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CASA TOMADA CONVIVêNCIAS # 3

Convivências #3

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Convivências é uma publicação semestral da Casa Tomada que aborda o processo do programa de residência artística da Casa - Ateliê Aberto- e conta com textos sobre os participantes, imagens dos processos, depoimentos dos visitantes que os projetos receberam, além dos trabalhos produzidos pelos pesquisadores do Ateliê Aberto

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Page 1: Convivências #3

casa tomadaconvivências #3

Page 2: Convivências #3

isto não é uma pesquisa. por ana elisa e paula*

comportei-me como se houvessem duas posições simultâneas e bem separadas uma da outra, no interior do mesmo espaço:

a do pesquisador e a do artista. mas omiti que, de um ao outro, um liame sutil, instável, ao mesmo tempo insistente

e incerto, estava assinalado. e estava assinalado pela palavra "isto". é preciso, portanto, admitir entre a pesquisa

e a arte toda uma série de cruzamentos; ou, antes, de um ao outro, ataques lançados, flechas atiradas contra o alvo

adverso, trabalhos que solapam e destroem, golpes de lança e feridas, uma batalha. por exemplo: "isto" (esta publicação

que vocês estão lendo, cuja forma sem dúvida reconhecem e do qual acabo de desatar os liames caligráficos) "não

é" (não é substancialmente ligado a..., não é constituído por..., não recobre a mesma matéria que...) "uma pesquisa"

(quer dizer, essa palavra pertencente a sua linguagem, feita de sonoridades que você pode pronunciar e cujas letras que

você lê neste momento traduzem). isto não é uma pesquisa pode, portanto, ser lido assim:

isto é arte.

*ana elisa carramaschi e paula borghi participaram como pesquisadoras do ateliê aberto #3

Page 3: Convivências #3

casa tomadaconvivências #3

isto não é uma pesquisa. por ana elisa e paula*

comportei-me como se houvessem duas posições simultâneas e bem separadas uma da outra, no interior do mesmo espaço:

a do pesquisador e a do artista. mas omiti que, de um ao outro, um liame sutil, instável, ao mesmo tempo insistente

e incerto, estava assinalado. e estava assinalado pela palavra "isto". é preciso, portanto, admitir entre a pesquisa

e a arte toda uma série de cruzamentos; ou, antes, de um ao outro, ataques lançados, flechas atiradas contra o alvo

adverso, trabalhos que solapam e destroem, golpes de lança e feridas, uma batalha. por exemplo: "isto" (esta publicação

que vocês estão lendo, cuja forma sem dúvida reconhecem e do qual acabo de desatar os liames caligráficos) "não

é" (não é substancialmente ligado a..., não é constituído por..., não recobre a mesma matéria que...) "uma pesquisa"

(quer dizer, essa palavra pertencente a sua linguagem, feita de sonoridades que você pode pronunciar e cujas letras que

você lê neste momento traduzem). isto não é uma pesquisa pode, portanto, ser lido assim:

isto é arte.

*ana elisa carramaschi e paula borghi participaram como pesquisadoras do ateliê aberto #3

Page 4: Convivências #3

INTRODUçãO (Paula)

Sinto como se houvesse uma

impossibilidade em dizer o que está

acontecendo de imediato, pois mesmo

o mais ágil locutor precisa que a ação

aconteça primeiro para depois fazer

a locução, da mesma maneira que o

tradutor precisa antes da locução para

então traduzi-la, e assim por diante...

Isto é, há sempre um tempo e um espaço

entre uma fala e outra.

Portanto, é muito difícil “falar” de algo

que ainda está em desenvolvimento,

visto que a publicação é lançada

concomitantemente com a exposição

e que ainda estamos em convivência,

em laboratório. Desta maneira, dos 4

textos que apresento, apenas Da janela

faz reflexão ao trabalho específico Todos

os Livros Na Biblioteca, Na Janela, de Rita

Soromenho. Este trabalho, infelizmente

não se encontra em exposição, embora

tenha sido desenvolvido durante o Ateliê

Aberto #3 e como um site specific para a

Casa Tomada. Quanto aos outros textos,

de uma maneira ou outra, são frutos de

uma construção em conjunto.

Os textos FROM : TO e CUT up são

conversas que tive com os artistas Arthur

Tuoto e Alexandre B., respectivamente,

com cada um de uma maneira; a fim de

tornar palpável suas pesquisas. Em

FROM : TO o texto se desenvolveu

através de uma troca de e-mails, visto

que grande parte da pesquisa de Arthur

acontece on-line. Com Alexandre foi

Todos os Livros Na Biblioteca, Na Janela, de Rita Soromenho

diferente, pois a forma com que ele

trabalha é outra, mais íntima; assim o

texto se desenvolveu a partir de uma

conversa propriamente dita. Já o texto

Projeto Experimenta! Ou El Dorado é

resultado de um projeto feito a seis

mãos, com Mavi Veloso, Arthur Tuoto e

eu, porém escrito a duas.

Entendo minha participação nesta

publicação como uma das possibilidades

em dividir um pouco de minha

experiência, pois além de precisar de um

distanciamento (tempo e espaço),

acredito que existam coisas que só podem ser exprimidas a partir da própria experiência, pois o próprio pensar em arte já é uma experiência de arte.

Então pergunto, qual a diferença entre

ser um pesquisador e ser um artista, tendo

em vista que todo artista é um pesquisador?

da jaNelaA cultura não é um OBJETO de estudo,

mas gera objetos a serem estudados.

Qual seria a melhor maneira de

conhecer uma cultura senão vivendo-a?

Há aproximadamente um mês e meio

a artista portuguesa Rita Soromenho

reside no Brasil; aqui aprendeu a comer

goiabada e pão de queijo, a se perder e a

se achar, a falar outro tipo de português e

a recusar-se a comprar um casaco porque

o Brasil é um país tropical, mesmo com

uma temperatura de 19 graus.

Entretanto, há outras maneiras de

atingir o conhecimento, como por

exemplo através dos livros; estruturas

sólidas capazes de tornar palpável os

pensamentos, as ideias e as vivências.

Poder-se-ia então dizer que os livros são

objetos provenientes de uma prática de

conhecimento e que geram também

conhecimento? E que quando não vividos

são apenas objetos sólidos?

Quando Rita nos apresenta Todos

os Livros Na Biblioteca, Na Janela ela se

apropria de todos os livros da biblioteca

da Casa Tomada como um objeto, mas

antes os vive. Para a construção do

trabalho, a artista passa por uma prática:

a de empilhar, de construir e de erguer

uma estrutura densa.

Assim, Rita ergue uma “janela de

livros” na frente de uma janela de vidro,

criando uma janela de pensamentos.

Uma janela que nos convida a abri-la, a

retirar um livro de cada vez e vivenciá-lo.

Uma janela de objetos transcendentes.

paula borghiPaula Borghi, 1986, vive e trabalha em São Paulo. Bacharelado em Educação Artística e Habilitação em Artes

Plásticas, FAAP, orientada pela Dra. Christine Mello. Seu trabalho mais recente foi a residência como pesquisadora

no Ateliê Aberto #3 da Casa Tomada. Integra o grupo COMO e beco da arte. Como curadora, realizou a individual

da artista Renata Egreja (2010), tem uma exposição agendada para março de 2011 no Memorial Meyer Filho,

Florianópolis, e participou do projeto Expomus – Novos Curadores. Enquanto artista, tem como destaque as

seguintes exposições: 2°MIP Belho Horizonte (2009), 5ª Mostra de Vídeo da FASM (2009), 40° Anual de Artes

da FAAP (2008/2009) e 32° Salão de Arte de Ribeirão Preto- SARP (2007). Também já foi assistente de Eduardo

Brandão na Galeria Vermelho (2009/2010), estagiária da curadoria do Centro Cultural São Paulo – CCSP

(2008/2009) e  assistente da curadora Ana Paula Cohen no Projeto Istmo - arquivo flexível (2005).

Page 5: Convivências #3

casa tomadaconvivências #3

fROm : TOOn 10/4/10, Paula Borghi <pahpaula@

hotmail.com> wrote: Então, aproveitando

que estamos viajando gostaria de iniciar

nosso ciclo de conversar virtuais. Uma

vez você me falou que conheceu sua

namorada pela internet. 

Fico pensando, você a conheceu

através de uma imagem eletrônica,

queria saber um pouco como isso

aconteceu, entender melhor esta

natureza eletrônica. 

Você poderia falar um pouco sobre

isso?

Date: Thu, 14 Oct 2010 11:16:22 -0300

From: [email protected]

To: [email protected]

Consegui roubar internet do vizinho,

então aí vai, vou tentar responder tudo

bem intuitivamente.

Na verdade eu nunca tinha pensando

muito nisso, mas de fato a nossa relação

se iniciou ‘virtualmente’, ou ‘digitalmente’,

seja por imagem/chat, seja por telefone/

skype, etc. E é claro que no mundo digital

esse processo de encantamento é sempre

muito forte, justamente porque existe

toda uma idealização do outro (caso que

faz com que vários casais se encontrem

na net talvez). E logo depois do primeiro

encontro, quando existe a realidade, esse

encantamento até aumenta, na espera do

próximo encontro e consequentemente

na alimentação desse ‘ideal’. Na verdade

no meu caso não sei se isso um dia

terminou, acho que foi mudando, indo

pra outras áreas da minha psique (e de

alguma forma o meu trabalho mostra

isso), ela sempre esteve presente no meu

cotidiano desde então de uma maneira

quase orgânica, desde que nos falávamos

pela internet até quando fomos morar

juntos, alguns vídeos que talvez mostrem

melhor essa ‘cronologia do afeto’:

Em Tainah, 2008 (www.arthurtuoto.

com), uma espécie de haikai digital,

que acredito explora bem esse

encantamento, ainda que ‘discreto’ de

alguma forma, essa ‘explosão silenciosa’.

