17
Coprodução de Serviços Públicos e Gestão de Resíduos Sólidos: Caminhos e Obstáculos na Experiência de um Município Catarinense Autoria: Paula Chies Schommer, Rogério Ubiratã Hamel Bueno, Rogério Kunzler Resumo A gestão dos resíduos sólidos gerados pela produção e consumo de bens e serviços constitui tarefa desafiadora para municípios brasileiros. A interdependência de fatores econômicos, sociais, ambientais, políticos e técnicos é evidente na provisão desse serviço público, que exige envolvimento direto e indireto de diversos atores no âmbito local, regional, estadual ou nacional - cidadãos, empresas de coleta e limpeza urbana, operadores de aterros, catadores e suas associações, órgãos governamentais do executivo, do legislativo e do judiciário, empresas comerciais e industriais da cadeia de valor da reciclagem. Enquanto problemática de administração pública, a coleta e destinação dos resíduos sólidos pode ser analisada como um serviço que pode ser coproduzido pelo engajamento mútuo de cidadãos e servidores públicos, entes públicos e privados. A centralidade da participação cidadã, a natureza do serviço público e a coprodução de bens e serviços são elaboradas por Denhardt e Denhardt (2000; 2003) na concepção do Novo Serviço Público (New Public Service), que se diferencia da Administração Pública “Tradicional” e do New Public Management como modelos de administração pública. Certas características são consideradas fundamentais por autores como Alford (2002), Brudney e England (1983), Marschall (2004) e Roberts (2004) para que sejam explorados potenciais políticos, econômicos e educativos de processos de coprodução de bens e serviços públicos, algo oportuno a ser investigado em experiências delimitadas. É o que se pretende fazer neste trabalho, que tem como objetivo geral identificar fragilidades da gestão de resíduos sólidos no município catarinense de Balneário Camboriú, sob a ótica da coprodução de serviços públicos. São objetivos específicos: discorrer sobre a problemática dos resíduos sólidos em suas dimensões ambiental, social e econômica; discutir a gestão de resíduos sólidos como desafio político e gerencial; descrever elementos da atual configuração da gestão de resíduos sólidos em Balneário Camboriú, identificando atores envolvidos, seus papéis e suas interações e; analisar obstáculos e caminhos para a gestão de resíduos sólidos no Município. O trabalho pode ser definido como estudo de caso de natureza exploratória e qualitativa, predominando o caráter descritivo. Sua construção baseia-se em referenciais bibliográficos e documentais, visitas e entrevistas realizadas entre meados de 2009 e de 2010 em associações de catadores, órgãos da prefeitura, empresa que comercializa recicláveis e empresa de coleta de resíduos, limpeza urbana e operação de aterro sanitário. Conclui-se que, embora haja avanços na coleta seletiva e operação de aterro sanitário, a gestão de resíduos sólidos em Balneário Camboriú é frágil em aspectos fundamentais da coprodução de serviços públicos, notadamente em sua dimensão política, pois os diversos envolvidos não participam de modo sistemático das decisões. Há fragilidades em aspectos como condições de trabalho e organização dos catadores de recicláveis, integração entre órgãos de governo, separação de resíduos pelos moradores, responsabilização dos envolvidos e espaços de intermediação de visões e interesses.

Coprodução de Serviços Públicos e Gestão de Resíduos ... · de serviços públicos; c) descrever elementos da atual configuração da gestão de resíduos sólidos em Balneário

Embed Size (px)

Citation preview

Coprodução de Serviços Públicos e Gestão de Resíduos Sólidos: Caminhos e Obstáculos na Experiência de um Município Catarinense

Autoria: Paula Chies Schommer, Rogério Ubiratã Hamel Bueno, Rogério Kunzler

Resumo A gestão dos resíduos sólidos gerados pela produção e consumo de bens e serviços constitui tarefa desafiadora para municípios brasileiros. A interdependência de fatores econômicos, sociais, ambientais, políticos e técnicos é evidente na provisão desse serviço público, que exige envolvimento direto e indireto de diversos atores no âmbito local, regional, estadual ou nacional - cidadãos, empresas de coleta e limpeza urbana, operadores de aterros, catadores e suas associações, órgãos governamentais do executivo, do legislativo e do judiciário, empresas comerciais e industriais da cadeia de valor da reciclagem. Enquanto problemática de administração pública, a coleta e destinação dos resíduos sólidos pode ser analisada como um serviço que pode ser coproduzido pelo engajamento mútuo de cidadãos e servidores públicos, entes públicos e privados. A centralidade da participação cidadã, a natureza do serviço público e a coprodução de bens e serviços são elaboradas por Denhardt e Denhardt (2000; 2003) na concepção do Novo Serviço Público (New Public Service), que se diferencia da Administração Pública “Tradicional” e do New Public Management como modelos de administração pública. Certas características são consideradas fundamentais por autores como Alford (2002), Brudney e England (1983), Marschall (2004) e Roberts (2004) para que sejam explorados potenciais políticos, econômicos e educativos de processos de coprodução de bens e serviços públicos, algo oportuno a ser investigado em experiências delimitadas. É o que se pretende fazer neste trabalho, que tem como objetivo geral identificar fragilidades da gestão de resíduos sólidos no município catarinense de Balneário Camboriú, sob a ótica da coprodução de serviços públicos. São objetivos específicos: discorrer sobre a problemática dos resíduos sólidos em suas dimensões ambiental, social e econômica; discutir a gestão de resíduos sólidos como desafio político e gerencial; descrever elementos da atual configuração da gestão de resíduos sólidos em Balneário Camboriú, identificando atores envolvidos, seus papéis e suas interações e; analisar obstáculos e caminhos para a gestão de resíduos sólidos no Município. O trabalho pode ser definido como estudo de caso de natureza exploratória e qualitativa, predominando o caráter descritivo. Sua construção baseia-se em referenciais bibliográficos e documentais, visitas e entrevistas realizadas entre meados de 2009 e de 2010 em associações de catadores, órgãos da prefeitura, empresa que comercializa recicláveis e empresa de coleta de resíduos, limpeza urbana e operação de aterro sanitário. Conclui-se que, embora haja avanços na coleta seletiva e operação de aterro sanitário, a gestão de resíduos sólidos em Balneário Camboriú é frágil em aspectos fundamentais da coprodução de serviços públicos, notadamente em sua dimensão política, pois os diversos envolvidos não participam de modo sistemático das decisões. Há fragilidades em aspectos como condições de trabalho e organização dos catadores de recicláveis, integração entre órgãos de governo, separação de resíduos pelos moradores, responsabilização dos envolvidos e espaços de intermediação de visões e interesses.

2

1. Introdução No contexto atual de debates sobre desenvolvimento sustentável e políticas públicas de

gestão urbana, a disposição adequada dos resíduos gerados pelo processo produtivo e pelo consumo de bens e serviços é temática presente na agenda de governos, empresas e organizações associativas. Os resíduos sólidos, em particular, são definidos pela norma brasileira NBR 10004 (ABNT, 1987) como aqueles em estado sólido e semi-sólido que resultam de atividades de origem industrial, doméstica, hospitalar, comercial, agrícola, de serviços e de varrição, recicláveis ou não-recicláveis. A gestão de resíduos sólidos, nosso foco neste trabalho, exige o envolvimento de diversos órgãos de governo, cidadãos e setores da sociedade na limpeza urbana, coleta, tratamento e disposição final de lixo (MONTEIRO et al., 2001), tarefa desafiadora para municípios brasileiros diante dos atuais padrões de consumo, sobretudo em locais com elevadas taxas de crescimento populacional.

A temática dos resíduos sólidos explicita a interdependência de fatores econômicos, sociais, ambientais, políticos e técnicos presentes na gestão pública. Ao eleger um foco de investigação sobre o tema, nosso olhar pode voltar-se para possíveis efeitos nocivos à saúde humana e ao meio ambiente. Ou priorizar a perspectiva econômica, analisando custos de sua destinação ou receitas que seu aproveitamento pode gerar. Também se pode focalizar as condições de trabalho dos envolvidos na coleta, processamento e tratamento de resíduos, observando questões de saúde, renda, mobilização política ou organização de trabalhadores. Outro viés de pesquisa pode ser o das tecnologias que vem sendo desenvolvidos para tratamento e aproveitamento de resíduos. Qualquer que seja o ponto de partida, a compreensão do fenômeno requer considerar todo o fluxo de materiais, cada etapa da cadeia de valor e a diversidade de atores que se articulam em sua gestão. A problemática dos resíduos sólidos relaciona-se com a vida de cada cidadão e cada organização, seja ela pública ou privada. Qualquer pessoa produz resíduos, é afetada direta ou indiretamente pelos resíduos gerados por outras pessoas e paga de alguma maneira por seu recolhimento e destinação.

