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835 PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2014, 34(4), 835-849 Corpo e Embelezamento: a Criança Participante de Concurso de Beleza Isis Alves de Carvalho & Monise Gomes Serpa Universidade Federal do Rio Grande do Sul Body and Beautification: the Child Participating in Beauty Pageant Cuerpo y Embellecimiento: los Niños Participantes em Concursos de Beleza Artigo http://dx.doi.org/10.1590 /1982-370001432013

Corpo e Embelezamento: a Criança Participante de Concurso ... · Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar as concepções de uma mãe sobre a ... mais bela e talentosa, pode

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PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2014, 34(4), 835-849

Corpo e Embelezamento:a Criança Participante de

Concurso de Beleza

Isis Alves de Carvalho &Monise Gomes Serpa

Universidade Federal doRio Grande do Sul

Body and Beautification: the ChildParticipating in Beauty Pageant

Cuerpo y Embellecimiento: los NiñosParticipantes em Concursos de Beleza

Artigo

http://dx.doi.org/10.1590 /1982-370001432013

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Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar as concepções de uma mãe sobre aparticipação de sua filha nos concursos de beleza infantil, com vistas a compreender comoestão imbricadas as percepções sobre o corpo feminino, as lógicas de embelezamento e a suarelação com os discursos midiáticos. Realizou-se um estudo de caso com entrevista de roteirosemiestruturado, abordando questões sobre corpo, embelezamento e mídia. A entrevistadatem 32 anos e sua filha tem 9, a qual ingressou nas passarelas com 2 anos e meio. Os resultadosapontaram que as implicações dos discursos midiáticos estabelecem valores, agindo comomirantes de um ideal corporal a ser atendido, favorecendo a constituição da “adultalização”precoce, além de contribuir para a formação de criança consumidora em uma sociedade espe-tacularizada. Faz-se necessário refletir sobre a infância na contemporaneidade, principalmentede meninas, e de que forma ela tem sido instigada a produzir seus corpos diante dos preceitosmercadológicos de embelezamento.Palavras-chave: Corpo. Embelezamento. Comportamento do consumidor. Meios de comunicação.

Abstract: This paper aims at analyzing the mother’s conceptions on her daughter participationin infantile beauty pageant in order to understand how the perceptions on female body, therationale of beautification, and its relationship with media discourses are imbricated. A casestudy was undertaken in a semi-structured interview approaching issues about the body, beau-tification, and the media. The interviewee is a 32 yrs old mother, her daughter is 9 yrs old whostarted in walkways at age of two and half years old. The results showed that implications frommedia discourses set values, acting as belvederes of a body ideal to be met, favoring the set upof precocious “adulthood”, in addition to contributing to raising a consumerist child in a spec-tacularized society. It becomes necessary to reflect on childhood in current days, particularly ongirls, and in what ways it has been incited to produce their bodies in view of marketing preceptsof beautification.Keywords: Body. Beautification. Consumer behavior. Communication Media.

Resumen: Este trabajo tiene como objetivo analizar las concepciones de una madre sobre laparticipación de su hija en los concursos de belleza infantil, con vistas a comprender cómoestán relacionadas las percepciones sobre el cuerpo femenino, las lógicas de embellecimiento ysu relación con los discursos mediáticos. Se realizó un estudio de caso con entrevista de guiónsemiestructurado, abordando cuestiones sobre cuerpo, embellecimiento y medios. La entrevistadatiene 32 años, su hija 9 que empezó en las pasarelas con 2 años y medio. Los resultadosapuntaron que las implicaciones de los discursos mediáticos establecen valores, actuandocomo miradores de un ideal corporal a ser atendido, favoreciendo la constitución de la“adultización” precoz, además de contribuir para la formación de niños consumidores en unasociedad espectacularizada. Se torna necesario reflexionar sobre la infancia en la contemporaneidad,principalmente de niñas, y de qué forma ella ha sido instigada a producir sus cuerpos delantede los preceptos mercadológicos de embellecimiento.Palabras-clave: Cuerpo. Embellecimiento. Conducta del cosumidor. Medios de comunicación.

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O conceito de infância passou por um longoprocesso de construção e elaboração, partindode inúmeras teorias dos diferentes camposdo conhecimento. Várias concepções foramse delineando na área médica, psicológica,jurídica, pedagógica, antropológica e socio-lógica, de maneira que, atualmente, não po-demos classificar o conceito de infânciacomo estável, “natural” e homogêneo (Neckel& Guizzo, 2003). Assim, podemos falar queexistem inúmeras infâncias em constantesprocessos de ressignificação e transformação,que variam conforme o tempo, classe social,gênero e cultura em que as crianças estãoinseridas (Neckel & Guizzo, 2003).

A maquiagem carregada, os vestidos bri-lhantes, o laquê nos cabelos, a pele bron-zeadíssima e depilada, os cílios postiços,tudo isso, acompanhado da pressão de ser amais bela e talentosa, pode ser visto nascrianças participantes dos concursos de belezainfantil. Nas competições, o que se percebesão garotinhas utilizando trajes de banho edesfilando como se fossem mulheres adultas,sem apresentar qualquer traço da idade querealmente possuem, deixando a imagem depureza, ingenuidade e inocência da criançapara trás.

Baseando-se nesta crescente valorização doembelezamento, que atinge também ascrianças, somos instados a pensar a questãoabordada pelo filme americano PequenaMiss Sunshine. A análise do filme é feita porGuizzo (2010), lembrando-nos que o filmeilustra, de forma descontraída e bem humo-rada, a questão do consumo de imagens eestereótipos de padrões de beleza na infân-cia e a preocupação excessiva que atingepequenas meninas com sonhos de ser topmodels conhecidas e bem-sucedidas. Nofilme, estamos intimamente imbricados comproblemas relacionados ao convite à exposi-ção do corpo de crianças, à incitação e àmanifestação de uma sensualidade precoce.

