coronelismo, mandonismo

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Texto de José Murilo de Carvalho sobre o conceito de coronelismo

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  • Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discusso Conceitual Jos Murilo de Carvalho Revista Dados vol. 40 n2 Rio de Janeiro 1997

    [...] Parece-me que este um desses momentos nos estudos de poder local e suas relaes com o Estado nacional no Brasil. H impreciso e inconsistncia no uso de conceitos bsicos como mandonismo, coronelismo, clientelismo, patrimonialismo, feudalismo. [...] Basta, como exemplo, mencionar a imensa literatura produzida em torno do fenmeno do clientelismo, as discusses sobre o contedo deste conceito e as dificuldades em empreg-lo de maneira proveitosa. No caso brasileiro, no s conceitos mais universais, como clientelismo e patrimonialismo, mas tambm noes mais especficas, como coronelismo e mandonismo, esto a pedir uma tentativa de reviso como auxlio para o avano da pesquisa emprica, por mais rida e inglria que seja a tarefa. [...] Comeo com o conceito de coronelismo1. Desde o clssico trabalho de Victor Nunes Leal (1948), o conceito difundiu-se amplamente no meio acadmico e aparece em vrios ttulos de livros e artigos. No entanto, mesmo os que citam Leal como referncia, frequentemente, o empregam em sentido distinto. O que era coronelismo na viso de Leal? Em suas prprias palavras: "o que procurei examinar foi sobretudo o sistema. O coronel entrou na anlise por ser parte do sistema, mas o que mais me preocupava era o sistema, a estrutura e a maneira pelas quais as relaes de poder se desenvolviam na Primeira Repblica, a partir do municpio" (Leal, 1980:13). Nessa concepo, o coronelismo um sistema poltico, uma complexa rede de relaes que vai desde o coronel at o presidente da Repblica, envolvendo compromissos recprocos. O coronelismo, alm disso, datado historicamente. Na viso de Leal, ele surge na confluncia de um fato poltico com uma conjuntura econmica. O fato poltico o federalismo implantado pela Repblica em substituio ao centralismo imperial. O federalismo criou um novo ator poltico com amplos poderes, o governador de estado. O antigo presidente de Provncia, durante o Imprio, era um homem de confiana do Ministrio, no tinha poder prprio, podia a qualquer momento ser removido, no tinha condies de construir suas bases de poder na Provncia qual era, muitas vezes, alheio. No mximo, podia preparar sua prpria eleio para deputado ou para senador2. O governador republicano, ao contrrio, era eleito pelas mquinas dos partidos nicos estaduais, era o chefe da poltica estadual. Em torno dele se arregimentavam as oligarquias locais, das quais os coronis eram os principais representantes. Seu poder consolidou-se aps a poltica dos estados implantada por Campos Sales em 1898, quando este decidiu apoiar os candidatos eleitos "pela poltica dominante no respectivo estado". Segundo Sales,

    era dos estados que se governava a Repblica: "A poltica dos estados [...] a poltica nacional" (Sales, 1908:252). A conjuntura econmica, segundo Leal, era a decadncia econmica dos fazendeiros. Esta decadncia acarretava enfraquecimento do poder poltico dos coronis em face de seus dependentes e rivais. A manuteno desse poder passava, ento, a exigir a presena do Estado, que expandia sua influncia na proporo em que diminua a dos donos de terra. O coronelismo era fruto de alterao na relao de foras entre os proprietrios rurais e o governo e significava o fortalecimento do poder do Estado antes que o predomnio do coronel. O momento histrico em que se deu essa transformao foi a Primeira Repblica, que durou de 1889 at 1930. Nessa concepo, o coronelismo , ento, um sistema poltico nacional, baseado em barganhas entre o governo e os coronis. O governo estadual garante, para baixo, o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos pblicos, desde o delegado de polcia at a professora primria. O coronel hipoteca seu apoio ao governo, sobretudo na forma de votos. Para cima, os governadores do seu apoio ao presidente da Repblica em troca do reconhecimento deste de seu domnio no estado. O coronelismo fase de processo mais longo de relacionamento entre os fazendeiros e o governo. O coronelismo no existiu antes dessa fase e no existe depois dela. Ele morreu simbolicamente quando se deu a priso dos grandes coronis baianos, em 1930. Foi definitivamente enterrado em 1937, em seguida implantao do Estado Novo e derrubada de Flores da Cunha, o ltimo dos grandes caudilhos gachos. O prprio Leal incoerente ao sugerir um renascimento do coronelismo embutido na tentativa dos presidentes militares de estabelecer contato direto entre o governo federal e os municpios, passando por cima dos governadores (Leal, 1980:14). A nova situao nada tinha a ver com a que descreveu em sua obra clssica. Essa viso do coronelismo distingue-o da noo de mandonismo. Este talvez seja o conceito que mais se aproxime do de caciquismo na literatura hispano-americana. Refere-se existncia local de estruturas oligrquicas e personalizadas de poder. O mando, o potentado, o chefe, ou mesmo o coronel como indivduo, aquele que, em funo do controle de algum recurso estratgico, em geral a posse da terra, exerce sobre a populao um domnio pessoal e arbitrrio que a impede de ter livre acesso ao mercado e sociedade poltica. O mandonismo no um sistema, uma caracterstica da poltica tradicional. Existe desde o incio da colonizao e sobrevive ainda hoje em regies isoladas. A tendncia que desaparea completamente medida que os direitos civis e polticos alcancem todos os cidados. A histria do mandonismo confunde-se com a histria da formao da cidadania.

