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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X CORPO NÃO-BRANCO E NÃO-BINÁRIO: A PRODUÇÃO DE UMA ALTERIDADE ABJETA NA MÍDIA Clarissa Gonzalez 1 Resumo: “Travesti é agredida/morta”. Quantas vezes manchete semelhante não estampou periódicos brasileiros? Em matéria publicada no dia 24 de fevereiro de 2016, o site Pragmatismo Político informou que o Brasil “é o país que mais mata transexuais”. Diante deste panorama, o que dizer das fotos em que Verônica Bolina, 25 anos, negra, de classe média-baixa, referenciada/predicada como “travesti” pela maioria das fontes noticiosas selecionadas para ilustrar esta pesquisa, “aparece” desfigurada, rendida, com a cabeça raspada e roupas rasgadas? Causa espanto saber que isso ocorreu numa delegacia? A partir do caso mencionado, foco em como a performance de Verônica é construída discursivo-identitariamente em narrativas de teor jornalístico, sendo esta muitas vezes enquadrada como “abjeta” por não materializar, em seu corpo não-branco e não-binário, performances de raça e gênero que gozam de privilégios heteronormativos e brancos, bem como de classe social (SULILIVAN, 2003, BARNARD, 2004). Sob o prisma da interseccionalidade e das teorias queer, entendendo a linguagem como performativa, busco sinalizar/analisar naturalizações que produzem/mantêm assimetrias, que prefiguram identitariamente certas sociabilidades, imobilizando- as sociolinguisticamente. Palavras-Chave: interseccionalidades, gênero, raça, teorias queer, linguagem performativa “Brasil é país que mais mata travestis e transexuais”. O jornal Estado de Minas 2 , em texto que trata do assassinato da “travesti” Dandara Kataryne, assim predicativamente referenciada pelos autores da narrativa, Flávia Ayer e Fred Bottrel, destaca que a “matança da população LGBT foi recorde em 2016, com 347 mortes”. Deste total, “144 vítimas mortais eram travestis ou transexuais”, sendo que no início de 2017, “25 travestis e transexuais já foram assassinadas no Brasil”. Tendo em conta este panorama, provavelmente mais alarmante do que indicam as estatísticas, já que nem todas as agressões a pessoas que performam travestilidade e transexualidade, seguidas ou não de morte, são registradas, o que dizer das fotos em que uma pessoa negra, de 25 anos, que desempenha tais performances, aparece desfigurada? Causa espanto saber que tais fotos foram tiradas dentro de uma delegacia, local onde ocorreu a agressão? Em meio a informações desencontradas facilitadas por alguns portais de notícias (Terra, G1, Folha, Estadão, Diário de S. Paulo etc.), narrativas noticiosas 3 dão conta de que a pessoa em questão, 1 Mestranda em Linguística Aplicada e bolsista de pós-doutorado, membro do NUDES/UFRJ (Rio de Janeiro/Brasil), sou grata à Capes pela bolsa PNPD, que auxiliou na realização desta pesquisa. 2 Jornal ESTADO DE MINAS ONLINE. Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais. 9 mar 2017. Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/especiais/dandara/2017/03/09/noticia-especial-dandara,852965/brasil-e-pais- que-mais-mata-travestis-e-transexuais.shtml> [acesso: 14/03/2017] 3 Opto por usar a expressão ‘narrativa noticiosa’ em lugar de ‘notícia’ para distanciar, de um suposto status de ‘verdade’, textos que são veiculados pela imprensa.