De modo geral, observa-se que em um paíscomo o Brasil a situação se repete: criançassão aplaudidas candidamente por adultosorgulhosos das artes, por vezes pornográfi-cas, de corpos que na infância iniciam umaexperimentação lúdica de si mesmas (Fis-cher, 2008).

A preocupação com a beleza, que atinge es-pecialmente meninas e mulheres, não é en-tendida como algo natural e inerente aossujeitos femininos, mas sim como parte deum sistema histórico, social e cultural esta-belecido e programado pelas instâncias cul-turais, visuais e sociais (Guizzo, 2010). Ocorpo é elevado ao estatuto de “artefatocultural” devido à coação a que é submetidopela cultura, sendo ele apropriado, domes-ticado e alterado, conforme as crenças eideias coletivas expressadas pela sociedade(Queiróz & Otta, 2000).

Na lógica do embelezamento infantil, estãoimpregnados artefatos que, por sua vez,constituem as pedagogias culturais. Essasnovas formas infantis de existir são, emgrande parte, determinadas pela televisão,mas não exclusivamente por ela. Os meiosde comunicação também exercem umaforma de pedagogia cultural, na medida emque compartilham com a escola e a famíliaa função de fornecer às crianças informaçõese valores constituintes de sua subjetividade(Steinberg & Kincheloe, 2001). ConformeGoellner (2003), existem várias pedagogiasem circulação na sociedade, sejam os filmes,músicas, revistas, livros, imagens e propa-gandas que estão a dizer de nós, pelo queexibem ou pelo que ocultam. Além de dizerde nossos corpos e, por vezes, de forma tãosutil que nem mesmo percebemos o quantosomos capturadas(os) e produzidas(os) peloque lá se articula. Nesse sentido, “músicapopular, televisão, cinema, vídeo e jogos decomputador criam novos ídolos, aspiraçõese artefatos que influenciam profundamente

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o pensamento e a conduta da juventudecontemporânea” (Kellner, 2001, p. 135).Assim, não como fator isolado, mas inseridono contexto das diversas transformaçõessociais nas últimas décadas, a sempre cres-cente intervenção dos meios de comunicaçãona vida das sociedades e dos indivíduosconduz ao surgimento de uma nova confi-guração de infância, desenhada a partir desua inserção na lógica fundamental das so-ciedades capitalistas – a do consumo. Acriança é inserida na economia, seja comoum produto, ao vender sua mão de obra,seja como consumidora, ao realizar a comprade um bem ou serviço (Neckel, Guizo, 2003).

Diante dessas observações, busca-se entender,por meio do discurso da mãe entrevistada,como a criança participante de concursosde beleza infantil é envolvida pelas pedagogiasculturais, uma vez que as lógicas de embe-lezamento infantil fazem parte de um processono qual atribui significados sociais aos corposa partir dos artefatos culturais construídossocialmente. Tal reflexão concerne não apenasaos profissionais que atuam no campo daPsicologia, como também a todos os inte-ressados em pensar sobre o papel fundamentalque as tecnologias da informação desempe-nham nas sociedades pós-modernas. Lem-bra-se, também, que a gama de possibilidadesde identidades assumidas hoje pela criança,veiculadas especialmente pela mídia, decorreda atual condição da sociedade em que elacresce e se desenvolve, constituindo, em úl-tima instância, um rico instrumento de co-nhecimento dessa sociedade.

Método

Delineamento

Esta pesquisa possui uma abordagem quali-tativa que, conforme Minayo (2007), dizrespeito ao estudo que responde a questõesparticulares, sendo que o nível de realidadea ser estudado não pode ou não deve ser

quantitativo. Este artigo tem cunho explora-tório e, como define Gil (2009), tem comoobjetivo proporcionar maior familiaridadecom o problema, com vista a torná-lo maisexplícito ou a constituir hipóteses. Foi realizadoum estudo de caso que, segundo Yin (2005),tal procedimento é preferível quando o(a)pesquisador(a) tem pouco controle sobre osacontecimentos e quando o foco se encontraem fenômenos contemporâneos inseridosem algum contexto da vida real.

Participante

Esta pesquisa teve como participante umamãe de criança vencedora de concursos debeleza. A participante, identificada comoA1, tem 32 anos e sua filha, com 9 anos, in-gressou com 2 anos e 6 meses nas passarelas.

Instrumentos e procedimentos

O projeto, inicialmente, passou por umabanca virtual, para, em seguida, ser submetidoao Comitê de Ética da Unifra, sob o registrodo CEP nº 345.2011.3 e seguiu as resoluçõesnº 196/96 do Ministério da Saúde (Brasil,1996), que dispõe sobre a pesquisa comseres humanos, e nº 016/2000 do ConselhoFederal de Psicologia (CNP, 2000). Aprovadoo projeto, a pesquisadora entrou em contatocom uma pessoa de referência no tema dapesquisa, a qual indicou a participante A1.O primeiro contato foi por meio do telefonee, após, realizou-se o agendamento da en-trevista. Foi realizado um encontro com du-ração de duas horas, em um espaço daescola de sua filha, escolhido pela própriaparticipante. Foi utilizada uma entrevistacom roteiro semiestruturado, abordandoquestões que remetem ao corpo, ao embe-lezamento e, por fim, à mídia. Nesse encontro,foram explicitados os objetivos da pesquisa,sendo lidos e entregues os Termos de Con-sentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A en-trevista foi gravada e transcrita para análisedo seu conteúdo.