Diferentes esferas e áreas governamentais envolvem-se na gestão de resíduos sólidos. No Brasil, a responsabilidade primordial pela definição de modelos e sua coordenação em cada município é dos governos locais, o que vem gerando diversidade de práticas, uma vez que cada um deles estabelece suas estratégias para fazê-lo. Alguns municípios brasileiros são pioneiros na implantação de sistemas integrados de coleta, separação, destinação e tratamento adequado de resíduos, engajando a população, organizações de catadores de materiais recicláveis e agentes públicos e privados nas soluções. Em outros, porém, a situação é precária, sendo insignificante a taxa de resíduos recicláveis separados, péssimas as condições de trabalho dos catadores e frágeis as condições de deposição dos resíduos não encaminhados para reciclagem. Em 2008, apenas 405 dos 5.564 municípios brasileiros faziam coleta seletiva de lixo. Estima-se que, das 150 mil toneladas de lixo produzidas diariamente nas cidades brasileiras, 59% vão para lixões a céu aberto, 13% são corretamente destinadas a aterros sanitários e o restante é enviado para aterros controlados (LIMA, 2010).

A definição de uma Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) vem sendo discutida desde 1989 no Congresso Nacional, chegando à aprovação pelo Senado Federal, no início de Julho de 2010, de substitutivo a projeto de Lei (PLS 354/89) que segue para sanção presidencial. A PNRS constitui uma diretriz para os envolvidos nessa problemática, estimulando diversidade de soluções orientadas por princípios e marcos regulatórios comuns. A Política reitera o papel dos municípios como principais responsáveis pela gestão de resíduos sólidos, reforçando a articulação de governos com diversos atores sociais no próprio local, com municípios vizinhos e com diferentes esferas governamentais (G1, 2010).

A produção desse serviço público – separação, coleta e destinação dos resíduos sólidos gerados em uma cidade – envolve, pois, diversidade de atores no âmbito local (cidadãos, empresas de coleta e limpeza urbana, operadores de aterros, catadores e suas associações,

3

órgãos governamentais do executivo, do legislativo e do judiciário, compradores e vendedores de sucata, indústrias), além de depender da interação com municípios vizinhos e instâncias governamentais estaduais e federais, como agentes reguladores e financiadores. Enquanto problemática de administração pública, a adequada coleta e destinação dos resíduos sólidos pode ser analisada como um serviço público coproduzido por governos e cidadãos, com a participação de entes públicos e privados. Coprodução pode ser definida como uma estratégia para produção de bens e serviços públicos em rede, pressupondo o engajamento de cidadãos, em articulação com governos, envolvendo ou não organizações de caráter privado (ALFORD, 2002; BRUDNEY e ENGLAND, 1983; MARSCHALL, 2004; MENEGASSO, SALM e RIBEIRO, 2007), o que exige espaços de interlocução e articulação em torno de práticas compartilhadas, fomentando a aprendizagem social (ROBERTS, 2004).

A centralidade da participação cidadã, a mudança de concepção sobre a natureza do serviço público e a ideia de coprodução são elaboradas por Denhardt e Denhardt (2000; 2003) na proposta do Novo Serviço Público (New Public Service) como modelo de administração pública. Tal concepção diferencia-se da chamada Velha Administração Pública, de cunho hierárquico, burocrático e centrada no aparelho estatal para a provisão de serviços públicos. E distingue-se do Novo Gerencialismo ou New Public Management, o qual valoriza a produção de bens e serviços públicos por meio de organizações e modos de gerir típicos do mercado. Certas características são fundamentais para que sejam explorados potenciais políticos, econômicos, sociais e educativos de processos de coprodução de bens e serviços públicos, algo que pode ser investigado em experiências delimitadas.

Balneário Camboriú, município catarinense de vocação turística, enfrenta problemática particular no que concerne à gestão de resíduos sólidos, uma vez que sua população regular é de pouco mais de 100 mil habitantes, chegando a receber 1 milhão de pessoas nos meses de veraneio, o que eleva o volume de resíduos gerados. Trata-se de um município posicionado entre os de melhor desempenho no país em indicadores como o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) – 0,867 no ano 2000 (PNUD, 2010). Na gestão de resíduos sólidos, está bem posicionado no cenário nacional, uma vez que conta com coleta seletiva regular há vários anos e dispõe de aterro sanitário operado segundo tecnologias consideradas apropriadas em termos ambientais. A observação da cadeia de valor dos resíduos sólidos no município, porém, aponta para elos mais frágeis, como a organização e as condições de trabalho dos catadores de materiais recicláveis, a separação dos resíduos pelos cidadãos e sua participação na política local, bem como a governança da rede de atores envolvida.

A experiência da gestão de resíduos sólidos em um município como Balneário Camboriú parece instigante para ampliar a compreensão do conceito de coprodução de serviços públicos, assim como este parece ser útil para analisar a atual configuração da rede de provisão desse serviço e identificar perspectivas. Assim, o objetivo geral deste trabalho é identificar fragilidades da gestão de resíduos sólidos em Balneário Camboriú, sob a ótica da coprodução de serviços públicos. Como objetivos específicos, temos: a) discorrer sobre a problemática dos resíduos sólidos em suas dimensões ambiental, social e econômica; b) discutir a gestão de resíduos sólidos como desafio político e gerencial, na visão da coprodução de serviços públicos; c) descrever elementos da atual configuração da gestão de resíduos sólidos em Balneário Camboriú, identificando atores envolvidos, seus papéis e suas interações e; d) analisar obstáculos e caminhos para a gestão de resíduos sólidos no município.

O trabalho pode ser definido como estudo de caso de natureza exploratória e qualitativa, predominando o caráter descritivo. A partir da descrição, são sugeridas relações entre variáveis e questões a serem exploradas em futuros estudos. O trabalho foi construído com base em referenciais bibliográficos sobre coprodução de bens e serviços públicos, abordagem esta que fundamenta a análise da gestão de resíduos sólidos em Balneário Camboriú. Foram analisados textos e documentos relativos a resíduos sólidos e, mais especificamente, sua

4

gestão no município – contrato de concessão, termo de cessão de uso de imóvel e equipamentos, relatórios da empresa responsável pela coleta e reportagens. Foram realizadas visitas: a duas associações de catadores, observando-se suas atividades e conversando-se com seus integrantes; a uma empresa que compra e vende materiais recicláveis na região, entrevistando-se um de seus proprietários e conversando informalmente com funcionários; à empresa que realiza a coleta de resíduos sólidos, limpeza urbana e operação do aterro sanitário, entrevistando-se a gerente da unidade e; a órgãos da prefeitura, nos quais a coleta de dados se deu por meio de entrevistas, observação direta e participante. A pesquisa de campo ocorreu entre o segundo semestre de 2009 e o primeiro semestre de 2010.

O texto está estruturado em quatro sessões, além desta introdução. Inicialmente, apresenta-se o conceito de coprodução de serviços públicos e detalham-se alguns de seus fundamentos. Em seguida, discute-se a problemática da gestão de resíduos sólidos e sua característica de interdependência – entre elementos econômicos, sociais, ambientais, políticos e técnicos – e entre diferentes atores sociais e níveis de governo. Logo após, apresentam-se dados sobre a gestão de resíduos sólidos em Balneário Camboriú e discute-se a experiência sob a ótica da coprodução de serviços públicos, evidenciando obstáculos e caminhos para que esta estratégia seja explorada em seu potencial neste campo de gestão pública urbana. Finalmente, apresentam-se as considerações que encerram o trabalho.

2. Coprodução de Serviços Públicos – origens e fundamentos Podemos considerar que um bem ou serviço público é coproduzido quando envolve a

participação ativa e conjunta entre cidadãos e agentes públicos, abrangendo ou não organizações privadas associativas ou empresariais. A coprodução pode ser entendida como estratégia de aproximação entre Estado e sociedade ou certa comunidade, ensejando à mesma a possibilidade de participar na definição do que constitui um bem público em certo contexto e das prioridades em termos de bens e serviços públicos a serem construídos, coletivamente.

