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438 ISSN 2316-6479 I DE JESUS, S. (Org). Anais do VIII Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual: arquivos, memorias, afetos . Goiânia, GO: UFG/ Núcleo Editorial FAV, 2015. CORPO COMO TERRITÓRIO: A REIVINDICAÇÃO DA PAISAGEM Odinaldo Costa FAV/UFG Resumo O artigo seguinte propõe analisar uma produção artista que tenciona construir paisagens íntimas, utilizando para isso o corpo como fazendo parte da paisagem. São quatro séries de fotografias que tratam da relação entre fotografia e corpo e que tece diálogos com o conceito de paisagem, intimidade, deslocamento e com a produção de alguns artistas contemporâneos. São situações em que o artista em questão reivindica a paisagem através da presença de seu corpo nela. Questões e reflexões acerca desse embate são elencados abaixo no intuito de visualizar um processo de criação que trata da paisagem e sua potência enquanto território. Palavras-chave: fotografia; corpo; paisagem; intimidade. Abstract The following article aims to analyze a production artist who intends to build intimate landscapes, making use of the body as part of the landscape. There are four series of photographs on the relationship between photography and body and weaving dialogues with the concept of landscape, intimacy, displacement and the production of some contemporary artists. These are situations in which the artist in question claims to the landscape through the presence of his body in it. Questions and reflections about this clash are listed below in order to view a creative process that deals with the landscape and its power as a territory. Keywords: photography; body; landscape; intimacy. 1 O corpo na paisagem Um totem tem sua imponência, mas está vinculado a um sagrado. Então não seria bem isso. Uma bandeira simboliza a identidade de um local, mas está cercada de civismo e patriotismo. Um obelisco é um marco, traz um sentido fálico e viril que atravessa a produção aqui apresentada, todavia ainda não seria isso. O corpo é pensado como um elemento que delimita um território. Um corpo orgânico que borra a paisagem ao fazer parte de uma geografia. Este texto tem como objetivo refletir acerca de quatro séries de fotografias produzidas recentemente pelo artista aqui analisado e que trazem como recorrência um corpo que reivindica um território. Em vários ambientes, internos e externos, o corpo do artista em análise se coisifica e por alguns minutos faz parte da paisagem. É como se o seu corpo fosse um marco de presença, de forma que ele dissesse estou aqui. O corpo como território de um lugar que afeta o artista. Seja uma lembrança de infância, um estranhamento na rotina do dia-a-dia ou uma forma de lidar com o desconhecido. Nas quatro séries que apresentamos a seguir o artista propõe a construção de paisagens íntimas. Nelas, o corpo-paisagem está presente. Trata-se de um corpo fronteiriço que não é, mas está paisagem em algum lugar. Geralmente, este corpo

CORPO COMO TERRITÓRIO: A REIVINDICAÇÃO DA PAISAGEM · analisado e que trazem como recorrência um corpo que reivindica um território. Em vários ambientes, internos e externos,

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ISSN 2316-6479 I DE JESUS, S. (Org). Anais do VIII Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual: arquivos, memorias, afetos . Goiânia, GO: UFG/ Núcleo Editorial FAV, 2015.

CORPO COMO TERRITÓRIO: A REIVINDICAÇÃO DA PAISAGEM

Odinaldo CostaFAV/UFG

ResumoO artigo seguinte propõe analisar uma produção artista que tenciona construir paisagens íntimas, utilizando para isso o corpo como fazendo parte da paisagem. São quatro séries de fotografias que tratam da relação entre fotografia e corpo e que tece diálogos com o conceito de paisagem, intimidade, deslocamento e com a produção de alguns artistas contemporâneos. São situações em que o artista em questão reivindica a paisagem através da presença de seu corpo nela. Questões e reflexões acerca desse embate são elencados abaixo no intuito de visualizar um processo de criação que trata da paisagem e sua potência enquanto território.Palavras-chave: fotografia; corpo; paisagem; intimidade.

