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Correio Das Artes - Setembro 2010

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ruanda, de Linduarte Noro-nha, entrou para a histó-ria. Não só da Paraíba,onde se tornou referênciadecisiva às gerações poste-riores que fizeram cinemaaqui. Em todo Brasil tam-bém. Ninguém menos queGlauber Rocha, mentor elíder do Cinema Novo, deuao filme paraibano o crédi-to devido. A fotografia es-tourada que revelava aorestante do Brasil uma re-alidade dura, serviu de ré-gua e compasso aos que seaventuraram a fazer cine-ma em tempos de uma câ-mera na mão e uma ideiana cabeça.

No ano em que o filmecompleta o seu aniversá-rio de 50 anos, apresenta-mos aos leitores do Cor-reio das Artes, uma longae inédita entrevista comLinduarte, concedida aospesquisadores ViniciusNavarro e Fernando Tre-vas Falcone, em 1989.

Aruanda, jubileu de ouro de uma obra-prima

6editorial

A União Superintendência de Imprensa e EditoraBR-101 - Km 3 - CEP 58.082-010 - Distrito Industrial -João Pessoa - PBPABX: (0xx83) 3218-6500 - FAX: 3218-6510Redação: 3218-6511/3218-6512ISSN 1984-7335edi tor .cor re iodasar tes@gmai l . comht tp : / /www.aun iao .pb .gov .b r

Suplemento mensal do jornal A UNIÃO, não pode ser vendido separadamente

Secretária Est. deComunicação InstitucionalLENA GUIMARÃES

Supe r i n t enden t eNELSON COELHO DA SILVA

Diretor AdministrativoCRISTIANO MACHADO

Diretor TécnicoWELLINGTON AGUIAR

Diretor de OperaçõesMILTON NÓBREGA

Editor GeralSÍLVO OSIAS

Editor do Correio das ArtesASTIER BASÍLIO

Supervisor GráficoPAULO SÉRGIO DE AZEVEDO

,CONTO

Um dos mais importantes

ficcionistas atuais, o escritor

Pedro Salgueiro publica um

conto inédito, “O Jogo de

Damas”

6 índice

@MÚSICA

A ginga malandra de

Moreira da Silva, o Kid

Morengueira, é o tema da

coluna do poeta e professor

Amador Ribeiro Neto

DCINEMA

O novo filme da diretor Jane

Campion, Brilho de Uma

Paixão, é o objeto de

análise do crítico de cinema

João Batista de Brito

2CORDEL

Um inusitado encontro entre

os poetas populares Zé Limeira

e Patativa do Assaré em um

folheto é analisado pelo

pesquisador Gilberto de Lucena

24 30 33 40

A No ano em que o

filme completa o

seu aniversário de 50

anos, apresentamos

uma longa e inédita

entrevista com o

diretor Linduarte

Noronha

Ed i t o r a ç ãoULISSES DEMÉTRIO

I l u s t r a çãoTÔNIO

Arte e montagem da CapaULISSES DEMÉTRIO

Re v i s ã oANTÔNIO MORAES

A nova geração da litera-tura paraibana tambémcomparece. O jovem poetaDaniel Sampaio exercita oofício da tradução em �ABela Toilet�, versão sua deum poema do norte-ameri-cano Ezra Pound. O tambémjovem Tiago Germano mar-ca sua presença nesta edi-ção. Analisa as ligações en-tre o seriado de televisão�Dexter� e o romance deDostoiévski, Crime e Castigo.

Curiosamente, o tema do

regionalismo foi motivo de umadupla reflexão. Uma, mais abran-gente sobre o assunto, feita pelo co-lunista Hildeberto Barbosa Filho eoutra mais verticalizada, da pro-fessora Moema Selma D�Andrea,que se detém no exame dos contosdo escritor cearense Ronaldo Cor-reia de Brito.

Uma boa surpresa nos é reve-lada por Ronaldo Cagiano. Elediscorre sobre o romance Deus deCaim, do não muito conhecido Ri-cardo Guilherme Dicke. Quemtambém traz outro surpreenden-te autor é Luís Felipe Cristóvão.No dossiê sobre a literatura con-temporânea portuguesa, toma-mos conhecimento de um grandepoeta, Jorge Melícias.

Duas estreias completam a ediçãode setembro. Do escritor baiano Ed-son Cruz, nosso novo colunista, queescreverá sobre as relações entreinternet e literatura. A segunda no-vidade diz respeito à poesia. Acada edição, pediremos aos própri-os poetas que escolham seus textospreferidos. Quem dá início à série éSérgio de Castro Pinto.

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6 eu indico

6 lançamentos

6 do leitor

Paulo Bio de Toledocrítico de teatro da revista Bacante Rizemberg Felipe fotógrafo

A Banda (The Band's Visit)Vi esse filme quando estava estudandocinema em Nova York, e esse filme foipassado na academia para mostrar umaoutra forma de contar uma história. O filmefoi indicado para melhor filme de línguaestrangeira, mas como ele é falado 75% eminglês foi desclassificado. O filme tem umaboa fotografia e uma excelente história. Umadas cenas memoráveis do filme é quandoum integrante da banda ajuda como cupidoa um garoto da cidade. Vale a dica!

Santa Joana dos MatadourosUm crítico do teatro disse certa vezque Brecht “ofusca tudo ao seuredor”. Nada mais correto para ilustrarmeu primeiro contato com sua SantaJoana. Para mim, o teatro jamais foi omesmo depois de deparar-me com aingênua Joana nas fábricas de carneenlatada e em meio ao (atualíssimo)jogo especulativo do mercadofinanceiro.

Buddy Guy & Junior Wells -Play the BluesBuddy Guy e Junior Wells protagonizaramuma das mais talentosas duplas do blues.Este álbum foi conturbado. Eric Clapton,Ahmet Ertegun, e Tom Dowd sóconseguiram gravar oito faixas em umasérie de sessões em 1970 em Miami, doisanos depois, a banda J. Geils foi trazidapara gravar as duas músicas adicionaisque completam o LP para o lançamentosuper atrasado em 1972. O disco duplomostra Buddy Guy deslumbrante com orevival de "T-Bone Shuffle" e Junior Wellsbrilhante em "Sonny Boy's My Baby SheLeft Me" (Warner, R$ 39,20)

Sublime ObsessãoNa pequena Brightwood, o milionárioplayboy Bob Merrick sofre um acidentecom seu barco de corrida. O grupo desalvamento o ressuscita com umequipamento que, por isso, não pode serusado para salvar a vida de um herói local,o Dr. Wayne Phillips. Dias depois, já nohospital, Merrick conhece a viúva dePhillips, Helen, por quem se apaixonaperdidamente. É o início de um romanceque mudará a vida dos dois parasempre.Baseado no livro homônimo deLloyd Douglas, Sublime Obsessão (1954,Douglas Sirk) levou Rock Hudson aoestrelato. (Versátil Home Vídeo, R$ 54, 40)

Diário do Hospício e oCemitério dos VivosEste volume reúne duas obras de LimaBarreto, Diário do Hospício e oromance inacabado O cemitério dosvivos. O primeiro é um documento dainternação do escritor, entre o natal de1919 e fevereiro de 1920, no HospícioNacional dos Alienados, no Rio deJaneiro. O segundo enfrenta, em chaveficcional, a experiência da loucura,narrada no primeiro. Publicadospostumamente, funcionam como vasoscomunicantes. Esta nova edição contacom um prefácio do crítico AlfredoBosi. (Cosac Naify, R$ 55 352 pág)

4 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

Excelente a edição, principalmente a tradução de Marianne Moore.André Ricardo Aguiar - poeta/ PB

Recebi a revista, ficou uma beleza! Vou ler com mais atenção e te falo.Ruy Castro - escritor/ RJ

Parabéns pelo Correio, transbordante de matérias suculentas, um verdadeiro banquete intelectual.Ivo Barroso - poeta e tradutor/ RJ

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A UNIÃO João Pessoa, setembro de 2010 | 5

O ambiente cultural da Paraíba noinício dos anos 60 parecia instigante:havia a Associação dos Críticos Cine-matográficos da Paraíba (ACCP), o ci-neclubismo. Gostaria que você des-crevesse João Pessoa em 1960, quan-do você foi rodar Aruanda na Serra doTalhado.

O instigante que você fala era maisum ambiente talvez voltado 90% àsletras provincianas. Aqui em João Pes-soa, como qualquer província desteporte, cinema era tabu. Fazer cinemaera loucura. A não ser aquelas loucu-ras de Walfredo Rodriguez nos

Reflexõesde um crítico-realizador

m entrevista concedida emjunho de 1989, LinduarteNoronha fala do seu ofício decrítico de cinema, exercidodiariamente nas páginas de AUnião entre 1956 e 1967, e darepercussão de Aruanda naParaíba e no Brasil. Ele lembracomo o golpe militar de 1964afetou o jornalismo e aprodução cultural no Estadoe faz a defesa do documentário.A entrevista, inédita, foi concedidaa Fernando Trevas Falcone eVinícius Navarro

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6 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

ano 20 e 30. Tudo se resol-via em torno do jornalismo eda literatura, principalmentepoesia. O problema cinema-tográfico na época surgiu,como vocês sabem, da crôni-ca cinematográfica, da críticacinematográfica. Aí, ele to-mou uma dimensão dentrodo jornalismo. Como caracte-rística cinematográfica foi acrítica. Mas, em termos de re-alização, não. Predominava acrítica literária. Era uma pre-dominância dos anos 50 quechegava ainda. A União tinharodapé sobre crítica literária.O Correio das Artes que foifundado em 1949, tinha tam-bém.

De que maneira o Ciclo deCinema Paraibano influencioua crítica local?

Houve um impacto tre-mendo, por que jamais quemescrevia sobre cinema aquiadmitia ou sonhava que umdia pudesse entrar para a re-alização cinematográfica.Havia blagues nos jornais, notempo em que estávamosrealizando Aruanda em San-ta Luzia, houve até notíciasdesairosas.

Parece-me que a imprensasuperestimava o cinema parai-bano.

Totalmente. Quando eu fuiao Rio pegar o equipamentodo INCE para realizar Aruan-da, um jornal disse que eu ha-via retornado cineasta. Eu nemhavia começado o filme... Omundo intelectual ficou res-sentido com a perspectiva queo cinema dava. E vocês sabemque a realização de um filmenão é como escrever um poe-ma. O cinema tinha proble-mas seriíssimos, que eles des-conheciam.

Quais eram as perspectivasda produção cinematográficaem 1960, quando você, diga- c

mos, foi ousado, a ponto desair para a Serra do Talhado erealizar Aruanda ?

Bem, primeiro foi Aruandae em 1962 a gente fez Cajuei-ro Nordestino. A partir daí, oreitor da Universidade Fede-ral da Paraíba, Mário MoacyrPorto, encampou nosso traba-lho, com a criação do Serviçode Cinema Universitário. EsteServiço foi o núcleo do atualDepartamento de Comunica-ção da UFPB.

Ele foi cassado?Eu não sei como não foi fu-

zilado. Tinha um altíssimonível cultural. Ele alugouuma sala na Rua Duque de

Caxias (centro de João Pes-soa), para implantar o Servi-ço de Cinema Universitário.Eu já tinha feito Aruanda eCajueiro e o próximo projetoseria Mangue.

Qual a relação do Mangue comOs Homens do Carangueijo, doIpojuca Pontes?

Bem, o Mangue, dentro doargumento nosso, não tinhanada que ver com aquilo e ti-nha. Aquilo era quase um ele-mento ilustrativo. Mas o do-cumentário Mangue que eupensava era uma análise sobrea Região Ribeirinha, do RioSanhauá, do Rio Paraíba, in-clusive com suas conotaçõessocioeconômicas. Há uma coi-sa incrível nesses rios, que nãosei se ainda existe, que é o cha-mado mascate. O indivíduosaía numa canoa vendendo àprestação para quem moravanos rios. Isso tudo roteirizadopor mim. Era um núcleo, umcomplexo primitivo dentro daregião. Eu não posso negar, aminha geração foi profunda-mente influenciada pelo Gil-berto Freyre, José Lins doRego, Graciliano Ramos.

O cineasta Alberto Cavalcanti...

�Eu não posso negar,

a minha geração foi

profundamente

influenciada pelo

Gilberto Freyre,

José Lins do Rego,

Graciliano Ramos�

CENA DE ARUANDA, FILMADO NA SERRA DO TALHADO, EM SANTA LUZIA, INTERIOR PARAIBANO

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c Cavalcanti... O velho Gil-berto, com todos os defeitosdos últimos anos da vida deGilberto - botaram ele numafogueira, chamando de cabo-tino, reacionário - isso não meinteressa. O que me interessaem Gilberto Freyre é a primei-ra parte da obra dele: CasaGrande e Senzala, Sobrados eMocambos, Nordeste. O gran-de interesse nosso era filmarNordeste. A gente ia filmar Nor-deste, dentro deste núcleo quea Universidade encampou.

O Mangue seria uma produ-ção da Universidade?

Sim.

O que aconteceu com esseprojeto?

Em 1964 prenderam todomundo, meteram o cassete ejogaram fora todo o equipa-mento que a Universidade ti-nha comprado.

A câmera russa que vocêcomprou no Rio de Janeiro, jáera para filmar Mangue ?

Perfeitamente. Isso deu omaior bolo. A Universidadecomprou um equipamentoprofissional, que nunca foiusado.

Você chegou a rodar Man-gue ?

Não, ainda estava no rotei-ro. Quando estourou o troçodisseram que eu era amigo doKruschev, que vivia na UniãoSoviética. Essa câmera sovié-tica foi comprada pela Uni-versidade através de licitação.Foi comprada no Rio, poruma firma chamada Arteco-mércio. O pessoal da Líderdisse que a câmera era exce-lente. O Gagarin filmou a Ter-ra com uma câmera igual,uma Konvac. A turma queestava chateada porque que-ria fazer cinema de todo jeito,pensando em Hollywood, emganhar milhões de dólares,

em Oscar, nessas besteiras,aproveitou-se da época.

Qual foi o destino do Servi-ço de Cinema Universitário?

Foi extinto e jogaram todoo equipamento no porão, bo-taram todo mundo para fora.

Você era o responsável peloServiço?

Era. Fui designado pelo rei-tor Mário Moacyr Porto. Foiuma frustração terrível a ex-tinção da coisa.

Como nasceu essa ideia defazer o Serviço de Cinema Uni-versitário?

Foi o próprio reitor. ComAruanda e Cajueiro. Foi a in-sistência dele em fazer o Ser-viço de Cinema. Eu dizia que

a Universidade no meio nãodava certo. Mas ele foi insis-tente. E acabou prejudicadopor isso...

Foi cassado em 1964?Foi uma cassação branca.

Por causa desse equipamentosoviético.

Não existe nenhuma referência àsituação política do Brasil depoisde 64 na crítica de cinema. Por queisso?

Ah! Era rigorosamente cen-surado. Não se podia escrevero que se queria. De maneiranenhuma. Qualquer filme detendência política era rigoro-samente proibido. Os filmesdo Leste Europeu nem sefala... a censura controlavatudo. Dentro das redações dosjornais.

Como a passagem para a realiza-ção em 1960, modifica a sua visãode crítico em relação ao cinema bra-sileiro?

Foi a reação da crítica cario-ca em relação à Aruanda. Aprimeira exibição do filme noRio não foi comercial. Foi umaexibição no auditório do anti-go MEC, o Palácio da Cultu-ra. Fiquei chocado no

bom sentido...Tenho a im-

Quando terminou o filme,

foi uma coisa que eu até

hoje não consigo descrever.

Não em torno de aplauso,

mas em torno de uma

coisa que eles estavam

vendo pela primeira vez

LINDUARTE NORONHA PENSOU EM LEVAR AO CINEMA A OBRA NORDESTE, DE GILBERTO FREYRE (FOTO)

A UNIÃO João Pessoa, setembro de 2010 | 7

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pressão que o Aruanda, Caju-eiro, os filmes de João Ramiroe Vladimir serviram para amentalidade, pelo menos su-lista, como as obras do século16. Hoje é que eu estou no-tando isso. Foi uma verdadei-ra explosão. No Rio de Janei-ro, a alta crítica estava lá. Che-guei lá, fiquei apavorado, eunão sabia. Quando terminouo filme, foi uma coisa que euaté hoje não consigo descre-ver. Não em torno de aplau-so, mas em torno de uma coi-sa que eles estavam vendopela primeira vez, em funçãode uma antropologia, de umasociologia, de um país do qualparticipam, mas não conhe-cem. Quem me chamou aatenção para isso, anos depois,foi Antonio Houaiss, que é umgrande estudioso da nossa lín-gua. Para mim Aruanda, Ca-jueiro, Romeiros da Guia, os fil-mes de Paulo Gil, serviramcomo uma espécie de guiapara o pessoal do Sul, que nãoconhecia absolutamente nada.Aqueles pífanos tocando. Agente fala de Mário de Andra-de, Villa-Lobos. A música deVilla-Lobos é quase toda ba-seada em nosso romanceiropopular, muita coisa nordes-tina. Mas acontece que ela estánoutra conotação cultural,noutra estrutura intelectual. Ocinema, não. É a imagem.Você vê Villa-Lobos com �OhMana Deixa Eu Ir� tocada porBarbosa ou Artur MoreiraLima, mas a imagem é outra,e o impacto foi grande. Foi aíque eu parti para aquilo quea obra de Gilberto dizia. Eleabria uma nova perspectivaem torno da realidade nossa.E eu achava que só o docu-mentário poderia seguir essatrilha, pelo menos deixandode lado os que quisessem fa-zer a ficção, mas que se pro-curasse um cinema autêntico.Você vê que a turma do Riocorreu aqui para fazer o quê?