CORPO NÃO-BRANCO E NÃO-BINÁRIO: A PRODUÇÃO DE … · gênero que gozam de privilégios heteronormativos e brancos, bem como de classe social ... performances de gênero e sexualidade

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

CORPO NÃO-BRANCO E NÃO-BINÁRIO: A PRODUÇÃO DE UMA

ALTERIDADE ABJETA NA MÍDIA

Clarissa Gonzalez1

Resumo: “Travesti é agredida/morta”. Quantas vezes manchete semelhante não estampou periódicos

brasileiros? Em matéria publicada no dia 24 de fevereiro de 2016, o site Pragmatismo Político

informou que o Brasil “é o país que mais mata transexuais”. Diante deste panorama, o que dizer das

fotos em que Verônica Bolina, 25 anos, negra, de classe média-baixa, referenciada/predicada como

“travesti” pela maioria das fontes noticiosas selecionadas para ilustrar esta pesquisa, “aparece”

desfigurada, rendida, com a cabeça raspada e roupas rasgadas? Causa espanto saber que isso ocorreu

numa delegacia? A partir do caso mencionado, foco em como a performance de Verônica é construída

discursivo-identitariamente em narrativas de teor jornalístico, sendo esta muitas vezes enquadrada

como “abjeta” por não materializar, em seu corpo não-branco e não-binário, performances de raça e

gênero que gozam de privilégios heteronormativos e brancos, bem como de classe social

(SULILIVAN, 2003, BARNARD, 2004). Sob o prisma da interseccionalidade e das teorias queer,

entendendo a linguagem como performativa, busco sinalizar/analisar naturalizações que

produzem/mantêm assimetrias, que prefiguram identitariamente certas sociabilidades, imobilizando-

as sociolinguisticamente.

Palavras-Chave: interseccionalidades, gênero, raça, teorias queer, linguagem performativa

“Brasil é país que mais mata travestis e transexuais”. O jornal Estado de Minas2, em texto que

trata do assassinato da “travesti” Dandara Kataryne, assim predicativamente referenciada pelos autores

da narrativa, Flávia Ayer e Fred Bottrel, destaca que a “matança da população LGBT foi recorde em

2016, com 347 mortes”. Deste total, “144 vítimas mortais eram travestis ou transexuais”, sendo que no

início de 2017, “25 travestis e transexuais já foram assassinadas no Brasil”.

Tendo em conta este panorama, provavelmente mais alarmante do que indicam as estatísticas,

já que nem todas as agressões a pessoas que performam travestilidade e transexualidade, seguidas ou

não de morte, são registradas, o que dizer das fotos em que uma pessoa negra, de 25 anos, que

desempenha tais performances, aparece desfigurada? Causa espanto saber que tais fotos foram tiradas

dentro de uma delegacia, local onde ocorreu a agressão?

Em meio a informações desencontradas facilitadas por alguns portais de notícias (Terra, G1,

Folha, Estadão, Diário de S. Paulo etc.), narrativas noticiosas3 dão conta de que a pessoa em questão,

1 Mestranda em Linguística Aplicada e bolsista de pós-doutorado, membro do NUDES/UFRJ (Rio de Janeiro/Brasil),

sou grata à Capes pela bolsa PNPD, que auxiliou na realização desta pesquisa. 2 Jornal ESTADO DE MINAS ONLINE. Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais. 9 mar 2017. Disponível

em: <http://www.em.com.br/app/noticia/especiais/dandara/2017/03/09/noticia-especial-dandara,852965/brasil-e-pais-

que-mais-mata-travestis-e-transexuais.shtml> [acesso: 14/03/2017] 3 Opto por usar a expressão ‘narrativa noticiosa’ em lugar de ‘notícia’ para distanciar, de um suposto status de ‘verdade’,

textos que são veiculados pela imprensa.

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Verônica Bolina, teria agredido uma vizinha de 73 anos. Levada para a delegacia, teria sido posta em

uma cela coletiva masculina – decisão que, além de desrespeitar sua autodeterminação de gênero,

colocava-a em perigo. Lá, teria mordido a orelha de um agente carcerário. Na sequência, teria sido

“espancada”, como afirma o jornalista que assinou a narrativa noticiosa a ser analisada. Desde então,

fotos do policial com a orelha ensanguentada e da vizinha com hematomas têm circulado amplamente,

bem como as fotos de Verônica depois da agressão sofrida.

