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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE CONCENTRADO DE LEI MUNICIPAL FRENTE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL Carla Pimenta Leite Fortaleza - CE Agosto - 200

CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE CONCENTRADO DE …livros01.livrosgratis.com.br/cp069922.pdf · carla pimenta leite controle da constitucionalidade concentrado de lei municipal frente

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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE CONCENTRADO DE LEI MUNICIPAL FRENTE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Carla Pimenta Leite

Fortaleza - CE Agosto - 200

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CARLA PIMENTA LEITE

CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE CONCENTRADO DE LEI MUNICIPAL FRENTE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientação do Prof.ª Dr.ª Maria Lírida Calou de Araújo e Mendonça.

Fortaleza - Ceará 2008

___________________________________________________________________________ L533c Leite, Carla Pimenta. Controle da constitucionalidade concentrado de lei municipal frente a constituição federal / Carla Pimenta Leite. - 2008. 91 f. Cópia de computador. Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2008. “Orientação : Profa. Dra. Maria Lírida Calou de Araújo e Mendonça.”

1. Supremo Tribunal Federal. 2. Constitucionalidade. 3. Poder judiciário. I. Título. CDU 347.991

__________________________________________________________________________

CARLA PIMENTA LEITE

CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE CONCENTRADO DE LEI MUNICIPAL FRENTE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________

Prof.ª Dr.ª Maria Lírida Calou de Araújo e MendonçaUnifor

_____________________________________________

Prof. Dr. João Luis Nogueira UFC

_____________________________________________

Prof. Dr. José Júlio da Ponte Neto Unifor

Dissertação aprovada em

“As idéias são grandes na medida em que são realizáveis”.

Antônio Gramsci

AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha família e aos amigos por compreenderem minhas ausências; a

Walter, meu pai, eterno amor e saudade; à Celita, minha mãe, escudo quando o mundo disse

não; à Juliana, luz que o mistério da divindade colocou em minha vida; a meu Zé, porto

seguro onde encontrei paz, força e coragem.

À Dra. Maria Lírida Calou de Araújo e Mendonça, por ser em minha vida acadêmica a

professora por vocação, orientadora por profissão, amiga por doação, e mãe por afeição.

Ao Dr. João Luís Nogueira Matias, que primeiro acompanhou este trabalho, pelo apoio

quando seguir me pareceu impossível.

Ao Dr. José Júlio da Ponte Neto, que me honra em haver aceito participar da Banca

Examinadora.

RESUMO

O Supremo Tribunal Federal (STF), ao longo da história, desde a sua fundação, é alvo de muitas críticas, em virtude de alguns posicionamentos políticos firmados em decisões pouco estáveis e, muitas vezes, contrárias ao interesse social, em benefício de pressões governamentais. O presente trabalho analisa a origem da competência outorgada à egrégia Corte, estuda a relação do Judiciário com os demais poderes, identificando alguns dos motivos pelos quais a última instância do Poder Judiciário atua com supremacia, verifica os meios de controle de constitucionalidade exercidos pela Suprema Corte e a posição dos Municípios, desde sua formação perante as referidas ações e, por fim, avalia a utilização de critérios políticos e jurídicos na atuação do STF ante a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, utilizada como meio eficaz em matérias de controvérsia municipal diante do texto constitucional.

Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal. Competência. Legitimação. Controle de Constitucionalidade. ADPF.

ABSTRACT

The Federal Supreme Court (STF), throughout history, from its foundation, is the target of much criticism because of political decisions often contrary to social interest, to the benefit of government pressure. This study examines the origin of the power of Court, and the relationship of the judiciary with the other powers, identifying some of the reasons why the last instance of the Judiciary operates with supremacy, checking the competence to the action of legal controlling constitutionality and legitimacy of the Municipalities in the above actions, and lastly, evaluate whether the criteria of political and legal action against the STF in front of the Action ADPF, used as an effective control between legislative act and constitutional text.

Key words: Federal supreme court. Competence. Legitimacy. Constitucionation. Adpf.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................10

1 ORIGEM DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO ...................................15

1.1 Exercício do Poder Moderador..................................................................................16

1.1.1 Conselho de Estado .......................................................................................17

1.1.2 Relação entre o Poder Moderador e os outros poderes .................................18

1.2 Legitimidade do Poder Moderador............................................................................19

1.2.1 Do Imperador.................................................................................................20

1.2.2 Do Poder Judiciário .......................................................................................20

1.3 Neutralidade das decisões no início dos trabalhos ....................................................22

1.3.1 Julgamentos históricos...................................................................................23

1.3.2 Exame da constitucionalidade das leis ..........................................................24

1.4 Origem histórica da competência do controle de constitucionalidade ......................24

1.4.1 Formação brasileira .......................................................................................25

1.4.2 Influência das decisões das Cortes Constitucionais nos outros poderes .......26

1.4.3 Ilegitimidade das decisões proferidas contra os outros poderes....................27

2 JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DOS PODERES DO ESTADO .........................30

2.1 Decisões do Judiciário sobre atos do Legislativo......................................................32

2.2 Decisões do Judiciário sobre atos do Executivo........................................................34

2.3 O Judiciário e os atos políticos ..................................................................................35

3 MECANISMOS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ....................................37

3.1 Sistema de controle de constitucionalidade em alguns países da Europa .................37

3.1.1 Controle judicial da constitucionalidade de normas......................................37

3.1.2 Controle político da constitucionalidade de normas......................................40

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3.2 Sistema de controle de constitucionalidade nos Estados Unidos da América..................42

3.3 Sistema de controle de constitucionalidade brasileiro...............................................45

3.4 Súmula vinculante e a reforma do Judiciário ............................................................47

3.4.1 Paralela interdição à interpretação do juiz....................................................49

4 Ato Normativo Municipal ..................................................................................................52

4.1 Controle da constitucionalidade de lei municipal .....................................................54

4.1.1 Controle de constitucionalidade de lei municipal ante a Constituição Estadual .....54

4.1.2 Normas estaduais reproduzidas de normas da Constituição Federal.............55

4.1.2.1 Normas de reprodução obrigatória ...............................................................56

4.1.2.2 Normas de reprodução facultativa................................................................57

4.2 Controle de constitucionalidade de lei municipal ante a Constituição Federal........................57

5 ATO NORMATIVO MUNICIPAL E ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL .......................................................................................60

5.1 Ambigüidade do objeto .............................................................................................61

5.2 Direito comparado .....................................................................................................62

5.3 Preceito fundamental .................................................................................................64

5.3.1 Legitimidade para propor a ação da ADPF ...................................................65

5.4 Princípio da subsidiariedade......................................................................................68

5.5 Classificação da ADPF..............................................................................................70

5.5.1 Norma revogada pela Constituição Federal ..................................................72

5.6 Objeto da ADPF ........................................................................................................73

5.6.1 Alegação de Inconstitucionalidade da Lei 9.882/99......................................75

CONCLUSÃO..........................................................................................................................78

REFERÊNCIAS .......................................................................................................................86

INTRODUÇÃO

O Poder Moderador, criado pelo art. 98 da Constituição de 1824, foi naquela época o

centro de toda a organização política nacional, com função de inspecionar a nação, cujas

atribuições foram transferidas para o Supremo Tribunal Federal - STF.

Fica a cargo do Poder Judiciário a fiscalização da implementação de leis que estejam em

conformidade com o sistema nacional, mais precisamente através do controle de

constitucionalidade, não se podendo negar que a lei criada pelo Poder Legislativo, muitas

vezes tem um texto elaborado de forma a necessitar de um acabamento final. O Poder

Executivo utiliza-se deste papel exercido pelo Judiciário, para arbitrar a legalidade e aplicação

das leis que cria e que tratam de assuntos controvertidos, cuja tomada de decisão possa

prejudicar o resultado em eleições futuras, se convalidada pelo STF, retira-se-lhe parte da

responsabilidade perante aqueles que estarão a elas subordinados, como ocorreu na efetivação

do confisco do Plano Collor e na decisão que obriga a tributação referente às contribuições

destinadas à previdência pelos aposentados. Além disso, a possibilidade de o STF

transformar-se em uma terceira câmara legislativa é evidenciado a partir da Emenda

Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, que incluiu a “súmula vinculante” como

efeito às decisões proferidas pela maioria absoluta do STF em ADIn e ADC.

Nos estudos realizados durante o Curso de Mestrado e nas aulas, como docente da

disciplina de Direito Processual Constitucional na Universidade de Fortaleza, comumente se

apresentam questões sobre a constitucionalidade no Direito Comparado. Fazendo um paralelo

entre os sistemas de constitucionalidade político e jurídico da Europa e da América do Norte,

com a legislação brasileira, verificam-se as dificuldades encontradas por cada um desses

sistemas, já que ambos possuem deficiências que, inevitavelmente, podem levar ao

desequilíbrio do sistema de divisão de poderes imaginado por Montesquieu.

A opção pelo estudo apresentado se deu, por conseguinte, a partir do histórico sobre a

origem da Suprema Corte. Desde a sua criação sofreu grandes pressões políticas e problemas

administrativos que comprometem sua eficiência, aumentando as incertezas sobre a aplicação

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correta da legislação. Nesta perspectiva, constatou-se a falha do legislador ordinário em não

incluir, na Constituição Federal, a competência do STF para o controle de constitucionalidade

de lei municipal diante da Carta Magna, sendo criada a Ação de Descumprimento de Preceito

Fundamental – ADPF, regulamentada pela Lei 9.882/99, que não estabelece critérios

objetivos para a tomada de decisão sobre a matéria, deixando a cargo da Corte a aplicação da

medida conforme a interpretação a cada caso, através da elaboração de conceitos trazidos em

seu texto, o que pode ocasionar a pratica de atos de cunho essencialmente políticos pelo

Supremo.

No decorrer do trabalho, a pesquisa fundamentou-se na problemática apresentada sobre

o excesso de poder que o Supremo Tribunal Federal passou a exercer dentro do sistema

nacional com as reformas na Constituição Federal, que podem descaracterizar o sistema

democrático e transformá-lo em um Governo feito por juízes (judiciocracia). Pelo que foi

exposto, questiona-se se há possibilidade de tomada de decisão política pelos magistrados? A

formação atual do bacharel em direito se reflete na deficiência do Judiciário? Qual o perfil

deve ter o juiz de primeira instância para que a súmula vinculante não o transforme em mero

repetidor de decisões prolatadas? O STF pode substituir a falha do legislador ordinário em

não incluir as questões municipais no controle de constitucionalidade concentrado? A ADPF é

mais uma ação de controle ou um meio de conceder poderes políticos para o STF? Como o

STF pode ficar imune às críticas de que o poder competente para efetivar a justiça passou a

ser essencialmente político?

A justificativa para tal pesquisa deve-se à necessidade de legislação constitucional que

inclua o Município como ente legitimado a ação de controle concentrado de

constitucionalidade efetivado pela Suprema Corte, além de analisar a utilização da Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental como substituta da ADIN. Avalia-se se a referida

ação não passa de uma deformidade legislativa que modifica e amplia os poderes do STF, e

que, juntamente com a súmula vinculante, transforma o Judiciário em uma terceira câmara,

modificando o perfil do legislador.

Tem-se, como objetivo geral, a análise do controle de constitucionalidade brasileiro a

partir da efetivação das normas constitucionais e infraconstitucionais que tratam do assunto,

bem como a inclusão do Município nas ações referentes ao tema, salientando a possibilidade

de utilização da ADPF como meio de suprir a falha da lei.

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Em relação aos aspectos metodológicos, as hipóteses foram investigadas através de

pesquisa bibliográfica e documental. No que tange à tipologia, ou seja, de acordo com a

utilização dos resultados, a pesquisa é pura, visto vez que foi realizada com o fim de aumentar

o conhecimento do pesquisador, através das respostas obtidas pelo estudo, visando a tomada

de uma nova posição ante o ensino acadêmico. A abordagem é qualitativa, procurando

aprofundar as ações e as relações humanas através da observação crítica dos fenômenos

sociais. Quanto aos objetivos, a pesquisa é descritiva, buscando relatar os fenômenos

observados, e exploratória, pois procura aprimorar o tema, buscando maiores informações

das questões apresentadas.

O presente trabalho analisa os procedimentos, investiduras e decisões tomadas pelo

Supremo Tribunal Federal (STF) em situações conflituosas durante o período de formação do

sistema constitucional brasileiro, em confronto com as políticas adotadas nos Estados Unidos,

de onde o sistema constitucional pátrio deriva.

As decisões dos membros da mais alta Corte do Poder Judiciário, em virtude dos vícios

apontados em sua formação, muitas vezes têm sido consideradas descabidas em relação aos

demais poderes, sob o argumento de que exorbitam os limites delineados pela doutrina de

divisão dos poderes em um sistema democrático.

No primeiro capítulo deste trabalho, verificam-se as peculiaridades históricas que

ocorreram durante a criação do Supremo Tribunal Federal (STF), e a competência que lhe

outorga o poder de guardar da Constituição, originária do Poder Moderador, cuja competência

cabia ao Imperador, de acordo com a Constituição de 1824.

Verifica-se a relação do Poder Moderador com os demais poderes, analisando-se a

relação que legitima a autoridade do juiz, representante do Poder Judiciário perante os súditos,

a partir da legitimação do Imperador pela Constituição do Império, e a impossibilidade de

submeter os outros poderes às suas decisões, em virtude da insubordinação, em ambos os

casos, de seus atos perante um tribunal que lhes seja superior, gerando uma supremacia do

Poder Judiciário diante dos outros poderes, desde os primórdios da história constitucional do

país.

Ainda no primeiro capítulo, faz-se uma análise da origem do controle de

constitucionalidade na Europa, e na América do Norte, avaliando-se de onde surge a

supremacia do Legislativo na Europa, ao contrário da América, em que, assim como no

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Brasil, há prevalente supremacia do Judiciário, demonstrada na avaliação da influência do

STF nos outros poderes, desde a sua criação.

No segundo capítulo, estuda-se a relação do Poder Judiciário com os demais poderes,

uma vez outorgada a Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, que resultou

na inclusão de decisões sumuladas, que vinculam a administração pública direta e indireta, de

competência da Suprema Corte, autorizando, desta maneira, que o STF promulgue uma nova

forma de legislação jurisdicional. Avalia-se como se estabelecerá a relação do Judiciário com

o Legislativo, já que parece ter-se transformado em hábito nacional apontar as deficiências da

legislação e pregar a superioridade da lei feita pelos juízes. Além disso, como fica a atuação

do STF diante dos atos essencialmente políticos que originariamente são de competência do

Executivo e do Legislativo. Utilizando-se das interpretações judiciais com força de lei,

arbitram-se a legalidade e a aplicação de normas sujeitas à controvérsia, e, consequentemente

transfere-se a responsabilidade de tomar as decisões que são necessárias aos seus interesses,

mas que podem trazer conseqüências negativas ao Governo dentro dos partidos ou para

eleições futuras.

O sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, difuso e concentrado, das

normas federais, estaduais e municipais, e os limites impostos ao cidadão brasileiro em

questionar a legislação perante estes poderes são analisados no terceiro capítulo. Faz-se uma

comparação aos demais sistemas de constitucionalidade político na Europa, e o controle de

constitucionalidade judicial norte-americano, base do sistema brasileiro, e a possibilidade de

criação de uma “judiciocracia” ou um “Governo de juízes”.

Avaliam-se algumas das deficiências no cumprimento das funções pelo Poder

Judiciário, verificando-se alguns dos motivos pelos quais vem surgindo a descrença da

sociedade na eficiência da justiça, como o número insuficiente de juízes nas comarcas e a má

formação dos bacharéis em Direito, além da necessidade de um sistema nacional de controle

que evitasse a formação de corporativismo sem exposição da Corte à excessiva politização,

avaliando-se as reformas introduzidas pela Emenda Constitucional nº 32, de 11/9/2001, e pela

Emenda Constitucional n. 45, de 30/12/2004.

Neste levantamento, constatou-se que as falhas da legislação constitucional, no que se

referem aos Municípios ainda subsistem, como é o caso da falta de legitimidade encontrada

no art. 102, I, “a” da Carta Magna para interpor ação direta de inconstitucionalidade. Para

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entender a posição do Município dentro da Federação, e avaliar adequadamente a

interpretação destas falhas apontadas e a interpretação dos Tribunais superiores em relação à

matéria, foi elaborado um estudo no capítulo quarto, sobre a formação histórica dos

Municípios brasileiros, desde a origem. Verificam-se os tipos de controle de

constitucionalidade que as normas municipais possuem ante a Constituição Federal e do

Estado, no que se refere à reprodução obrigatória e facultativa de normas.

Em virtude da dificuldade em solucionar conflito entre normas municipais e a

Constituição Federal pelo controle conentrado de constitucionalidade, surge a Argüição de

Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF, cuja decisão tem efeito vinculante e erga

omnes. Veio ela a ser regulamentada pela Lei nº 9.882, de 03 de dezembro de 1999, sobre a

qual são apontados no capítulo quinto, pontos que a doutrina considera como relevantes,

verificando-se as interpretações já opostas pela Suprema Corte, além da análise à ADIN nº

2.231, interposta pelo Conselho Federal da OAB requerendo a declaração de

inconstitucionalidade da referida Lei.

1 ORIGEM DO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

A presente análise comporta a necessidade de demonstrar a razão pela qual as decisões

tomadas pelo Supremo Tribunal Federal têm caráter de austeridade, que ocorre não somente

porque se refere à última instância, mas também pela origem desta Corte, que têm, em seu

escopo, o poder imperial como razão de instituição de sua competência constitucional

originária.

O Poder Moderador foi criado pelo art. 98 da Constituição de 1824 e apresentado como

sendo a chave de toda a organização política nacional, cuja função era a suprema inspeção da

nação, podendo, para tanto, examinar a forma como todos os poderes políticos criados pela

Carta Magna eram exercidos.

Evidentemente que tal função deveria ser exercida de maneira que os poderes

concorressem harmoniosamente entre si, visando ao bem-estar social, impedindo seus abusos

e conservando-os na direção de sua missão. O Poder Moderador era então considerado como

mantenedor do equilíbrio entre os poderes, pois seu exercício evitava o desequilíbrio entre

posições radicais e mantinha o controle de situações que pudessem detonar uma revolução ou

uma ditadura, muito embora a história revele um padrão de conduta imperial absolutamente

diferente daquele desejado aos nobres ocupantes deste cargo.

Em julho de 1889, o Imperador Pedro II externou a vontade de criar no Brasil um

tribunal constitucional igual ao norte-americano, considerando que o segredo do bom

funcionamento da Constituição norte-americana se devia às funções da Corte Suprema. Além

disso, pretendia ele que fossem transferidas as atribuições do Poder Moderador a este tribunal,

e que seus poderes fossem outorgados pela Constituição1, sendo assim criado o STF através

do Decreto nº 510, de 22/6/1890.

Apesar de já se encontrar deposto de seu cargo, o Imperador teve a sua idéia

concretizada em 28 de julho de 1891, quatro dias após a promulgação da Constituição. A

primeira reunião dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), ocorreu no antigo e

1 RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal - Defesa das liberdades civis (1891-

1898). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. t. I, p.01.

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desconfortável edifício da Relação, à Rua do Carvalho, em sessão extraordinária, contando

com quinze Ministros, sendo a maioria do Superior Tribunal de Justiça2, cujo segmento de

organização copiava em grande parte o sistema americano, e outorgava o poder de declarar a

inconstitucionalidade das leis.

1.1 Exercício do Poder Moderador

A teoria de Montesquieu tem, na liberdade política do cidadão, o seu grande

fundamento, visto que, segundo ele, é da tranqüilidade do espírito que surge a segurança,

obtida pela certeza de que, através da ação governamental, não há necessidade de se temer o

semelhante. 3

No Brasil, estava a cargo do Imperador, auxiliado pelos seus súditos, a função de servir

ao bem comum como ocupação particular. Afonso Arinos faz referências aos anais da

Constituinte de 1824, citando o discurso proferido por Antônio Carlos em 29 de julho que

repetia a lição de constitucionalismo liberal de Benjamin Constant, na qual o Poder

Moderador exercia uma quarta força, declarando quais funções caberia a este poder:

Procurei a origem desta influência e a encontrei na necessidade de um poder vigilante e Moderador nos grandes Governos representativos. Mostrei que êste (sic) poder, que, como atalaia da liberdade e direito dos povos, inspeciona e contrabalança todos os demais poderes, para que se contenham nos limites marcados por sua mesma natureza e não se tornem danosos à nação, não fora desconhecido dos mais sábios legisladores da Antiguidade. Que nas Repúblicas êle (sic) devia estar separado do chefe da Nação; mas que, nas Monarquias Constitucionais, era dêle (sic) inseparável, para o conservar na alta preeminência em que esta forma de Governo necessàriamente (sic) o coloca.4

O Poder Moderador era exercido pelo Imperador, em virtude de ser sinônimo de poder

imperial, já que suas funções exigiam atributos inseparáveis da monarquia. Os dogmas

políticos do regime monárquico deviam ser consagrados pela justiça, ordem e segurança

nacional, fundados na impossibilidade de se crer que o Imperador, por sua tão alta posição,

fosse capaz de infringir as leis.

Assim, em virtude de se considerar que aquele ocupante do cargo imperial jamais trairia

seu povo com atitudes que privilegiassem apenas a si, não era possível se criar um tribunal

com a competência de julgar seus atos, uma vez que tal julgamento da posição, tomada pelo

2 Ibid., 1991, p.41. 3 MONTESQUIEU, Charles Louis de Edipro. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 2003. 4 ARINOS, Afonso de Melo Franco. Curso de direito constitucional brasileiro – formação constitucional no

Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1960. v. II, p.55.

17

Imperador, representaria um “sofrimento moral”.5 Ressalte-se que, no Brasil, a soberania não

era do Imperador, e sim, da Nação brasileira. A soberania era, desde aquela época,

considerada atributo nacional, propriedade que a nação tem por sua própria inteligência, força

e poder coletivo e supremo. 6

O que se deve averiguar é a possibilidade de colisão entre as vontades, parcialmente

soberanas, do Imperador e do povo, cuja fusão forma a soberania nacional. Para manter o

equilíbrio, a Constituição elegia um regime dualista, como meio de equilibrar essas duas

forças de igual pressão.