Zé Lins. Taí Menino de Enge-nho, Fogo Morto. Nelson, láno Rio, com Vidas Secas. Umavez ele me disse que o verda-deiro cinema está lá no Nor-deste. Mandacaru Vermelho jáé Nordeste. Eu achava que ocaminho era esse. Taí o livrode Paulo Emílio Salles Gomes,quando ele começa a falar daPrimeira Convenção da Críti-ca, que houve em 1960. Eledisse que Aruanda e Barraven-to, o encontro de Linduartecom Glauber não foi fortuito,talvez Aruanda seja um ma-nifesto cinematográfico e cul-tural brasileiro. Ora, isso ditopor Paulo Emílio é um negó-cio muito sério. Ele dizia, lá noRio: "Mas é danado, rapaz,esse cara faz uns negócios queninguém mais pode dizernada. Tá tudo lá". Ele era im-

pressionado com a feira deSanta Luzia. Ele dizia: "Tá tudolá, não é (Thomas) Farkas?Ninguém pode sair daquilo".Ele acha que Aruanda esque-matizou uma realidade, abriuuma perspectiva. E daí quepartindo da sua pergunta, semfazer autoelogio a um traba-lho nosso, não é isso que euquero chegar de maneira ne-nhuma... O documentário de-veria ter seguido essa trilha.Vladimir (Carvalho) tá fazen-do o quê? Vladimir é o docu-mentário na perspectiva nor-destina.

Em 1960 Aruanda provocou impac-to na "Primeira Convenção da CríticaCinematográfica", realizada em SãoPaulo. Parece que na época havia adiscussão sobre o que deveria ser ocinema brasileiro e Aruanda veio res-ponder a essa indagação. Como vocêexplica Aruanda ter surgido na Paraí-ba, um Estado sem tradição cinema-tográfica e ter tido essa repercussão?

Isso é difícil de explicar...Esse documentário nordestino- e eu quero incluir Vladimir eos outros - está dentro de umaperspectiva como a literaturanordestina: Graciliano, ZéLins. Não quero me comparara esses escritores.

Mas é dentro dessa explo

Quem me chamou a

atenção para isso foi

Antonio Houaiss: Aruanda,

Romeiros da Guia serviram

como uma espécie de guia

ao pessoal do Sul

NELSON PEREIRA, DE VIDAS SECAS (FOTO), DISSE: “VERDADEIRO CINEMA ESTÁ NO NORDESTE”

8 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

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são, dessa visão da realida-de nacional. Você vê isso emquase todos os trabalhos tea-trais, cinematográficos e lite-rários. Taí Ariano Suassuna...Um Anselmo Duarte, paulis-ta, que fazia chanchada, fazO Pagador de Promessas. Qualfoi o resultado? Palma deOuro. O filme é Nordeste. Aturma correu para cá. PauloThiago veio fazer Batalha dosGuararapes. Humberto Mau-ro me disse que o filme nãoera um épico, mas sim um fil-me hípico... só tinha cavalo(risos). Os grandes temas docinema brasileiro têm umaperspectiva nordestina. Opaulista Trigueirinho Neto foipara a Bahia fazer Bahia de To-dos os Santos.

Queria que você dimensionassea originalidade da crítica paraiba-na, se existe alguma influência doSudeste.

Parece uma arrogância di-zer isso, mas eu acho que não,porque houve uma sintoniade três Estados em relação ao

posicionamento crítico: RioGrande do Sul, Minas Geraise Paraíba. Rio Grande do Sulera (Humberto) Didonet. BeloHorizonte surgiu com a Re-vista de Cultura Cinemato-gráfica (RCC).

Antes teve a Revista de Cinema.O Elísio Valverde e outras

pessoas. A gente aqui com Fil-magem (revista editada peloCineclube de João Pessoa em1956) . Eu vejo três pólos

muito conectados, se é que sepode falar de pólos: Porto Ale-gre, Belo Horizonte e JoãoPessoa em torno do posicio-namento crítico. Aconteceque ainda nos anos 60, com oadvento dos documentários,Cinema Novo, a influênciadessa crítica era mais o cine-ma europeu. Havia umagrande preocupação com ocinema europeu.

Nouvelle Vague.Nouvelle Vague. Um filme

de Renoir que chegasse aqui,ou de qualquer diretor fran-cês que era monstro sagrado,era um programa de altas dis-cussões. Estive revendo umnúmero da RCC e eles davammuita atenção a Europa, prin-cipalmente França. E a Berg-man, que já era sagrado.

Ainda no final dos anos 50, vocêusa o termo autor, comparando ci-nema e literatura. Nos anos 60 vocêvolta a isso, quando você fala deOs Fuzis, a briga entre o produtorJarbas Barbosa e Ruy Guerra,

você afirma que no Brasil não se

�Eu vejo três pólos muito

conectados, se é que se

pode falar de pólos: Porto

Alegre, Belo Horizonte e

João Pessoa em torno do

posicionamento crítico�

NORDESTE ATRAIU “A TURMA” DE FORA, COMO ANSELMO DUARTE, QUE FAZIA CHANCHADA, E GANHOU A PALMA DE OURO PAGADOR DE PROMESSAS

A UNIÃO João Pessoa, setembro de 2010 | 9

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respeita o autor do filme. A indus-trialização estaria contra o autor?

Um filme de Bergman édele. A Nouvelle Vague. Sin-ceramente havia uma grandeinfluência da cultura france-sa. Havia essa influência cul-tural europeia, havia.

Então esse conceito de autorvem dessa vertente europeia?

Não tenha dúvida disso.

Você disse que Aruanda haviasido aceito em todo o Brasil, me-nos na Paraíba.

Eles não aceitam, não. Oneo-realismo foi aplaudido nomundo e rejeitado na Itália.

Muitas pessoas, pelo que vocêescreveu, desprezavam Aruanda,por ser um filme sobre negros.

Isso faz parte do nosso ata-vismo. O atavismo colonialno Brasil é impressionante.

Em 1968 você defende a perma-nência no Nordeste dos homensque possam contribuir para o en-gradecimento da cultura nordesti-na. Dos c ineastas paraibanos,você foi o único a permanecer naParaíba. Vladimir Carvalho e JoãoRamiro Mello se vão e você fica...

Talvez porque eu não sejaligado aos grandes centros.Eles me cansam. Não gosto dogigantismo, de coisa sufocan-te, Rio, São Paulo. Talvez te-nha sido isso. Um problemameramente pessoal. Se eu fos-se para o Rio ou São Paulo iatentar fazer filmes urbanos.Eu não queria fazer isso. Que-ria continuar a fazer aqui do-cumentário nordestino, o quenão foi possível com essa proi-bição que houve. Não gostodos grandes centros urbanos.Quando fico dois ou três diasno Rio ou São Paulo, já querovoltar. Embora isto aqui este-ja se transformando numsaco, sob todos os aspectos.Mas essa melancolia desse ar-tigo que você fala, de 1968, erauma previsão do que real-

mente ocorreu. Eu acho queo nível cultural brasileiro pre-cisa de um tempo para se re-vitalizar. O Brasil foi um paísestrangulado. O que se refle-tiu em tudo, principalmentena economia e política. E opessoal "correu para fora",como diz o matuto, eles en-contraram embaraços seriíssi-mos aqui. A morte de certaspessoas de cinema, no Sul dopaís, realizando filmes, e quemorreram precocemente, dá

margem a esse tipo de comen-tário. A morte do Glauber (Ro-cha)... Ele foi assassinado cul-turalmente. Você vê o mani-festo que saiu no Jornal doBrasil em dezembro do anopassado (1988), eu estou depleno acordo. A cultura brasi-leira foi destruída. Vladimir eManfredo Caldas assinaram.Isso vai ser difícil de refazer.O problema cultural de umpaís, o problema nacional nãose faz em seis meses. Os pre-parativos dos anos 60, não sóno cinema, mas em tudo. Jáestaria amadurecido o negó-cio. Os caras proibiram, pren-deram, botaram para fora,mataram. Criaram a grandeindústria do medo, que isso éo pior.

�Se eu fosse para o Rio ou

São Paulo ia tentar fazer

filmes urbanos. Eu não

queria fazer isso. Queria

continuar a fazer aqui

documentário nordestino, o

que não foi possível�

10 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

O BRASIL FOI UM PAÍS ESTRANGULADO E GLAUBER ROCHA UM ASSASSINADO CULTURALMENTE

*FERNANDO TREVAS FALCONE É AUTOR DA DIS-

SERTAÇÃO DE MESTRADO A CRÍTICA PARAIBANA E

O CINEMA BRASILEIRO ANOS 50-60, DEFENDIDA NA

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO.

VINÍCIUS NAVARRO É PESQUISADOR PARAIBANO,

RADICADO NOS ESTADOS UNIDOS.

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Fernando Trevas Falcone*

esde a sua estreia em setembro de 1960, nocinema Rex, Aruanda percorreu um longo evitorioso trajeto. Logo depois, ao ser exibi-do no Rio de Janeiro para uma plateia decríticos e estudiosos de cinema e em SãoPaulo durante a Primeira Convenção daCrítica Cinematográfica, o filme de Lindu-arte Noronha firmou-se já como uma obrade referência do cinema brasileiro.

No início da década de 1960, ainda emplena euforia dos anos JK, com Brasília re-cém inaugurada e o país embalado pelo rit-mo da bossa nova, Aruanda mostra uma co-munidade de negros que nas serras e valesde Santa Luzia, vive da fabricação de obje-tos de barro. É de se imaginar, além do quefoi ressaltado por críticos da estatura dePaulo Emílio Salles Gomes e Jean ClaudeBernardet, o impacto daquelas imagens,projetadas em ambientes sofisticados doRio de Janeiro e São Paulo, para um seletogrupo de intelectuais.

Passados cinquenta anos, o que mais noschama atenção, entre as numerosas virtu-des da obra prima de Linduarte, é o rompi-mento dos conceitos de ficção e documentá-rio, numa antecipação de questionamentoscaros aos estudos da representação da rea-lidade no cinema.

O espectador atento notará que a cami-nhada da família de Zé Bento pelos camposáridos do Sertão paraibano é um exercíciode ficção. Os personagens fazem o trajetoem função de uma demanda do filme. Afi-nal, estão no século 19, são escravos libertos.O filme começa nos contando uma história,que para muitos se passa em 1960.

Uma imperceptível passagem de temponos leva ao ano de 1960. Mas pouco mudana vida dos personagens. Agora, elas - sim,agora quem está em cenas são as mulheres -trabalham na fabricação de utensílios debarro, matéria prima abundante na região.

Agora o espetáculo cinematográfico se dá emfunção do cotidiano da comunidade, e não dademanda do filme.

Os habitantes do Talhado estão em pleno sé-culo 20, mas a vida pouco difere da ficcionaliza-ção apresentada no início de Aruanda. Mais queeventuais denúncias de atraso e pobreza, pre-sentes aliás na narração feita pelo próprio Lin-duarte, a estrutura narrativa do filme, em quepassado e presente se misturam ante o especta-dor sem uma linha divisória, demonstra o esta-do de coisas daquela população: em pleno 1960,em um país que vivia uma euforia desenvolvi-mentista, simbolizadas pela inauguração de Bra-sília e implantação da indústria automobilísti-ca, os homens e mulheres de Talhado viviammais próximos do século 19 que do século 20.

Cinquentário, o projeto de Aruanda nasceumoderno não apenas por sua estrutura narra-tiva, mas pela escolha do seu tema. Em umasociedade marcada por profundos preconcei-tos, e que tem uma dívida social enorme a sal-dar - cuja origem está, entre outros fatores, noprocesso de libertação dos escravos, transfor-mados em cidadãos entregues à própria sorte -colocar em cena negros e negras lutando pelasobrevivência constituiu-se quase que em umaprovocação para setores da nossa elite, que tei-mam em negar a complexidade cultural e étni-ca do Brasil.

Aruanda,

D

um filmemoderno

I

O QUE MAIS CHAMA ATENÇÃO NO CURTA É O ROMPIMENTODOS CONCEITOS DE FICÇÃO E DOCUMENTÁRIO

A UNIÃO João Pessoa, setembro de 2010 | 11

*PROFESSOR UNIVERSITÁRIO E PESQUISADOR DO

CINEMA PARAIBANO

Page 11: Correio Das Artes - Setembro 2010

12 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

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Manfredo Caldas*

ano era 1962. Cine Clube LinduarteNoronha. Serviço do CinemaEducativo da Secretaria de Educação eCultura do Estado. João Córdula era ocoordenador. Aí assisti Aruanda pelaprimeira vez e naquele exato momentotive a nítida impressão de que existiaum tipo de cinema possível de ser feito.Até então estávamos acostumados aver só o que era oferecido pelo circuito

exibidor local, filmes estrangeiros e em suamaioria norte-americanos, distantes denosso cotidiano. Mas o que mais meimpressionou em Aruanda , filmefundador do moderno documentáriobrasileiro, foi a força de suas imagensnuma fotografia com a lente nua e semfiltros deformadores como diria o NelsonPereira dos Santos, obtendo o máximo dedramaticidade da luz do Sertão

A permanência de MANFREDO CALDAS (E) AO LADO DE NELSON PEREIRA DOS SANTOS (C) E LINDUARTE NORONHA DURANTE AS FILMAGENS DE CINEASTA DA TERRA

Aruanda

6de

poim

ento

O

Page 12: Correio Das Artes - Setembro 2010

e lembrando a tonalidadeautocontraste das xilogravurasnordestinas.

A revolução de Aruanda nodocumentário paraibano ebrasileiro estava estabelecida.

Foi a partir de Aruanda que atemática da relação do homem ea terra passou a estar presenteem meus estudos e preocupaçõesa inda como c inec lub i s ta ej á p a r t i n d o p a r a a l g u m a sexperimentações no campoda real ização.

Com o advento do AI-5 em1968, a debandada foi geral. Enuma ruptura drástica, termineiprecocemente migrando para oRio de Janeiro. Foi aí que, atentoà transposição de traços culturaisnordestinos para os grandescentros do país, iniciei umatrajetória de realizações dedocumentários tendo a migraçãointerna como tema central.

Em 1974, realizei Feira, talvezo p r i m e i r o d o c u m e n t á r i osobre uma feira tipicamentenordestina no bairro carioca deSão Cristovão. Em Boi de Reis(1977), revelei uma família deparaibanos que vive em Caxias,zona norte do Rio, e que mantémo folguedo numa tentativa,consciente ou inconsciente deresistência cultural.

O meu mais recente filme,Romance do Vaqueiro Voador, falasobre a mitologia em tornodos operários - candangos -imigrantes, nordestinos emsua maioria paraibanos, quetrabalharam na epopeia daconstrução da nova capitaldo país.

E m 1 9 8 8 c o n c l u i d od o c u m e n t á r i o d e l ongametragem Uma Questão de Terra.Neste f i lme é apresentadod e m a n e i r a c ontundente oproblema fundiário no Nordestedo país - mais especificamente noEstado da Paraíba - onde nãofaltam as cores mais fortes deexasperante violência tingindode tragédia a história da região.

No Brasil de 1983, período pósanistia, reforçando os meus laçoscom Aruanda, realizo o média-metragem Cinema Paraibano -Vinte Anos. Em verdade, minha

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*CINEASTA PARAIBANO RADICADO EM BRASÍ-

LIA, DIRETOR DE NEGROS DE CEDRO (1998)

I

intenção primeira era refletirsobre curso do documentáriobrasileiro a partir de Aruanda. Pormotivos óbvios de falta decondições objetivas, concentreimeu foco nos momentos maisexpressivos do c iclo dodocumentário paraibano natentativa de rediscutir aimportância deste ciclo e situá-lona história do cinema brasileiro,tendo as imagens de Aruanda

como tema central e recorrenteem sua narrativa.

Mais recetemente, concretizeiuma homenagem explícita aoMestre Linduarte Noronharealizando para a série RetratosBrasileiros do Canal Brasil, comroteiro em parceiria com João deLima e fotografia de João CarlosBeltrão, Cineasta da Terra. Este filmeaborda o universo pessoal ecriador de um precursor dom o v i m e n t o c i n e m a n o v i s t an o p a í s , d e s d e a s s uasfotorreportagens de origemdo filme Aruanda ao pensamentoecológico calcado no humanismoe nas questões do ambiente docinema, confirmando emdefinitivo, a atualização epermanência de Aruanda nopanorama da cinematografiabrasileira.