Além de ser um dos primeiros vídeos que

trata dessa potencialização do gesto no

meu trabalho, ela estava simplesmente

olhando pela janela, eu notei uma luz

especial entrando, tinha uma câmera

fotográfica do meu lado, eu liguei a

câmera no modo filmagem e gravei. O

vídeo tem exatamente 1 minuto, que é o

tempo limite da memória para filmar (era

uma câmera digital antiga).

I See You, 2008 (www.arthurtuoto.

com) surgiu do nosso primeiro encontro

pessoalmente, eu gravava e ela não

sabia que a câmera estava ligada. É

um flagrante dessa coisa intensa do

encontrar pela primeira vez etc.

Corpse #5 (vimeo.com/1419372) é parte

de uma instalação coletiva em vídeo, um

pouco desse nosso transitar constante

que foi a primeira fase do relacionamento

talvez... Acho que o único vídeo mais

“encomendado”, talvez por isso ele é o

menos funcional.

O vídeo Em Setembro, 2010 (www.

arthurtuoto.com) é o super-8 que você

já viu, que de certa forma reitera aquela

ideia do gesto e da delicadeza material.

Nem sei se era pra eu estar falando

desses trabalhos aqui, mas eles são

provavelmente o que melhor espelham

a minha imagem dela, em especial

desse encantamento por ela, que

acredito nunca termina mas vai só

se transmutando em outras formas,

outras possibilidades de olhar, e etc etc.

No trabalho acadêmico dela também

existe essa busca pelo olhar e por novas

possibilidades dentro disso, e como o

processo dela é a pesquisa, e o meu é o

“fazer artístico”, acho que os vídeos são o

meu melhor resultado disso tudo.

Mas teria muito mais pra pensar dentro

disso. Eu gosto desses vídeos com ela

mas não considero, digamos, o principal

do meu trabalho, são mais vislumbres

que eu gosto de registrar e acredito que

tenham uma força afetiva legítima e por

isso mesmo essa potência. E são coisas que

surgem muito naturalmente de qualquer

forma, nunca planejei fazer um filme com

ela, ou mesmo filmar ela e essa imagem

dela, acontece de ter uma câmera ao lado

e eu filmo sem pretensão ou sem saber

exatamente aonde vou usar aquilo. Na

verdade ela ainda está presente mesmo

nos filmes mais “sérios” (várias aspas aí),

como por exemplo no diálogo entre nós

sobre o caso Isabela naquele filme que

você viu, só que lá é mais uma partilha

social/política (coisa que temos muito) do

que de fato um encantamento afetivo.

Mas ainda assim, diz muito sobre essas

mudanças e permanências do meu olhar

sobre nós e o que nos circula.

Mas acho que bem basicamente é

isso, se eu pensar em alguma outra coisa

te mando.

On 2010/10/14 Paula Borghi <pahpaula@

hotmail.com> wrote: Engraçado você

dizer que nunca havia pensado nisso! 

Quando vejo seus vídeos

(principalmente os com a Tainah) para

leitura de portfólio

Ao longo do processo de residência do Ateliê Aberto #3,

sentiu-se a necessidade de fazer leituras dos portfólios dos

artistas e pesquisadores abertas a todos os participantes

para que, assim, conhecessem mais a fundo as produções

uns dos outros. Para isso, convidamos os curadores Marcio

Harum, Josué Mattos e Yasmina Reggad.

Frame do vídeo Fábula de um esquecimento, de Arthur Tuoto

Page 6: Convivências #3

isadora ferrazIsadora Ferraz, vive e trabalha em São Paulo. É graduada em Artes Visuais, pelo Centro Universitário Belas Artes de São

Paulo. Atualmente desenvolve sua pesquisa em torno do desenho, da pintura e da performance, privilegiando os diferentes

elementos envolvidos no processo de criação. Participa do grupo Cavuca voltado para procedimentos de intervenção

nos desenhos e gravuras dos outros integrantes. Frequentou cursos e ateliês como: gravura com Paulo Penna e Técnicas

Experimentais com Helena Freddi , Ateliê Livre de Gravura com Alex Cerveny e o curso de monotipia com Dudi Maia Rosa .

Teve trabalhos publicados em livros e revistas, dentre eles Partilha (Prêmio PAC-2008) de Gabriel Rath Kolyniak, Notas.Atos.

Gestos de Silvio Ferraz e Revista MININAS (2006). Em 2008 foi assistente de Alex Cerveny na exposição Correspondência Nasca

e realizou a performance Caduceu de Rafael Nunes. Participou das coletivas IV Salão da Casa da Xiclet Salão da Piscina (SP) e

coletiva Nossos Olhares realizada na Galeria 13 do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.

mim fica muito claro o encantamento

através da imagem. 

Acho que o mesmo acontece com

outras personagens de seus vídeos, claro

com uma intensidade outra. 

Você já pensou na imagem

videográfica como um meio de você

criar “contato”? 

Um contato com esta imagem anô.

nima, sabe?

Por exemplo, pensando no vídeo I See

You, você grava sem avisá-la que a câmera

estava ligada e usa a palavra flagrante para

descrever este momento.

De uma maneira completamente

outra você faz a mesma coisa em Corpo-

Delito, 2010.

São flagrantes completamente

diferentes! Mas tem algo que

aproxima os dois. 

Claro, o encantamento pode acontecer

tanto por uma imagem de amor, como

por uma imagem de um assassinato (ou

até mesmo guerra, lembrando dos vídeos

que você me mostrou da guerra do

Iraque). Você pode falar um pouco disso,

do contato e do encantamento.

Date: Fri, 15 Oct 2010 14:07:04 -0200

From: [email protected]

To: [email protected]

A questão do encantamento/fascínio

eu já havia pensado sim, sempre penso.

Digo que nunca havia pensado nessa

coisa da imagem eletrônica da Tainah ser

o meio pelo qual eu primeiro a conheci, e

como, ou se, isso influenciou os vídeos e

o meu olhar, etc.

Aliás, essa questão do encantamento é

algo que se dá muito pelo meio eletrônico

mesmo em alguns casos, ou pelo menos

vai se materializar de fato no meio

eletrônico. Sejam as coisas “reais” filmadas

(Tainah, homem inconsciente na calçada),

sejam as coisas filmadas da Tv, como no

Transcomunicação, que você já viu, que

o fascínio em si se dá pela inconstância/

materialidade de um sinal televisivo e,

talvez, nossa relação de espectador com

aquilo e toda a política do olhar que está

invariavelmente atrelada a isso.

Engraçado você usar a palavra

Contato, um termo que já usei em alguns

textos sobre outros trabalhos e que

de certa forma se adequaria ao meu é

“Videografias de Contato”. Não deixa

de ser um contato anônimo também,

subversivo também, porque quem trava

o contato talvez seja só eu, o homem

inconsciente na calçada, aqueles ao redor,

mesmo a Tainah, são filmados sem saber.

Mesmo a questão dos diálogos, aquele

entre eu e o meu amigo no Ensaio para

um Vídeo Vigilância, ou com a Tainah

no Corpo Delito, são diálogos que eu

gravei sem eles terem conhecimento,

apropriações “ilegais” talvez. Acho que

tudo isso acontece porque não gosto de

interferir na coisa em si, por exemplo, se

eu descesse na rua e filmasse o corpo do

cara, ou se antes de começar a gravar o

diálogo com meu amigo eu falasse pra

ele que a coisa estaria sendo gravada,

tudo seria diferente. A minha presença

iria interferir nos fatos/conversas, não que

eu já não interfira do jeito que faço, mas

com eles tendo essa noção, alguma coisa

talvez se perderia.

acho que a melhor maneira de você descobrir um ambiente é ficar invisível dentro dele.

É bem a frase do Jem Cohen: “And as

I became invisible, I started to see things

that had once been invisible to me.” A

imersão no ambiente é tanta que você

começa a fazer parte dele e a notar coisas

que antes era invisíveis a você.

On 2010/10/18 Paula Borghi 

<[email protected]> wrote: Nossa

estas suas últimas frases me fizeram

Projeto Experimenta! ou El Dorado

Frames dos vídeos de Arthur Tuoto: Tainah, I See You, Em Setembro e Corpo Delito, respectivamente

Page 7: Convivências #3

casa tomadaconvivências #3

lembrar muito de um livro, Invenção de

Morel, do Aldolfo Bioy, você conhece? 

Pois bem, o narrador está em um

ambiente tão imersivo e busca tanto por

ficar invisível que começa a ver coisas

que antes era invisível a ele. Mas este

começar a “ver coisas” pode também ser

um estado de loucura, não? 

Date: Fri, 22 Oct 2010 15:14:17 -0200

From: [email protected]

To: [email protected]

Então, acho que qualquer obsessão pode

virar loucura né, até por uma paisagem/

imagem. Alguém me disse uma vez

que existe uma coisa chamada “Teoria

da Paisagem”, que é quando você fica

olhando tanto tempo uma mesma

imagem/paisagem que passa a perceber

coisas que antes não percebia ou que

mesmo não estão lá. Aliás, o nome

daquele filme do Roberto Bellini que te

mostrei se chama Teoria da Paisagem, mas

não sei se é exatamente por esse motivo,

tem tudo a ver de qualquer forma. Você

viu esse trecho do Jem Cohen né, Lost

Book Found (www.youtube.com), mostra

bem essa relação de invisibilidade dele

com a cidade proveniente desse estado

imersivo e ainda mais por esse estado

de ‘marginal’ digamos, no sentido de

um indivíduo ignorado pelos outros e

que passa a fazer parte da paisagem. O

melhor modo de conhecer um ambiente

acho que é simplesmente ficar parado e

olhar, mesmo uma cidade, um lugar novo

etc, as pessoas se preocupam tanto em

‘desbravar’ tudo, andam por tudo, que

acabam não vendo nada, acabam não

sendo invadidas por nada, e essa invasão

só acontece na imersão mesmo.

