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i Equipe nº. 7240 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS POPULAÇÃO INDÍGENA ARICAPU E IMIGRANTES DA REPÚBLICA DE MIROKAI VS. REPÚBLICA FEDERAL DE TUCANOS MEMORIAL DOS REPRESENTANTES DAS VÍTIMAS 2011

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i

Equipe nº. 7240

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

POPULAÇÃO INDÍGENA ARICAPU E IMIGRANTES DA REPÚBLICA DE MIROKAI

VS.

REPÚBLICA FEDERAL DE TUCANOS

MEMORIAL DOS

REPRESENTANTES DAS VÍTIMAS

2011

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ÍNDICE

ÍNDICE _______________________________________________________________ ii

REFERÊNCIA __________________________________________________________ iii

Documentos legais______________________________________________________ iii

Corte Interamericana de Direitos Humanos ___________________________________ iv

Comissão Interamericana de Direitos Humanos ________________________________ v

Comissão Africana de Direitos Humanos _____________________________________ v

Doutrina _____________________________________________________________ v

LISTA DE ABREVIATURAS ______________________________________________ vi

CONTEXTO ____________________________________________________________ 1

NARRATIVA DOS FATOS ________________________________________________ 3

PRELIMINARES ________________________________________________________ 7

TEMAS NECESSÁRIOS À MELHOR COMPREENSÃO DO CASO ________________ 8

A terra indígena e a manifestação do Sagrado no espaço _________________________ 8

A população imigrante enquanto Refugiada Ambiental __________________________ 8

MÉRITO ______________________________________________________________ 15

A República dos Tucanos violou os arts. 4 e 5 com relação ao art. 1.1 da CADH ______ 15

A República dos Tucanos violou os arts. 8 e 25 com relação ao art. 1.1 da CADH _____ 20

A República dos Tucanos violou os arts. 21 e 22 com relação ao art. 1.1 da CADH ____ 24

A República dos Tucanos violou o art. 24 em relação com o art. 1.1 da CADH _______ 26

A República dos Tucanos violou o art. 11 do Protocolo de San Salvador ____________ 30

MEDIDAS PROVISÓRIAS _______________________________________________ 32

PEDIDO ______________________________________________________________ 33

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iii

REFERÊNCIA

Documentos legais CorteIDH. Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Aprovado pela Corte no seu LXXXV Período Ordinário de Sessões celebrado de 16 a 28 de novembro de 2009. OEA. Carta Democrática Interamericana. Aprovada na vigésimo oitavo período de extraordinário de sessões, primeira sessão plenária, realizada em 11 de setembro de 2001, em Lima, Perú. _______. Carta da Organização dos Estados Americanos. Assinada em Bogotá em 1948 e reformada pelo Protocolo de Buenos Aires em 1967, pelo Protocolo de Cartagena das Índias em 1985, pelo Protocolo de Washington em 1992, e pelo Protocolo de Manágua em 1993. _______. Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José). Adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. _______. Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), 1988. ONU. Comitê de Direitos Humanos da ONU, Subcomissão de Prevenção de Discriminação e Proteção das Minorias, Directrices completas para los derechos humanos en relación con los desplazamientos basados en el desarrollo, U.N. Doc E/CN.4/Sub.2/1997/7 Anexo, 2 de julio de 1997. _______. Convenção de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados. Adotada em 28 de julho de 1951 pela Conferência das Nações Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos Refugiados e Apátridas. convocada pela Resolução n. 429 (V) da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 14 de dezembro de 1950. Entrou em vigor em 22 de abril de 1954, de acordo com o artigo 43. Série Tratados da ONU, Nº 2545, Vol. 189, p. 137. _______. Declaração da Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente Humano (Declaração de Estocolmo), 1972. _______. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Assembleia Geral, 107ª Sessão Plenária, 13 de setembro de 2007. _______. Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92). Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento, 1992. Declaração de Cartagena sobre os Refugiados, 1984. Adotada pelo “Colóquio sobre Proteção Internacional dos Refugiados na América Central, México e Panamá: Problemas Jurídicos e Humanitários”, realizado em Cartagena, Colômbia, entre 19 e 22 de novembro de 1984. Plan de Acción de la Segunda Cumbre de las Américas. Declaración de Princípios. Suscrito en Santiago de Chile a 19 días del mes de abril de 1998.