A partir de Aruanda

que a temática da relação

do homem e a terra passou

a estar presente em meus

estudos ainda como

cineclubista e já partindo

para experimentações

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Moema Selma D´Andrea*

s contos de R o n a l d o C o r r e i a d eBri to , intitulados pura e secamentede Faca, produzem, em nós leitores,o estranhamento da escassa informaçãodo conteúdo a que o título remete, emboralogo fiquemos sabendo que se trata dadesignação de um de seus contos e daimportância da palavra no entrecho danarrativa. Uma grande parte dos contos doescritor cearense elege a figura femininacomo tema ou como protagonista, incluindoaí os títulos de alguns deles: �Lua Cambará�,�Cícera Candóia�, �Inácia Leandro�,�Aldenora Novais�, incluindo também aprotagonista do conto �Faca�, Francisca,que, como uma personagem da dramaturgiagrega, impede a morte do pai - assassino desua mãe - enfrentando a ira da famíliamaterna.

A técnica com que os contos são narrados,envolvendo o mítico sertão-mundo,trazendo a lembrança dos narradoresanônimos, traz também a linguagemadusta, concisa e realista que permeia o chãohistórico das paragens nordestinas, afeitasao convívio da morte como ciclo de retornoe "destino". Ao mesmo tempo, esse realismoé temperado pelas soluções fantasmagóricasque incrementam o imaginário popular, ouainda pela desforra silenciosa que ilude o"destino" traçado. O drama contido nasnarrativas, guardando um parentesco coma tragédia antiga, possibilita o lado poéticoe surreal de alguns entrechos. Nos contos, otempo adquire status de protagonista aolado das personagens, influindo naexpectativa mítica de seus destinos, numaespécie de "círculo sem saída" em que aruptura, quando se dá, é sempre trágica.Desta forma é concebido o clímax daspersonagens-título dos contos quesubvertem a ordem pré-estabelecida nomando dos homens.

Um de seus contos mais famosos é Lua

Cambará; foi filmado, precariamente, em super-8 e mereceu de Davi Arrigucci esse breve ensaio:"que não teve resposta. Passaram-se vinte anos,e só então me chegou uma carta - meia páginade uma prosa sibilina, junto com um magrolivrinho de contos: davam-me, como se fosseontem, um retorno sobre o que eu escrevera,revelando, por outro lado, o que estava escrito,aliás bem escrito, sob as imagens filmadas.Agora "Lua Cambará" é que retorna em suaforma inicial de novela, reelaborada decertomuitas vezes ao longo desses anos, como oscontos que a acompanham neste volume,voltados, também eles, sobretudo para o dramafamiliar sertanejo na mesma região cearensede Inhamuns, onde se formou o ficcionista. [...]Aqui o fantástico se expande pelo sopro doimaginário, cuja força poética transfigura o corteseco da observação realista com que ele alternae com que se talha, na novela e nos contos, oinstante do ato que define o drama humano�.

A tendência de se enquadrar o lócus(regionalista ou urbano) onde a ficção é narrada,restringe, sem dúvida, a apreciação de umaleitura que se expande para o drama universaldos predicados humanos. Assim é que o próprioRonaldo, em entrevista publicada no Cronópios:Literatura & Arte no Plural, rebate o rótulo:"Desde que Gilberto Freyre estabeleceu oscânones do Movimento Regionalista, e surgiu oRomance de 30, que tentam enquadrar a nossaprodução nessa cartilha, esquecendo que já sepassaram 70 anos, e que todo escritor escreve naperspectiva de seu tempo. Essa cartilha nosprestou um grande desserviço, Regionalismovirou palavrão. Chamar um autor deregionalista é uma maneira de diminuir o valorde seu trabalho, reduzi-lo a

Faca amolada:

O

o universo poético-trágiconos contos de RonaldoCorreia de Brito

Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecemde fechos. [...] O sertão está em toda a parte. (Guimarães Rosa)

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ensa

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estereótipos, enquadrá-lo emchavões, tratá-lo com preconceito edeboche. [...] O sertão de quetrato não existe, é pura memóriainventada. Escrevo sobre um sertãoinvadido pelas cidades. E sobrecidades arruinadas pela rupturacom o sertão. Meus personagens,apesar da paisagem desértica, sãoneuroticamente urbanos. O que éo sertão, você sabe? Eu juro quenão sei. No entanto, ele existe. E eunada mais faço do que procurá-lo�.

Um dos contos do livro Faca, CíceraCandóia, poderia ter como subtítulo"Tempo de Ira". Foi com este título queMarcélia Cartaxo, em parceria comGisella de Mello, produziu, dirigiu eprotagonizou um curta-metragemque foi o vencedor do 7º Festival deCinema, Vídeo e Dcine (cinemadigital) de Curitiba, em 2003.

O drama que estrutura a narrativase alicerça em dois suportes: o silêncioentre as duas personagens e o tempode espera, além da recorrência damorte, cúmplice dos conflitos. Aposição do narrador funciona maiscomo um camera-eye, que flagra odesenrolar dos fatos, mas não semanifesta. Aliás, essa é a técnica coma qual Ronaldo maneja suasnarrativas. Em outro depoimento oautor admite a influência do cinemano seu ritmo criativo: "É possível queeu tenha visto mais cinema do quelido. Daí uma memória visualmanifesta durante a escrita. Prefirodar ao fraseado dos textos um ritmocinematográfico. Este sintoma vem seacentuado cada vez mais, nos contosrecentes. "

Um breve resumo determina ocontexto do conto: a cidade deParambu, sofrida, decadente,inabitável economicamente, abrigamãe e filha, as quase últimashabitantes do lugar, e a leva demoradores que migram emcaminhões em busca desobrevivência. É a "cidade arruinadapela ruptura com o sertão", no mundoglobalizado. O conto se desenrolanos últimos três dias das fugasurgentes e da espera de CíceraCandóia pelo temido desenlace.

Habitavam miseravelmente numcasebre e num pedaço de terra, cujoúnico sustento era o leite das poucascabras que "Ciça" cuidava e uns restosde "farinha mofada", junto com ofarelo de milho para a alimentaçãodas duas. Uma família marcada pelatragédia: o filho mais velho mata opai pela partilha de umas cabras. Àfuga do parricida, seguiu-se adebandada dos outros irmãos.

E Cícera ficou sozinha com a mãe,cuja dor tirou-lhe o tino de viver.Tempo de ira e de silêncio. "Entre mãe

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e filha agravava-se um silêncio quesempre fora intenso" (Faca, p. 114). Amãe, entrevada de reumatismo,deixava o tempo escorrer a balançarnuma rede: "Ciça lembrava-se de tudo.De um tempo de paisagem verde emque ainda era possível rir. Quando opai e os sete irmãos homens moravamali, e a casa guardava ruídos de alegria.Um tempo longe, ela ainda menina,tão longe que o rosto do pai apareciaem contornos imprecisos. E a vida dedepois, a dela solitária e com um crimepor compreender. O desprezo daspessoas do lugar, para ela e a mãesuportarem. E a grande sentença dosilêncio entre as duas, que nunca maisse olharam." (Faca, p. 114-115 - grifosmeus)

Outro personagem a interagircom Cícera, aliás o único, é SebastiãoQinzim, que, nas entrelinhas, pareceter um envolvimento amoroso com apersonagem feminina. Entre eles háum diálogo em que Qinzim tentaconvencê-la a migrar também, já quese aproxima o último dia de saída docaminhão. Cícera resiste: não deixa amãe sozinha. A velha mãe, então, é oempecilho à sobrevivência dapersonagem: "Para Ciça, a condenaçãojá existia no fato de ser mulher, emnão poder partir, como os irmãoshomens fizeram. Sem que escolhesse,assumia a custódia da mãe e suaeterna companhia. [...] A cantilena davelha arrancou-a do devaneio. - Notempo da ira fazia poeira...- Pare comesse agouro - gritou Ciça. (Faca, p. 117)

Crime, lembrança, condenação,solidão, silêncio. Este parece ser odestino do drama que entrelaça aspersonagens. A velha, embora senil,tem na pouca memória a chave doconflito. Num lampejo de consciênciaentrega para a filha, na forma darecordação, o mote do desenlace:"Sentia que a filha estava muitonervosa, mais do que de costume.Sabia que as pessoas da vila iamembora. A intuição lhe dizia já que afilha pouco falava. - Verdade que todomundo vai embora? - É. [...] - E tu, nãovais embora também? - Não. [...] E,

naquela tarde, quando Ciça estendeupara a mãe o prato de xerém de milhoque seria o seu jantar, havia nela umrancor mais forte, que a velha, apesardo torpor, percebeu. A mãe mastigoua comida devagar, suspirando entreum bocado e outro. Depois, levantoua cabeça e olhou a filha, longamente,como há anos não fazia e de umaforma que esquecera. Durante otempo em que viveram juntas, depoisda desgraça, tinham aprendido a nãose perguntarem nada. O silêncio assustinha. [...] - Me diga de uma vez, tuestás querendo ir embora? Ciça soltou-se da mãe. Antes de entrar para acozinha respondeu: - Eu não viajo commãe porque mãe não agüenta aviagem. E também não deixo mãesozinha aqui, enquanto mãe tivervida". (Faca, p. 121). Rompendo o longosilêncio que as unia, a mãe desanda afalar: "E cada palavra saía carregadade intenção. Tecendo um destino porcumprir. - Eu sempre desejei serenterrada debaixo do pé-de-pau-branco, atrás da casa. - a velha disse esorriu, admirando-se do riso." (Faca,p. 121) A relembrança abre-se como"um destino por cumprir". Amemória é agora um espelho dafiguração alegórica, narrada paraconsumação do desfecho. O tempo,como elemento estruturante danarrativa, se fazia urgente, e alembrança da velha mãe obedece aesse imperativo. Conta, de maneiradescuidada, um fato do passado quelhe vem nítido à memória e carregadode desígnio. Anos atrás, com o maridovivo e em plena atividade de plantio,empregou uns homens para"brocarem um roçado". A mulher,encarregada da comida, foi levar-lhes"o feijão com toucinho, tudo muitogostoso.". Como resultado doalmoço, todos passaram mal ,quase envenenados, se não fora oprovidencial leite que beberam.Continuando a narrar, ela puxa pelofio do mistério: "- Sabe o queaconteceu? Eu guardava um venenode matar formiga, dos bem fortes,socado nuns caibros do telhado, justoem cima do fogão. O papagaio de casa,andado pelos caibros, mexeu noembrulho de papel e uma parte doveneno derramou-se na panela defeijão. - Eu tive mais cuidado. Peguei oveneno, enfiei dentro de umacumbuca e meti naquele caixão quefica perto do fogão. E se ninguémmexeu ainda deve estar por lá, porqueeu nunca mais quis saber de matarformiga. (Faca, p. 122-123)

Ciça, calada, ouvia a conversa damãe. A noite foi se alongando, o tempofugindo, em busca da madrugada."Depois só silêncio. Não tinha comonão pensar nesse silêncio. E no

�O sertão de que trato não

existe. Escrevo sobre um

sertão invadido pelas

cidades. E sobre cidades

arruinadas pela ruptura

com o sertão�

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claro do dia que já estavachegando. A lembrança de umpequeno pacote, onde a morte seescondia, despertava os maisesquecidos desejos. [...] Foi até acozinha, onde se demorou, Voltoutrazendo um copo de leite. Chamou amãe e lhe entregou. -Toma. -Eu estavaesperando, a velha disse. (Faca, p. 122-123 - grifos meus)

Aquela aceitação tácita sela odestino das duas. A trágica sentençaque a mãe se dá é a dádiva de umanova maternidade e é a catarse dosilêncio e solidão daquelas vidas. Ciçaaceita o destino e cumpre o desejomaterno, liberta agora para a vida:"Precisava satisfazer os desejos damãe. Havia uma árvore de caulebranco, atrás da casa, que guardava,nas raízes uma fresca umidade. A mãesempre desejara o seu aconchego,uma paz de terra molhada, quenunca tivera em vida. (Faca, p. 124)

São duas mulheres que o destinocoloca em desencontro, cozido nosilêncio e na solidão. Como umaMedeia às avessas, a mãe resgata omito da esposa de Jasão, que passa àlenda pelas mãos dos trágicos gregos,como matricida. É ela a verdadeiraheroína do conto, sobrepondo seusacrifício ao presumido sacrifícioque a filha faria por ela. Repousa,enfim, "no aconchego" de "uma pazmolhada, que nunca tivera emvida.", anulando, para sempre, "Otempo da ira".

Os contos de Ronaldo Correia deBrito nos surpreendem também peloinsólito que rege o destino daspersonagens, pela composiçãointerpolada de fragmentaçõespermeada pelo tempo de espera e pelocírculo vicioso do "destino". Assim, noconto �Faca�, a protagonistaFrancisca toma a defesa do pai,assassino da mulher com quem secasara, livrando-o da morte e dosjusticeiros tios maternos. Toma-lhesa faca de prata com cabo de ouro,ainda suja do sangue da mãe. Osímbolo fatídico é arremessado porFrancisca e torna-se um íconeintangível, incorpóreo, até o tempo deespera de cem anos, quando é achadapor um bando de ciganos quepernoita na fazenda abandonada.

O tempo deslocado de um século,desde a tragédia, é o tempo de esperapara que a faca assuma seu destinofantasmático, destino que perpassa oconto durante o longo período: "Umvaqueiro que vinha do curral viu umaave prateada, reluzindo e voando noespaço. Durante anos que correrampela frente, as pessoas procuraram afaca." (Faca, p. 26)

Domísio Justino ceifa a vida damulher por amor de outra,

arrumando o álibi da infidelidadeconjugal da companheira. O atocriminoso torna-o um desertor parase livrar da justiça dos cunhadosPedro e Luiz Miranda. O texto silenciasobre a fuga do homiziado, escondidonum quarto escuro, na casa do irmãoAnacleto. Seu passado ressurge já emoutra trama do conto "O que veio delonge", no Livro dos homens umatécnica intertextual que percorrecomo um leitmotiv a narrativa deRonaldo de Brito; personagens queparecem esquivar-se do destinoimposto ou ainda prolongar o tempode espera. "Desceu a primeiraenchente do Rio Jaguaribe, quandotodos pensavam que o ano seria deestio. No meio das águas barrentas, ocorpo de um homem. Foi descobertode manhã, preso aos destroços dasmargens. Vestia jaqueta de veludo,camisa fina com abotoadores de prata,botinas de couro curtido. Um anelcom arabescos de ramos e floresentrelaçadas, enriquecia o dedoanular direito" (Livro dos homens, p. 7)

A descrição objetiva dosa c o n t e c i m e n t o s , em estilocinematográfico com o narradorconscientemente distanciadodos fatos, inicia o conto e suasconseqüências. A comunidade depastores e vaqueiros enterrou o mortoonde ele "aportou", " debaixo de umaoiticica". Pouso obrigatório de todosos viajantes. Seu tronco guardava osdesenhos dos ferros de ferrar gado dosque ali passavam. Por isso, apelidadade "Pau dos Ferros. Ele entrou em suasvidas, ficou morando ali, ganhou onome do santo do dia em queapareceu. E o sobrenome daárvore que abrigou suas carnes.Sebastião dos Ferros. Gravadotoscamente numa cruz...". (Livro doshomens, p. 7-8-9)

A imaginação da comunidade de

Monte Alverne sugeria váriasidentidades para o morto, todaspositivas e à espera de algumacontecimento mágico que validassea crença na sobrenaturalidade doestranho. E o maravilhoso aconteceucom uma moradora mordida poruma cascavel e milagrosamentecurada ao tomar a água da cacimbaao pé da oiticica. "São Sebastião dosFerros mandou um sinal para nós.Construíram para o santo uma vidacheia de juventude, atos generosos efeitos heroicos. Tudo o que faltava nassuas existências comuns. Morreu nasmargens do Jaguaribe, muitas léguasacima, comandando um exército devalentes. Possuía a aura dos santos eencantou-se como o rei Sebastião."(Livro dos homens, p. 10-11-12)

Essa vida tecida de mitosretoma o passado na pessoa dePedro Miranda, ele também umpredestinado viajante pernoitandoem Monte Alverne. O cunhado deDomísio Justino ouviu o relato e nãoteve mais dúvidas: o santo dacomunidade era o assassino de suairmã, também justiçado por ele, PedroMiranda. Desvendou para osouvintes a h i s tór ia passada,ignorando os sinais de rejeiçãosilenciosa do grupo de fiéis. "Pediupara ver os objetos, o anel comdesenhos de ramagens. - Estavambem guardados. Mostrariam nodia seguinte à luz do sol" (Livro doshomens, p. 14)

A sina de Pedro Miranda estavacolada a de seu cunhado. Assassinosambos, o primeiro por insídia e osegundo por vindita, peregrinosviajantes, parceiros permanentes novai-vem do Rio Jaguaribe. "Choveu anoite inteira e o Jaguaribe botouenchente. Pareceu o dia em queencontraram o corpo do santo. Águasbarrentas e profundas. Na medidacerta para arrastar outro corpo." (Livrodos homens, p. 14)

Domísio Justino reaparece aindacomo fantasmagórico personagem deuma longa, mestiça e conturbadaascendência sertaneja de Inhamuns;personas ambiguamente divididasentre o sertão e o apelo urbano nafiguração de Adonias, a voznarrativa, que narra a fábula dafamília Rego Castro, sua ascendência.