A coprodução distingue-se do modelo tradicional de prestação de serviços públicos pelo Estado, sobretudo, pelo envolvimento dos cidadãos, em vários graus e formas, para discutir, projetar e entregar esses serviços (BRUDNEY; ENGLAND, 1983). Os cidadãos são co-responsáveis pela construção do bem público, seja de modo direto ou por intermédio de grupos ou organizações em torno das quais se articulam. Ao exigir o envolvimento cívico dos cidadãos, em parceria com servidores públicos profissionais, compartilhando-se recursos e capacidades, a coprodução potencialmente permite disponibilizar bens e serviços públicos com boa qualidade a menores custos, promover aprendizagem social e fortalecer a democracia (DENHARDT; DENHARDT, 2003; ROBERTS, 2004).

O conceito de coprodução vem ganhando espaço no campo da administração pública desde os anos 1970, embora, originalmente, o conceito tenha sido usado para caracterizar relações tanto no setor público como privado. Segundo Brandsen e Pestoff (2006), o conceito foi originalmente desenvolvido no âmbito do Workshop in Political Theory and Policy Analysis na Universidade de Indiana (EUA). O termo teria sido cunhado por Elinor Ostrom e sua equipe, em uma série de estudos sobre a polícia de Chicago, nos anos 1970. Naquele contexto, coprodução referia-se ao processo por meio do qual os recursos usados para produzir um bem ou serviço recebem contribuição de um conjunto de indivíduos, de diferentes origens, desempenhando diferentes papéis.

Uma experiência que motivou estudos sobre coprodução tem origem em restrições orçamentárias governamentais em cidades da Califórnia, nos Estados Unidos. Em função de limites no aumento de impostos definidos pela Proposition 13, introduzida na Constituição daquele estado, em 1978, os governos locais enfrentavam restrições orçamentárias, o que motivou a população a engajar-se na entrega de serviços públicos antes prestados exclusivamente pelo Estado, como vigilância, por exemplo, para que continuasse tendo acesso

5

a eles, sem pagar a empresas privadas para tê-los. Esta e outras experiências de coprodução mostram que o enfrentamento da escassez de recursos e o atendimento a crescentes e variadas demandas por serviços públicos, pode ocorrer com a participação do cidadão e por meio de arranjos alternativos de prestação de serviços, o que não retira a responsabilidade constitucional do Estado em provê-los (BRUDNEY; ENGLAND, 1983).

A relação entre produtor e consumidor (ou usuário) de certo bem ou serviço costuma ser enfatizada em processos de coprodução, ao envolver relações entre um produtor regular – aquele que produz para um cliente, usuário ou comércio – e um produtor consumidor, aquele que consome um serviço ou produto, ao mesmo tempo em que participa de sua produção (PARKS et al., 1981). Em se tratando de bens e serviços públicos, o agente estatal costuma ocupar o papel de produtor regular (podendo realizá-lo ou não em parceria com agentes privados), enquanto o “produtor consumidor” (usuário ou beneficiário) é o cidadão, desde que este participe ativamente da produção desse bem ou serviço (BRUDNEY; ENGLAND, 1983).

A coprodução representa uma mudança de foco na administração pública – da responsabilidade exclusiva do Estado na oferta de bens e serviços públicos para uma produção compartilhada. Isso exige uma nova compreensão do papel dos servidores públicos. Um papel mais voltado para a articulação, o diálogo, a mobilização de diferentes atores, compreendendo os diversos interesses e características de cada comunidade, aproveitando conhecimentos que cada ator pode trazer para a cena, facilitando o atendimento a demandas sociais (DENHARDT; DENHARDT, 2003). Também os cidadãos assumem novas funções, deixando de ser sujeitos passivos, passando ao status de integrantes ativos na produção do bem público. No processo de interação que estabelecem entre si, cidadãos e servidores públicos profissionais tornam-se aprendizes em um processo de aprendizagem social, que leva a novas soluções. Nesse sentido, os governos podem desempenhar o papel primordial de facilitadores do processo de aprendizagem coletiva (ROBERTS, 2004).

Esta mudança de concepção da natureza do serviço público e do papel do servidor público é apresentada e elaborada por Denhardt e Denhardt (2000; 2003), ao propor a concepção do Novo Serviço Público (New Public Service) para a administração pública. Tal concepção diferencia-se da chamada Velha Administração Pública, de cunho hierárquico, burocrático e centrada no aparelho estatal na provisão de serviços públicos. Também se distingue do Novo Gerencialismo (New Public Management), o qual valoriza a produção de bens e serviços públicos por meio de organizações e modos de gerir típicos do mercado.

A participação popular é característica-chave do Novo Serviço Público, o qual pressupõe que a cidadania está conectada à capacidade do indivíduo de influenciar os sistemas político e econômico. No mesmo sentido, a coprodução fundamenta-se na participação ativa do cidadão na vida social e na cidadania, entendendo-se que se trata de um dever cívico dos cidadãos serem co-responsáveis pela entrega de serviços públicos (DENHARDT; DENHARDT, 2003). Essa participação promove a democracia direta, vital para a manutenção da vida comunitária, contribui para a transparência das instituições públicas, promove aprendizagem social e compartilhamento de poder. Na perspectiva do Estado, a coprodução enseja o poder com os cidadãos, em vez do poder sobre os cidadãos, contribuindo para transformar indivíduos dependentes em cidadãos mais livres (ROBERTS, 2004).

Ao envolver co-responsabilização pelo processo e pelos resultados, o conceito de coprodução relaciona-se com o debate sobre accountability, não apenas no sentido do acesso da população a informações sobre os serviços e oportunidades e canais para questioná-las, mas principalmente porque exige a responsabilização contínua dos envolvidos nas decisões e na execução dos serviços. Os mecanismos compartilhados são requeridos desde a definição dos objetivos, das regras, dos indicadores de desempenho e dos modos de prestação de contas e de avaliação dos resultados, bem como das sanções caso não sejam cumpridas as responsabilidades ou não sejam atingidos os resultados (DENHARDT; DENHARDT, 2003).

6

Whitaker (1980) considera que, embora qualquer forma de coprodução enseje, em certo grau, a participação de cidadãos e sua interação com servidores públicos para realizar serviços ou modificá-los, a participação varia conforme a natureza do serviço em questão. Em certas áreas, os cidadãos participam prioritariamente requisitando o serviço, menos na sua execução, como ocorre ao demandar proteção policial ou assistência em casos de incêndio. Já quando o serviço envolve os próprios usuários (e sua pretensa transformação), como nas áreas de educação, cultura e saúde, o engajamento integral é imprescindível. Outra possível tipologia identifica que os cidadãos coproduzem bens e serviços públicos quando: (i) comunicam suas preferências, (ii) requerem assistência aos servidores públicos; (iii) cooperam na execução dos programas públicos; (iv) discutem com servidores redirecionamentos dos serviços; (v) influenciam os rumos das políticas, contribuindo para sua mudança ou continuidade. Já Brudney e England (1983) diferenciam três níveis de participação: individual, em grupo ou coletiva. Na forma individual, é o próprio indivíduo o beneficiário da ação, embora possa haver efeitos sobre o coletivo. A participação em grupo e a coletiva implicam benefícios que atingem tanto o indivíduo como a comunidade, até conjuntos sociais mais amplos.

Para engajar-se na construção do bem público, a sociedade pode organizar-se em torno de grupos, projetos ou, mais formalmente, em associações ou fundações dedicadas a finalidades coletivas ou públicas, na forma de organizações não-governamentais (ONGs), da sociedade civil (OSCs) ou do terceiro setor. Muitas delas são flexíveis, estão próximas de certa causa ou comunidade e usufruem de boa capacidade de mobilização de cidadãos, o que pode contribuir para a qualidade dos serviços públicos e para a legitimação de projetos e ações de origem governamental em certa comunidade.