Verificou-se, nesta época, a necessidade de elaboração de uma Constituição que

mantivesse a ordem, garantindo ao mesmo tempo a liberdade individual, em virtude dos

problemas políticos surgidos após as guerras de Napoleão e da Revolução Francesa. Como a

soberania nacional repousava no seio da nação inteira, não seria possível instituir poderes

públicos que não fossem exercidos por ela em massa. Por isso, em relação ao cargo do

Imperador revelou-se natural a necessidade de declinar competência a representantes para o

exercício de tais poderes.

1.1.1 Conselho de Estado

Para que o poder administrativo pudesse cumprir sua missão de defender os interesses

coletivos da sociedade, tornava-se importante conhecer e julgar as reclamações opostas às

suas determinações. Surgiu a necessidade indeclinável de se criar em processos

administrativos e tribunais que satisfizessem à missão de justiça, sendo instituído o Conselho

de Estado composto por doze ministros vitalícios, escolhidos pelo Imperador, que podia

afastá-los por tempo indefinido, cuja função era representar o tribunal superior destas

reclamações7.

O Conselho de Estado era ouvido em todas as ocasiões em que o Imperador se

propusesse exceder qualquer das atribuições próprias do Poder Moderador. A função desta

instituição, portanto, era a de auxiliar o Governo e a administração nacional, através de

opiniões e pareceres sobre assuntos colocados em questão.

5 BARRETO, Tobias. Estudos de direito. Campinas: Bookseller, 2000, p.203. 6 TORRES, João Camilo de Oliveira. A democracia coroada – Teoria política do Império do Brasil. Petrópolis:

Vozes, 1964, p.76. 7 BARRETO, Tobias, op. cit., 2000, p.203.

18

Entretanto deve-se ressaltar que a opinião do Conselho de Estado não vinculava os atos

do representante do Poder Moderador, sendo sua audiência puramente facultativa,

concluindo-se que o parecer ou a consulta do Conselho de Estado não passava de um meio de

ilustração e acerto, não tendo outra força senão de opinião, que podia ou não ser adotada. 8

1.1.2 Relação entre o Poder Moderador e os outros poderes

Diversas eram as atribuições do Poder Moderador, dentre elas, estavam as funções

executiva, legislativa e a administrativa, pelas quais era permitido, ao Imperador, nomear os

senadores, sancionar leis, bem como aprovar ou suspender as resoluções das Assembléias

Provinciais.

Quanto ao Poder Executivo, o Imperador escolhia os ministros, e, quanto ao Poder

Judiciário, poderia nele intervir, suspendendo os magistrados, perdoando ou moderando as

penas por eles proferidas nas decisões, e, até mesmo, concedendo anistia em caso urgente (art.

101 e art. 154 da Constituição de 1894) 9.

Através da análise da origem do STF, verifica-se que o poder judicial sempre se

determinou como independente na história constitucional brasileira, sendo importante deter os

abusos que poderiam ser cometidos desde a época de sua criação, a fim de não contrariar sua

missão. Assim, na ausência de um tribunal com competência para julgar os atos do Imperador,

a necessidade de consulta ao Conselho de Estado, no caso de queixa contra os magistrados,

serviria de limites, se acaso os membros do Poder Judiciário incorressem em responsabilidade

administrativa.

Tal consulta era reservada para os casos mais graves, servindo de medida conservadora

em relação à ordem e ao poder judicial.Embora se saiba que o Imperador recorria ao Conselho

de Estado de maneira apenas proforme, uma vez que os pareceres deste Conselho não

vinculavam a decisão imperial, que poderia atuar da maneira que lhe fosse mais adequado,

diferentemente do Tribunal criado, que tinha limitação em seu poder de atuar, como ocorre

hoje, através do controle constitucional exercido pelo Conselho Nacional de Justiça.

8 BARRETO, Tobias, op. cit., 2000, p.288. 9 “Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador: [...] VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154.

[...] Art. 154. O Imperador poderá suspende-los por queixas contra elles feitas, precedendo audiencia dos mesmos Juizes, informação necessaria, e ouvido o Conselho de Estado. Os papéis, que lhes são concernentes, serão remettidos á Relação do respectivo Districto, para proceder na fórma da Lei.” BRASÍLIA. Presidência da República. Constituição Federal do Brasil de 1894. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%E7ao24.htm>. Acesso em: 23 maio 2008.

19

1.2 Legitimidade do Poder Moderador

O poder dos governantes depende do gesto de obediência por parte dos governados, pois

a força dos Governos não reside em sua maquinaria policial ou militar, mas no cumprimento

do preceituado pelas autoridades pelos súditos. “A ditadura não é sinônimo de Governo forte,

mas de Governo de força. Governo forte é o Governo de lei, Governo de autoridade. E

autoridade não se faz por obra da força, senão do assentimento, ou seja, da confiança dos

governados.”10

Assim, historicamente as leis não são obedecidas necessariamente por quem as

concedeu indiretamente, através do sufrágio. O povo que transferiu o seu poder soberano aos

parlamentares que, por este motivo, votaram nos textos das leis em vigor, não é

necessariamente o mesmo povo que obedecerá às leis votadas, porque as pessoas cuja vontade

se transformou em lei rapidamente se modificam, e não serão as mesmas que as cumprem.

Dessa maneira, existem leis que estão em vigor há décadas e certamente continuam sendo

obedecidas por uma geração, a qual jamais conheceu os eleitores daqueles que votaram seus

textos.

Além disso, nem todos os cidadãos podem votar, e nem sempre aqueles que obtêm essa

permissão a exercitam efetivamente. Dessa maneira, o que justifica esse ordenamento

jurídico, em sentido mais amplo como ordenamento democrático, é o fato de as leis serem

obedecidas igualmente por todas as pessoas, pelo bem supremo e maior, que é a boa

convivência social. Para tanto, deve-se sacrificar o mínimo possível o direito individual, mas

deve forçar seu cumprimento a fim de que todos obedeçam às leis. 11

O tema do controle da constitucionalidade dos atos normativos será mencionado do

decorrer deste trabalho, de maneira que se perceba que tal manutenção do equilíbrio das leis

funcione tanto pelo poder dado ao povo de escolher seus representantes a fim de promulgarem

leis que mantenham o equilíbrio do convívio social, como também a defesa da Constituição,

lei maior em benefício do povo, que serve à defesa da vontade de todos, ainda que não

concordem com seu texto.

10 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros, 2004, p.271. 11 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. São Paulo: Max Limonad, 2003,

p.61.

20

1.2.1 Do Imperador

Historicamente, os detentores do poder seguiram a estratégia de invocar a vontade do

povo, na tentativa de transformar o soberano em efetivo detentor democrático do poder. “O

rei garantia a sua boa moral perante Deus por meio do sermão de governar para ‘o povo’ e

para o bem deste”. 12

No Brasil, o Imperador concentrava as razões nacionais em toda a sua plenitude,

cabendo aos demais poderes representarem outros interesses. A transformação do Brasil

Monarquia em Brasil Império, fundamentada na Carta Magna de 1824, transferia ao

Imperador a representação do bem comum, antigas responsabilidades dadas ao rei, protegendo

os direitos dos cidadãos, uma vez que ele era escolhido por voto simbólico.

A idéia que se pretendia com o Poder Moderador era incluir um monarca como

representante do povo, que não fizesse parte dos grupos ou classes, evitando-se cair na

armadilha da tentação de conseguirem benefícios e vantagens pessoais à custa da nação, em

virtude das tentações que uma rápida passagem pelo Governo pudesse causar.

Afinal, o sucessor do monarca é seu filho e, cuidando da Nação, supostamente estaria

resguardando a própria herança. Bem explicita e rigorosamente diz a Constituição do Império,

em seu art. 11º: “Art. 11º - Os representantes da Nação Brasileira são o Imperador e a

Assembléia Geral”.

1.2.2 Do Poder Judiciário

A problemática da legítima representação também ocorre historicamente com o Poder

Judiciário, pois o povo não escolhe seus juízes, apesar de se submeter às suas decisões, em

virtude da interatividade atribuída a estas pela norma:

O tribunal exerce o poder-violência que é criado de forma constitucionalmente necessária com a instalação de uma tal (sic) competência decisória. A instância prolatora de sentença com caráter de obrigatoriedade, que não se pode basear textos de norma de modo plausível em termos de métodos, exerce contrariamente uma violência que ultrapassa esse limite, uma violência selvagem, transbordante, consistente tão-somente nesse ato que já não é constitucional [...].13

12 Ibid., 2003, p.69. 13 Ibid., 2003, p.67.

21

Entretanto, esclareça-se que a origem popular do poder não se confunde com a

efetividade dos cargos políticos:

Um juiz eleito não representa um progresso democrático sobre um juiz escolhido em rigoroso concurso. A verdade está precisamente no contrário. Um parlamento será sempre eleito – uma câmara de deputados escolhida por meio de concursos de provas e títulos será uma Academia de Ciências Políticas, mas não uma assembléia representativa do povo 14

Essa diferença está resguardada pelo fato de que a representação pressupõe um voto

expresso, não se traduzindo necessariamente em uma escolha direta e pessoal. A justificativa

de legitimar o Imperador naquela época estava na necessidade de se manter a existência de

um poder neutro, o Moderador, acima dos três poderes ativos exercidos por homens comuns,

que muitas vezes tinham interesses particulares superiores ao bem maior, e que, portanto,

podem ocasionar a quebra do equilíbrio tão necessário à harmonia. “A ordem é a realização

da justiça pela liberdade, e por isto a Constituição de 1824 definiu a atividade do Poder

Moderador como um incessante velar sobre a manutenção da independência, equilíbrio e

harmonia dos demais poderes políticos”15.

Essa necessidade de se manter a neutralidade no exercício das funções é evidenciada no

Judiciário, na medida em que a atribuição do Supremo Tribunal Federal se fundamenta em

moldes que justificaram o Poder Moderador.

Ressalte-se que “um poder neutro somente é possível, se infalível”16 e, conforme Celso

Antonio Bandeira de Melo:

[...] o juiz não tem um poder-dever, mas um dever-poder (função pública) visto que ele só dispõe do poder na medida necessária ao cumprimento de seu dever, o qual é direcionado a um fim. Enquanto as atividades legislativas e executivas são legitimadas, principalmente, em razão de seus agentes terem ascendido à posição de representantes do povo mediante o exercício do sufrágio pelos seus concidadãos, a atividade judiciária, que não é exercida por representantes eleitos, tem que legitimar-se através da fundamentação das decisões prolatadas, razão pela quais as sentenças devem ser públicas [...].17

O ponto central a que se quer chegar é o de que o Judiciário não poderá ser considerado

um poder efetivo, se não representar a vontade soberana através de suas decisões, ressaltando

14 TORRES, João Camilo de Oliveira, op. cit., 1964, p.84. 15 TORRES, João Camilo de Oliveira, op. cit., 1964, p.58. 16 LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreira. Jurisdição constitucional: um problema da teoria da democracia

política. In: SOUZA NETO, Claúdio Pereira de et al. Teoria da constituição. Estudos sobre o lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p.199-261, p.228.

17 Celso Antônio Bandeira de Melo, Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 90.

22

que soberana é a vontade da sociedade, e isto só poderá ocorrer através da efetivação do ideal

de justiça nas decisões prolatadas.

Dessa forma, são distintas as cogitações a propósito da legitimidade do título de poder e

da legitimidade do exercício do poder, como também se distingue a forma legal da forma

legítima de Governo:

[...] podemos afirmar que a norma jurídica é legítima – dotada de legitimidade – quando existir correspondência entre o comando nela consubstanciado e o sentido admitido e consentido pelo todo social, a partir da realidade coletada como justificadora do preceito normatizado. A legitimidade é um conceito material, ao passo que a legalidade é um conceito formal.18

A efetivação da representatividade do Judiciário, como poder mais acessível à

sociedade, só pode firmar-se nas instâncias de valor encontradas na filosofia, pois não se pode

falar em direito sem justiça e legitimidade. Toda vez em que se afirma que a justiça não é

possível, tenta se legitimar a injustiça que se causa, desvirtuando a finalidade das instituições,

tentando justificar-se sua ineficiência.

1.3 Neutralidade das decisões no início dos trabalhos

O Supremo Tribunal Federal desde sua criação sofreu, como ocorre até hoje, as maiores

pressões políticas, principalmente na época da decretação de estado de sítio, quando despertou

a ira de Marechal Floriano Peixoto pelas decisões tomadas em favor dos presos políticos da

época. O Presidente, utilizando-se da competência para nomeação dos ministros, não provia

as vagas que iam surgindo na Corte e recusava-se a dar posse ao presidente eleito, o que levou

à paralisação dos trabalhos do Tribunal.

Já, no inicio de suas atividades, o Supremo Tribunal Federal enfrentou, no calor das

discussões, a afirmação de que o Tribunal não poderia continuar “como peça de ditadura”19,

ao lado dos dois outros poderes constitucionais, uma vez que também possuía deficiências,

assim como os demais, que deveriam ser combatidas, e não havia nenhum controle sobre isso:

A repartição dos benefícios que se verificava no campo da política brasileira contaminava todo o aparelho burocrático do Estado, inclusive o Judiciário. As remoções e promoções de juízes ocorriam levando-se em conta o critério de confiança existente entre quem nomeava e quem era nomeado. [...] este mecanismo provocava – e ainda provoca – distorções consideráveis, permanecendo, até hoje

18 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2005, p.86. 19 RODRIGUES, Leda Boechat, op. cit., 1991, t.I, p.09.

23

ainda, matéria a ser definida objetivamente por tribunais para fins de promoções de juízes. 20

Se a principal função do Supremo Tribunal Federal é fiscalizar a aplicação das normas

de acordo com os preceitos constitucionais, quanto maior for o equilíbrio do sistema, menor

será a ingerência do Judiciário nos outros poderes.

No entanto não se pode deixar de considerar que o administrador público, respeitado o

princípio da estrita legalidade, pode, no exercício de suas funções gerenciais, agir de acordo

com a conveniência e a oportunidade que o ato deve praticar em benefício da finalidade

pública. O Poder Judiciário, até mesmo para exercitar a sua função precípua, conforme acima

mencionado, deve respeitar este critério de discricionariedade conferido pela lei à

Administração Pública, não tendo competência funcional para desfazer ou questionar tais

atos, a não ser que desrespeitem critérios vinculados e se tornem arbitrários.

1.3.1 Julgamentos históricos

Os conflitos que se insurgiam no país, desde a deposição dos Governadores21, deram

ensejo a julgamentos históricos no STF quanto à concessão dos pedidos de habeas corpus,

principalmente os que foram requeridos por Rui Barbosa, em favor de presos políticos. 22.

Tais decisões denotavam a delicada função do Tribunal em decidir a favor da liberdade

pessoal contra as decisões tomadas pelo Poder Executivo que extrapolavam o poder

concedido pela Constituição, invadindo a competência dos outros poderes, o que

evidentemente ocorria em um ambiente de extremada pressão.

As decisões demonstravam que o STF, naquela época, não obedecia a uma doutrina

constitucional uniforme, mudando de opinião em decisões sobre a mesma matéria, no

decorrer da história, de acordo com o pensamento e a pressão política que recebiam. Em

relação à modificação de pensamento do Tribunal, em cartas enviadas ao Jornal do Comércio,

Rui Barbosa ressaltou que as mudanças no pensamento do Tribunal refletiam-se na atitude

que variou no sentido da justiça e da liberdade, pois os novos membros daquela casa não

20 LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreira, op. cit., 2003, p.232. 21 Em 1892, quando Floriano Peixoto assumiu a Presidência, vários Governadores tinham apoiado o golpe de

Deodoro da Fonseca, e o Presidente considerou tais fatos como traição, motivo pelo qual houve perseguição aos traidores, além disso, foi quando “as oposições locais viram no novo governo a oportunidade de depor com sucesso os que estavam no governo estadual e isso aconteceu em vários Estados”. GONÇALVES, João Felipe. Rui Barbosa – pondo as idéias no lugar. São Paulo: FGV, 2000, p.79-80.

22 RODRIGUES, Leda Boechat, op. cit., 1991, t.I, p.162.

24

poderiam ficar “adstritos à responsabilidade errônea e inconstitucional dos seus antecessores” 23. Tal opinião não era unanimidade, nem no corpo Legislativo, nem mesmo entre os ministros

da Egrégia Corte.

1.3.2 Exame da constitucionalidade das leis

Na Alemanha pós-guerra, a emergência da Corte Constitucional em utilizar-se de um

direito suprapositivo deu-lhe possibilidade de aumentar sua função por conta própria, a ponto

de considerar-se competente para julgar até a própria Constituição.

Ao exercer sua competência, procedendo ao controle de constitucionalidade, dando a

interpretação que lhe parecesse melhor, a corte passa a julgar o valor das atitudes do

legislador, uma vez que analisava o conteúdo das leis, atingindo o elemento da

discricionariedade, que deve ser protegido e garantido por ela mesma.

Não se pretende, contudo, conceber-se a existência de um ordenamento jurídico

completo e coerente, na tentativa de reduzir a interpretação e aplicação de um simples

silogismo alheios aos valores e à vontade política24 inerentes ao juiz. Essa não é uma

exigência da ciência política, mas uma necessidade de natureza político-econômica, qual seja,

a necessidade de certeza do direito.

1.4 Origem histórica da competência do controle de constitucionalidade

Na Europa, os revolucionários franceses, desconfiados do antigo parlamento,

eliminaram a competência do Judiciário para exercitar o controle de coerência entre a

legislação e as leis fundamentais. Na América do Norte, ao contrário, os revolucionários

americanos hostis às leis da Assembléia Inglesa, tentaram controlar o nascedouro da

legislação. Assim, surge a supremacia do Legislativo na Europa, enquanto, na América, o

Poder Judiciário é dotado de tal poder. 25

A formação do Judiciário brasileiro, a ser mencionado a seguir, originou-se do modelo

americano, mas os membros do Poder Judiciário no Brasil têm formação caracteristicamente

européia.

23 RODRIGUES, Leda Boechat, op. cit., 1991, t.I, p.133. 24 ROCHA, José Albuquerque. Estudos sobre o poder judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995, p.75. 25 Ibid., 1995, p.88.

25

1.4.1 Formação brasileira

Copiando grande parte do sistema americano de Governo, foram trazidos certos pontos

da Corte Suprema Norte-americana, sendo outorgado expressamente ao STF o poder de

declarar a inconstitucionalidade das leis. Evidente que o STF, desde sua origem, não seria um

tribunal ordinário, já naquela época lhe cabia, antes de aplicar a lei, segundo pronunciamento

de Campos Sales, na exposição de motivos do Decreto nº 848, de 11/10/1890, “o direito de

exame, podendo dar-lhe ou recusar-lhe sanção, se ela lhe parecer conforme, ou contrária à lei

orgânica”.26

Este poder de declarar a inconstitucionalidade da lei, afirmado pela primeira vez na

Corte Suprema dos Estados Unidos, cabia a qualquer juiz, desde a primeira instância.

Ressalte-se que a Corte Americana amadureceu o poder de interpretação que lhe foi

conferido, só invocando o seu exercício cinquenta e quatro anos a partir do primeiro caso que

lhe foi levado à apreciação (caso Mabury v. Madison em 1803). Enquanto no Brasil, passados

três anos da outorga, o exercício de tal função já produzia processos de responsabilidade

criminal contra juízes e desembargadores, por haverem declarado a inconstitucionalidade de

leis federais e estaduais.

O direito dos tribunais de examinar a constitucionalidade dos atos Legislativos ou

administrativos e negar-lhes execução ou manter contra eles o direito dos indivíduos, quando

o caso for submetido à justiça, em ação regular pelos prejudicados, foi defendido, pela

primeira vez, por Rui Barbosa em 1892.

Tal poder foi objeto de muitas críticas de alguns dos Ministros do próprio Tribunal,

balizadas na opinião de que a justiça não podia tratar da matéria de competência privativa do

Poder Executivo, alegando que não há harmonia sem independência. Dessa maneira, para

conter o Judiciário, criou-se a doutrina dos crimes de hermenêutica, responsabilizando-se

penalmente o juiz pelas rebeldias da sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos

textos. Segundo Rui Barbosa, se tal teoria fosse admitida, configurar-se-ia a “hipérbole do

absurdo”, uma vez que a toga se transformaria na “mais humilde das profissões servis, para o

aplicador das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada pelos oráculos da ortodoxia

cortesã.”. 27

26 RODRIGUES, Leda Boechat, op. cit., 1991, t.I, p.02. 27 RODRIGUES, Leda Boechat, op. cit., 1991, t.I, p.84.

26

José Albuquerque Rocha ressalva que a jurisdição é justamente a instância que realiza a

função de interpretar e aplicar coativamente as normas jurídicas, garantindo a certeza e a

segurança dos direitos de que carece a sociedade para reproduzir-se na história. E assim foi

definitivamente incorporada, entre as atribuições do Poder Judiciário em todos os seus graus,

a de exercer o controle da constitucionalidade das leis e dos atos administrativos, em face dos

casos concretos, e não em tese. 28

Não se pode ignorar, porém, o aspecto de que as Cortes Constitucionais, ao interpretar a

lei, podem ultrapassar o texto constitucional, comprometendo o teor democrático da

concepção da separação de poderes, independente de quem o exerça29. Logo, se o controle da

constitucionalidade de leis e atos é imperioso ao bom funcionamento da separação de poderes,

há que se ressalvar a necessidade de conter os possíveis excessos cometidos por quem detém

o poder de interpretação normativa, principalmente se o exercício de tal atividade for

realizado pelo Judiciário que só adquiriu a legitimidade popular para o exercício do seu

poder-dever, em virtude da fundamentação de sentenças públicas.

Somente dessa maneira pode ele satisfazer os requisitos da teoria democrática, pela qual

a legitimidade do poder da autoridade só se realiza quando sustentada sobre princípios que

tenham sido adotados pelo todo ou pelo grupo social destinatário do direito positivado. 30

1.4.2 Influência das decisões das Cortes Constitucionais nos outros poderes

O argumento central que embasa a criação das Cortes Constitucionais é a de que elas

estariam acima das disputas políticas, garantindo o equilíbrio do sistema constitucional. Se os

Poderes Legislativo e Executivo exorbitam o limite definido pelo constituinte, a alguém

deverá competir a tarefa de controlá-los.31 Entretanto pouco se soube de enfrentamento por

parte do Judiciário em relação aos movimentos autoritários que, sem maiores dificuldades,

riscaram a validade de constituições das quais o Poder Judiciário funcionava como guardião.