Sem a pretensão de condenar uns e absolver outros, debruço-me sobre como o que aconteceu

foi narrado pelo G1, portal de notícias da Globo, ressaltando o caráter iterável dos atos de violência

discursiva e física cometidos contra pessoas que performam travestilidade e transexualidade. Fato

que faz com que estes atos frequentemente ilustrem narrativas noticiosas e estejam intertextualmente

conectados, fazendo com que histórias como as de Dandara e Verônica dialoguem com muitas outras.

De tão corriqueiras e midiaticamente exploradas, há agressões que deixam de chocar, de

produzir estranhamento (SONTAG, 2003). Para buscar entender como isto se dá, proponho investigar

como determinados mecanismos que operam na esfera sociolinguística logram deslegitimar certas

performances de gênero e sexualidade. Tendo como objetivo identificar de que forma performances de

gênero não binárias/hegemônicas4 são semiótico-discursivamente construídas em uma narrativa

noticiosa publicada pelo G1, englobando tanto foto como grafia, imagem e escrita, foco no modo como

os processos semióticos sinalizados por Irvine e Gal (2000) tornam visíveis estratégias que

desqualificam certos sujeitos, bem como ideologias de gênero que atravessam a referida narrativa.

Instrumental teórico-analítico

Para dar conta de tal objetivo, recorro a um instrumental teórico-analítico que privilegia os

processos semióticos estudados por Irvine e Gal (2000): iconização, apagamento e recursividade

fractal. Segundo as autoras (IRVINE & GAL, 2000), estes operam na regimentação de discursos,

instaurando e mantendo aqueles que gozam de hegemonia durante determinado período sócio-

histórico. A iconização se caracteriza por naturalizar a associação entre certas práticas

(sócio)linguísticas e a imagem a estas associadas, projetando uma identidade/um marcador social

sobre os sujeitos que as executam. O apagamento, por sua vez, ao borrar facetas e matizes de

4 Performances de gênero não binárias ou não hegemônicas são aqui compreendidas como aquelas que, de alguma

maneira, chocam com a matriz de inteligibilidade cis/heteronormativa, com o sistema de classificação de gênero

binário/hegemônico. De forma que, por mais que certas performances de travestilidade busquem se aproximar daquelas

tidas como típicas do gênero que se objetiva performar, podendo ser consideradas binárias em certa medida, estas são

aqui entendidas como não binárias/não hegemônicas por conta dos atravessamentos que as caracterizam, por romperem

com a crença de que sexo, gênero e desejo devem convergir de forma cis/hetero orientada (BUTLER [1990] 2007).

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determinadas práticas, seja ocultando ou homogeneizando processos, produz uma assepsia

epistêmica: só deixa ver o que interessa mostrar. Já a recursividade fractal remete à produção de

diferença, ou seja, a construir uns/umas em oposição a outros/as, sendo que, de um primeiro par

opostos, advêm outros, que se espraiam e repetem em outros níveis escalares.

Por sua vez, as pistas indexicais de Wortham (2001) compõem um ferramental que nos ajuda

a identificar os signos que despontam numa prática discursiva/narrativa situada com discursos

orientadores que trafegam em escala macrossociológica. Dentre as pistas indexicais empregadas na

análise, ganham destaque: 1) Referência e predicação, que fazem menção, respectivamente, a forma

de selecionar as coisas no mundo e de caracterizá-las. Segundo Wortham (2001: 70), quando nomeia

e predica, o/a narrador(a) “se posiciona e identifica os personagens socialmente”; 2) Descritores

metapragmáticos, que incluem os verbos ‘do dizer’, os quais caracterizam o estilo ou o conteúdo

discursivo, sendo “um importante meio de vocalizar e ventriloquar” (WORTHAM, 2001: 71); 3)

Citação, que engloba duas possibilidades: repetição do que foi dito por outrem (citação direta) ou sua

tradução nas palavras de quem narra (citação indireta).