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Análise dos dados

Para análise das informações coletadas, foiutilizado o método de Análise de Conteúdotipo temático proposto por Minayo (1996),como sendo aquele que possibilita a confir-mação ou não das hipóteses estabelecidas,assim como nos permite descobrir o queestá por trás dos conteúdos manifestos nodiscurso. Concluída a análise dos dados,foram criadas três categorias de análise, nasquais foi contemplada a fala da participanteacerca do tema da pesquisa: “A Gisele Bünd-chen é ícone de beleza e elas sabem. Essasguriazinhas sabem”: a mídia e os concursosde Beleza; “Hoje tu vais fazer um comercialda grife ‘tal’, então tá aqui a grife”: a imageminfantil na cultura do consumo e do espetáculoe “Ela sempre toma luftal, que é a dimeticona,para gases, porque ela não gosta de ficarcom a barriga dura, estufada”: A tirania dabeleza na infância e a colonização do corpo.

Resultados e Discussão

“A Gisele Bündchen é ícone debeleza e elas sabem. Essasguriazinhas sabem”: a mídia e osconcursos de Beleza

Esta categoria levará ao debate sobre o queestá sendo produzido para a infância naatualidade, bem como sobre o modo comoa criança participante de Concurso de Belezase apropria de tais produtos, mediante dis-cursos que conduzem a uma percepção decorpo, gênero e sexualidade. Da mesma for-ma, irá problematizar a relação entre a mídiae a ação pedagógica em que diversas vezessomos interpelados(as) e constituídos(as) pelocurrículo cultural das mídias e das distintasmanifestações presentes no âmbito social.

É interessante acionar reflexões a respeitodo empenho da mídia na veiculação dosmodelos de corpos e estratégias para a suaconstrução, sobretudo no que se refere ao

feminino. Esse discurso é veiculado em todosos momentos: nas revistas, nos jornais, natelevisão, sendo o público leitor ou teles-pectador assediado continuamente pelosmodelos de beleza, na forma, por vezes, detop-models (Borges, 2007), como é citadona fala da participante:

“A Gisele Bündchen é ícone de beleza eelas sabem. Essas guriazinhas sabem!...uma Alessandra Ambrósio.... Normalmentequem desfila, como a S.A, está semprepesquisando na Internet. Ela vai muitonos desfiles das Angels, no desfile de SãoPaulo, no Donna Fashion Week, DonnaFashion Iguatemi... elas procuram essas eacabam tendo como referência. AlessandraAmbrósio, Gisele Bündchen, Natália Gui-marães...” (A1)

Nesse sentido, Fischer (2003, p. 48) apontaque os imperativos de beleza perseguem-nos quase como “tortura”, uma vez que oscorpos de tantos(as) outros(as) são oferecidoscomo modelos, operando de forma quetransformemos o nosso corpo para atingiresse modelo que tem como característicasser belos(as), magros(as), atletas, saudáveis eeternos. Essa ideia é reafirmada por meio dafala da participante:

“Bah! Vejo um futuro brilhante para elaem todos os aspectos, porque eu pensoassim: magra... alta... já tem uns pontospara ser modelo!” (A1)

A mídia disponibiliza imagens, figuras e men-sagens com as quais o público pode se iden-tificar e imitar, pela beleza inquestionável epela sua capacidade de produzir verdade,as quais irão exercer “efeitos socializantes eculturais” (Kellner, 2001). Essa consideraçãovem ao encontro dos seguintes discursos daparticipante:

“(...)existe um mundo antes da S.A e apósa S.A, porque as mães se espelham, acre-ditam, veem que aquilo é possível. Todaa mãe quer que uma filha seja, não digoque seja Miss, mas que seja modelo, queseja atriz, que tenha seus quinze minutosde fama, como a gente brinca. Então eu

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brinco que a S.A é a Marta Rocha Infantil,que foi eternizada. (...)Eu vejo a S.A comoum espelho para muita criança. As mãesperguntam qual a roupa que ela veste, dequal loja, onde ela compra calçado, enfim,muita coisa as mães me perguntam atravésdas redes sociais para fazer com que as fi-lhas sigam o mesmo caminho.” (A.1)

Os personagens da mídia são modelos queinspiram o comportamento juvenil pelas ati-tudes, linguajar, expressões, características,vestuários e estilos musicais. Pensar as iden-tidades a partir desses referenciais é pensá-las como plurais, em constante processo detransformação (Kellner, 2001), como mostraa fala da participante:

“(...)é tudo muito itinerante, muito rápido!Muda! Por exemplo: essa moda Restart,que são estas coisas coloridas, ela tem!Ela tem as calças coloridas, as camisas co-loridas, xadrez (...) ela gosta dessa moda.(...)Eu acho que tem sim, tem sim umpouco dessa influência da mídia.” (A1)

A mídia produz efeitos diretos sobre a vidado seu púbico-alvo, manipulando ou facili-tando a construção de identidades (Kellner,2001). Para a autora, personagens vitoriosose famosos tornam-se imagens poderosas eressonantes que são usadas para produzirsentido, identidades, discurso e comporta-mento, como pode ser visto a seguir:

“(...)Ela lança a moda dela, dita a modadela e ‘siga-me os bons’. A S.A é consi-derada pela mídia bem ‘fashion Miss’.Ela gosta de coisas bem diferentes, decustomizar coisas.” (A1)

Trata-se de imagens que chegam como im-perativos de ideais a serem seguidos, que setransformam em modelos de identificação,constituintes da identidade fabricada pelapropaganda. Frente a esta cultura contem-porânea, em um panorama marcado pelaonipresença da mídia, estamos presenciandoum processo permanente de regulação designificados, valores e gostos, sendo todos,em especial as crianças, sujeitas a processos

educativos ditados pelos meios de comuni-cação. Trata-se de considerar a mídia e acultura por ela produzida como uma dasinstâncias sociais centralmente implicadasna produção de identidades sociais e subje-tividades em nosso tempo. A partir da análisedas relações saber/poder que circulam nasociedade, engendradas pela mídia, as criançasparticipantes de concursos de beleza passama se tornar “modelos” de corpo, gênero esexualidade, exercendo um trabalho minu-cioso de influência sobre as demais criançasque também anseiam por este “ideal”.