Mas isto é outra fabulação em Galileia,romance que lhe concedeu o prêmio SãoPaulo de Literatura em 2009.

Os contos de Ronaldo

Correia de Brito nos

surpreendem também pelo

insólito que rege o destino

das personagens, pela

composição interpolada

de fragmentações

*MESTRE E DOUTORA EM TEORIA DA LITERATU-

RA, PELA UNICAMP. É AUTORA DO LIVRO A TRA-

DIÇÃO RE(DES)COBERTA: GILBERTO FREYRE E A

LITERATURA REGIONALISTA

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16 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

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Ronaldo Cagiano*

editora paulista LetraSelvagem, poriniciativa de seu editor, Nicodemos Sena,relançou recentemente, com apresentaçõescríticas de Nelly Noaves Coelho e RaquelNaveira, na Casa das Rosas, em SãoPaulo, o romance Deus de Caim, domatogrossense Ricardo GuilhermeDicke, obra que foi um dos vencedores doprestigiado Prêmio Walmap (1967).Referendado por Jorge Amado, GuimarãesRosa e Antonio Olinto, integrantes dojúri, que o consideraram uma revelaçãoe um marco na literatura brasileira, oromance vem sendo objeto deredescoberta pelos ensaístas, críticose estudantes, que atestam não só amonumentalidade do texto e a

imporância da bibliografia do escritor,como repudiam a imperdoável negligênciae o injusto esquecimento a que foramrelegados.

Deus de Caim surgiu num momento detransição: na política, nas artes, na moral e noscostumes, com reflexos na própria linguagem(musical, teatral e literária). Vivíamos umaépoca de rápido escalonamento de valores,em direção a uma suposta modernidade emtodos os sentidos.

A ficção ainda vinha de um experiênciaestética bastante canônica, ainda muito fortesos ecos do modernismo na poesia. A prosacaminhava para descolar-se dos modelosmachadianos ou do realismo-naturalismo,quando primeiro surgiu um tufão

A ressurreição de

A

um grande escritor

RICARDO GUILHERME DICKE, AUTOR DO ROMANCE DEUS DE CAIM, É UM ESCRITOR DE DIMENSÃO ONÍRICA E SUPERIOR, CRIADOR DE UNIVERSOS

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na narrativa contemporânea,impulsionado por Grande sertão:veredas. Uma década depois, Deus deCaim emerge como um outrofuracão estético.

Em Pasmoso, cidade criada peloautor, com sua habilidosa capacidadede recuperar a mitologia popular ouo inconsciente coletivo - como ofizeram com Macondo, Komala eYoknapatawpha, García-Márquez,Rulfo e Faulkner, ao espelharem asexperiências de um mundo arcaicoe burguês - Dicke deu ressonância aum conflito ancestral, repercutindona vida de pobres almas do centrooeste brasileiro. Os dramas,picuinhas e disputas dafamília Amarante constituem oepicentro do romance, panode fundo de um permanentedesassossego, culminando noamor entre Lázaro e Minira,interditado pelo seu irmãoJônatas, por meio de sedução etentativa de estupro. A tensão quevai perpassar todo o livro, comseus ritmos e rupturas verbais, vaiimpactar e comover o leitor.

A partir do enfrentamento entreirmãos é que se instaura umaprofunda discussão sobre ohomem, sobre o amor, sobre atraição, sobre o poder, sobreinteresses escusos e difusos, comoo desejo de apropriação do outro(que na verdade soa como umametáfora da apropriação injustada terra, num momento em que otema da reforma agrária e daquebra de paradigmas moraiseram um tabu).

Muitos acontecimentos seintercalam, ou se interpenetram,nesse romance, como alegoria oucomo recurso da intertextualidade,como no caso dos embates filosóficostravados entre os personagensGrego e Cirillo Serra sobre o mundo,a verdade, a religião e a cultura,assim como Isidoro, ao discorrersobre música e poesia.

Essa faceta do romancetambém exterioriza o diálogoque Dicke estabelece comoutros gêneros e reflete a suapreocupação existencial e suarelação muito íntima com aFilosofia, as artes e o pensamentoculto, uma vez que ele foi filósofo,professor, tradutor e pintor, e é

t a m b é m c o m o p i n t o r , q u er e v e r b e r a m s u a v i s ã oimpressionista desse mundointeriorano, atrasado, resistenteàs mudanças, característica de umpaís até então confinado a umacultura e a uma economia agráriae estigmatizada por totens, tabuse mitos que sustentam a vida e amemória do homem comum e dohomem que controla política,ideológica e religiosamente a vidadas pessoas, como os velhoscoronéis do passado.

Deus de Caim, ao fazer umareleitura do mito bíblico, naverdade está fazendo umaincursão na atualidade, porque omundo não mudou, apesar datecnologia, do avanço dascomunicações e das ciências, dodesenvolvimento material eeconômico das pessoas e dasnações. Os mesmos conflitos,dramas; as mesmas questões,dissensões; as mesmas controvérsiase polêmicas - estão aí - ambição,incesto, mentira, roubo, morte,usurpação, esbulho da terra -estão aí, desde a fundação domundo, desde que Adão eE v a , e x p e r i m e n t a r a m d of r u t o proibido, e levantaramguarda para viver o própriocaminho, atraindo o que na lógicacristã seria chamado de maldição.De Adão e Eva, passando por Abele Caim, até hoje, o entrave humanoé a luta pelo poder e contra a morte.

Seja o poder do que quer roubar oamor de outro; seja o poderarbitrário dos que detêm o controlepolítico e financeiro de um país. Ou,ainda, o poder de decidir, obrigare impor sanções, sem defesa (comoos ditadores); e o poder intrínseco,que é o desejo de ambicionar opoder maior, e demiúrgico, de ummestre (que pode ser Deus ou oDiabo) e que, na verdade, deságuanuma única e instintivanecessidade: a de perpetrar-se. Epara isso, vencer o tempo,despistar a morte e, se possível,vencê-la, a qualquer preço.

Com Deus de Caim, Dicke cutucaas feridas da humanidade, queestão abertas até hoje, desde afundação do mundo. E seuprocesso criativo contempla ocaos, e esse caos se reflete não só ashistórias repletas de cizânia eperigo, mas prioritariamente seexplicita numa linguagemvigorosa, densa, que não deixa oleitor sair indiferente ou ileso, poisnada atenua, senão expõe aviolência que atravessa os séculos,sem estereótipos e sem meiaspalavras, revelação e reflexo daprópria desordem mental eintelectual do homem.

O elo entre o passado genéticoda humanidade e a modernidadetumultuada em que vivemos -homens, governo e mundo -mereceu em Dicke uma releiturasurreal, não como fantasia pura esimples criação de uma historietade sertão, mas como recurso paraentender-se a loucura individuale coletiva e, acima de tudo, mostrarque o real supera a si mesmo, quesão necessárias as tintas da ficçãopelo viés do absurdo para poderentender esse intricado e violentosistema que é a vida, aquela que,segundo Guimarães Rosa, éperigoso viver.

Como afirmou Marçal Aquino, bonsautores contam boas histórias; osgênios criam universos. Dicke é autordessa dimensão onírica e superior, quedeixou à literatura mundial um grandelegado, que em boa hora se resgata,homenageia e valoriza.

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(*) POETA E FICCIONISTA MINEIRO, AUTOR DE

DICIONÁRIO DE PEQUENAS SOLIDÕES (CONTOS)

RELANÇADO, ROMANCE FOI REFERENDADOPOR JORGE AMADO E GUIMARÃES ROSA

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Tiago Germano*

s grandes roteiros do cinema estão sendoescritos hoje na televisão", provocou(pasmem) um amigo que dedicou boaparte de sua carreira acadêmica a estudoscomparativos entre a literatura e a sétimaarte. Você, que abriu seu suplementonuma manhã de domingo, e neste dia, comoem nenhum outro, lembra-se daquelavelha frase de Groucho Marx (" a televisãoé muito educativa: cada vez que alguémliga o aparelho, saio da sala e vou ler umlivro"), certamente irá discordar. Porqueeu também discordei - eu que, apesar deatento às exceções que fazem do nossohorário nobre algo digno do adjetivo,

sempre encarei as telonas como um suporteaumentativo também para as boas ideias.

Aos poucos, porém, venho reconhecendoque a teledramaturgia atual tem tido seusmomentos de brilho em meio à poeira deixadapor muitas produções cinematográficas,incorporando do cinema sua linguagem,técnica e, por que não, sua força de trabalho.Diretores, roteiristas, produtores e atores queviram sua carreira projetada através de rolosde película (caso, aqui, de Luiz FernandoCarvalho, e, lá fora, de nomes como StevenSpielberg, Tom Hanks, Diablo Cody, QuentinTarantino...), têm surgido nos créditos depeças televisivas e proporcionado um

Dexter, RaskólnikovO Crime é o Castigo

MICHAEL C. HALL, ASTRO DO SERIADO DEXTER, INTERPRETA ASSASSINO FRIO QUE TRANSFORMA O ATO DE MATAR EM ALGO ÚTIL PARA A SOCIEDADE

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salto qualitativo em produçõesseriadas que nos chegam, muitasvezes, através de uma mídiaresponsável pela formação de pelomenos 40% dos espectadores docinema que hoje conhecemos: o DVD.

À cata dos tais "grandesroteiros" da televisão, estocadosem boxes de DVD´s nas prateleirasdas lojas, cheguei a Dexter,telessérie produzida pelo canalnorte-americano Showtime etransmitida nacionalmente pelaFX Brasil. A série está atualmenteem sua quinta temporada, e desde2006 vem tornando a sequência delivros do autor Jeff Lindsay (queemprestou à história do seu serial-killer aos estúdios televisivos) umafranquia rentável e contínua: jáforam publicados cinco volumessobre o personagem, três deles noBrasil, pela editora Planeta.

O flerte da série com a literatura,de cujas páginas herda seusprincipais arcos narrativos egrande parte da psicologiaembutida em seus personagens,é um dos trunfos de um enredoconduzido pelo anti -heróihomônimo, encarnação modernade um Raskólnikov, que como o seuantecedente russo "chegou ao crimecomo se não houvesse caminhadocom as próprias pernas". Dexter éum jovem perito da polícia,especialista em hematologiaforense. Adotado na infância porum tira, não tardou a seguir acarreira do pai adotivo, cuja figurade mentor lhe acompanha mesmoapós a sua morte. Harry, este tirade retidão insuspeita, ensinou aDexter tudo o que ele sabe: inclusivecomo tornar sua natureza (a de umassassino frio e contumaz) algo útile conveniente para a sociedade.

Tal qual Raskólnikov, queescolta sua conduta na filosofia dehomens "extraordinários" comoNapoleão (padrinho ideológicotambém de outro anti-heróifamoso da literatura: Julien Sorel),Dexter segue a risca o CódigoHarry, a tábua sagrada onde seuprovedor deixou inscrito seulegado doutrinário: apenas matara também assassinos, apenasmatar quando comprovada aculpa, e nunca, em hipótesealguma, ser pego. E é neste ponto

que nos afastamos um pouco deDostoiévski: na medida em queDexter é "a mão esquerda de Deus",a mão antípoda da que castiga, elaestá livre para cometer um crimesem que a outra pese sobre si.

Diferente do assassino dePetersburgo, este querido edevotado cidadão de Miami nãosofre tormentos de consciência.Sua principal preocupação édriblar seu senso de inadequaçãoe sua profunda inaptidão em fingirser humano. "Posso matar umhomem, desmembrar seu corpo echegar em casa a tempo para ver oLetterman, mas não sei dizerquando minha namorada está sesentindo insegura", diz ele, comseu humor de açougueiro, numdos episódios da primeiratemporada. Observador atento àsminúcias do comportamentoalheio, que tenta emular comum desempenho canhestro, o

personagem rende ao roteiroboutades como esta: "Quer ter umvislumbre da natureza humana?Atrapalhe uma fila". Ou: "Adoro oDia das Bruxas. A única época doano em que todos usam máscaras,e não apenas eu".

Tornando à premissa que deuorigem a este texto, os grandesroteiros do cinema talvez estejammesmo sendo escritos hoje natelevisão. E não duvidem: talvezgrandes livros também estejamsendo escritos por lá. Se há algummérito literário em Dexter(entusiasta ou não, eu já consideroa simples remissão a Dostoiévskium mérito), este advém da obratelevisiva, e não da original. Esta,infelizmente, não resiste a umaleitura motivada por outro critérioque não o da gênese de suaadaptação. Jeff Lindsay, comocriador, só se aproxima da grandeliteratura por uma criatura queganhou vida fora dos seusdomínios. E talvez pela informação(inútil, mas curiosa) de que é casadocom uma sobrinha de ErnestHemingway. Um dos raros casosem que a televisão é bastanteeducativa por nos obrigar a fecharum livro para assisti-la.

20 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

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Tornando à premissa

que deu origem a este

texto, os grandes roteiros

do cinema talvez estejam

mesmo sendo escritos

hoje na televisão

*JORNALISTA E EDITOR DA REVISTA CENÁRIO

CULTURAL

ESCRITOR JEFF LINDSAY: EMPRESTOU A ESTÓRIA DO SEU SERIAL-KILLER AOS ESTÚDIOS DE TV

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Page 20: Correio Das Artes - Setembro 2010

TRADUÇÃO/ POESIA

Azul, azul é a grama à margem do rioE os salgueiros alagaram ao longo do jardim;E por lá, a dama, nas flamas de sua juventude,Branca, branca face, vacila, passando a porta.Delicada, ela expõe os delicados dedos;

E ela foi cortesã em outras datas,E ela se casara com um pau d'agua,Que ora embriagado vai à troçaE a deixa ademais sozinha.

(Atribuído a Mei Shêng, 140 a.C.)

(Tradução de Daniel Sampaio de Azevedo)

A BELA TOILET

A UNIÃO João Pessoa, setembro de 2010 | 21

The beautiful toilet

Blue, blue is the grass about the riverAnd the willows have overfilled the close garden.And within, the mistress, in the midmost of heryouth,White, white of face, hesitates, passing the door.Slender, she puts forth a slender hand;

And she was a courtezan in the old days,And she has married a sot,Who now goes drunkenly outAnd leaves her too much alone.

(Attributed to Mei Shêng, 140 b.C.)

1 poema de Ezra Pound

“RECLINING-FEMALE-NUDE”, DE EGON SCHIELE

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22 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

5 POEMAS ESCOLHIDOSPOR SÉRGIO DE CASTRO DE PINTO

as cigarrassão guitarras trágicas.

plugam-se/se/se/senas árvoresem dós sustenidos.

kipling recitam a plenos pulmões

gargarejamvidros moídos.

o cristal dos verões.

camões/lampiãocamões ao habitar-seno olho cegosentia-se íntimo,mais internono olho aberto.

lampião ao habitar-senos dois olhosa eles dividia:o olho aberto matavae o outro se arrependia.

camões ao habitar-seno olho cegopolia as palavrase usava-as absortocomo se apalpassee possuísse o próprio corpo.

lampião ao habitar-seno olho cego

POESIA

chorava os mortosdo seu interno,mas o olho abertoera castoe via no matarum gesto beato.

camões ao habitar-seno olho abertovia-se todo ao inverso(pelo lado de fora)mas rápido se devolviae fechava o olho abertopra ser total a miopia.

lampião ao habitar-seno olho murchovia o olho abertoestrábico e rústicoe compreendiao olho abertomais murchoque o olho cego.

camões ao habitar-seno olho murchovia o mundo clarodentro do escuroe o olho abertoera inútilao habitar-seno olho murcho.

lampiãoatrás dos óculossentia-se acrescido, somadoe era mais lampiãonaqueles óculos de aro.

Page 22: Correio Das Artes - Setembro 2010

POESIA

A UNIÃO João Pessoa, setembro de 2010 | 23

os óculoslhe eram binóculosíntimos sobre a miopiae quando os óculos tiravalampião se decrescia:o olho cego somavae o aberto diminuía.

camões molhava a penacomo se no tinteiromolhasse o olho cegoe tateando, cuidadoso,saía do seu interno.

(no tinteiro das palavrasem forma líquidajuntam-se uma a umaà retina, à pupila).

Camõesescrevia com o olho cegopor senti-lo mais seudo que o olho abertoe por poder o olho cegoinfiltrar-se, ir mais dentroe externar o seu inverso.

Geração 60A Carlos Aranha e Walter Galvão

a carta branca do montillanão era de alforria.

o papagaio era calado.

o cuba-libre nos prendia.

e em barris de carvalhoo tempo envilecia.

avenida dos tabajarasos tabajarasdepuseramas suas setasno arcodas esquinas

privaram-nasde velocidadeno arcodas esquinas

puseram-nasem repousono arcodas esquinas

no arcodas esquinasas setasfluem o tráfego

mas congestioname desorientamo antigo meninoda avenidados tabajaras

menino antigode um tribocuja aldeiaainda não eratão global

atos falhossequer os ensaio.

mas os meus atosfalhosencenam-se assim:

eles já no palcoe eu ainda no camarim.