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iv

Corte Interamericana de Direitos Humanos CorteIDH. Caso Baena Ricardo y otros Vs. Panamá. Competencia. Sentencia de 28 de noviembre de 2003. Serie C No. 104. _______. Caso Bámaca Velásquez Vs. Guatemala. Fondo. Sentencia de 25 de noviembre de 2000. Serie C No. 70. _______. Caso Comunidad Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 29 de marzo de 2006. Serie C No. 146. _______. Caso Comunidad Indígena Xákmok Kásek. Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de agosto de 2010 Serie C No. 214. _______. Caso Comunidad Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay. Interpretación de la Sentencia de Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de febrero de 2006. Serie C No. 142. _______. Caso Comunidad Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay. Fondo Reparaciones y Costas. Sentencia 17 de junio de 2005. Serie C No. 125. _______. Caso de la Comunidad Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicaragua. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 31 de agosto de 2001. Serie C No. 79. _______. Caso de la Comunidad Moiwana Vs. Surinam. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia 15 de junio de 2005. Serie C No. 124. _______. Caso de los Hermanos Gómez Paquiyauri Vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 8 de julio de 2004. Serie C No. 110. _______. Caso "Instituto de Reeducación del Menor" Vs. Paraguay. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 2 de septiembre de 2004. Serie C No. 112. _______. Caso Juan Humberto Sánchez Vs. Honduras. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 7 de junio de 2003. Serie C No. 99. _______. Caso de la Masacre de Mapiripán Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de septiembre de 2005. Serie C No. 134a. _______. Caso de la Masacre de Pueblo Bello Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 31 de enero de 2006. Serie C No. 140. _______. Caso Myrna Mack Chang Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 25 de noviembre de 2003. Serie C No. 101. _______. Caso de los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros) Vs. Guatemala. Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de mayo de 2001. Serie C No. 77.

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v

_______. Caso del Pueblo Saramaka. Vs. Surinam. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de noviembre de 2007. Serie C No. 172. Comissão Interamericana de Direitos Humanos CIDH. Caso Margarita Cecilia Barbería Miranda vs. Chile. Informe nº 59/04 de 13 de outubro de 2004. Peticion 292/03. _______. Caso Mercedes Julia Huenteao Beroiza e outras vs. Chile. Relatório de Solução Amistosa de 11 de março de 2004, Relatório No. 30/04. Petição No. 4617/02. _______. Caso Pueblo Yanomami vs. Brasil. Resolución nº 12/85. Caso 7615. 5 de marzo de 1985. Comissão Africana de Direitos Humanos Comissão Africana de Direitos Humanos. Caso 276/2003 – Centre for Minority Rights Development and Minority Rights Group International on behalf of Endorois Welfare Council vs. Kenya. Doutrina AIDA, Associação Interamericana para a Defesa do Ambiente. Guia de Defesa Ambiental: Construindo a estratégia para o litígio de casos diante do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. [S.I.]: 2010. Disponível em: <http://www.aidaamericas.org/sites/ default/files/GUIA%20AIDA%20PORTUGUESWEBSITE_0.pdf>. Acesso em: 08 nov. 2010. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2002. _______. A Política. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2001.

CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008. DE MELO FRANCO, Afonso Arinos. Rodrigues Alves: apogeu e declínio do presidencialismo, volume I. Brasília: Senado Federal, 2001. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2010. HAMBLOCH, Ernest. Sua Majestade o Presidente da República: um estudo do Brasil constitucional (1889-1934). Brasília: Senado Federal, 2000. LISBOA, Marijane Vieira; ZAGALLO, José Guilherme Carvalho (orgs). Relatoria nacional do direito humano ao meio ambiente: Relatório da missão Xingu sobre violações de direitos humanos no licenciamento da usina hidrelétrica de Belo Monte. Rio de Janeiro, abril de 2010. Disponível em <http://www.xinguvivo.org.br/2010/10/14/impactos-sociais/>. Acesso em: 20 out. 2010.