AbstractThe following article aims to analyze a production artist who intends to build intimate landscapes, making use of the body as part of the landscape. There are four series of photographs on the relationship between photography and body and weaving dialogues with the concept of landscape, intimacy, displacement and the production of some contemporary artists. These are situations in which the artist in question claims to the landscape through the presence of his body in it. Questions and reflections about this clash are listed below in order to view a creative process that deals with the landscape and its power as a territory.Keywords: photography; body; landscape; intimacy.

1 O corpo na paisagem

Um totem tem sua imponência, mas está vinculado a um sagrado. Então não

seria bem isso. Uma bandeira simboliza a identidade de um local, mas está cercada

de civismo e patriotismo. Um obelisco é um marco, traz um sentido fálico e viril

que atravessa a produção aqui apresentada, todavia ainda não seria isso. O corpo é

pensado como um elemento que delimita um território. Um corpo orgânico que borra

a paisagem ao fazer parte de uma geografia. Este texto tem como objetivo refletir

acerca de quatro séries de fotografias produzidas recentemente pelo artista aqui

analisado e que trazem como recorrência um corpo que reivindica um território.

Em vários ambientes, internos e externos, o corpo do artista em análise se

coisifica e por alguns minutos faz parte da paisagem. É como se o seu corpo fosse um

marco de presença, de forma que ele dissesse estou aqui. O corpo como território de

um lugar que afeta o artista. Seja uma lembrança de infância, um estranhamento na

rotina do dia-a-dia ou uma forma de lidar com o desconhecido.

Nas quatro séries que apresentamos a seguir o artista propõe a construção

de paisagens íntimas. Nelas, o corpo-paisagem está presente. Trata-se de um corpo

fronteiriço que não é, mas está paisagem em algum lugar. Geralmente, este corpo

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tem uma relação de intimidade com o cenário ou com o contexto ao qual essa

localidade está envolvida. Também trata-se de um corpo vertical que se contrapõe

a horizontalidade da paisagem. Todavia ele contempla um possível horizonte de

quem olha. O corpo-paisagem se apresenta transbordando uma vulnerabilidade que

é necessária para que se presentifique. E é durante essa experiência em que o artista

vivencia a vulnerabilidade que a paisagem íntima é construída.

O corpo-paisagem traz uma problematização que merece referência. Ele está

desnudo e exposto em um espaço público, na maioria das séries aqui apresentadas.

Dessa forma, esse corpo não se constitui com o externo, sua presença é estrangeira a

rotina do ambiente. Daí a subversão que ele propõe.

“O que resta da arte? Talvez apenas um vestígio” (NANCY, 2012, p.289).

Pensamos na fotografia como um vestígio do presente (ou do real, em um sentido

simbólico), nas produções abaixo o corpo-paisagem se faz vestígio e logo depois se

tornará arquivo. Um documento que cabe ao espectador buscar um entendimento

do que seria esse vestígio. Trata-se de um testemunho de presença que falha e tudo

que nos resta é um vestígio, entendido como Jean Luc Nancy nos coloca. E assim,

entendemos que “o vestígio é o resto de um passo. Não é sua imagem, pois o próprio

passo não consiste em nada mais que seu próprio vestígio. Desde que ele é feito, ele

é passado” (idem, p.304). Tal qual uma fotografia, que depois de ser feita não é mais

aquilo que mostra.

O corpo-paisagem é tratado como uma coisa, um objeto carregado de sentido

e cultura. Ele se torna, assim, uma superfície aparente.“As pessoas se objetificam ou

se apresentam de inúmeras formas, mas sempre assumem uma forma específica”

(STRATHERN, 2014, p.212). No caso das séries aqui apresentadas, a forma é o corpo-

paisagem. Esse colocado como uma presença na paisagem cotidiana, transformando

o banal em algo notável.

2 Abrigo na cidade maravilhosa

Um colega deu para o artista a chave de sua casa. Falou para ele ficar à vontade

e que tinha comida na geladeira. Uma pessoa ao qual a relação com o artista ainda

não era de amizade, no sentido de que esse colega não foi escolhido pelo artista para

fazer parte das pessoas mais próximas. De qualquer forma, ou de outra forma, já se

conheciam. Já haviam trocado outro tipo de intimidade.