Ressalte-se que os presidentes, com maior número de nomeações para o STF, eram

ligados aos militares, como ocorreu com Getúlio Vargas, quanto então foram nomeados vinte

e um ministros para o Supremo, seguido por Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto que

28 ROCHA, José Albuquerque, op. cit., 1995, p.23. 29 LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreira, op. cit., 2003, p.204. 30 GRAU, Eros Roberto, op. cit., 2005, p.87 31 LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreira, op. cit., 2003, p.226.

27

nomearam quinze ministros, e por João Figueiredo, quando nove ministros ingressaram no

STF32.

Uma afirmação do Judiciário a respeito da constitucionalidade das medidas adotadas

pelo Poder Executivo é capaz de abrandar o grupo social questionador de alguma medida em

virtude da restrição dos meios pelos quais estes questionamentos podem ser interpostos, além

de legitimar o discurso do Governo e credenciar a continuidade da condução política.

Há uma forte tendência em se considerar que a teoria da separação de poderes criou um

mito sobre o modelo clássico formulado em Montesquieu, uma vez que vários estudiosos já

demonstraram a impossibilidade de separação absoluta entre os poderes, reconhecendo o

controle de um poder sobre o outro, e a vigilância destes pelo povo. No entanto, mesmo

considerando a impossibilidade de divisão e a independência absoluta entre os poderes, tal

influência deve ser considerada dentro dos preceitos constitucionais e limites que impeçam a

desarmonia do sistema político.

Quando um dos poderes vier a ultrapassar os limites de sua competência, tal abuso

deverá ser corrigido pelo próprio poder que inferiu em tal erro, o qual possui a competência

legal de extinção dos atos administrativos33, sob pena de descontrole da harmonia do sistema

político, e de supremacia de um dos poderes sobre os demais. Assim, o que deve ser limitado,

é a invasão excessiva do espaço político pelas cortes constitucionais, cometidos nos controles

de constitucionalidade realizados pelos Tribunais, que, no exercício do seu poder

constitucional de controlar a legalidade dos atos normativos, se encontram no limite entre o

ato jurisdicional e o ato político.

1.4.3 Ilegitimidade das decisões proferidas contra os outros poderes

Dentro da perspectiva de que o Judiciário só poderá intervir nas ações de outros

poderes, com o fim precípuo de fiscalizar a exata aplicação da lei, não se pode corroborar com

a opinião de que “a função exercida pelo Poder Judiciário é também uma função

32 MELO FILHO, José Celso de. Notas sobre o Supremo Tribunal Federal. Brasília: Supremo Tribunal Federal,

2007, p.13-14. 33 “A retirada pode dar-se por revogação, por invalidação, por cassação e por caducidade. Há revogação quando a

retirada funda-se em razões de mérito ou, como dizem alguns, de conveniência e oportunidade. [...] Há invalidação quando a retirada funda-se em razões de ilegalidade. [...] Há cassação quando a retirada funda-se no descumprimento de condições que ao beneficiário do ato cabia observar para continuar merecedor do desfrute. [...] Há caducidade quando a retirada funda-se no advento de nova legislação que impede a permanência da situação anteriormente consentida.” GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2006, p.103.

28

essencialmente política e que, em alguma medida e dentro de certos limites, o Poder

Judiciário está autorizado pela Constituição a pronunciar-se sobre questões políticas.34 Há que

se levar em consideração que “a posição do juiz na categoria de servidor público coloca-o

debaixo da sujeição administrativa dos tribunais de quem pode esperar ou uma rápida

ascensão na carreira, se lhe é dócil à orientação ou a marginalização, se lhe é hostil.” 35

Dentro da história do STF, cuja indicação depende dos demais poderes, as decisões

proferidas caracterizam-se por uma nítida opção tomada entre a governabilidade e a aplicação

de critérios da democracia, razão do Estado. O que fica claro, dentro da análise da maioria das

decisões tomadas desde o início dos trabalhos do STF, é uma opção pela governabilidade, que

se deixou traduzir pela histórica adesão do Poder Judiciário, mormente a Corte Suprema, aos

objetivos do Estado.36

Seguindo a tradição originária de sua competência, o STF tem atuado historicamente

como um dos instrumentos que servem ao Estado, e não somente como defensor da

Constituição. Quando a justiça ascende à condição de mais alta instância moral da sociedade,

capaz de controlar absolutamente tudo, torna-se imperialista, pode escapar de qualquer

mecanismo de controle social, sendo este o ponto crucial a ser combatido dentro do sistema

que se firma como democrático.

Nesse sentido a Emenda Constitucional nº 45/2004 criou o Conselho Nacional de

Justiça, que tem, dentre as suas funções, zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo

cumprimento do Estatuto da Magistratura. Visa também receber e conhecer das reclamações

contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares,

serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do

poder público ou oficializado, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos

tribunais. Pode, ainda, avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a

disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de

serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa.

Assim, analisada a transferência do poder imperial concedido ao Supremo Tribunal

Federal, através do Poder Moderador, consegue ser esclarecida a razãop pela qual a justiça

34 JORGE NETO, Nagibe de Melo. O controle jurisdicional das políticas públicas: concretizando a democracia e

os direitos sociais fundamentais. Bahia: Podivm, 2008, p.22. 35 ROCHA, José Albuquerque, op. cit., 1995, p.46. 36 LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreira, op. cit., 2003, p.215.

29

ascende à condição de mais alta instância moral da sociedade, capaz de controlar

absolutamente tudo, e isso será tratado neste trabalho, uma vez que considera-se esta

possibilidade deva ser limitada, já que se confgigura invasão excessiva do espaço político

pelas cortes constitucionais, sendo, como já mencionado, este o ponto crucial a ser combatido

dentro do sistema que se firma como democrático.

2 JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DOS PODERES DO ESTADO

A Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004 incluiu a “súmula

vinculante” nas decisões proferidas pela Suprema Corte. Por esta emenda, o Poder Legislativo

autoriza o Supremo Tribunal Federal a promulgar prontamente uma nova legislação, passando

a Suprema Corte a atuar como coadjuvante legislador político.

A plena eficácia da medida, a partir de sua publicação no Diário Oficial da União de

31/12/2004, concede competência à Suprema Corte para aprovar súmula que, a partir de sua

publicação, vinculou as decisões não somente em relação aos órgãos do Poder Judiciário, mas

também à administração pública direta e indireta, em todas as esferas da Federação, o que

vem estabelecer uma nova formação de atos normativos no país, sem necessidade de

aprovação no Congresso Nacional, de acordo com o processo Legislativo estabelecido na

Constituição.

O princípio da separação dos poderes deve ter uma lógica compreensão que não pode

ficar limitada à configuração trazida na Carta Magna, sendo necessária a integração desta

configuração tanto com a teoria constitucional quanto com a teoria política.1

O que não se pode admitir é que a teoria política seja interpretada como pressuposto da

função essencial do Poder Judiciário, a não ser considerando que “o trabalho judicial é

político no sentido de que o juiz, ao decidir, faz opções em função de argumentos políticos em

sentido amplo (filosóficos, ideológicos, sociais, etc.) e não apenas lógicos”2, ressaltando que

os argumentos políticos a serem utilizados, o sejam em benefício da soberania popular.

1 MORAES FILHO, José Filomeno. Separação de poderes no Brasil Pós-88: Princípio constitucional e práxis

política. In: SOUZA NETO, Claúdio Pereira de et al., op. cit., 2003, p.154. 2 ROCHA, José Albuquerque, op. cit., 1995, p.77.

31

É na defesa desta soberania popular, que se ressalta a legitimação legal que possibilita a

súmula ser revisada ou cancelada, uma vez que se limitou ao art. 103, ou seja, àqueles que

podem propor a ação de inconstitucionalidade por meio concentrado. 3

Há, portanto, duas conseqüentes impossibilidades de acesso ao Poder Judiciário em

virtude desta nova legislação introduzida pela EC 45/2004. A primeira se reveste na

impossibilidade de controle difuso de constitucionalidade sobre normas sumuladas. A

segunda trata do afastamento do Município em virtude da falta de legitimação deste ente

federal, o que denota tratamento diferenciado não somente pela Constituição, mas,

consequentemente, pelo próprio STF. Ambas as formas afrontam diretamente a garantia

fundamental de acesso à Justiça, instituída pelo art. 5º, inc XXXV, da Constituição Federal.

Assim, na tentativa de considerar uma interpretação única à legislação, para se obter

maior eficiência e rapidez no trâmite dos processos judiciais e administrativos, através da

conformação das decisões, o Poder Legislativo, ao aprovar o texto da Emenda Constitucional

n. 45, integrando o artigo 103-A da Constituição Federal, limitou o acesso ao Poder

Judiciário, afastando as possibilidades de questionamento de constitucionalidade de atos

normativos municipais perante o STF.

Como será tratado adiante, o artigo 18 da Constituição Federal elevou oficialmente o

Município a ente da Federação, estabelecendo para este um grande ônus econômico sem as

necessárias receitas, além de não incluir o novo ente em certos textos das demais normas

constitucionais, tanto que, para José Afonso da Silva4, a Federação brasileira não mudou em

nada com esta modificação constitucional de seus entes federais.

Dessa maneira, as dificuldades a serem enfrentadas pelo Município, como se verá, são

de ordem não apenas econômica, mas também de legitimação perante a Constituição, já que o

artigo 102, I, “a”, excluiu a possibilidade de controle de constitucionalidade concentrado de

ato normativo municipal em face a Carta Magna, e da Ação de Descumprimento de Preceito

Fundamental, prevista no §1.º do art. 102 da Carta Magna e disciplinada pela Lei Federal n.º

3 “Art. 103- A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços

dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.[...] § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade”. (grifou-se).

4 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Saraiva, 2003, p.473.

32

9.882, de 3/12/1999, que também viola a Carta Política, o que denota a pouca preocupação do

legislador originário em relação ao Município.

A criação, a modificação e a nova interpretação de mecanismos legais, como a Ação

Civil Pública e a ADPF, foram os meios encontrados para tornar mais acessível o controle

concentrado de normas municipais perante o STF, mas, apesar destes mecanismos, não se

evita nem a diferença no tratamento da Constituição entre o Município e os demais entes da

Federação, como também não se consegue afastar a influência política exercida no Supremo

Tribunal Federal em decisão de questões relevantes através destes meios, como será

demonstrado adiante.

2.1 Decisões do Judiciário sobre atos do Legislativo

A lei criada pelo Poder Legislativo, dentro de uma perspectiva de indeterminação do

direito, termina por necessitar de um acabamento final, a ser solicitado pelas instituições ou

pela sociedade civil.

O aprimoramento da lei tem sido feito pelo Poder Judiciário, e, evidentemente,

repercute na relação entre os poderes, já que o leva ao papel de legislador implícito. Parece

haver-se transformado em mania nacional apontar as deficiências da legislação e pregar a

superioridade da lei feita pelos juízes, o que denota o questionamento da doutrina sobre “por

que é o direito feito pelos juízes, e não o direito feito pela legislatura, que se liga mais

naturalmente aos valores políticos que “direito”, “justiça”, “legalidade” e “estado de direito”

evocam?”5

O problema, pertinente a esta legislação elaborada através de decisões judiciais, é a de

que também sobre o Judiciário pairam as incertezas jurídicas e institucionais que a sociedade

nutre pelo Legislativo. Além disso, ainda recorre sobre este a ilegitimidade da escolha de seus

membros. Conforme Maria Sylvia Di Pietro:

As garantias de que cerca a magistratura no direito brasileiro, previstas para assegurar a independência do Poder Judiciário, em benefício da Justiça, produziram a falsa idéia de intangibilidade, inacessibilidade e infalibilidade do magistrado, não reconhecida aos demais agentes públicos gerando o efeito oposto de liberar o Estado de responsabilidade pelos danos injustos causados àqueles que procuram o Poder Judiciário precisamente para que seja feita justiça. 6

5 WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.13. 6 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Jurídico Atlas, 2006, p.629.

33

A sociedade civil construiu um retrato ideal sobre aqueles que têm competência para

julgar, emoldurando a má fama do legislar. É evidente que a função de solucionar os conflitos

coletivos dever ser exercida pelo Poder Judiciário, mas, ao seu redor vem-se criando uma

arena pública nova, já que este se serve da agregação do tecido social e da adjudicação da

cidadania que são temas dominantes na pauta de facilitação de acesso à Justiça.7

Valorizar-se acentuadamente um terceiro poder de declarar a solução do direito, através

do juiz, que é tido como personagem que tem o poder de transformar em justa uma prática

social de princípios já admitidos ou não arbitrários, tal qual ocorria como o Imperador, cujo

poder foi repassado à Suprema Corte, também pode ameaçar a cidadania ativa, tanto quanto

uma legislação injusta que não beneficie os anseios da sociedade, que seja elaborada pelo

Legislativo.

A má reputação da legislação, tanto na teoria jurídica quanto política, está ligada ao

convencimento das pessoas de que há algo indecoroso em um sistema instituído por uma

legislatura eleita, como ressalta Jeremy Waldron: “O pensamento parece ser de que os

tribunais, com suas perucas e cerimônias, seus volumes e encadernados em couro e seu

relativo isolamento ante política partidária, sejam um local mais adequado para solucionar

questões desse caráter”. 8

Na verdade, o ideal de democracia não sendo atingido, em virtude das diversas

frustrações das expectativas da sociedade civil no Poder Legislativo, acaba por refletir a

perspectiva de que o Judiciário possa vir a traduzir uma demanda moral de pronunciar-se

sobre o bem e o mal. Nesse passo, “a judicialização da política e do social seria, então, um

mero indicador de que a justiça teria se tornado um ‘último refúgio de um ideal democrático

desencantado”9.

No ideal de justiça, procurada pela sociedade que se sente abandonada pela política, o

Judiciário serve não apenas como a instituição de acesso menos difícil que os demais, mas

também como salvaguarda confiável das expectativas por igualdade e por se comportar como

substitutivo do Estado, aos partidos, à família, à religião, ou seja, a qualquer instituição

incapaz de cumprir a sua função de solidarização social.

7 VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro:

Reva, 1999, p.22. 8 WALDRON, Jeremy, op. cit., 2003, p.5. 9 VIANNA, Luiz Werneck et al., op. cit., 1999, p.25.

34

Dessa forma, as esperanças depositadas no Estado, considerado decadente, relevam a

crença de somente pelo trabalho do Judiciário, através da prática da justiça, realiza-se a ação

política fora do Estado.

O sucesso das ações praticadas pelo Poder Judiciário é proporcional ao descrédito que

afeta as instituições políticas pela perda do espírito público, e faz que a justiça passe a tomar o

lugar da política, exatamente na falta dela, deixando de ser poder instituído e punitivo,

passando a ocupar papéis de construção e instituição só possíveis aos poderes com

representação popular. Disto exsurge a gravidade da exclusão do controle de

constitucionalidade de normas do Município, em várias situações dentro da Constituição

Federal, como os já apontados, no art. 102, I, “a” e seu § 1º, além do art. 103-A.

2.2 Decisões do Judiciário sobre atos do Executivo

O Estado social tem, como principal recurso de comunicação, colocar o direito como

pressuposto de que dele dependa a manutenção do equilíbrio de repartição democrática das

funções entre os poderes. Nesse ínterim, o Poder Executivo traduz suas decisões sobre

políticas públicas em normas jurídicas, quando vincula o comportamento de grupos sociais

beneficiados.

Sendo assim, o Executivo muitas vezes consegue com o papel exercido pelo Judiciário,

arbitrar a legalidade e a aplicação das leis que cria, especificamente nos casos sujeitos à

controvérsia, uma vez que o papel do Judiciário o coloca como única instância institucional

especializada na interpretação das normas, retirando do Poder Executivo, desta forma, a

responsabilidade de ter de tomar decisões que são necessárias aos seus interesses, que

pudessem trazer conseqüências negativas ao Governo dentro dos partidos ou para eleições

futuras.10

10 Como ocorreu na decisão proferida em ação de inconstitucionalidade nº 2010, cuja questão vertente se cinge à

discussão acerca da legitimidade da incidência da contribuição social instituída pelos artigos 1o e 2o, da Lei no 9873/99, sobre os vencimentos e proventos dos servidores públicos e pensionistas da União. O Poder Público, na ânsia de arrecadar e, com isto, atender aos ditames impostos pelo Fundo Monetário Internacional, resolveu instituir uma progressividade nas alíquotas da contribuição previdenciária dos servidores e pensionistas da União Federal, desrespeitando o art. 150, IV, da Constituição Federal que trata da vedação ao confisco, como direito fundamental que constitui uma verdadeira imunidade tributária da parcela mínima necessária a sobrevivência da propriedade privada. Diante de tal cenário de injustiça, o STF, ao julgar a medida cautelar requerida na ADIN 2010-2 (DJ 30.09.1999 - Rel. Min. Celso de Mello), declarou a inconstitucionalidade não só da cobrança da contribuição previdenciária dos servidores aposentados e pensionistas da União, como da progressividade das alíquotas, tal como previsto na Lei no 9783/99. BRASIL. Tribunal Regional Federal – TRF. 2a R. - AP-MS 1999.51.01.011088-9 - 1a T. - Rel. Des. Fed. Ricardo Regueira. Diário de Justiça da União, 19.3.2004, p.149.

35

O Judiciário também serve como meio para que o Executivo possa efetivar medidas

após a decretação de constitucionalidade, ou até mesmo deixar de tomar decisões

administrativas necessárias, que são de sua competência, alegando que a sua inoperância se dá

em virtude de decisão judicial. Daí não se poder afirmar, a rigor, que esse papel político

tomado pelo Poder Judiciário desagrada de maneira completa ao Poder Executivo.

Entretanto a judicialização da política e das relações sociais não será benéfica à

formação de homens livres, caso o soberano delegue sua vontade a um corpo de peritos

especializados na interpretação das normas, de forma que se criem uma justiça

assistencialista, em substituição a um estado benfeitor. A necessidade de abertura de acesso ao

Poder Judiciário se dá a partir do momento em que se verifica a ineficiência dos demais

poderes, não porque o Judiciário seja o meio mais eficaz e seguro de concretização de

direitos, mas porque é um dos meios mais rápidos pelo qual o cidadão pode ter acesso aos

demais poderes.

Essa democratização do acesso à justiça há que advir como uma aquisição de direitos

em relação a todos os níveis da Federação, o que não ocorre em relação ao Município.

Uma cidadania ativa só será possível em todos os níveis da Federação quando se

permitir o exercício desta também em relação ao Município, sendo necessário que o Judiciário

tenha a consciência de que não pode vincular suas decisões de maneira a que sirvam de

confirmação de atos do Executivo, e não admitindo, portanto, a inobservância do art. 5,

XXXV da Constituição Federal.

2.3 O Judiciário e os atos políticos

Em relação à discussão sobre a separação dos poderes, a doutrina tem-se posicionado no

sentido de que nunca houve uma separação absoluta das funções estatais, confirmando a

possibilidade de interferência do Executivo no Legislativo, e vice-versa, à medida que se pode

controlar a aprovação das leis11.

Celso Fernandes Campilongo critica a sobreposição dos sistemas político e jurídico,

alegando que não existe democracia sem uma separação entre esses sistemas, ou seja, que as

decisões políticas podem estar condicionadas ao aplauso das assembléias ou à aceitação do

11 MORAES FILHO, José Filomeno, op. cit., 2003, p.159.

36

povo. 12 Embora admita o autor que as decisões políticas podem ser submetidas ao controle

judicial no caso de inconstitucionalidade, afirma que os sistemas político e jurídico se

assemelham a duas bolas de bilhar – uma não se confunde com a outra, mas interagem por

meio de um conjunto de prestações recíprocas – sendo necessário para manter a complexidade

da sociedade atual, que se caracteriza por uma pluralidade quase infinita da sociedade.

A segurança jurídica não é encontrada somente na uniformidade das decisões judiciais,

mas também na tranqüilidade do espírito obtida através das ações estatais que proporcionem

ao cidadão não temer seu semelhante.13

Não há dúvida de que os três poderes precisam ser regulados e fiscalizados. Afinal, “um

poder neutro somente é possível, se infalível”14, sendo procedente a preocupação de que os

poderes constituídos poderão sempre ultrapassar o limite constitucional, exigindo-se, desta

forma, algum tipo de controle.

Apesar de não poder afastar definitivamente a prática política do Judiciário, discorda-se

da afirmação de que “a função exercida pelo Poder Judiciário é também uma função

essencialmente política”15, considerando que a verdadeira função inovadora do julgador está

na reestruturação da sociabilidade, principalmente em pontos estratégicos de problemas

sociais de exclusão, em que a jurisdição possa desempenhar uma função muito mais de

explicitação do direito visto que o “lugar da política é da polis, e não da tribo e do clã.”16

Considera-se ademais que o papel do Supremo Tribunal Federal deve corroborar

argumentos políticos, econômicos e sociais, somente no sentido de efetivar democracia,

afastando a possibilidade de utilização de tais meios como forma de mera manutenção da

“política do sistema”17, sob pena de ocasionar o efeito prático-social que afasta ainda mais o

juiz do povo, desvinculando-o do titular da soberania, inclusive quanto à responsabilidade

pelos resultados sociais de suas decisões, conforme será visto no capítulo seguinte.

12 CAMPILOMGO, Celso Fernandes. Governo representativo versus governo de juízes: a autopoiese dos sistemas

político e jurídico. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, nº 30, p.120-126, jan.-mar./2000, p.122.

13 Ibid., 2000, p.156. 14 LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreto, op. cit., 2003, p.228. 15 JORGE NETO, Nagibe de Melo, op. cit., 2008, p.22. 16 VIANNA, Luiz Werneck et al., op. cit., 1999, p.28. 17 ROCHA, José Albuquerque, op. cit., 1995, p.78.

3 MECANISMOS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

As normas jurídicas presumem-se constitucionais, mas, como nem sempre essa

presunção é infalível, a Teoria Constitucional desenvolveu formas de controle de

constitucionalidade com diversos critérios, por exemplo, quanto ao órgão fiscalizador, do qual

surgem os controles político, jurisdicional e misto, e, quanto ao momento da fiscalização, pelo

qual se criaram os controles repressivo e preventivo.1

3.1 Sistema de controle de constitucionalidade em alguns países da Europa

Na Europa, encontram-se países com controles político e judicial. Em relação aos países

que adotaram o controle judicial, diferente do que ocorre nos Estados Unidos, nos países

europeus procurou-se concentrar o controle de constitucionalidade em um único órgão

jurisdicional, o Tribunal Constitucional, que tem a competência para exercer tal controle com

eficácia erga omnes.