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MAB, Movimento dos Atingidos por Barragens. Água, Minérios e Modelo Energético: Para que? E Para quem? [S.I.]: 2008. Disponível em: <http://www.biodiversidadla.org/ Principal/Contenido/Documentos/Comercio_Biopirateria_y_Derechos_de_Propiedad_Intelectual/Agua_Minerios_e_Modelo_Energetico_Para_que_E_Para_quem>. Acesso em: 08 nov. 2010. OTTO, Rudolf. O Sagrado. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis; Vozes, 2007. Portal Ecodebate. Hidrelétricas representam ameaça para povos indígenas, adverte relatório. [S.I.]: 2010. Disponível em: <http://www.ecodebate.com.br/2010/08/12/ hidreletricas-representam-ameaca-para-povos-indigenas-adverte-relatorio/>. Acesso em 10 nov. 2010. RAIOL, Ivanilson Paulo Corrêa. Ultrapassando fronteiras: a proteção jurídica dos refugiados ambientais. Porto Alegre, Núria Fabris. ed., 2010. LISTA DE ABREVIATURAS

Art.

CADH ou Convenção Americana

CIDH ou Comissão

CorteIDH ou Corte

DESC’s

Drs.

IMA

LOA

OEA

OIT

ONU

Pág.

Par. ou §

Artigo

Convenção Americana de Direitos Humanos

Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Corte Interamericana de Direitos Humanos

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

Doutores

Instituto Nacional do Meio Ambiente

Lei Orçamentária Anual

Organização dos Estados Americanos

Organização Internacional do Trabalho

Organização das Nações Unidas

Página

Parágrafo

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CONTEXTO

1. Historicamente, a República dos Tucanos é exemplo ímpar em termos de tradição

democrática e estabilidade política, desde sua independência em relação à Espanha. Sua

experiência política foi uma verdadeira “singularidade democrática” em face do quadro geral

das ex-colônias espanholas.

2. Enquanto os outros países da América Espanhola tiveram democracias muito instáveis e

fragilizadas pelo caudilhismo, com profusão de ditaduras, guerras civis, golpes de Estado e

violências sem fim, a República dos Tucanos foi uma exceção, com uma democracia estável,

na qual a alternância do poder, executivo e legislativo, é realizada ao fim de cada quadriênio.

3. No plano externo, passou por um período conturbado em termos de delimitação de

fronteiras com o país vizinho, problema típico de países recém-descolonizados. “Na América

do Sul – e também na do Norte – as questões territoriais foram as causas primeiras dos

conflitos bélicos”1. Uma guerra foi mantida contra o Principado de Araras, durante o início

do século XIX, porém, desde a solução do conflito, viabilizada por uma comissão conjunta

formada pelos países em litígio, a política externa da República dos Tucanos em relação ao

seu vizinho prioriza a paz e a cooperação recíproca, visando dirimir os conflitos relacionados

com os limites de sua fronteiras, acordo este que gera um impacto positivo ao meio ambiente.

4. Atualmente, em decorrência de um modelo de desenvolvimento econômico baseado no

crescimento industrial, há progressiva demanda por energia em quase todos os países da

América Latina, a fim de propiciar a implantação de grandes empreendimentos. Surge, então,

o interesse por parte dos Estados e de empresas multinacionais em utilizar recursos hídricos

para a construção de hidrelétricas.

5. Dentre as formas geradoras de energia, a matriz energética hídrica é vista com grande

interesse por permitir as maiores taxas de lucros, tanto na geração como na distribuição, em

1 DE MELO FRANCO, 2001, p. 341.

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razão de características como a alta produtividade (eficiência energética de 94%, enquanto a

térmica apresenta no máximo 30%), o baixo custo de produção e a possibilidade de

renovação do recurso2.

6. São frequentes as polêmicas e os conflitos em relação aos impactos provocados pelo

planejamento, implantação e operação de barragens para a construção de hidrelétricas em

diversos países, afinal, na maioria das vezes, isso força a saída de grupos indígenas e de

outros povos tradicionais de suas terras.

7. Existem no planeta mais de 45.000 grandes represas construídas que expulsaram mais de

80 milhões de pessoas de suas terras, violando seus direitos e destruindo seus lugares de

habitação. Em 2008 existiam aproximadamente 1.600 represas em construção no mundo, e

ainda centenas de projetos hidrelétricos em expansão na América Latina3.