Mas por um lado esse encantamento

todo não pode fugir do controle, se

não vira só mais um dispositivo de

contemplação e pronto, coisa que

acontece com muitas obras (e que já

aconteceu comigo várias vezes também).

Por isso acho que o trabalho mesmo

está em achar um equilíbrio entre esse

fascínio e um conceito quase racional

(político?) sobre esse olhar, ainda que

partindo da intuição... O que sempre leva

bastante tempo, essa ‘descontaminação’

do ambiente, da imagem, pra aí sim poder

trabalhar nela. A própria imagem do cara

inconsciente na calçada, eu filmei em 2007,

mas só agora achei um lugar pra ela ou

estou conseguindo lidar com isso. Porque

se eu fosse trabalhar com ela (e com todas

as imagens) logo que filmo, talvez me

animaria demais com tudo e perdesse o

rumo, já que o meu olhar estaria viciado

pela coisa toda. Por isso sempre existe esse

intervalo saudável, até pra ver se de fato

existe alguma coisa ali ou não.

PROjeTOexperimenta! ou el Dorado

Lembro-me do primeiro encontro dos

residentes do Ateliê Aberto #3 na Casa

Tomada, havia muito pão aquele dia!

Resultado: tivemos pão para a semana toda,

foi uma delícia! Pena que no dia em que

surgiu o projeto Experimenta! ou El Dorado o

pão estava mofado. Pena ou não, foi a partir

deste mofo que surgiu a conversa.

No dia 17 de setembro de 2010,

Mavi Veloso, Arthur Tuoto e eu (Paula

Borghi) estávamos tomando um café e

conversando sobre a vida. Era a segunda

semana de convivência na Casa Tomada

e o ato de tomar café nada mais era

mavi velosoMavi Velosos é natural de Pacaembu e mineiro de sotaque. Graduado em Educação Artística com Licenciatura em Arte

Visual pela UEL – Londrina, tem formação e treinamento em diversas artes corporais e, desde 2007, tem transitado por:

Escola Municipal de Circo; Escola Municipal de dança; Treinamento-Improvisação com Ana Teixeira; Percepção Física com

Alejandro Ahmed e Mariana Romagnani; workshop sobre desenho com Estêvão Haesser e Jorge Bucksdrieker, entre outros.

Entre os trabalhos realizados destacam-se: despétalas repétalas e trampolim pra coração enamorado, Casa de Cultura UEL_

Artes Plásticas, Londrina (2010); Deus é Milionário, cena performática, Semana Acadêmica de Artes Cênicas UEL, Londrina

(2010); PAPECLARKOITICICA, intervenção-performance do Coletivo MANADA , em Londrina (2010); MIP2 apresentação com

BOLHA com Estela Tiemy(2009) e Instalações Efêmeras, como resultado do workshop com Dudude Herrmann, Belo Horizonte;

Contenda, teatro visual, com Jussara Ruas, direção de Margarida Morini Vine, no Sesc Fernando de Noronha, Londrina (2008).

do que uma boa justificativa para nos

conhecermos melhor. Naquele tempo

costumávamos passar horas em volta

da mesa comendo pão, tomando café

e batendo papo. Pois bem, o projeto

Experimenta! ou El Dorado surgiu em uma

dessas tardes, entre um café e outro.

Entre um café e outro, Mavi,

Arthur e eu começávamos nosso projeto,

mesmo sem saber que ele seria um

projeto. No começo era apenas um

motivo para nos conhecermos, que

depois virou o grande e extraordinário

Experimenta! ou El Dorado.

compartilhar o pão é o mesmo que compartilhar ideias; foi assim que tudo surgiu.

Quando nos demos conta da

dimensão do projeto, Arthur começou a

negar sua participação, que aliás é muito

pertinente visto tratar-se de Arthur.

Porém, neste momento já não havia

mais volta; o pão já estava dentro do

pote com tampa vermelha, mofando e

caminhando pela Casa.

Experimenta! ou El Dorado permitia

um canal de interação entre o objeto

“pão” e as pessoas que estavam na Casa,

possibilitava que o “pão” circulasse

conforme a vontade de cada um, e

foi a partir desta liberdade que o pior

aconteceu: misteriosamente, no dia 22

de setembro, o pão sumiu. Foi o fim do

Experimenta! ou El Dorado. Esquema do projeto Experimenta! ou El Dorado

Page 8: Convivências #3

corta a página em quatro e emenda ela.

Ele pega uma outra página, emenda, e

a frase que forma [ele usa]. O que muda

completamente. Nos livros do Burroughs

ele usou isso muito. Em Naked Lunch, que

é incrível... são universos completamen-

te alucinados do cara, e ele ainda envol-

via isso com o universo das drogas. O ca-

ra tomava muita droga, essa era a pro-

posta do livro, buscar essa inconsciência,

um absurdo, no viés das drogas. ¶ PAU-

LA Como uma experiência? ¶ ALEXAN-

DRE Como experiência, e fica bem legal.

Eu tenho uns vídeos dele fazendo isso,

com essa técnica do ‘cut up’. Ele escreve

um texto, recorta as frases e monta ou-

tro texto. Isso é bem legal, é bem do sur-

realismo. Um procedimento dentro dis-

so que você esta falando. Textos ao aca-

so que juntos formam um segundo tex-

to. ¶ PAULA Mas é um acaso meio pro-

gramado também, não? ¶ ALEXANDRE

Querendo ou não é, porque depois ele

tenta organizar o acaso. Para ter uma lei-

tura ele tem que remanejar aquelas fra-

ses, para criar o mínimo de ligação. Que-

rendo ou não, o acaso é um contra-lado.

¶ PAULA Todo o acaso tem uma organi-

zação. ¶ ALEXANDRE É isso que eu fiquei

pensando depois que você falou aquela

parada do caos. Fiquei pensando muito

nisso, até colocando isso dentro das coi-

sas. Dentro desse trabalho que eu tô fa-

zendo aqui na Casa Tomada e de outros

que eu já fiz. O que é engraçado, porque

quando você pensa no caos é uma coisa

que te ultrapassa, e a organização é es-

se corpo que se forma dentro do acaso.

O acaso que possibilita um campo for-

mar os outros corpos; as organizações.

Mas querendo ou não, tudo é caos. O

universo é o caos, a gente como ser hu-

mano que tenta organizar isso, dar um

sentido pras coisas. Porque as coisas não

tem sentido inerente nelas. ¶ PA

ULA

Se

a gente quiser analisar o grau de orga-

nização, ou de caos, podemos falar de

entropia. Mas tudo é contam

inado, por-

que é assim que as coisas surgem

, não?

¶ ALEX

AN

DRE Eu acho, pelo m

enos, na

minha percepção. Porque o cosm

os é

essa coisa, quase um acaso. E isso aca-

ba com a ideia que existe um

a mente

organizadora das coisas. Considerando

que isso não existe, as coisas se formam

por elas mesm

as, você não acha?! É um

encontro de coisas que formam

ou ge-

ram aquilo, onde m

uitas vezes não tem

muita regra. ¶ PA

ULA

Pode-se dizer, en-

tão, que seu trabalho segue mais ou m

e-

nos assim? ¶ A

LEXA

ND

RE Eu acho que

dialoga com isso, querendo ou não, é o

que eu passo com os trabalhos. U

ma coi-

sa que te ultrapassa, que você não con-

segue capturar. Como se você tentasse

capturar uma coisa que sem

pre está te

escapando. Um

a busca de algo sempre

em fuga, fugir disso. A

ideia das maripo-

sas surgiu como um

a armadilha para as

mariposas afim

de capturá-las e não tem

uma lógica, é um

a armadilha super alea-

tória: são objetos. Eu queria, que por al-

gum m

otivo, elas se interessassem por

aqueles objetos. Por algum motivo que

eu não sei e nem me interessa saber qual

é. E isso ultrapassa para a sedução do

objeto, como forma de cultura. Da pra

pensar na gente, seduzido pelos obje-

tos que a gente fabrica. Numa conversa

que a gente teve com o Nino [Cais] aque-

le dia, sobre o cuidado que damos para

essas coisas matérias que a gente cons-

trói, percebi que os objetos são voltados

pra gente, como uma segunda natureza,

e que são super adaptáveis à gente, co-

mo se fossem naturezas que a gente re-

cria para se moldar ao humano. O senti-

do que a gente dá pras coisas. ¶ PAULA

Isso é uma coisa que o Magritte também

tem com os objetos, os signos e a signifi-

cância. Ás vezes você usa objetos que ele

também usa, não? E de uma certa forma,

com uma esperteza mesma, não? ¶ ALE-

XANDRE Eu acho que partilho um pou-

co do imaginário dele, até porque adoro

os trabalhos dele. Pra mim ele é uma in-

fluência bem forte. Por isso mesmo, por

essa reação meio metafísica com os ob-

jetos. Ele consegue ultrapassar o uso co-

mum dos objetos, de uma maneira mui-

to simples. É tudo muito banal nas pin-

turas do Magritte, mas ele consegue de

algum jeito transformar aquilo tudo nu-

ma coisa que é super real, ele usa de uma

naturalidade que até espanta! Ao mes-

mo tempo que é muito simples, ele con-

segue falar de coisas muito complexas

usando elementos que estão “aqui”. Isso

é o que eu acho mais legal no Magritte,

o mais vital dele. Nesse livro tem um tra-

balho onde ele pegou um tira de jornal

e a partir dali ele fez um quadro. Na tira

você vê um cara sentado numa cadeira

e to

do u

m c

enár

io q

ue s

uger

e um

a na

r-

rativ

a e

uma

hist

ória

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LA E

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Page 9: Convivências #3

casa tomadaconvivências #3

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ana elisa carramaschiAna Elisa Carramaschi é paulista, licenciada e Bacharel em Educação Artística pela FAAP e atualmente cursa história

da arte no MIS-SP. Durante os últimos anos desenvolveu paralelamente ao seu trabalho de arte, projetos no mercado

criativo de cinema e publicidade com direção de arte e montagem/edição de vídeo, atividades que fornecem grande

parte do conhecimento técnico que leva para a produção em arte. De 2009 a 2010 integrou o coletivo editorial do Canal

Contemporâneo e nesse período realizou a relatoria para o III Simpósio Internacional de Arte Contemporânea. Está

finalizando seu primeiro curta-metragem, projeto em que realizou o roteiro, co-produção e direção de arte. Seu trabalho

plástico se desenvolve principalmente em fotografia, vídeo e instalação, com um grande interesse na exploração da

imagem e linguagem do corpo. Mantém o desenho e a escrita como prática para construção de projetos e desenvolvimento

conceitual da pesquisa. Valoriza uma formação baseada em múltiplas experiências, traçando um caminho transdisciplinar.