Detalhado o instrumental teórico-analítico a ser empregado, ressalto, antes de efetuar a

análise, que esta pesquisa contempla o gênero sob o prisma da performatividade (BUTLER [1990]

2007). E, ancorada numa visão performativa de linguagem – e imagem – (AUSTIN [1962] 1990;

BUTLER [1990] 2007, [1993] 2002, [1997] 2004, [2004] 2006a, [2009] 2010), parte do pressuposto

de que, do mesmo modo que a linguagem escrita/falada age sobre nós, a fotografia, enquanto artefato

visual que possui seus próprios códigos, igualmente produz efeitos ao ser ‘enunciada’. Signos

imagéticos, assim como os linguísticos, bem como seus usos, dão pistas tanto da realidade retratada

como de quem a retrata. De forma que a análise abarcará tanto a dimensão escrita quanto a imagética

da narrativa noticiosa em questão.

Foto-grafando verônica bolina: análise da narrativa noticiosa do G1

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Sob o título “Justiça aceita denúncia contra travesti Verônica por tentar matar idosa”, Kleber

Tomaz, que assina a narrativa noticiosa postada quase um mês depois da prisão de Verônica, versa

sobre o desenrolar do caso. Suas escolhas lexicais agudizam a gravidade das acusações que pesam

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contra Verônica: não se trata ‘apenas’ de uma tentativa de homicídio, mas de uma tentativa de

homicídio contra pessoa idosa, logo, de um ato de covardia. Há de se ter em conta, ademais, que o

jornalista não prioriza apenas o acontecimento noticiável (a denúncia aceita), mas dá destaque às

identidades de quem participou deste: se temos em conta a imagem social de pessoas que performam

travestilidade e a de senhoras idosas, ao se colocar uma contra a outra, automaticamente se

posiciona/iconiza/naturaliza uma como vilã e a outra como vítima. Esta primeira oposição inspirará

outras (jovem x idosa, covarde x indefesa), que, em recursividade fractal, reforçarão o

posicionamento polarizado das personagens na narrativa.

Na primeira linha do subtítulo (“Ela continuará presa e fará exame de insanidade por agressão

em abril”), além de prover informação seguimento, o jornalista relata que Verônica será submetida a

“exame de insanidade”. Sua menção, dentre outras coisas, indica que o discurso médico goza de

autoridade (BRIGGS, 2005, 2011) no que tange à produção de verdades, à construção identitária

(FOUCAULT [1976] 1999) e à aplicação de sentenças (FOUCAULT [1984] 2010). Será este que

poderá definir o destino de Verônica e atribuir-lhe nova identidade, a de “insana”.

Já a segunda linha do subtítulo (“Travesti surgiu com rosto desfigurado após arrancar orelha de

policial em SP”) referencia a agressão de que Verônica fora vítima. Porém, há pelo menos três pontos

que operam de forma a tornar tal agressão ‘menor’. O primeiro diz respeito ao tamanho da fonte: a

usada no título, que acusa Verônica de tentativa de homicídio, é consideravelmente maior que a do

subtítulo, que faz menção à violência por ela sofrida. O segundo estabelece uma relação de causa e

efeito que busca justificar a agressão (ela teria ‘surgido’ “com o rosto desfigurado após arrancar orelha

de policial em SP”): quem a agrediu ‘limitou-se a revidar uma agressão primeira’. O terceiro ponto

envolve o verbo ‘surgir’, aqui empregado como sinônimo de ‘aparecer.’ Intransitivo, tal verbo apaga o

agente que produz a agressão. Tais escolhas nos dão pistas sobre o que isso indicaria: a dificuldade do

jornalista em posicionar o policial como agressor. Em contrapartida, conforme constatado no título, ele

é contundente ao posicionar Verônica como homicida em potencial.