Page 23: Correio Das Artes - Setembro 2010

PEDRO SALGUEIRO *

á cento e trinta anos jogava aquela partida,os parceiros se revezavam até sumirem devez, os filhos e netos os sucediam e torna-vam a envelhecer, enquanto ele permane-cia ao pé do balcão, pelo lado de dentro:somente ele sentado - o tilintar dos dedosda mão esquerda continuava a fazer sul-cos na madeira: os parceiros teimavam emdesaparecer.

Na madrugada em que vieram me avi-sar que ele jogava à luz de candeeiro na mes-ma mercearia virada para o nascente, nomercado, eu comecei a chorar e rezei trêsterços e acendi duas velas em cada canto dasala; não dormi a madrugada inteira, semcoragem de ir vê-lo: a rua deserta, os cãesladrando insistentes, até os grilos pararam...

...eu pequenininho e fugia da oficina demeu pai e maquinalmente corria à mercea-ria do avô, onde já divisava, de longe, aslatas de bombons enferrujadas, e nunca asvimos por dentro, é um mistério que esta-mos levando para o túmulo... o tac-tac daspedras no tabuleiro de vidro nos invadiaos ouvidos e nos atraía pra lá. Disfarçando,fingíamos nem ligar, sentados a um canto.E apenas um mundo girava em seu eixonaquela tarde morta em que os únicos ruí-dos eram o trovejar das moscas no saco deaçúcar e o arrastar das pedras no vidro.

O silêncio doía. Comentários, só os dele,irritado com alguma demora do adversá-rio - cantava às vezes uma musiquinha in-sistente, quando ganhava folgado: "- cabo-clo, caboclo... ô caboclo perigoso!" ou insis-tia por horas na mesma palavra, até o limi-te da exaustão: " - mas homem, mas ho-mem, mas homem..."

Madrugávamos com o reco-teco das pe-dras no tabuleiro da cabeça, o começo incisi-vo, a vagareza do meio, rumando para o finalnervoso de horas depois; no resto da tarde,imitava-se com a dama riscada na areia enos enraivecíamos por as pedras de cacos detelha não chiarem no tabuleiro do chão...

...e o vizinho contava de novo que o viramjogar, cantarolando a mesma palavra a ma-drugada inteira, o bater de pedras invadindoo mercado e assustando quem passava desli-gado pelas calçadas àquela hora da noite.

Acendi mais uma vela, pensei em quebrar adama empoeirada e não tive coragem... ela es-tava gravada, fazia tempo, na lembrança;abandonara para sempre o baú velho em quefora esquecida. Perseguia-me. Agora o bisavôdo meu vizinho vinha insistir que o deixas-sem descansar, que parassem com aquele jogoa noite toda, sem sossego.

...decidi abrir o armário antigo, há décadasfechado. Jogaria o tabuleiro no cacimbão ou oquebraria a marteladas, contudo...

...abri de chofre a tampa e, entre casas dearanha e poeira, a jogada já não era a mesmada noite passada; movi a minha pedra, fecheio armário num supetão, rezei meu terço, acen-di as velas...

O jogo de

*ESCRITOR CEARENSE. PUBLICOU O PESO DO MORTO (1995), O

ESPANTALHO (1996), BRINCAR COM ARMAS (2000), ENTRE OU-

TROS.

24 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

damas

inédito

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cont

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Page 24: Correio Das Artes - Setembro 2010

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ensa

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A UNIÃO João Pessoa, setembro de 2010 | 25

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Hildeberto Barbosa Filho*

rosso modo, o regionalismo pode serentendido num sentido geral e numsentido restri to. Tanto a históriaq u a n t o a c r í t i c a l i t e r á r i a s s ea p r o v e i t a m d e a m b a s a ss i g n i f i c a ç õ e s p a r a a b o r d a r ,d e s c r i t i v a , i n t e r p r e t a t i v a eapreciativamente as obras literáriasque se amoldam a tal categoria.

No sentido restrito, o regionalismose volta para o típico e o peculiar a umaregião (ethos, símbolos, fisiografia,tipos, linguagem etc.). Literariamentese confunde com a ficção do pitoresco,da cor local, do exotismo e do folclórico,redundando, não raro, em textos depouca valia estética, embora possamfornecer relevantes subsídiosdocumentais. Nessa clave, tende parauma concepção programática defundo cultural, político e ideológico, aexemplo do sertanismo ( José deAlencar, Afonso Arinos), da literaturado Norte (Franklin Távora), docaboclismo (Valdomiro Silveira), dogauchismo (Simões Lopes Neto) e doregionalismo nordestino de 30.

No sentido geral, o regionalismo dizrespeito às obras que têm por fundouma região, cujas condições se refletemno seu conteúdo, conferindo-lhe umanota especial. Não se confunde comuma simples moldura. É destacada aregião o bastante, influindosubstancialmente no quadro. Nestaacepção, toda obra seria regional, tantoaquelas em que a ação se desenvolve

na zona rural quanto aquelas em que aação ocorre na zona urbana, pois o espaço/ambiente, mesmo quando indefinível eobscuro, é elemento intrínseco à estruturanarrativa.

Nesta ou naquela perspectiva, pareceprevalecer o critério geográfico eecológico, o que pode gerar sériosequívocos no ato de apreciação das obrasliterárias. Na verdade, o critério a serprivilegiado nesses casos é o critérioestético. Face à questão da nacionalidade,no século XIX, tão cara à poéticaromântica, Machado de Assis, porexemplo, já revelava lucidez diante doproblema, ao afirmar, em Instinto deNacionalidade: notícia da atual literaturabrasileira (Novo Mundo, New

O Regionalismoe o Escritor

Contemporâneo

G

Page 25: Correio Das Artes - Setembro 2010

York, 1873): "Não há dúvidaque uma literatura, sobretudouma literatura nascente, deveprincipalmente alimentar-se dosassuntos que lhe oferece a suaregião; mas não estabeleçamosdoutrinas tão absolutas que aempobreçam. O que se deve exigirdo escritor, antes de tudo, é certosentimento íntimo que o tornehomem do seu tempo e do seupaís, ainda quando trate deassuntos remotos no tempo e noespaço".

Dentro das implicaçõessemânticas, ainda podemos falardo regionalismo em suas faseshistóricas: romântico, realista,

moderno e contemporâneo.(Quanto a este último, talvezfosse melhor dizer atual).

Não discuto a validade doconceito do ponto de vista

científico (histórico, econômico egeográfico), mas da validadeestética, sim. Aplicado às obrasliterárias, mesmo àquelas quetêm como região a zona rural edela tiram sua substância real(fundo natural e humano),conforme exige George Stewart,referido por Afrânio Coutinho naIntrodução à Literatura no Brasil (10ed. Rio de Janeiro, CivilizaçãoBrasileira, p. 202), o conceito meparece redutor.

Redutor porque se recusa acontemplar o ponto seminal dasobras literárias, ou seja, aquelesingredientes que a tornam umaobra de arte, seu processo

26 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

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Regionalismo diz respeito

às obras que têm por fundo

uma região, cujas

condições se refletem no

seu conteúdo, conferindo-

lhe uma nota especial

“OS RETIRANTES”, PORTINARI

Page 26: Correio Das Artes - Setembro 2010

de elaboração artística, enfim,a forma, a semiosi, para me valerde um termo barthesiano, usadoem Aula(1977), juntamente commathesis e mimesis. Alcançandoapenas elementos singulares eparticulares, não toca no principal,isto é, naquilo que é universal,existencial e humano, independentedo contexto (espacial e histórico)e das situações vividas erepresentadas, prejudicando,assim, a experiência de leitura.Exemplo: o chamado regionalismonordestino para definir a ficçãodos anos 30/45/56, quando nesseespectro existem muitas obrasque não poderiam se enquadrartão limitadamente nesseparadigma.

Vou citar o caso do romanceMenino de Engenho, de Zé Lins. Apecha de romance regionalista setornou comum, banal, por parteda crítica e da história literárias.É um estereótipo, e como todoestereótipo, é falso, camuflaaspectos significativos, deformaa visão de quem assim o vê. Éclaro que a região é fundamentalna constituição do enredo e dopersonagem Carlinhos (meninode 4 a 8 anos), porém, no fundo,não é ela que importa. O queimporta é o elemento humano. Épreciso observar que o autortranscende o caráter regionalista,"ao erigir o homem como eixo desuas narrativas", nas palavras deEduardo Coutinho (História daLiteratura Brasileira, Vol. 3. Direçãode Sílvio de Castro. Portugal,Alfa, 2000, p. 335).

Mais que a paisagem, oscostumes, os tipos e oimaginário social do mundo doengenho (a particularidade),importam motivos temáticos comoa morte, o medo, a solidão, a loucura,a ausência do carinho materno quec o n f o r m a m e f o r m a m apersonalidade do personagem (suasingularidade), transfiguradospelo gênio do autor, o que lhesconfere estatuto universalcaracterístico da autêntica obrade arte. A história de Carlinhosnão é a crônica de costumes deuma sociedade patriarcal, de umengenho da zona canavieira daParaíba na segunda metade do

A pecha de romance

regionalista se tornou

comum, banal, por parte da

crítica literária. É um

estereótipo, e como todo

estereótipo, é falso, e

camufla aspectos

significativos

século XIX, mas um romance deformação (�bildunsgroman�,como dizem os alemães), em quea experiência da morte e dasperdas se faz essencial.

São sintomáticas as primeiraspalavras do narrador ("Eu tinhauns quatro anos no dia em queminha mãe morreu"). Maisadiante, ainda no primeirocapítulo, continua o narrador:"Horas inteiras eu fico a pintar oretrato dessa mãe angélica, comas cores que tiro da imaginação,e vejo-a assim, ainda tomandoconta de mim, dando-me banhose me vestindo. A minha memóriaainda guarda detalhes bem vivosque o tempo não conseguiudestruir. (...) A morte de minhamãe me encheu a vida inteira deuma melancolia desesperada.Por que teria sido com ela tãoinjusto o destino, injusto comuma criatura em que tudo erapuro? Esta força arbitrária dodestino ia fazer de mim ummenino meio cético, meioatormentado de visões ruins".

E o que dizer das últimaspalavras: "Menino perdido,menino de engenho". Perdidoporque f i cou para t rás?Perd ido porque se tornouperplexo, espantado, arredio,ensimesmado? Perdido porque sefez ruim, sabido, safado? Ouporque perdeu, teve perdas? Ahistória das perdas não seria ahistória de todos nós?

Relendo Menino de Engenho

numa outra perspectiva quen ã o a d e s i m p l e s r o m a nceregionalista, penso que a ele,como a qualquer romance bemrealizado como romance, cabemuito bem as palavras deSuzanne Langer, numa passagemde Sentimento e Forma, ao afirmarque consiste num grandeequívoco "(...) se deixar induzir aoengano de supor que o autorpretende, por seu uso depalavras, exatamente aquilo quepretendemos com o nosso -informar, comentar, inquirir,confessar, em suma: falar às pessoas.Um romancista, contudo, pretendecriar uma experiência virtual,completamente formada einteiramente expressiva de algomais fundamental do quequalquer problema ´moderno`: osentimento humano, a naturezada vida humana em si".

Por sua vez, retomando umaideia de Borges, afirma LourivalHolanda, num trecho de Sob oSigno do silêncio (São Paulo,EDUSP,Col. Criação & Crítica, p. 36): "(...)a filosofia pretende provar,justificar teorias; a literatura émais modesta, apenas querencher o mundo de imagens". Eno último capítulo, "O VerboInviável", assinala (p. 86/87):"Não há por que querer, daliteratura, veracidade. Seriaaliená-la, se ouvirmos aexigência do étimo latino:alienus - o que está alheio a si.Assim, se a literatura tomaoutro código, histórico oufilosófico, será sempre enquantocódigo segundo, secundando-a.Trabalhando com a linguagem,q u e v e m m e d i a r t u d o - averdade da geometria ou dah i s t ó r i a s e r e s s e n t e dessamediação -, o texto vai formandoum espaço possível (outro,portanto), enquanto se vaiformando, estruturalmente,como busca".

Ora, isso é dito em função deuma rigorosa e arguta análisecomparativa entre Vidas Secas,de Graci l iano Ramos, e OEstrangeiro, de Albert Camus,iluminada leitura que passa aolargo dessa controvérsiamenor: o regionalismo. c

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A UNIÃO João Pessoa, setembro de 2010 | 27

Page 27: Correio Das Artes - Setembro 2010

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*PROFESSOR DO CURSO DE COMUNICAÇÃO DA

UFPB, POETA, ENSAÍSTA E MEMBRO DA APL

I

Em "Ameaça do Lobisomem",texto de homenagem a Borges, 10anos após a sua morte, inserto emO Cosmopolitismo dos Pobres (BeloHorizonte, UFMG, p. 224/225)Silviano Santiago, reflete acercada condição do personagem JoséAmaro, salientando: "(...) Nasociedade dramatizada por Linsdo Rego é ele o personagempassível de viver o movimento detransformação: virar negro,virar senhor. Em Fogo Morto, esselugar móvel é ocupado peloseleiro José Amaro, que seráexpulso das terras do coronelLula. Nem senhor, nem negro,andarilho, lobisomem". Ao queacrescenta o ensaísta: "Em noitesde lua, o seleiro sai livremente acaminhar pelo campo e, diz opovo , se t rans forma emlobisomem. A busca de algoalém das necessidades diárias- ou seja, a autossatisfação nac o m u n h ã o c o m a n a t u r e z aa d o r m e c i d a , a l iberdadeconquistada e a solidão tomadapelo lirismo bucólico, - torna JoséAmaro estranho ao mundofamiliar das terras de engenhodescritas por Lins do Rego. Poucoa pouco, o seleiro vai sendom a r g i n a l i z a d o , t e m i d o ,ridicularizado, escorraçado. Oromance historia as várias fasesda sua transformação emlobisomem e as respectivasconsequências". E mais à frente,

completa Silviano: "O lobisomemserá triplamente excluído emFogo Morto - das terras pelosenhor de engenho, dacomunidade pelo temor religiosodo povo e da família pela raivada mulher. Ele questiona apropriedade rural, o credoreligioso e a organizaçãofamiliar". E conclui: "Triplamenteameaçador, triplamente excluído,resta-lhe a autoexclusão.Suicida-se com a faca de cortarsola, completa o narrador".

Diria que o próprio Zé Linstem consciência disso, quandoem nota à primeira edição deUsina (1936), assinala: "A história

desses livros é bem simples -comecei querendo apenasescrever umas memórias quefossem as de todos os meninoscriados nas casas-grandes dosengenhos nordestinos. Seriaapenas um pedaço de vida o queeu queria contar. (...) Sucede,porém, que um romancista émuitas vezes o instrumentoapenas de forças que se achamescondidas no seu interior".Veja-se também que depoisdessa edição, ele retirou anomenclatura de "ciclo da canade açúcar".

Alfredo Bosi, em sua HistóriaConcisa da Literatura Brasileira,estribado em argumentos deLucien Goldmann, GyorgyLukács e René Girard, como quesinaliza para a precariedade doconceito de regionalismo,criticando as nomenclaturas"romance social-regional" e"romance psicológico", ao proporuma nova tipologia para oromance de 30, nesses termos:romance de tensão simples,de tensão crítica, de tensãoi n t e r i o r i z a d a e d e t e n s ã otransf igurada.

Alfredo Bosi como que

sinaliza para a

precariedade do conceito

de regionalismo, criticando

as nomenclaturas

"romance social-regional" e

"romance psicológico", ao

propor uma nova tipologia

para o romance de 30

EXEMPLOS DE OBRAS REGIONALISTAS: MENINO DE ENGENHO DE JOSÉ LINS; VIDAS SECAS, DE GRACILIANO; E O SERTANEJO, DE ALENCAR

28 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

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João Pessoa, setembro de 2010 | 29

stive em João Pessoa, no Agosto das Letras, paradialogar com o escritor Marcelino Freire e oprofessor Amador Ribeiro Neto sobre Literaturae as Novas Mídias. Esse tema me persegue háalguns anos e resolvi imergir com coragem e olhoslivres em suas águas.

Também no mês de agosto, dialoguei sobre omesmo tema na Bienal Internacional do Livro deSão Paulo com a professora Heloisa Buarque deHollanda e os escritores Nelson de Oliveira,Micheliny Verunschk e Andrea Del Fuego.

É sempre muito rico discutir com os próprioscriadores como a inserção de um novo suportetextual e de um novo meio de difusão alterariampráticas e conceitos já sedimentados no campoda produção/criação, recepção e estudos literários.De um modo geral, o que observo é que todosainda estão muito céticos, quando nãodesinformados sobre as implicações do tema.