8. A título de exemplo, no Peru, somente em 2010, seis projetos de represas inundariam

terras ao longo do rio Ene, lar dos Asháninka, o maior grupo indígena do país4. No Brasil

uma série de barragens está planejada para o rio Madeira; as represas de Jirau e Santo

Antônio vão afetar muitas tribos; a megarrepresa de Belo Monte, no rio Xingu, será a terceira

maior do mundo e prevê a inundação de 516 km² de floresta amazônica5. Na Guiana, grandes

2 MAB, Movimento dos Atingidos por Barragens. Água, Minérios e Modelo Energético: Para que? E Para

quem? [S.I.]: 2008. Disponível em: <http://www.biodiversidadla.org/Principal/Contenido/Documentos/

Comercio_Biopirateria_y_Derechos_de_Propiedad_Intelectual/Agua_Minerios_e_Modelo_Energetico_Para_qu

e_E_Para_quem>. Acesso em: 08 nov. 2010.

3 Idem.

4 Portal Ecodebate. Hidrelétricas representam ameaça para povos indígenas, adverte relatório. [S.I.]: 2010.

Disponível em: <http://www.ecodebate.com.br/2010/08/12/ hidreletricas-representam-ameaca-para-povos-

indigenas-adverte-relatorio/>. Acesso em 10 nov. 2010.

5 Relatoria nacional do direito humano ao meio ambiente: Relatório da missão Xingu sobre violações de

direitos humanos no licenciamento da usina hidrelétrica de Belo Monte. Rio de Janeiro, abril de 2010. p. 11.

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barragens estão previstas para a região entre o norte do Brasil e o sul da Guiana, incluindo a

controversa represa do Alto Mazaruni, interrompida após protestos, mas que provavelmente

será ressuscitada6.

9. A discussão a respeito dos direitos das populações indígenas não é novidade no plano

internacional. São povos considerados vulneráveis, possuindo características distintas seja no

plano social ou econômico e que gozam de proteção especial, tanto no direito interno quanto

no internacional7.

10. Além destes, há a situação dos indivíduos que saem do seu país de origem por ocasião de

desastres naturais ou mudanças climáticas, chamados “refugiados ambientais”. O fluxo do

movimento migratório em decorrência dos fatores citados tornou-se intenso nos últimos anos,

merecendo a atenção dos governos ao redor do mundo. Entretanto, por mais que o tema seja

de relevância atual, quase não há legislação ou jurisprudência sobre o assunto.

11. Em face de tais considerações, é necessário que os povos indígenas e as populações

imigrantes sejam protegidos em virtude da vulnerabilidade de ambos. Destarte, na República

dos Tucanos, os dois grupos tiveram direitos violados e serão prejudicados com a construção

da Hidrelétrica de Cinco Voltas.

NARRATIVA DOS FATOS

12. A República dos Tucanos é uma ex-colônia espanhola que conquistou sua independência

no século XIX. Desde então se estabeleceu como uma República Democrática que, após

anos, tendo a sua economia alimentada pela agricultura, obteve um significativo avanço

tecnológico, visando maior produção e movimentação econômica, o que acarretou em uma

perspectiva de necessidade energética muito grande para um futuro próximo.

6 Portal Ecodebate. Hidrelétricas representam ameaça para povos indígenas, adverte relatório. 2010.

7 A exemplo: Convenção nº 169 OIT sobre Povos Indígenas e Tribais; Declaração sobre os Direitos dos Povos

Indígenas.

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13. Com a carência energética, após estudos realizados na década de 1980, foi constatado

que a confluência dos Rios Betara e Corvina, na região Norte do país, seria o local onde o

funcionamento de uma usina hidrelétrica teria melhor aproveitamento energético, surgindo

daí o projeto para a construção da Hidrelétrica de Cinco Voltas, que deverá produzir 11.000

megawatts/hora de energia. Ocorre que o lugar escolhido para este megaprojeto está

localizado em meio ao território indígena Aricapu, bem como em meio às terras concedidas

ao povo imigrante de Mirokai.