Entretanto alguns países optaram por estabelecer um controle político, e não judicial,

como é o caso da França, que, por razões históricas e ideológicas não dispõe de controle

difuso em sua Constituição, mas tão somente de um Conseil Constitutionnel (antigo Comitê),

conforme se verá a seguir.

3.1.1 Controle judicial da constitucionalidade de normas

Em 1920, a Constituição Austríaca materializou a idéia de Hans Kelsen, dando ensejo

ao controle concentrado de constitucionalidade em um só órgão criado com esse fim

específico. Não integra formalmente o Poder Judiciário, apesar de suas decisões terem um

conceito jurisdicional, uma vez que tais cortes estão “acima do Judiciário e fora dele”2.

1 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.108. 2 ROCHA, José Albuquerque, op. cit., 1995, p.99.

38

A disciplina sobre a organização do Tribunal alemão foi elaborada pelo legislador

ordinário, e promulgada em 12 de março de 1951, sendo o Bundesverfassungsgericht

constituído por dois Senados, composto por oito juízes, que são eleitos pelo Parlamento

Federal (Bundestag) e pelo Conselho Federal (Bundesrat).3

Na Alemanha, os juízes eleitos pelo Conselho Federal são escolhidos por eleição direta,

na qual os votos de cada Estado devem ser dados de forma unitária. Para os juízes escolhidos

pelo Parlamento Federal, é feita eleição indireta, por colégio composto, formado por doze

parlamentares segundo a regra da eleição proporcional. Os integrantes desse colégio são

eleitos por uma legislatura e não podem ser destituídos. A exigência da maioria qualificada

(2/3) torna imperioso um consenso entre os dois grandes partidos. O presidente e vice-

presidente do Tribunal são escolhidos de forma alternada pelo Parlamento e pelo Conselho

Federal.

De forma muito cautelosa, tem sido utilizado o direito extraordinário de indicação do

juiz, que só se dá em virtude da demora na escolha, se não tiver havido opção de um novo juiz

no período de dois meses a contar da vacância do cargo e o mais velho dos integrantes do

colégio eleitoral ou o presidente do Conselho Federal tenha sido obrigado a decidir sobre a

matéria. O mandado dos juízes, que são empossados pelo Presidente da República, é de doze

anos, sendo vedada a reeleição4.

Esses dois Senados estão no mesmo plano hierárquico, cuja competência é estabelecida

na Lei de Organização do Tribunal, que autoriza o Pleno a estabelecer as regras especiais a

fim de restaurar a igualdade na distribuição de processo, se ocorrer sobrecarga. Além disso,

em cada Senado há Câmaras compostas por três juízes, que devem contar com pelo menos

quanrenta anos de idade, além dos requisitos exigidos para o cargo de carreira, cuja

aposentadoria compulsória se dá aos sessenta e oito anos.

3 Constituição da Alemanha: “Art. 94. O Tribunal Constitucional Federal compor-se-á de juízes federais e outros

membros. Os membros do Tribunal Constitucional Federal serão eleitos pela metade dos integrantes do Parlamento Federal e do Conselho Federal respectivamente. Eles não poderão ser membros nem do Parlamento Federal, nem do Conselho Federal, nem do Governo Federal, nem de órgãos estaduais correspondentes.” BRASÍLIA. Consulado da Alemanha. Constituição da Alemanha Disponível em: <http://www.brasilia.diplo.de/Vertretung/brasilia/pt/03/Constituicao/ art__94.html>. Acesso em: 25 jul. 2008.

4 No Brasil, o período de permanência dos Ministros hoje é limitado pela aposentadoria compulsória, o que não ocorria anteriormente, como aconteceu com Hermínio do Espírito Santo que permaneceu 29 anos, 11 meses e 24 dias no STF, até completar 93 anos, tendo exercido a função de presidente do Tribunal entre 1911 e 1924 e Herculano D´Aquino e Castro que permaneceu na presidência do STF durante doze anos, entre 1894 a 1906. MELO FILHO, José Celso de. Notas sobre o Supremo Tribunal Federal. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2007, p.17.

39

Perante o Bundesverfassungsgerich , não é admitida a argüição de suspeição do juiz, nas

ações de controle concreto de normas, uma vez que se desconhecem partes neste processo.

Quanto ao Parlamento Federal, Conselho Federal, Governo Federal e Governos estaduais,

estes órgãos dispõem somente de direito de manifestação nos processos de controle abstrato

de normas, em que também não é admitida a argüição da suspeição do juiz.

A substituição do juiz do Senado é admitida, em caso de suspeição, se o afastamento

comprometer o quorum necessário para apreciar processo de urgência. Neste caso, o juiz

substituto será escolhido por sorteio. Esta medida é tomada com o fim de evitar que a

argüição de suspeição influencie a composição do Senado de maneira a modificar

propositadamente a decisão. O controle abstrato de normas pode ser instaurado mediante

requerimento do Governo Federal, de um Governo Estadual ou de um terço dos membros do

Parlamento Federal.

Somente a lei pós-constitucional pode ser submetida ao controle concreto e, neste tipo

de ação, todos os processos pendentes ficam suspensos, fazendo que a Corte detenha o poder

de censura. Ao Tribunal não se permite editar regras processuais, podendo, no entanto,

indeferir a liminar sem fundamentar, caso já tenha sido advertido ao requerente dos defeitos

da petição.

Neste tipo de ação, não há partes contrárias, uma vez que nem o Tribunal inferior, que

submeteu a questão à apreciação, nem as partes da relação originária integram o processo

perante o Bundesverfassungsgericht, podendo estas últimas apenas exercer o seu direito de

manifestação. 5

A intervenção no processo de controle concreto é possível aos órgãos (Parlamento,

Conselho, Governo Federal, e, eventualmente, a uma Assembléia Legislativa ou Governo

Estadual), e em se tratando de recurso, os órgãos que tiveram a sua ação ou omissão

questionada, podem intervir, recebendo o status de parte.

Na Suíça, atribui-se ao órgão supremo da Justiça ordinária um poder de decisão que é

suscetível de se estender além do caso concreto, e também de anular, com efeito, erga omnes,

a lei considerada inconstitucional, criando-se um sistema com características de difuso e

5 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998, p.15.

40

concentrado de controle. Da mesma forma se procede na Noruega, na Dinamarca e na

Suécia.6

3.1.2 Controle político da constitucionalidade de normas

A Constituição de 1958 da França é a que oferece o mais típico exemplo de um controle

político, não judicial, de constitucionalidade, em que não está previsto o controle difuso dos

juízes de controlar a constitucionalidade das leis em relação à Constituição.

A organização do Conseil Constitutionnel é disciplinada por uma ordonnance datada da

promulgação da Constituição, com algumas alterações. Determina que este Conseil seja

composto por ex-Presidentes da República e outros nove membros nomeados pelo Presidente,

três, pelo Presidente da Assemblée Nactionale, e três pelo Presidente do Sénat.

Em virtude da escolha e do status de seus membros, fica claro que a natureza do Conseil

é política e não jurisdicional. Além disso, essa natureza se manifesta pela competência que lhe

é outorgada bem como pela forma de operar.

Entre as várias funções que acumula, compete-lhe o controle preventivo de normas, que

se desenvolve a partir de um texto Legislativo ou de um tratado internacional elaborado, mas

ainda não promulgado que é enviado pelo Presidente da República, pelo Primeiro Ministro ou

pelo Presidente de uma ou de outra Câmara do Parlamento (Assemblée Nationale ou Sénat),

para o Conseil Constitucionnel, a fim de se obter um pronunciamento sobre sua conformidade

com a Constituição.

Este pronunciamento é sempre obrigatório para algumas leis chamadas de orgânicas,

cujo conteúdo se refere à organização dos poderes públicos. O Conseil tem prazo para decisão

de oito dias ou de um mês, dependendo da matéria, ficando suspensa a promulgação da lei

neste período.

A decisão deve ser tomada pela maioria dos votos, a qual se desenvolve em segredo,

não se admitindo audiências orais, nem mesmo contraditório acerca das matérias, embora na

prática seja admitida a utilização de memoriais escritos por órgãos interessados. Desta

6 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto

Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p.88.

41

maneira, se o pronunciamento for favorável à inconstitucionalidade, a lei não poderá ser

promulgada e só poderá entrar em vigor com eventual mudança na Constituição.

A Constituição italiana também oferece um controle político, mas diferentemente da

francesa, há previsão de controle judicial, confiado à Corte Constitucional. Há previsão de um

controle que pertence ao Governo Central em relação às leis regionais, bem como, o controle

pertencente ao Presidente da República, que tem o dever de promulgar as leis aprovadas pelo

Parlamento.

Entretanto pode o Presidente suspender a promulgação através de mensagem motivada,

solicitando à Câmara que se submetam o texto Legislativo a uma nova deliberação. Somente

após nova proposição, estaria o Presidente obrigado a promulgá-la. A doutrina interpreta de

forma restritiva esta disposição constitucional, considerando que é dever do Presidente

observar a Constituição, não podendo, a rigor, estar obrigado a promulgar matéria contrária à

Carta Magna.

Caso seja interpretado que o Presidente está obrigado a promulgar qualquer texto

enviado pela Câmara, poderá ocorrer um conflito de atribuição entre os poderes, no caso entre

o Presidente e o Parlamento. A decisão deste conflito é da competência da Corte

Constitucional, de modo que o controle político, a ser exercido pelo Presidente da República,

passa ao controle de um órgão de caráter jurisdicional.

Ao contrário do que ocorre na França, onde se enaltece a separação dos poderes, através

da exclusão do controle jurisdicional, afastando-se desta maneira a interferência de um Poder

Judiciário na esfera legislativa, na União Soviética, bem como em alguns países socialistas, a

idéia é exatamente o contrário, a de negar uma doutrina de separação de poderes, emanando

um único órgão supremo cujos componentes foram eleitos pelo povo.

Fica claro que, na Europa ocidental, a Constituição tende a exprimir normas de valor em

relação aos programas sociais e àsua concretização, situação diferente do que ocorre nos

países socialistas, cujas Constituições são concebidas através de superestruturas de relações

econômicas, através da descrição de uma “ordem econômico social de ação”. 7

Disto nasce também a possibilidade de que uma ordem econômico-social surja, mas só

se adapte formalmente à Constituição em momento posterior, quando, com o processo

7 Ibid., 1999, p.33.

42

especial de revisão por ela estabelecido, venha a ratificar de maneira solene essa

transformação já ocorrida.

A doutrina critica o sistema de controle de constitucionalidade político, alegando que a

experiência evidencia que tal controle se baseia muito mais em um juízo de conveniência do

que em respaldo técnico. Além disso, essa forma de controle é redundante e parcial, uma vez

que o Poder Legislativo controla a si mesmo, e, segundo Uadi Lammêgo Bulos, “só traria

benefícios se fosse adotado de forma mitigada, para ser exercido por um tribunal político-

jurídico, nos estados onde a opinião pública é forte, a imprensa é responsável e os

representantes do povo, sérios.”8

3.2 Sistema de controle de constitucionalidade nos Estados Unidos da América

A Constituição norte-americana deu início à época do “constitucionalismo”, com a

concepção da supremacia das normas constitucionais sobre as leis ordinárias, apresentando-se

como uma Constituição rígida, contraposta àquelas flexíveis, como ocorre com a Constituição

inglesa, que apesar de não ser escrita, tem caráter de flexível, assim como ocorreu na Itália

com a Constituição de 1958.

No controle difuso, típico sistema de controle norte-americano, todos os juízes

inferiores e superiores possuem a competência para declarar a inconstitucionalidade de uma

norma, ficando a última palavra reservada às Cortes Superiores e, no caso dos Estados

Unidos, a Supreme Court Federal.

A Corte americana, assim como a japonesa, criada parcialmente sob o modelo norte-

americano não tem a mesma estrutura do Verfassungsgerichtshof austríaco, nem do

Bundesverfassungtsgrericht alemão, ou mesmo da Corte italiana, visto que a Supreme Court é

um órgão pertencente ao Judiciário, ao contrário das demais Cortes européias citadas, que

possuem funções exclusivamente constitucionais e judicantes.

Um dos inconvenientes apontados à atribuição do controle concentrado, acima visto,

constitui-se o problema da formação de juízes de carreira que ingressam jovens na

magistratura. Só depois de demonstrar fundada habilidade no trabalho de interpretar as leis,

após anos na magistratura, chegam às funções ligadas à atividade das Cortes Supremas,

através de indicação.

8 BULOS, Uadi Lammêgo, op. cit., 2007, p.110.

43

Como já mencionado, o modelo de controle de constitucionalidade americano (assim

como no Canadá, no Japão, na Noruega, dentre outros) comporta o controle difuso. Qualquer

juiz de primeira instância pode declarar uma norma inconstitucional, dependendo do caso

submetido à sua análise, podendo, desta maneira, deixar de aplicar a norma legal ordinária, se

esta confronta a Constituição.

Essa interpretação surge na sentença do juiz John Marshall, em 1803, no conhecido caso

Marbury v. Madison, que, ao interpretar o art. VI cláusula 2ª da Constituição de 17879, firmou

o entendimento de que a Constituição é suprema, e, por conseguinte, seu texto

necessariamente há que ser rígido, impondo, além disso, o dever dos juízes de negar a

aplicação de leis contrárias à Constituição.

Entretanto há que se levar em consideração que, em 1801, quando William Marbury foi

impedido de tomar posse pelo novo Presidente republicano Thomas Jefferson, apesar da

nomeação para o cargo de juiz de paz do Distrito de Columbia pelo Partido Federalista do ex-

presidente John Adams, a problemática da época se tornou muito mais política do que

jurídica, uma vez que, enquanto a Corte Suprema era composta em sua maioria de

federalistas, o Congresso e o Executivo eram controlados pelos republicanos, que nunca

admitiram qualquer interferência direta do Judiciário nas deliberações do Executivo.

A rigidez da Constituição tem, como conseqüência, a elaboração de mecanismos

especiais que determinem a modificação do texto constitucional. Além disso, também obriga

a todos os magistrados, segundo o seu poder-dever, de não aplicar normas infraconstitucionais

que contrastarem com o texto da Carta Magna.

Como, neste modelo difuso, todos os órgãos Judiciários de qualquer instância, possuem

o poder de emitir pronunciamentos acerca da inconstitucionalidade das normas legais

incidentalmente, nos casos submetidos a julgamento, e os efeitos destas declarações ficam

restritos a cada caso, prevalece o direito judicial em face do direito legislativo. A

possibilidade de decisões judiciais divergentes é um dos inconvenientes na adoção do modelo

americano, e, segundo Mauro Cappelletti:

9 “Artigo VI - 2. Esta Constituição e as leis complementares e todos os tratados já celebrados ou por celebrar sob a

autoridade dos Estados Unidos constituirão a lei suprema do país; os juízes de todos os Estados serão sujeitos a ela, ficando sem efeito qualquer disposição em contrário na Constituição ou nas leis de qualquer dos Estados”. PHILIPIS, J Henri. BRAZILIAN TRALATED. Constituição dos Estados Unidos da América. Disponível em:<http://www.braziliantranslated.com/euacon01.html>. Acesso em: 03 jan. 2008.

44

Ulteriores inconvenientes do método ‘difuso’ de controle, porque concretizado em ordenamentos jurídicos que não acolhem o princípio do stare decisis, são os que derivam da necessidade de que, mesmo depois de uma primeira não aplicação ou de mais de uma série de não aplicações de uma determinada lei por parte das Cortes, qualquer sujeito interessado na não aplicação da mesma lei proponha, por sua vez, um novo caso em juízo.10

Para explicar o inconveniente apontado, o autor menciona que dois sujeitos, com o

mesmo direito, só poderiam deixar de cumprir a norma considerada inconstitucional, se

ambos ingressassem com ações judiciais, e ambas tivessem o mesmo juiz para análise, o que

retira a conveniência prática do meio de aplicação difuso do controle, gerando sérias

conseqüências de conflito e incerteza.

A tentativa de evitar esse inconveniente de decisões contraditórias nos Estados Unidos

foi evidenciada em virtude da vinculação das decisões judiciais dos órgãos superiores,

especificamente da Corte Constitucional. É importante ressaltar que, apesar do poder dado

pelo controle difuso a todos os juízes de primeira instância, caberá à própria Suprema Corte

dar a última palavra, cuja decisão tem efeito vinculante aos órgãos inferiores, não afastando,

portanto, a possibilidade de modificação do entendimento adotado pela própria Corte.

É o que ocorre no stare decisis, cujo princípio obriga os juízes de instâncias inferiores a

seguirem as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores, mas a aplicação deste princípio

no sistema norte-americano só se opera no controle difuso, não se realizando a fiscalização

abstrata, e por essa razão: “Para Hans Kelsen essa seria uma das deficiências do modelo

incidental dos americanos, que limita, em muito, o combate ao cancro da

inconstitucionalidade , deixando à míngua as situações inconstitucionais abstratas”.11

O tipo de controle de constitucionalidade americano gera críticas sobre a possibilidade

de criação de uma “judiciocracia” ou um “Governo de juízes”, uma vez que a Suprema Corte

atua como uma terceira câmara legislativa.

Além disso, esse tipo de controle é responsabilizado por desviar o Poder Judiciário de

sua função típica, convertendo-o em órgão de natureza política, colocando em risco o

princípio da separação dos poderes, quando autoriza a prática de atos vedados por essência ao

Judiciário. Por fim, justifica a ineficiência do tipo de controle em virtude das características

10 CAPPELLETTI, Mauro, op. cit., 1999, p.78. 11 BULOS, Uadi Lammêgo, op. cit., 2007, p.113.

45

dos magistrados, quais sejam, as de serem “legalistas, insensíveis e tecnicistas”12, o que se

contrapõe aos avanços das reformas sociais.

3.3 Sistema de controle de constitucionalidade brasileiro

Só há sentido em falar de controle de constitucionalidade através do conceito de

supremacia da Constituição, que pressupõe rigidez das normas, no sentido de exigência de

procedimentos especiais para que ocorra modificação. Além disso, a supremacia

constitucional reclama também a existência de mecanismos de defesa e de integração do

sistema.

Em 1965, o legislador brasileiro introduziu na Constituição de 1946, através da Emenda

Constitucional nº 1613, ao lado do controle incidental, o controle abstrato de normas perante o

STF, cuja propositura era de competência exclusiva do Procurador Geral da República. No

regime da Constituição de 1967, foram mantidos, com poucas alterações na redação, os

dispositivos alterados da Constituição anterior, referentes ao controle de constitucionalidade.

A Constituição Federal de 1988, além de romper com o monopólio da competência,

também criou controles de constitucionalidade de atos normativos, tendo como objetivo

instituir barreiras à introdução de normas inconstitucionais, bem como reconhecer se alguma

norma possa estar incompatível com o sistema, para ser retirada do ordenamento.

A inconstitucionalidade de uma norma se traduz em um problema no conteúdo da

norma ou em sua forma, que se apresentam em contraposição com o sistema de normas

constitucionais. “Trata-se, pois, da relação de incompatibilidade entre o conteúdo da norma e

as disposições da Constituição, ou a inadequação do processo de elaboração daquela com as

prescrições constitucionais.”14

12 BULOS, Uadi Lammêgo, op. cit., 2007, p.110. 13 Em 1965 a Emenda Constitucional 16 surgiu quando os militares no poder alteravam a ordem mediatamente, e

realizavam, a introdução do controle de constitucionalidade concentrado no ordenamento constitucional brasileiro, através da modificação do art. 101, I, k da Constituição Federal de 1946: Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete: “I - processar e julgar originariamente: [...] k) a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República. Art. 124 (sobre a Justiça estadual). [...] XIII - a lei poderá estabelecer processo, de competência originária do Tribunal de Justiça, para declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato do Município, em conflito com a Constituição do Estado”.

14 SÁ, José Adonis Callou de Araújo. Ação civil pública e controle de constitucionalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.51.

46

Assim, o Brasil adota os controles preventivo e repressivo, em que o primeiro ocorre

antes ou durante o processo Legislativo, elaborado pelas comissões existentes no Congresso

Nacional, que se delibera a possibilidade de se votar um projeto de lei; e o segundo, é

exercido junto ao Poder Judiciário.

O controle repressivo é o único que pode consistir na argüição de inconstitucionalidade

de uma lei ou ato normativo no âmbito de um processo judicial comum, sendo chamado de

controle por meio difuso, indireto, de exceção ou de defesa.

É o meio pelo qual a Constituição de 1988 alberga a única forma disponível diretamente

ao cidadão de ingressar contra o poder público, a fim de obter revisão de matéria considerada

em desconformidade com o sistema constitucional, tendo no Poder Judiciário a via legítima

para confrontar a obrigatoriedade de cumprimento de um dever, e sua ilegitimidade perante

um sistema de normas constitucionalmente previstas.

A possibilidade de decisões contraditórias é tema usual de preocupação na doutrina e na

jurisprudência, minimizada em virtude do recurso extraordinário, que possibilita a todas as

questões serem apreciadas pelo STF, a fim de unificar a interpretação em matéria

constitucional.

No controle por meio concentrado, também denominado por via direta ou de ação, a

soberania popular só é efetivada ao ato em tese, operando-se por ações constitucionais

específicas e representação constitucional restrita.

Um direito posto é legítimo quando permite o pleno desenvolvimento das forças

materiais produtivas em determinada sociedade. Daí a necessidade da captação dos padrões

histórico-culturais pelo legislador, que deve ser capaz de reconhecer as aspirações sociais e o

interesse social de uma sociedade, pois são essas aspirações e esse interesse que legitimam o

direito. 15

Assim, o estudo sobre o controle de constitucionalidade do presente trabalho há que ser

elaborado mediante o confronto entre as possibilidades que o sistema constitucional concede à

sociedade de interpretar um ato normativo em face da realidade que se apresenta quando estas

circunstâncias ocorrem, não se podendo excluir nenhuma esfera da Federação, como ocorre

com o Município ante os reclames constitucionais.

15 GRAU, Eros Roberto, op. cit., 2005, p.88.

47

3.4 Súmula vinculante e a reforma do Judiciário

Dentre as inúmeras causas que contribuíram expressivamente para a situação caótica

dos Tribunais Superiores emergem algumas, como a constitucionalização de inúmeros temas

novos. Propiciou ela, a um só tempo, o ingresso no STF em infindáveis assuntos e a

multiplicação de demandas idênticas no pedido e no fundamento, a visível e profunda queda

da qualidade da legislação federal, tanto pela deficiência do processo Legislativo quanto pelo

uso desmedido de medidas provisórias, contido, mas não eliminado, pela Emenda

Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, além da construção jurisprudencial em torno

da admissão dos recursos extraordinário e especial.