A questão sobre a expansão das novas tecnologiase sua influência na cultura deram as caras no séculopassado, mas suas exigências se fizeramincontornáveis de alguns anos para cá. Ocomputador e o campo de significações da Internetsão todos colocados no mesmo saco, melhordizendo, na mesma rede. A parte mais popular desseprocesso é a World Wide Web, o conhecido WWW,que a rigor é apenas a interface gráfica da Internet. Éatravés dela que nos conectamos com os sites, sítios,blogues e demais páginas com o intuito de divulgar,de criar ou apenas de nos relacionarmos.

A noção de interface - como bem nos lembra ofilósofo Pierre Lévy, pioneiro nos estudos quedenominou de cibercultura- não deve ser limitadaàs técnicas de comunicação contemporâneas. Elelembra que o próprio advento da impressão gerouuma interface padronizada e original com seuscabeçalhos, páginas de títulos, numeração regulare referências cruzadas.

Em última instância, digo eu, a própria palavraé uma interface com o plano das ideias, dasinformações e dos sentimentos e, para discordarde Saussure, não totalmente arbitrária, enquantosigno, como nos mostrou as experiências dopsicólogo Wolfgang Köhler registradas em seulivro Psicologia da Forma.

O que dizer, então, da literatura que, no dizer doescritor cearense Carlos Emílio C. Lima, cria "cinemasmentais" em fluxo não linear de várias dimensões?

Com o advento da linguagem digital,inesperadamente, a escrita impressa e a linguagem

habitual do livro, a literária, feita de letras, sintaxe,sintagmas, morfologia e conotações ganhou emimportância. Jovens educados e criados em umambiente predominantemente visual, saturadosde imagens e ícones da cultura contemporânea,começaram a se voltar para a linguagem escritaestimulados pelo correio eletrônico, MSNs e outrosdiálogos entre suas comunidades sociais. Os quechegaram à fase do consumo de informações naúltima década, por bem ou por mal, estão utilizando-se da expressão literária, rudimentar ainda (calcadaainda mais em sua função fática do que poética), massujeita ao aprimoramento natural determinado pelaprópria necessidade de se exprimir.

Chegamos, então, a uma palavrinha que está namoda no meio virtual e que se configura comocaracterística essencial dessa nova era, ou dacibercultura: o hipertexto. Blocos de informaçõesconectados por meio de elos ou links, capazes depermitirem aos navegadores que se movamlivremente aí dentro e que nos colocam diante deuma nova máquina de ler, que faz de cada leitor-navegante um editor em potencial redirecionandoos paradigmas que balizavam as antigas formasde produção e recepção de discursos.

O texto, nessa baliza, passa a ser efetivamenteuma galáxia de significantes, não uma estrutura designificados. Segundo George Landow, em seu livroHipertext 2.0, os textos não têm mais início, sãoirreversíveis e possibilitam acesso por diversasentradas das quais nenhuma poderia serautoritariamente declarada única, como queriaRoland Barthes em suas análises da escritura.

Tudo muito bonito e conceitualmenteinstigante. Mas, como declarou em nosso diálogoa professora Heloisa Buarque de Hollanda(arrancando risos de todos), e podemos observarno ciberespaço, os textos criados com essaintenção ainda são muito chatos. Intragáveis.

Bem, mas não vamos jogar o bebê juntamentecom a água do banho. Tudo ainda é muito incipiente.Vamos atentar para as experiências feitas no siteDreaming Methods [www.dreamingmethods.com/] e observar como anda a discussão (mais adiantadado que por aqui) pelo mundo em Literatura -tecnologia da escrita [www.tecnologias-y-escrituras.ca/sesion1.html ].

Frente a essa enorme multiplicidade depossibilidades, facetas e eventos, não podemosdeixar de pensar seriamente no significado da webpara o presente e para o futuro da literatura e dacultura. Não é mais possível ter uma opiniãosimples e unívoca, ou simplesmente descartar otema. Não podemos ser só eufóricos ou, aocontrário, reacionários como Andrew Keen [vejahttp://sambaquis.blogspot.com/2009/04/o-culto-ao-amador-e-aos-amantes.html ].

As reflexões continuam. Sigamos em linha.

Literatura ecultura emtempos digitais

E

* FOI EDITOR DO SITE CAPITU E FUNDADOR/EX-EDITOR DO SITE

CRONÓPIOS. LANÇOU O LIVRO DE POESIA SORTILÉGIO E ORGANI-

ZOU O LIVRO O QUE É POESIA? MANTÉM O BLOG HTTP://

SAMBAQUIS.BLOGSPOT.COM

I

Edson Cruz*

A UNIÃO

Page 29: Correio Das Artes - Setembro 2010

30 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

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Amador Ribeiro Neto*

m 1902 a MPB pega um gás danado debom. Nasce muita gente de peso. Genteque compõe, interpreta, escreve,musica, arranja de um modo muitoespecial. Gente como Moreira da Silva,o malandrésimo Kid Morengueira.

Neste mesmo ano nascemClementina de Jesus, Carlos Cachaça,Alcebíades Barcelos, Alberto Ribeiro eArmando Marçal. Parece que Deusestava mesmo querendo ouvir músicapopular de alta qualidade. Lotou oberçário com músicos-bebês. Sortenossa.

Este pessoal ve io se juntar aoutros nomes. Deu origem a uma dasmais férteis fases de nossa músicapopular. A "Época de Ouro". Nossamúsica se profissionaliza comerciale esteticamente. Surgem novos padrõesde fazer canção. Período: 1929 a 1945.

Com o advento do rádio e do cinemafalado a música popular encontranovos meios de difusão. O públicoamplia. O mercado cresce. O padrão dequalidade continua em alta. Afinal,

estão compondo, tocando cantando nesteperíodo gente como Noel Rosa, AriBarroso, Lamartine Babo, João de Barro,Assis Valente, Vadico, Orestes Barbosa,Wilson Batista, Geraldo Pereira, CarmenMiranda, Mário Reis, Almirante, CarlosGalhardo, Marília Batista. Entre outros.

A MPB desta "Época de Ouro" cria umpadrão de qualidade. Que permanececomo paradigma da boa música.Felizmente.

É aí que desponta aquele samba que derepente dá uma paradinha. E o cantorcomeça a falar. Falar o quê? Quase sempremalandragens. Espertezas. Sapequices.Coisas marotas. Macunaímicas.Picarescas. Tanto no tema como na formade contar. Foi certamente pra elogiar estamalandragem que Noel escreveu: "tudoaquilo que o malandro pronuncia com vozmacia / é brasileiro / já passou deportuguês".

O malandro colou ao jeito brasileiro deser um modo brasileiro de falar.

A malandragem tem sido a dominanteem nossa cultura. E não somente nacultura popular. Antônio Cândido sacoubem isto. Leu, sob esta perspectiva,

A malandragemda ginga

E

falada de Kid Morengueira

6

mús

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o romance Memórias de umsargento de milícias. Belo ensaio.Recorte modelar de nossacultura.

Moreira da Silva vivenciou amalandragem. Elegeu-a comoperformance artística.

Ele não foi o criador do sambacom ginga marota, conhecidocomo samba de breque. SegundoJosé Ramos Tinhorão, já em 1929Sinhô compôs "Cansei", queobrigava o intérprete sambistaa criar uma pausa. Era o iníciodo processo. Mais tarde em 1931a dupla Ismael Silva e NíltonBastos tornou obrigatório umbreque após a segunda parte dossambas que compunham. Estavadado o passo definitivo do queviria a ser o samba de breque.

Moreira da Silva radicalizou aparada melódica. Preencheu oespaço musical da pausa comfalas coloquiais. Fez isto em 1936com "Jogo proibido" de TancredoSilva. O jeito agradou. Virouestilo. A partir de então o ritmo

Moreira da Silva radicalizou

a parada melódica.

Preencheu o espaço

musical da pausa com falas

coloquiais. Se ele não foi

o inventor do samba

de breque, é sem dúvida

alguma seu maior

intérprete. E divulgador

*POETA, PROFESSOR DO CURSO DE LETRAS DA

UFPB, AUTOR DO LIVRO BARROCIDADE

sincopado, com paradas súbitaspara comentários, geralmentebem humorados, passa a serconhecido co m o d e s a m b ade breque. Se Moreira não éseu inventor, é sem dúvidaalguma seu maior intérprete.E divulgador.

Em 1940, com "Acertei no

I

c m i l h a r " , d e W i l s o n B a t i s t ae G e r a l d o P e r e i r a , KidMorengueira leva o samba debreque ao sucesso. A músicaconta a história de um sujeito queacerta na loteria. A partir daí fazplanos habituais e mirabolantes.Imagina saldar a conta doarmazém. Fantasia comprar-se otítulo de barão. A alegria durapouco: a mulher o desperta parair pro trabalho.

Fome. Jogo do bicho. Conto dovigário. Perseguição policial.Futebol. Gafieira. High-society.Morro. Temas deste intérprete.Kid Morengueira não somenteaproximou a fala da palavracantada: assegurou espaço prafala dentro da canção. Com amanha do malandro talentoso.

A UNIÃO João Pessoa, setembro de 2010 | 31

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Ivana Arruda Leite*

stá escrito no evangelho: mal é o que sai daboca do homem e não o que entra, mas foipela boca que o capeta entrou no meu cor-po e passou a viver agarrado às minhastripas. Os vizinhos todos comentam meuestado, finjo que não é comigo.

Eles ainda se lembram do tempo em queeu trabalhava fora, era casada com Alcidese tinha uma filha linda e loira como todomundo. Hoje mais pareço uma baleia co-mendo dia e noite sem parar em frente àtelevisão, exatamente como minha mãe.

Um dia ela também começou a comer enão parou mais. Meu pai, não suportandovê-la naquele estado, foi embora de casa.Casou-se novamente e teve outros filhos.Insistia para que eu fosse morar com ele,mas mamãe jamais permitiu.

A lembrança que tenho deles é de umcasal feliz, destes que andam pelas ruas demãos dadas trocando segredos e agradoso tempo todo. Nossa casa vivia cheia degente. De um dia para o outro, mamãe de-satou a comer. Papai trancava a comidanos armários, mas ela os arrombava ber-rando a quem quisesse ouvir: não me tireo único prazer que me resta na vida.

No final, tinha dores insuportáveis quea faziam urrar a noite inteira. Eu colocavatravesseiros aqui e ali para que as doresdiminuíssem. O difícil era dar banho na-quela mulher imensa que já não levanta-va da cama.

Mamãe morreu antes dos cinquentaanos. Depois de sua morte, minhas noites

6fic

ção

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Adélia

32 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

tornaram-se silenciosas e eu pude finalmente cui-dar da minha vida. Vendi a casa onde morávamos,comprei outra menor e arranjei um ótimo empre-go, onde conheci Alcides, com quem me casei.

Alcides era um rapaz bonito e alegre. Vivíamosindo a bailes e andávamos de mãos dadas trocan-do segredos e agrados o tempo todo. Eu adoravareceber seus amigos. Nossa única filha era loira ebela como o pai.

Certo dia, Alcides trouxe Nereu para jantar co-nosco. Ele logo se tornou íntimo, destes que dor-mem no sofá da sala e acordam cedo pra acender achurrasqueira.

Uma noite, depois que ele se foi, sentei-me à mesaque ainda estava posta e comi o resto de todos ospratos. No café da manhã devorei dez pãezinhoscom leite condensado. Percebendo que havia algoerrado, Alcides sugeriu que eu procurasse um mé-dico, talvez um psiquiatra. Pedi que ele não me ti-rasse o único prazer que me restava na vida.

Em poucos meses dobrei de peso e não saía maisde casa. Do emprego fui demitida por telefone, nun-ca mais vi ninguém do escritório. Mandei fazer umascamisolas imensas de algodão e passo o dia comelas. Só me levanto para ir ao banheiro. Por en-quanto ainda consigo.

Alcides fez as malas e foi embora. Casou-se commulher magrinha e bonita.

Foi-se o marido, foram-se os amigos, foi-se o em-prego, mas engana-se quem pensa que minha his-tória é igual à história da minha mãe. Salvei minhafilha. Fiz questão que ela fosse morar com o pai.

“LA MAYA DESNUDA”, DE BOTERO

*ESCRITORA, AUTORA DE VÁRIOS LIVROS. ESTE CONTO FOI PUBLICA-

DO EM SEU LIVRO FALO DE MULHER (2002)

Page 32: Correio Das Artes - Setembro 2010

c

João Batista de Brito*

normes e diáfanos símbolos de uma gran-de estória de amor" (´huge cloudy symbolsof a high romance´). O verso é do poeta ro-mântico inglês John Keats (1795-1821), masestá num local prosaico e vulgar: a revistade palavras cruzadas desse fleumático ebem-comportado senhor, e, de propósito,incompleto, sem o último termo. Quem lhedecifra o enigma é a esposa, completando overso com a palavra ´romance ,́ mas, aten-ção, o incidente não é nada gratuito: roman-ce é o que falta na vida desse maridão aco-modado, e justamente o que não falta navida dessa esposa infeliz, tragicamente apai-xonada fora do casamento.

A cena está no hoje clássico melodramade David Lean, Desencanto (1945), mas, cla-ro, a presença da poesia de Keats no cine-ma é mais ampla.

Pois quem acaba de dedicar ao poeta de"Hyperion" um filme inteiro é a cineasta ne-ozelandesa-australiana Jane Campion, dequem quase não ouvíamos falar desde o seuperturbador e badalado O piano (1995).

Com o título de um dos sonetos de Keats,"Bright Star" (`Rútila Estrela ,̀ no Brasil: Brilhode uma paixão), o filme conta uma fase da vidado grande poeta romântico, quando era pen-sionista na mansão dos Brawne, e se apaixo-na pela filha da senhoria, a jovem Fanny.

De início, o casal não se entende e até seantipatiza: dedicada à moda, Fanny não é afei-ta à poesia; entregue à literatura, Keats é aves-so à moda e ao que ela implica de etiquetas,pompas e frivolidades. Aos poucos as diver-gências vão dando lugar a uma amizade que,rapidinho, vira - como mantém o título brasi-leiro do filme - paixão.

Um poeta romântico vivendo um gran-de caso de amor, isso deve ser algo avassa-lador. Bem, no filme de Campion, nem tan-to: quase rotineiro, o roteiro não tem a "tem-pestade e fúria" esperadas e, com ritmo li-near, disciplina imperturbável, reconsti-tuição de época detalhada e muita citaçãoliterária, narra a estória de uma forma que,para o espectador não interessado em lite-ratura, pode soar monótona.

Rútila estrela

A UNIÃO João Pessoa, setembro de 2010 | 33

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ABBIE CORNISH E BEN WHISHAW INTERPRETAM KEATS E FANNY EM BRILHO DE UMA PAIXÃO, FILME CONCEBIDO PARA AMANTES DE POESIA

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34 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

Para quem conhece a poesia deJohn Keats, no entanto, o filme é umadádiva. Diríamos que, assim comoFanny costura os seus tecidos (lem-bram que o primeiro presente aoamante é um bordado para traves-seiro?), o roteiro costura as cenas come a partir de palavras poéticas, aolongo do filme inteiro. Sim, sem seimportar muito com verossimilhan-ça ou fidelidade biográfica, a narra-ção intromete poesia em tudo, mas,o faz sempre com um sentido inven-tivo e tocante propriedade. Cito al-guns exemplos.

Dias depois da morte do irmãomais novo, instado a recitar poesiana sala de visitas dos Brawne, Keatso faz com o soneto que começa"When I have fears... ("Quandotemo...", o mesmo do filme de Lean),mas não conclui: após o segundoquarteto, pára e o espectador que co-nhece o poema sabe por quê: no dís-tico final está o anúncio de sua pró-pria morte.

Numa cena de amor em que o ca-sal, superadas as iniciais divergên-cias, celebra o gosto comum pela poe-sia, Keats e Fanny, os dois juntos, serevezam na recitação de um dos poe-mas mais imaginativos do poeta, ofamoso, belo e misterioso "La belledame sans merci" (´a bela dama sempiedade´), com seu final infeliz, tal-vez um índice do destino do poeta.

Depois da notícia recebida do fa-lecimento do poeta em Roma, vemosuma Fanny desesperada, arrastar-se pelos mesmos campos que antespalmilhara ao lado do amado, agoraverbalizando exatamente o poemaque fora especialmente escrito paraela, o "Bright star" que, como visto,denomina o filme de Campion. Notexto, o poeta gostaria de ser a ́ rútilaestrela´ que, soberana e eterna, ilu-mina mares, montanhas e pântanos,para poder, como ela, iluminar parasempre os seios da mulher amada,fazer só isso, e, se não for isso, me-lhor morrer.

Isto tudo para não esquecer que,ainda no começo do filme, a primei-ra indicação de que Keats e Fanny seenvolverão é, aliás, sintomaticamen-te, o famoso verso "a thing of beautyis a joy forever" (´uma coisa bela éum prazer eterno´), por ela jogadona cara dele para dar a entender quelera o seu "Endymion", comprado,

então, na livraria da esquina, pormera curiosidade - segundo a irmãmenor de Fanny - "para saber se Ke-ats era idiota ou não."