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000200003#1http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000200003#2

  • Na viso de Leal, o coronelismo seria um momento particular do mandonismo, exatamente aquele em que os mandes comeam a perder fora e tm de recorrer ao governo. Mandonismo, segundo ele, sempre existiu. uma caracterstica do coronelismo, assim como o o clientelismo. Ao referir-se ao trabalho de Eul-Soo Pang, que define coronelismo como exerccio de poder absoluto, insiste: "no , evidentemente, ao meu coronelismo que se refere", e continua: "no h uma palavra no meu livro pela qual se pudesse atribuir o status de senhor absoluto ao coronel, ou s expresses pessoais de mando do sistema coronelista". Mais ainda: "Em nenhum momento, repito, chamei o coronel de senhor absoluto" (idem:12-13; Pang, 1979). Boa parte da literatura brasileira, mesmo a que se inspira em Leal, identifica coronelismo e mandonismo. Essa literatura contribuiu, sem dvida, para esclarecer o fenmeno do mandonismo. Da imagem simplificada do coronel como grande latifundirio isolado em sua fazenda, senhor absoluto de gentes e coisas, emerge das novas pesquisas um quadro mais complexo em que coexistem vrios tipos de coronis, desde latifundirios a comerciantes, mdicos e at mesmo padres. O suposto isolamento dos potentados em seus domnios tambm revisto. Alguns estavam diretamente envolvidos no comrcio de exportao, como os coronis baianos da Chapada Diamantina, quase todos se envolviam na poltica estadual, alguns na poltica federal (Carone, 1971; Pang, 1979; Machado Neto et alii, 1972; Queiroz, 1975; S, 1974; Silva, 1975; Vilaa e Albuquerque, 1965; Campos, 1975). Mas o fato de esta literatura ter tornado sinnimos os conceitos de coronelismo e mandonismo foi negativo. [...] Outro conceito confundido com o de coronelismo o de clientelismo. Muito usado, sobretudo por autores estrangeiros escrevendo sobre o Brasil, desde o trabalho pioneiro de Benno Galjart (1964; 1965), o conceito de clientelismo foi sempre empregado de maneira frouxa. De modo geral, indica um tipo de relao entre atores polticos que envolve concesso de benefcios pblicos, na forma de empregos, benefcios fiscais, isenes, em troca de apoio poltico, sobretudo na forma de voto. Este um dos sentidos em que o conceito usado na literatura internacional (Kaufman, 1977). Clientelismo seria um atributo varivel de sistemas polticos macro e podem conter maior ou menor dose de clientelismo nas relaes entre atores polticos. No h dvida de que o coronelismo, no sentido sistmico aqui proposto, envolve relaes de troca de natureza clientelstica. Mas, de novo, ele no pode ser identificado ao clientelismo, que um fenmeno muito mais amplo. Clientelismo assemelha-se, na amplitude de seu uso, ao conceito de mandonismo. Ele o mandonismo visto do ponto de vista bilateral. Seu contedo tambm varia ao longo do tempo, de acordo com os recursos controlados pelos atores polticos, em nosso caso pelos mandes e pelo governo.

