Cony JK Memorial do Exílio n12 Rev Manchete Color

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Juscelino Kubitschek

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  • memorial do exlio

    Na fazendinha de Gois, JK aponta o cerrado, onde construiu Braslia.

    por

    O contemporneo do futuro

    CARLOS HEITOR GONY

  • 12 de setembro de 1974 "Fao hoje, incrivelmente, 72 anos. Sinto-me espiritualmente com a idade de 30. Nenhuma ferrugem na alma, nem na von-tade. As decepes e os sofrimentos da revoluo no conseguiram quebrar a fibra ntima. Sinto-me ainda capaz de grandes aventuras, tais como Braslia. Esta graa Deus conferiu-me. Se no me permite ver o mundo num halo de esperana, tambm no o fechou nas trevas da desiluso. Compreendo os homens. So seres que no atingiram ainda o status profetizado por Teilhard de Chardin a igualdade com Deus. Esto numa escalada que exigir ainda milnios ou bilnios para chegarem ao aperfeioamento. Sei portanto per-doar as falhas. De vez em quando uma ingratido mais forte desequilibra a nossa crena. Com o tempo a refa-zemos. ( , . . )Od ia fo i absorvido por visitas. A notcia da presena de JK j circulou pelo serto. At de 800km vem gente me ver. Graas a Deus tenho este privilgio. (...) A casa se encheu. Foi uma inaugurao feliz estaria eu alegre?"

    O trecho (e a dvida) pertencem ao dirio que Jus-celino Kubitschek, a partir de 1970, comeou a escre-ver. Simples esboos de datas, impresses, pequenos fatos do quotidiano que ele ia registrando com pressa, sem a forma definitiva e cuidadosa a que se habituara. Mais tarde pensava ele esses apontamentos ser-viriam para ajud-lo a escrever o ltimo volume de suas memrias.

    A citao a Teilhard de Chardin se explica. Em 1973, JK fizera um cursilho, espcie de retiro espiritual que a Opus Dei divulgava em todo o mundo. Consistia na formao de pequenos grupos heterogneos que durante uma semana viviam em comunidade, repar-tindo o mesmo dormitrio asctico, o mesmo refeitrio frugal, s se dividindo por ocasio das palestras onde prevaleciam as informaes culturais de cada cursi-lhista. Juscelino fora aconselhado por amigos e, no fundo, sentia que a experincia encontrava nele uma certa nostalgia dos tempos de seminrio, quando fazia habitualmente os retiros regulamentares. Agora, depois de ter vivido toda uma vida, a intimidade com o mundo espiritual, o dilogo com a prpria alma, parecia-lhe interessante. Foi durante o cursilho que comeou a ler Teilhard de Chardin. autor muito em moda nos anos 60. Mas Juscelino jamais seria um mstico, muito menos um asceta. Daqueles dias de recluso ficou-lhe, contudo, a ambivalncia espiritual que justifica a interrogao final do trecho citado: estava feliz mas estaria alegre? O certo, talvez, fosse o contrrio: estava alegre mas estaria feliz?

    Naquele 12 de setembro de 1974 ele podia estar feliz e alegre. Inaugurava a casa na Fazendinha JK, 300 alqueires de terra em Luzinia, a 18 quilmetros de Braslia. Ao se despedir dos jornalistas, na vspera de entregar o governo da Repblica a seu sucessor, JK respondeu prontamente pergunta: " O que deseja ser depois de ter sido presidente?" "Fazendeiro em Gois" afirmara Juscelino. Muitas guas porm se passaram em sua vida, na vida nacional, adiando aquele projeto. A esperana de retornar ao poder em 1965, a cassao do mandato de senador e dos direitos polticos em 1964, o longo exlio que tanto o maltratou, os inquritos, a priso, as calnias, a ingratido enfim, como qual-

    quer homem surpreendido pela reflexo, ele sentia que o destino armara suas tendas para fundar, nele, a citt dolente. Mas havia, em seu temperamentainquieto, um sangue bulioso demais para aceitar apaticamente o sofrimento, a depresso. E, de repente, mesmo sem informao ou sem motivo, ele dava a volta por cima e se sentia alegre (ou feliz) por nada, pelo bom-dia rece-bido de um estranho, pelo sol que brilhava em cima da relva, por nada e por tudo. Ele mesmo no se compre-endia, s vezes. No nascera para o lamento, a autoco-miserao. Por pior que estivessem a barra e o berro l fora, dentro de si encontrava o pretexto para continuar ele mesmo.

    Na fazendinha que comprara em 1973 e que agora inaugurava, havia a pequena elevao quebrando a mo-notonia do cerrado imenso que se estendia de horizonte a horizonte. Ali, ele gostava de assistir ao pr-do-sol e ali pretendia erguer uma ermida dedicada a Santa Jlia, padroeira onomstica de sua me. hora do Angelus, rezava as ave-marias, sozinho mesmo, ou em compa-nhia de algum amigo mais ntimo. Sentia um pouco de tristeza a cada dia que morria. Carta datada de anos mais tarde, 10 de agosto de 1976, doze dias antes de sua morte: "Meu querido Bloch: Com a obstinao que foi sempre a peculiaridade do meu estilo de vida, estou aqui lutando para dominar o cerrado. J me familiarizei com os espetos desta terra pobre, comida pelos cupins, pelas formigas, pela acidez, m^s que renasce e produz quando a mo do homem lhe leva tratamento e carinho. belo ver, ao lado da esterilidade do solo abandonado, surgir pela fora do trabalho o verde animador que corres-ponde germinao das sementes. No imaginava que eu, um ser urbano, me adaptasse ao silncio e solido dos vastos descampados. Encontro-me, h um ms, sem contato com o que se convencionou chamar de civiliza-o. Desta no tenho saudade. O que traz tristeza, sobretudo hora do recolhimento da tarde, a falta dos amigos. Eles so parte da minha natureza e do meu prprio organismo, e no senti-los perto como me privar de um brao ou de uma perna."