Há que se considerar ainda que o sistema Judiciário se torna cada dia mais complexo e

obsoleto, onde inexiste uma Corte Constitucional em condições de atender com eficiência ao

que lhe foi outorgado pela Constituição Federal. Isso ocorre nos países em que essa instituição

existe. Há excessiva morosidade no trâmite de processos, agravada pela deficiência

ocasionada pelo número reduzido de profissionais em face da necessidade imposta pelo

excesso no número de processos, o que gera descumprimento de prazos, além da falta de

assiduidade e desinteresse de alguns dos titulares nas respectivas comarcas.

Além disso, há deficiência no comando do próprio Judiciário, em que subsiste a

necessidade de um sistema nacional de controle que superasse o corporativismo sem expor o

Poder Judiciário à politização, e o evidente número insuficiente de juízes e servidores. Para o

advogado Sydney Sanches, que presidiu o STF entre os anos de 1991 e 1993, a estrutura do

Judiciário é insuficiente para as necessidades do país, uma vez que:

A população cresceu muito, e a estrutura do Judiciário não acompanhou a necessidade da população. Além disso, a legislação brasileira, em matéria penal, é muito tolerante, é muito permissiva, a ponto de só permitir a execução da condenação depois de transitado em julgado [quando não cabe mais recurso]. Isso é que causa má impressão à opinião pública, porque desconhece essas particularidades. Quem faz a lei não é o Judiciário é o Congresso. No entanto, quem paga por isso, é o Judiciário. 16

A deficiência do Judiciário tem-se refletido também em virtude da deterioração da

formação acadêmica do bacharel, motivado muitas vezes apenas pelo interesse de aprovação

em concursos públicos com bons salários, o que tem gerado enorme procura pelos cursos e a

proliferação de inúmeras faculdades de Direito sem o nível científico adequado, produzindo

16 SANCHES, Sydney. Estrutura do judiciário. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/ultnot/2008/07/17/ult23u2547.jhtm>. Acesso em: 17 jul.

2008.

48

currículos deficientes, levando como conseqüência, a carência na formação específica dos

profissionais na área pública. O fato vem sendo evidenciado cada vez mais através dos

resultados em concursos públicos necessários ao ingresso na carreira de advogados,

encerrados sem o preenchimento das vagas oferecidas17. Para o ministro João Otávio de

Noronha, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), “algumas faculdades estão deixando a

desejar em seu programa”, apesar de considerar que:

A prova da OAB não é um concurso para juiz, promotor público ou para o exercício de qualquer função da carreira do Estado. Acredito que a prova deve se limitar a exigir o mínimo de conhecimento ao novo profissional, pois a advocacia não é só conhecimento. O advogado não sai pronto da faculdade. A advocacia é também experiência de vida e jurídica. É o conjunto -conhecimento e experiência -que vai formar o ótimo advogado, pois o mercado é extremamente seletivo e só prestigia os melhores. 18

Segundo o magistrado, “talvez o Direito, de modo geral, ofereça o maior número de

oportunidades em concurso público. Mas isso não significa que a carreira ofereça mais

vantagens do que outras. As chances surgem para os melhores profissionais, e é o mercado

que faz essa seleção”. Muitos dos alunos das faculdades de Direito estão mais preocupados

em obter êxito nas provas do semestre do que em aprender a matéria ministrada pelos

professores, a fim de se tornar em bons profissionais que possam garantir o exercício da

cidadania e da efetivação da justiça a seus clientes.

Em conseqüência do conjunto de fatos acima relacionados, da falta de estrutura

institucional, do excesso de legislação, e da má formação acadêmica, os bons profissionais

que compõem o Poder Judiciário acabam por não poder realizar o trabalho eficiente a que se

propõem. Parece, principalmente ao homem comum, que o sistema Judiciário brasileiro não

proporciona uma fundamental segurança, visto que envelheceu e se tornou lento, caro,

ineficiente e incapaz de responder aos anseios dos indivíduos que, em número crescente,

despertam para a vida cívica.

Como já se mencionou no capítulo 2, a promulgação da Emenda Constitucional nº 45,

de 30 de dezembro de 2004, introduziu diversas modificações no ordenamento brasileiro,

17 Apenas 313 dos 1.472 bacharéis em Direito que se inscreveram no primeiro exame do ano aplicado pela

Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Espírito Santo conseguiram aprovação – o equivalente a um percentual de 21% em aprovação. Entre os candidatos que prestaram a primeira etapa do exame (prova objetiva), 1.098 foram reprovados e ficaram de fora da segunda etapa (prova prático-profissional). ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=10316>. Acesso em: 15 jul. 2008.

18 REPROVAÇÃO nas provas da OAB preocupa ministro João Otávio de Noronha. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/noticias/12520/reprovacao_nas_provas_da_oab_preocupa_ministro_joao_otavio_de_noronha>. Acesso em: 14 ago. 2008.

49

iniciando uma reforma no Poder Judiciário, cuja adoção se revelava urgente, determinando,

dentre outras matérias, o efeito vinculante de decisões sumuladas, proferidas pela maioria

absoluta do STF, decorrentes de ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de

constitucionalidade.

A medida teve, como finalidade precípua, agilizar o andamento dos processos perante o

Judiciário, além de tentar manter a segurança jurídica na uniformização de decisões, problema

esse que pode ser gerado pelo controle difuso de constitucionalidade.

Embora pareça, sob olhar mais desatento, que a súmula vinculante reponte como melhor

técnica a ser adotada para o fim de descongestionar o Poder Judiciário, tais decisões

sumuladas deveriam permanecer como fontes de pesquisa, não devendo constar como

obrigatoriedade de aplicação aos processos judiciais ou administrativos em trâmite. O que se

tem de levar em conta, ao se determinar que as decisões dos tribunais superiores possuam

efeito vinculante, é o fato de não transformar o juiz de primeira instância em mero repetidor

de decisões prolatadas pelos Tribunais Superiores.

Além do cuidado que se deve ter em relação à limitação de interpretação do juiz de

primeira instância, verifica-se que a Emenda Constitucional nº 45/2004 mantém a exclusão da

legitimidade do poder municipal em questionar a aprovação, revisão ou cancelamento de

súmula vinculante, uma vez que o art. 103-A, § 2º, da Constituição Federal, determina que tal

procedimento só pode ser provocado pelos legitimados a propor a ação direta de

inconstitucionalidade.

Em virtude do afastamento de legitimidade do Município em questionar a aprovação,

revisão ou cancelamento de súmula vinculante, dentre outros direitos não outorgados pela

Constituição a este ente da Federação19, existem motivos que levam a doutrina20 a considerar

que a Federação brasileira não mudou nada, ao incluir os Municípios como um de seus entes.

19 No item 4.3 deste trabalho, será apresentada a análise do Controle de constitucionalidade de lei municipal frente

à Constituição Federal, uma vez que, pelo art. 102, I, “a” da CF/88, não há competência do STF para ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal ante a CF, mas apenas aos atos normativos das esferas federal ou estadual.

20 SILVA, José Afonso da, op. cit., 2003, p.473.

50

3.4.1 Paralela interdição à interpretação do juiz

Há duas opções que se apresentam aos juízes diante dos conflitos sociais de massa. O

primeiro deles é a de que os magistrados poderiam simplesmente recusar-se a entrar nos

conflitos não previstos na Constituição Federal, excluindo do Judiciário certos

posicionamentos, ou optar pelas novas e preementes aspirações que os tornam protetores do

direito, e mantenedores do equilíbrio do sistema de normas.

Ao analisar a composição administrativa do Poder Judiciário, José de Albuquerque

Rocha21 concluiu pela existência de um sistema burocrático, capaz de criar uma consciência

falsa sobre o juiz de primeira instância “inclusive de seus erros e omissões, já que seriam

revogáveis pelas decisões dos tribunais superiores, que lhe sanariam esses erros e omissões”,

o que acarreta o desprestígio da justiça de primeiro grau.

Graças a processos coletivos, o Judiciário, saindo de uma posição freqüentemente

distante e remota, tornou-se protagonista das grandes controversas nacionais.

A efetivação das normas constitucionais é uma das preocupações mais notáveis que se

possa ter no constitucionalismo moderno. Nesse diapasão, não se pode ver a Constituição

como uma “mera folha de papel”, conforme expressão de Lassale 22. Deve ordenar e

conformar a realidade política e social, convertendo-se em força ativa que seja capaz de

promover a transformação da realidade.

É nesse sentido que a Constituição e o papel do Judiciário em relação a ela tem que

servir como força ativa transformadora, em que as decisões e interpretações devem fundar-se

nos valores consagrados no texto como superiores, elegendo a razoabilidade e respeito à

dignidade humana como núcleos, em que a orientação para as normas inferiores tenha

rigoroso controle de constitucionalidade, e que este controle não seja efetuado pelo STF de

forma política.

Somente através da interpretação proferida pela Corte nestes moldes, é que se pode

pensar em transformar a interpretação das normas constitucionais em atos jurisdicionais com

força normativa. Como a EC nº 45/2004 permitiu que uma decisão do Supremo Tribunal

21 ROCHA, José Albuquerque, op. cit., 1995, p.46. 22 LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. Trad. Aurélio Wander Bastos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,

1998, p.37.

51

Federal obrigatoriamente tenha de ser obedecida tanto pelas instâncias inferiores do Judiciário

quanto no âmbito da administração pública direta e indireta, em virtude da aplicação do efeito

vinculante, fica autorizada a aplicação de uma norma jurisdicional, com os mesmos moldes

da aplicação de uma lei promulgada pelo Legislativo. Para manter o equilíbrio entre os

poderes, e, principalmente, o respeito ao sistema democrático, tal interpretação deverá ocorrer

de forma cuidadosa, a fim de que o STF não se torne um poder essencialmente político,

fugindo dos moldes essenciais a que foi criado.23

Dessa forma, sem o devido cuidado ao interpretar as normas constitucionais, no que seja

pertinente ao efeito vinculante das decisões do Supremo e dos Tribunais Superiores,

implicará24 verdadeira estrutura de dominação essa atual forma de acesso aos Tribunais,

devendo ser afastada qualquer possibilidade de restrição de acesso ao Judiciário (como as

restrições impostas pela CF ao Município), no que tange à proteção do princípio sensível do

Estado Democrático de Direito, podendo configurar-se uma verdadeira criação de uma

“judiciocracia” ou um “Governo de juízes”, realidade criticada dentro do tipo de controle de

constitucionalidade americano.

23 No item 1.2.2 deste trabalho, mencionou-se que a justificativa de legitimar o Imperador naquela época estava na

necessidade de manter a existência de um poder neutro, encontrado acima dos três poderes ativos exercidos por homens comuns e essa necessidade de se manter a neutralidade no exercício das funções deveria ser evidenciada no Judiciário, na medida em que a atribuição do Supremo Tribunal Federal se fundamentou em moldes que justificaram o poder moderador.

24 LIMA, Francisco Gérson Marques de. O Supremo Tribunal Federal na crise institucional brasileira. Fortaleza: ABC, 2001, p.102.

4 ATO NORMATIVO MUNICIPAL

Até 1822, o Município funcionava como ponta-de-lança para penetração do território da

colônia brasileira, servindo como afirmação da Coroa portuguesa. No vasto território da

colônia com baixa densidade demográfica, encontravam-se fazendas de produção

agropecuária e plantações de cana-de-açúcar e de café, que se constituíam em centros de vida

diária de um povo simples que se fixava nestes lugares1.

Portugal e Espanha foram os países mais fiéis às concepções municipalistas de Roma, e,

por conseguinte, o Brasil seguiu a mesma influência, implantando, desde o início de sua

colonização, os “Conselhos” que logo se transformaram nas Câmaras Municipais. Com o

desembarque de Pedro Álvares Cabral no Brasil, passaram a vigorar nestas terras as

Ordenações do Reino de Portugal, através das quais “moldou-se a organização do Município

colonial.”2

Nesse contexto, o Município representava uma congregação de pequenas sociedades,

com um centro comercial, a Câmara, que era a sede do Governo municipal. Assim, ao

contrário do que ocorreu na Europa, a base do Município brasileiro não foi a cidade, mas a

propriedade rural, surgindo o sistema social das fazendas caracterizado por estruturas feudais

autoritárias bem diferentes da vida política e social dos Municípios europeus. A importância

dos centros de poder municipal foi reconhecida pelo Imperador D. Pedro I, que concedeu às

Câmaras Municipais o poder de aprovar o texto da Carta Magna de 1824, com o intuito de

dar-lhe maior legitimidade política.

Na prática, os Governos locais dessa época exerciam funções precípuas dos entes

estatais superiores das capitanias hereditárias, e a Constituição de 1824 manteve, em

princípio, a organização municipal que se tinha formado durante os séculos em que o país era

colônia de Portugal.

1 BRASILEIRO, Ana Maria. O município como sistema político. Rio de Janeiro: GB, 1973, p.04. 2 VILLA, Machado. O município no regime constitucional vigente. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1952, p. 12.

53

A dimensão do território e as dificuldades de transporte e de comunicação da época

resultaram em concentração de poder político nos Governos municipais e, ao final do século

XIX, foi introduzido um sistema federativo de cima para baixo, visando melhorar a

organização administrativa do território.

O texto da Constituição de 1891 também reconheceu a autonomia do Município

brasileiro, entretanto, por causa da falta de definição sobre a autonomia local, os Governos

dos estados optaram por ver o Município como um elemento da própria autonomia estadual.

Até os anos 30 do século XX, o municipalismo brasileiro representava uma briga pelo

poder entre as oligarquias do centro e das diferentes regiões do país. Na elaboração da

Constituição de 1934, faltava efetivação prática da autonomia municipal por parte dos

Estados, e ocorriam divergências sobre as medidas jurídicas que se faziam necessárias para

fomentar a independência das entidades locais.3

Iniciam-se a oposição referente à competência dos Estados em editar as Leis Orgânicas

Municipais e a delimitação do âmbito das funções e liberdades dos Municípios, sendo nessa

época quando o poder de definição começou a ser atribuído exclusivamente à Constituição

Federal ou a leis complementares.

A Assembléia Constituinte inslada em 01 de fevereiro de 1946 tratou da

redemocratização do país, repudiando o Estado totalitário que vigia desde 1930, cujo texto

promulgado em 18/09/1946 tratava de idéias liberais da Constituição de 1981 e das idéias

sociais da Carta Magna de 1934, cuja forma de governo manteve o regime representativo a

Federação e República, prestigiando o municipalismo.

Na Constituição Federal de 1967, havia um artigo que continha uma última alternativa

de qualificar os Municípios como meras subdivisões dos Estados Federados, mas esta

proposta foi rejeitada até pelos representantes dos regimes autoritários, por contrariar o

desenvolvimento constitucional, característico da autonomia municipal no Brasil.

A Emenda Constitucional nº 1/69, contemplou a representação interventiva da lei

municipal, que deve observar os princípios elencados nas Cartas Estaduais, bem como na

execução de lei, ordem ou decisão judicial. No entanto não se encontrava na Constituição

3 ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. Controle de constitucionalidade das leis municipais. São Paulo: Atlas,

2002.

54

Federal de 1969 nenhum dispositivo que permita, ao Estado-membro, a fiscalização abstrata

de leis ou atos normativos estaduais e municipais para a defesa de suas respectivas

Constituições.

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, pela primeira vez, elevou oficialmente o

Município a ente da União, entretanto alega-se que a Carta Magna estabeleceu um grande

ônus econômico com novas tarefas para os Municípios sem garantir-lhe as respectivas

receitas.

Para José Afonso da Silva, a Federação não é feita pela reunião de Municípios e que,

sendo sua intervenção uma competência estatal, restaria comprovada serem estes uma divisão

político-administrativa dos Estados e não, da União. 4

4.1 Controle da constitucionalidade de lei municipal

O controle de constitucionalidade difuso vem sendo exercido tanto pelos órgãos

Judiciários federais quanto estaduais, já que a Constituição, em seu art. 125, § 2º, autorizou

expressamente os Estados-membros a estabelecer a representação de inconstitucionalidade de

leis e atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual.

A Emenda Constitucional nº 3/93 criou a ação declaratória de constitucionalidade, que

segundo a doutrina, não é passível de aplicação ao campo da jurisdição municipal, em virtude

da falta de previsão constitucional.

Para muitos, parece ter-se estabelecido uma hierarquia normativa entre a Constituição

do Estado e a lei municipal, o que não se pode admitir em relação àquelas matérias de

competência exclusiva do Município, já que cada ente tem seu campo de atuação próprio.

4.1.1 Controle de constitucionalidade de lei municipal ante a Constituição Estadual

Quando a questão da divergência entre lei municipal e a Constituição Estadual for

resolvida pelo controle difuso, a revisão das decisões será da competência do Tribunal de

Justiça.

4 SILVA, José Afonso da, op. cit., 2003, p.473.

55

Apesar da Súmula 280 do STF entender que não se admite recurso extraordinário contra

decisão que julgue válida lei ou ato municipal contestado diante a Constituição Estadual, a

jurisprudência decidiu5 sobre essa possibilidade quanto às normas de reprodução obrigatória.

Se na questão tratar-se de lei em tese, o art. 125, § 2o, da CF/88 também condiciona aos

Tribunais de Justiça declarar a inconstitucionalidade pelo controle concentrado, de referida lei

estadual ou municipal em face da Constituição Estadual. “Art. 125 [...] § 2º Cabe aos Estados

a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou

municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição de legitimação para agir a

um único órgão”.

A competência concedida aos Tribunais de Justiça de efetuarem controles de

constitucionalidade difuso e concentrado das leis municipais ante a Constituição Estadual

representa o modo mais característico de assegurar a autonomia do Estado6, à proporção que

confere ao constituinte estadual a competência para criar mecanismos de defesa da Legislação

por ele emanada.

A partir do momento em que a Constituição Federal conferiu aos Estados-membros a

competência para criar os mecanismos de controle e fiscalização de suas Constituições

Estaduais, não se pode deixar de incluir a possibilidade de interposição do controle de

constitucionalidade por omissão, desde que sejam respeitados os quesitos estabelecidos no

plano federal7.

4.1.2 Normas estaduais reproduzidas de normas da Constituição Federal

Cumpre observar que as normas da Constituição Estadual podem refletir uma repetição

de dispositivos constitucionais federais decorrentes da imposição de preceitos obrigatórios ou

facultativos. Normas da Carta Magna que não sejam de repetição compulsória são também

conhecidas como “norma de imitação”, e traduzem a adesão voluntária do constituinte

estadual a determinada disposição constitucional.

5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Decisão proferida pelo Tribunal Pleno do STF, na Reclamação n. 2076,

tendo como Relator, o Ministro Ilmar Galvão, Julgamento: 03/10/2002 Publicação em 08-11-2002, Diário de Justiça, v. 02090-03, p.00433. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 16 jul. 2006.

6 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Controle de constitucionalidade das leis municipais. São Paulo: Saraiva, 1994, p.73-74.

7 ROCHA, Fernando Luiz Ximenes, op. cit., 2002, p.82.

56

4.1.2.1 Normas de reprodução obrigatória

A questão que se coloca abrange a possibilidade de confronto entre a legislação

municipal e preceitos da Constituição Estadual, que são obrigatoriamente reproduzidos em

face ao que dispõe a Constituição Federal.

Neste caso, é de competência do Tribunal de Justiça do Estado, a decisão sobre a

declaração de constitucionalidade de lei municipal, sendo pacificado o entendimento de que

não existe usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal, de acordo com decisão

proferida pelo Tribunal Pleno do STF, na Reclamação nº 2076, tendo como Relator, o

Ministro Ilmar Gavão:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI MUNICIPAL, PROCESSADA PERANTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CONTRARIEDADE A DISPOSITIVO DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL QUE REPRODUZ NORMA CONSTITUCIONAL FEDERAL. ALEGADA USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Desde o julgamento da RCL 383, Rel. Min. Moreira Alves, entende o STF inexistir usurpação de sua competência quando os Tribunais de Justiça analisam, em controle concentrado, a constitucionalidade de leis municipais ante normas constitucionais estaduais que reproduzam regras da Carta da República de observância obrigatória. Reclamação julgada improcedente. Publicação: DJ 08-11-2002, pp. 004338

Entretanto, apesar da competência concedida aos Tribunais de Justiça de efetuarem

controles de constitucionalidade difuso e concentrado, das leis municipais em face da

Constituição Estadual, se o conflito ocorrer com normas de reprodução obrigatória, a

competência da decisão final será do STF, em virtude da possibilidade de interposição do

Recurso Extraordinário, conforme decisão proferida pela Segunda Turma do STF no RE -

AGr 3533509, tendo como relator o Ministro Carlos Velloso:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA. LEI MUNICIPAL. CONTROLE CONCENTRADO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA ESTADUAL. C.F., art. 125, § 2º. SERVIDOR PÚBLICO: PROCESSO LEGISLATIVO. C.F., art. 61, § 1º, II, c. I. - Tratando-se de ação direta de inconstitucionalidade da competência do Tribunal de Justiça local - lei estadual ou municipal em face da Constituição estadual - somente a questão de interpretação de norma central da Constituição Federal, de reprodução obrigatória na Constituição estadual, é que autoriza a admissão do recurso extraordinário. (Grifou-se).

Ressalte-se que essa competência da decisão final não será do Supremo

Tribunal Federal, nem mesmo em virtude da possibilidade de interposição do Recurso

8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Diário de Justiça. 21-05-2004. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso

em: 16 jul. 2006. 9 Ibid., 2006.

57

Extraordinário, em caso de incompatibilidade de normas entre a Constituição Estadual e a ato

normativo municipal, ainda que seja norma reproduzida da Carta Magna, conforme será

tratado adiante.

4.1.2.2 Normas de reprodução facultativa

No confronto entre ato municipal e norma estadual de reprodução facultativa, o embate

resolve-se em caráter definitivo no Tribunal de Justiça, quer pelo meio difuso, quer pelo meio

concentrado, não se admitindo recurso extraordinário.

Neste caso, a doutrina alega que o inconveniente está na possibilidade de decisões

estaduais cuja interpretação comporte excessiva variedade entre os estados da Federação.

Há que se considerar, ainda, a possibilidade de confronto entre ato municipal e a CF

sem ofensa à Constituição Estadual, no qual o processo de controle difuso, pela via de

exceção, se resolve em última instância no STF, através do Recurso Extraordinário.

