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FORTALEZA – Há mais de 20 anos, a pro- fessora Nete Gomes, de 43 anos, trabalha na escola Irmã Iolan- da Brasil, na capital cearense. Construído na beira da antiga li- nha de trem, no bair- ro Aldeota, o imóvel é um dos 2.185 que se- rão desapropriados para a implantação do Veículo Leve sobre Tri- lhos (VLT) de Fortale- za. Mas, até o momen- to, Nete não sabe para onde vai a instituição. A escola comunitária atende 70 crianças e já havia sido desapropria- da anos atrás. Agora, te- rá que mudar mais uma vez de endereço. “A maior preocupa- ção deles (dos pais) é com a escola dos filhos. Muitos já assinaram (acordo para serem de- sapropriados) e o di- nheiro não caiu na con- ta. Os moradores estão ficando sem opção e os preços das casas estão aumentando. Eles es- tão indo para bairros muito distantes e mui- to perigosos”, lamenta a professora. Nete encara seu traba- lho como uma missão, e critica a postura de go- vernantes com relação ao que foi prometido pa- ra o Mundial de fute- bol. “Eles colocaram co- mo se a Copa do Mundo fosse deixar pra gente um grande legado. O le- gado que a gente está vendo é de famílias que estão perdendo as mo- radias, escolas perden- do alunos”, argumenta. Enquanto se divide en- tre o ensino e a adminis- tração da escola, ela per- de as noites de sono, sem saber qual será o destino dos alunos. “Ho- je o futuro delas (das crianças) é a incerteza. Se daqui a quatro meses elas vão ter a escolinha, não sei. A gente está ven- do que vai ficar sem es- cola. Porque a gente não tem condições de ar- rumar um espaço de uma hora pra outra. A nossa grande preocupa- ção é essa. É um dano social que o governo es- tá provocando, que só se preocupa em cons- truir estádio”, avalia. O governo do estado do Ceará informou que está garantindo moradia a todos os reassentados pelo projeto do VLT, ofe- recendo imóveis e pagan- do aluguel social. Bruno Moreno [email protected] RECIFE – Desde o início do ano, as tardes em uma rua do bairro São Francisco, na cidade de Camaragibe, na Região Metropolitana de Recife, não são mais as mesmas para a pequena Luíza*, de 7 anos. As brincadeiras na rua, agora, ganharam uma atividade a mais: fa- zer o dever de casa. Regularmente, ela sai de casa com livro a tiraco- lo e se senta em frente à sua antiga escola, o Edu- candário Bom Jesus. Na mureta da calçada folheia a edição, no aguardo da antiga professora, Marcio- ne Ferreira da Cruz, de 51, conhecida como Cione. Aluna e professora não foram desapropriadas por causa das obras do Mun- dial de futebol. Entretan- to, são vizinhas de uma de- sapropriação para a cons- trução do Ramal da Copa, uma via que ligará Recife à Arena Pernambuco, construída em São Louren- ço da Mata. Além disso, há o projeto de aumentar o Terminal Integrado de Passageiros (TIP), que fi- ca próximo à escola. Por isso, um boato e a incerteza do que iria acon- tecer com a escola foram suficientes para que a insti- tuição de ensino fechasse as portas. Luíza e Cione moram próximas ao está- dio e no entorno do que seria a Cidade da Copa, um megaempreendimen- to imobiliário que teria a arena como ponto de parti- da para a abertura de uma nova fronteira de urbani- zação na Grande Recife. “Um rapaz me disse que se for sair daqui não tem nada a ver com a Copa. Vai ser para 2016. Sobre a falta de informação, não posso acusar ninguém. Fui atrás, mas não conse- gui. O povo se encarregou de falar. Não posso culpar o povo, porque ele tem medo. Não podia segurar a turma (os alunos). O que eu disse é minha pala- vra: não vai sair”, lembra a professora. MEDO DE FECHAR Neste ano, com a saída de muitos moradores do en- torno, nenhuma mãe se arriscou a matricular o fi- lho no educandário, com receio de que, no meio do ano letivo, a escola fosse desapropriada. Luiza foi para uma escola do bairro vizinho, e, agora, vai de transporte escolar. “Eu queria ter uma certe- za, se fossem derrubar ou não. Para mim foi muito triste. Eu não esperava que, realmente, parasse a escola. Eu gostava de tra- balhar, de estar com as crianças. Eu paro ali na calçada e os meninos fa- lam assim: Tia Cione, vo- cê me ensina a tarefa? A escola foi pra rua. E o bom é que eu gosto”, conta, com lágrimas nos olhos. De acordo com a Procu- radoria Geral do Estado de Pernambuco, no Reci- fe, em Camaragibe e Olin- da foram desapropriados 459 imóveis, ao custo de R$ 102,5 milhões. *Nomefictício Escola desapropriada pela segunda vez não tem para onde ir Obra do Mundial afasta alunos e educandário é fechado > Em Recife, estudantes que não foram removidos ficaram sem aula perto de casa COPA SEM ESCOLA COPA SEM ESCOLA QUARTADEUMASÉRIE SAUDADE – Menina de 7 anos teve que mudar de escola e agora se encontra com antiga professora todos os dias FIM DE LINHA – Alunos da escola Irmã Iolanda Brasil não têm destino definido na capital cearense FOTOS SAMUEL COSTA hojeemdia.com.br 31 BeloHorizonte,quinta-feira,15.5.2014 HOJEEMDIA Minas