    De algum modo, como o mandonismo, o clientelismo perpassa toda a histria poltica do pas. Sua trajetria, no entanto, diferente da do primeiro. Na medida em que o clientelismo pode mudar de parceiros, ele pode aumentar e diminuir ao longo da histria, em vez de percorrer uma trajetria sistematicamente decrescente como o mandonismo. Os autores que vem coronelismo no meio urbano e em fases recentes da histria do pas esto falando simplesmente de clientelismo. As relaes clientelsticas, nesse caso, dispensam a presena do coronel, pois ela se d entre o governo, ou polticos, e setores pobres da populao. Deputados trocam votos por empregos e servios pblicos que conseguem graas sua capacidade de influir sobre o Poder Executivo. Nesse sentido, possvel mesmo dizer que o clientelismo se ampliou com o fim do coronelismo e que ele aumenta com o decrscimo do mandonismo. medida que os chefes polticos locais perdem a capacidade de controlar os votos da populao, eles deixam de ser parceiros interessantes para o governo, que passa a tratar com os eleitores, transferindo para estes a relao clientelstica. Exemplo claro dessa situao o da cidade que na dcada de 60 era dominada por duas famlias, cujo poder se baseava simplesmente na capacidade de barganhar empregos e benefcios pblicos em troca de votos (Carvalho, 1966). As famlias no tinham recursos prprios, como os coronis, e o fenmeno no era sistmico, embora houvesse vnculos estaduais e federais. Por vrios anos as duas famlias mantiveram o controle poltico da cidade, alternando-se no poder. Os resultados eleitorais eram previstos de antemo com preciso quase matemtica. Os votos tinham dono, eram de uma ou de outra famlia. Tratava-se de um caso exacerbado de clientelismo poltico exercido num meio predominantemente urbano. No se tratava de coronelismo. Temos, assim, trs conceitos relacionados, mas no sinnimos, guardando cada um sua especificidade, alm de representarem curvas diferentes de evoluo. O coronelismo retrata-se com uma curva tipo sino: surge, atinge o apogeu e cai num perodo de tempo relativamente curto. O mandonismo segue uma curva sempre descendente. O clientelismo apresenta uma curva ascendente com oscilaes e uma virada para baixo nos ltimos anos. [...] Mas no se resolvem com isso os problemas relacionados com os trs conceitos. O menos polmico deles talvez seja o de mandonismo, vamos deix-lo em paz. Quanto ao clientelismo, as divergncias so grandes. [...] Cammack nega o poder dos coronis de controlar os votos e tambm o valor do voto como mercadoria poltica. Quanto capacidade de controle do voto, h consenso entre testemunhos da poca e estudiosos de que ela existia. Ela se dava, como vimos, at mesmo em contextos urbanos e depois da democratizao de 1945. Quanto ao valor do voto como mercadoria, a crtica faz sentido, a

  • votao pouco valia na poca. H amplas evidncias sobre fraudes escandalosas que acompanhavam o processo eleitoral em todas as suas fases. O coronel podia controlar os votantes e manipular as atas eleitorais, mas quem definia a apurao dos votos e reconhecia os deputados era o prprio Congresso em acordo com o presidente da Repblica. Esse foi o acordo negociado por Campos Sales com os governadores. A apurao final podia inverter o resultado das atas. Uma testemunha ocular do processo de reconhecimento na Cmara em 1909 observa: "Os reconhecimentos de Gois, Rio de Janeiro e Distrito Federal s se faro quando os chefes chegarem a acordo. Para o caso as eleies nada esto valendo" (Vieira, 1980). Se aceita, a crtica quebra um dos ps do compromisso coronelista, qual seja, a dependncia do governo em relao aos coronis para a produo de votos. A crtica pode ser considerada vlida se os coronis forem tomados individualmente em sua relao com os governadores. Mesmo a haveria excees, pois certos coronis, como os da Bahia, podiam enfrentar os governadores at no terreno militar. Mas mesmo sem recorrer a esses casos excepcionais, a idia do compromisso coronelista pode ser mantida sem que se d ao voto peso decisivo. Se os governadores podiam prescindir da colaborao dos coronis tomados isoladamente, o mesmo no se dava quando considerados em conjunto. A estabilidade do sistema como um todo exigia que a maioria dos coronis apoiasse o governo, embora essa maioria pudesse ser eventualmente trocada. As manipulaes dos resultados eleitorais sempre beneficiavam um grupo em detrimento de outro e tinham um custo poltico. Se entravam em conflito com um nmero significativo de coronis, os governadores se viam em posio difcil, se no insustentvel. Basta mencionar os casos da Bahia, de Gois, do Cear e de Mato Grosso. Em todos eles, os governadores foram desafiados, humilhados e mesmo depostos. So tambm conhecidos os casos de duplicatas de assemblias estaduais, de bancadas federais e at mesmo de governadores. As duplicatas de assemblias eram no mnimo embaraosas para os governadores e podiam preparar o caminho para a interveno do governo federal, numa confirmao da natureza sistmica do coronelismo. Muitas vezes, rebelies de coronis eram incentivadas pelo governo federal para favorecer oligarquias rivais nos estados. Um mnimo de estabilidade do sistema exigia algum tipo de entendimento com os coronis, ou parte deles, sendo de importncia secundria que a contrapartida do coronel se concretizasse exclusivamente em votos. Bastava o apoio tcito, a no rebelio. Se tudo dependesse do voto, seria de esperar uma luta maior por seu controle, com a conseqncia de que a participao eleitoral teria atingido propores muito maiores do que os mseros 2% ou 3% da populao. Com essa qualificao, a tese de Leal continua de p. [...]