A coprodução de bens e serviços públicos pode também contar com organizações típicas do mercado, como empresas, algo em discussão na literatura e que merece ser mais pesquisado. Quando são parceiras de governos ou concessionárias de serviços públicos, como ocorre no caso aqui analisado, as empresas participam da entrega do serviço como parte de seu negócio, com fins lucrativos, o que não caracterizaria, diretamente, a coprodução. Já em iniciativas de empresas voltadas para questões coletivas, sem relação direta com seus negócios, é mais visível a proximidade com a noção de coprodução. Na prática do investimento social privado, que se refere à aplicação sistemática e monitorada de recursos privados para fins públicos (NOGUEIRA e SCHOMMER, 2009), as empresas podem atuar em parceria com governos, cidadãos e organizações sem fins lucrativos em prol de causas como redução de impactos ambientais das atividades produtivas, consumo consciente ou redução das desigualdades sociais, apoiando iniciativas na área de educação, geração de emprego e renda, cultura, saúde, meio ambiente etc. As empresas podem participar não apenas fazendo contribuições financeiras, mas empregando conhecimentos, infra-estrutura e tecnologias. Podem envolver-se diretamente e estimular empregados e parceiros e contribuir para causas sociais e ambientais, contribuindo para o desenvolvimento de suas comunidades.

Ao concebermos empresas e demais organizações do mercado como parte da sociedade e como co-responsáveis pelo enfrentamento dos desafios coletivos da atualidade, seja pela sociedade global, seja em comunidades delimitadas, podemos percebê-las como possíveis agentes de coprodução. Nesse sentido, governos, organizações não-governamentais, comunidades politicamente articuladas e, sob certas condições, também empresas, compartilham responsabilidades e podem trabalhar em conjunto para produzir bens e serviços públicos (ALFORD, 2002; MENEGASSO; SALM; RIBEIRO, 2007). Sumarizando elementos basilares do processo de coprodução de bens e serviços públicos, baseando-nos em Roberts (2004), Denhardt e Denhardt (2003), Levine (1984), Marschall (2004), destacamos: 1. Engajamento voluntário e coletivo de cidadãos, em articulação com servidos públicos e demais atores públicos e privados envolvidos com cada bem ou serviço;

7

2. Participação ativa dos cidadãos, no sentido político da ação, entendendo-se a participação política na vida da cidade como canal para a realização dos potenciais dos seres humanos, como prática transformadora de indivíduos dependentes em cidadãos livres. O cidadão é visto como agente de mudança e sua participação na produção de bens e serviços públicos amplia possibilidades de solução e suas próprias capacidades de fazer escolhas; 3. Gestão dialógica e poder compartilhado - espaços de discussão e de deliberação coletiva sobre repertórios de interpretação e de ação, sobre demandas, objetivos e meios para alcançá-los. O poder compartilhado protege a liberdade dos envolvidos, legitima decisões e, em relação ao Estado, implica o poder com os cidadãos e não o poder sobre os cidadãos; 4. Manifestação e reconhecimento de diferentes interesses e perspectivas - oportunidade para manifestação e reconhecimento de diferentes interesses e perspectivas quanto ao bem ou serviço em questão. Os interesses individuais são reconhecidos e busca-se, a partir deles, a construção de consensos sobre o que é comum e pode ser construído em conjunto, priorizando-se o atendimento a necessidades consideradas legítimas em certo contexto espaço-temporal. No processo, é possível, inclusive, que as pessoas modifiquem visões e a definição de seus interesses; 5. Reciprocidade – é importante que haja benefícios mútuos na relação (que não apenas um se beneficie) e que sua distribuição seja considerada equilibrada e justa; 6. Co-responsabilização pelo processo e pelos resultados; 7. Continuidade na relação ou na rede – o processo de coprodução, na maioria das situações, não é esporádico, eventual, mas sim fundamentado em relações regulares e duradouras, o que tende a reforçar a confiança mútua; 8. Confiança mútua - à medida que os agentes confiam mais um nos outros, a rede de relacionamentos e de realização do trabalho tende a aperfeiçoar-se e os custos tendem a reduzir-se, o que não significa eliminar conflitos ou diferentes visões sobre o tema; 9. Espaço de discussão das percepções sobre a qualidade do serviço e da relação entre os coprodutores – é fundamental que haja espaço contínuo para a discussão da qualidade do serviço prestado, tornando cruciais os mecanismos de avaliação de processos e resultados, o que gera aprendizagem, melhorias e inovações; é também necessário expressar e discutir abertamente os conflitos entre os parceiros e suas percepções sobre a qualidade da relação.

Recuperando possíveis efeitos da coprodução como estratégia de provisão de serviços públicos, sumarizamos: (i) valorização da cidadania e da participação popular, construindo-se novos arranjos de articulação entre atores e fortalecendo a democracia; (ii) convívio em comunidade, que fortalece a reciprocidade e os laços de confiança entre os envolvidos e desenvolve o senso de pertencimento à causa e/ou à comunidade; (iii) fomento a processos de aprendizagem social, com efeitos sobre indivíduos, grupos e organizações; (iv) redução de custos e qualificação do atendimento a necessidades dos cidadãos; pela coprodução no planejamento e execução de serviços públicos, aumentam as chances de que os mesmos sejam entregues com boa qualidade, de forma acessível, no tempo em que o cidadão dele precisa.

3. A problemática da gestão de resíduos sólidos

O destino dos resíduos gerados pelo processo produtivo e pelo consumo de bens e serviços constitui uma preocupação mundial. No âmbito dos debates sobre desenvolvimento sustentável, os resíduos da ação humana e seus impactos revelam a interdependência entre fatores ambientais, sociais, econômicos, políticos e técnicos. Trata-se de uma problemática integrada à vida de cada cidadão e cada organização, direta ou indiretamente, seja na produção, no consumo, no financiamento, no processamento, na definição de tecnologias e políticas de gestão ou, ainda, no que tange aos possíveis impactos nocivos à saúde das pessoas e ao meio ambiente quando os resíduos não são devidamente depositados e tratados. Em termos amplos – o bem público do equilíbrio na geração e tratamento de resíduos no planeta

8

ou, em termos localizados, o serviço público de adequado encaminhamento dos resíduos em uma cidade, com boas condições para seus cidadãos, é algo que exige o engajamento de todos os envolvidos para ser produzido.

Aos diversos níveis e instâncias governamentais cabe a responsabilidade primordial de elaborar e implementar políticas públicas de resíduos sólidos, engajando cidadãos e agentes públicos e privados no processo. Entretanto, por mais que se definam marcos regulatórios, que se empreguem capacidades de governos e empresas, que se criem soluções de ordem tecnológica e que se invistam recursos econômicos, a participação direta de cada cidadão é fundamental para que se complete o ciclo que envolve a gestão de resíduos sólidos.

A intensidade e as formas de participação do cidadão varim. Além de separar devidamente os resíduos e pagar direta ou indiretamente pela coleta e destinação, os cidadãos podem engajar-se nas decisões sobre a política de resíduos sólidos na sua cidade, envolver-se em certas etapas da cadeia de valor dos resíduos, monitorar a qualidade dos serviços e avaliar os resultados. Podem engajar-se em iniciativas de educação ambiental visando reduzir o volume de resíduos gerados, exercer pressão sobre as empresas para que gerem menos resíduos e tratem-nos adequadamente, priorizar aquisição de bens e serviços de empresas que adotam políticas mais sustentáveis, além de consumir produtos com menos impacto. A geração de alternativas em termos de produtos e embalagens e a alteração de hábitos de consumo são cruciais para a gestão de resíduos sólidos, já que não se pode esperar da reciclagem o “milagre do consumo imaculado” (GONÇALVES-DIAS, 2009).

Os resultados da participação beneficiam direta e indiretamente os cidadãos, em diferentes dimensões. Ao priorizar a questão dos resíduos, é possível que se diminua a extração de recursos naturais e a poluição do meio ambiente e haja consequente melhoria em condições de saúde. Pode-se obter redução de custos de coleta e de operação de lixões ou aterros sanitários e aumento de sua vida útil. Desenvolve-se conscientização, politização, senso de pertencimento à comunidade e à cidade, solidariedade, capital social e aprendizagem. Além disso, ao colaborar na correta separação dos resíduos e na viabilização de melhores condições de trabalho e renda aos catadores de recicláveis, cada cidadão pode influenciar a distribuição dos benefícios econômicos gerados pelos recicláveis, contribuindo para o equilíbrio econômico e para a redução de desigualdades e de gastos sociais.