Se no primeiro parágrafo, Tomaz referencia que o MP (Ministério Público) aceitou denúncia

contra Verônica, no segundo, o jornalista já projeta sobre ela uma identidade de ré e a predica como

perigosa. Logo recorre a uma citação para se justificar: “Os crimes que lhe são atribuídos são graves,

um deles cometido contra pessoa idosa, sem motivo aparente, o que demonstra sua periculosidade

concreta e a necessidade da segregação social, sendo a prisão necessária à garantia da ordem pública”.

Tomaz a finaliza com o mesmo descritor metapragmático ao qual recorre no primeiro parágrafo

(“informa”). Este evoca anúncios oficiais do tipo “o ministério informa”, os quais, pela fonte que os

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emite, gozam de autoridade e legitimidade. Esta citação, além de reforçar o quão perigosa Verônica

pode ser, também projeta um novo posicionamento para ela, o de “ameaça à ordem pública”.

O que se observa é que a narrativa não só a constrói vilã, mas a reafirma em tal posicionamento

constantemente. E, por meio de dinâmicas de recursividade fractal, traslada a diferentes escalas ‘os

desacertos’ nos quais ela supostamente incorre, ampliando a carga negativa que paira sobre Verônica:

agora ela não é somente covarde por ter agredido uma idosa, mas também se constitui como uma ameaça

à ordem pública. O que antes pertencia à esfera situacional (uma agressão), ganha outros contornos:

Verônica passa a figurar como uma ameaça à sociedade como um todo. E assim se justifica sua

“segregação social”, que tem uma razão de ser: garantir que as/os cidadãs/cidadãos ‘de bem’ possam

circular livres de ameaças (como ela).

O terceiro parágrafo começa com o jornalista referenciando que “a travesti de 25 anos nasceu

como Charleston Alves Francisco, mas usa o nome social de Verônica Bolina”. O mero uso da

referência predicativa “travesti”, de alta carga performativa, já evoca um determinado repertório

semiótico, dando materialidade a um tipo de performance característico (BORBA & OSTERMANN,

2008), fruto de prefigurações identitárias que imobilizam sociolinguisticamente quem as executa.

Mas eis aí também o que considero uma violência sócio-discursiva: revelar o nome com o qual

Verônica foi registrada supõe um desrespeito à sua autodeterminação de gênero, apaga a identidade

feminina que ela requer para si. Isto parece funcionar como uma forma de desautorizar sua

performance de gênero e sexualidade. Demonstra também um dos diversos modos em que a palavra

pode ser usada para ferir (BUTLER [1997] 2004). Deixa antever, ademais, os discursos de senso

comum que orientam o jornalista, mais precisamente o do determinismo biológico, o da matriz de

inteligibilidade cis/heteronormativa e o da convergência entre sexo, gênero e desejo (BUTLER [1990]

2007). O primeiro entende a biologia como destino (BUTLER [1990] 2007); o segundo indica que o

indivíduo só se torna socialmente inteligível ao ser generificado e habitar um entre-lugar não é uma

possibilidade admitida (BUTLER [1990] 2007, [2004] 2006a); o terceiro combina os outros dois ao

determinar que sexo (caracteres sexuais exteriores/ biologia), gênero (a forma como queremos ser

socialmente reconhecidas/os) e desejo (libido) devem convergir cis e heterossexualmente.

O quarto parágrafo começa narrando que a Polícia Militar e o MP o irão apurar se Verônica

foi “espancada” por policiais civis ou militares. Pela primeira vez, Thomaz utiliza uma predicação

menos suave para sinalizar o que aconteceu com Verônica, que agora é posicionada como ‘vítima de

espancamento’. Em seguida, o jornalista referencia que a Defensoria Pública, encarregada da defesa

de Verônica, acompanha o caso. Explicita, na sequência, que foi o vazamento das fotos “que tornou

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o caso público”. Provavelmente graças a isso, ou seja, à ampla e infecciosa circulação das fotografias

em que Verônica aparecia desfigurada, o caso não teve o mesmo destino que outros tantos que

envolvem humilhações e agressões a pessoas que performam travestilidade proferidas por agentes de

uma instituição, a policial , que supostamente existe para proteger a todas/os.