    Ao voltar para a casa, ele evitava acender a luz da sala onde se deitava no sof. Tirava um cochilo antes do jantar. Ou ficava pensando tinha agora muito tempo para pensar. E, sobretudo, no que pensar.

    COM a edio do Ato Institucional n."5, governo e regime oriundos do movimento militar de 1964 haviam obtido, afinal, a consolidao da fora. Estranhamente, as ditaduras costumam ser impostas no primeiro momento, no calor do prprio golpe que lhes do origem. Contudo, no caso brasileiro, a ditadura fora lenta e gradual: em 1964, diversos segmentos do estado de direito ainda continuaram, como a liberdade de imprensa, o instituto universal do habeas corpus. Em 1965, a faixa liberal diminuiu sensivelmente com a edi-o do AI-2, mas ainda assim continuavam flutuando alguns pedaos esparsos de legalidade no maremoto do arbtrio. Com o AI-5, em 1968, no sobrou nada do estado de direito. Governo e sistema jogaram a socie-dade no saco sem fundo da fora. At ento, diversos escales haviam tentado uma reao contra o poder assim instaurado. Intelectuais, estudantes e alguns se-tores do operariado procuraram, um pouco desordena-

  • damente, esboar a resistncia. Mas medida que tal resistncia ganhava contornos mais ntidos, como em 1965, por ocasio da vitria eleitoral das oposies no Rio e em Minas, ou em 1968, com as manifestaes estudantis que foravam a abertura de um espao que fizesse a sociedade respirar, o governo despejava p seu instrumental cada vez mais truculento. E a partir de 1968 a alternativa que restou aos que tentavam a reao era o silncio ou a luta armada. At que ponto o silncio seria omisso ou adeso? Somente os povos oprimidos passam por esse drama suplementar: o de procurar ex-plicao para esses tempos de dor, de dvida,, de vergo-nhosa misria individual, de miservel vergonha cole-tiva. Em todo o caso, cada qual fez o que pde, sua maneira, dentro de suas limitaes de temperamento e convenincia. A resistncia rachara em filigranas tti-cas: a luta armada no campo ou na cidade? Entre o zero e um ponto infinito abriu-se o leque das opes para cada um.

    Os mais jovens, mais afoitos ou mais desesperados (em raros casos, os mais inconscientes) procuraram a soluo do confronto, o exemplo de Che Guevara miti-ficado e, em numerosos casos, adaptado ao curioso tipo de heri nacional que entrou no anedotrio da poca: o Guevara de salo, a Passionaria de botequim. Descon-tadas as caricaturas, mesmo assim foi grande o nmero de mrtires. E, ao lado dos mrtires, os perseguidos e humilhados, mortos-vivos que continuaram porque, er. tre outras coisas, continuar era uma forma de reagir. Foram muitos, enfim, e chamavam-se legio como os demnios. Como os demnios, no dobraram a espinha e se obstinavam a negar o incenso aos demiurgos entro-nizados (at certo ponto eternizados) no poder.

    O AI-5 fechou qualquer possibilidade de resistncia natural e democrtica queles que no concordavam com a nova ordem. Seqestros de diplomatas estrangei-ros, assaltos a bancos para conseguir fundos de uma infundada luta armada que nunca se estabeleceu em termos concretos, o romantismo de muitos que procura-vam uma soluo pessoal para o desafio nacional, gru-pos de resistentes inspirados por ideologias diversas, fragmentados em alas e dissidncias enfim, por no ser da ndole do brasileiro a soluo de fora, ou por

    Na penltima noite, a ltima apario de sua vida pblica

    Na noite de 19 de agosto, Jusceiino participa da reunio dos ex-governadores da Bacia do ParanPrata. Ao centro, Carvalho Pinto; esquerda, Lucas Nogueira Garcez. Ambos ex-governadores de So Paulo.

    incapacidade operacional e terica dos lderes, o fato que as tentativas que chegaram a ser organizadas custa de muita dor e s vezes de muito sangue deram em nada, sobretudo quando encontraram nexo com o banditismo comum. Os escales mais responsveis, in-clusive os comunistas, ficaram espera das famosas condies objetivas para a luta. O cogulo de sangue custou a ser absorvido pelo organismo da nao. Na emergncia, o sistema adotou o comportamento que dele se esperava: endureceu no varejo e no atacado, levando o pas encruzilhada cujos caminhos como mais tarde se constataria no levavam a direo al-guma.

