tudo indica que foi Mateus Platearius o primeiro professor salernitano a proceder à dissecação de animais no início do séc. XII. Por outro, observa Kristeller, o aparecimento do comentário de obras médicas assinala a passagem da instrução prática para a teórica em Salerno e, tanto na medicina com nas outras áreas. (Apud, NUNES, 1979, p.254)

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física lida em chave filosófico-científica”. Utilizamos duas expressões de Hugo de São Vítor,

realçando a interpretação científica do mundo no período da Alta Idade Média:

Este universo sensível é como um livro escrito pelo dedo de Deus, isto é, criado pela força divina, e todas as criaturas são como figuras não inventadas pela vontade humana, mas organizadas pela vontade divina para manifestar a Sapiência de Deus (Apud, MARCHIONNI, p. 21).

E ainda:

A natureza é um fogo criador que nasce de alguma força para gerar as coisas sensíveis. De fato, os físicos dizem que todas as coisas são geradas pelo calor e pela umidade (HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p. 75).

Notamos que a ciência existia neste período, mas devido a, importância da filosofia e

da busca pela ciência na pesquisa sobre a natureza. Sendo que a ciência para nosso autor é

articulada com a busca pela Sapiência, no exercício da inteligência (2001).

Destaca-se ainda nesse período, a segunda revolução cultural que houve na Europa,

que foi a cultura livresca. Sendo que, o cônego é um dos atores que brilham nesta segunda

“revolução cultural” ocorrida na França, segundo Illich (Apud, MARCHIONNI, 2001,

prefácio).

Percebemos, que a primeira obra de Hugo veio num momento áureo da Idade Média

para apoiar a busca pelo saber do homem medievo. É importante também considerar que a

obra Da arte de ler, não foi a única, pois a ela somam-se centenas de manuscritos espalhados

por 45 bibliotecas européias. As obras de Hugo foram objeto de várias edições, que são:

...as de Paris em 1518 e 1526, de Veneza em 1588, de Magonza e Colônia em 1617, de Rouen em 1648, de Migne em 1854 e 1879, além de edições parciais de escritos específicos... das obras mais comentadas do vitorino encontram-se : Didascálicon da arte de ler, Dos sacramentos da fé cristã, Sobre a hierarquia celeste de Santo Dionísio, Sobre o Eclesiastes, Da união do espírito e do corpo, Dos três dias, Da essência do amor, Solilóquio sobre o penhor da alma, Em louvor do Amor, Da arca mística de Noé, Da arca moral de Noé. Hugo escreveu também um livro de geografia, recentemente aceito como autêntico, a Descrição do mapa do mundo. (Apud, MARCHIONNI, 2001, pág26).

Evidencia-se que a obra do Vitorino foi bastante vasta e que, não ficou restrita apenas

na França, mas, circulou em outros países europeus.

O Mestre Hugo impressiona pela fertilidade em obras escritas, e o número delas

pareceria notável já em 1154 ao cronista Robert de Torigny (Apud, MARCHIONNI, 2001, p.

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26). A Patrologia Latina de Migne (Apud, MARCHIONNI, 2001, p. 26) reúne em três volumes

o acervo de obras, opúsculos e cartas de autoria certa e duvidosa de Hugo, em um total de 52

títulos, divididos em obras exegéticas, dogmáticas, místicas e epístolas. O manuscrito mais

antigo que se dispõe (Vaticano Regina 167), datado da metade do século XII, enumera 15

tratados de Hugo. Os manuscritos posteriores à primeira organização das obras, ordenada pelo

abade Gelduíno em 1152, dez anos depois da morte do mestre, já listam 54 títulos, número

aproximado que se mantém até os nossos dias, quando os estudiosos fazem consistir as obras

de Hugo em 48 títulos autênticos e oito duvidosos (Apud, MARCHIONNI, 2001, p, 26).

A obra Da arte de ler

A obra Da arte de ler (1127) ao lado de Dos Sacramentos (1141) evidenciam a face

teológica do autor. Da arte de ler é objeto de estudos literários e filosóficos em várias

universidades, aliás, é um currículo medieval de estudos.