No entanto, se nem todas/os são dignos de circular livremente (FOUCAULT [1977-1978] 2008),

o mesmo se aplica à proteção: nem todas as vidas mostram-se dignas de serem protegidas/ preservadas

(BUTLER [2004] 2006a, [2004] 2006b), algumas/alguns ‘tornam-se’ menos humanas/os que outras/os

(BUTLER [2004] 2006a, [2004] 2006b). Soma-se a isso o fato de algumas pessoas serem julgadas não

por seus atos, mas por encaixarem em um determinado ‘perfil’ que, com base em iconizações, não apenas

as desumaniza mas também as converte nas/nos suspeitas/os usuais, quando não em responsáveis pela

agressão sofrida.

O quinto parágrafo referencia que “Verônica chegou a gravar áudios negando ter sido vítima

de tortura e agressões policiais no 2º Distrito Policial” e que “confirmou que agrediu a idosa e

arrancou a orelha do carcereiro”. Dita gravação/confissão, também compartilhada em redes sociais,

circulou amplamente. Porém, dadas as circunstâncias e o estado de Verônica, delatado pelas

fotografias que a registraram desfigurada, suspeitou-se de que os áudios foram gravados sob coação

e/ou sob promessa de redução de pena. Esta estratégia de apagar ou minimizar a violência por ela

sofrida e, ao mesmo tempo, corroborar que ela atacou a senhora e o carcereiro podem ter por efeito

monstrualizá-la ainda mais.

No sexto parágrafo, levanta-se a hipótese de que as gravações teriam sido efetuadas por Heloisa

Alves, coordenadora de Políticas para a Diversidade Sexual do Estado de São Paulo. No sétimo, em

contraste com a breve menção à versão apresentada pela Defensoria Púbica (“Verônica foi agredida e

torturada na delegacia”), Tomaz referencia que ela vai responder “ao crime de lesão corporal”. O uso da

locução nominal “lesão corporal” indica tanto a autoridade que evoca (médico-jurídica), quanto

redimensiona o ato de violência cometido por Verônica (aquele não foi um crime comum, mas sim um

crime que envolveu lesão corporal). Já o uso reincidente do verbo ‘arrancar’ e do advérbio de modo ‘a

dentadas’ a ratificam como ‘vilã’ e ‘abjeção selvagem’. Somente na última sentença do parágrafo, ela

volta a ser posicionada como vítima: “a travesti foi agredida e torturada na delegacia”.

No oitavo parágrafo, entretanto, Verônica é posicionada como incitadora de atos de violência:

“apanhou de presos ao se masturbar na frente deles”, referencia o jornalista. Tais escolhas lexicais

sugerem que ‘ela pediu para ser agredida’. No nono parágrafo, a mãe de Verônica, funcionária

pública, posicionamento que indica um certo status social e provê legitimidade ao seu discurso,

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contesta a versão da polícia: “Marli Ferreira Alves declarou que Verônica lhe disse que foram

policiais que bateram nela”. Eis aí um embate de forças menos desigual: autoridades policiais e

funcionários públicos desfrutam de maior legitimidade social que a das pessoas que performam

travestilidade. Curiosamente, porém, a declaração da mãe de Verônica, a única voz da narrativa a

defendê-la, só é inserida ao final do texto. Logo, o jornalista conclui a narrativa noticiosa com um

parágrafo composto de uma única sentença (“A Justiça negou o pedido da Polícia Civil para se decretar

segredo no caso”), que pode ser interpretada como tentativa por parte da policial civil de pulverizar o

debate público sobre o caso.