Cada brasileiro produz aproximadamente 1 kg de resíduo sólido por dia, em média. Em grandes cidades, como São Paulo, a produção diária chega a 1,5 kg por pessoa, o que soma 17 mil toneladas diárias de resíduos só na capital paulista (O DOCUMENTO, 2010). No Brasil, estima-se que 59% dos resíduos sólidos urbanos tenham como destino os lixões a céu aberto, 13% sejam corretamente destinados a aterros sanitários e o restante seja enviado para aterros controlados (LIMA, 2010; MESQUITA JUNIOR, 2007). O país alcança bons índices de reciclagem em certos materiais, sobretudo aqueles com maior retorno econômico, como latas de alumínio (reaproveita-se cerca de 94% do total descartado), papelão (77% é reaproveitado) e garrafas PET (50%). No entanto, recicla pouco outros tipos de plástico, latas de aço e caixas longa-vida, cujos índices não ultrapassam os 30% (VEJA, 2008). De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o Brasil deixa de lucrar R$ 8 bilhões por ano com reciclagem (O DOCUMENTO, 2010).

A riqueza gerada pela reciclagem, entretanto, nem sempre é equilibradamente distribuída entre aqueles que contribuem para produzi-la, o que nos leva aos catadores de materiais recicláveis, cruciais para a viabilidade econômica e logística dessa cadeia de valor. Seu poder de influenciar decisões econômicas e políticas que os afetam diretamente costuma ser reduzido. Conforme analisa Gonçalves-Dias (2009), catadores e suas organizações ficam espremidos entre grandes empresas e o poder público, tornando sua inclusão (social, política e econômica) perversa. Enquanto o interesse do poder público é legitimar-se politicamente ao promover políticas de trabalho e renda e viabilizar a reciclagem de maneira barata, o interesse

9

de grandes empresas é sentirem-se cumpridoras de obrigações socioambientais ao vincular-se a associações e cooperativas e, ao mesmo tempo, resolver problemas relativos a restrições logísticas (capilaridade) e de custos na coleta seletiva de resíduos. A viabilidade econômica da reciclagem depende, em grande parte, de vantagens econômicas nos custos de coleta, o que costuma ocorrer pela utilização de mão-de-obra intensiva não especializada, com mínima remuneração. As soluções em termos de novas tecnologias de coleta e separação de recicláveis que levam a ganhos de escala, por outro lado, podem gerar dispensa de mão-de-obra, outra ameaça a esses trabalhadores (GONÇALVES-DIAS, 2009).

As condições de trabalho dos catadores constituem outro desafio. Raramente são condições dignas no que tange a segurança e saúde, acesso a direitos trabalhistas e reconhecimento de sua contribuição para a sociedade, não apenas no campo ambiental, mas também econômico, social e político. Em certo sentido, o trabalho do catador é análogo ao dos escravos do século XIX (GONÇALVES-DIAS, 2009). Muitos adotam essa ocupação quando não encontrarem alternativa de trabalho em melhores condições, sobretudo por sua qualificação considerada inadequada para acessar empregos mais bem posicionados e pelas taxas de pobreza e desemprego no país. Sua inserção em cooperativas nem sempre representa a melhor alternativa ou a “solução” para os catadores em meio às cadeias produtivas de reciclagem, o que reforça a necessidade de organização em redes e soluções que passam pela regulação dos mercados e das cadeias produtivas de reciclagem.

Em meio a zonas de fragilidade, precariedade e vulnerabilidade (GONÇALVES-DIAS, 2009), embora ainda careçam de poder de influência sobre as políticas públicas que os afetam, os catadores vem organizando-se em torno de movimentos sociais, associações, cooperativas e redes de economia solidária, conquistando certo reconhecimento profissional e espaço no cenário político nacional e internacional, por meio de organizações como o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR, 2010), que luta por uma inclusão social mais consistente e permanente. O MNCR busca formar bases orgânicas de catadores e catadoras de materiais recicláveis pelo país, em torno de cooperativas, associações, entrepostos, grupos e redes, orientados pela autogestão no trabalho e buscando maior controle da cadeia produtiva da reciclagem, de modo que o serviço que produzem traga mais benefícios para a categoria e que se eliminem os exploradores do trabalho. O Movimento enfatiza a participação direta da população e do trabalhador em tudo que envolve sua vida, buscando, ainda, a valorização da categoria, o apoio mútuo entre os trabalhadores, o protagonismo e a independência da classe (MNCR, 2010).

Em relação às políticas públicas de resíduos sólidos, alguns estados brasileiros contam com política definida, como é caso de Santa Catarina. A lei estadual 13.557/2005 define diretrizes e normas de prevenção da poluição, proteção e recuperação da qualidade do meio ambiente e da saúde pública, visando assegurar o uso adequado dos recursos ambientais no estado (SANTA CATARINA, 2005). No âmbito nacional, há quase vinte anos vem sendo discutidos parâmetros de uma política nacional unificada de resíduos sólidos, que sirva como referência para a ação dos vários atores e níveis de governo envolvidos. Em 07 de julho de 2010, o Senado Federal aprovou em plenário a chamada Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que segue para sanção presidencial (G1, 2010). A lei insere na agenda política nacional a questão dos resíduos sólidos e sua destinação, incentiva a reciclagem de materiais reaproveitáveis e busca disciplinar seu manejo. Dentre as diretrizes da Política Nacional, está a gestão integrada de resíduos sólidos, que pressupõe envolvimento de diferentes órgãos de governo e da sociedade para limpeza, coleta, tratamento e disposição final de resíduos (MONTEIRO et al., 2001). A gestão compartilhada atribui responsabilidades a todos os envolvidos, desde indústria e governos até o consumidor final. No âmbito municipal, a responsabilização dos municípios em sua jurisdição e a elaboração de planos de gestão integrada são condições para obtenção de recursos da União direcionados à limpeza

10

urbana e ao manejo de resíduos sólidos. A lei prioriza a coleta seletiva na forma de cooperativas de catadores, o que representa mais um passo para o fortalecimento das cooperativas e para a consolidação e o reconhecimento dos catadores (G1, 2010).

Um dos artigos da lei prevê que fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes invistam no desenvolvimento, fabricação e colocação no mercado de produtos que possam ser reciclados e cuja fabricação e uso gerem a menor quantidade possível de resíduos sólidos, além de prever a logística reversa obrigatória para certos produtos. A lei apresenta mecanismos a serem utilizados no controle dos geradores de resíduos sólidos sujeitos ao sistema de logística reversa no âmbito local e a utilização de instrumentos financeiros que poderão ser aplicados para incentivar ou controlar as atividades dele decorrentes (G1, 2010).

Embora a política nacional constitua referência para a gestão dos resíduos em cada município, o estágio das práticas e as condições contextuais – culturais, políticas, econômicas, ambientais, demográficas etc. – são muito diferentes de um local para outro. Os caminhos para enfrentar o desafio vem sendo construídos nos municípios, com avanços e fragilidades decorrentes da criatividade política e gerencial, do engajamento de diferentes atores e dos limites enfrentados em cada local. Passaremos, pois, a dedicar nossa atenção à experiência do município catarinense de Balneário Camboriú na gestão de resíduos sólidos, observando avanços e limites vivenciados no município, sob o viés da coprodução de serviços públicos.

4 Gestão de resíduos sólidos em Balneário Camboriú na perspectiva da coprodução de serviços públicos

Balneário Camboriú é um município do estado brasileiro de Santa Catarina, localizado no litoral da região do Vale do Rio Itajaí, região que agrega 11 municípios, com população total de 485.737 habitantes (AMFRI, 2010). Balneário Camboriú, cuja população estimada, em 2009, era de 102.081 habitantes, faz divisa com os municípios de Itajaí, Camboriú e Itapema. Por sua vocação turística, a cidade chega a comportar quase 1 milhão de pessoas nos meses de veraneio, em uma área de 46 km², com elevada densidade de construções prediais. Segundo o ranking do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M), divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o IDH-M de Balneário Camboriú, no ano 2000, era de 0,867, a segunda melhor posição no seu estado (atrás apenas de Florianópolis, com 0,875) e a sétima no país (PNUD, 2010).

A coleta de resíduos sólidos e a limpeza urbana em Balneário Camboriú foram realizadas diretamente pela prefeitura até 2004, quando houve processo licitatório para a terceirização do serviço. A vencedora foi a empresa atualmente chamada de Ambiental Saneamento e Concessões, que passou a ser responsável pela coleta dos resíduos sólidos (domiciliares, hospitalares e de empresas de pequeno porte) e pela limpeza urbana (varrição, raspagem e capinação de ruas, pinturas de meio-fio, limpeza de praias e bocas de lobo), em regime de concessão. O Município foi pioneiro no Brasil na realização dos serviços de limpeza urbana e coleta de resíduos sólidos em regime de concessão a uma empresa privada, modelo atualmente adotado em outros locais. A tarifa pelo serviço passou a ser cobrada diretamente dos usuários, o que gerou controvérsias que envolveram a Prefeitura, a Câmara de Vereadores, o Ministério Público, a empresa concessionária e a população. Até hoje está em questionamento o pagamento pelos usuários da taxa relativa à limpeza urbana, argumentando-se que por ser um serviço/bem indivisível, não pode ser cobrado de cada usuário.