Armadilha para mariposas, de Alexandre B

com um limite, que nesse momento,

acontece a partir de uma data.

O formato que se estabeleceu

nessas conversas com cada artista se

apresenta como e-mails que foram

trocados, e estão reproduzidos da

mesma maneira como aconteceram. Não

pretendi com isso construir materiais

discursivos sobre cada um, pois trata-

se de evidenciar a relação. Foram então

feitos apontamentos que serviram

como entradas e maneiras de entrar em

contato com cada produção.

O interesse pelo processo e pelos

procedimentos é a linha que une tudo

nessa publicação, afim de fazer um

material que seja experimental, propondo

questões, de maneira investigativa.

construirfRagIlIDaDes

(Para Isadora) O primeiro ponto que

questiono sobre seu trabalho é o fato de

colocar seu desenho na parede, mas ele

continua no papel. Você trabalha o site-

aceitei questionar os processos alheios.

Talvez eu procure uma relação

de identidade. Talvez acredite numa

identidade compartilhada ou no espelho

dos outros. E talvez essas propostas

venham a me convencer de que o

indivíduo é algo a ser explorado no

sentido de desconstruir o individualismo.

Pensei em me tornar totalmente

porosa e entrar nas pesquisas alheias

procurando o que me interessa na origem

das representações dos outros, em cada

processo artístico com o qual convivi.

Por muitas vezes procurei o meu

eu aqui. E o meu eu é aquele que se

comunica, que constrói memória,

memória desse processo.

Procurei nos pequenos detalhes da

convivência compreender cada um em

seu processo. E nas pequenas frases

entender os seus porquês. Num processo

meio voyeurístico, procurei anotar

pequenas coisas, recortes de realidades

faladas, pra construir esse trabalho.

Eu tentei encontrar nesses processos,

um processo pra mim, que aqui, foi novo e

diferente de tudo que já fiz. Isso aqui é uma

tentativa de ecoar todos os trabalhos.

Enquanto escrevo, ainda estamos

todos em prática artística, cada um

em sua pesquisa, com limiares tênues

nos separando. É doloroso pensar que

quando as inter/intra relações (as da

troca e as internas a cada trabalho)

começam a se adensar, o processo

chega a um fim. Mas como afirmamos e

reafirmamos muitas vezes nesses meses,

todo o trabalho se resolve no embate

INTRODUçãO(ana elisa)

A princípio não estava interessada em

falar sobre os trabalhos das pessoas.

As pessoas me interessam mais que

tudo. Comecei a residência interessada

em investigar as relações, as interações

no espaço. Fugi durante um tempo de

todos os trabalhos. Eu queria conhecer

personalidades, motivações, energias

que envolvem cada processo.

Interessa-me indagar pelo que move

as pessoas, pelo que faz com que elas se

movam, por vezes, juntas, com que elas

troquem, que elas sejam contagiadas

umas pelas outras. Interessa-me procurar

pela estrutura que se abre ao contágio,

encontrar o que permite a contaminação.

o porquê de cada um, o que nos faz

permanecer no mundo e nos faz querer ser

artista. Interessa-me a pergunta original,

aquela que estamos sempre procurando...

interesso-me pelo processo que transforma, reforma, e muda o entorno.

Talvez eu procure nos outros as minhas

respostas. Devo estar fazendo isso. Faço

porque achei perguntas dentro de mim

em algum momento e achei legítimo

voltar essa pergunta aos outros também.

Voltei num momento para questionar

o meu próprio processo, e como proposta,

specific porém não utiliza a parede como

suporte para o desenho.

Quer dizer, o que está por trás dessa

opção, em manter o desenho no papel?

Sei que seu trabalho tem uma relação

forte com os livros e com os cadernos de

anotações, e essa relação fica explicitada

quando se coloca as próprias páginas dos

cadernos arrancadas expostas na parede.

Mas seria comum fazer o desenho

avançar para a parede, e foi aí que

comecei a me questionar.

Essa ação de arrancar as páginas do

caderno é parecida com a de “quebrar”

com a ideia do livro como algo sagrado

e duradouro. Mantemos com cuidado,

e mesmo assim, o livro continua sendo

comido pelas traças, pelo tempo que

destrói tudo aos poucos.

Você se adianta e destrói os livros

e os cadernos, mas propõe com essa

destruição um novo envolvimento com

os objetos, uma nova relação com esse

material de passagem (o livro é material

de passagem porque dificilmente os

lemos mais de uma vez – somente os mais

Page 10: Convivências #3

alexandre bAlexandre B é natural de Belo Horizonte, e atualmente reside e trabalha na cidade de São Paulo. Formado em

Comunicação Social pela UFMG e Artes Plásticas pela Escola Guignard/ UEMG – (habilitação Desenho e Fotografia),

desenvolve trabalhos que trafegam entre o desenho, vídeos e objetos. Tem participado em festivais e exposições

no Brasil e no exterior, dos quais se destacam: 15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, realizada

na cidade de São Paulo (2005); KunstFilm Biennale Köln  – Bienal de Filmes de Arte de Colônia, Alemanha (2005);

Videodanza BA, Argentina (2006); 10º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (2008); 59º Salão de

Abril, Fortaleza (2008); a coletiva 10+20, na Galeria Emma Thomas, em São Paulo (2010) e as exposições individuais

Entrebranco no Palácio das Artes em Belo Horizonte, Minas Gerais (2006); Ateliê Aberto da Escola Guignard (2010) e

Quando Nada, Museu Universitário de Arte -MUnA, Uberlândia, este em fase de produção para 2011.

queridos – e eles servem como passagem

de memória, cultura e conhecimento de

geração para geração) que não necessita

lidar com a estabilidade das coisas quer

dizer, propõe uma relação em que as

coisas não precisam durar.

Sendo assim, pensamos no olhar

para os livros como algo perene, para

passar a ser um olhar de natureza-morta,

principalmente, como nos motivos

Vanitas. Esta palavra parece ser essencial

nesta compreensão do seu trabalho.

A palavra Vanitas, em latim, significa

“vazio” e tem relação com a passagem

do tempo dando insignificância para a

vida na terra e fala sobre a efemeridade

de coisas ligadas à vaidade.

Quando você cavuca um livro, coloca ali

um espaço vazio. Em um conto de Borges, A

Biblioteca de Babel (1), ele fala da completude

que imaginamos estar expressa nas obras

literárias, como se uma biblioteca que

abarcasse “todos os livros” abarcasse

também a resposta pra todas as coisas:

“Quando se proclamou que a

Biblioteca abarcava todos os livros, a

primeira impressão foi de extravagante

felicidade. Todos os homens sentiram-

se proprietários de um tesouro intacto

e secreto. Não havia problema pessoal

ou mundial cuja eloquente solução

não existisse nalgum hexágono. O

universo estava justificado, o universo

usurpou bruscamente as dimensões

ilimitadas da esperança.”

Ao explicitar esse “vazio” do livro

fazendo neles buracos, você também nos

diz sobre esse espaço do desconhecido, e

que nenhum conhecimento completará.

Entendo também a inversão das

flores como uma reversão de valores.

Sem atrativos por artes funerárias e

caveiras, os desenhos em papel, livros

esburacados e as flores secas e invertidas

lembram a brevidade da vida, a futilidade

de agradar, o envelhecer, a certeza do

apodrecimento, da morte... Quer dizer,

todo o gesto está marcado pela relação

com a efemeridade da vida e com o vazio

que sucede o desaparecimento das coisas.

Porém, no seu processo, não se trata de

ilustrar todas essas questões como os still-

life do norte da Europa nos séculos XVI e

XVII, que ilustravam pelos motivos Vanitas

a passagem do tempo através de uma das

técnicas mais duradouras da história da

arte: a pintura à óleo. Este trabalho durará,

no máximo, até o fim dessa exposição.

Também a performance que você pretende

fazer lida com esta relação com o efêmero.

Voltamos então à questão de arrancar as

folhas do papel e colá-las na parede, com

fita crepe, e não apresentá-las de maneira

regular (que posteriormente se possa retirá-

las dali). Para além de lidar com o mesmo

simbolismo envolvido nos motivos Vanitas,

vejo nesse processo de site-specific uma

necessidade de construir no próprio trabalho

a expressão da fragilidade das coisas.

1- BORGES, Jorge Luis. A Biblioteca de Babel In: ________. Ficções. Porto Alegre: Editora Globo, 1972. 84-94

sobre o DeseNhO e o tempo

(Para Alexandre B) Alê, muitas perguntas

vem à cabeça enquanto te escrevo, mas

a vontade é de não depender da sua

resposta, porque pretendo construir

um material que tenha independência.