    Para Jusceiino, a responsabilidade de manter uma atitude ao mesmo tempo firme e conciliatria era decor-rente de sua formao pessoal e de sua trajetria pol-tica. Cassado, inquirido, preso, exilado ele pagara o preo de ter sido o que foi: um democrata supersticioso de qualquer poder que no tivesse origem no povo. Afastado compulsoriamente da vida pblica, tendo seus passos vigiados dia e noite, com seus bens colocados em seqestro para a intimidao final, ele desgastara o corpo na tenso daqueles anos terrveis. Ao sair da priso, em janeiro de 1969, tivera de ir buscar seu m-dico, nos Estados Unidos, a fim de manter sob controle a condio de diabtico. E uma sucesso de problemas com a sade esgotaria suas reservas fsicas e financeiras: um tumor na prstata obrigou-o a nova internao, precisou pedir dinheiro emprestado a um banco a fim de poder viajar e custear o tratamento. Pouco antes de embarcar, com o ttulo aprovado pela diretoria da casa de crdito, recebeu o recado de que o emprstimo fora cancelado. Os amigos, ento, se cotizaram e arranjaram o dinheiro para cobrir a emergncia. Mais tarde, um grave problema com a coluna e nova internao, dolo-rosa e demorada. Mesmo assim, ele continuava sendo o que sempre fora: o homem cordial e disposto concilia-o que no lhe era pedida, antes, tornavam-na proi-bida, a ele e sociedade da qual fazia parte. As poucas vezes em que tratava do fato poltico, com amigos, ele mantinha a conduta habitual. Carta a Rubem Berardo, em janeiro de 69, to logo saa da priso: "Sei que a hora que estou vivendo a mais difcil de quantas tenho experimentado. Valeu-me nela o conforto de alguns poucos amigos como voc. As conversas que me relatou mostraram-me, felizmente, que a minha obstinao em pregar a Paz e o Perdo no voz isolada neste pas. No calor das modificaes polticas nem sempre fcil aos ocupantes do poder marcarem a temperatura que deve reinar na vida nacional. O Exrcito conta com a maior figura de estadista que o Brasil j possuiu. Caxias igual a Lincoln, e quando proclama, como sempre o fazia aps as refregas revolucionrias, que a Paz era o supre-mo objetivo da Nao, estava traando uma linha im-perecvel para o pensamento brasileiro."

    Em abril de 1970, por ocasio do 10." aniversrio da fundao de Braslia, os donos do poder conseguiram o absurdo de comemorar um fato histrico violentando a prpria histria. Durante anos, oficialmente a nova ca-pital surgira do nada, em gerao espontnea, lance de mgica que era proibido explicar ou comentar. Pior ainda: ele prprio no podia visitar a cidade que criara. Certa vez, no pequeno avio monomotor de um amigo,

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    cruzara a cidade em direo a Anpolis. Por acaso, o pequeno aparelho apresentou falha mecnica e o piloto pediu autorizao para descer em Braslia. A torre do aeroporto quis saber qual era o defeito e quem estava a bordo. Ao mencionarem o seu nome, ele ouviu, estarre-cido, pelo rdio de bordo, que o avio deveria se deslo-car para Luzinia, em cujo aeroporto poderia fazer o pouso de emergncia.

    Somente a 7 de janeiro de 1972, tambm por acaso, ele conseguiria pisar o cho da cidade que fundara. Vinha de Luzinia, num velho caminho Ford, em com-panhia de um amigo. Dirigia-se a Planaltina, ele come-ara a busca de um pedao de terra que pudesse com-prar para realizar o desejo de ser fazendeiro em Gois. Era ali que desejava viver o restd de seus dias, ali desejava morrer e ali ser enterrado: perto de sua cidade. Um temporal obrigou o motorista a entrar num desvio da estrada. Com nenhuma visibilidade, o caminho pe-netrou no denso aguaceiro. De repente, a sombra de uma constru surgiu ao lado da estrada. Juscelino reconheceu: "E o Catetinho!" E embora o amigo o advertisse, lembrando a possibilidade de um incidente com as autoridades, JK saltou da bolia e enfrentou o temporal. Ele narraria o fato ao jornalista Carlos Cha-gas: "Como sempre, os pingos d'gua pareciam laran-jas, atingindo a gente sem d." De qualquer forma, o primeiro passo fora dado. Agora era continuar a visita cidade, aproveitando o grande aliado o temporal que tornara as ruas mais desertas do que o habitual. Depois de sete anos, ele voltava. "Senti-me como um sdito romano das Glias que pela primeira vez visita Roma. A Roma do primeiro sculo, com seus palcios de mrmore, sua suntuosidade e sua conscincia de centro do mundo civilizado." Dirigiu-se catedral, no a conhecia ainda, s em maquete e em seu perfil ex-terior. Desceu o tnel de acesso: "Maravilhei-me. Nunca tinha visto a catedral completada." Isolado de -todos, e ignoto, ele lambeu a cria e disse para si mesmo, em voz baixa: "Valeu a pena."

    A"stima fortuna do mundo" precisava trabalhar. No por defastio ou charme, mas para sobreviver e manter o padro de vida a que se habituara desde 1940, quando fora nomeado prefeito da capital mineira e, ainda mdico, dispondo de razovel clien-tela, conseguira comprar uma casa, confortvel casa por sinal, em estilo moderno, a primeira com piscina em Belo Horizonte.