Segundo a Secretaria de Meio Ambiente (SEMAM), o volume de resíduos sólidos recolhidos como “lixo comum” é, em média, de 3.600 toneladas/mês na baixa temporada e de 6.500 toneladas/mês nos meses de veraneio (dezembro a março). Já o volume de coleta seletiva (recicláveis) é de 130 toneladas/mês na baixa temporada e 167 toneladas/mês no veraneio. Em pesquisa realizada em 2008, Balneário Camboriú era um dos 40 municípios catarinenses (14% do total) que informaram possuir programas de coleta seletiva (COMCAP,

11

2008). No Brasil, no mesmo ano, estimava-se que 405 dos 5.564 municípios (7,3% do total) faziam coleta seletiva de lixo (LIMA, 2010).

4.1. O fluxo dos resíduos sólidos em Balneário Camboriú e os papéis dos envolvidos Pode-se descrever o ciclo dos resíduos sólidos (Figura 1) iniciando-se pela separação

dos mesmos pelos cidadãos no âmbito de suas casas, escolas, empresas etc. Os materiais são coletados por um caminhão da empresa Ambiental, que cobra dos usuários taxa mensal pelos serviços. Empresas de maior porte, como shopping, supermercados, bancos e construtoras, contratam outras empresas do ramo para coletar e dar destino aos resíduos sólidos que produzem. O material coletado pela Ambiental como lixo comum é depositado no aterro sanitário da Canhanduba, localizado no município vizinho de Itajaí e também administrado pela empresa. O aterro recepciona resíduos de Balneário Camboriú e Itajaí, os quais pagam à empresa pelo volume proporcional de lixo depositado oriundo de cada município, cerca de 40% e 60%, respectivamente. O aterro opera em condições consideradas apropriadas do ponto de vista ambiental, algo positivo frente ao cenário nacional.

O lixo seletivo é coletado pela empresa, uma vez por semana em cada bairro, e entregue pela para a Associação de Catadores Terra Limpa (ACATELI) e para a Associação de Coletores de Materiais Recicláveis (ASSCOMAR), que separam, prensam, enfardam e comercializam os materiais. Alguns catadores individuais fazem a coleta diretamente nas ruas. O que não é aproveitado é destinado a lixões ou ao aterro. Os materiais são vendidos para comerciantes, os chamados sucateiros, entre eles uma empresa sediada em Camboriú, que é a principal compradora das Associações. Os intermediadores revendem os produtos para indústrias de beneficiamento de recicláveis, de acordo com o tipo de material. Os produtos fabricados com esses materiais são comercializados, chegando novamente aos consumidores.

Nos primeiros anos da coleta seletiva, que existe desde 2001, o material recolhido era encaminhado para uma Usina de Triagem de materiais recicláveis gerida pela SEMAM. O trabalho de separação, classificação e enfardamento era feito por funcionários da Prefeitura. Os recursos financeiros adquiridos com a venda do material eram revertidos para o Programa de Educação Ambiental Terra Limpa. Em 2003, surgiu a ACATELI, para a qual a SEMAM começou a prestar suporte gerencial e encaminhar os resíduos recicláveis. No mesmo ano, foi firmado Termo de Cessão de Uso de Bem Móvel, permitindo aos associados fazer uso de terreno (localizado em área distante da cidade, sem acesso por meio de transporte coletivo) e de equipamentos (esteira de triagem, prensa e balança) pertencentes ao Município. A ACATELI nem sempre conseguia processar todo o material coletado, o que levou a Prefeitura a destinar parte dele para a ASSCOMAR, sediada no município vizinho de Camboriú. No início de 2010, um incêndio nas instalações da ACATELI comprometeu sua capacidade produtiva, aumentando a quantidade de resíduos destinados a ASSCOMAR.

A prefeitura de Balneário Camboriú é responsável por fiscalizar a prestação dos serviços realizados pela Ambiental e pelas associações, e o faz por meio de duas secretarias - Meio Ambiente e Administração. A Secretaria da Administração fiscaliza aspectos relativos ao contrato, à prestação de contas financeiras pela empresa e à definição e cobrança da tarifa, que é anualmente reajustada em acordo entre a empresa e a prefeitura. A SEMAM monitora os serviços da empresa, por meio de vistorias nas ruas e de relatórios apresentados mensalmente, e acompanha o trabalho das associações de catadores visitando suas sedes. A SEMAM também realiza o Programa de Educação Ambiental Terra Limpa, em parceria com a Secretaria de Educação, que objetiva a sensibilização e a conscientização da população, disseminando nas escolas a importância de separar o lixo reciclável do orgânico, visando despertar a co-responsabilidade dos alunos e comunidade para adotar práticas de preservação do meio ambiente e melhoria da qualidade de vida da comunidade. A Secretaria de Inclusão

12

Social é outro órgão relacionado à questão, no que tange a ações que visam a inclusão social dos catadores, como capacitação e a prevista constituição de nova cooperativa no município. Prefeitura

Escolas Distribuição Pgto. de tarifa Lixo comum Aterro sanitário

Comunidade Coleta seletiva

Comercialização Indústria de beneficiamento ASSCOMAR ACATELI Sucateiros plástico metal papel Indústrias papel papelão vidro de reciclagem vidro

Empresa contratada pelo shopping Figura 1: Fluxo dos resíduos sólidos em Balneário Camboriú Fonte: Elaboração própria

A Câmara de Vereadores atua na aprovação de leis relativas aos resíduos, na

fiscalização do executivo e demais envolvidos e na promoção de audiências públicas. Ao Ministério Público compete averiguar se os preceitos legais são observados. Em Balneário

13

Camboriú, o Ministério Público e outros tribunais do judiciário tem se envolvido na discussão sobre a cobrança da taxa pela empresa prestadora do serviço. Além disso, em parceria com o governo estadual e a Fundação Estadual do Meio Ambiente (FATMA-SC), o Ministério Público institui o programa Lixo Nosso de Cada Dia, em 2001, com o objetivo de fazer com que todos os municípios catarinenses destinassem de forma correta seu lixo. Na época, um em cada oito municípios depositava o lixo em consonância com as leis ambientais. Em 2006, 82,6% dos 293 municípios davam destino adequado ao lixo, segundo a COMCAP (2009).

Outros órgãos envolvidos nas políticas de resíduos sólidos afetam as ações em um município como Balneário Camboriú. Entre eles, órgãos federais como o Ministério das Cidades, o Ministério do Trabalho e Emprego e a Caixa Econômica Federal, os quais atuam na elaboração e execução de políticas regulatórias, de financiamento e de capacitação. Empresas privadas e institutos e fundações ligadas a elas, como o Instituto Vonpar (ligado à Vonpar Refrescos S.A., franqueada da Coca Cola no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina), por exemplo, investem em projetos voltados para a cadeia de reciclagem, apoiando a organização e qualificação de catadores. Em 2009, a SEMAM apoiou a ACATELI para submeter um projeto a edital do Instituto Vonpar. O mesmo chegou a ser aprovado, mas não foi viabilizado por fragilidades em aspectos formais da Associação.

4.2. Fragilidades da gestão de resíduos sólidos em Balneário Camboriú Analisando a gestão de resíduos sólidos em Balneário Camboriú sob o viés da

coprodução de serviços públicos, enfatizaremos aspectos políticos, uma vez que, embora a coprodução costume gerar redução de custos e vantagens econômicas para os envolvidos, o ponto central dessa estratégia está na participação dos que afetam e são afetados pela qualidade do processo de construção de um bem ou serviço público.