De alguma maneira, você é co-autor no

sentido de propulsor das questões as

quais vou me referir.

Co-autor porque vejo o seu processo

e me pergunto o tempo todo: “Porque o

desenho?” e “Porque eu desenho?”. O meu

questionamento dessa prática parte da

observação de seu processo como alguém

que desenha, e questiona esse fazer. 

Penso no seu desenhar como um ato

de resistência do desenho. São questões:

Porque desenhar se posso scannerar,

xerocar, fotografar, imprimir do google?

Como o interesse do seu desenho lida

com relações de modelo e naturalismo, ele

poderia ser resolvido facilmente em outras

técnicas e fico intrigada com a resistência

desse desenho. Ele é parte constituinte

do seu trabalho, e não tem finalidade em

si: é parte de instalações que necessitam

também de outros elementos. 

O desenho, no seu trabalho, tem

importância expressiva menor, compondo-

se em relação a outros objetos como

matéria no espaço, e não como composição

em si. Você alia o desenho a objetos e o

desenho objetualiza-se e ganha dimensão

poética enquanto acesso ao tempo que leva

para o desenho ser feito.

Imagino a instalação vista de longe com

muitos objetos cobertos por mariposas,

então chegamos perto e olhamos pra

mariposa e descobrimos: “é desenho” e

essa afirmação nos leva à um outro tempo,

esse tempo que acontece dentro do ateliê

do artista, e longe do facebook, da tv,

jantares

A cada edição do Ateliê Aberto, a Casa Tomada oferece três

jantares à convidados com diferentes atuações no campo das

artes para que, de forma bastante informal, os participantes

conversem e tenham contato com situações diversas do

circuito. Nesta edição o projeto contou com a participação de

Cacá Rosset, Galeria Mendes Wood e Ana Maria Tavares.

Page 11: Convivências #3

casa tomadaconvivências #3

Jardim do Minotauro, de isadora Ferraz

Imagem do caderno de Alexandre B

do cinema, da rua, de todas as situações

mentais frenéticas e acontecimentos mil.

Penso no seu desenho como um

protesto pelo tempo do desenho. Eu

também protesto pelo mesmo: pelo

tempo do olhar cuidadoso, pelo tempo

da calma, da atenção, de observar até

entender, e da resistência ao nosso tempo. 

E porque perdemos a relação com o

tempo que as coisas levam para serem

feitas, vejo sua escolha por estes objetos

cotidianos e banais, inseridos nesse tempo-

frenético de maneira vulgar, desapercebida,

sendo envoltos por este outro olhar-tempo. 

Essas coisas-eletrodomésticos, coisas

carro, coisas-made-in-china estão perdidas

na órbita do consumo, que circulam pelo

mundo sem que saibamos ao certo de

onde vieram e para onde vão. No cotidiano

atrelamos nosso olhar-vida à elas com a

mesma preocupação que vemos o sol de

todos os dias. Falamos portando de um olhar

que procura revalorizar as coisas, e rebela-se

contra os “modos dominantes de valorização

da atividade humana”, como diz Guattari (1):

“do império de um mercado mundial

que lamina os sistemas particulares de

valor, que coloca num mesmo plano de

equivalência os bens materiais, os bens

culturais, as áreas naturais etc”

Na sua instalação final, imagino a luz,

a montagem, como uma construção que

parece querer devolver o olhar poético pra

esses objetos, e junto, um olhar político

que vê o que se está vendo. Ou seria o

cobrir os objetos com um questionamento:

inexplicáveis objetos de desejo para estes

animais. Ou, a sedução que normalmente

objetos da cultura, objetos de consumo,

feitos para nós, exercem.

Pelo Desenho Soberano

Alê, interessante ler este trecho em

que você diz de que o desenho viveu “à

sombra de outras técnicas”. Tanto a sombra

quanto a companhia de outras técnicas

estão presentes no seu fazer. Penso em

relacionar a sombra à incompletude, àquilo

que remete à ausência, a sombra seria uma

lembrança da coisa que não está ali.

Não questionamos “porque estou

desenhando?”, o desenhar é um ato

absolutamente voluntário, o querer basta.

Mas o que acompanha este querer? Seria

romântico querer resgatar o passado,

mas é absolutamente contemporânea

a discussão sobre as agruras da falta

de tempo. Nesse sentido o tempo do

desenho é desejo nos dias de hoje.

Estou parafraseando um processo com

essas questões, pois não questiono o meu

fazer, mas sim o seu, e assim descubro

coisas sobre o fazer desenho, que pode ser

meu, seu, e de qualquer um que desenha.

A reprodução dessas mariposas

remetem ao tempo que não está ali, que

aparece como sombra, que remonta o

gesto, e constrói os pequenos desenhos.

As mariposas nos objetos também

remontam o gesto gritante das mariposas

atraídas erroneamente pela luz artificial

(elas procuram na verdade, a luz da lua),

mas erroneamente elas estão ali, atraídas

“Você vê o que está vendo?” Será então

o seu desenhar um resgate de uma

atitude mais observadora, que nos traz à

consciência de pensar por quê as coisas

existem e por quê fazemos o que fazemos?

Oi Ana! Que surpresa ótima este texto.

Realmente me despertou questões sobre

o desenho e meu fazer na Casa.

Por que não desenho?

• penso que desenhar pode ser

considerado um sinal de “resistência” em

meio a tantas possibilidades técnicas de

reprodutibilidade, porém acredito que o

desenho tem autonomia, portanto não

seria um sub-gênero nem uma dissidência

relativa a qualquer outra linguagem contra

a qual faria uma oposição. Seria mais

uma possibilidade técnica à disposição.

Podemos algumas vezes pensá-lo como

uma alternativa á monumentalidade

dos formatos, e em diálogo com outras

mídias. De qualquer forma ele é hoje

uma linguagem legítima, assumida como

atividade principal de inúmeros artistas.

• já determinaram a morte da pintura

algumas vezes na história da arte, porém

ela continua viva e dinâmica. O desenho

sempre viveu à sombra de outras técnicas

e nunca teve um reconhecimento que nos

fizesse pensar na importância de sua morte.

Ele sempre viveu como um fantasma, uma

sombra, seja no campo das artes visuais,

seja na arquitetura, no cinema, etc.

• no meu caso, não penso de forma

romântica, como algo que estivesse

resgatando o passado e usando como

forma de enfrentamento às técnicas

hoje. Vejo o desenho possuindo mais que

nunca um frescor, capaz de surpreender

e se adaptar constantemente à

contemporaneidade. Desenho porque

pra mim é natural e chega a ser uma

obsessão pela linguagem.

• em relação ao tempo, acho que o

desenho carrega em si esta carga. É um

fazer muitas vezes relacionado a uma

incompletude, um apontamento constante

a algo sempre por vir. Seu aspecto temporal

se faz ainda mais acentuado quando

comparado às mídias mecânicas, ainda mais

no caso das mariposas, em que me propus

a “reproduzir” estes insetos de papel de

maneira numerosa. Me questionei

diversas vezes antes de começar a

empreitada, em outras possibilidades

técnicas que dialogassem com o desenho

(que o substituiria ou o representasse)

e que me dariam uma certa rapidez no

processo. Mas não consegui escapar ao

desenho “tradicional”, feito à lápis, e

que faria este tempo gritar. O tempo

da feitura, uma artesania da imagem.

No fim fiquei rendido a ele, como as

mariposas que se atraem irracionalmente

pelas lâmpadas. Na tentativa de se criar

armadilhas para estes seres de papel, eu

acabei capturado por elas.

• os desenhos em relação a objetos

cotidianos. O desenho como objeto.

Imagem e suporte se confundindo,

transformando-se numa mesma coisa. O

desenho no papel: qual o limite que define

o desenho (imagem) e o papel (espaço)? O

que determina onde começa um e acaba o

outro? O desenho que de repente deixa o

plano bidimensional se instala no espaço.

O mundo que serve de forma e referência

ao desenho, agora é coberto, tomado por

ele (lembro-me de um conto de Borges em

que havia um reino onde foi construído um

mapa que seria tão fiel ao seu referente,

inclusive em escala, que tomou o lugar

do reino). Dois caminhos que podemos

percorrer, levados pelas mariposas:

objetos que seriam invisíveis por sua

“cotidianeidade”, de repente tornam-se

Page 12: Convivências #3

quase todas as ideias postas à mesa fazem

parte do universo de significação do

artista na busca de entender e resolver seu

trabalho. Na Casa não foi diferente.

Enquanto todos os residentes partiram

para a realização de seus projetos

particulares, você manteve a elaboração de

possibilidades, sempre relacionadas à ideias

trazidas por uma conversa aqui outra acolá.

A proposta que estava sendo levada

adiante era a das Terezas com lençóis,

roupas e panos amarrados e torcidos uns

aos outros, presos à mesa do 3º andar da

Casa, de onde partiriam para espalhar-se

para salas e andares como nervos e/ou veias

arteriais que se amarravam à mesa de jantar

como um ponto umbilical da Casa Tomada.

Isso partia da constatação que a mesa

da cozinha era um ponto nevrálgico de

nossa convivência, alimentando nossas

barrigas e cabeças. Dessa ideia surgiu a

possibilidade do projeto virar performance,

seria pedido para que os visitantes da

exposição doassem roupas, e as Terezas

seriam feitas durante a exposição. Os

visitantes fariam parte então da matéria-

veia de “circulação” da Casa.

Porém, quanto mais os residentes

mergulhavam em seus trabalhos

particulares, mais escassas ficaram

essas conversas em torno dessa

mesa, e enquanto todos os projetos

se encaminhavam, você continuava

interessado em investigar possibilidades.