“Hoje tu vais fazer umcomercial da grife ‘tal’, entãotá aqui a grife”: a imageminfantil na cultura do consumoe do espetáculo

Esta categoria irá abordar a criança enquantoávida consumidora. O segmento do mercadoglobalizado investiu a criança de um novopoder como cliente, sendo dirigida a elatoda uma série de produtos que as oblitera.Além disso, será levantada uma reflexão arespeito da relação que se estabelece entrecorpo, mercadoria e meios de comunicação,ao passo que se configura uma nova sociedadea partir da lógica mercadológica e consumista,em uma dimensão de espetáculo.

Na sociedade contemporânea, o corpo ocupaum lugar central e na mídia, torna-se expli-citamente um “corpo-espetáculo”. A noçãode espetáculo remete à natureza das repre-sentações de corpo na contemporaneidade,uma vez que se impõe como a afirmação detoda a vida humana como simples aparência."O espetáculo apresenta-se como algo gran-dioso, positivo, indiscutível e inacessível"(Débord, 1997, p. 10) e o mundo vividopassa a ser representado por imagens quetomam o lugar de real, cuja noção revela-seem "o que aparece é bom, o que é bomaparece" (Débord, 1997, p. 16). Assim, como

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principal produção da vida atual, o espetáculo“não deseja chegar a nada que não seja elemesmo” (Débord, 1997, p. 17). O discursoa seguir corrobora o destaque do autor:

“(...) mas até me provarem o contrário, aS.A. realmente era a mais bonita, tantoque, à medida que as outras meninasforam sendo desclassificadas, as mães dasmeninas estavam torcendo pela S.A.” (A1)

Essa construção se articula fortemente como consumo, uma vez que, propaga-se, então,a concepção de corpo-mercadoria que sevolta especialmente para a venda de imagenscorporais de sucesso (Débord, 1997). Não émais apenas o corpo que interessa ao capi-talismo, mas a imagem e a mercadoria dessecorpo. Logo, o capitalismo, na busca da am-pliação de novos mercados, encontra nasimagens uma vendável mercadoria (Débord,1997). O corpo enquanto mercadoria podeser ilustrado pela fala da participante:

“(...) Ah! Hoje tu vais fazer um comercialda grife “tal”, então tá aqui a grife! Eumostro, procuro a coleção passada, pes-quiso no “site”, pesquiso onde é a fábrica,mostro tudo para ela.” (A1)

A vida cotidiana parece haver se transformadoem um pseudoglamouroso mundo chamado“espetáculo” (Débord, 1997), no qual a so-ciedade adere religiosamente à lógica doconsumo, hipnotizada pelo fetiche da mer-cadoria. “O espetáculo é o momento emque a mercadoria ocupou totalmente a vidasocial” (Débord, 1997, p. 30). Valores,pessoas, tempo, cultura, religião, espaço,história, quase nada escapa à ideologia di-nheirista avassaladora da comercialização,substituindo o verdadeiro pelo falso, o realpela ilusão, o original pela cópia. É assimque, em uma economia mercantil-espetacular,a produção alienada vem juntar-se ao con-sumo alienado (Débord, 1997).

Nesta questão da ressignificação da imagemdos infantis, Neckel (2006) também associa

essa lógica às vias do consumo. O mercado,por meio das grandes empresas, investe naimagem e na adoração da figura infantil, nabusca incessante de novos nichos de con-sumo (Neckel, 2006). As crianças setornaram ávidas consumidoras, além deserem objetos de consumo. Esse mecanismodo mercado acontece de maneira intensapor meio da publicidade. Ela passa a veicularqualquer motivo ou imagem que possa esti-mular o consumo, não somente para vender,mas também incentivando, de maneirasedutora, a compra de produtos como umagrande novidade, mesmo que nada tenhamde novo (Neckel, 2005). Steinberg e Kinche-loe tematizam a questão das propagandasvoltadas para o universo infantil: “corpora-ções que fazem propaganda de toda aparafernália para crianças consumirem pro-movem uma teologia de consumo queefetivamente promete redenção e felicidadeatravés do ato de consumo” (Steinberg &Kincheloe, 2001, p. 24).