4.2 Controle de constitucionalidade de lei municipal ante a Constituição Federal

No controle de constitucionalidade por meio difuso quando houver divergência entre lei

municipal e a Constituição Federal, as decisões dos tribunais inferiores poderão ser revistas

pelo Supremo Tribunal Federal, através de recurso extraordinário, de acordo com o art. 102,

inciso III, alínea “c” da CF.

Não se encontra a mesma facilidade em resolver a questão, quando o controle de

constitucionalidade de lei municipal diante da Carta Magna é feito através do controle

concentrado, já que o art. 102, I, “a” da CF/88, não esclarece a competência do STF, se

referindo apenas aos atos normativos das esferas federal ou estadual.

Art. 102 [...] I. Processar e julgar, originariamente: a) A ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; (grifou-se).

Para Regina Nery Ferrari, a argüição de inconstitucionalidade de atos normativos

municipais em face de Constituição Federal só é admissível no controle difuso, pela via de

defesa ou exceção, de competência dos Estados, por causa da omissão da lei quanto ao

58

controle concentrado. A autora considera uma falha no silêncio do constituinte federal no que

se refere à limitação desta competência. 10

A doutrina levantou a possibilidade de interpretar extensivamente a Carta Magna,

considerando que na palavra estadual, mencionada no referido artigo, estariam abrangidos os

atos municipais, o que não é plausível, levando-se em conta a interpretação sistemática dos

preceitos constitucionais que reconhecem a condição do Município como pessoa jurídica de

direito público interno.

Em virtude do silêncio do texto constitucional, o controle de leis e dos atos normativos

municipais que contrariem a Constituição Federal só poderia, desta forma, ocorrer de maneira

difusa, pela via de exceção. No Recurso Extradordinário interposto perante o Pleno do STF,

tendo como relator o Ministro Marco Aurélio, decidiu-se que:

b) COMPETÊNCIA - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI MUNICIPAL CONTESTADA EM FACE DA CARTA DO ESTADO, NO QUE REPETE PRECEITO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. O § 2º do artigo 125 do Diploma Maior não contempla exceção. A competência para julgar a ação direta de inconstitucionalidade é definida pela causa de pedir lançada na inicial. Em relação ao conflito da norma atacada com a Lei Máxima do Estado, impõe-se concluir pela competência do Tribunal de Justiça, pouco importando que o preceito questionado mostre-se como mera repetição de dispositivo, de adoção obrigatória, inserto na Carta da República.11

Como já mencionado, segundo decisão do Tribunal Pleno do STF, é de competência do

Tribunal de Justiça o controle da constitucionalidade pela via concentrada, com possibilidade

de interposição de recurso extraordinário, somente nos casos de norma de reprodução

obrigatória cuja interpretação contrariar o sentido e o alcance de dispositivo da Carta Federal,

à míngua de um comando constitucional que determine a competência da Corte Suprema.12

Em virtude da dificuldade imposta pela falta de legislação, surge a Argüição de

Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF, prevista no artigo 102, § 1o, da

Constituição Federal, que se constitui uma nova atribuição do Supremo Tribunal Federal, cuja

decisão tem efeito vinculante, e veio a ser regulamentada pela Lei nº 9.882, de 3 de dezembro

10 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery, op. cit., 1994, p.74. 11 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento em 19/05/2004 Diário de Justiça. 06-08-2004 PP-00021-

EMENT VOL-02158-03 PP-00563. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 16 jul. 2006. 12 De acordo com a decisão proferida SL-AgR 10/SP, no Agravo Regimental interposto na Suspenção Liminar

proposta perante o STF, tendo como Relator o Ministro Maurício Corrêa, o controle concentrado de constitucionalidade de lei estadual ou municipal que reproduz norma da Constituição Federal de observância obrigatória pelos entes da Federação é de competência do Tribunal de Justiça, com possibilidade de interposição de recurso extraordinário se a interpretação conferida à legislação contrariar o sentido e o alcance de dispositivo da Carta Federal.

59

de 1999, considerada como a ação própria para resolver questões como a que aqui se

apresenta.

Sob a necessidade de procurar um mecanismo que mantenha a segurança jurídica e a

uniformidade das decisões judiciais, parte da doutrina considera que cabe à ADPF, quando for

relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre a lei ou ato normativo federal,

estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição, destinando-se também o

instituto, no silêncio do art. 102, I, “a” da Carta Magna, ao controle da constitucionalidade em

tese da lei municipal.

5 ATO NORMATIVO MUNICIPAL E ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF, prevista no artigo

102, § 1o, da Constituição Federal, constitui atribuição do Supremo Tribunal Federal, cuja

decisão tem efeito vinculante e erga omnes. Veio a ser regulamentada pela Lei nº 9.882, de 3

de dezembro de 1999, sendo considerada a ação própria para resolver as questões relevantes

de ordem constitucional.

A sua utilização torna possível suspender liminarmente o andamento dos processos

judiciais ou administrativos em curso, ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra

medida que apresente relação com a matéria objeto da ADPF, salvo se decorrentes de coisa

julgada, por decisão da maioria absoluta dos membros do STF1, uma vez que devem acatar a

sentença geral e vinculante da Corte Suprema proferida no fim do processo.

Entretanto importa ressaltar que tal pensamento não é unânime, e parte da doutrina2 não

concebe que o legislador comum, a pretexto de regulamentar norma da CF/88, amplie o

significado de preceito fundamental, para albergar as controvérsias entre leis e preceptivos

constitucionais, considerando como inconstitucional o dispositivo que amplia a competência

do STF.

Quanto à utilização da ADPF nas Constituições estaduais, a Carta Magna não previu

essa possibilidade, mas, pelo Parecer nº 1.748 e pela PEC nº 29, de 2000, constante na

Emenda nº 240, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, o Senado previu a

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamento pelo Tribunal de Justiça. Além disso,

pelo princípio da simetria federativa, há autores3 que consideram possível o mecanismo

1 Art. 5º da Lei 9.882/99. 2 Como mencionado, A favor da constitucionalidade do art. 1º da Lei 9.882/99: BULOS, Uadi Lammêgo, op. cit.,

2007, p. 240. Posicionamento contrário: MORAES, Alexandre de, op. cit., 2003, p.21; TAVARES, André Ramos, op. cit., 2003, p.64.

3 BULOS, Uadi Lammêgo, op. cit., 2007, p.241.

61

inserido em textos estaduais, como já ocorre no Mato Grosso do Sul, no Rio Grande do Norte

e em Alagoas.

5.1 Ambigüidade do objeto

A consagração, como instituto constitucional, de uma medida própria que sirva à defesa

exclusiva de preceitos fundamentais da Constituição poderia causar estranheza, pois a

legislação pátria é habituada a medidas mais amplas, protetoras de todo o ordenamento

constitucional, sem a diferença entre o que é fundamental e o que não é.

A ação de descumprimento de preceito fundamental é instrumento de controle

concentrado, mas tem influência no caso concreto (controle difuso), apesar das hipóteses de

seu uso serem muito reduzidas, quando comparadas aos demais instrumentos de ordem

jurídica, já que tais meios servem à discussão de violações a normas constitucionais e o objeto

da ADPF se resume nos casos de agressão de preceito fundamental.

Assim, como o objeto da ADPF se resume ao descumprimento, desrespeito ou

inobservância dos preceitos fundamentais, não há que se atacar a constitucionalidade ou

inconstitucionalidade de normas por este instituto. Isso se confirma a partir da interpretação

do Supremo Tribunal Federal que já admitiu o recebimento da argüição como ação direta de

inconstitucionalidade genérica, em virtude do seu caráter subsidiário como ocorreu na decisão

proferida pelo Pleno da Suprema Corte na ADPF 72-QO/PA, cuja Relatora, Ministra Ellen

Grace4 decidiu:

Ementa QUESTÃO DE ORDEM EM ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. PORTARIA Nº 156, DE 05.05.05, DA SECRETARIA EXECUTIVA DA FAZENDA DO ESTADO DO PARÁ. FIXAÇÃO, PARA FINS DE ARRECADAÇÃO DE ICMS, DE NOVO VALOR DE PREÇO MÍNIMO DE MERCADO INTERESTADUAL PARA O PRODUTO CARVÃO VEGETAL. ARTS. 150, I, II E V, 152 E 155, § 2º, XII, i, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. O ato normativo impugnado é passível de controle concentrado de constitucionalidade pela via da ação direta. Precedente: ADI 349, rel. Min. Marco Aurélio. Incidência, no caso, do disposto no art. 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99; 2. Questão de ordem resolvida com o aproveitamento do feito como ação direta de inconstitucionalidade, ante a perfeita satisfação dos requisitos exigidos à sua propositura (legitimidade ativa, objeto, fundamentação e pedido), bem como a relevância da situação trazida aos autos, relativa a conflito entre dois Estados da Federação. (Grifou-se). Julgamento: 01/06/2005, Tribunal Pleno Publicação: DJ 02-12-2005 PP-00002.

4BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp>. Acesso: 02 jul. 2008.

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Assim, a idéia de descumprimento não deve ser tomada em sentido amplo, visto que

nem toda matéria pode ser alvo do crivo da argüição, a depender da interpretação a ser feita

pelo Supremo Tribunal Federal.

5.2 Direito comparado

O instituto ampliou a jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal, mas não

se confunde com a avocatória, uma vez que a Corte Constitucional não chama para si o

julgamento de matéria que seja politicamente interessante.

A ADPF lembra o recurso constitucional alemão, que funciona como meio de queixa

jurisdicional à Corte germânica e serve para garantir a tutela de direitos fundamentais e de

certas situações subjetivas lesadas por um ato de autoridade pública. Entretanto:

[...] os objetivos do recurso constitucional tedesco (Verfassungsbeschwerde) são diversos daqueles colimados pela nossa argüição. O Verfassungsbeschwerde, em alguns casos, serve para impugnar decisões judiciais, postando-se, inclusive como instrumento de tutela das liberdades, a exemplo do nosso mandado de segurança, embora não se restrinja a tutelar direitos líquidos e certos. Sem embargo, a legitimidade do recurso dos alemães é mais ampla. A lei que a regulamenta, de 17 de abril de 1951, por exemplo, permite a qualquer pessoa recorrer junto à Corte alemã para defender direitos fundamentais, algo vedado no Brasil. 5 (Grifou-se).

A regulamentação do art. 102, §1º, da Constituição Federal, distanciou a ADPF dos

modelos austríaco e alemão, ao não permitir o acesso direto ao STF a qualquer pessoa que

afirme ter sido diretamente lesionado em face do descumprimento de preceitos fundamentais

encontrados na Constituição. Na Áustria, qualquer pessoa que afirme ter sido diretamente

lesionada em seus direitos por um ato ou conduta administrativa inconstitucional poderá

requerer que o Tribunal Constitucional reconheça do recurso constitucional no prazo de 6

(seis) meses a contar da prática do ato inconstitucional do poder público.

O denominado recurso constitucional pode ser interposto perante o Tribunal

Constitucional Alemão por qualquer cidadão ou pessoa jurídica nacional com a mesma

alegação (violação de direito fundamental), no prazo de 1 (um) mês da violação do direito,

salvo na hipótese de dirigir-se contra lei ou ato especial contra os quais não seja admitido o

controle judicial, quando então o prazo será de 1 (um) ano da entrada em vigor da lei ou da

5 BULOS, Uadi Lammêgo, op. cit., 2007, p.233.

63

emissão do ato6. Isso decorre da auto-aplicabilidade dos direitos fundamentais assemelhados

previstos na Lei Fundamental e, consequentemente, da necessidade de existência de um órgão

que garanta sua efetividade, cuja importância tem raízes históricas7.

Assim, no exercício dessa competência, o Tribunal Constitucional converte-se em

tribunal cidadão, uma vez que é garantido o acesso a todas as pessoas, de forma gratuita e

independente de advogado, desde que se comprove que o Poder Público ocasionou lesão a

direito fundamental ou assemelhado. Há alguns direitos, entretanto, que são exclusivamente

garantidos aos cidadãos alemães, não se estendendo aos estrangeiros, como ocorre com a

liberdade de escolha de profissão (art. 12). Dessa forma, a liberdade concedida ao cidadão de

interpor ação diretamente ao Tribunal Constitucional não se estende ao estrangeiro, em

virtude da limitação de direitos oposta pela própria Constituição, sendo imprescindível

lembrar que tal limitação não é válida para os estrangeiros europeus, em virtude do Tratado da

União Européia.

Logo, a Verfassungsbeschwerde alemã “funciona como meio de queixa jurisdicional

perante o Bundesverfassungsgericht, 8 almejando a tutela de direitos fundamentais e de certas

situações subjetivas lesadas por um ato de autoridade pública.”9

Ressalta-se ainda que o instituto da ADPF mantém pontos de semelhança com o writ of

certionari, dos norte-americanos, uma vez que o art. 4º, caput da Lei nº 9.882/99, autoriza a

inadmissão da ação, se não for caso de descumprimento de preceito ou quando houver outro

meio eficaz de sanar a lesão ao direito, concedendo-se ao Supremo Tribunal Federal a

escolha das argüições que deverão ser processadas e julgadas em face do seu caráter

subsidiário, até mesmo para evitar que a ação sirva como nova instância de recurso. A mesma

maneira, a Corte Suprema norte-americana julga poucos casos vindos dos tribunais federais e

estaduais, visto que se utiliza de rigoroso e discricionário juízo de admissibilidade10.

6 BRASÍLIA. Art. 93 da Lei do Tribunal Constitucional. Tradução disponível na Embaixada da Alemanha.

Disponível em: <http://www.brasilia.diplo.de/Vertretung/brasilia/pt/Suche,templateId=search.jsp>. Acesso em: 02 ago. 2008.

7 MORAES, Alexandre de, op. cit., 2003, p.15-36. 8 Conforme mencionado no capítulo terceiro, a disciplina sobre a organização do Tribunal alemão foi elaborada

pelo legislador ordinário, sendo o Bundesverfassungsgericht constituído por dois Senados, composto por oito juízes que são eleitos pelo Parlamento Federal (Bundestag) e pelo Conselho Federal (Bundesrat).

9 BULOS, Uadi Lammêgo, op. cit., 2007, p. 232. 10 MORAES, Alexandre de. Comentários à Lei 9.882/99 – Argüição de descumprimento de preceito fundamental.

In: TAVARES, André Ramos; ROTHENBURG, Walter Claudius (Org.), op. cit., 2003, p.29.

64

A Lei n° 72 da Baviera, em seu §54°, prevê a ação popular (Popularklage) destinada ao

mesmo objeto da ADPF. Segundo José Afonso da Silva:

[...] aquele dispositivo poderá ser fértil como fonte de alargamento da jurisdição constitucional da liberdade a ser exercida pelo nosso Pretório Excelso. A lei prevista poderia vir a ter a importância da Lei de 17.4.51 da República Federal da Alemanha que instituiu o Verfassungsbeschwerde, que se tem traduzido ao pé da letra por agravo constitucional ou recurso constitucional, mas que, em verdade, é mais do que isso, conforme se vê da definição que lhe dá Cappelletti: o ‘recurso constitucional consiste no meio de queixa jurisdicional perante o Tribunal Constitucional federal (com sede Karlsruhe), a ser exercitado por particulares objetivando a tutela de seus direitos fundamentais, assim como de outras situações subjetivas constitucionais lesadas por um ato de qualquer autoridade pública’. Em alguns casos ele serve para impugnar decisões judiciais, e, aí, sua natureza de meio de impugnação, de recurso, é patente. Em outros, contudo, é meio de invocar a prestação jurisdicional em defesa de direitos fundamentais. Parte de seus objetivos são cobertos pelo nosso mandado de segurança. Mas ele tem objetivos mais amplos do que este, e não está limitado à defesa de direito líquido e certo, pessoal. O Verfassungsbeschwerde é originário de Baviera, cuja regulamentação legal prevê o cabimento de Popularklage, isto é, a atribuição do direito de ação a quisquis de populo (ação popular), declarando que a inconstitucionalidade por ilegítima restrição de um direito fundamental pode ser feita valer por qualquer pessoa mediante ‘recurso’ junto da Corte Constitucional. O texto em exame, permite-nos avançar na mesma direção e será um instrumento de fortalecimento da missão que a Constituição reservou ao Supremo Tribunal Federal. 11

Originariamente, o inciso II do art. 2º da Lei 9.882/99, admitia a propositura ampla da

argüição pelo cidadão, nos mesmos termos do recurso constitucional alemão, mas a redação

inicial sofreu veto presidencial, restringindo a legitimidade para interpor ADPF, limitando a

aplicação do instituto à interpretação da Corte Constitucional, conforme será abordado.

5.3 Preceito fundamental

A doutrina classifica, como fundamentais, os preceitos que informam o sistema

constitucional e que servem para estabelecer comandos basilares e imprescindíveis à defesa

dos pilares da manifestação do constituinte originário. Em relação ao conceito de preceito

fundamental, de acordo com a ADPF 1, que teve como Relator o Ministro Néri da Silveira12,

ficou decidido que caberá ao Supremo determinar, através da interpretação de dispositivos da

Constituição, o que pode ou não ser considerado como preceito fundamental:

EMENTA: Argüição de descumprimento de preceito fundamental. Lei nº 9.882, de 3.12.1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da referida medida constitucional. 2. Compete ao Supremo Tribunal Federal o juízo acerca do que se há de compreender, no sistema constitucional brasileiro, como preceito fundamental. 3. Cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Necessidade de o requerente apontar a lesão ou ameaça de ofensa a

11 SILVA, José Afonso, op. cit., 1989, p.482. 12BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp>. Acesso: 02 jul. 2008.

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preceito fundamental, e este, efetivamente, ser reconhecido como tal, pelo Supremo Tribunal Federal. 4. Argüição de descumprimento de preceito fundamental como instrumento de defesa da Constituição, em controle concentrado. 5. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: distinção da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade. 6. O objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental há de ser ‘ato do Poder Público’ federal, estadual, distrital ou municipal, normativo ou não, sendo, também, cabível a medida judicial ‘quando for relevante’ o fundamento da controvérsia sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.13 (grifou-se).

Assim sendo, os preceitos fundamentais podem ser diretrizes relacionadas no art. 1º da

Constituição, quais sejam a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores

sociais do trabalho, da livre iniciativa, do pluralismo político.

Incluem-se ainda como preceitos fundamentais, os princípios republicano, federativo,

do Estado Democrático, da separação dos poderes, presidencialista, da legalidade, da

inafastabilidade do controle jurisdicional, da autonomia das entidades federadas do juiz e do

promotor natural, do devido processo legal, do contraditório, da publicidade, da legalidade

administrativa, da impessoalidade, da moralidade, da ocupação dos cargos através de

concurso, da prestação de contas, da independência funcional da Magistratura, da capacidade

contributiva, da defesa do consumidor, da autonomia universitária, etc.14

Entretanto a argüição não funciona como instância recursal para os julgamentos.

Cumpre ao Supremo, dessa maneira, proceder à escolha das argüições que deverão ser

processadas e julgadas, de acordo a matéria, se qualificada como preceito fundamental, além

da análise se há ou não outros meios com eficácia para sanar a lesividade do ato, de acordo

com o princípio da subsidiariedade.

5.3.1 Legitimidade para propor a ação da ADPF

O art. 2º, inciso I, da Lei nº 9.882/99 trata da titularidade para ingresso com a ação de

argüição, mantendo a regra tradicional da Constituição, conferindo aos mesmos legitimados

para a ação direta de constitucionalidade e ação direta de inconstitucionalidade (art. 103/CF),

ficando mantidas as mesmas restrições de legitimidade plena e universal, quando se tratar do

Governador de Estado, Assembléia Legislativa, confederação sindical e entidade de classe de

âmbito nacional, aos quais mister se faz a comprovação do interesse de agir.

13 Ibid., 10 jul. 2008. 14 BULOS, Uadi Lammêgo, op. cit., 2007, p.238.

66

Conforme já mencionado, o Presidente da República vetou a previsão legal que

contemplava a possibilidade de propositura da ADPF por qualquer pessoa lesada ou ameaçada

pelo Poder Público. O veto foi dado sob o argumento de haver incompatibilidade do controle

concentrado com o acesso individual e irrestrito, o que poderia comprometer a capacidade

funcional do Supremo Tribunal Federal, em virtude do grande número de processos que

poderiam advir da permissão concedida por este dispositivo. Assim, a Mensagem nº 1.807, de

3/12/1999, enviada pela Presidência da República, alegou as seguintes razões de veto ao

inciso II, art. 2º, da Lei 9.882/99:

A disposição insere um mecanismo de acesso direto, irrestrito e individual ao Supremo Tribunal Federal sob a alegação de descumprimento de preceito fundamental por ‘qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público’. A admissão de um acesso individual e irrestrito é incompatível com o controle concentrado de legitimidade dos atos estatais – modalidade em que se insere o instituto regulado pelo projeto de lei sob exame. A inexistência de qualquer requisito específico a ser ostentado pelo proponente da argüição e a generalidade do objeto da impugnação fazem presumir a elevação excessiva do número de feitos a reclamar apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, sem a correlata exigência de relevância social e consistência jurídica das argüições propostas. Dúvida não há de que a viabilidade funcional do Supremo Tribunal Federal consubstancia um objetivo ou princípio implícito da ordem constitucional, para cuja máxima eficácia devem zelar os demais poderes e as normas infraconstitucionais. De resto, o amplo rol de entes legitimados para a promoção do controle abstrato de normas inscrito no art. 103 da Constituição Federal assegura a veiculação e a seleção qualificada das questões constitucionais de maior relevância e consistência, atuando como verdadeiros agentes de representação social e de assistência à cidadania. Cabe igualmente ao Procurador-Geral da República, em sua função precípua de Advogado da Constituição, a formalização das questões constitucionais carentes de decisão e socialmente relevantes. Afigura-se correto supor, portanto, que a existência de uma pluralidade de entes social e juridicamente legitimados para a promoção de controle de constitucionalidade – sem prejuízo do acesso individual ao controle difuso – torna desnecessário e pouco eficiente admitir-se o excesso de feitos a processar e julgar certamente decorrentes de um acesso irrestrito e individual ao Supremo Tribunal Federal. Na medida em que se multiplicam os feitos a examinar sem que se assegure sua relevância e transcendência social, o comprometimento adicional da capacidade funcional do Supremo Tribunal Federal constitui inequívoca ofensa ao interesse público. Impõe-se, portanto, seja vetada a disposição em comento.15 (grifou-se).