Dependendo do ângulo de análise, é visto como um livro ora filosófico, ora místico,

ora ético, ora antropológico, ora pedagógico. Com certeza, o Da arte de ler incorpora o

espírito das novas organizações religiosas da época, tendentes a recapturar o ascetismo da

Igreja primitiva, combinado com o serviço ao próximo e com as novas exigências da cidade

medieval. O pensar e o agir em realimentação recíproca, ou melhor, o agir pensando, no rasto

do ora et labora (trabalha rezando), constituem o método da obra.

Da arte de ler é composto de seis livros, três dedicados ao conhecimento das coisas do

homem pela leitura dos escritos literários e três dedicados ao conhecimento das coisas de

Deus pela leitura da Sagrada Escritura.

O interessante, nesta obra, é que o autor nos primeiros capítulos (I, II, III) define

alguns princípios do estudo, as disciplinas e cita autores das artes, aconselha princípios

básicos de como estudar e apresenta algumas atitudes necessárias para o estudo que são:

discernimento, meditação, memória, disciplina, humildade, silêncio, despojamento e exílio.

Mas, nos capítulos posteriores (IV, V, VI), já no estudo das Escrituras, é que ele

mostra para nós profundamente um espírito de caráter investigativo apresentando a ordem,

ressaltando com sabedoria a importância de saber as origens das obras, como também quem

as traduziu. Aconselha a usar a tradução mais fiel ao sentido das palavras. Dá importância

também ao período histórico-social em que foi escrita, quem escreveu a obra, qual o assunto

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tratado pela obra. Para então, depois disso, eleger sabiamente quais serão lidas e em que

ordem (da mais importante a de menor importância) isto também, de acordo com o seu

conteúdo. Observamos que toda esta análise prática foi feita dentro das Escrituras Sagradas,

porque para o autor a Sapiência Criadora é “A Razão única e primeira de todas as coisas”

(HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p.53).

O Vitorino também cita as dificuldades do estudo e os motivos que podem

impossibilitar o seu sucesso. Com certeza, Da arte de ler é um manual não só para estudantes,

mas também para mestres, pois corporifica um método investigativo que, com certeza, só vem

a acrescentar na busca do saber, e é o que vai respaldar o estudo mais profundo dentro das

futuras universidades do séc XIII. Aconselha ler as Escrituras Sagradas para instruir a mente

com conhecimento, adornando-a com os bons costumes e lapidando-a com as virtudes

respaldadas na verdade. Ainda instrui quatro passos que são: a leitura, a meditação, a oração,

a prática e a contemplação, sendo que, esta última considerada dos estudantes perfeitos.

Nestes passos, levou-nos a uma interpretação que para o saber é necessário tempo e disciplina

para a produção de qualidade.

Reflexões a cerca da obra Da Arte de Ler

Quando Ivan Illich, escreve um ensaio sobre a revolução intelectual do século XII a

partir da obra Da arte de ler, considera-a um divisor de águas do saber mundial, Hugo estava

iniciando a era do livro, que daria corpo à Universidade e duraria até o começo do terceiro

milênio quando o livro está sendo substituído pelo vídeo (Apud, MARCHIONNI, 2001, p. 22).

Esse julgamento de Illich é devido às reflexões de Hugo a cerca da interiorização do

conhecimento, da preocupação no aprender e refletir, na capacidade em adquirir um espírito

crítico e reflexivo, importantes ferramentas para o estudante na busca pela arte de aprender.

Estas preocupações, a nosso ver, permeiam toda a história da educação, e por isso, estaremos

citando anseios de alguns autores, de diferentes escolas literárias e períodos na história que

convergem para este mesmo objetivo.