    No exlio, ganhara o suficiente para se manter l fora, inicialmente com as conferncias que pronunciava em universidades e centros de estudo da Amrica ou da Europa. Mais tarde, com participaes em firmas que construam casas e hotis. Agora, estabelecido de novo em sua terra, no podia viver de sua poupana, co-mendo seu patrimnio relativamente modesto. Em as-sociao com os genros Baldomero Barbar e Rodrigo Lopes, partiu para a fundao de uma financeira, a Denasa, estabelecida num pequeno escritrio na Ave-nida Nossa Senhora de Copacabana. Seus genros traba-lhavam, anteriormente, no Banco Econmico do Rio de Janeiro, mas sofriam, de certo modo, as presses da poca. As autoridades financeiras e fiscais mantinham o banco de Joo Alfredo de Castilho sob severo controle.

    no pressuposto de que os genros de JK eram o prolonga-mento dos interesses familiares e pessoais do ex-presidente. Para liberar o amigo do encargo, e para imprimir o seu prprio ritmo aos negcios, Juscelino tornou-se presidente do Conselho de Administrao da Denasa. Pouco mais tarde, uma lei facultou s financei-ras com capital de 5 milhes de cruzeiros a operao como banco de investimentos. Movimentando amigos, JK conseguiu a elevao do capital e a Denasa passou a funcionar na Rua da Alfndega, onde JK logo assumiu a condio de empresrio. Em outubro de 1971, assim definia ele o seu pensamento sobre a nova funo na temtica desenvolvimentista: "Ao empresariado nacio-nal esto sendo oferecidas condies muito favorveis para realizar fuses e incorporaes, de abrir o seu capital, de expandir seus mercados, de agrupar empre-endimentos em torno de centros capazes de suprir re-cursos de investimento e de giro, oportunidades, enfim, de crescer com o Pas. Que os homens de empresa abandonem os critrios tradicionais de gesto e se liber-tem do medo de perder o controle de suas organizaes, analisando e assimilando as vantagens do conceito mo-derno de empresa. Esta , a meu ver, a grande deciso que se espera do empresariado nacional, pra que ele assuma a funo que lhe foi reservada nesse programa de desenvolvimento autnomo e baseado em recursos internos. Que ele ocupe efetivamente o seu lugar antes que o Estado o faa."

    Ainda em 1971, um golpe: morre em Belo Horizonte sua me, dona Jlia. Aos 98 anos, ela representava para JK uma espcie de ncora, de estmulo, de pique: por pior que andassem as coisas, bastava o pensamento de que sua me ainda vivia, ainda torcia por ele, e tudo se arrumava interiormente, dando-lhe a garra para ir em frente. Em artigo para MANCHETE, JK relembra a influncia que dona Jlia exercera em sua vida: "Para ela, nunca deixei de ser o Non, o menino de Diaman-tina que ela havia educado com amor mas com severi-dade. A ascenso poltica do filho, embora lhe causasse orgulho, nunca teve fora para alterar-lhe os hbitos de modstia e simplicidade. Nunca se hospedou em palcio e jamais entrou num automvel presidencial. No dia 1 de maio ela fechou os olhos para sempre. Morreu tran-qila e silenciosa, como sempre vivera. Assistamos a um programa de televiso sobre Diamantina e, de s-bito, ela se sentiu mal. Era o fim. Tive a oportunidade de estar presente, ao lado de meu cunhado Jlio Soares e de Sarah, e de poder segurar-lhe a mo quando a morte sobreveio. Um ramo de sempre-viva flor na-tiva do velho Tejuco foi colocado sobre seu peito. Deixou a vida, pois, como teria desejado: levando con-sigo um smbolo da cidade em que nasceu e que tanto amou."

    Apesar de suas atividades na Denasa, Juscelino sen-tia-se cada vez mais atrado para o ofcio de escrever. Em sua vida pblica, a falta de tempo obrigava-o a seguir a rotina: discursos, mensagens e relatrios fica-vam a cargo de auxiliares e amigos, como Augusto Frederico Schmidt, Josu Montello, Jos Sette Cmara, Francisco de Assis Barbosa e lvaro Lins. Durante os anos de exlio, habituara-se a escrever em regime de compulso. Alm de cartas e impresses esparsas de viagens, ele se imps uma disciplina severa a fim de

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    conseguir terminar suas memrias tarefa que Adol-pho Bloch cobrava-lhe com insistncia. Ajudado por Caio de Freitas, que pesquisava e arrumava os aponta-mentos, ele ia dando forma definitiva ao texto, tendo entregue o original dos quatro volumes por ele redigidos em meados de 1969. Infelizmente, o governo da poca no permitiu que os livros fossem impressos e distribu-dos. Somente em 1974, depois de muitas consultas e compromissos, foram editados o primeiro volume de suas memrias, A Experincia da Humildade, e um volume parte, intitulado Por Que Constru Braslia, a condensao de sua trajetria pblica encerrada com o grand finale da inaugurao da nova capital. Foi, talvez, a sua ltima grande alegria: receber as provas que Adol-pho Bloch lhe trazia, o caderno de fotos em rotogra-vura, as capas em arte-final e, um dia, o primeiro livro sado das mquinas, cheirando a tinta.

    Pouco a pouco; se integrava na equipe de MAN-CHETE, a revista que crescera junto com Braslia, que acreditara no mesmo sonho e na mesma esperana. A fidelidade de Adolpho era esmagadora: enfrentara peri-gos, correra todos os riscos, mas nunca deixara o amigo sem o apoio de suas revistas, fosse para o que fosse. Ao saber do acidente de agosto de 1976, Carlos Lacerda foi procurar Adolpho e, tomando-lhe a mo, comeou a fazer um discurso. Em dado momento, chorou. E, pro-curando consolar o amigo e editor de JK, disse-lhe tudo o que gostaria de dizer para si mesmo. Uma de suas frases: "A amizade que voc teve por JK um dos momentos mais dignos e puros do nosso tempo. Obri-gado por ela." Freqentando a sede de MANCHETE diariamente, JK comea a tomar gosto pelo jornalismo. Escreve pequenas resenhas de livros e recusa receber o vale da colaborao, at que um dos editores da revista impe: "Se no receber, no colabora mais." JK ento assina os vales, sempre na mesma tabela dos demais

    Ao lado de Adolpho

    Bloch em sua ltima

    foto

    Na noite de 20 para 21 de agosto, Jusceiino e Adolpho deixam a Casa de Manchete, em So Paulo, e vo visitar amigos. Ali so feitas as ltimas fotos de JK. Ele est pensativo, embora tranqilo. Foi assim que viveu seus ltimos dias.