É interessante analisar, a partir deste “impé-rio de consumo” contemporâneo, como sedão as novas concepções de infância produ-zidas nas e pelas relações de consumo, pormeio das pedagogias culturais. A escola nãoé mais o único espaço de aprendizado dosvalores e significados culturais (Neckel,2006). Isso significa apontar que se a Peda-gogia teve de inventar uma criança e umainfância para o projeto moderno civilizador,certamente, as instâncias midiáticas reinven-tam uma criança para o consumo de seusprodutos. As crianças não aparecem maiscomo inocentes e, principalmente, imaturas.As meninas aparecem como pequenasmulheres provocantes, preocupadas comseus corpos, desfilando, fazendo posesdemonstrando que sabem bem o que que-rem no momento das compras (Neckel,2005; Steinberg & Kincheloe, 2001; Walker-dine, 1999). Isso se confirma pelo seguintediscurso:

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“Como a S.A. participou de diversos even -tos e sempre foi impecável em suas apa - rições, ela mesma está acostumada a dizero que e como gosta de se produzir.” (A1)

Há disposição de vender determinada ideiaou produto, produzindo uma Pedagogia quenarra o sujeito como independente e livrepara escolher, mas que opera com mecanis-mos de (auto)controle e de (auto)regulação,normatizando as relações sociais e materia-lizando-as por meio das imagens (Sabat,2001). Nesse sentido, percebe-se que háuma Pedagogia, um determinado tipo decurrículo que opera por meio de uma listade procedimentos e técnicas voltadas paraproduzir e reproduzir tipos específicos decomportamentos, valores, hábitos e atitudespessoais diretamente conectados com o tipode sociedade na qual estão inseridos. Amídia é o próprio espetáculo que acontecepor meio de dispositivos disciplinares ocultos,conforme o panoptismo de Foucault (2004),no qual o indivíduo prisioneiro é vigiadosem desejar, mas se sente seguro com essemodelo de vigilância total e absoluta. Estamosmais subjetivados que os prisioneiros dosPanópticos, pois, escolhemos, por “vontadeprópria”, ser vigiados e vigiar os outros. Cabeaqui ressaltar que: a criança passa a desejaro que é mostrado como algo bom, ou seja,determinados modos de felicidade se dissipamnos espaços midiáticos e se impõem comomodelos a serem seguidos. Consideremos asfalas abaixo:

“(...) no ano em que a S.A. participoutinham só seis candidatas e no ano se-guinte tinham dezoito (...). Quando teveo resultado final, a S.A ganhou, e quandoa gente retornou ao Brasil, a notícia jáestava no site da X. No final do dia, eraa notícia mais lida e teve o reconheci-mento do país inteiro.” (A1)

As falas acima mostram, também, a inter-venção da mídia de forma exacerbada noque tange às imagens tomadas como modelospara a aparência, agindo como mirantes de

um ideal corporal a ser atingido. A noção debeleza exterior se tornou tão importante quemarca a atualidade como a sociedade daaparência, dos rostos e corpos belos e esbeltos.Os mecanismos exigidos e tidos como ver-dadeiros pelo poder disciplinar fazem usode atributos corporais para controlar a so-ciedade (Foucault, 2004). Eis a afirmação daentrevistada, quando questionada sobre omodelo de corpo ideal para suas filhas:

“Ah, eu acho que magra, com cintura,com bunda, com peito.” (A1)

Debruçando-se, ainda, nesse quesito de es-petacularização, Sibilia (2008) enfatiza que aintimidade tem se convertido em uma espéciede cenário no qual devemos montar o espetá-culo de nós mesmos: a vitrine da própria per-sonalidade. Com a revolução tecnológica dainformação, a proliferação da Internet, o au-mento de blogs e sites de relacionamento, osignificado de intimidade mudou radicalmente,criando uma vida espetacularizada. Nessa novaperspectiva, a vida e as relações ganham umnovo sentido e a pessoa só existe se aparecepara alguém (Sibilia, 2008). Uma das principaismanifestações dessa virada é um crescentedesejo de ser visto, uma vontade de se construircomo um eu visível, como um personagemque os outros podem ver e, graças a esseolhar reconfortante, confirmam a existênciade quem se exibe. Assim, o homem modernotem uma personalidade alterdirigida ou orien-tada para o olhar dos outros. Isso não aconteceapenas na Internet, mas nas diversas práticascontemporâneas na quais impera esse desejodesesperado de que os demais nos enxergueme nos observem para que possamos existir (Si-bilia, 2008). Esta afirmação vem ao encontroda fala da participante:

“Ela adora, por exemplo, pegar a câmerae o celular dela, se filmar e se assistir!Qualquer coisa que ela está fazendo,pede para ser filmada. Agora ela começouaula de cinema, por exemplo. Youtube!Ela adora acessar o Youtube e ficar assis-tindo vídeos.” (A1)

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Valendo-se da sociedade escópica, típica denosso tempo, reduz-se o indivíduo a suaimagem, o ser visto, induzido ao “tenha seuminuto de fama”. Os avanços tecnológicosatuais permitem a fabricação de múltiplosaparelhos reprodutores de imagens não ape-nas para que o indivíduo possa se ver, masprincipalmente para ser visto, como referidona fala acima.

Na vitrine da mídia, desde cedo, quem tiverconstruído a melhor imagem terá seu corpoaceito e a sua imagem como modelo a serconsumido. Assim, a aparência e a sua ma-nutenção são categorias que se retroalimentamna lógica do consumo (Borges, 2007). Aten-te-se para o comentário:

“Ela tem essa preocupação: passar umabasezinha ou colocar uma meia calça...se vai tirar foto, se depois corrige no fo-toshop (...)” (A1)

Existe um bombardeio de imagens que in-sistem em dizer o tempo todo e de formaexagerada que devemos ter corpos belos eisso significa sermos cada vez mais magros eter um biótipo ideal dentro de um padrãoestético propagado no espetáculo imagéticodas pedagogias culturais. Ainda nessa pers-pectiva, vale destacar que, fora das instituiçõeseducacionais, estão as empresas como orga-nizações produtoras de diversões que saciamnossos desejos, na forma de um processopedagógico que “captura nossa imaginaçãoe constrói nossa consciência” (Steinberg,1997, p. 102). O primeiro objetivo dessasorganizações empresariais não é o bem-estardas pessoas, mas o lucro auferido pela vendade seus produtos de consumo. Dessa forma,os interesses comerciais ditam a culturainfantil da mídia (Steinberg & Kincheloe,2001) e a margem de lucro é mais importantedo que o bem-estar da criança.