Como exemplo, citaremos Diderot, um autor do séc XVIII, de outra escola literária, o

humanismo, que também mostra uma preocupação com a formação superior. Aliás, este texto

(reflexão de Diderot, enviada a imperatriz da Rússia em 1775 para promover a educação

superior) foi retirado do primeiro plano de uma universidade. Diderot afirma: “ ... que o

ensino em uma universidade, é apenas um ensino progressivo de conhecimentos elementares.

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É dispô-los todos a se tornarem com o tempo homens profundos” (DIDEROT, 2000, p. 282)..

Percebemos nela que este pensador, em outra época, reflete também uma preocupação com

objetivo da instrução, de desenvolver uma razão mais profunda no homem.

Um outro aspecto que ressaltaremos é a filosofia, tão forte na obra Da arte de ler.

Inicialmente, usaremos um autor do séc. XX, que se utiliza de Musse und Kult:

Falar do lugar e do direito da filosofia, é ao mesmo tempo, falar de nada mais nada menos que do lugar e do direito da universidade, da formação acadêmica, e da formação em geral no sentido próprio da palavra, a saber, naquele sentido pelo qual, por princípio a formação se distingue da simples instrução profissionalizante e a ultrapassa. Instruídos é o funcionário e a instrução (profissional) se caracteriza por dirigir-se a um aspecto parcial e específico no ser humano e, ao mesmo tempo, a um determinado setor recortado do mundo. Já a formação se dirige ao todo: culto e formado é aquele que sabe o que acontece com o mundo em sua totalidade. A formação atinge o homem todo enquanto é capax universi, enquanto é capaz de aprender a totalidade das coisas que são (Musse und Kult, p.42-43) (Apud, LAUAND, 1952, p. 77).

Nesta reflexão, percebemos que mesmo que o contexto histórico seja diferente, o

ensino deve levar o estudante a ver onde outros não vêem, e uma das ferramentas destacadas

por estes estudiosos é a filosofia. Os autores colocam uma questão sobre a filosofia utilizada

como meio para melhorar a capacidade de entendimento do mundo pelo estudante. E, a partir

desta compreensão, ele se distingue e faz a diferença no meio, porque esta instrução

ultrapassa uma formação apenas técnica.

A importância da filosofia nas artes liberais enfatiza não só o aspecto utilitário, mas o

elemento filosófico, e este, livre de sua aplicação prática. Como podem ser estudadas outras

áreas do conhecimento assim como a Matemática, o Direito, a Física etc.

Como enfatiza Pieper:

Há também na ciência, no seu núcleo mais íntimo, um elemento que não pode ser tomado para a utilidade prática: é o elemento filosófico da teoria, que se dirige para a verdade e nada mais. Isto é: a Ciência tem, em virtude de sua essência, exigência de liberdade, por ser não prática, mas teorética (Apud, LAUAND, 1952, p. 81).

Nesta análise, usado por Jean Lauand, evidencia a nosso ver, que a filosofia como

elemento filosófico já está dentro da própria ciência, e que, ambas procuram a verdade.

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Estas menções são bem apontadas pelo Vitorino quando afirma que, toda ciência, seja

ela disciplina seja um conhecimento qualquer, “faz parte da filosofia, como parte divisível ou

como parte integral” (HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p.127).

Como também quando diz:

O início da aprendizagem está na leitura, o fim na meditação, e se...

...E, após ter aprendido a querer e entender, pelas coisas que foram feitas, Aquele que fez tudo, ela inunda o espírito igualmente de ciência e de alegria, de maneira que na meditação aconteça o máximo de deleite (HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p.151).

Para o autor não é só ler, pois a meditação é um nível mais profundo de reflexão. E,

para isso deve haver o ócio do latim ottium, porque se faz necessário repouso, tempo livre de

dedicação ao objeto de estudo.

Agostinho já dizia sobre a filosofia: “Se fosse possível atingir o porto da Filosofia –

único ponto de acesso à região e a terra firme da vida feliz -, numa caminhada exclusivamente

dirigida pela razão e conduzida pela vontade (...)” (AGOSTINHO, 1998:1, 1)

Neste pensamento, Agostinho usa o termo razão, porque a reflexão deve ser dirigida

por uma razão, e não apenas refletir pensamentos soltos sem direcionamento. Percebemos

uma preocupação pedagógica e uma relação entre os dois pedagogos: Agostinho e Hugo.