E vejam que a recitação poética seestende até a exposição dos créditosfinais, esta toda ao som de um dosmais celebrados poemas de Keats, omesmérico e encantador "Ode to anightingale" ("Ode a um rouxinol")

Nenhum desses trechos poéticos,ou se for o caso, poemas completos, é,no filme, identificado pelo título, o quedificulta mais ainda a situação do es-pectador não-familiarizado com oassunto. Mas, ora, para esse especta-dor uma questão antecede o proble-ma das citações, e a questão é: quemfoi John Keats?

O filme de Campion nos mostraum Keats doméstico, privado, isola-do, mas, na verdade, a sua obra era oeco, ao mesmo tempo passivo e ati-vo, de um grande movimento artís-tico que eclodiu, na Inglaterra, nasúltimas décadas do século XVIII eprimeiras do século XIX - o já referi-do Romantismo. Era uma reação aoracionalismo da Idade das Luzes,mas também à industrialização nas-cente - daí a sua ênfase em duas coi-sas diferentes: a emoção e a Nature-za. Em cena do filme em que Fanny,tentando entender poesia, toma au-las particulares com Keats, este seapressa em afirmar que "a poesiasurge como folhas às árvores, e, seassim não for, melhor não surgir." É opreceito da espontaneidade, já for-mulado pelo pai do movimento, Wi-lliam Wordsworth, que, antes deKeats, definira a poesia como "a spon-taneous overflow of powerful fee-ling" / "explosão espontânea de po-derosa emoção".

Historicamente falando, a primei-ra manifestação romântica do mun-do literário aconteceu em 1798, quan-do Wordsworth publicou o seu"Lyrical Ballads". Depois disso, a fon-te romântica não parou mais de jor-rar, pelo menos até que as coisas vol-tassem a se acalmar com a chegadada pachorrenta Era Vitoriana. NaInglaterra houve duas gerações depoetas românticos, com uma curio-sidade: não uma seguindo a outra notempo, mas uma dentro da outra.Nascidos em torno dos anos 1770,Wordsworth e Coleridge formarama primeira geração, a qual viu nas-cer e morrer a segunda, formada pelotrio Byron, Shelley e Keats, poetas devida breve, falecendo, todos, bemantes dos seus antecessores poéticos.

Ao falecer, em 1821, aos vinte e seisanos de idade, da mesma tuberculo-se que matara o irmão mais novo,Keats nem sonhava em ver o seu tra-balho literário reconhecido. Ou sesonhava, não viu. Depois da suamorte, a sua obra é descoberta peloscontemporâneos e, desde então, seunome consta como um dos poetasmais importantes, não apenas den-tro do romantismo inglês, mas, emtodos os tempos e em todos os luga-res. Mesmo enquadrada no modeloromântico, a sua poesia se destacapela condensação original de três ele-mentos distintos: o forte sensualis-mo, a profunda reflexão filosófica e aextensiva imaginação clássica.

Enfim, é do dado da importânciadessa poesia que o espectador precisa,para apreciar Brilho de uma paixão.

Pois bem, preocupado com o es-pectador eventualmente não-famili-arizado com literatura, cá comigo façoo seguinte exercício mental: rememo-ro o filme, tentando esquecer que co-nheço a poesia de John Keats e... nãochego a lugar nenhum. O filme foi defato concebido para os amantes de suapoesia e, sem isso, ele não funcionamuito bem. Sem isso, ele é só - paravoltar à abertura desta matéria - maisuma "estória de amor" cujos "enor-mes e diáfanos símbolos" se perde-ram em algum lugar indeterminado.

Uma trágica estória de amorcomo as muitas que o cinema já con-tou. E nada mais.

Para quem conhece

a poesia de Keats o

filme é uma dádiva. O

roteiro costura as cenas

com e a partir de

palavras poéticas, ao

longo do filme inteiro

*CRÍTICO DE CINEMA, AUTOR DE DIVERSOS

LIVROS ENTRE OS QUAIS, IMAGENS AMADAS

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35 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

JOSÉ MÁRIO DA SILVA

Para Eduardo Portella, mestre

pós a conclusão exitosa do PrimeiroSimpósio Internacional de LiteraturasAfricanas, nascido do consórcio soli-dário da Universidade Estadual da Pa-raíba, da Rede Paraíba de Comunica-ção e PEN CLUBE do BRASIL - Seccio-nal da Paraíba - eis-me devotado à lei-tura de Novos Poemas de Amor, livro deautoria do escritor, jornalista e par-lamentar angolano, João Melo, que,ao lado do poeta João Maimona e daficcionista Marta Santos, angolanostambém, conferiu brilho ao referi-do conclave.

Novos Poemas de Amor põe-nos em facede um lirismo encantatório e portadorde tonalidade acentuadamente solene,em cujos versos, ora mais espraiados,ora mais contidos, a experiência amo-rosa se configura não somente em te-mário obsessivamente perseguido eabordado por dicções distintas, mastambém em matéria existencial que dásuporte à condição humana: contin-gente, espreitada pelo fantasma damorte e fadada, em última instância, àirredutível e ontológica solidão do ser,daí a emergência de uma subjetivida-de que, transida entre a serenidade e odesespero; a espera sem pressa peloamanhã e o ardente cultivo do agora,transforma as suas comoventes con-fissões amorosas em urgentes apelosao seu interlocutor, à sua amada, pon-to de partida e de chegada das suasaventuras utópicas mais delirante-mente acalentadas.

Em "Oferenda", por exemplo, poemainaugural do livro, os dois últimos dís-ticos traduzem bem esse dialéticomodo de encarar o conúbio amoroso:"Toma esta angústia que cresce à me-dida da minha fantasia/ e faz dela umapromessa de fidelidade invencível esecreta/ Toma esta saudade que me afli-ge e faz crer na vida/ e aceita-a como ahumilde declaração do meu amor".

A coloração semântica delineada nocorpo da linguagem poemática faz con-tracenar, admiravelmente, a crença e aangústia, a vida e a aflição que cercam aambígua, misteriosa e essencial tessitu-ra do fruto amoroso, cerne intransferívelde um eu-lírico matizado por inescondí-vel paixão. No poema "Convite", a atmos-fera neorromântica faz da natureza evo-cada pelos sememas �mar�, �ondas�, �sol�,�areia�, �pássaros�, não o adorno bucólicode um cenário meramente protocolar,mas sim a testemunha silenciosa de umamor que se pretende atemporal.

Nesse patamar, é o que se pode depre-ender dos subterrâneos simbólicos do tex-to e da fantasia poética engendrada poruma linguagem simples e ao mesmo en-volvente, o poeta parece anelar pela mor-te do tempo e, ato contínuo, pela instau-ração definitiva da eternidade, em cujoestuário, para bem além do puramenteafetivo, o enlace amoroso ganhasse esta-tuto cósmico, se impusesse como um mun-do particular absolutamente livre e incon-taminado das impurezas da história.

Amor alumbramento, amor epifania,amor desvelamento das camadas abis-mais do ser, amor destino e porto da feli-cidade possível, amor utopia ameaçadapela tempestade que se abate sobre a

Novos poemas

ESCRITOR ANGOLANO JOÃO MELO, AUTOR DO LIVRO NOVOS POEMAS DE AMOR

A

Page 35: Correio Das Artes - Setembro 2010

c cidade, amor finitude, eis asreferências que emblematizam opoema Arco-Íris, semema a rati-ficar, uma vez mais, a percepçãotranscendentalizada com a qualo notável poeta angolano encaraa realidade amorosa.

Se o amor transcendente, ine-fável, provido quase de ostensi-vas conotações místicas, ocuparelevante espaço na lírica deJoão Melo, não menos presentese faz a vivência concreta e cor-pórea de um amor eivado desensualismo e assumida erotici-dade, coreografia de corpos noangustiado e fascinante roteiroda entrega sexual, princípio devida e impulso vertical de umdos aspectos mais significativosdo seu ser/fazer poético.

Eis-nos no coração indesviávelde poemas que exibem no moti-vo das mãos a base impulsiona-dora dos códigos e vetores que es-truturam e conferem certeiro di-recionamento à temática bri-lhantemente abordada. A curvade Deus: sobre ela a mão/ A caba-ça de hidromel/ Novos tambores/ Viagem poética sobre o corpoda amada/, dentre outros que fa-zem parte do território lírico dosNovos Poemas de Amor, anco-ram-se, conforme apontado, nomotivo das mãos.

Voltadas para o mapeamentodo corpo da mulher, transforma-do na privilegiada cartografia dodesejo, as mãos se constituem nasenha para o toque, para a cons-trução do itinerário sem reservasque se percorre no corpo da ama-da. Impetuosas e ágeis, as mãosdevassam "a curva exuberante e/luminosa / por Deus desenhada/no âmago do mundo".

Aqui, sagrado e profano se in-terseccionam no exato instanteem que o sexo feminino, sôfrego ealucinado, se abre para o acolhi-mento exasperado da voluptuo-sa experiência da paixão. Atente-se, nesses poemas, para os ricosefeitos plásticos potencializadospor uma linguagem que, deslizan-do iconograficamente sobre a facebranca do papel, mais que discor-rer sobre a realidade do erotismo,o que almeja mesmo é mostrá-lonum texto sobriamente elabora-

do, apolínea e artesanalmente. Es-tamos, pois, diante daquela con-creção de toda grande linguagempoética, referida, lucidamente,por Haroldo de Campos.

"Novos tambores", por exem-plo, no dorso dos seus heteromé-tricos versos, tingidos por certasmodulações surrealistas, é umpoema que fascina pelo ritmotrepidante e crispado que o nor-teia, como a querer evocar o balédos corpos em fúria, fúria deamor, entrega e acendrado ero-tismo. Parece haver, aqui, umapoderosa e criadora comunhãodo homem com o universo cir-cundante, como se estivesse sen-do reinventado "o próprio nasci-mento do mundo".

Complexo e resistente às defi-nições que se pretendem exati-zantes, e são sempre precárias, oamor, na tessitura lírica de JoãoMelo, ganha outros contornosque se vão delineando em cadapeça do seu bem urdido e corre-lacionado jogo textual. Salta aosolhos, de pronto, a terrível per-cepção da lacerante passagem dotempo, que não somente apontapara o inevitável envelhecimen-to dos amantes, como tambémpara a incontornável mudançaque se opera em seu interior.

Heraclitianamente, não sãoapenas as águas do rio que inces-santemente se modificam, massim o coração dos apaixonados.Parece ser essa a razão primaci-al da tristeza que se abate sobreo eu-lírico no belo e coloquial"primeiro poema da ausência",no qual, vincada por uma nítidadicção bandeiriana, densa medi-

tação existencial se desentranhado prosaico e aparentementedesvalioso chão do cotidiano.

Outro recorte que se infiltra nosNovos Poemas de Amor ancora noporto da metalinguagem, mergu-lho do poeta no universo da cria-ção literária. Veja-se o "Soneto im-perfeito". Aqui, o poema parece as-sumir-se como possibilidade re-mota de salvar o poeta das suasangústias existenciais. Mas o pró-prio ato criador é fonte tambémde insuperáveis inquietações, devez que, esquiva, a palavra foge,recusando-se a ser o instrumentode canto, com o qual, "na hora de-serta", desesperado, o poeta bus-ca a (im)possível comunhão como ser amado.

A procura pelo indecifrávelenigma da alteridade. O territó-rio urbano com as suas pluridi-mensionais formas de vida. Omundo desbordante da memória.O acendrado confessionalismo. Atorrencialidade hierática de cer-tas imagens impregnadas de altavoltagem surreal. O rigoroso tra-balho com a palavra, atingindo osdensos patamares da literarieda-de. A mulher e a detalhada carto-grafia da sua corporeidade. Todoesse ir e vir de motivos, temas,tons, cheiros e cores conferem ní-tida fisionomia a uma poética vi-gorosa que, acercando-se da an-cestral temática do amor, o fazcom todos os ingredientes que en-formam o panorama da boa lite-ratura: trabalho com a linguageme transfiguração das mais signifi-cativas experiências humanas.

João Melo, com Novos Poemas deAmor, ratifica a superlativa condiçãode um escritor no pleno domínio dosrecursos expressivos, tendo já osseus textos sido traduzidos para oalemão, italiano, mandarim e hún-garo. A leitura de Novos Poemas deAmor é um feliz encontro do homemcom a arte das palavras, com a poe-sia e com o amor. "Desse encontro/de todos os espíritos vitais/ se tece,docemente/ violenta,/ essa belezaque ostentas/ tranquilamente sobreo tempo e/ a incrédula memória doshomens".

* ENSAÍSTA E PROFESSOR DA UFCG, AUTOR DE

MÍNIMAS LEITURAS MÚLTIPLOS INTERLÚDIOS

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LIVRO MOSTRA ESCRITOR NO PLENODOMÍNIO DOS RECURSOS EXPRESSIVOS

A UNIÃO João Pessoa, setembro de 2010 | 36

Page 36: Correio Das Artes - Setembro 2010

CLÁUDIO PORTELLA*

educativo prefácio de Heloisa Buarquede Hollanda para Melhores PoemasArmando Freitas Filho é passional. Tomode empréstimo um pouco dapassionalidade da Heloisa, e, como ela,comento, aqui factualmente, os livrosselecionados pela prefaciadora: emPalavra, o livro de estreia, a perguntaé: Para quais leitores o poeta fez ospoemas desse livro? Armando FreitasFilho mostra um refinamento formalque o distancia do leitor. A "palavra"parece traí-lo.

Os livros seguintes, Dual e MarcaRegistrada, são eminentementeConcretos. Nada a dizer, ou tudo. Em,De corpo presente, livro de 1975, começa aexperimentar. Vide poemas "Sensorial"e "Cidade Gráfica". No livro seguinte, Àmão livre (1979), desenvolve o poemapsicológico.

Longa vida, de 1982, parece um poemaúnico. Provavelmente o melhor de AFF.3x4 (1985) ganhou o Jabuti, dialoga comLonga vida.

Busca uma proximidade do leitor emDe cor (1988) e Cabeça de homem (1991).

Em Números Anônimos (1994) volta adialogar com Longa vida e 3x4.

Se afasta do leitor novamente emDuplo cego, de 1997, em Fio terra, de 2000(livro preferido HBH, a selecionadora),em Numeral/Nominal, de 2003 e em Raromar, de 2006, o livro mais recente. Desdeentão, há no livro uma seleção deinéditos, sua poesia obedece somente aum projeto indiscutivelmente pessoal,onde o poeta parece não abrir espaçopara uma discussão generalizada domundo.

Heloisa também fala da grandepaixão que Armando nutre porDrummond, que Drummond é um

O ar de Armando Freitase o ar de Arnaldo Antunes

poeta difícil, assim como Armando FreitasFilho. Concordo que Armando é realmenteum poeta para poucos. Mas discordo queDrummond seja um poeta "encrencado"(palavra com a qual AFF, gosta de se definir).Drummond é mais popular do que Bandeira,sempre foi.

Armando abriu mão de tudo pelometapoema. Sem dúvida é o grande mestreda metapoesia brasileira. Linguagem poéticaque, definitivamente, não cabe no novo século.

O ar de Arnaldo AntunesO que tem de passional na apresentação de

Heloisa Buarque de Hollanda para MelhoresPoemas Armando Freitas Filho, tem de poéticona apresentação de Noemi Jaffe neste MelhoresPoemas Arnaldo Antunes. A apresentação é quaseque meramente poética. Dispensável até.

Arnaldo Antunes busca atualizar, semmuito sucesso, a poesia Concreta dos irmãosCampos, sua influência maior. Demarcadainfluência também de Décio Pignatari eCassiano Ricardo.

A poesia de AA é a antítese da poesia deArmando Freitas Filho. O que Armando temde "encrenca" (palavra usada pelo próprio AFFpara definir sua poética) a de Arnaldo tem de"ordeira".

Os melhores poemas do livro são os quebrincam com as palavras despertando osfonemas sintáticos.

Mas, quando o assunto é poesia visual, opoeta deixa a desejar. Notar também que suapoesia tem diálogo incessante com a letra demúsica.

O poema "agouro", de 2 ou + corpos no mesmoespaço, é muito bom. O poema vaidesaparecendo na página. Senti falta, porém,de uma última página onde o poemadesaparece por inteiro.

Por sua vez, Arnaldo Antunes é o mestreda semiótica na poesia brasileira.

*ESCRITOR, POETA E RESENHISTA LITERÁRIO. AUTOR DOS LIVROS BINGO!

(2003), CRACK (2009). TAMBÉM É AUTOR DE CEGO ADERALDO (2010).

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38 | João Pessoa, setembro de 2010 A UNIÃO

LUÍS FELIPE CRISTÓVÃO*

poesia de Jorge Melícias é, muitoprovavelmente, o mais arrojadoprojecto entre poetas luso-contemporâneos. Apesar de, numavisão geral, se possa aproximarMelícias dos epígonos de HerbertoHelder, a verdade é que a sua poesiaestá muito longe do que é preconizadopelo grande nome vivo da poesiaportuguesa.