A informação abaixo nos remete à belezadirecionada para a promoção de marcas eao faturamento das indústrias, ou seja, belezamercadológica:

“(...) existem aqueles que contratam aS.A. para estrelar campanhas publicitárias.Outros contratam a presença, mais co-nhecida como presença VIP de algumevento, ou inauguração de loja, visitasem feiras, ou a chamam para desfilar.Existem também aqueles que fazem per-mutas de produtos e serviços, ou seja,presenteiam a S.A. com roupas, acessó-rios, brinquedos, para que ela os utilizeem aparições na mídia.” (A1)

Como importantes instâncias de socialização,os meios de comunicação privilegiam em seusconteúdos o corpo, transformando-o em ma-nifestações do espetáculo com o intuito deretificação e alienação, tornando-o mercadoria(Débord, 1997). As crianças participantes deconcurso de beleza são incorporadas comofatia do mercado de consumo, por meio daadesão e representação do ideal de corpo.Podemos inferir, assim, que a criança desejadapela mídia é aquela proporcionadora do es-petáculo que leva ao consumo.

“Ela sempre toma luftal, que é adimeticona, para gases, porque elanão gosta de ficar com a barrigadura, estufada”: A tirania da belezana infância e a colonização do corpo

Nesta categoria, serão colocados em pautaos investimentos e as práticas de embeleza-mento corporal da criança participante deconcurso de beleza, uma vez que, nestenovo cenário, os padrões de beleza vigentesoriundos das infinitas instâncias culturais, vi-suais e sociais têm o poder de produzir, de-marcar, regular e diferenciar corpos. Seráapontado também o biopoder aplicado àsnovas tecnologias utilizadas nas práticas deembelezamento feminino.

O corpo feminino se torna, antes de tudo, “ocorpo-para-o-outro, a aparência que deveter aos olhos de seus semelhantes” (Borges,2007, p. 95). As imagens que modelam ocorpo operam no sentido de condicionar aidentidade corporal da criança para meca-nismos de ajuste obrigatórios à tríade

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beleza-juventude-saúde (Borges, 2007). Aprática do "culto ao corpo" coloca-se comopreocupação apoiada em um discurso queora lança mão da questão estética e ora dapreocupação com a saúde. Vale ressaltar aprodução de novos corpos por meio da tec-nociência, sendo potencializada pelo uso dediferentes produtos e técnicas. Com isso,assegura-se que o corpo ainda está sujeito adistintas hierarquizações, uma vez que, asintervenções que nele operam, ao mesmotempo em que podem lhe oferecer liberda-des, invocam também estratégias deautocontrole e interdição (Goellner, 2003).Portanto, afirma-se que promessa de umavida mais longa e saudável é acompanhadade inúmeros discursos e representações queautorregulam o indivíduo, tornando-o, mui-tas vezes, vigia de si próprio (Goellner,2003). Considerando-se esse enfoque, umaparticipante destaca alguns cuidados que ocorpo infantil requer:

“(...) requer alguns cuidados com a dieta,que deve ser saudável, pois as criançastendem para os doces e guloseimas, nãocostumam gostar de saladas e, em geral,não são adeptas de queijos brancos e fru-tas.(...) Eu acho que ela já está buscandomelhorar, porque prefere água ao refrige-rante, come fruta, come cereal, comequeijo, toma bastante leite de soja, tomaleite desnatado.” (A1)

Observa-se que as crianças se preocupamcom a estética e a possibilidade de moldar ocorpo a partir das práticas reguladoras, comoa dieta, proporciona a sensação de estar omais próximo possível de um padrão de be-leza hegemônico, globalmente estabelecido.Cuidar do corpo torna-se um imperativo tãopoderoso que conduz à ideia de obrigação,cujo fracasso gera um sentimento de culpa(Castro, 2003). Eis o seguinte comentário:

“Uma coisa que ela não gosta é quandoestá barriguda. Vou ser bem sincera: elasempre toma luftal, que é a dimeticona,para gases, porque ela não gosta de ficarcom a barriga dura, estufada.” (A1)

Observa-se a adesão precoce ao cuidado etransformação corporal com o intuito de en-quadrar seus corpos nos padrões vigentesde beleza, visto que as representações quecirculam atreladas ao belo contribuem paraa ideia de que ser gordo(a) e parecer (ouser) velho(a), entre outras características, sãotomados como símbolo da feiura, sinal defalta de força de vontade associada à baixaautoestima (Guizzo, 2010). Aqueles(as) quesequer tentam ser belos são vistos(as) comopreguiçosos(as), relaxados(as), relapsos(as)consigo mesmos(as), levando-se em contatambém as inúmeras possibilidades que hojeestão disponíveis e auxiliam na construçãodesse corpo. Em contrapartida, ser magro(a),parecer (ou ser) jovem é geralmente vistocomo algo desejável e interpretado como si-nônimo de felicidade. A busca pela belezase tornou sinônimo de amor-próprio e abusca de um corpo “perfeito”, o principalbem (Guizzo, 2010).