    J M r u

    1 m J

    colaboradores. Escreve sobre os livros sados na oca-sio, faz crtica de Os Tambores de So Lus, de Josu Montello. Ao morrer, levava consigo um exemplar de O Jerusalem, de Dominique Lapierre e Larry Collins. Ha-via prometido uma resenha para o prximo nmero de MANCHETE. Convivendo cada vez mais com escri-tores, jornalistas e editores, surge seu ltimo sonho: a Academia. Num primeiro,passo, elegeu-se para a Aca-demia Mineira de Letras, tomando posse a 3 de maio de 1975 e sendo saudado pelo Cardeal Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta. Pouco depois, morria no Rio o acadmico Iv Lins, da Academia Brasileira de Letras. Sentindo-se enfermo, ele havia recebido a visita de JK, ocasio em que manifestou a vontade de t-lo como sucessor na cadeira 34. Alguns acadmicos souberam do fato e insistiram para que JK se candidatasse vaga. Feitas as sondagens preliminares, o grupo de amigos do ex-presidente verificou que era vivel a candidatura. mesma vaga concorria o escritor goiano Bernardo Ellis, de reconhecidos mritos literrios. Mas a Academia tem razes que somente a razo conhece: liderando um blo-co que se opunha eleio de JK, o presidente da Casa de Machado de Assis opunha forte resistncia no pessoa ou pretenso de JK, mas oportunidade de sua admisso Academia. Oficialmente, ficou estabelecida a alegao de que, nas eleies anteriores, alguns escri-tores haviam sido preteridos por nomes de notveis. Na conceituao da poca, Jusceiino seria um notvel, como Santos Dumont, Getlio Vargas, Ataulpho de Paiva, Roberto Simonsen seria longa a lista dos aca-dmicos que no eram, tecnicamente, homens de letras, mas que haviam penetrado nos sagrados umbrais da imortalidade da Avenida Presidente Wilson. Jusceiino deveria esperar outra vaga, deixando a de Iv Lins para Bernardo Ellis, homem modesto que no tinha outro patrimnio seno a sua condio de homem de letras. Veiculada essa verso, logo surgiria a razo: durante o seu qinqnio presidencial, JK dera Academia o terreno vizinho, onde se situava o Tribunal Federal de Recursos, que se deslocara para Braslia. O presidente Austregsilo de Athayde, trabalhador infatigvel, pla-nejou a construo de enorme edifcio que ficaria anexo ao da Academia. Ali funcionariam algumas dependn-cias da prpria Casa de Machado de Assis, mas diversos andares seriam destinados renda, com a qual a Acade-mia poderia exercer papel mais atuante no processo cultural do pas. A Caixa Econmica Federal estudava um plano de financiamento ABL, e o ingresso de Jusceiino no chamado "nobre sodalcio" poderia provo-car, como represlia do governo, o cancelamento de qualquer recurso para a construo de obra to neces-sria ao desenvolvimento da Academia. Evidente que esta razo nunca seria encampada pelos acadmicos que julgavam temerria a presena do ex-presidente da Re-pblica no seio de uma entidade apoltica, acima e afora das paixes como convm s academias. Mas foi a pea de sustentao para convencer os hesitantes. Sem qualquer conotao com os interesses imobilirios da ABL, era certo qe um grupo de acadmicos jamais votaria em JK, por mtivos outros, e, em alguns casos, respeitveis. Critrios de exclusiva aferio literria, antigos ressentimentos da vida pblica, antipatia pes-soal pelo candidato enfim, JK sabia que no teria

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    votao unnime. Mas acreditava na possibilidade de uma boa votao e esta lhe fora prometida. Mesmo assim, sabendo que dificilmente um candidato se ele-geria tendo contra si a atuao do presidente da Casa, em meio de sua campanha JK endereou-lhe a seguinte carta: "Presidente Austregsilo de Athayde: Talvez esta carta v surpreend-lo. Os amigos mais chegados a ignoram. E esta resoluo lhe comunico em primeira mo. A esta altura de minha candidatura que surgiu da sugesto espontnea e honrosa de muitos acadmi-cos, amigos dos mais queridos, reforada por um desejo do prprio Iv Lins, o que foi levado a seu conheci-mento eu tenho esperana, digo mesmo, quase cer-teza de que estaria eleito. Os sufrgios prometidos dar-me-iam. pelo menos, esta convico, sobretudo consi-derando que seus eminentes confrades s podem ter de mim uma simpatia afetuosa. No que dependeu de mim sempre os distingui como merecem, na linha da cordiali-dade, do respeito e da considerao. Uma promessa deles a um homem como eu, afastado do poder, s poderia ser um compromisso selado pela bondade ex-clusiva de cada um. Senti, no entanto, desde a primeira hora, que a minha candidatura, aps o seu veto, s vingaria criando situaes de constrangimentos, o que jamais desejaria, uma vez que sempre procurei trazer aos ambientes que freqento uma aura de compreenso e de agradvel convivncia. Depois de ter tanto batalha-do, conservo ainda inaltervel a atrao pela palavra em todas as suas expresses. Por isso, considero uma das aspiraes legtimas para o coroamento de uma existn-cia. em que ao lado de amarguras e lutas tambm flori-