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Quando o artista entrou na casa pela primeira vez o colega não estava. Pensou

rapidamente em todas as gavetas que poderiam ser abertas. Mas será que ele gostaria

de abrir tais gavetas? Para quê abri-las? Decididamente não abriu gaveta alguma.

Conteve sua curiosidade, já que os segredos que poderiam ser encontrados com a

abertura de tais arquivos não lhe interessavam mais.

O colega foi solícito ao dar abrigo ao artista. Dentro de sua casa, de sua

intimidade, o corpo do artista se fez território daquela paisagem de apartamento

decorado da zona sul carioca. Impossível não negociar a intimidade de conviver junto.

Foi por pouco tempo, mas intenso. O resultado está na série Abrigo.

Figura 1 - Duas imagens da série Abrigo. Rio de Janeiro (RJ). 2014.

Como que para legitimar uma presença nesse ambiente ambíguo (estranho,

mas nem tanto), o artista espalhou seu corpo pela casa. Ele foi em todos os cantos

que mais lhe agradavam. Ultrapassou fronteiras invisíveis dentro da construção da

intimidade com o colega. Foi ousado, mas o anfitrião nunca soube do acontecido.

Essa série de imagens, resultado dessa territorialização, dialoga com uma

reflexão acerca de tempos mundializados, de modernidade líquida e de tanta

informação à disposição. Barthes (2013, p.11) diz que “em estado bruto, o Viver-Junto

é também temporal, e é necessário marcar aqui esta casa: ‘viver ao mesmo tempo em

que...’, ‘viver no mesmo tempo em que...’ = a contemporaneidade”. De uma maneira geral

o termo contemporâneo está vinculado a uma temporalidade. Como também, a uma

forma de coexistir simultaneamente, de fazer parte de algo maior juntos. Agamben vai

além desse tempo cronológico e pensa o contemporâneo no sentido de propor uma

transformação. “É, no tempo cronológico, algo que urge dentro dele e o transforma”

(AGAMBEN, 2014, p.27).

Pensamos na produção da artista Nan Goldin com suas fotografias intimistas,

de cunho pessoal. A sinceridade que é percebida em suas imagens atravessa o trabalho

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do artista, ao mesmo tempo em que é comovente a delicadeza de suas fotos. Ela trata

comumente do ordinário que está a volta, mas o transforma em uma narrativa pessoal.

Todavia, Goldin consegue sair do pessoal e apontar traços de uma cultura ao qual ela

faz parte. Percebemos, enquanto espectadores, que de alguma maneira já fizemos ou

fazemos parte de seus relatos fotográficos.

A nudez presente nas imagens da fotógrafa americana influencia o artista

aqui analisado a buscar a naturalidade por ela alcançada.Mas para quê estar nu em sua

produção? O que ele quer dizer com essa nudez? Como entender esse estar nu? Várias

questões podem ser feitas no sentido de provocar uma reflexão sobre a questão da

nudez na sua produção poética. Entendemos a nudez como tão bem coloca Agamben

(2014, p.129): “a nudez, que, igualmente como uma voz branca, nada significa e,

exatamente por isso, nos trespassa”.

É exatamente essa simplicidade cheia de significados que interessa ao artista

e que é percebido na produção de Nan Goldin, como também nos filmes de Peter

Greenaway. No caso aqui apresentado mais especificamente, o estar nu traz consigo

uma vulnerabilidade de quem quer dizer algo, mas ainda não sabe como. O estar

despido como uma forma política de se posicionar no mundo. Talvez, uma necessidade

de ser notado e se entregar ao que estiver por vir.

Agamben (2014, p.118) afirma que a nudez é “exatamente esse não ter

nada por trás de si, sendo pura visibilidade e presença”. Estar nu nos filmes de Peter

Greenaway é naturalizado, e é com isso que o artista aqui referido se propõe dialogar.

Pensamos no cineasta inglês como um exemplo de nudez que evidencia algo que já

está desvelado, entregue, e que por isso mesmo provoca questionamentos em quem

assiste suas películas.