    Mas, de novo, a falha, se falha h, apenas formal. Isto por duas razes. A primeira que a entrega do controle de cargos pblicos aos coronis tem evidentemente um sentido que vai muito alm do poltico. No preciso, por exemplo, demonstrar que o papel de um juiz de paz, de um juiz municipal, de um delegado de polcia ou de um coletor de impostos est estreitamente vinculado sustentao dos interesses econmicos dos donos de terra e dos grandes comerciantes. As tarefas do juiz e do delegado eram importantes para o controle da mo-de-obra e para a competio com fazendeiros rivais. Ser capaz de oprimir ou proteger os prprios trabalhadores ou de perseguir os trabalhadores dos rivais fazendo uso da polcia era um trunfo importante na luta econmica. Como observou Oliveira Vianna (1949), a justia brasileira caracterizava-se, nessa poca, pelas figuras do "juiz nosso", do" delegado nosso", isto , era uma justia posta a servio dos interesses dos mandes. O coletor de impostos, por seu lado, podia, pela ao, ou inao, afetar diretamente a margem de lucro dos coronis. At mesmo uma professora primria era importante para conservar valores indispensveis sustentao do sistema. Ignorar esses aspectos dos cargos pblicos que seria separar artificialmente o poltico do econmico. No coronelismo, como definido por Leal, o controle do cargo pblico mais importante como instrumento de dominao do que como empreguismo. O emprego pblico adquire importncia em si, como fonte de renda, exatamente quando o clientelismo cresce e decresce o coronelismo. Em segundo lugar, era raro que os interesses econmicos de classe assumissem o primeiro plano nas lutas locais da Primeira Repblica. Em geral, isto s se dava em momentos de tentativas de criao ou aumento de impostos pelos governos estaduais. Os interesses mais amplos dos coronis como classe eram raramente, se jamais o foram, desafiados pelos governos ou pelos trabalhadores. No se colocava em questo o domnio dos coronis como classe. Esta uma premissa que perpassa toda a argumentao de Leal e de fato a torna inteligvel. O conflito assumia, assim, quase sempre, caracterstica de disputa poltica entre coronis ou grupos de coronis, entrando os governos estaduais e federal seja como juiz, seja como provocador, seja ainda como aliado de uma das faces. No havia movimentos organizados de trabalhadores que pudessem colocar em xeque o domnio do senhoriato. A nica organizao de setores dominados verificava-se nos movimentos messinicos e no cangao. Mas messianismo e cangao atingiam o domnio da classe proprietria apenas indiretamente. Eram vtimas fceis da represso e da cooptao, ou de ambas (Queiroz, 1977; Monteiro, 1974; Della Cava, 1970). Leal no ignorava nem menosprezava o lado econmico em sua teoria do coronelismo. Uma de suas inovaes em relao teoria social da poca foi exatamente fugir aos reducionismos em voga, econmicos, sociolgicos, culturais ou psicolgicos. (1980c).