    A violncia do desastre na RioSo Paulo

    ram horas de conforto e glria, a Casa de Machado de Assis. Face, porm, situao surgida, o acirramento de uma disputa seria inevitvel, o que jamais desejei ou desejaria. Assim, por que insistir na porta da Acade-mia, dividindo-a de modo que a eventualidade de um xito trouxesse a insatisfao de alguns? certo que, acostumado aos pleitos, sei que a maioria no plano democrtico a vitria. Nada mais, creio eu, precisarei dizer-lhe, quanto minha resoluo, mas serei expl-cito: no me candidatarei. Amigo atento, Juscelino Ku-bitschek."

    A carta foi escrita por volta do meio-dia de 20 de junho de 1975. JK havia pedido, pela manh, que Adol-pho Bloch esperasse por ele para almoarem juntos. Chegando atrasado, Juscelino s teve uma desculpa: mostrou a carta ao amigo. Ela revelava no apenas o motivo do atraso mas o drama por que passara, um drama penoso, levando em conta as razes que o di-taram. Adolpho j sabia, ento, que a eleio para a Academia tornara-se difcil, mas era ntimo o bastante para no concordar com aquela atitude. Lembrou ao amigo a repulsa que ambos tinham por qualquer tipo de renncia que significasse abandono da luta. Os proble-mas deviam ser um estmulo para a vitria, no o toque de recolher diante da dificuldade. O exemplo mais no-trio era o caso da renncia de Jnio Quadros epis-dio que JK condenava. Foi justamente por a que a carta acabou no sendo enviada. Juscelino meditou mais um pouco, sabia que Adolpho funcionava, naquele mo-mento, como sua prpria conscincia. Sempre despre-zara a fraqueza diante da luta. Retirar-se. naquele mo-

    O opa/a do motorista de JK, Geraldo Ribeiro, ficou inteiramente destrudo. Tendo recebido a fechada de um nibus, o carro invadiu a pista contrria e chocou-se contra enorme carreta. A morte foi instantnea.

  • mento, seria, acima de tudo, uma covardia, embora pudesse parecer um gesto magnnimo, ou, quem sabe, uma ttica para a vitria final. A partir daquele dia, JK apelou para o peito e a coragem a fim de vencer aquela que seria a ltima eleio de sua vida, por sinal, a nica que perderia.

    Na praxis de uma eleio na ABL, h o recurso que possibilita aos acadmicos votarem em um ou dois es-crutnios num candidato, e nos restantes sufrgios em outros. De acordo com esse dispositivo, alguns acad-micos haviam prometido que votariam em JK no pri-meiro e terceiro escrutnio*, mas no segundo e quarto indicariam Bernardo Ellis para a vaga. No dia da elei-o, 23 de outubro de 1975, a primeira rodada revelou um empate (19 x 19) e uma absteno. Na segunda, vitria de JK por 19 a 18 votos e duas abstenes o que mostrou a possibilidade de Jusceiino ganhar a elei-o cujo quorum era o de 20 votos. Para a ala contrria, ele se apresentava'mais forte do que supunham. Havia envelopes que o indicariam a partir do terceiro escrut-nio. E a a surpresa: nessa terceira rodada, vitria de Ellis por 20 a 18 com uma absteno. Os entendidos nos fastos acadmicos estranharam tal resultado que ficou por conta dos envelopes contendo votos dos imortais ausentes, como Jos Amrico de Almeida, Menotti dei Pichia e outros que se comprometeram a desdobrar seus sufrgios de acordo com os escrutnios. No houve acu-sao frontal de manipulao de envelopes mas a sus-peita de que, na pressa e na emoo do momento, o presidente Austregsilo de Athayde tivesse trocado as sobrecartas. Esperando o resultado em casa de sua filha Maria Esteia, em Botafogo, Jusceiino recebeu o telefo-nema de Josu Montello que lhe dava a notcia final. JK desligou o telefone e disse para os amigos que o rodea-vam: "Perdi. Vamos virar esta pgina!" Acenou para o pequeno conjunto musical que iria tocar na recepo que a famlia daria aos amigos. Sem entender o que se passava, o chefe do conjunto atacou, com jbilo, os acordes de Peixe-Vivo. JK apanhou Maria Esteia e co-meou a danar. No fim da noite era novamente um homem tranqilo, esquecido da adversidade. Dias de-pois, o presidente da Academia quis almoar com ele.' Marcaram um restaurante no centro do Rio, conver-saram muito. JK percebeu que Austregsilo de Athayde desejava se referir ao episdio dos votos, mas impediu que o assunto tocasse naquele terreno. Ao sarem, ti-veram de usar o elevador que serve ao salo das refei-es. Um elevador pequeno, apertado, onde s cabem 'duas pessoas espremidas. Foi ento que Jusceiino colo-cou a mo no ombro de Athayde e disse-lhe: "Presi-dente, sou entendido em matria de eleies. Quando se perde, no se deve perguntar por qu."