Quando Hugo de São Vítor descreve a definição de ciência e filosofia, ele inclui

pioneiramente a filosofia nas artes mecânicas.

Quanto à formação universitária que contempla muitos ensinamentos, disse Newman,

um cardeal, durante a fundação da Universidade de Dublin contrapondo-se ao pensamento de

Roger Bacon do séc. XVIII:

[...] tem como objetivo aumentar o nível intelectual da sociedade, cultivar a mente pública, purificar o paladar nacional, fornecer os princípios verdadeiros para o entusiasmo popular e objetivos determinados para as aspirações populares, elaborar as idéias de seu tempo, facilitar o exercícios dos poderes políticos e refinar o relacionamento da vida privada (Apud, KERR,2005, p.15).

Observa-se novamente, e agora já no séc XXI, a preocupação dos pensadores que o

nível superior ofereça uma diferença ao estudante o diferenciando de outros na forma em que

elabora seus conceitos, de forma a preparar também um grupo de influência na reflexão

social.

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Ainda, sobre essa preocupação o conhecimento, o cardeal Newman fala: “O

conhecimento podia ser um fim em si mesmo. Tal é a constituição da mente humana pela qual

toda espécie de conhecimento, enquanto real, encerra sua própria recompensa” (Apud, KERR,

2005, p.14). Sobre este pensamento, entendemos que naquele momento que o cardeal alemão

contrapunha-se ao pensamento meramente empírico de Roger Bacon, pois entendia ser o

pensamento humano nobre e perspicaz capaz de ir além, e que a pesquisa não deveria tomar o

lugar do ensino. O cardeal defendia “o conhecimento liberal”. Assim, como também é

sugerido por Hugo de São Vítor quando descreve a contemplação, para ele é: “vagar por

campos abertos, onde possa fixar seu livre olhar na contemplação da verdade, e cortejar ora

esta ora aquelas causas das coisas profundas, e não deixando nada obscuro” (HUGO DE SÃO

VÍTOR, 2001, p.151).

Ainda, no Da arte de ler notamos grande influência de um pensador romano Boécio, e

também Isidoro permeando os capítulos que descreve as artes do trivium e quadrivium2.

Mostrando que o teólogo tratou de apropriar-se de toda literatura clássica antes de começar

sua produção.

Ressaltamos também alguns aspectos da obra, o autor a dividiu em seis capítulos dos

quais, os três primeiros dão o princípio da alma, posicionam a filosofia como princípio de

todas as artes do trivium e quadrívium, como também dá conselhos de como ler, o que ler, e

em que ordem através do discernimento no estudo, meditação, memória, disciplina,

humildade, silêncio, despojamento e exílio.

Hugo de São Vítor apresenta um método de estudo embasado no agir pensando, ora et

labora (trabalha rezando). Afirma que existe ciência através do exercício da filosofia. Afirma

também haver um movimento circular entre a mente divina-natureza-homem-trabalho-mente

divina (MARCHIONNI, 2001, p.32). E isto é tão forte no autor que ele divide o livro da

metade para frente, onde explica como ler as Escrituras Sagradas como meio para encontrar a

Sapiência, portanto para ele, a aproximação de Deus acompanha a busca da Sapiência. Nos

capítulos (IV,V, IV) mostra de forma prática como estudar os livros sagrados, preocupando-se

com as fontes, com a tradução, com a história instigando o leitor à busca pela Sapiência

usando como meios o exercício da inteligência e da ciência de forma reflexiva sempre. 2 Trivium e Quadrivium, também denominado como as sete artes liberais, do Trivium temos a Gramática, a Retórica e a Dialética; o quadrivium é formado pelas disciplinas de Música, Astronomia, Aritmética e Geometria. Essas sete matérias serão consideradas básicas durante a Idade Média, embora os mestres medievais não possuíam uma unanimidade em relação as auctoritas trabalhada em tópico.