A nudez e a intimidade construída para a série Abrigo perpassa o

contemporâneo ao qual o artista faz parte. Sendo assim, o contemporâneo “é também

aquele que, dividindo e interpelando o tempo, é capaz de transformá-lo e de relacioná-

lo com outros tempos, de nele ler de modo inédito a história” (AGAMBEN, 2014, p.32).

Há, assim, uma necessidade por essa nudez e por intimidade.

3 No meio do cerrado brasileiro

Moro no Centro é uma série de fotografias produzida como uma despedida

do bairro em que o artista morou no período de 5 anos, 4 meses e 4 dias, na cidade de

Goiânia (GO). Lugares que o cotidiano apressado escondia, mas que de alguma forma

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o afetavam.Ele colocou seu corpo vulnerável em lugares que quem conhece o centro

da cidade logo identificariam. A familiaridade com esses espaços de trânsito no centro

de Goiânia evoca, para ele, a intimidade ao qual o seu corpo está inserido.

Figura 2 - Duas imagens da série Moro no centro. Goiânia (GO). 2014.

Nessas fotografias a vulnerabilidade do corpo nu do artista também pode

ser observado como uma transgressão. Em todas as imagens da série ele está em

ambientes externos, tentando se desvencilhar das câmeras de vigilância espalhadas

pelas ruas, como também dos poucos transeuntes que por ali passavam na ocasião.

Foi escolhido ícones da geografia do centro para ele territorializar, tais como o chafariz

perto da Praça Cívica, uma viela, os grafites nas paredes, a rua 8, entre outros.

O conceito de paisagem parte de uma forma de enquadramento designado

pelo olhar. Uma predileção que envolve paralelamente o individual, íntimo e pessoal

e o coletivo, social e cultural (DIAS, 2010). “O que nos interessa particularmente na

compreensão da experiência da paisagem não é associá-la a uma natureza utópica,

distante e exótica, mas vivenciá-la na cidade, no nosso cotidiano, imbricada às situações

mais banais” (idem, p.126).

Contudo, pensar em termos de paisagem dentro dessa série inclui perceber

o corpo como paisagem. Uma geografia que abarca um corpo-paisagem, como uma

“bandeira” que foi fincada para identificar um lugar. “Pensar a paisagem implica um

posicionamento do mundo”, afirma Denilson Lopes (2007, p.134). Assumir uma posição

de habitar o mundo que eduque o olhar a perceber o cotidiano de maneira outra.

No passeio do artista pelo centro ele coloca o seu corpo em situação de

paisagem. E essa logo absorve esse corpo-paisagem tornando cidade e corpo orgânico

um único elemento. Sendo assim, ele sente como se tivesse tomado posse do que lhe

pertencia enquanto vivente daquelas paragens.De maneira que que ele possa afirmar

categoricamente: moro no centro!

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4 Como um personagem da literatura nacional

O artista aqui analisado sempre fugiu da insígnia de ser filho de fazendeiro,

mas em julho do ano passado, passando por Pilar (PB) para visitar a antiga fazenda de

seu pai, decidiu assumir isso artisticamente. Foi realizado alguns trabalhos nas terras

encharcadas de suas lembranças de infância e do imaginário criado pelos personagens

de José Lins do Rêgo. Foi revelador para ele contemplar o horizonte naquelas terras e

fazer as fotografias que compõe a série intitulada Menino de fazenda.

Figura 3 - Imagens da série Menino de fazenda. Pilar (PB). 2014.

O processo de produção das imagens da série começou de dentro para fora.

Ele começou espalhando seu corpo dentro de casa, nos cômodos, em lugares que

ativavam as suas lembranças. Depois saiu e se encontrou com a natureza da região

do brejo paraibano. Como resultado temos um corpo vulnerável como território da

memória. Um corpo-paisagem familiar e íntimo.

Em Menino de fazenda a paisagem ao redor já é muito representativa. Tinha um

grande apelo para o bonito dentro do imaginário coletivo ao qual estamos inseridos.