    Meses mais tarde, os escritores de So Paulo ten-taram uma espcie de reparao, elegendo-o Intelectual do Ano. JK compareceu posse de Bernardo Ellis e estava disposto a se candidatar novamente, to logo houvesse vaga com a qual tivesse afinidade pessoal ou intelectual.

    Mas os fatos midos de sua vida comearam a cres-cer dentro dele, orientando suas preocupaes para o dia-a-dia de pequenos e sucessivos aborrecimentos. Sua filha Mrcia comunica-lhe que pretende se desquitar do marido, B Barbar. Alm de genro e amigo, B era

    scio na Denasa, o desquite provocaria uma alterao radical em seus hbitos. Depois da partilha dos bens, JK deixa a presidncia da Denasa e aceita o oferecimento de Adolpho Bloch, passando a dispor de .confortvel escritrio no edifcio de MANCHETE. Ali ser o seu ltimo local de trabalho. Integra-se, definitivamente, no sistema da sua nova casa, almoa todos os dias beira da piscina, comentando os fatos do dia, os problemas das revistas, do preo do papel enfim, um compa-nheiro que participa at mesmo dos aniversrios que so comemorados nas redaes, com discurso e bolo. Sua simplicidade nada tem de postia. Apesar disso, aqueles que lhe so mais prximos sabem que ele sofre, no mais em sua vida pblica, que praticamente se extingiu h muito, mas em seu front pessoal, em sua retaguarda.

    Superados os problemas advindos com o desquite da filha, ele se concentra em sua fazendinha. Apesar dos fertilizantes, a terra cida do cerrado no promete re-torno aos investimentos. Cada vez mais ele se desloca para Gois, a fim de gerir pessoalmente as plantaes, solicitar emprstimos bancrios para comprar mqui-nas. Concentra-se na construo de um aude, a fim de represar guas e no deixa de ser curioso ver aquele homem, que construra as gigantescas barragens de Trs Marias e Furnas, empenhado em dirigir o trator que vai movimentar a terra para erguer o pequeno aude que dever saciar uma terra j morta pela sede milenar. Numa das idas ao Rio, verifica em sua correspondncia que estudantes de todo o Brasil pedem que ele faa conferncias sobre os problemas nacionais. Muito t-nues, mais um desejo nacional do que uma vontade do governo, comeam a se abrir fiapos de luz na escurido do regime presidido pel AI-5. A crise do petrleo, em 1973. provocou uma reviravolta mundial, mas, no Bra-sil, o problema tem o mrito de acabar com as fantasias de um milagre que no houve. A procura de novas fontes de energia dramtica e JK decide escrever as conferncias com antecipao, abordando a soluo do xisto betuminoso e do incremento das hidreltricas. Para ele, a energia nuclear seria uma faca de dois gu-mes, mas no era contrrio importao de know-how nuclear, necessrio ao desenvolvimento tecnolgico do pas.

    Em meados de 1976, decide passar longa temporada na fazenda. Inicia a construo da ermida de Santa Jlia que no ver terminada. Encomenda a Ceschiatti, o escultor que fizera os anjos monumentais da catedral de Braslia, uma imagem da mrtir romana. Ceschiatti no encontra nenhuma referncia iconogrfica daquela santa e Jusceiino resolve o problema: envia ao escultor uma foto de sua me: "Faz igual a ela. Santa Jlia, para mim. a minha me."

    Seus hbitos, na fazenda, so mais ntimos, soli-trios. Ao cair da tarde, vai rezar o Angclus no local da futura ermida. Preocupa-se com a morte, com a possi-bilidade do fim. Aos sbados, leva os amigos para rezar o Angelus. Ele mesmo puxa as ave-marias. Certa tarde, recebe a visita do Coronel Nlio Cerqueira, um espiri-tualista. Conversam sobre temas relacionados com a morte. E, em seu dirio, abre espao cada vez maior a temas relativos ao fim ltimo de cada homem.

    No incio de agosto, o estranho recado de um militar cujo primeiro nome Rosalvo. Depois de identificar-se,

    *

  • c S S - 8

    o oficial diz que a qualquer momento JK ser chamado para manter contato com membros do governo. Jusceli-no no cr nessa possibilidade, embora conhea os pro-blemas que o Presidente Ernesto Geisel est atraves-sando. Esboa-se, abertamente, um confronto entre a linha do governo Geisel e a do ministro da Guerra, Slvio Frota. As simpatias de JK so para a causa de Geisel, a quem envia um exemplar de suas memrias. Sabe que o general, apesar de seu estilo imperial, pre-tende normalizar o pas. JK percebe o lento costurar de uma linha mais aberta para a poltica nacional. E, mesmo sem levar a srio o recado de Rosalvo, diz a seus amigos que s aceitar uma conversa em torno da unio com Geisel. No sbado, 7 de agosto, est conversando com amigos na fazenda. Diz que s h duas solues para a crise brasileira: a abertura provocada por um golpe de fora, que teria necessariamente um carter esquerdista ou comunizante, ou a abertura gerida pelo prprio governo. Nessa eventualidade, a classe poltica deveria ter sensibilidade bastante para apoiar o governo no essencial, embora mantendo as caractersticas de cada grupo. Em meio conversa, chegam fazenda diversos carros vindos de Braslia. So reprteres que desejam apurar a notcia que comeou a ser veiculada ao cair da tarde: algumas verses davam JK como morto num acidente de estrada, outras verses falavam de um enfarte fulminante sofrido na prpria fazenda. JK ri, manda servir cafezinhos, acha graa no boato. Mas, ao fim da noite, quando todos vo embora, ele sente um n dentro do peito. E deixa registrado em seu dirio uma premonio amarga sobre o fim qu sente prximo.