Copa sem escola_15-5-14

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FORTALEZA – Hámais de 20 anos, a pro-fessora Nete Gomes,de 43 anos, trabalhana escola Irmã Iolan-da Brasil, na capitalcearense. Construídona beira da antiga li-nha de trem, no bair-ro Aldeota, o imóvel éum dos 2.185 que se-rão desapropriadospara a implantação do

Veículo Leve sobre Tri-lhos (VLT) de Fortale-za. Mas, até o momen-to, Nete não sabe paraonde vai a instituição.A escola comunitáriaatende 70 crianças e jáhavia sido desapropria-da anos atrás. Agora, te-rá que mudar mais umavez de endereço.“A maior preocupa-

ção deles (dos pais) é

com a escola dos filhos.Muitos já assinaram(acordo para serem de-sapropriados) e o di-nheiro não caiu na con-ta. Os moradores estãoficando sem opção e ospreços das casas estãoaumentando. Eles es-tão indo para bairrosmuito distantes e mui-to perigosos”, lamentaa professora.Nete encara seu traba-

lho como uma missão, ecritica a postura de go-vernantes com relaçãoao que foi prometido pa-ra o Mundial de fute-bol. “Eles colocaram co-mo se a Copa do Mundofosse deixar pra genteum grande legado. O le-gado que a gente estávendo é de famílias queestão perdendo as mo-radias, escolas perden-

do alunos”, argumenta.Enquanto se divide en-

tre o ensino e a adminis-tração da escola, ela per-de as noites de sono,sem saber qual será odestino dos alunos. “Ho-je o futuro delas (dascrianças) é a incerteza.Se daqui a quatro meses

elas vão ter a escolinha,não sei. A gente está ven-do que vai ficar sem es-cola. Porque a gentenão tem condições de ar-rumar um espaço deuma hora pra outra. Anossa grande preocupa-ção é essa. É um danosocial que o governo es-

tá provocando, que sóse preocupa em cons-truir estádio”, avalia.O governo do estado

do Ceará informou queestá garantindo moradiaa todos os reassentadospelo projeto do VLT, ofe-recendo imóveis e pagan-do aluguel social. l

BrunoMoreno

[email protected]

RECIFE – Desde o iníciodo ano, as tardes emuma rua do bairro SãoFrancisco, na cidade deCamaragibe, na Região

Metropolitana de Recife,não são mais as mesmaspara a pequena Luíza*, de7 anos. As brincadeiras narua, agora, ganharamuma atividade a mais: fa-zer o dever de casa.Regularmente, ela sai

de casa com livro a tiraco-lo e se senta em frente à

sua antiga escola, o Edu-candário Bom Jesus. Namureta da calçada folheiaa edição, no aguardo daantiga professora,Marcio-neFerreiradaCruz,de51,conhecida como Cione.Aluna e professora não

foram desapropriadas porcausa das obras do Mun-

dial de futebol. Entretan-to, sãovizinhasdeumade-sapropriação para a cons-trução doRamal da Copa,uma via que ligará Recifeà Arena Pernambuco,construídaemSãoLouren-ço da Mata. Além disso,há o projeto de aumentaro Terminal Integrado de

Passageiros (TIP), que fi-ca próximo à escola.Por isso, um boato e a

incertezadoque iria acon-tecer com a escola foramsuficientesparaquea insti-tuição de ensino fechasseas portas. Luíza e Cionemoram próximas ao está-dio e no entorno do que

seria a Cidade da Copa,um megaempreendimen-to imobiliário que teria aarenacomopontodeparti-dapara a aberturade umanova fronteira de urbani-zação na Grande Recife.“Um rapazmedisse que

se for sair daqui não temnada a ver com a Copa.Vai ser para2016. Sobre afalta de informação, nãoposso acusar ninguém.Fui atrás, mas não conse-gui.Opovo se encarregoude falar. Não posso culparo povo, porque ele temmedo. Não podia segurara turma (os alunos). Oqueeudisse éminhapala-vra: não vai sair”, lembraa professora.

MEDODEFECHARNeste ano, coma saída demuitos moradores do en-torno, nenhuma mãe searriscou a matricular o fi-lho no educandário, comreceio de que, nomeio doano letivo, a escola fossedesapropriada. Luiza foipara umaescola do bairrovizinho, e, agora, vai detransporte escolar.“Euqueria terumacerte-

za, se fossem derrubar ounão. Para mim foi muitotriste. Eu não esperavaque, realmente, parasse aescola. Eu gostava de tra-balhar, de estar com ascrianças. Eu paro ali nacalçada e os meninos fa-lam assim: Tia Cione, vo-cê me ensina a tarefa? Aescola foi pra rua. Eobomé que eu gosto”, conta,com lágrimas nos olhos.De acordo com a Procu-

radoria Geral do Estadode Pernambuco, no Reci-fe, emCamaragibeeOlin-da foram desapropriados459 imóveis, ao custo deR$ 102,5 milhões. l*Nomefictício

Escola desapropriada pela segundavez não tempara onde ir

ObradoMundial afasta alunoseeducandário é fechadol> EmRecife, estudantes que não foram removidos ficaram semaula perto de casa

COPA SEM ESCOLACOPA SEM ESCOLA

QUARTADEUMASÉRIE

SAUDADE–

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FOTOS SAMUEL COSTA

hojeemdia.com.br 31BeloHorizonte,quinta-feira,15.5.2014

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