As representações sobre o que é ser belo(a)são, reiteradamente, mostradas na mídiae, desde muito cedo, compreendidas eincorporadas pelas meninas. O compor-tamento de meninos e meninas tem sevalido na tentativa de, cada vez mais, po-tencializar sua aparência de acordo comos padrões hegemônicos difundidos empropagandas, novelas e anúncios publici-tários que dizem como corpos, cabelos,peles, maneiras de se vestir podem sermelhoradas (Guizzo, 2010). Isso é de-monstrado na seguinte fala:

“(...) com quatro anos a gente estava denovo no salão de beleza (...)” (A1)

Quando solicitada a descrever o seu enten-dimento sobre o corpo feminino, a entrevis-tada responde:

“Eu acho que o corpo feminino... temque saber lidar com a tua realidade. ‘Éalta? É magra? É baixa? É gorda? Tem ce-lulite? Não tem?’. ‘O que tu podes fazer?’.Tu podes fazer alguma coisa para melhorara tua realidade.” (A1)

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Entende-se que o corpo é então visto comoalgo a ser permanentemente construído, ma-nipulado, tornando-se objeto de diferentesintervenções. Tais ações visam a garantir essaaparência e manutenção (visibilidade do cor-po), passando a receber a mediação de múl-tiplos saberes e práticas dirigidas por “espe-cialistas” (Borges, 2007). Observemos as se-guintes afirmações:

“Eu consultei uma fonoaudióloga e eladisse que, esteticamente, por se tratar deuma passarela, ficar no alto e tal, seriamais bonito a S.A estar com os dentinhose para dar entrevista também. Perfeito,coloca e tira. Aí eu consultei um dentistae o dentista disse ‘Isso é tranquilo para fa-zer’, até porque ela não vai permanecercom isso, só em alguns momentos (...) En-tão, assim, vai dar uma entrevista agora,coloca o dentinho. (...) vai desfilar, vai fo-tografar, coloca o dentinho.” (A1)

Esta crescente busca pela preservação dovigor, da juventude, da beleza e aparênciasaudável tem sido incentivada pelos avançostecnológicos ocorridos na medicina, biotec-nologia, cosmética, dentre outros. Trata-sede modificar, alterar, corrigir, aperfeiçoartraços apenas para atender o desejo deadaptar o corpo aos arquétipos adequados edivulgados pela mídia. Ainda nessa perspectiva,Couto (2003) assinala que é divulgado atodo instante que cada um pode dispor dasformas sonhadas, podendo modificar e compora aparência desejada, reforçando e dinami-zando o funcionamento do seu corpo. Oautor ainda complementa elucidando que ocorpo único, quase sempre cheio de defeitose limitações, pode e deve ser substituído pormúltiplas escolhas, pela versão anatômicaadequada a cada ocasião ou performanceque o indivíduo deseja. Com isso, cada partedo corpo pode ser trocada, refeita e reconfi-gurada, ou seja, “o corpo passa a ter uma es-trutura modulável e as ‘peças’ envelhecidas,cansadas, doentes, podem ser substituídas,potencializadas” (Goellner, 2003, p. 177).

Essa ciência prevalecente no século XIX, queanalisa e classifica o corpo, vai legitimandouma educação do corpo com o objetivo detorná-lo útil e produtivo, imprescindível parao trabalho nas indústrias em expansão epara o fortalecimento dos indivíduos visandoà saúde e ao bem-estar. “Em nome da saúdee do bem-estar do indivíduo, o corpo passoua ser alvo de diferentes métodos disciplinares,entendido como um conjunto de saberes epoderes que investiram no corpo e nesse seinstauraram...” visando à educação dos gestos,desvios sexuais, classificação das paixões,correção do corpo, por meio das atividadesfísicas, higiene e limpeza, por meio de banhos(Goellner, 2003, p. 35). Isso é evidenciadona fala da participante:

“Ela tem hábito de passar creme hipo-alergênico no rosto quase que diariamente.No corpo, ela passa óleo hidratante nobanho todos os dias, porque toma banhocom água muito quente. O cabelo da S.Anão tem cuidado muito específico. Usaum shampoo bom para cabelos com luzese, eventualmente, vai ao salão fazer umahidratação, cortar as pontinhas, algumacoisa assim. (...)A S.A. não é muito chegadaem fritura.” (A1)

Considerando-se as inúmeras possibilidadesque se abrem para (re)significar os corposneste contexto de concursos de beleza, po-demos conhecê-las por meio da fala:

“(...) cílios, aplique, make e demais utili-zados em concursos são todos normais ede fácil acesso no mercado nacional. Sãocoisas que todas as meninas fazem uso e,inclusive, fora do Brasil elas são redobradas.O aplique é colocado com uma espéciede tic-tac, ou seja, prende e desprendedo cabelo prontamente, após o uso. Osdentinhos são próteses provisórias, apenaspara momentos de fotos ou entrevistas. Eas maquiagens... essas são serviços con-tratados em cada lugar para onde se vaiviajar. Normalmente, se leva um nécessairecom algum kit de make, mas por questõespráticas, buscamos isso em salões espe-cializados e bem capacitados.” (A1)

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Essas representações vêm interpelando ascrianças participantes de concurso de beleza,uma vez que “agregam nos seus corposmarcas que funcionam como códigos iden-titários que permitem reconhecer seu per-tencimento a um determinado grupo cultural”(Louro, 2000, p. 71). Baseando-se nessaspremissas, entende-se que o corpo infantil,em especial o das crianças participantes deconcurso de beleza, precisa ser constante-mente melhorado, ampliado, ajustado, mo-dificado e até mesmo criado. Precisa-se depróteses e procedimentos de toda a ordemque as tornem belas e adequadas ao cenáriodas passarelas. O corpo parece ser um moldeque se adapta às significações corporais.

Enquanto podemos observar uma preocu-pação histórica, particularmente moderna,de prevenção à feiura, a tônica hoje pareceser não somente corrigir as “imperfeições”que aparecem com o avançar da idade, masprevenir o seu surgimento. Cada vez maiscedo se lança mão das mais diversas técnicaspara se manter bela e/ou adquirir a formafísica adequada.