Dessa forma, em virtude do veto acima exposto, a ADPF distanciou-se do

Verfassungsbeschwerde, que, em alguns casos, serve para impugnar decisões judiciais, que

permitem a qualquer pessoa recorrer junto à Corte alemã para defender direitos fundamentais.

Mas a lei não afastou completamente o direito do cidadão pleitear a proteção

jurisdicional pela ADPF, assim aquele que se sentir prejudicado em virtude de violação a

15BRASÍLIA. Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/Mensagem_Veto/1999/Mv1807-99.htm>.

Acesso em: 22 jul. 2008.

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direitos que lhe são fundamentais conta com o § 1º do mesmo artigo 2º em questão, que

facultou ao interessado, mediante representação, solicitar a propositura de argüição ao

Procurador-Geral da República, que, examinando os fundamentos jurídicos do pedido, pode

decidir sobre o cabimento do seu ingresso em juízo.

Na prática, os interessados que não possuem legitimidade constitucional, mas

necessitam argüir questões relevantes na ADPF têm-se utilizado do art. 6º, § 1º da Lei

9.882/99, da figura conhecida como “amigo da corte”, ou amicus curiae, que comparece ao

processo manifestando-se sobre o tema de seu interesse, já utilizado pela Lei 9.868, de

10/11/1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade

e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal:

Art. 6o Apreciado o pedido de liminar, o relator solicitará as informações às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias. § 1o Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria.

Em virtude do veto oposto ao inciso II do art. 1º da Lei 9.882/99, afastando a

possibilidade de ingresso individual e irrestrito da ADPF, vêm os arts. 2º e 6º, da mesma Lei

concretizar o postulado democrático, para que se preserve a abertura deste processo de

fiscalização, no sentido de permitir a participação formal de entidades e de instituições que

efetivamente representem os interesses gerais da coletividade ou, ainda que representem os

anseios essenciais e relevantes de classe, grupos ou camadas sociais. Dessa maneira, a

admissão de terceiro na condição de amicus curiae, tem por finalidade precípua, pluralizar ou

democratizar o processo de controle da constitucionalidade, ao qual a ADPF se vem

prestando em virtude do que preceitua o art. 1º, I da Lei 9.882/99.

Muito mais do que submeter ao exame discricionário da Procuradoria, sobre a aceitação

ou não da representação requerida pelo cidadão, é através da possibilidade de admissão da

figura do amicus curiae que a ADPF atinge diretamente importantes bases da democracia,

uma vez que respeita os princípios da legitimidade e da soberania popular, porquanto recebida

diretamente pelo Supremo, sem passar pelo crivo discricionário do Ministério Público.

Para tanto, é necessário que o Supremo Tribunal Federal adote uma atitude

interpretativa do sistema normativo como um todo e em prol das reais necessidades da

população, evitando que a ADPF sirva como meio político para arbitrar a legalidade e

68

aplicação das leis, especificamente nos casos sujeitos à controvérsia16 cuja aplicação pelo

Judiciário retire a responsabilidade do competente para atuar, mas que nãop o faz em virtude

de interesses políticos, e apreenda que, do contrário, isto é:

limitando o acesso à jurisdição constitucional, de uma forma ou de outra, estar-se-á restringindo o debate tão caro e tão indispensável à sociedade atual, marcada pela existência de interesses diversos e conflitantes, conseqüência natural de uma sociedade pluralista em que há multiplicidade de valores, de culturas e de concepções de formas de vida.17

Deve, desta maneira, ser aceita a interpretação que mais aproxime o Poder Judiciário

dos reais anseios da população, sob pena de se criar uma verdadeira ditadura jurisdicional

através de decisões da ADPF, uma vez que a decisão que julgar procedente ou improcedente o

pedido é irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória, apenas cabendo reclamação

contra o descumprimento da decisão proferida, na forma do seu regimento interno.18

5.4 Princípio da subsidiariedade

O Princípio da subsidiariedade ou cláusula de exurimento de instância está previsto no

art. 4º, § 1º da Lei 9.882/9919. Baseou-se nos perfis Legislativos dos recursos constitucional

alemão e espanhol20, e obriga o Supremo Tribunal Federal a somente admitir a argüição se

não existir nenhum outro meio eficaz que sirva para sanar a lesividade do ato.

Dessa maneira, não há possibilidade de substituir remédios legais, como a reclamação, o

agravo regimental, os recursos extraordinário e especial, o Mandado de Segurança, habeas

corpus, habeas data, mandado de injunção, ação popular e a ação civil pública. Também não

substitui as ações direta de constitucionalidade e nem de inconstitucionalidade, em nenhuma

de suas espécies (genérica, por omissão ou interventiva), apesar de já ter sido recebida pela

Ministra Ellen Grace como ADIN, conforme decisão na ADPF 72-QO/PA, apresentada

anteriormente.

16 Conforme já debatido no item 2.2 Decisões do Judiciário sobre atos do Executivo, deste trabalho. 17 MATTOS, Ana Letícia Queiroga de. O amicus curiae e a democratização do controle de constitucionalidade.

Direito Público, nº 9, Estudos, conferências e notas, p.117-121, jul.-ago.-set./2005. Disponível em: <http://201.38.128.50/ojs/index.php/ direitopublico/ article/viewFile/178/211>. Acesso em: 22 jul. 2008.

18 Art. 9º, “c”, do Regimento Interno do STF. 19 “Art. 4o A petição inicial será indeferida liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de argüição de

descumprimento de preceito fundamental, faltar algum dos requisitos prescritos nesta Lei ou for inepta.§ 1o Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade”.

20 Como ocorre na Lei do Tribunal Federal alemão (§90, alínea 2) e na Lei Orgânica nº 02, de 03 de julho de 1979, do Tribunal Constitucional espanhol, em seu art. 44, 1, a.

69

Neste caso, fica o ajuizamento da ADPF limitado a que o interessado deva demonstrar o

prévio exaurimento de todas as vias processuais, buscando a solução da demanda, além de

comprovar que tais vias são incapazes, insuficientes ou ainda, ineficazes para sanar a

controvérsia constitucional, conforme decisão do STF na ADPF 3-QO/CE, tendo como

Relator o Ministro Sydney Sanches, quando se refere a Lei 9.882/99:

[...] Dispõe, contudo, o § 1o do art. 4o do diploma em questão: ‘§ 1o - Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade’. 8. E ainda há meios judiciais eficazes para se sanar a alegada lesividade das decisões impugnadas. 9. Se, na Corte estadual, não conseguir o Estado do Ceará obter medidas eficazes para tal fim, poderá, em tese, renovar a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. 10. Também assiste ao Governador, em tese, a possibilidade de promover, perante o Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade do art. 108, VII, ‘i’, da Constituição do Estado, bem como do art. 21, VI, ‘j’, do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Ceará, que instituíram a Reclamação destinada à preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões. É que, segundo entendimento desta Corte, não compete aos Tribunais legislar sobre Direito processual, senão quando expressamente autorizados pela Constituição (RTJs 112/504, 117/921, 119/1145). Assim, também, os Estados, mesmo em suas Constituições. 11. E as decisões atacadas foram proferidas em processos de Reclamação. (grifou-se).

Ressalte-se que a possibilidade de uso de outros meios processuais não basta para

justificar a invocação do referido princípio, e sim que tais meios se mostrem ineficazes, uma

vez que ações ordinárias e o próprio recurso extraordinário nem sempre conseguem resolver

controvérsia constitucional de modo geral. De acordo com o ministro Celso de Mello, relator

na ADPF 17-AgRg/AP, cuja decisão proferida em 5/6/2002 pelo Pleno do STF, publicado no

DJ de 14/02/2003, ficou determinado que:

A mera possibilidade de utilização de outros meios processuais, contudo, não basta, só por si, para justificar a invocação do princípio da subsidiariedade, pois, para que esse postulado possa legitimamente incidir - impedindo, desse modo, o acesso imediato à argüição de descumprimento de preceito fundamental - revela-se essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se capazes de neutralizar, de maneira eficaz, a situação de lesividade que se busca obstar com o ajuizamento desse writ constitucional. - A norma inscrita no art. 4º, § 1º da Lei nº 9.882/99 - que consagra o postulado da subsidiariedade - estabeleceu, validamente, sem qualquer ofensa ao texto da Constituição, pressuposto negativo de admissibilidade da argüição de descumprimento de preceito fundamental, pois condicionou, legitimamente, o ajuizamento dessa especial ação de índole constitucional, à observância de um inafastável requisito de procedibilidade, consistente na ausência de qualquer outro meio processual revestido de aptidão para fazer cessar, prontamente, a situação de lesividade (ou de potencialidade danosa) decorrente do ato impugnado. (grifou-se).

Parte da doutrina considera que, quanto ao cabimento da ADPF, não se encontrariam

situações impugnáveis pela argüição, em virtude da ampla utilização do recurso

extraordinário, que alberga todas as hipóteses de alegada violação da Constituição, devendo

70

interpretar a eficácia no sentido do problema que se apresenta quanto à celeridade dos meios

existentes, já que, para todo direito, haverá uma ação judicial tendente a preservá-lo. Assim,

se aplicado o dispositivo do princípio da subsidiariedade no seu sentido estrito, tornar-se-ia

inócua a medida da ADPF, uma vez que, praticamente não haveria possibilidade de sua

utilização.21

5.5 Classificação da ADPF

A Lei 9.882/99 consagrou quatro espécies de argüição, quais sejam, a preventiva, a

repressiva, a autônoma e a incidental, também conhecida como abstrata, paralela, por

equivalência, equiparação ou derivação.

A argüição preventiva visa evitar lesões a princípios, direitos ou garantias fundamentais

que estejam previstas na Constituição Federal, tutelando as liberdades públicas que estão na

iminência de sofrer em qualquer tipo de lesão ou ameaça de lesão. Já a argüição repressiva,

visa reparar lesões já concretizadas. Não há que se mensurar a iminência ou a ameaça, uma

vez que serve para reprimir ou fazer cessar a conduta omissiva ou comissiva de qualquer dos

Poderes Públicos, no exercício de suas atribuições, que tenham como conseqüência, pôr em

risco os preceitos fundamentais.

O caput, do art. 1º da Lei 9.882/99, é consectário do art. 102, § 1º da Carta Magna.

Estabelece que a argüição autônoma deve ser proposta objetivando evitar ou reparar lesão a

preceito fundamental, pela jurisdição concentrada do Supremo, que seja resultante de ato do

Poder Público (Legislativo, administrativo ou judicial). Evidentemente que só poderá ser

utilizada quando inexistir outro meio eficaz para sanar a lesividade do ato.

Nesse caso, o parâmetro de controle é mais restrito, se comparado com os demais

mecanismos da via abstrata, já que não se dirige a qualquer norma constitucional; por outro

lado, seu objeto é mais amplo, pois não se restringe aos atos normativos. Os atos que

decorrem dos órgãos estatais, ou seja, atos Legislativos, administrativos ou judiciais, não se

confundem com atos políticos que não podem ser objeto de controle do STF, matéria já

decidida desde 3/2/2000, pelo Supremo na ADPF 1 já mencionada, que teve como Relator o

Ministro Néri da Silveira, ao dispor em sua emenda que:

21BASTOS, Celso Seixas Ribeiro. Argüição de descumprimento de preceito fundamental e legislação

regulamentadora. In: TAVARES, André Ramos; ROTHENBURG, Walter Claudius (Org.), op. cit., 2003, p.80.

71

[...] Na espécie, a inicial aponta como descumprido, por ato do Poder Executivo municipal do Rio de Janeiro, o preceito fundamental da ‘separação de poderes’, previsto no art. 2º da Lei Magna da República de 1988. O ato do indicado Poder Executivo municipal é veto aposto a dispositivo constante de projeto de lei aprovado pela Câmara Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, relativo ao IPTU. 8. No processo Legislativo, o ato de vetar, por motivo de inconstitucionalidade ou de contrariedade ao interesse público, e a deliberação legislativa de manter ou recusar o veto, qualquer seja o motivo desse juízo, compõem procedimentos que se hão de reservar à esfera de independência dos Poderes Políticos em apreço. 9. Não é, assim, enquadrável, em princípio, o veto, devidamente fundamentado, pendente de deliberação política do Poder Legislativo - que pode, sempre, mantê-lo ou recusá-lo, - no conceito de ‘ato do Poder Público’, para os fins do art. 1º, da Lei nº 9882/1999. Impossibilidade de intervenção antecipada do Judiciário, - eis que o projeto de lei, na parte vetada, não é lei, nem ato normativo, - poder que a ordem jurídica, na espécie, não confere ao Supremo Tribunal Federal, em via de controle concentrado. 10. Argüição de descumprimento de preceito fundamental não conhecida, porque não admissível, no caso concreto, em face da natureza do ato do Poder Público impugnado.22 (grifou-se).

O parágrafo único, I do art. 1º da Lei 9.882/99 23 determina que só caberá à ADPF

quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo

federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição. Nesse caso,

especificamente o ato há que ser normativo, ao contrário do que ocorre na argüição autônoma,

que não se estende aos atos do Poder Público.

Assim, como instrumento do modelo concentrado de controle, a argüição tanto pode dar

ensejo à impugnação ou questionamento direto de ato ou lei, quanto pode acarretar em

provocação a partir de situações concretas. O primeiro caso constitui-se um tipo de controle

em caráter principal, operando-se de forma direta e imediata. No segundo caso, questiona-se a

legitimidade da lei tendo em vista a aplicação em um caso concreto (caráter incidental), no

qual a instauração do controle de legitimidade da norma da ADPF repercutirá diretamente

sobre os casos submetidos à jurisdição ordinária, já que a questão a ser dirimida nesses

processos será da competência do STF.24

22 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp>.

Acesso: 02 jul. 2008. 23 “Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo

Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental: I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição;”

24 MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

72

5.5.1 Norma revogada pela Constituição Federal

Além do fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal,

estadual ou municipal, o art. 1º, parágrafo único, parte final do inciso II, inclui os atos

anteriores à Constituição Federal como sendo objeto de questionamento na ação de

descumprimento de preceito fundamental. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é

antiga no sentido de que não cabe ação direta de inconstitucionalidade cujo objeto seja direito

pré-constitucional, alegando que a questão envolvida é de simples revogação, e não de

inconstitucionalidade superveniente.

A discussão sobre a incompatibilidade entre a nova Constituição e as normas

infraconstitucionais deve ser solucionada pelas regras de direito intertemporal, já havendo

entendimento pelo STF de que a questão deve ser resolvida pelo fenômeno da recepção,

conforme decisão no Recurso Extraordinário RE-AgR 353508, que teve como Relator o

Ministro Celso de Mello, em julgamento datado de 15/5/2007, pela Segunda Turma, no qual

esclarece que:

[...] Revela-se inaplicável, no entanto, a teoria da limitação temporal dos efeitos, se e quando o Supremo Tribunal Federal, ao julgar determinada causa, nesta formular juízo negativo de recepção, por entender que certa lei pré-constitucional mostra-se materialmente incompatível com normas constitucionais a ela supervenientes. - A não-recepção de ato estatal pré-constitucional, por não implicar a declaração de sua inconstitucionalidade - mas o reconhecimento de sua pura e simples revogação (RTJ 143/355 - RTJ 145/339) -, descaracteriza um dos pressupostos indispensáveis à utilização da técnica da modulação temporal, que supõe, para incidir, dentre outros elementos, a necessária existência de um juízo de inconstitucionalidade. - Inaplicabilidade, ao caso em exame, da técnica da modulação dos efeitos, por tratar-se de diploma Legislativo, que, editado em 1984, não foi recepcionado, no ponto concernente à norma questionada, pelo vigente ordenamento constitucional.25 (grifou-se)

A revogação e a inconstitucionalidade superveniente causam o mesmo efeito que é a

cessação da vigência da norma, entretanto a norma revogada não poderá ser objeto de ação

direta de inconstitucionalidade, diferente da norma inconstitucional superveniente. Além

disso, a revogação entra no plano da vigência da norma, ou seja, desde o início de sua

obrigatoriedade até sua revogação, ao passo que a inconstitucionalidade superveniente

encontra-se no plano da validade, assim considerada em virtude de elaboração conforme o

procedimento estabelecido no sistema jurídico. Não se pode deixar de considerar que:

25 BRASIL.Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp>. Acesso: 23 jul. 2008.

73

O fenômeno da recepção submetido ao controle concentrado por meio de um juízo de inconstitucionalidade superveniente produz mais segurança jurídica, evitando dúvidas ou contradições acerca da validade da norma, pois mesmo sendo inválida, se não houve a declaração, continua operando efeitos nos sistema jurídico. 26

Por sua vez, o art. 11 da mesma Lei preceitua que o STF, ao declarar a

inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de

preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional

interesse social, poderá por maioria restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela

só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser

fixado, o que demonstra a necessidade de cuidado ao decidir o Supremo Tribunal Federal em

sede de ADPF, cuja ponderação do alcance de sua decisão se faz necessária a fim de evitar

conseqüências demasiadamente gravosas da declaração.

Dessa forma, com a edição da lei, permitiu-se ao Supremo Tribunal Federal manipular

os efeitos da decisão da ADPF, seja em relação à sua amplitude, como também em relação

aos efeitos temporais, desde que estejam presentes dois requisitos, o formal e material. Pelo

requisito formal, a lei exige que o STF decida sobre a alteração dos efeitos por maioria de

dois terços dos membros do Tribunal, enquanto, pelo requisito material, é exigida a presença

de razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.27

5.6 Objeto da ADPF

Segundo a Lei 9.882/99 a ADPF é cabível para evitar e reparar lesão a preceito

fundamental pela prática de ato do Poder Público, reconhecer a relevância do fundamento da

controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal,

incluídos os anteriores à Constituição.

Assim, os atos que decorrem dos órgãos estatais, ou seja, atos Legislativos,

administrativos ou judiciais, não se confundem com atos políticos, não podendo esses ser

albergados pelo instituto da argüição, já que “não é toda e qualquer conduta pública contrária

a preceitos fundamentais, que enseja o uso da argüição”28.

No conceito referente a atos normativos, estão os atos estatais de conteúdo meramente

derrogatório, como é o caso das resoluções administrativas, desde que tenham incidência

26 SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton. Direito processual constitucional de acordo com a reforma do judiciário. São Paulo: Saraiva, 2006, p.269.

27 MORAES, Alexandre de, op. cit., 2003, p.35. 28 BULOS, Uadi Lammêgo, op. cit., 2007, p.235.

74

sobre atos de caráter normativo. Segundo o Supremo29, os atos estatais de efeitos concretos

não se submetem, em sede de controle concentrado, à jurisdição constitucional abstrata, por

ausência de densidade normativa de seu preceito.

Atos de caráter privado que são equiparados aos praticados por autoridades públicas,

como entes privados que agem por delegação do Poder Público, a exemplo dos

concessionários e dirigentes de entidades particulares de ensino também são protegidos pelo

instituto da argüição, mas em virtude do caráter de subsidiariedade, descarta-se essa

possibilidade, se couber outro remédio constitucional.

Conforme já tratado no capítulo, atos anteriores à Constituição Federal já são objeto de

jurisprudência antiga firmada pelo Supremo no sentido de que não cabe ação de

inconstitucionalidade para direito pré-constitucional. Dessa forma, a possibilidade de

ajuizamento da ADPF, nos casos de normas revogadas, conforme determinou o art. 1º da Lei

nº 9.882/99, há que ser aplicado depois de uma análise mais profunda, pelo STF, pois tais atos

são nulos de pleno direito, uma vez que revogados pela Carta Magna. Teoricamente é

impossível o cabimento de tal medida, já que na prática a justificativa de seu cabimento se

torna impossível de se justificar.

Atos omissivos inconstitucionais e atos municipais que afrontam a Constituição tendem

a ser corrigidos pela ADPF também com bastante cautela pelo Supremo, primeiro em virtude

da quantidade de mais de cinco mil Municípios espalhados pelo país, o que pode tornar o

trabalho do STF inviável, em caso de recebimento da ADPF como ação de declaratória de

inconstitucionalidade municipal; segundo, porque a legislação constitucional, conforme já

descrito no capítulo IV deste trabalho, é omissa no art. 102 da Constituição Federal, quando

se refere ao controle de constitucionalidade de atos municipais diante do texto constitucional.

O Supremo não poderá legislar politicamente através de suas decisões, para suprir a falta de

legislação, a exemplo do que ocorreu na ADPF 4, em que a Corte debateu amplamente o

cabimento do instituto contra a medida provisória que fixava o valor do salário mínimo ao

arrepio do art. 7º, IV da Carta Magna, julgando que a ADIN por omissão não seria eficaz para

sanar tal lesividade.30

29 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento proferido pelo Pleno do STF na Adin n. 769/MA, Relator Min.

Celso de Mello; RTJ 154/432. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 02 ago. 2008.

30 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento proferido pelo Tribunal Pleno do STF, na ADPF-MC 4 / DF - Distrito Federal. Medida Cautelar em argüição de descumprimento de preceito fundamental. Relatora a Min. Ellen Gracie.

75

5.6.1 Alegação de Inconstitucionalidade da Lei 9.882/99

Ressalte-se que o texto constitucional, em seu art. 102, caput, é taxativo quando

determina que a argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente da Carta

Magna, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei, não havendo

autorização constitucional para uma ampliação das competências do Supremo Tribunal

Federal, e, portanto:

Controvérsias entre leis e atos normativos e normas constitucionais, relevantes que sejam, não são hipóteses idênticas ao descumprimento pelo poder público de um preceito fundamental e devem ser resolvidas em sede de controle de constitucionalidade, tanto difuso quanto concentrado. O legislador ordinário utilizou-se de manobra para ampliar, irregularmente, as competências constitucionais do Supremo Tribunal Federal que, conforme jurisprudência e doutrina pacíficas, somente podem ser fixadas pelo texto magno. Manobra essa eivada de flagrante inconstitucionalidade, pois deveria ser precedida de emenda à Constituição.31

Ao ampliar a possibilidade de argüição de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo

fora das hipóteses cabíveis no controle concentrado, em que o STF já havia decidido que lhe

faltava competência para essa análise dessa matéria, por ausência de previsão constitucional,

não se pode admitir que o legislador ordinário amplie essa competência através de manobra

terminológica, sem alterar o art. 102, I, “a” da Carta Magna.