14. A população indígena é caracterizada por ser um dos mais antigos e tradicionais grupos

que habitam no local, utilizando dos dois rios como meios crucias para a sua sobrevivência

por se tratar de um grupo de caçadores que plantam e colhem os próprios alimentos. O

território em questão foi oficializado como propriedade indígena através do Ato de

Reconhecimento de Terras Indígenas no ano de 1975, quando a República dos Tucanos já

detinha boas relações para com os Aricapu, inclusive sendo responsável por prover à

população serviços de educação e saúde.

15. Os imigrantes da República de Mirokai chegaram a Tucanos em 1975, após a destruição

da costa de seu país de origem por sucessivas ondas tsunamis, e fixaram residência e foram

regularizados, adequando-se às normas da Agência Nacional de Auxílio aos Estrangeiros

(ANAE), e obtendo, passados 5 anos de sua chegada, os títulos de posse do território onde se

estabeleceram, exatamente na área onde agora se pretende construir a Hidrelétrica de Cinco

Voltas. Eles sobrevivem da pesca e da exploração dos recursos naturais provenientes da área,

além da venda de pequenos objetos manufaturados.

16. Vale ressaltar que há cooperação e boa relação entre os imigrantes e os indígenas,

tamanha a identidade dos dois povos com a área que se pretende construir a Hidrelétrica de

Cinco Voltas. Esta área, para os Aricapu, representa toda a sua história, sendo considerado

um território sagrado para suas crenças e cultura; para a comunidade imigrante dos

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mirokaenses, a área atingida representa a salvação dos mesmos, por se tratar, como já

mencionado, de um refúgio a problemas ambientais já sofridos.

17. Apesar da extrema ligação entre povos que serão atingidos e a terra, foi dado início ao

projeto e às obras para a construção da hidrelétrica, em que pese ter ocorrido em meio a

discussões e reclamações por parte das comunidades autoras desta demanda.

18. Para a viabilização da construção da hidrelétrica, a República dos Tucanos estabeleceu

um plano de deslocamento, baseado em uma norma interna sobre deslocados. Tal ação

acarretaria em uma ruptura das estruturas das comunidades, ante a separação dos integrantes.

A comunidade Aricapu está dividida em 15 vilas totalizando, aproximadamente, 3.250 (três

mil duzentos e cinquenta) pessoas, sendo que 1.550 (mil quinhentos e cinquenta) seriam

deslocadas; e dos quase 10.000 (dez mil) imigrantes de Mirokai, 5.000 (cinco mil) seriam

afetados pelo deslocamento, segundo dados do Relatório de Impactos Ambientais da obra8.

19. Assim, além de operar o deslocamento de uma comunidade que defende o seu território

sagrado, onde estão depositados todos os seus costumes, crenças e características, e de outra

que já passou por um complicado processo de deslocamento e readaptação para uma nova

vida, a República dos Tucanos almeja separar os membros dessas comunidades.

20. Mesmo com tais complicações - tamanho o interesse da República dos Tucanos pela obra

- a aprovação do projeto, passando por fases de análise, relatórios e licitação, durou menos de

4 (quatro) meses, sendo todo o procedimento realizado de forma açodada, o que se contrapõe,

inclusive, à própria história do país, que desde sempre se classificou como uma democracia e,

de repente, passa a tomar decisões sem o mínimo de tempo necessário para analisar os reais

anseios e interesses, tanto da população geral quanto da atingida.

21. Para melhor demonstrar os períodos que foram necessários para a aprovação do projeto

da Hidrelétrica de Cinco Voltas, observe-se:

8 Caso hipotético, par. 20.

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a) em outubro de 2009 o Instituto Nacional do Meio Ambiente (IMA) aprovou a licença

prévia nos termos da Lei 8090/1976, sendo ela inserida, no mesmo mês, no Projeto de Lei da

Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2010;

b) em novembro de 2009 houve a divulgação do edital de licitação;

c) em dezembro de 2009 foi aberto o processo de licitação;

d) em janeiro de 2010 ocorreu a aprovação da LOA de 2010 com as dotações

orçamentárias para a construção da Hidrelétrica de Cinco Voltas.

22. Depois da aprovação do projeto, a empresa LAX (vencedora da licitação) e o IMA

elaboraram conjuntamente o Relatório de Impactos Ambientais a ser analisado pelo próprio

IMA, disponibilizando-o em uma página na internet.