Considerações finais

A partir deste estudo, observou-se que, atre-lada à criança e sua participação nos concursosde beleza infantil, as pedagogias culturaisassumem grande centralidade na produçãode sua subjetividade e exerce um podersobre ela ao produzir saberes sobre o seucorpo. Esses artefatos que estão imbricadosna vida cotidiana da criança proclamam anecessidade de que a menina siga a “nor-malidade” posta pela mídia, inscrevendo nocorpo determinados sinais de embelezamentoe traçando os padrões que esta deve apre-sentar e mostrar.

Assim, como os(as) personagens vitoriosas(os)e personalidades famosas, a criança estudada,após se tornar mais visível por meio damídia, passa a se constituir como ideal de

corpo, gênero e sexualidade a ser seguidopor outras crianças. Ela, desde muito cedo,é estimulada por essas pedagogias, seja porintermédio da mídia ou das pessoas envolvidasem seu contexto proximal, com o propósitode obter o corpo ideal. Após atingir esseideal por meio dos concursos de beleza,acaba sendo referência aos demais infantis,traduzindo-se em uma espécie de “teia”,uma vez que enreda e captura mais e maiscrianças.

Para a manutenção desse ideal, a criança es-tudada busca estratégias que são propagadasna mídia como “passos” para alcançar abeleza almejada, tais como o uso de cosmé-ticos diariamente, de roupas e acessóriosque acompanham a moda e uma alimentaçãoque mantenha o corpo com a aparência demagra. Nesse processo “de se parecer magra”,cabe também a utilização de medicamentosque contribuem para que o corpo infantil semantenha sempre “esbelto”, preparado paratodos os eventos, sejam eles relacionados àmídia ou não. Além disso, a tecnociência foioutra estratégia mencionada para compor oembelezamento da criança, utilizando-secomo tática uma prótese dentária e, atreladoa isso, nota-se o investimento das ciênciasda saúde nessa composição para o aprimo-ramento do corpo para a questão do embe-lezamento dos corpos. Tudo isso para equipara infraestrutura do corpo com o propósitode deixá-lo mais eficiente, produtivo, saudável,“válido” e visível, operando de forma per-formática nas passarelas.

O corpo, descoberto como “ferramenta uti-litária” pelos meios de comunicação, vemsendo objeto de uma incansável interrogaçãoque se estende dos outdoors às salas de ci-nema, dos jornais às passarelas dos concursosde beleza. De fato, o mundo globalizadoparece ter colocado o corpo na ordem dodia. Por isso, os quesitos corpo, gênero e se-xualidade exigem reflexão, cujo ponto departida é dado pela ideia de que as pedagogias

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culturais “apropriam-se” do corpo biológico,por intermédio de discursos pedagógicos,para redefini-lo e, assim, transformá-lo em“espetáculo”. Frente à atual sociedade, naqual o espetáculo se faz presente pelas me-diações das imagens, os concursos de belezainfantil representam o corpo que está alipara ser visto, admirado e aplaudido.

Vale destacar que a criança utiliza-se de re-cursos da informatização que chama atençãopara si por meio de filmagens que são divul-gadas em redes sociais, o que leva a uma re-flexão ainda no sentido da espetacularizaçãodesses corpos. As diferentes dimensões do"eu" na Internet são pensadas como "alterdi-rigidas". As experiências de subjetividade nasquais as dimensões "íntimas" e "confessionais"produzem construções de si orientadas parauma exposição que objetiva legitimar formasde ser e estar no mundo (Sibilia, 2008).

Em função disso, o corpo enquanto mercadoriaassume a cena. A criança estudada se tornoudivulgadora de produtos, assim como consu-midora destes. As empresas investem nessamenina, atingindo suas expectativas e estimu-lando o consumo de produtos voltados espe-cificamente para o público infantil. Além disso,

o corpo dessa criança volta-se para a propa-ganda, seja de uma loja ou evento publicitário,assumindo a posição de corpo-mercadoria,ou seja, o corpo projetado para o consumo.

Não obstante, as possibilidades de experi-mentações que vêm sendo oferecidas à crian-ça estão dentro de uma rede social maisampla, da qual ela participa, não apenascomo ouvintes dos discursos adultos sobrecorpo, gênero e sexualidade. Defende-se, apartir desta, que além das interpelações depessoas que vivem em seu ambiente proximal,também estão as alocações midiáticas quepermeiam seu cotidiano. Esses discursos en-sinam com eficiência, formando sujeitos, en-gendrando estilos e modos de ser, não sedelimitando a uma determinada faixa etária.Assim, conduz ao favorecimento da “adulti-zação” da criança, uma vez que ela se preo-cupa cada vez mais cedo com as questõesdo embelezamento, utilizando-se de recursospara a sua manutenção e aprimoramento daimagem corporal. Por fim, vale questionarqual infância estamos produzindo na con-temporaneidade, principalmente de meninas,e de que forma ela tem sido instigada a con-ceber seus corpos perante os preceitos mer-cadológicos de embelezamento.

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Isis Alves de CarvalhoGraduada em Psicologia pelo Centro Universitário Franciscano, Santa Maria – RS. Bra-sil. E-mail: [email protected]

Monise Gomes SerpaMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre –RS. Brasil. Docente do Centro Universitário Franciscano, Santa Maria – RS. Brasil.

Endereço para envio de correspondência:Centro Universitário Franciscano, Curso de Psicologia. R. Andradas. Centro. CEP:97010-032 - Santa Maria, RS - Brasil

Recebido 05/06/2013, Aprovado 08/10/2013

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Referências

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