  • [...] No Imprio, a Guarda Nacional foi a grande instituio patrimonial que ligou proprietrios rurais ao governo. Ela no foi criada por proprietrios, nem era uma associao que os representasse. Foi criada pelo governo durante a Regncia, inicialmente para fazer face aos distrbios urbanos desencadeados aps a abdicao do imperador e sua inspirao era a guarda francesa, uma organizao burguesa (Castro, 1977). Posteriormente que foi sendo transformada no grande mecanismo patrimonial de cooptao dos proprietrios rurais. Da os muitos conflitos entre seus oficiais e outras autoridades do governo ou eletivas, como juzes municipais, juzes de paz e padres, conflitos estes analisados por Thomas Flory (1981). Os oficiais da Guarda no apenas serviam gratuitamente como pagavam pelas patentes e frequentemente fardavam as tropas com recursos do prprio bolso. A escolha democrtica dos oficiais, por eleio, foi aos poucos sendo eliminada para que a distribuio de patentes de oficiais correspondesse o melhor possvel hierarquia social e econmica. Em contrapartida, a Guarda colocava nas mos do senhoriato o controle da populao local. No se resumia Guarda Nacional o ingrediente patrimonial do sistema imperial. Os delegados, delegados substitutos, subdelegados e subdelegados substitutos de polcia, criados em 1841, eram tambm autoridades patrimoniais, uma vez que exerciam servios pblicos gratuitamente. O mesmo pode ser dito dos inspetores de quarteiro, que eram nomeados pelos delegados. Praticamente toda tarefa coercitiva do Estado no nvel local era delegada aos proprietrios. Algumas tarefas extrativas, como a coleta de certos impostos, eram tambm contratadas com particulares. O patrimonialismo gerava situaes extremas como a de um municpio de Minas Gerais onde os servios patrimoniais, assim como os cargos eletivos de juiz de paz, vereador e senador estavam nas mos de uma s famlia. Treze pessoas ligadas por laos de parentesco ocupavam quase todos os postos, algumas acumulavam cargos eletivos e patrimoniais, como o de vereador e os de comandante da Guarda Nacional e subdelegado (ver A Reforma, 26/10/1869, p. 3). O Estado utilizava ainda os servios da Igreja para executar suas tarefas: todos os registros de nascimento, de casamento, de morte eram feitos pelo clero e reconhecidos pelo Estado. Durante boa parte do perodo imperial, os padres tinham tambm papel importante nas eleies, que eram realizadas dentro das igrejas. Eles foram tambm encarregados de informar ao governo sobre a existncia de terras pblicas nos municpios, quando da aplicao da lei de terras de 1850.

    A grande divergncia que essa abordagem tem com a de Graham, que nela a iniciativa do Estado. A Guarda era uma organizao criada pelo governo e controlada pelo ministro da Justia; os cargos de delegado e subdelegado de polcia foram criados para esvaziar as funes dos juzes de paz, autoridades eletivas. Na medida em que os proprietrios rurais controlavam a eleio dos juzes de paz, o esvaziamento do poder destes em benefcio de uma autoridade patrimonial era uma perda de poder para aqueles. Os proprietrios nunca se organizaram em estamento como no feudalismo, nem em partidos polticos6. Organizaes de proprietrios surgiram apenas s vsperas da passagem da lei que libertou o ventre escravo (Pang, 1981). Sintomaticamente, essas organizaes reagiam contra uma ao do governo que consideravam radicalmente contrria a seus interesses. O prprio imperador foi por eles acusado de traio nacional por favorecer a medida abolicionista. A tendncia era claramente no sentido de reduzir, at a eliminao, os resduos patrimoniais da administrao em favor da burocracia do Estado. Inmeros conflitos surgidos em funo do comportamento das autoridades patrimoniais, como os delegados e oficiais da Guarda, comearam j no Imprio a ser resolvidos pelo recurso a autoridades burocrticas, como os juzes de direito e oficiais da polcia. Na Repblica, as tarefas de manuteno da ordem passaram todas para a burocracia, na medida em que delegados se tornaram funcionrios pblicos e os estados aumentaram rapidamente o efetivo de suas polcias militares que substituram a Guarda na sua funo original. A Igreja tambm foi separada do Estado, tendo sido institudo o registro civil. O coronelismo surgiu nesse momento, com o recuo do patrimonialismo e o avano da burocracia. [...] O importante em todo o debate no discutir se existiu ou se existe dominao. Ningum nega isto. O problema detectar a natureza da dominao. Faz enorme diferena se ela procede de um movimento centrado na dinmica do conflito de classes gerado na sociedade de mercado que surgiu da transformao do feudalismo na moderna sociedade industrial, via contratualismo, representao de interesses, partidos polticos, liberalismo poltico; ou se ela se funda na expanso lenta do poder do Estado que aos poucos penetra na sociedade e engloba as classes via patrimonialismo, clientelismo, coronelismo, populismo, corporativismo. esta diferena que faz com que o Brasil e a Amrica Latina no sejam os Estados Unidos ou a Europa, que sejam o Outro Ocidente, na feliz expresso de Jos G. Merquior7.

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000200003#6http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000200003#7