23. Após a publicação do relatório final da empresa LAX, houve uma grande movimentação

contrária por parte dos mirokaenses e Aricapu, ante a falta de comunicação e prévio

consentimento dos mesmos para a continuação do projeto, visto que este se daria em meio às

suas propriedades devidamente reconhecidas pela República dos Tucanos.

24. Com o apelo das populações por sua cultura e história passadas naquele território,

alegando não terem sido devidamente consultadas sobre a implementação do projeto e não

desejarem sair do local mesmo com ajuda financeira, em 20.02.2010 o governo dos Tucanos

prometeu se reunir com as populações atingidas a fim de resolver tal impasse.

25. Apesar da promessa, em 15.03.2010, o relatório final da empresa LAX foi aprovado pelo

IMA, sendo iniciadas as obras em quinze dias.

26. Assim, além de lidar com a violação de seus direitos, os Aricapu e mirokaenses ainda se

depararam com promessas não cumpridas por parte do governo dos Tucanos, o que os levou a

buscar abrigo junto ao Poder Judiciário com um pedido de liminar para a suspensão das obras

iniciadas às pressas.

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27. Em primeiro grau o pedido dos indígenas e imigrantes mirokaenses foi negado em sua

totalidade, com decisão proferida no dia 14.05.2010, o que gerou recurso ao segundo grau, na

Corte de Apelações, onde, em 30.06.2010, a liminar foi deferida para a suspensão das obras.

28. Imediatamente após a liminar, o governo tucano apresentou recurso à Suprema Corte do

país, e no dia 02.08.2010, com pouco mais de um mês de processamento da demanda, houve

o julgamento favorável à República dos Tucanos, sob a alegação de nenhum dos direitos dos

povos terem sido violados, havendo a retomada das obras.

29. Ante a falta de resposta da República dos Tucanos nas vias judicial e administrativa, as

comunidades propuseram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH),

sob a alegação de o Estado ter infringido os arts. 4, 5, 8, 11, 21, 22, 24, 25 em relação ao art.

1.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH); bem como a proteção aos

imigrantes, também em consonância com este último artigo da Convenção; e o art. 11 do

Protocolo de San Salvador.

30. Recebido o peticionamento das vítimas no dia 15.10.2010, a CIDH notificou a República

dos Tucanos para manifestação, tendo como resposta a defesa de não ter violado direito

algum das vítimas pelo simples fato de a República ter realizado os procedimentos de acordo

com as suas normas internas.

31. Após análise, a CIDH tentou mediar um acordo entre as partes, não obtendo sucesso.

Com o impasse ainda presente, a Comissão apresentou o caso à Corte Interamericana de

Direitos Humanos (CorteIDH).

PRELIMINARES

ADMISSIBILIDADE

32. De acordo com o art. 62(3) da CADH, essa Corte detém a competência para processar e

julgar a presente demanda, uma vez que a República dos Tucanos ratificou todos os tratados

interamericanos de direitos humanos, assim como a maioria dos tratados da Organização das

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Nações Unidas (ONU) sobre o assunto. Especificamente, ratificou a CADH em 4 de agosto

de 1991 e reconheceu a competência da CIDH e da CorteIDH em julho de 1992.

33. Essa Corte é competente em razão da pessoa, da matéria, do lugar, e do tempo para

conhecer a demanda. Quanto à matéria, é competente ante a ratificação da República dos

Tucanos sobre a competência contenciosa dessa Corte, possibilitando as vítimas ingressarem

com a presente, sendo elas a população imigrante de Mirokai e a população indígena Aricapu,

que, como sociedade, podem ingressar com esta demanda, como já tem ocorrido em diversos

casos perante essa Corte9.

34. Em razão da matéria é competente ante a violação dos arts. 4, 5, 8, 11, 21, 22, 24, 25

em conformidade com o art. 1.1 da CADH; a proteção aos imigrantes, também em

consonância com este último artigo da Convenção; e o art. 11 do Protocolo de San Salvador.