Ainda que possamos considerar a coleta seletiva regular e as condições do aterro sanitário como avançadas frente ao panorama nacional, persistem controvérsias no que tange à divisão de custos relativos ao aterro sanitário entre os municípios de Itajaí e Balneário Camboriú, ponto este em negociação entre ambos. No que se refere ao pagamento dos serviços de coleta e limpeza urbana pelos cidadãos, como a experiência foi pioneira no modelo de concessão dos serviços, houve polêmica, dificuldade inicial na execução das cobranças e, até hoje, persiste questionamento quanto à legalidade de cobrança aos cidadãos da taxa relativa à limpeza urbana.

Embora seja perceptível o envolvimento de órgãos do executivo, do legislativo e do judiciário, setores da sociedade civil e da empresa Ambiental, a temática dos resíduos sólidos, sobretudo em relação aos recicláveis, não parece ocupar espaço destacado e claro na agenda política do Município. Vários órgãos cuidam de uma parte do ciclo, de acordo com sua visão particular sobre as melhores soluções, não havendo espaços e oportunidades claras de discussão e negociação entre os envolvidos para concepção e execução das etapas da cadeia de resíduos sólidos. No que se refere aos catadores de recicláveis, cada pessoa com que tivemos contato parece ter um diagnóstico e uma solução particular sobre como integrá-los, mas quase sempre o discurso é de que falta aos catadores qualificação e organização, como se as fragilidades (e a responsabilidade por superá-las) fossem da categoria apenas, não do sistema como um todo.

As próprias associações não parecem desempenhar um papel ativo na discussão da política no Município. Não parece haver articulação entre os associados na gestão da própria associação e articulação como categoria com outros atores sociais locais e com associações ou movimentos similares em outras cidades, em defesa de melhores condições de trabalho e da articulação em rede, ou do direito de participar das decisões sobre as políticas que lhes afetam. Embora sejam formalmente associações, assemelham-se a pequenas empresas familiares, que tem um “dono” (o mesmo ou a mesma presidente desde seu início) que toma

14

as decisões e busca fazer articulações com o poder público e com outras empresas, buscando benefícios mais imediatos para “seu pequeno negócio”. A presidente da ACATELI inclusive reside com a família nas instalações da Associação, assim como o presidente da ASSCOMAR reside com sua família no terreno doado pela Prefeitura de Camboriú para a Associação.

Os associados, embora assim chamados, estão mais próximos do perfil de trabalhadores informais eventuais, que quando não encontram alternativa melhor, dedicam-se ao trabalho com recicláveis. Em época de veraneio ou de aquecimento do setor de construção civil, faltam trabalhadores para as associações, pois há mais oferta de emprego, tornando instável o número de associados que trabalham na separação, prensagem e enfardamento do material. Nos locais de trabalho, as condições da higiene e segurança são precárias, sendo comum a presença de animais e de crianças das famílias dos catadores.

Na ACATELI, eventualmente ocorrem conflitos em função da desconfiança quanto à justa distribuição do dinheiro obtido, que depende da quantidade de materiais comercializados. Na ASSCOMAR, as cargas de resíduos que chegam são divididas entre os catadores, que fazem a separação e prensagem. Cada um deles “vende” ao presidente da Associação e recebe remuneração deste pelo material que preparou. O presidente, por sua vez, revende os fardos para empresas de intermediação – os sucateiros. Ou seja, o próprio presidente da Associação desempenha papel de intermediador, algo relativamente comum na cadeia de reciclagem – o envolvimento de vários intermediários (atravessadores) entre quem coleta e separa os materiais e as indústrias que utilizam os mesmos em seus processos produtivos. É visível na ASSCOMAR que são prensados e enfardados preferencialmente os resíduos com maior valor comercial, sendo descartados para posterior encaminhamento ao lixão ou aterro sanitário os que são pouco valiosos, algo também comum em outros locais.

O poder público, em suas várias instâncias, trata os problemas de modo pontual. Embora haja pessoas, em certos órgãos, interessadas em contribuir para melhorias nos vários elos da cadeia de valor, conversam pouco entre si. Cada secretaria cuida de uma parte da questão e geralmente não fica sabendo da iniciativa das demais, a não ser eventual e informalmente. Não parece haver alguma pessoa, setor ou organização que exerça liderança na discussão do tema, ou que tenha legitimidade para convocar e propiciar um espaço de debate aberto e articulado sobre o mesmo. Algumas das iniciativas propõem soluções “milagrosas” que exigem elevado volume de investimentos. Outras medidas de simples implementação podem ficar paradas porque entre os políticos, servidores, técnicos, catadores, sucateiros ou cidadãos há diferentes visões sobre os caminhos ou soluções a adotar e cada um defende sua visão, sem oportunidade de conhecer e negociar posições. Ocorre, assim, uma disputa velada de posições, muitas vezes associada à ligação com um partido político ou outro – “a proposta do fulano é boa, mas ele é de outro partido” ou “se fortalecermos o trabalho de ciclano, fortalecemos o candidato tal, pois ciclano é ligado a ele”.

De modo geral, observa-se visão imediatista – catadores, que desejam receita financeira imediata, políticos que desejam reconhecimento para as próximas eleições, pessoas em cargos de confiança que desejam manter-se no mesmo. Além disso, não há fiscalização regular das condições de saúde e segurança dos catadores, do contato das crianças com os resíduos, assim como não se penaliza as associações por avarias ao patrimônio público (houve incêndio na ACATELI, que avariou equipamentos cedidos pela prefeitura e, embora o termo de cessão de uso atribua responsabilidade a esses usuários, não houve qualquer sanção à entidade).

Quanto à separação dos resíduos pelos moradores, embora haja programas de educação ambiental, é visível diante dos materiais que chegam às associações que há muito a melhorar no que tange ao engajamento de cada cidadão, tanto na redução do consumo como na adequada separação. Seja por motivação de cunho ambiental, político ou econômico, a redução do volume de resíduos encaminhados para o aterro implica em vários benefícios,

15

inclusive o de redução de custos para o município, já que a área ocupada pelo aterro sanitário tem capacidade limitada, que se esgotará mais rapidamente se o volume de resíduo for maior.

Avanços em termos de accountability, no sentido de responsabilização contínua, são necessários em vários aspectos. Poderíamos questionar: quem (e como) é responsabilizado pelas condições de saúde e segurança no trabalho dos catadores? Quem é responsabilizado por avarias em equipamentos da prefeitura? Quem é responsabilizado pela separação inadequada de resíduos? Pode-se adotar algum tipo de premiação aos que separam corretamente e punição aos que não o fazem? Outro aspecto relacionado à accountability é a transparência de informações. Embora quem pague pelos serviços da Ambiental sejam os moradores, os relatórios apresentados mensalmente pela empresa a órgãos públicos não são disponibilizados à população por meio algum. Não há espaços regulares para que os cidadãos discutam a qualidade da prestação do serviço (a não ser pelos canais de atendimento da empresa), opinem sobre a política municipal nessa área ou engajem-se em melhorias no serviço.

Conclui-se, portanto, que os cidadãos participam pouco do processo de deliberação e produção do serviço. Há que se considerar, ainda, que os catadores de materiais recicláveis são também cidadãos que se dedicam a uma atividade importante para a sociedade. Trabalhar em condições seguras, saudáveis e justas em termos de renda, além de participar politicamente das decisões que envolvem a gestão de resíduos sólidos constitui um direito e um dever, enquanto cidadãos e enquanto trabalhadores.

Como vimos, a coprodução fundamenta-se no engajamento de diferentes atores que levam suas visões sobre os problemas, suas competências e seus recursos para construir soluções, de modo compartilhado, constituindo processos de aprendizagem social. Na abordagem do novo serviço público, modelo de administração pública em que se assenta a proposta da coprodução de serviços públicos, para além de regular e fiscalizar a ação de uma empresa prestadora de serviços ou de uma associação de catadores, os servidores públicos desempenham papéis fundamentais de articulação, de promoção de diálogo, de mobilização de diferentes atores, compreendendo melhor os diversos interesses e características de cada comunidade. Assim, para que a gestão de resíduos sólidos em Balneário Camboriú avance no sentido da coprodução deste serviço público, é crucial que:

- haja espaços de diálogo e de deliberação coletiva, com a participação ativa de todos os envolvidos no processo;

- os espaços de discussão sejam abertos e incentivem a participação política, ao mesmo tempo em que haja boa qualidade técnica das informações, com dados e indicadores que auxiliem a tomada de decisões, a construção de consensos e as ações articuladas;

- nesse processo de articulação e definição de consensos, delibere-se coletivamente, inclusive sobre os instrumentos de gestão, acordos, contratos e investimentos a serem feitos;

- haja avanços nas práticas de accountability, tanto no sentido da transparência, como da avaliação de resultados e da responsabilização;

- ampliem-se conhecimentos sobre o tema, conhecendo experiências em outros locais, investindo na qualificação de servidores públicos envolvidos e valorizando suas perspectivas;

- articulação entre órgãos de governo dentro do próprio município, com outras esferas de governo e com municípios vizinhos, possivelmente por algum modelo de consórcio, algo incentivado pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, uma vez que há problemas e soluções que podem ser compartilhadas, tanto na questão dos recicláveis como do aterro;

- investimento na qualificação e na melhoria das condições de trabalho dos catadores (via capacitação, financiamento e fiscalização), evitando cooptação ou intervenção, estimulando sua auto-organização e engajamento político.