No que tange às fotografias, cabe ressaltar que a primeira imagem não é muito diferente das

que são comumente publicadas no Facebook, de onde, por certo, a foto procede. Tal como muitos

jovens de sua faixa etária (25 anos), Verônica usa a rede social para exibir seus atributos físicos. No

entanto, como Sontag (2003) alerta, uma fotografia pode ser radicalmente ressignificada quando

recontextualizada: sua ‘transitividade’, ou seja, seus complementos linguístico-lexicais (narrativa,

título, subtítulo, legenda), pode transformar radicalmente a forma como a imagem vai ser ‘lida’. Neste

caso, por mais que os signos visuais apontem para boa forma física e juventude, a primeira foto não

só se presta a contrapor a juventude de Verônica à idade avançada da senhora, mas também contrapõe

a força de Verônica à suposta fragilidade da idosa. Estas oposições, em recursividade fractal,

colaboram para que se leve a cabo ações foto-gráficas que monstrualizam Verônica. Eis aí o que eu

chamo de “metapragmática enviesada” ou “produção de sentido torcida”: atributos, como boa forma

e juventude, positivamente valorados pela sociedade ocidental, são aqui usados no ataque e na

desqualificação de Verônica, ajudando a construí-la como bruta e covarde.

Já a segunda foto parece dar materialidade a uma tentativa de explicitar e desfazer sua ‘farsa’,

seu ‘estiolamento’ de gênero. Esta foto, posterior à agressão, parece evidenciar que a violência por

ela sofrida está diretamente relacionada com a reprovação de sua forma não binária/hegemônica de

performar o gênero: signos usualmente associados a performances de feminilidade são apagados

(cabelo longo, por exemplo) e aqueles que remetem à masculinidade são destacados: a camisa de

corte masculino, por exemplo, ainda que não camufle seus seios protuberantes, distancia Verônica da

imagem de ‘mulher’ performada na foto pré-agressão. Esta imagem, para todos os efeitos, sintetiza

bem o que eu chamo de ‘imagem viva’, um tipo de imagem que tem ‘algo’ que nos interpela

(ALTHUSSER, 1972) e persegue (SONTAG, 2003). E se a fotografia é síntese, conforme afirmo,

esta imagem sintetiza bem o drama de Verônica e o de tantas outras Verônicas que são vítimas de

atos violentos, muitas vezes seguidos de morte. Esta fotografia também se presta a materializar

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imageticamente o resultado de sucessivos processos de iconização, apagamento e recursividade

fractal, que têm por efeito construir Verônica como um ser monstruoso.

Se por um lado a segunda foto física e literalmente a converte em monstro/abjeção, a primeira,

cuja legenda apresenta o que suponho ser um erro de digitação (“ma idosa”), ajuda a posicionar

Verônica como ré e homicida em potencial, apagando exatamente aquilo que a fotografia exibe: uma

jovem de boa aparência e bonito porte físico.

Ingovernabilidade e monstrualização: algumas considerações

Na leitura foto-gráfica aqui feita, uma dentre outras possíveis, posicionar Verônica como ré,

agressora, homicida em potencial e como alguém que padeceria de insanidade mental, tal como pistas

indexicais e processos semióticos que dão visibilidade a estratégias de iconização, apagamento e

recursividade fractal sugerem, não a converte ‘apenas’ em ré, agressora, homicida em potencial ou insana,

mas em alguém que, ‘além de travesti’, é tudo isso. Dessa forma, amplia-se, intensifica-se e reifica-se o

estigma (GOFFMAN 1963), aqui entendido como marcador social da diferença, que socialmente pesa

sobre pessoas que performam travestilidade.

O peso sociocultural que a travestilidade adquire é tamanho (WILCHINS, 2004) que outros

marcadores sociais da diferença, como raça (SULLIVAN, 2003; BARNARD, 2004), não ganham

destaque na narrativa analisada, ainda que compareçam nas entrelinhas destas: enquanto a idosa e o

carcereiro, ambos brancos, têm as agressões que sofrem lamentadas nas narrativas, Verônica, negra,

é semiótico-discursivamente construída como monstruosa, o que torna menos provável que seus

pesares inspirem empatia.