Em razão do lugar, a Corte é competente, pois todas as violações perpetradas pela República

dos Tucanos se deram dentro da jurisdição desse Estado. Também é competente em razão do

tempo, visto que todas as violações aos Direitos Humanos das vítimas ocorreram após o

reconhecimento, por parte do Estado demandado, da competência contenciosa da CorteIDH.

TEMAS NECESSÁRIOS À MELHOR COMPREENSÃO DO CASO

A terra indígena e a manifestação do Sagrado no espaço

35. Os índios Aricapu consideram o território que habitam como “sagrado para sua cultura

(...)”10. Ora, é patente que a Corte precisa enfrentar a questão do sagrado para melhor decidir

sobre o direito dos indígenas.

36. Desde a obra fundamental de Rudolf Otto, “O Sagrado” 11, 1917, a ciência da religião

tem se centrado na categoria do sagrado como seu campo de estudos específico. Para o

9 CorteIDH. Caso Comunidad Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay. Interpretación de la Sentencia de Fondo,

Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de febrero de 2006. Serie C No. 142.

10 Caso hipotético, par. 24.

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especialista, o Sagrado não é a perfeição moral12, mas sim o “Totalmente Outro”13, não

redutível a conceitos, logo, um mistério, que se vive e se experimenta na religião.

37. A partir desse contexto, o eminente cientista da religião e mitólogo Mircea Eliade (1907-

1986) procurou traçar a essência da religião, expressa na experiência do sagrado:

O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. (...) a manifestação de algo “de ordem diferente” – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo – em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo “natural”, “profano”.14

38. A dessacralização do mundo é um fenômeno da moderna civilização ocidental. Porém,

sociedades tradicionais, tais como as dos indígenas americanos, na medida em que não

tenham sofrido aculturação ou deixado de lado sua religião por conta própria, mantêm o

sagrado como força orientadora da vida social, cheia de sentido existencial:

O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é compreensível, pois para os “primitivos”, como para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência. (...) É, portanto, fácil de compreender que o homem religioso deseja profundamente ser, participar da realidade, saturar-se de poder.15

39. Qual o resultado do manifestar-se o sagrado em algo? A santificação daquele algo.

Santificação no sentido mais originário, que significa separação. Quando irrompe o Sagrado

em algo, este é “destacado” do resto dos entes e ganha uma qualidade excepcional enquanto

oportunidade para comunhão do homem religioso com o sagrado.

40. Este “algo” pode ser a categoria do espaço. Um exemplo óbvio seriam os Templos das

várias religiões. Para o indígena, a terra, onde está o seu povo, é sagrada:

11 OTTO, Rudolf. O Sagrado. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis; Vozes, 2007.

12 O uso secularizado da palavra segue esta definição, p. ex. quando se fala em valores sagrados.

13 O “Ganz Andere”, em alemão.

14 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 17.

15 Idem, ibidem, p 18-19.

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10

Para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras. (...) Há, portanto, um espaço sagrado, e por conseqüência “forte”, significativo, e há outros espaços não-sagrados, e por conseqüência sem estrutura nem consistência (...).16

41. O sagrado faz surgir um espaço organizado, santo, em contraste ao “Caos”, ao espaço

profano. Assim, é possível equiparar a fundação do lugar sagrado à criação do mundo narrada

nos mitos. A terra sagrada é o “mundo” do indígena tradicional.

42. Porém, quais seriam as consequências práticas em relação a tudo isso?

É a rotura operada no espaço que permite a constituição do mundo, porque é ela que descobre o “ponto fixo”, o eixo central de toda a orientação futura. (...) Vemos, portanto, em que medida a descoberta – ou seja, a revelação – do espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso; porque nada pode começar, nada se pode fazer sem uma orientação prévia – e toda orientação implica a aquisição de um ponto fixo. (grifo nosso)17

43. O espaço sagrado permite uma orientação para a vida, uma qualificação do espaço como

valioso para além das preferências subjetivas. Ao invés do “eu gosto deste lugar” e “eu não

gosto”, tem-se o “este é o lugar sagrado e nós temos de respeitá-lo”:

A moralidade não começou com um homem dizendo a outro: “Eu não vou bater em você se você não bater em mim”; não há vestígio de uma transação semelhante. Há, sim, um vestígio de que ambos disseram: “Nós não devemos bater um no outro no lugar sagrado”.18

44. Logo, a perda do lugar sagrado será sempre um trauma muito grande para todo um povo

e, na pior das hipóteses, poderá levar à total desagregação deste.