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E o que vem a ser a Sapiência para Hugo? A busca por Ela nada mais é do que a

aproximação de Deus, ou melhor, o próprio Deus. Para ele, nessa busca deve-se se afastar da

vida mundana. A filosofia, filos (amor) e Sofia (sabedoria), amor à Sabedoria aproximando-se

do divino. Para Hugo a perfeição é adquirida com a aproximação do divino, na capacidade de

adquirir uma mente viva, como a nosso ver evidencia o excerto abaixo:

E esta sabedoria divina é chamada de “mente viva”, que é a “razão” primordial das coisas aplica-se à Sapiência divina, da qual se diz que não carece de nada, pois ela contém nada de incompleto, mas conhece de uma vez por todas e simultaneamente a totalidade das coisas passadas, presentes e futuras. Ela é chamada “mente viva” porque aquilo que esteve só uma vez na mente divina não será cancelado, por nenhum esquecimento. Ela é “ razão primordial das coisas” porque todas as coisas foram formadas semelhantes a ela (HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p. 83).

Na reflexão Hugoniana, a Sapiência guia todas as ações feitas pelo homem racional, e

lógico divide-se em duas partes; isto é, a inteligência e a ciência. A inteligência vai à

investigação da verdade e na reflexão dos costumes, que por sua vez divide-se num conceito

teórico-especulativo e prático-ativo baseado na ética e moral. Para ele, a inteligência é

dedicada à alma e a ciência ao corpo. A ciência, mediante a razão, conhece as ciências

naturais (HUGO DE SÃO VÍTOR, 2001, p.69).

A Sapiência, enquanto Mente Divina a ser procurada na filosofia, abrange como diz a

seguir, seja a atividade divina do homem como sua atividade corporal no trabalho. Deus cria a

natureza, que é o mundo divino supralunar, e da natureza deriva o mundo sublunar, no qual

Hugo insere o trabalho do homem como imitativo do mundo divino da natureza supralunar.

Desta forma, ele está inserindo o trabalho na dignidade filosófica, pela primeira vez na

história (HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p. 65).

A natureza para Hugo é o que atribui a cada coisa o seu ser. Ou seja, é a própria

“Mente Divina”, razão, forma e estrutura de todas as coisas. Desta forma, o processo exitus-

reditus (saída-retorno) da alma humana, que saiu de Deus como ser perfeito e seu destino é o

retorno para a pureza e a simplicidade original. Deus é definido por Hugo, como a “Razão

única e primeira de todas as coisas” (HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p. 53).

A semelhança do homem com a Sapiência é restaurada pelo próprio homem, mediante

atividade manual de trabalho e, sobretudo, pela atividade intelectual. Nisto se insere o ato de

ler que restaura em nós a semelhança com o divino.

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Conclusão

Durante o estudo da obra Da arte de ler, tivemos a oportunidade de conhecer um

clássico, que pode contribuir para nossa modernidade. Nessa análise, o objetivo primeiro foi

refletir sobre a “Sapiência”. Nesse sentido, constatamos que para Hugo de São Vítor, ela está

relacionada à aproximação de Deus primeiramente. E, ao relacionarmos as reflexões do

Vitorino com outros pensadores, observamos que existem discussões quanto á educação que

são perenes nos tempos desde a antiguidade até a modernidade. Desse modo, a ciência e a

filosofia no período da Alta Idade Média caminhavam juntas. Porém, mais tarde a ciência

separa-se da filosofia e ganha um cunho aristotélico, baseado na comprovação científica.

Já a universidade, instituição criada no séc. XIII é entendida como uma corporação de

ensino entre mestres e alunos, e a obra “Da Arte de Ler” contribuiu como um manual de

estudos medievais. E nela, percebemos a preocupação do Vitorino em dar ao estudante uma

Sapiência divina, que para este, era o caminho para o verdadeiro conhecimento.

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