Esta monstruosidade que lhe é atribuída em muito se deve ao fato de performances como a

sua, não-binárias e não-brancas, serem construídas como abjetas na mídia. Se concebemos o discurso

como aquele que cria o que descreve (FOUCAULT [1969] 2008), torna-se mais fácil identificar o

mecanismo do qual meios noticiosos se apoderam: se estes criam os campos de dizibilidade e

visibilidade que descrevem e neles Verônica emerge sob aspecto monstruoso, ela acaba,

performativamente, ‘adquirindo’ tal aspecto. Isto sucede porque estes campos, pautados por matrizes

de inteligibilidade cis/heteronormativas, que negam reconhecimento – e, por conseguinte, legitimidade

– àquelas/es que performam o gênero e a sexualidade de forma não binária/hegemônica, só lhes permite

emergir como dizíveis e visíveis sob a forma abjeta/monstruosa

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Talvez tal mecanismo seja posto em prática para conter a ameaça que performances de gênero

não binárias/hegemônicas supõem, as quais evidenciam o quão falho o dispositivo cis/ heteronormativo

da sexualidade pode resultar. Por mais que discursos como o da autenticidade de gênero e o do

determinismo biológico, bem como a crença de que sexo, gênero e desejo devem convergir cis e

heteronormativamente (BUTLER [1990] 2007) tratem de manter este dispositivo efetivo em sua captura,

nele há fissuras. Corpos e performances que se mostram ingovernáveis, como o Caso Verônica Bolina

demonstra, expõem estas fissuras, deixando antever brechas. Desafiam, dessa maneira, estratégias de

governamentalidade e matrizes de inteligibilidade que regem a vida em sociedade.

Urge aproveitar estas brechas e fazer circular outros discursos, que dilatem os campos de

dizibilidade e visibilidade disponíveis, ampliando o escopo do socialmente inteligível, abrindo

passagem a novas (meta)pragmáticas e outras performatividades. Outra alternativa é passar a

compreender o monstruoso conforme Derrida (1973, 1995) sugere: como a possibilidade de ampliar

padrões já assimilados, de romper com a normalidade constituída. Mesmo porque, se impedirmos o

novo de dar-se a conhecer, permaneceremos atados ao passado. Este ‘não-movimento’ nos impede ver

que quando imobilizamos ou neutralizamos aquelas/es que concebemos como alteridade

abjeta/monstruosa, estamos, na verdade, imobilizando e neutralizando a nós mesmos, fechando-nos ao

futuro, limitando-nos a viver um “amanhã previsível” (DERRIDA, 1995: 386).

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A non-white and non-binary body: the production of an abject alterity in the media

Abstract: “A transvestite is assaulted/killed.” How many times has a headline like this made it to the

cover of Brazilian newspapers? In an article published on February 24th, 2016, the website

Pragmatismo Político reported that Brazil “is the country that has the highest transsexual murder rate

in the world”. Considering this panorama, what can be said about the photos in which Verônica

Bolina, a 25 year-old black middle-low class referenced/predicated as “transvestite” by most of the

news sources selected to illustrate this research, “appears” disfigured, unarmed and subdued, her hair

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

shaved and her clothes ripped? Is it astonishing to know that this happened in a police station?

Taking into consideration the incident mentioned above, I focus on how Veronica’s identity

performance is discursively constructed in (digital) news narratives, where it is often framed as

“abject” for not materializing, in her non-white and non-binary body, performances of race and

gender that enjoy heteronormative and white privileges, as well as that of social class. Under the

prism of intersectionality and queer theories, understanding language as performative, I seek to

signal/analyze naturalizations that produce/maintain asymmetries, which prefigured certain

sociabilities, immobilizing them sociolinguistically.

Keywords: intersectionality, gender, race, queer theories, performative language