Jorge Melícias nasceu em 1970,sendo que o seu primeiro livro foipublicado em 1994, com o títuloAhagahe, na editora A Mar Arte, deCoimbra, cidade onde o poeta aindahoje reside. Na mesma editora saíramA Um Deus de Olhos de Graça, em 1995, eO Tempo do Foaron, em 1998. Estes trêslivros estão hoje excluídos daquilo queo poeta considera a sua poesiareunida, por serem fruto de um tempoanterior ao do amadurecimento dasua escrita. Assim, considera-seiniciação ao remorso, com primeiraedição em 1998, na mesma editoraconimbricense, o seu primeiro livro.Foi com este volume que JorgeMelícias ganhou reconhecimento dos

seus pares, especialmente com a reediçãodo mesmo nas Edições Quasi, casaeditorial responsável pela edição dosprincipais poetas portugueses naentrada do Séc.XXI.

Em iniciação ao remorso, Jorge Melíciasenquadrar-se-ia ainda nas tendênciasmais abrangentes da poesia portuguesa,dotando o seu discurso poético de umlirismo enquadrado numa temáticapessoal e íntima. A partir da edição de aluz nos pulmões, em 2000, torna-se claro ocaminho que Melícias pretende

Fortunato, ainda na CENA 6 do conto "A causasecreta", volta a dar vazão ao seu sadismo, zombandode Gouveia, rindo muito ao se lembrar dele. E o riso -registra o narrador - "Não era o riso da dobrez [dofingimento]. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso deleera jovial e franco". Ou seja, um riso autêntico -expressão da alma. E aqui se desfaz o que se fez: aexpressão feliz (e ambígua) de Maria Luísa ao saber,pela narrativa de Garcia, da boa atitude do marido.Porém, Garcia, ainda preocupado (e mais ardiloso) emagradar Maria Luísa, em recuperar a expressão feliz damulher, volta a falar do episódio enquanto "dedicação",enquanto um préstimo de Fortunato; fala das "rarasqualidades de enfermeiro" de Fortunato: "...tão bom

MACHADO DE ASSIS E O SADISMO (5)

RODAPÉ

enfermeiro, concluiu ele [Garcia], que, se algum diafundar uma casa de saúde, irei convidá-lo". Daí é quea idéia de fundação da casa de saúde irá se "meter"na cabeça de Fortunato (um "capitalista" - o quesupõe, no caso, um investidor -, como já informara,de passagem, o narrador no episódio envolvendoGouveia). E o jovem médico res iste, recusainicialmente, mas não consegue demover Fortunatoda idéia de tê-lo como sócio. CENA 7: De início, registrao rápido monólogo de Garcia antes de decidir,finalmente, e após dias, ser sócio de Fortunato nacasa de saúde. Garcia, no monólogo, conclui que acasa de saúde pode vir a ser "um bom negócio paraambos". Portanto, intensif ica-se o seu jogo deinteresses materiais na relação com Fortunato. O jovemmédico já não se atrai apenas por um caso de

POETA PORTUGUÊS É PESQUISADOR DA LÍNGUA, ALÉM DESER TRADUTOR DE ISIDORE DUCASS E JOHN PERSE

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Jorge Melícias

Luso-contemporâneos:

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seguir. Poemas cada vez maiscurtos, recortados de uminvisível texto maior, onde apresença de cada palavra épesada, tendo em conta o efeitopretendido pelo poema. Paraalém disso, a presença cada vezmais habitual de uma temáticada violência, como opção deenfrentar o mundo.

Segue-se a publicação de o domcircunscrito, em 2003, e incubus, em2004, ambos nas Edições Quasi,e depois a longa blasfémia, em2006, pela editora ObjectoCardíaco. Toda a poesia de JorgeMelícias, que inclui ainda o livroagma, de 2008, está reunida novolume disrupção, publicadopela Cosmorama em 2008. Nestaúltima editora, Jorge Melíciasassume também a direcçãoeditorial.

A poesia de Jorge Melícias estádotada de uma outracaracterística, que será aquelaque lhe é mais distintiva,acumulando com isso o facto deser a que mais polémica temcausado entre os leitoresportugueses. Melícias é umpesquisador da língua e utiliza,na sua poesia, termos nãocorrentes na linguagem nativa.Assim, ler um poema de JorgeMelícias é uma aventuralinguística extrema, impondo aoleitor a decisão sobre traduzir(ou não) o poema tal como nos éapresentado.

Na minha opinião, a poesia deJorge Melícias ganha nessaopção de leitura sem tradução.É perante a dificuldade que eleimpõe ao leitor, esse teste àresistência da poesia, que está abeleza deste texto, umaexperiência de leitura radical ecomplexa, que é um objectoímpar da poesia portuguesa.

Não deixa de ser irónico,ainda, que Jorge Melícias tenhauma intensa actividade detradutor de poetas como Saint-John Perse, Leonardo MaríaPanero, António Gamoneda,Isidore Ducasse, Miriam Reyes,entre outros. Como se noconfronto com a poesia emlíngua estrangeira, Melíciasencontrasse uma delicada formade lidar com o seu próprioacidente.

Rinaldo de Fernandes*

*ESCRITOR E PROFESSOR DE LITERATURA DA UFPB. JÁ PUBLICOU LIVROS DE

CONTOS E O ROMANCE RITA NO POMAR

"decomposição de caráter", de estudo da alma: háum "negócio" a ser gerido, a ser tocado pra frente. Ehá ainda Maria Luísa, que, ao saber da fundação dacasa de saúde, fica entre aflita e aborrecida; receosa,reprova a idéia: "Criatura nervosa e frágil, padecia sócom a idéia de que o marido tivesse de viver emcontato com enfermidades humanas, mas não ousouopor-se-lhe, e curvou a cabeça". Aqui, portanto, oreforço da imagem de mulher resignada, anuladadiante do marido - e agora também "nervosa". SeMaria Luísa "padece" com o fato de o marido tercontato com "enfermidades humanas" é porque,presume-se, pela proximidade, pela convivência, elajá desconfia ou mesmo já sabe quem ele é. Sabe deseu profundo sadismo. E se, diante de Fortunato, ela"curva e cabeça" sem esboçar qualquer reação, raiva,

desgosto - é porque percebe que, se mostrar que"padece", poderá alimentar ainda mais o sadismo dele,que, por um lado, se vale da dor física alheia e, poroutro, da "dor moral". Fundada a casa de saúde,Fortunato é abnegado, se aplicando ao trabalho,tornando-se "o próprio administrador e chefe deenfermeiros". E ainda: "examinava tudo, ordenavatudo, compras e caldos, drogas e contas". Claro: talaplicação às tarefas também é suspeita - pelo que atéaqui foi mostrado pelo narrador acerca da naturezasádica de Fortunato, pelo próprio "padecimento" deMaria Luísa ao pensar na proximidade do marido comos enfermos.

Há sempre um homem sócomo uma torre de sal.

Em redor da mesa as mulheresque amamvão lentamente apodrecendo.

Por vezes guincham

e as pedras que seguram nas mãosabrem-se como têmporas.

Mas a maior parte da noitevigiam em silênciopara terem a certeza de quemorrem.

(iniciação ao remorso, 1998)

Um nervo arrebatado à exactidão.

Sobre ele edifico o método.

Há o propósito e o axioma implícito:a queda não é interceptável.

Chega-se ao crime pelo exercício daevidência

(incubus, 2004)

Vi as crias à solta pela insídia.Na fronte ostentavam

a longa blasfémia.

(a longa blasfémia, 2006)

Trabalho a crueldadepelo lado da exuberância.

Como instigando a carneà vernação das goivas.

(agma, 2008)

ALGUNS POEMASMais do que um epígono de

Herberto Hélder, Melícias

tem apostado no poema

curto e a sua poesia tem

causado polêmica entre os

leitores portugueses por

utilizar termos não

correntes na língua nativa

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Gilberto de Sousa Lucena*

m dos gêneros poéticos maistradicionais praticados pelos poetasde cordel nordestinos continua sendoo conhecido por "desafio" ou "peleja".Esta modalidade de poesia popularremonta à tradição poética medieval ecompreende uma "competição" emforma de diálogo quase sempre em tomde provocação entre dois ou maispoetas cujo objetivo, não raro, é exporao ridículo os opositores confrontados.

Comparativamente falando, entreas composições dos trovadoresmedievais galego-portugueses há achamada tensó (tensão), uma formafixa de cantiga ou poema, semelhanteao "desafio", que segundo omedievalista francês Pierre Bec

correspondia a uma "discussão entre doisou mais trovadores que defendiamrespectivamente opiniões opostas,relativas a uma determinada questão"(BEC, 1979, p.42 apud CORREIA & VANWOENSEL, 1998, p.83). O folheto de cordel- inédito - que aqui abordamos, da autoriado cordelista cearense F. Marques,corresponde a uma insólita "tensão" ou"desafio" entre dois dos mais expressivose conhecidos poetas de cordel nordestinosque nos dão bem a noção do que talmodalidade poética representa.

Ao iniciar seus versos, a voz que narranos esclarece ser nossa literatura e poesia"obra-prima de gigantes" fruto, à modagrandiosa dos clássicos épicos greco-latinos, da "herança fértil dos deuses". Istopara se referir à "peleja" inusitada - (porse dar no céu) - de "arautos

Confronto inusitadoentre dois arautos da poesia de cordel

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populares/ mercadores deemoção", protagonizada pelasextraordinárias personagens deZé Limeira (1886-1954) - oconhecido "poeta do absurdo" - ePatativa do Assaré (1909-2002).

Nesse "encontro inusitado", a"vasta sapiência do caboclosertanejo" se faz presente emversos desafiadores que exigem decada um dos bardos experiência,dom poético, conhecimento e a"mais sublime visão" das coisas.Segundo o narrador, elementosindispensáveis "Para mostrar, àsua gente,/ A vida como ela/ é". A"peleja" propriamente dita entreos dois famosos "menestréis"começa na décima estrofe, onde selê que "Um astuto Patativa"desafiou Zé Limeira com o verso:"Cante lá, que eu/ canto cá!". Por seencontrarem no céu, Patativa doAssaré tem que ouvir do seudesafiador: "Eu canto sem me /assombrar/ de gente que já/morreu" e que ainda apela paraque seu parceiro "Esqueça o rei na/barriga" porque, segundo Limeira,no céu "não tem/ fariseu".

Pelo tom crescente de

confronto ou de desafio entre osdois personagens, a resposta dePatativa é imediata e em formade galhofa. Desse modo, refuta opoeta Zé Limeira com estesversos: "Já convivi com ateu/ quede lembrar me dá dó/ só nãopensei que, um dia,/ fosseencontrar um pior,/ Inda maisaqui no céu/ onde a peneira émaior". De modo subliminar, opoeta insinua haver outro lugar

que se opõe ao céu (já que paranele se chegar "a peneira émaior"). Temos claramente, apartir daí, a noção de que céu einferno traduzem ou sugeremtambém o sentido da "peleja",uma situação que tambémcorresponde ao contraste do teordo discurso poético entre os doiscontendores.

Zé Limeira se apressa emapregoar que nessa "prosa" ele segarante pelo que fala, sendocapaz de até não se calar casoperca sua língua. No que ouve,em tom de superioridade, de umaltivo Patativa: "Com seu versonão me entalo/ pois sou pássarocanoro". Ao em seguida seidentificar, orgulhosamente, como uirapuru - (uma ave rara decanto apreciável e que, segundoo poeta, "canta com decoro") -Patativa compara Zé Limeira,levando em consideração a corda sua pele, com a "graúna" aoafirmar que o "trino" do seuadversário é de "agouro".

O confronto toma rumosgraves a partir da "resposta" deLimeira a Patativa do

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Folheto de F. Marques,

corresponde a uma

insólita "tensão" ou

"desafio" entre dois dos

mais expressivos e

conhecidos poetas de

cordel nordestinos:

Patativa do Assaré

e Zé Limeira

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Assaré através dos versos:"Pra mim você é calouro,/ nãosabe o que tá dizendo./ Não falacoisa com coisa;/ por isso, vivesofrendo./ Seu lugar é na caldeira/que Satã já tá mexendo". Noâmbito da cultura popular, afigura do demônio representa omal extremo. Pior ainda, é a"entidade" que atenta contra avida e as fontes que a alimentam.Nada pode ser comparado à açãomaligna do Diabo na mente dohomem popular, que égeralmente associado aos valorescristãos ou à humildade esimplicidade do mundo rural. Deacordo com o Novo Testamento,Satanás é um "anjo decaído" quetentou Nosso Senhor Jesus Cristono deserto, e - possivelmente -pela sórdida tradição que oenvolve acabou sendo mal vistoe banido do universo culturalpopular.

Q u a s e s e m p r e S a t a n á sa p a r e c e n a l i t e r a t u r a ( d ecordel, principalmente) comof i g u r a m a c u l a d a , a s t u t a ,libertina, dissoluta, exposta aoridículo e semeadora de todasas desgraças. É bem provável quepor sua indignidade e a carganegativa que o envolve Satã pôdeprovocar em um dos contendoresa feitura destes versos: "O Diabotá é/ querendo/ reparar o vil/engano./ Que logrou a/ baraúna/nessa mudança de plano./ Agora,Pedro/ padece,/ num terrível/desengano".

De modo progressivo, oagravamento da discussão vaiestabelecendo para o leitor (queseguramente pretenderá muitoconhecer o desfecho da contenda),uma forma de suspense, levando"o poeta do absurdo" a agoraversejar em tom de ameaça aoseu desafiador: "Cê vai entrarpelo/ cano/ ou não me/ chamoLimeira./ Quando entro/ numabriga,/ não gosto de/ tremedeira./Se a viola não/ resolve,/ decido na/bagaceira". Numa espécie demaliciosa estratégia, semprecom o intuito de provocarainda mais seu opositor,Patativa continua o desafiomantendo-se aparentementetranqüilo, alfinetando-o com a

De forma indubitável,

a tradição da literatura

de cordel permanece viva

e a atrair admiradores,

se constituindo fonte

inesgotável de uma

poesia que nos põe a

par de inúmeros aspectos

da cultura popular

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insultosa assertiva de que a"prosa" dele "é bem/ rasteira",certificando-se de que Zé Limeiranão passa de "um/ aprendiz" com"voz fina" de "atriz". Além disso,é "Judas" que para ele (Patativa)"Não é páreo".

O desafio poético entre os dois"trovadores" continua comagressões mútuas entre aqueleque nunca foge da rima mas éacusado de fazer "grande/mistura", se defendendo aoafirmar não ser "nenhum/paspalho" para "ouvir tanta/tolice". Apesar da exaltação deânimos prevalecer na maioriadas estrofes desta insólita"peleja", o bom senso passa aprevalecer a partir do momentoem que Patativa do Assaréacorda para o fato de que estáenvolvido num "negócio semfim" e reconhece que não quer"viver assim" pois a "eternidadeé luxo/ somente pro Criador". Apartir daí o leitor é encaminhadopara um desfecho amigável entreos dois poetas. É Patativa quempropõe que a viola os una,reconhecendo que "Umatrégua é prudente" e "o pinho"lhe "cativa", chegando a elogiaro trovador Zé Limeira considerandoser sua "presença altiva" nacantoria.

Por sua vez, o poeta narradordo cordel como uma espécie deCorifeu - aquele tradicionalpersonagem já presente noantigo teatro grego - torna-se

comentarista do entrecho da suaprópria composição, se voltandopara o leitor a sugerir que "Essaaliança motiva/ uma parelha deprosa,/ no resgate da cultura/dessa gente tão honrosa,/ Queteima, chora e sofre,/ Mas, nofundo, é ditosa".

O eu que fala no poema retirado embate poético entre os doisfamosos "menestréis" nordestinosgrande "lição" e conclui seu cordelcom uma criativa estrofedestacando seu nome, formadopelas primeiras letras que iniciamcada um dos versos (o que resultaem acróstico). Assim, temos aseguinte conclusão partida dopróprio poeta narrador: "Fico pordemais contente,/ Mergulhadonesta prosa,/ À mercê do solnascente,/ Resplendendo a luzformosa/ Que transcende e fazviver.// Ungidos, em plena glória,/Esses vates da história/ Sãoministros do saber".

De forma indubitável, a tradiçãoda literatura de cordel permaneceviva e a atrair admiradores, seconstituindo fonte inesgotável deuma poesia que nos põe a par deinúmeros aspectos da culturapopular, que acabam nospropiciando conhecimento e lições devida. Acreditamos ser este EncontroInusitado de Zé Limeira comPatativa do Assaré significativacontribuição do poeta cearense F.Marques para que a poesia docordel continue se perpetuando. I

Bibliografia :*BEC, Pierre . Anthologie desTroubadours. Paris: UGE - 10/18,1979. CORREIA, Francisco JoséGomes (Chico Viana) & VANWOENSEL, Maurice J. F. PoesiaMedieval Ontem e Hoje: Estudose Traduções. João Pessoa: Edito-ra Universitária/Centro de Ciên-cias Humanas, Letras e Artes/Universidade Federal da Paraí-ba, 1998. (Edições CCHLA).

*MESTRE EM LITERATURA BRASILEIRA E DOUTO-

RANDO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

LETRAS DA UFPB.