16

5. Considerações finais Nosso objetivo geral neste trabalho foi identificar fragilidades na gestão de resíduos

sólidos em Balneário Camboriú, sob a ótica da coprodução de serviços públicos. A análise do caso mostra que, embora o município tenha bom desempenho frente ao panorama nacional em aspectos como coleta seletiva e aterro sanitário, a gestão de resíduos sólidos em Balneário Camboriú não evidencia plenamente características fundamentais da coprodução de serviços públicos, notadamente em sua dimensão política. Isso ocorre, sobretudo, porque os diversos envolvidos não participam plenamente das decisões relativas à gestão de resíduos sólidos no Município. Há também fragilidades em aspectos como condições de trabalho e organização dos catadores de recicláveis, integração entre órgãos de governo, separação dos resíduos pelos moradores, responsabilização dos envolvidos e na intermediação de diferentes visões e interesses relativos ao tema. Em estratégias de produção compartilhada de um serviço público em rede, é fundamental que cada elo cumpra seu papel e participe das deliberações sobre o todo. Se um dos elos é frágil, todo o sistema fica comprometido.

Em sistemas interdependentes, para analisar o papel e as estratégias de cada um de seus integrantes, é necessário avaliar os papéis e movimentos dos demais envolvidos, pois a compreensão da função de qualquer parte de um sistema só é possível em referência às demais partes. Quanto maior o grau de interdependência em um sistema, mais o desempenho de uma parte é dependente do desempenho da outra (CHILD e MCGRATH, 2001). Os desafios da gestão de resíduos sólidos são complexos e tanto os problemas como as soluções estão interligados, o que exige articulação entre diferentes atores, setores e suas capacidades. A interdependência, o compartilhamento de conhecimentos e a construção de consensos não eliminam conflitos e posições divergentes. A diversidade de opiniões entre os participantes ou entre os coprodutores de um serviço público é algo desejável para que se chegue a soluções inovadoras, para a aprendizagem social e o fortalecimento da democracia. Assim, é fundamental que haja espaços de interlocução para que diferentes posições sejam expressas e negociadas e se chegue a consensos quanto a objetivos e meios pelos quais bens e serviços públicos sejam coproduzidos.

Na continuidade do estudo sobre o tema, nossa intenção é aprofundar e ampliar conhecimentos teórico-conceituais relativos a coprodução de bens e serviços públicos e a gestão de resíduos, conhecer experiências de outros locais e acompanhar iniciativas e fóruns de discussão relacionados à gestão de resíduos sólidos em Balneário Camboriú.

6. Referências

ABNT - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10004: resíduos sólidos: classificação. Rio de Janeiro, 1987. ALFORD, J. Why do public-sector clients coproduce? Toward a contingency theory. Administration & Society, 34 (1), 32-56, Mar. 2002. AMFRI. ASSOCIAÇÃO DOS MUNICÍPIOS DA REGIÃO DA FOZ DO RIO ITAJAÍ. Banco de dados e de indicadores municipais. Disponível em: http://www.amfri.org.br/conteudo/?item=2903&fa=2901#. Acesso em: 17 jul. 2010. BRANDSEN, T; PESTOFF V. Co-production, the third sector and the delivery of public services - An introduction. Public Management Review. 8 (4), 493-501, 2006. BRUDNEY, J. L.; ENGLAND, R. E. Toward a definition of the coproduction concept. Public Administration Review. 43 (1), 59-65, 1983. CHILD, J.; MCGRATH, R.G. Organizations unfettered: organizational form in an information-intensive economy. Academy of Management Journal. 44 (6), 1135-1148, 2001. COMCAP. COMPANHIA MELHORAMENTOS DA CAPITAL. Considerando mais o lixo: 2º ed. Tubarão, SC: Copiart, 2009.

17

DENHARDT, Robert B.; DENHARDT, Jane Vinzant. The New Public Service: Serving Rather than steering. Public Administration Review, 60 (6), 549-59, Nov./Dec. 2000. ________ . The New Public Service: serving, not steering. New York: M.E.Sharpe, 2003. G1. Senado aprova política nacional de resíduos sólidos. Disponível em http://g1.globo.com/politica/noticia/2010/07/senado-aprova-politica-nacional-de-residuos-solidos.html. Acesso em: 17 jul. 2010. GONÇALVES-DIAS, S.L.F. Catadores: uma perspectiva de sua inserção no campo da indústria de reciclagem. São Paulo: Universidade de São Paulo – Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental, 2009. (Tese de doutorado). 289p. LEVINE, C. H. Citizenship and service delivery: the promise of coproduction. Public Administration Review, 44, 78-184, 1984. LIMA, D. Política Nacional de Resíduos Sólidos vai a plenário. Agência Senado. Disponível em www.senado.gov.br/noticias/verNoticia.aspx?codNoticia=103337&codAplicativo=2. Acesso em 27 jul. 2010. MARSCHALL, M. J. Citizen Participation and the Neighborhood Context: A new look at the Coproduction of Local Public Goods. Political Research Quarterly. 57 (2), 231-44, 2004. MENEGASSO, M.E.; SALM, J.F.; RIBEIRO, R.de M. Co-produção do bem público e o desenvolvimento da cidadania: o caso do PROERD em Santa Catarina. Revista Alcance. Univali, 14 (2), 231-46, mai-ago/2007. MESQUITA JUNIOR, J. M. Gestão integrada de resíduos sólidos: mecanismos de desenvolvimento limpo aplicados a resíduos sólidos. Rio de Janeiro: IBAM, 2007. MNCR – MOVIMENTO NACIONAL DE CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS. O que é o Movimento? Disponível em: http://www.mncr.org.br/box_1/o-que-e-o-movimento. Acesso em: 21 jul. 2010. MONTEIRO, J.H.P. et al. (ZVEIBIL V.Z. - coordenação técnica). Manual Gerenciamento Integrado de Resíduos Sólidos. Rio de Janeiro: IBAM, 2001. NOGUEIRA, F.A.; SCHOMMER, P.C. Quinze anos de investimento social privado no Brasil: conceito e práticas em construção. Anais do XXXIII ENANPAD – Encontro da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Administração. São Paulo: ANPAD, 2009. O DOCUMENTO. Brasil deixa de lucrar R$ 8 bi por ano com reciclagem. Disponível em: http://www.odocumento.com.br/noticia.php?id=336420. Acesso em: 02 jul 2010. PARKS, R.B., BAKER, P.C., KISER, L., OAKERSON, R., OSTROM, E., OSTROM,V., PERCY, S.L., VANDIVORT, M.B., WHITAKER, G.P. AND WILSON, R. Consumers as coproducers of public services: some economic and institutional considerations. Policy Studies Journal. 9 (7), 1001-11, 1981. PNUD. PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Tabelas de ranking do IDH-M - 2000. Disponível em: http://www.pnud.org.br/atlas/tabelas/index.php. Acesso em: 17 jul. 2010 ROBERTS, N. Public deliberation in an age of direct citizen participation. American Review of Public Administration, 34 (4), 315-53, 2004. SANTA CATARINA. Lei Nº 13.557, de 17 de novembro de 2005 dispõe sobre a Política Estadual de Resíduos Sólidos e adota outras providências. Florianópolis, 17 de novembro de 2005. VEJA. Revista Veja.com. Reciclagem e coleta seletiva. Perguntas & Respostas. São Paulo: Editora Abril. Set. 2008. Acesso em: 02 jul 2010. Disponível em: http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/perguntas_respostas/reciclagem/index.shtml#7 . WHITAKER, G. Co-production: citizen participation in service delivery. Public Administration Review. 240-246, may/jun. 1980.