Várias vezes tentei entender o que você

estava procurando. Em um momento,

perguntei se você procurava por adesão,

porque seus projetos pareciam querer

acontecer enquanto experiência coletiva

e não projeto individual. Mas essa não

parecia ser a resposta.

Repensamos sobre várias conversas,

ideias e proto-ideias. E num momento

você disse: “Aquelas experiências já

aconteceram”. Nesse momento entendi

que sim, que já haviam acontecido e

eram suficiente enquanto experiência

de arte. Fiquei pensando que refazê-las

seria apenas um ato de preencher um

espaço, mas ele de fato estava vazio?

E perguntei: “Você ainda quer fazer as

Terezas”? Você: “Aquela mesa não é mais o

ponto que costumava ser.” Entendi naquele

momento, que pra você, mais importante

que fazer um trabalho era construir uma

experiência que fosse verdadeira. E para

que continuar com o trabalho se a mesa não

é mais a mesa das Terezas?

Mavi: “Quer dizer, o trabalho das Terezas

poderá acontecer, mas se a mesa não tiver

mais aquela potência o trabalho não fará

sentido. Se forem feitas as Terezas como

uma tentativa de recriar ou evidenciar

aquelas relações, estas estarão presentes

na obra em exposição ou será uma outra

coisa que não a experiência? Torna-se um

objeto/obra, mas a experiência da mesa

deixa de existir em detrimento da obra?”

Portanto, recriar a experiência é

forjar? Tantas vezes sentimos que novas

montagens de experiências como de

Oiticica, Matta-Clark, ficam tentando

forjar aquelas experiências, não?

Comecei a me questionar então as

seguintes coisas:

Porque, supostamente, devemos

transformar uma experiência em arte (estar

numa residência artística é uma experiência

de arte, assim como um laboratório de física

é uma experiência em física) em uma nova

experiência de arte? Como, ou pra quê

reformular essa experiência? 

Tentando responder pra mim mesma,

cheguei à novas perguntas: Toda forma de

arte deve ir em algum momento

para uma exposição? Toda forma de

arte deve ser pública?

sImUlaçãO da cidade: reconstrução da aRTe enquanto sistema

(Para Gui) Quando conversamos sobre

a qualidade da palavra obra enquanto

descrição de um trabalho de arte e em

tudo que esta palavra (obra) implica, penso

que seu trabalho pode ser um manifesto

da arte enquanto rede. Sendo a rede,

portal de acesso à informação que está em

todos os lugares (da periferia ao centro), e

a obra, estanque de exclusão (dos lugares

privilegiados, centrais).

André Parente (1) fala que “a rede é a

arthur tuotoArthur Tuoto é de Curitiba e trabalha com vídeo, fotografia e novas mídias. Através de uma obra de intenso trânsito entre

as artes visuais e o cinema, conta com exibições em mais de 50 festivais e exposições no Brasil e ao redor do mundo,

destacando: aluCine Latin Media Festival (Canadá), Festival Internacional de Curtas-Metragens-São Paulo (Brasil),

DokumentART – European Documentary Film Festiva (Alemanha/Polônia), Exposição Time is Love (Galerie Octobre/

França), Exposição Digital Landscapes (Galeria do TMG/Portugal) e 5ª Bienal Latino-Americana de Artes Visuais Vento Sul

(Brasil). Através de reconfigurações do cotidiano e da memória, Arthur tece uma obra diversificada que inclui videoarte,

vídeo instalação, ficção e documentário experimental. Atualmente desenvolve o projeto Landscape Memory, trabalho

sobre as novas percepções videográficas proporcionado por câmeras digitais, celulares e outros objetos, além dos

possíveis impulsos criativos e debates sobre a política do olhar que estão atrelados a tais dispositivos.

pelos objetos. Remetem à essa agonia

agitada da luz, mas estão ali paradas.

Essa relação absurda, como você diz,

da atração das mariposas pelo opaco, me

faz pensar que a sobreposição do desenho

sobre esse objetos, me diz que apesar das

adversidades do tempo que voa, o desenho

repousa ali suavemente. Sobrepondo-se à

todo movimento descartável, o desenho

repousa suave nos seus objetos, numa

revelação de soberania.

Acho engraçado pensar: Será o

desenho autoridade suprema sobre a

área geográfica “objeto”, ou você deixará

o objeto aparecer? Será o desenho

coabitante esquizofrênico repousando

suave sobre a obsolescência?

1- GUATTARI, Félix. As três ecologias. São Paulo: Papirus, 1990.

produzir ouNãO PRODUzIR?

(Para Mavi) Nos 2 primeiros meses na Casa

Tomada, tivemos conversas intensas, de

cada uma delas surgiam 200 ideias que

poderiam virar 400 projetos. É comum que

dessas conversas saiam trabalhos, primeiro

porque quase tudo pode acabar se

transformando em arte e também porque

Imagem do caderno de Alexandre B

Imagem do caderno de Alexandre B

Page 13: Convivências #3

casa tomadaconvivências #3

imobilidade necessária para recolher o que

deve nela transitar” e resolve a contradição

entre presença e ausência, estando nós

afastados do fenômeno mas próximos à

uma rede de informações que extrai de uma

realidade possível, algum saber. Ele cita Bruno

Latour (2): a informação não é um signo, mas

uma relação estabelecida entre dois lugares,

uma periferia e um centro, sob a condição que

entre eles circule um veículo, uma inscrição.

Porque transformar o mundo em informação?

Porque a informação permite resolver de

forma prática – por meio de operações

de seleção, de extração, de redução e de

inscrição – a contradição entre a presença e

a ausência em um lugar. A informação não é

uma forma no sentido aristotélico, mas uma

relação prática e material entre dois lugares: o

centro negocia com a periferia o que deve ser

produzido para que a ação à distância sobre

ela seja mais eficaz.

Esse pensamento está ligado ao processo

científico de estudo (selecionar, recolher,

isolar, estudar), mas que se aproxima

dos processos contemporâneos com o

que podemos chamar de montagens de

“sistemas”, que muitas vezes se estabelecem

como rede. Artistas sempre precisaram de

outros profissionais para realizar seus projetos,

tenho pensado em como o papel do artista

mudou. Gerenciar um projeto não tem mais

a ver com a relação com as técnicas mas com

um compêndio de atividades que às vezes

são plataformas para o desenvolvimento

de ideias inter/transdisciplinares que geram

condições ideais e ambientes físicos e/

ou virtuais para processos colaborativos.

Acabam sendo microssistemas que refletem o

macrossistema.

Desde a nossa primeira conversa na

exposição do Beuys você se mostrava

interessado em estabelecer a relação

entre o que acontece no Centro com a

Periferia, naquele momento, pensando na

comunicação do que acontece na Casa,

bairro afastado, propondo instalar no centro

da cidade algum tipo de manifestação que

remetesse às nossas atividades.

No desenrolar dos processos que

aconteceram durante as tentativas de

realização dos seus projetos, como num

buraco-negro, que suga qualquer matéria

de suas proximidades, você recolheu

todo material pelo qual cruzou, tecendo

uma teia de informações que deverá se

apresentar no espaço como um sistema

de visualização caótico de sua experiência

numa cidade também caótica. Essa

construção parece querer ser, para além

de uma visão retrospectiva, também uma

rede de informações que remonta as

relações que você travou e as circunstâncias

com as quais cruzou, reproduzindo a

instantaneidade da cidade no ambiente da

Casa, através de um ambiente de imersão

pelo excesso e no acúmulo.

Como você mesmo disse, virou um

trabalho de “organização do espaço e das

relações, que completa um ciclo”, ciclo

que significa que acordos estabelecidos

em outro espaço durante os seus

agenciamentos, deverão se repetir, desde

o mais primitivo até o monetário, trazendo

as “retroalimentações e microssociedades”

como as coisas pulsantes que estão fora da

Casa, para dentro da Casa.

Se este ambiente pretende reorganizar

o espaço da cidade dentro do espaço de

residência, me pergunto, o que surgirá a

partir da convivência nesse espaço?

(1) PARENTE, Andre. Imagens que a razão ignora: imagens de síntese e a rede como novas dimensões comunicacionais. In: Revista Galáxia, São Paulo, v.2, nº4, 113-123, 2002. Idem. p.120

(2) Idem. p 120

desprogramação eRessIgNIfIcaçãO

Arthur, lendo o texto do Flusser que te

mostrei comecei a escrever isso aqui.

Entendo que seu processo tem como

objetivo, a princípio, trabalhar as imagens

em vídeo que investigam flagrantes do

olhar. Num primeiro momento, esse olhar

se volta para flagrantes afetivos, onde

você busca o sensorial como chave para

o olhar. Num segundo momento você

recorre ao estranhamento como chave

para o olhar. Este segundo momento

acontece como flagrantes clandestinos,

que exercem para o olhar uma relação

entre fascínio e trauma.