Sendo assim, isso tornou-se uma dificuldade, pois a imagem já estava pronta para

qualquer lugar que fosse apontado o dispositivo fotográfico. Pensamos que é aí que

está a delicadeza do ensaio. Ir além do que é mostrado simplesmente. O que esses

cenários bucólicos transmitem para o artista? Como ele pode inserir seu corpo nessa

natureza envolvente? De que maneira fazer notar a efervescência de sentidos que

entravam em ebulição dentro dele ao pisar em tais terras?

Nessa série o artista viajou até o fundo do seu íntimo e transformou seu corpo

em memória, o resultado são imagens de um corpo-paisagem imerso na natureza

de outrora. Todavia, Menino de fazenda mostra o retorno de um estrangeiro ao seu

ponto de origem. “A fotografia apresenta função indicial em relação à realidade física

com que ela manteve contato, como imagem ela desempenha o papel de vestígio do

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trabalho da perda e da divisão da experiência do tempo” (COSTA, 2014, p.41). Em todo

o ensaio é possível perceber o passado e o presente juntos em cada imagem. O tempo

está vivenciado através do resgate da memória íntima dessas paisagens de infância.

Na fazenda ele escolheu lugares que tinham um contato direto com situações

vividas no passado, nas suas férias escolares. Ele reivindicou tais lembranças e tomou

posse delas. O açude em que tomou banho várias vezes, a mangueira que costumava

subir quando ainda pequeno, a fila de coqueiros que liga a fazenda à cidade mais

próxima (Pilar – PB), os campos em que o gado pastava, a cerca que dividia os limites

dos campos, entre outros locais. Cada um desses pontos solicitava um pouco de seu

corpo. E atendendo esse chamado ele se fez paisagem em um cenário que outrora

foi opressivo. Um corpo-paisagem vulnerável que subvertia nu os bons costumes

aprendidos ali.

5 Se essa rua fosse minha

Nessa série de fotografias o artista começou seu processo de produção pela

rua que mais habitou. Ele pesquisou no Brasil outras ruas com o mesmo nome desse

endereço de sua infância. O desafio agora é ele se colocar como território em todas

elas. Sigamos para as Infantes Dom Henrique.

Figura 4 - Infante Dom Henrique I. João Pessoa (PB). 2015.

A série de imagens intitulada Infante Dom Henrique começa no ponto de

origem desse projeto ainda em desenvolvimento. A avenida Infante Dom Henrique das

memórias do artista em questão está entre as avenidas Epitácio Pessoa e Rui Carneiro

no coração do bairro de Tambaú, uma das praias mais conhecidas da cidade de João

Pessoa (PB). Foi exatamente no número 123 desse logradouro que ele vivenciou sua

infância e toda a adolescência. Nessa rua ele aprendeu a pular corda, começou a se

tornar independente indo à escola sozinho e assumiu os seus mais sinceros desejos.

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Essa rua está impregnada na sua vida até hoje, quando ele volta em João Pessoa é lá

que ele costuma ficar hospedado.

“É verdade que toda contemplação da própria vida está inserida numa trama

de relações sociais, e portanto todo relato autobiográfico remete a um ‘para além de

si mesmo’” (KLINGER, 2012, p.21). Essa proposta situa o artista em um relato de uma

experiência pessoal, mas que contempla um contexto cultural ao qual ele faz parte. Nas

artes, quanto na literatura e outras formas de expressão, é cada vez mais recorrente o

uso da primeira pessoa para descrever experiências pessoas dos autores. Diana Klinger

chama a atenção para o retorno do autor, como também para uma virada etnográfica.

Hal Foster (2014, p.172) fala do artista como etnógrafo e diz que “em nosso atual

estado de ambivalências teórico-artísticas e impasses político-culturais, a antropologia

é o discurso do compromisso na escolha”. Percebemos esse compromisso na escolha

por vivenciar a experiência. Nas produções do artista em questão não basta que as

situações aconteçam, ele sente necessidade de vivenciá-las. Ele fala de um desejo

ainda inexplicável de sentir para só assim transformar esse sentimento em potência,

em trabalho, em produção.