No caso de decisões em ADPF que tenham como objeto a falta de regulamentação, o

Supremo pode incorrer no mesmo vazio em que se transformou a ação direta de

inconstitucionalidade por omissão. Assim, cumpre ponderar que a decisão proferida na

ADPF, que tem como objeto a regulamentação de normas, não surtirá efeito, uma vez que

proferida em relação a outro poder, pouco podendo fazer a Corte Suprema, em virtude de não

lhe ser possível atuar como legislador positivo, e, mesmo interpretando a Lei 9.882/99,

restaria à Corte Excelsa tão somente solicitar ao Poder Legislativo a elaboração de lei.

Além disso, o caráter de ambigüidade da ADPF, que pode ser utilizado como técnica

concentrada e difusa de defesa da supremacia constitucional, dá ao mecanismo notória

ambivalência, uma vez que ora se apresenta como ação autônoma, ora como providência

incidental no curso de processo litigioso já instaurado.

Julgamento em 02/08/2006, publicado no DJ 22-09-2006 PP-00028, EMENT VOL-02248-01 PP-00001, LEXSTF v. 28, nº 335, 2006, p.157-180. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 02 ago. 2008.

31 MORAES, Alexandre de, op. cit., 2003, p.21.

76

Embora reconhecendo que o parágrafo único do art. 1º da Lei 9.882/99 possui uma

formulação genérica, o Ministro Néri Silveira concorda que esta última não poderia ser criada

pelo legislador ordinário, mas tão somente por uma Emenda Constitucional.32

A referida lei possui vários de seus aspectos questionados no âmbito do STF através da

ação direta de inconstitucionalidade n.º 2231/DF proposta pelo Conselho Federal da OAB,

que impugna a íntegra do referido diploma legal, e em especial o parágrafo único do art. 1.º, o

§3.º do art. 5.º, o art. 10, caput e seu §3.º e o art. 11, havendo, inclusive, o então Relator, Min.

Néri da Silveira, deferido liminarmente e, em parte, com efeito ex nunc, o inciso I do

parágrafo único do art. 1º da Lei 9.882/99, excluindo de sua aplicação, controvérsia

constitucional ajuizada, suspendendo ainda e com o mesmo efeito o § 3º do art. 5º da mesma

lei, até o final do julgamento da referida ADIN, cujo julgamento, está suspenso, encontrando-

se o processo concluso ao Ministro Relator desde 2/8/2004.33

Segundo a OAB, o parágrafo único do art. 1.º aumenta a competência taxativa do art.

102 da Constituição, que só poderia ocorrer através de emenda, além de questionar que o

referido artigo, ao mencionar lei ou ato normativo, estaria criando novo sistema de controle

concentrado de legitimidade dos atos estatais. Alega ainda que o Poder Judiciário só pode

atuar como legislador negativo perante norma constitucional expressa que lhe defira esta

prerrogativa. Considera a concentração imprópria de poderes no STF através do § 3º do art.

5º, quando permite que a Corte Suprema suspenda o andamento de processos, ferindo o

devido processo legal e o princípio do juiz natural, além de conceder às decisões proferidas

em ADPF, através do art. 10, o caráter de comando geral, de ordem a todos, sejam partes ou

não da lide, o que quebra o equilíbrio dos Poderes, de acordo com o art. 2º da Carta Magna.

Por fim, considera que o art. 11 da Lei 9.882/99 fere o Estado Democrático de Direito e

o princípio da legalidade, uma vez que permite a declaração de inconstitucionalidade de atos

ou leis, por tempo determinado, o que desrespeita posição doutrinária de que a lei declarada

inconstitucional deve se considerada nula.

Muitas decisões em ação de argüição ainda aguardam a decisão a ser proferida na ADIN

2.231 acima exposta. O Supremo Tribunal Federal tem-se posicionado, nas decisões que tem

32 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Adin 2.231-MC/DF, Relator Ministro Néri da Silveira, decisão de

05/12/2001, Informativo do STFn. 523, Brasília, 03 a 7-12-2001. 33 Segundo o acompanhamento processual do STF. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em:

<http://www.stf.gov.br/portal/processo/ verProcessoAndamento.asp>. Acesso em: 23 ago. 2008.

77

proferido, de maneira cautelosa tanto nos efeitos das decisões, quanto nas alegações jurídicas

de aceitação dos interessados (amicus curiae), assegurando, da maneira mais coerente com os

preceitos de justiça e menos com preceitos políticos, a aplicação da ação em questão,

conforme será analisado a seguir.

Assim, percebe-se que a maior dificuldade, interposta ao Supremo pela ADPF, é a

falta de normatização clara e específica pelo legislador ordinário, que estabeleceu, em

legislação infraconstitucional, a competência para o STF definir como, quando e em que

situações a argüição poderá ser aceita, com efeito de norma geral, através de mera

interpretação. Concedeu-lhe excessiva competência além do que foi outorgado pela

Constituição, o que retorna a discussão sobre o equilíbrio dos Poderes, e a utilização do Poder

Judiciário como meio de efetivação de normas não obedecidas ou não efetivadas pelos demais

poderes, em virtude de omissões com interesses essencialmente políticos, o que sai do âmbito

de atuação judicial, e que pode transformar o Estado em uma “judiciocracia” ou um “Governo

de juízes.”

CONCLUSÃO

O Poder Moderador, criado pelo art. 98 da Constituição de 1824, foi naquela época, o

centro de toda a organização política nacional. Sua função era a de inspecionar a nação,

podendo, para tanto, examinar a forma como todos os poderes políticos criados pela Carta

Magna eram exercidos. Em julho de 1889, o Imperador Pedro II externou a vontade de criar

no Brasil um tribunal constitucional igual ao norte-americano, para o qual fossem transferidas

as atribuições do Poder Moderador, sendo assim criado o Supremo Tribunal Federal - STF.

O STF, desde sua criação, sofreu grandes pressões políticas, em virtude da possibilidade

legal do Judiciário intervir nas ações de outros poderes, o que poderia causar desequilíbrio na

separação das funções estatais. Observa-se que as decisões judiciais, proferidas pela Suprema

Corte, muitas vezes possuíram um caráter essencialmente político, apesar de tal fato não

ocorrer de maneira constante, uma vez que o Tribunal também representou a vontade

soberana da sociedade através da efetivação do ideal de justiça em diversas decisões

prolatadas, não sendo correto considerar que a Suprema Corte realiza desde a sua criação,

uma ditadura através da interpretação das leis.

A Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, incluindo a “súmula

vinculante” como efeito às decisões proferidas pela maioria absoluta do STF em ADIn e

ADC, aumenta o poder da Suprema Corte, já que, por esta emenda, o Poder Legislativo

autorizou ao Judiciário impor normatização judicial a partir de suas interpretações, o que vem

estabelecer uma nova formação legislativa no país, sem necessidade de aprovação no

Congresso Nacional, em desacordo com o processo Legislativo estabelecido na Constituição.

Não se pode negar que a lei, criada pelo Poder Legislativo, muitas vezes tem um texto

elaborado de forma a necessitar de um acabamento final, a ser solicitado pelas instituições ou

pela sociedade civil, e a interpretação judicial dá à legislação um caráter de finalização e

eficiência, fazendo surgir na sociedade, o hábito em apontar as deficiências da legislação

elaborada pelo poder competente (o Legislativo) e pregar a superioridade da lei feita pelos

79

juízes. Este aprimoramento da lei feito pelo Poder Judiciário evidentemente repercute na

relação entre os poderes, já que leva o Judiciário ao papel de legislador implícito.

O Executivo também muitas vezes consegue, com este papel exercido pelo Judiciário,

arbitrar a legalidade e aplicação das leis que cria, especificamente nos casos sujeitos à

controvérsia, uma vez que a função do Judiciário o coloca como única instância institucional

especializada na interpretação das normas, retirando do Poder Executivo a responsabilidade

de ter de tomar decisões que são necessárias aos seus interesses, que trazem conseqüências

negativas ao Governo dentro dos partidos ou para eleições futuras, porquanto podem

contrariar o interesse da população. O problema pertinente a esta legislação elaborada através

de decisões judiciais, é a de que também sobre o Judiciário pairam as incertezas jurídicas e

institucionais que a sociedade nutre pelo Legislativo e pelo Executivo, o que não a torna

perfeita.

As questões de constitucionalidade têm sido resolvidas no direito comparado. Na

Europa, encontram-se países com controle de constitucionalidade político e judicial, tendo o

primeiro tipo procurado concentrar o controle de constitucionalidade em um único órgão

jurisdicional, o Tribunal Constitucional, que tem a competência para exercer tal controle com

eficácia erga omnes. A Constituição de 1958 da França é a que oferece o mais típico exemplo

de um controle político não judicial de constitucionalidade, pois, ao invés de a Constituição

prever o controle difuso dos juízes, de controlar a constitucionalidade das leis, o que existe é a

organização do Conseil Constitutionnel que, em virtude da escolha e do status de seus

membros deixa claro que a natureza do Conseil é política e não jurisdicional. Em 1920 a

Constituição Austríaca materializou a idéia de Hans Kelsen, dando ensejo ao controle judicial

concentrado de constitucionalidade em um só órgão criado com esse fim específico, a Corte

Constitucional. A Constituição italiana é um dos exemplos que também oferecem um controle

político, mas diferentemente da francesa, há previsão de controle judicial, confiado à Corte

Constitucional.

A Constituição norte-americana foi a que deu início à época do “constitucionalismo”,

com a concepção da supremacia das normas constitucionais sobre as leis ordinárias,

apresentando-se como uma Constituição rígida, contraposta àquelas flexíveis, como ocorre

com a Constituição inglesa, aceitando o controle difuso, no qual todos os juízes inferiores e

superiores possuem a competência para declarar a inconstitucionalidade de uma norma

80

infraconstitucional, ficando a última palavra reservada às Cortes Superiores e, no caso dos

Estados Unidos, a Supreme Court Federal.

As críticas ao sistema de controle de constitucionalidade político fundam-se na

experiência de que tal controle se baseia muito mais em um juízo de conveniência do que em

respaldo técnico. Por outro lado, um dos inconvenientes, apontados à atribuição do controle

judicial concentrado, está na formação de juízes de carreira que ingressam jovens na

magistratura e, só depois de demonstrar fundada habilidade no trabalho de interpretar as leis,

chegam às funções ligadas à atividade das Cortes Supremas, sempre por intermédio de

indicação, possibilitando a criação de uma “judiciocracia” ou um “Governo de juízes”, uma

vez que a Suprema Corte atua como uma terceira câmara legislativa, já que uniformiza a

interpretação das normas e sua aplicação.

Além das dificuldades dos sistemas políticos e judiciais de controle de normas, o Poder

Judiciário ainda enfrenta problemas administrativos que comprometem sua eficiência. Dentre

as inúmeras causas apontadas como razões de ineficiência administrativa dos Tribunais

Superiores que originaram as Emendas Constitucionais visando à reforma do Judiciário, tem-

se a constitucionalização de inúmeros temas novos, que propiciaram, a um só tempo, o

ingresso no STF de infindáveis assuntos e a multiplicação de demandas idênticas no pedido e

no fundamento, a visível e profunda queda da qualidade da legislação federal, a excessiva

morosidade no trâmite de processos, agravada pelo número reduzido de servidores e juízes,

em face da necessidade imposta pelo excesso no número de processos em trâmite nas varas

judiciais, o que gera descumprimento de prazos, além da falta de interesse de alguns dos

titulares nas respectivas comarcas.

A mencionada Emenda Constitucional nº. 45/2004 tenta combater algumas das críticas

ao sistema de controle de constitucionalidade judicial, uma vez que tende a agilizar o

andamento dos processos perante o Judiciário, além de manter a segurança jurídica na

uniformização de decisões. Entretanto verificou-se que, dependendo da sua utilização pelos

Tribunais Superiores, poderá ocasionar a transformação do juiz de primeira instância em mero

repetidor de decisões prolatadas. Além disso, a Emenda manteve a exclusão do Município em

questionar a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula vinculante, uma vez que o art.

103-A, § 2º da Constituição Federal, determina que tal procedimento só possa ser provocado

pelos legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade, excluindo este Ente Federal.

81

Em virtude das falhas do art. 102, I, “a” e 103 da Carta Magna, no qual há exclusão do

Município em participar das ações constitucionais dirigidas aos entes da Federação, foi feito

um levantamento sobre as origens do Município brasileiro, no capítulo quarto, desde a sua

formação em 1822, quando funcionavam como ponta-de-lança para penetração do território

da colônia brasileira, servindo como afirmação da Coroa portuguesa. Representavam uma

congregação de pequenas sociedades com um centro comercial e, contrariamente do que

ocorreu na Europa, a base do Município brasileiro não é a cidade, mas a propriedade rural,

surgindo o sistema social das fazendas, caracterizadas por estruturas feudais autoritárias.

Somente com o artigo 18 da Constituição Federal de 1988, foi que, pela primeira vez,

elevou-se oficialmente o Município a ente da Federação. No que se refere ao controle de

constitucionalidade das normas, se houver divergência entre lei municipal e a Constituição

Estadual, em última instância, o controle difuso será de competência do Tribunal de Justiça, a

não ser nos casos de reprodução obrigatória, em que caberá recurso extraordinário para o

STF, devendo ser o mesmo dispositivo aplicado, se houver divergência entre lei municipal e a

Constituição Federal.

Em relação ao controle concentrado, se a divergência ocorrer entre lei municipal e a

Constituição Estadual, independente de ser norma de repetição facultativa ou obrigatória, a

competência sempre será do Tribunal de Justiça. O problema ocorre quando o controle

concentrado tem como objeto a divergência entre lei municipal e a Constituição Federal, uma

vez que o art. 102, I, “a”, não outorga competência ao STF para tomar esta decisão.

Neste ínterim, surge a ação de descumprimento de preceito fundamental - ADPF, que

tem servido, conforme se verificou no capítulo quinto, para dirimir questões constitucionais

relevantes, como a que se apresenta no controle de constitucionalidade concentrado de normas

municipais ante a Constituição Federal. O problema decorre do objeto da ADPF, que se

resume ao descumprimento, desrespeito ou inobservância dos preceitos fundamentais, não

havendo que se atacar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de normas por este

instituto. Isso se confirma na ADPF 72, quando o Supremo Tribunal Federal admitiu o

recebimento da argüição como ação direta de inconstitucionalidade genérica, tão somente em

virtude do seu caráter subsidiário, descartando, portanto, este tipo de ação como sendo uma

substituta da ADIN, no caso da falta da legislação constitucional.

82

A Lei nº 9.882/99, que regulamenta a ADPF, não deixa claro de que forma e nem

quando a argüição deverá ser aceita pela Suprema Corte, não dirimindo as dúvidas em relação

ao conceito de preceito fundamental, que ficará ao critério de interpretação do Tribunal,

conforme decisão proferida na ADPF 1, além de também deixar à margem interpretativa os

critérios de recebimento da ação, em virtude da análise pelo STF, que, obedecendo ao

princípio da subsidiariedade, deverá analisar não somente se há outros meios para sanar a

lesividade do ato, como ocorreu na ADPF 17, mas também, se estes outros meios são eficazes

ou não, do que dependerá o recebimento da ação, conforme decidido na ADPF 3.

Por conseguinte, o art. 2º, inciso I da Lei nº 9.882/99, trata da titularidade da ação de

argüição, mantendo a regra tradicional da Constituição, restringindo o Município a participar

incidentalmente nas ações que lhe interessam, e limitando a participação do cidadão aos atos

discricionários do Procurador da República (através da aceitação da representação) ou do

Relator do processo (no caso de solicitação de amicus curiae).

Além disso, a Lei possibilita que a ADPF seja utilizada em discussão sobre a

compatibilidade entre a nova Constituição e as normas infraconstitucionais anteriores, cuja

incompatibilidade deveria ser solucionada pelas regras de direito intertemporal, conforme

entendimento já firmado pelo STF, em que a questão deve ser resolvida pelo fenômeno da

recepção. Por fim, a legislação é tão temerosa em relação às decisões proferidas pelo Supremo

em ADPF, uma vez que todos os conceitos basilares para aceitação da argüição estão

completamente ao critério de interpretação do Tribunal, que chega a abrir ponderação sobre o

alcance da decisão, a fim de evitar conseqüências demasiadamente gravosas da declaração.

Como se percebe, o problema da representação do Município nas ações de controle

concentrado, conforme apontado o art. 102, I, “a”, não foi solucionado pela ADPF, nem pela

Lei nº 9.882/99, que, ao contrário, trouxe maior desconforto ao trabalho a ser realizado pelo

Supremo Tribunal Federal, uma vez que agora conta com uma ação que, na prática, só poderá

ser aplicada através da interpretação da Corte em cada caso a ser considerado, o que deixa

uma margem discricionária de extrema relevância para o Poder Judiciário. Tal poder

discricionário de aplicação e interpretação, combinado com as reformas introduzidas pela EC

nº 45, transformando suas decisões em normas judiciais, podem levar o Supremo a elaboração

do trabalho do legislador político, função não outorgada pela Constituição, o que pode expor

suas decisões à acusação, como já ocorreu historicamente, de ditadura judicial ou pior, a de

que o Tribunal passou a ser mero chancelador dos atos dos Poderes Legislativo e Executivo.

83

Verifica-se, portanto, que a Lei 9.882/99 não está apta constitucionalmente a sanar os

danos causados em virtude da falha no art. 102, I, “a”, da Constituição Federal, uma vez que

não alberga, em seu objeto, o controle de constitucionalidade de norma, não podendo

modificar o dispositivo da Constituição, uma vez que não tem força de emenda constitucional.

Devendo ser declarada sua inconstitucionalidade, nos termos em que foi apresentado neste

trabalho, pela insegurança jurídica com que se apresenta, permanecendo o Município sem o

devido tratamento constitucional, como Ente da Federação, pelo legislador ordinário.

Além disso, a interpretação do que é preceito fundamental, através da ADPF, em virtude

até mesmo das restrições ao cidadão na legitimidade para argüição, deve ser a que mais

aproxime o Poder Judiciário dos reais anseios da população, sob pena de se criar uma

verdadeira ditadura jurisdicional através de decisões preferidas pelo Supremo, uma vez que a

decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido é irrecorrível, não podendo ser

objeto de ação rescisória, cabendo apenas reclamação contra o descumprimento da decisão

proferida, na forma do seu regimento interno.

Neste caso, há duas opções que se apresentam aos juízes diante dos conflitos sociais de

massa, sendo o primeiro deles a de que os magistrados poderiam simplesmente recusar-se a

entrar nos conflitos não previstos na Constituição Federal, excluindo do Judiciário certos

posicionamentos, ou, optar pelas novas e preementes aspirações que os tornam protetores do

direito, e mantenedores do equilíbrio do sistema de normas.

Tal responsabilidade fica evidenciada pelo Ministro Relator Ricardo Lewandowisk, da

ADPF 134, ainda em trâmite, proposta pelo Partido dos Trabalhadores - PT, com o objetivo

de retirar a isonomia concedida aos profissionais da Saúde da Prefeitura de Fortaleza,

consubstanciada em decisões judiciais das Justiças do Trabalho e Comum Estadual do Estado

do Ceará, algumas inclusive com trânsito em julgado. O questionamento ante os dispositivos

constitucionais recebeu inúmeras petições requerendo a qualificação de amicus curiae,

inclusive do Partido Socialismo e Liberdade – PSOL e do Partido da República - PR,

oposições políticas ao requerente, demonstrando-se que a argüição passou a servir como

medição de forças políticas da questão, o que deixa a seara meramente judicial. E o desfecho

para dirimir a dúvida causada em virtude da inércia do legislador, foi colocado sob

responsabilidade do Judiciário, como ocorreu ao longo da história da Suprema Corte, ou seja,

a de posivelmente prolatar uma decisão que pode contrariar anseios da população, retirando

84

do Poder Executivo a responsabilidade pela execução de normas não aplicadas em virtude de

conveniência política, principalmente em véspera de eleições.

Ressalvando o caráter jurisdicional e afastando a interpretação essencialmente política

das normas constitucionais, o Ministro Relator Ricardo Lewandowisk concluiu pelo

arquivamento da ADPF, alegando que outros meios judiciais eficazes deveriam ser esgotados,

abrindo-se a possibilidade de ingresso em outros tipos de ações judiciais com objeto e

legitimidade mais amplos, respeitando-se a interpretação da maioria da doutrina pelo

princípio da subsidiariedade – o que denota a posição legalista do Supremo. Demonstrou

ainda o respeito pela segurança jurídica, uma vez que a matéria em questão desconstituiria

coisa julgada, pois a ação baseia-se em norma que não se encontra mais em vigência, o que a

tornou, portanto, prejudicada, denotando o posicionamento do Supremo em consonância com

as decisões firmadas anteriormente, não se deixando influenciar pelo momento político do

questionamento.

Assegurou, dessa maneira, o Ministro Lewandowisk que os servidores públicos

municipais continuem com o direito de se defender diretamente através de outros dispositivos

legais, o direito à isonomia e ao piso salarial por categoria, já concedido pelo Poder

Judiciário, em face de interesses políticos escusos e manipulados, que se consubstanciam na

legitimação dada por uma lei que, ao mesmo tempo, exclui aqueles que possuem a soberania

popular responsável pela efetivação do Estado Democrático de Direito, e a quem interessa

diretamente a decisão a ser proferida.

Falta legislação constitucional para incluir a legitimidade do Município em ação de

controle concentrado de constitucionalidade,visto que a ADPF não pode ser aplicada para

suprir tal silêncio constitucional. Além disso, as decisões proferidas na argüição deverão ser

tomadas com extrema cautela pelos efeitos que emanam, a fim de que o Poder Judiciário

permaneça protegido das influências políticas e partidárias, mantendo-se como o poder pleno

de interpretação em nome do Estado Democrático.

Assim, a efetivação da representatividade do Município em ações no controle de

constitucionalidade concentrado permanece pendente de emenda constitucional, não podendo

o objeto da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental ser utilizado como meio de

sanar a falha do legislador constitucional. Além disso, a legislação que trata da argüição

requer o aprimoramento de seus conceitos através da interpretação do Supremo Tribunal

85

Federal, que, para não incorrer no erro de proferir decisões meramente políticas e distantes

dos anseios reais da população, não pode firmar-se nas instâncias de valor encontradas

somente na ciência política ou nas decisões meramente procrastinatórias dos interesses do

Legislativo ou do Executivo, pois não se pode falar em direito sem justiça e legitimidade,

porque toda vez que se afirma que a justiça não é possível, tenta legitimar-se a injustiça que se

causa, desvirtuando-se a finalidade das instituições, tentando justificar-se a sua ineficiência.

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