Você apresenta várias situações: olhar

gui cunhaGui Cunha é mineiro, formado em artes plásticas pela Escola Guignard – UEMG e bolsista pela Pittsate University – KS – EUA. Desde

2001 participa de salões, bienais, exposições coletivas e individuais. Em 2001 abriu a exposição Human condition na Pittsate

University e como artista convidado participou da exposição itinerante AMTRAK/NASA. Foi selecionado para a Bienal da Recôncavo

Baiano em 2004 e 2008. Em 2004 expôs em O corpo revelado na Galeria da CEMIG-BH e é co-fundador do estúdio de fotografia

Mineral Image. Em 2007 participou do FotoRio na exposição Beleza e Poder, exibida no galpão das artes urbanas na cidade do Rio de

Janeiro com sua curadoria. Trabalha como artista visual nas áreas de desenho, videoarte, cinema, performance e fotografia. Como

diretor de fotografia e artista digital já participou de três curta metragens do diretor Fernando Pinheiro, selecionados para mais de

140 festivais em todo mundo. Com a Trama Cia de Dança, onde atua como coordenador de processo criativo, recebeu o prêmio da

Caixa Cultural 2009 (Curitiba) com o espetáculo Pequenas punições diárias em que atua como videoartista.

pra cidade de Curitiba “fechada em

brancura e verde”, para as imagens de

mídia com eventos violentos – históricos

ou de crime – misturadas às imagens

banais, olhar para a distorção, chuvisco

e fantasmas da imagem televisiva com

interferência. Mas além de querer trabalhar

todas essas imagens, existe a necessidade

de alterar os contextos, levando os

fenômenos de massa, as imagens do

espetáculo – da violência ao Big Brother –

para a ideia de antiespetáculo.

Isto porque em todas as situações, o

que lhe vem é a pergunta “Como lidar

com a situação?” e a como resposta

formula-se o gesto de olhar como ato

político: o de testemunhar e apontar.

No texto de Vilém Flusser Fred Forest

ou a destruição dos pontos de vista

estabelecidos (1), ele relata que Forest, ao

filmar uma ação, estaria usando a câmera

como “ferramenta epistemológica, um

instrumento para compreender”. Flusser

narra a seguinte experiência: enquanto

ele explicava a Fred Forest uma tese,

este a filmava. Ambos acompanhavam o

instrumento “câmera” tendo efeito direto

sobre a “coisa a ser compreendida”: o

próprio discurso de Flusser.

“Quando Forest sentia que seu esforço

em compreender modificava minha

explicação, seu propósito modificava-

se mais uma vez”.

Aqui ele vem provar “a maneira como

um material revela suas virtualidades

durante sua manipulação, e a maneira

como um propósito inicial muda sob

o impacto das novas virtualidades

portanto descobertas.” No seu trabalho,

você usa imagens e sons captados

clandestinamente, não há a interação (do

referente) no material a ponto de alterar

o conteúdo que está sendo captado.

Entre Flusser e Forest, havia a

investigação da significação do gesto Imagem do caderno de Mavi Veloso

Page 14: Convivências #3

rita soromenho

pela observação do quanto a interação

com o instrumento alternava palavras

e pensamentos. Já você constrói outra

maneira de buscar a mesma significação

do gesto (do fenômeno, do observador-

câmera, espectador ou daquela pessoa

que vê posteriormente sua conversa

gravada): altera o contexto, perverte

as relações iniciais, co-relaciona outras

imagens e áudios e estes fazem o

fenômeno sair do macropolítico de

“massa” pro micropolítico do “íntimo”.

São diferentes estratégias que buscam

instrumentos (técnicos) para investigar

conteúdos que de alguma maneira estavam

“programados” para acontecer de um jeito,

e que acontecem de outro. O instrumento

que manipula a forma tem efeito direto

sobre a coisa a ser compreendida, que

modifica-se novamente. Ambos os casos

criam novas virtualidades e buscam

novas significações o tempo todo:

desprogramando conteúdos e construindo

a todo momento ressignificações. Vejo aí

a chave antiespetacular. Será esse enfim

o “ato político” o de desprogramação e

ressignificação dos conteúdos?

Ana, gostei das observações, acho

Rita Soromenho nasceu em Lisboa e depois de se licenciar e de uma curta passagem pela produção cinematográfica, mudou-se

para Londres. Em 2007 concluiu o master em Fotografia no LCC, University of the Arts London. Seu processo de trabalho passa

pela experimentação, deambulação urbana e pelo aleatório. Suas obras são frequentemente reflexões sobre espaços e tempos

entre o aqui e o ali, passado e presente, uma coisa ou outra. Exposições selecionadas incluem: 2009 Nem Tanto ao Mar Nem

Tanto a Terra, VPF Cream Art, Lisboa (individual); 2008 New Contemporaries, Liverpool Biennial and London; Anticipation, com

curadoria de Kay Saatchi e Catriona Warren; Chobi Mela International Photography Festival, Daka, Bangladesh; Through The

Lenses, Royal West of England Academy; 2007 Kaunas International Photography Festival, Lithuania. Seu trabalho foi finalista

em Sony World Photography Awards (2009) e IPG Terry O’Neill 2007 Awards (2007), e recentemente publicado na Source

Photographic Review (Spring 2010) e pretence à prestigiosa coleção da Fundação Calouste Gulbenkian (UK).

que você intuiu bem algumas nuances e

questões do meu trabalho. Na verdade

eu estava desenvolvendo um texto

chamado Experiências com o Real (notas

sobre um processo) em que tento divagar

sobre isso usando o texto de uma

psicanalista como base, sobre imagens

de terror, subjetividade e como agregar

tudo isso. E também trabalhos do Chris

Marker, Godard e Jem Cohen.

Entendo essa ressignficação como

uma tentativa de criar um sentido para

essas imagens invasivas. Pensando na

ideia do trauma, como diz a Jô Gondar

citando o Freud, o trauma vem a ser um

problema de economia psíquica. O tom

da experiência excede a tolerância do

sujeito de elaborar ‘psiquicamente’ um

sentido para aquilo. Quando sofremos

uma experiência traumática, repetimos

aquela imagem mentalmente a fim

de agregar aquilo subjetivamente, e

de criar um imaginário próprio para

uma experiência de olhar que excede

qualquer relação associativa possível.

O vídeo aqui entra como tentativa

de integrar esse trauma, de criar esse

imaginário palpável e lidar com isso. E

isso se torna completamente íntimo,

como você bem colocou. É quase como

uma maneira particular de resistir a essas

imagens, que ao mesmo tempo em que

me atraem (simplesmente pelo desejo de

descobrir o quão longe já fomos), a minha

maneira de resistência deve ser essa. Uma

proposta ao mesmo tempo sedutora

(voyeur, o flagrante) mas também uma

denúncia desses imperativos do olhar.

Mas bom, acho que para responder

suas questões preciso ler o texto de Flusser,

enquanto isso tenta ler o da Jô Gondar.

Mas além do dispositivo, vale ressaltar a

questão da montagem, ainda mais quando

se lida com apropriações. Aliás, chama

a atenção o trabalho do Godard nesse

sentido, acredito que em várias montagens

em que ele mistura imagens de arquivo,

fotos e imagens próprias, ele tenta

também integrar subjetivamente toda essa

experiência traumática que é olhar para o

mundo e seu passado, ou simplesmente

estar no mundo em pleno século XXI. Em

especial nesses curtas:

- Jean-Luc Godard: Dans le noir du temps

- Origins of the 21st Century (1/2)

- Origins of the 21st Century (2/2)

E principalmente nesse, que talvez seja

meu filme preferido de todos os tempos.

- Jean-Luc Godard: Je Vous Salue Sarajevo

(1993) (todos em: www.youtube.com)

Aí ele faz uma reflexão sobre a nossa

relação com a cultura de massa. Dá uma

olhada nos vídeos e voltamos a conversar.

(1) FLUSSER, Vilém. Fred Forest ou a destruição dos pontos de vista estabelecidos. In: Ars. São Paulo: vol. 7, nº 13. Jan-Jun, 2009

jOgOs De revelar/bloquear

(Para Rita) Lembrei daquela conversa

que tivemos na biblioteca. No blog, você

fala sobre um revelar: “usar todos os

livros nas prateleiras da biblioteca para

construir uma parede de livros na vitrine

da Casa foi algo a que me propus pouco

depois de iniciar a residência. Pensei

assim revelar o conteúdo, da sala e da

Casa, ao exterior.”

Fiquei pensando em um jogo de

bloquear/revelar. Naquele dia conversamos

sobre imagens de olhos biônicos na vitrine

como engenhocas tubos-de-submarino

projetando-se pra fora da Casa para que o

interior fosse visto pelo passante, e sobre

sua ideia de empilhar livros pela cidade,

fazendo barreiras no caminho das pessoas

na rua ou um convite para a leitura.

Sua intenção na rua parecia querer

estimular uma reação frente ao trabalho,

obstruindo um caminho e obrigando

as pessoas a fazerem outro ou entrar no

embate com a barreira (destruir, ler, furtar,

etc). Parecia interessante uma barreira

de livros, sendo a leitura um percurso e a

parede de muros uma barreira contra um

caminho estabelecido. No processo de

empilhamento na Casa, você faz revelar

uma parte dela, os livros, mas barra o olhar

que atravessa a transparência do vidro.

Depois da leitura de portfólio com a

Yasmina, pensei nos outros trabalhos.

Você nos revela achados de arquitetura

transformados em matéria surreal de

imagem, mostra flores transformadas em

Gui Cunha em atividade proposta pelo artista Nino Cais

Page 15: Convivências #3

casa tomadaconvivências #3

visitas

Como parte do programa de acompanhamento da residência, a Casa Tomada

sempre convida artistas, professores, curadores, para fazerem visitas aos

participantes e trazerem um pouco de sua trajetória pelas artes. Cada visitante,

porém, trouxe além de seu percurso, uma proposta e uma visão diferente para

o grupo. Marcelo Cidade falou sobre a relação de seu trabalho com o espaço

urbano; Flávia Ribeiro construiu um paralelo entre as bienais dos 80 e as de hoje;

Andre Costa mostrou alguns vídeos de artistas no intuito de discutir os aparatos e

dispositivos do vídeo relacionando-os com trabalhos produzidos no Ateliê Aberto

#3; Nino Cais propôs um exercício de colagem, no qual os artistas usaram sua

própria pesquisa como material para a atividade; Rodolpho Parigi falou sobre como

o seu repertório cotidiano o conduz para a criação do seu trabalho; Daniele Marx e

Marcos Sári, do Projeto Meio, conduziram um workshop no qual os participantes

produziram cartazes para serem colados pela cidade; e Alejandra Muñoz comentou

e problematizou os trabalhos que estavam sendo desenvolvidos pelos participantes.

buquês e nos convida a imaginar seus

caminhos. Mas nos bloqueia a visão do seu

percurso. Quando se bloqueia uma visão

apresenta-se outra. Você esconde seus

trajetos e sua poética, parece reconstruir

o acesso a eles, que fazem o espectador

encontrar um caminho pessoal.