Diante dessa constatação, a obra do artista Paulo Nazareth se mostra como

uma referência. Claro, Nazareth tem uma importante preocupação étnica que não

perpassa o que aqui mostramos. Todavia, a abordagem biográfica, a escrita de si que

ele constrói atravessa a produção aqui analisada. Quando Paulo Nazareth se coloca na

posição de nômade percebemos que se trata deum contemporâneo do nosso artista

por dialogar com situações similares as suas inquietações.

“Essa ânsia incansável de estar em determinados lugares, de conhecer

determinadas pessoas, vivenciar seus cotidianos, criando laços insuspeitos para

tentar reconstruir histórias não contadas ou deliberadamente apagadas”, escreve

a curadora e crítica de arte independente Kiki Mazzucchelli sobre o trabalho de

Nazareth (2012, p.20). Assim tecemos um diálogo com esse artista e com a fotografia

na Infante Dom Henrique. É como se seu constante estado de não pertencimento

a um lugar geográfico, ou sua permanência neles, impossibilitasse a delimitação

de um território. De forma que ele segue espalhando seu corpo como território em

paisagens que lhe afetam.

João Pessoa (PB) foi sua primeira parada para construção da série. As outras

ruas Infante Dom Henrique estão: na Glória, Rio de Janeiro (RJ); Capão Raso, Curitiba

(PR); Vila Guimarães, em Nova Iguaçu (RJ); no bairro de Independência, Petrópolis

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(RJ); Piratini, na cidade de Alvorada (RS); Salto Weissbach, em Blumenau (SC); no

Jardim Ibirapuera, Piracicaba (SP); e na cidade de Araraquara (SP), a rua em questão

corta os bairros de Vila José Bonifácio, Vila Yamada e Jardim Santa Angelina. Sendo

assim, o deslocamento recorrente em seus trabalhos aponta para uma necessidade

de nomadismo.

6 Por uma reivindicação da paisagem

A solicitação do corpo-paisagem como território das paisagens escolhidas

está presente nas quatro séries de fotografia acima apresentadas. Algumas recorrências

são identificadas nas produções e merecem uma reflexão a respeito. A primeira delas

é a viagem que permeia todo o processo como um deslocamento afetivo, uma busca

por atravessar fronteiras. Os trabalhos são frutos de deslocamentos nômades que

possuem objetivos estabelecidos ou não. Uma questão é pertinente: nos trabalhos

que envolvem o nomadismo, o que volta do trabalho? Baseado em Jean Luc Nancy

respondemos: talvez, só um vestígio!

Todavia, a viagem que sucede nesses trabalhos é relevante como uma forma

de promover o olhar em paisagem e vislumbrar a possível construção de paisagens

íntimas. Propor o desconhecido (ou revisitar o conhecido, com outro olhar) e a partir

daí educar o olhar para perceber o que de tanto visto não é mais percebido. Não

interessa ao artista que aqui analisamos a peculiaridade do turista, o que ele propõe

é ser viajante. E ele aponta a pretensão de ir além propondo o ser viajante como uma

metodologia para a possível construção de paisagens íntimas.

O que fazer em tais locais? Como se portar na paisagem? O inesperado

por ele foi vivenciado na construção das séries citadas. “Assim, a despeito de quão

padronizados ou tradicionais possam ser os modos de fazer as coisas, sua configuração

final abre espaço para o inesperado” (STRATHERN, 2014, p.217). É preciso estar presente

na paisagem para que o lugar solicite o que é preciso ser feito em tal território. Na sua

produção é recorrente a necessidade de tomar posse do lugar – se territorializar.

A nudez, a intimidade, a vulnerabilidade também são temas recorrentes nesses

trabalhos e que tentamos, aqui, começar um diálogo com eles. Ainda se faz pertinente

um aprofundamento dessas questões. Mas entendemos esse momento como a

primeira tentativa de reflexão acerca de trabalhos que ainda estão se desenvolvendo

e maturando no seu processo de produção poética. Todavia, já destacar esses temas

recorrentes traz uma importante etapa do processo desse artista.

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____________Minicurrículo

Odinaldo é doutorando em Artes pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (2007), na linha de pesquisa de Imagem e Som. Possui graduação em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal da Paraíba (2002). Atua como professor no curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Artes Visuais, com ênfase em fotografia.