    A 17 de agosto uma alegria. Em Braslia, inaugura um novo escritrio no Edifcio Oscar Niemeyer, perto do Hotel Nacional. Uma sala modesta, onde receber estudantes e amigos. noite, hospedado em casa de Carlos Murilo, pede para dar uma volta pela cidade. Vai em silncio, olhando as luzes da capital que criara, a silhueta dos edifcios, a coroa de concreto armado da catedral. De repente, como se estivesse saindo do sono ou do sonho, murmura baixinho para si mesmo:

    "Ei JK! Ei JK!" Na quinta-feira, 19 de agosto, deixa a fazenda para ir

    a So Paulo. De um lado, terh um convite para partici-par de uma reunio dos ex-governadores da Bacia do Prata, que inclui alguns polticos desativados como ele prprio. um pretexto para rever amigos. De outro, deseja passar um.fim de semana com Adolpho Bloch em So Paulo. Hospeda-se em Braslia mais uma noite, como sempre em casa de seu primo Carlos Murilo, que guarda esta ltima recordao de JK na cidade que fundara: "Ele no gostava de ficar sozinho. Ajudei-o a fazer a mala. Percebi que levava muita roupa para um simples fim de semana em So Paulo. Depois de tudo arrumado, ele se deitou e ficou a conversar. Fez um balano de sua vida e disse: 'J fiz tudo o que tinha a fazer. Sou um homem realizado. Braslia a est. uma obra que ficar para sempre. O povo me trata com carinho. Mas sou realista. Meu tempo aqui na terra est acabando. Tenho o que de vida? Dois, trs, cinco anos? No gosto disso. A nica coisa que eu queria agora era morrer. No tenho temperamento para esperar as coi-sas. Meu ltimo desejo, realmente, seria ver o Brasil retornar normalidade democrtica. Mas isso vai de-morar muito e eu quero ir embora."

    No dia seguinte, 20. embarca para So Paulo, com bilhete de ida e volta. Como est desprevenido, seu primo Ildeu de Oliveira empresta-lhe dez mil cruzeiros. Tem, como companheiro de viagem, o Deputado Ulys-ses Guimares, com quem conversa longamente. JK reafirma o seu ponto de vista: unio em torno de Geisel, que lhe parece sincero e capaz de proceder abertura no regime. O mau tempo obriga o avio a pousar em Vira-copos, ele chega com duas horas de atraso ao almoo na Casa da Manchete, onde Adolpho e o autor deste traba-lho o esperam. Est tenso, pede um usque antes da refeio, come pouco, levanta-se duas vezes para tentar uma ligao com o Rio. Levo-o ao telefone, disco os nmeros pedidos. Adolpho quer saber como ser o prximo aniversrio dele, a 12 de setembro. Normal-mente, JK comeava a comemorar dias antes, gostava de fazer anos. Mas agora ele no tem plano algum, mais tarde pensar no assunto,

    No dia seguinte, sbado, conversa longamente com Adolpho. Conta-lhe a vida toda, diz que precisar mui-to de seu amigo e pede que Adolpho cuide da sade. Depois saem, almoam na casa de amigos, Adolpho retorna ao Rio e insiste para que JK venha com ele, iriam passear na Europa, Madame Schneider convidara os dois para passar uma temporada na Cte d'Azur. JK reafirma que tem de regressar a Braslia no dia seguinte. Ao se despedirem, JK abraa Adolpho de forma de-morada, silenciosa.

    Domingo, 22 de agosto, JK acorda cedo, pede que a cozinheira de MANCHETE, Elisabeth, faa-lhe os bi-fes bem fininhos para o desjejum. Depois, em compa-nhia de Olavo Drummond, que vem se encontrar com ele, toma um carro de MANCHETE e vai casa de Ademar de Barros Filho, onde almoa. s quatro ho-ras, se despede de todos, dizendo que retorna a Braslia por avio. O motorista o espera para lev-lo ao aero-porto. JK pergunta se ele pode lev-lo at o incio da Via Dutra, quilmetro 2 da RioSo Paulo. O motorista recebera ordens de Adolpho para servir o presidente, acha estranho o pedido, mas obedece. Ao atingir o quilmetro 2, v o Opala de Geraldo Ribeiro, motorista de JK desde os tempos da Prefeitura de Belo Horizonte. Juscelino agradece, apanha sua mala, que Geraldo se apressa a tomar de suas mos. Depois, o prprio JK recolhe seus outros papis, uma pasta preta, um porta-folhas com algumas pginas de seu dirio, um exemplar da ltima MANCHETE, com Jnio Quadros na capa. Por ltimo, apanha o livro O Jerusalem, que estava lendo para escrever uma resenha. Com passos firmes, ele se dirige para o Opala. Geraldo j arrumou o traves-seiro na parte traseira, sabe que o presidente gostar de dormir durante a viagem. A tarde triste, feia, cai uma garoa fria, o cu est baixo, de chumbo. Antes de entrar no carro, JK acena para o motorista de MANCHETE. o seu ltimo aceno. Aquele aceno que os brasileiros to bem conheciam e que ficaria perpetuado, em bronze, no alto de seu Memorial a ser erguido em Bra-slia. Foi para um homem do povo esse ltimo aceno, com gosto de adeus. Duzentos quilmetros frente, o impacto e ele explodiria como uma estrela.

    FIM