Notas (noturno de chopin)

Este novo modo de (des)ordenar as

imagens, este “quebra-cabeças”, lembrou-

me umas anotações que fiz anteriormente

que diziam que o re-agrupar das placas

de vidro é feito de um modo não ego-ista

(‘egotistic’) e não óbvio. Uma poética que

ressona o aleatório surrealista, o criar de

uma nova forma que lida com uma narrativa

antiga. Uma viagem que não pretende ser

ficcional ou simbólica mas que lida com

a superfície e o objeto em detrimento da

informação (em cada imagem original). Esta

Decidi então abandonar as ‘imagens’

em prol dos ‘objetos’. Tornou-se mais

interessante explorar o objeto, o negativo,

a placa de vidro. Todo este processo de

pesquisa e experimentação deu origem

a um questionamento sobre a própria

fotografia e minha relação com ela. O

fato de eu não ter no passado trabalhado

diretamente com a temática da memória,

fez surgir uma série de dúvidas e questões.

O ego, o apego ao passado, a preciosidade

das coisas, a imortalidade... Sontag diz que

“A fotografia que faz do passado um objeto

de consumo representa um atalho. Toda

a coleção de fotografias é um exercício de

montagem surrealista da história”.

Onde se situa então o meu trabalho?

Na encruzilhada entre o acidente

(surrealista) e a (des)construção do

espaço fotográfico, que valor tem o meu

trabalho enquanto prática artística ou

questionamento da fotografia? Lá vem

o ego e as palavras do Flusser: “o canal é

para o fotógrafo um método de torná-lo

imortal e não morrer de fome”.

Ana, vou encontrando as questões à

medida que vou trabalhando. Resolvo

os dilemas através da expressão de

uma sensibilidade que procura teorias e

ideias para se aprofundar. A Filosofia da

Caixa Preta, de Flusser, foi pilar. Quero

acrescentar que a ‘mão’ é importante para

mim, o fazer, o re-arranjar. Não é o clicar

que me move, portanto. O importante não

é se usei uma câmara ou um scanner. Tudo

parece remeter para o contato com os

corpos, para uma nova visão ou modo de

olhar o espaço, o tempo, as coisas.

Novos percursos de imagem, textos

e memória

Acho que você continua fazendo jogos

de bloquear/revelar. Quando você resolveu

se desfazer das imagens para lidar com

os negativos de forma objetual, se livrou

do peso de lidar com uma história que

o tempo todo se relaciona com a sua.

Acho natural que os processos artísticos

esbarrem na história do artista e que todo

trabalho seja um pouco confessional.

Mas tem um tanto de nós que acaba por

coleção ou arquivo fotográfico de viagem,

este álbum de família, é aqui abordado

como um mosaico “composto de grãos,

não de ondas, funcionando como um

quebra-cabeças, como jogo de permutação

entre elementos claros e distintos”. Flusser

define o gesto de fotografar como um

“gesto caçador” que produz fotografias já

programadas na memória do fotógrafo e

do aparelho. A fotografia como “brinquedo,

como as cartas do baralho”.

O meu engajamento com este

material passou também por uma série

de hesitações, mudanças e finalmente

decisões. Depois de longa experimentação

com as imagens, dando o meu sentido

a este material, encontrado num monte

de entulho, percebi que não estava a

fazer sentido para mim. A ideia de ‘tornar

minhas’, de pôr a minha marca nestas

fotografias anônimas, por meio de uma

imposição do meu ego e das minhas

próprias imagens, enquanto universo

simbólico, não parecia ser mais do que um

exercício de confrontação com o eu.

Com Todos os Livros da Biblioteca, na

Janela iniciei uma pesquisa em torno da

passagem do tempo, da meditação, do

inconsciente, do inconsciente coletivo e

do arquétipo (e do Jung).

Sempre me foi familiar o universo

dessas imagens encontradas. Quase

como se eu pudesse ter captado

e enquadrado aqueles mesmos

momentos. Como se tivesse roçando

ombros com o fotógrafo original e

cada um de nós tivesse “caçado”, cada

uma das duas imagens, com ângulos

ligeiramente diferentes, que constituem

cada negativo estereoscópico.

Page 16: Convivências #3

se desfazer em prol do trabalho, numa

busca de um outro eu que transcende

nós mesmos e se apresenta tanto pra nós

quanto para outras pessoas: essa é a carga

simbólica da arte. Talvez por isso tenha

sido difícil se desfazer daquelas imagens:

lidar com essa carga simbólica faz com que

passemos a achar que aquilo nos pertence.

Falávamos para você: destrua os

negativos Rita! E ao se perguntar: “Como

vou lidar com essas imagens, como vou

processá-las?”. E, ao invés de você vaguear

pela cidade para construir aqueles

bloqueios nas ruas (as pilhas de livros que

você imaginava fazer), criou muros com os

negativos e novos percursos em imagem

bidimensional. Essas imagens viraram

então abstração em quarto grau:

Essas “construções” de geometrias

de negativos formam labirintos que

bloqueando a visão total da narrativa

das imagens das placas, revelam novas

narrativas dentro da imagem que

fotografa as formas das placas. Você

reconstrói as dimensões retiradas pela

fotografia (no negativo) em geometrias

na caixa de luz, e abstrai novamente estas

dimensões em imagens bidimensionais.

Temos de novo uma relação com o

vaguear e com a passagem de tempo

na imagem, dada pelo olhar que

percorre aqueles negativos antigos,

e se reconfigura pela nova imagem

técnica que está na nossa frente. Aqueles

negativos só podem ser velhos, e aquela

mão que os manipula só pode manipulá-

los depois de todos esses anos, e essa

nova imagem criada é tecnologia século

XXI manipulando tecnologia antiga.

Esse vaguear pela imagem vai e volta no

tempo como um eterno retorno:

“Ao vaguear pela superfície, o olhar

estabelece relações temporais entre os

elementos da imagem: um elemento é visto

após o outro. O vaguear do olhar é circular:

tende a voltar para contemplar elementos

já vistos. Assim, o “antes” se torna depois,

e o depois se torna o “antes”. O tempo

projetado pelo olhar sobre a imagem

é o eterno retorno. O olhar diacroniza a

sincronicidade imagética por ciclos. (...) O

tempo que circula e estabelece relações

significativas é muito específico: tempo de

magia. Tempo diferente do linear, o qual

estabelece relações causais entre eventos.”

(1). O trabalho se torna uma encruzilhada

surrealista pois lida com esse tempo circular,

e o significado das imagens dá significado

a esse encontro com os negativos, e os

negativos encontram significação na mão

do artista. Por isso não importa se você usa

câmera ou scanner, pois o que importa é

o que acontece a partir do “modo de olhar

o espaço, o tempo, as coisas”. Olhar que

procura uma ressignificação dada pelo fazer,

pelo rearranjar da mão do artista: o artista

encontra negativos que já pareciam pedir

pelo esquecimento (vontade do autor de

se desfazer destas placas, algumas imagens

já estavam sumindo e outras tinham

anotações “negativos maus”) e reverbera

nesse encontro a questão sobre a memória

e o apego ao passado e faz do encontro,

processo para uma filosofia particular.

Seria necessário trabalhar estas

imagens? Não sabemos. Mas necessária

parece ser a tarefa de ao trabalhá-las,

encontrar significado para a vida, para os

encontros, para a existência.

“A filosofia da fotografia é necessária

porque é reflexão sobre as possibilidades de

se viver livremente num mundo programado

por aparelhos. Reflexão sobre o significado

que o homem pode dar à vida, onde tudo

é acaso estúpido, rumo à morte absurda.

Assim vejo a tarefa da filosofia da fotografia:

apontar o caminho da liberdade.” (2)

1- FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Sinergia Relume Dumará, 2009 p.8

2- idem p.78

A Casa Tomada é um espaço reservado para práticas, investigações e

reflexões de caráter artístico. O projeto surgiu da vontade de construir

um espaço que fosse um ponto de convergência entre as diversas

áreas de atuação das artes. Focado em todo o processo de produção

e não somente no produto final, o Ateliê Aberto tem como proposta

incentivar a discussão e o desenvolvimento de trabalhos motivados

pela vivência compartilhada na Casa, além de discutir o hibridismo de

linguagens nos processos artísticos contemporâneos.

www.casatomada.com.br

apoio

equipeCASA TOMADADireção e Curadoria: Tainá Azeredo e Thereza Farkas Produção: Iara Andrade Assistência de Curadoria: Jaime LaurianoProgramação visual: Habacuque Lima

CONVIVêNCIAS #3Textos: Ana Elisa Carramaschi e Paula BorghiProjeto gráfico: Lila Botter

agradecimentosAfonso CunhaAlejandra MuñozAna Maria TavaresAndré CostaCacá RossetDaniele MarxEscola Helen KellerFelipe DmabFlávia RibeiroGustavo GardeJosué Mattos

Capa: Bolha, trabalho de Mavi Veloso, foto de Rita Soromenho

Marcelo CidadeMarcio HarumMarcos SariMatthew WoodNino CaisPedro MendesRodolpho ParigiRutger EmmelkampTeTo ProjectsVideobrasilYasmina Reggad

Geometrias Negativas, de Rita Soromenho