45. Cabe falar da fundação do lugar sagrado: ela é intermediada por um sinal. “Os homens

não são livres de escolher o terreno sagrado, (...) não fazem mais do que procurá-lo e

descobri-lo”19. Passemos, então, a falar de alguns direitos violados em conexão a isto:

16 Idem, ibidem, p 25.

17 Idem, ibidem, p.26.

18 CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 112-113.

19 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

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a) Direito à igualdade:

46. A questão é investigar se a igualdade refere-se sempre a um tratamento igual, ou se pode

comportar um tratamento desigual em face de desigualdades concretas que a justifiquem no

sentido de conferir maior proteção à pessoa mais vulnerável.

47. Pelo ângulo da igualdade material, surgem os seguintes questionamentos à conduta

estatal: pessoas que têm uma relação de sagrado para com a terra devem ser tratadas da

mesma forma que as pessoas que têm uma relação profana para com a mesma? Quando se faz

necessário desapropriar e/ou desalojar pessoas nestas diferentes condições, é suficiente tomar

as mesmas medidas para ambas?

48. O tratamento dado pelo Estado aos Aricapu pode ser considerado discriminatório por

tratarem os indígenas como pessoas que têm ligação profana com sua terra.

b) Direito à propriedade:

49. O eixo da discussão é o diferente modo dos indígenas visualizarem sua relação com a

terra. Para a maioria das pessoas a terra nada tem de sagrada, ou, se tem tal qualidade, é

apenas uma ideia em torno da qual se especula; porém, para o indígena, isto não é uma

metafísica, mas sim uma experiência, passada de pai para filho.

50. O indígena não encara sua relação com a terra como um dominium, antes como contato

com o sagrado. Assim, ainda que possa ter o direito, o indígena tradicional não alienará sua

terra, pois, se fizesse isso, seria como se estivesse alienando a si mesmo!

51. Assim, a ligação com a terra não é mera questão patrimonial, mas envolve profundos

valores de cunho extrapatrimonial. Como se a propriedade fosse transvalorizada pelos valores

tradicionais, distintos dos valores que, historicamente, cunharam a cultura jurídica ocidental

no que concerne à propriedade da terra.

3) Direito à vida:

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52. Aqui é relevante o conhecimento acumulado pelo povo Aricapu em torno daquele lugar

sagrado no que concerne a sua sobrevivência. Em sendo deslocado para outro lugar, saberá

sobreviver neste? Tirar a propriedade dos indígenas não é tirar sua subsistência, seu

ambiente? Uma indenização simples será suficiente?

53. Ainda que esteja fora da alçada dessa Corte decidir sobre assuntos teológicos, faz-se

necessário observar o sentimento religioso indígena enquanto fator de apego (espiritual) à sua

terra. É este o fato, nada metafísico, mas demasiado humano, que se sustenta como apreciável

em sede deste processo.

54. O envolvimento destes indígenas nos processos democráticos de modo algum anula o

que se tem dito. Se não consideram mais as outras terras como “Caos absoluto”, pelo menos

as consideram como terra “dos outros”, e não “nossa”, porque a “nossa” é sagrada “para o

nosso povo desde muitas gerações”.

55. O povo Aricapu não está inventando que sua terra é sagrada, como se fosse uma criação

subjetiva que poderia se desfazer. Não, a terra é sagrada segundo a tradição. De forma

objetiva, foi justamente a manifestação do sagrado ali que deu uma qualidade excepcional

àquele lugar: a de ser o “mundo” daquele povo.

A população imigrante enquanto Refugiada Ambiental

56. Apesar do constante crescimento tecnológico e econômico, o que inevitavelmente agride

o meio ambiente, e na mesma proporção causa irreparáveis e imensuráveis danos às

populações extremamente ligadas ao mesmo, “a maioria dos governos não reconhece o

declínio ambiental como uma causa legítima do movimento de refugiados, optando, ao invés

disso, por ignorar a causa” 20.

20 Apud. JACOBSON, Jodi L. Environmental Refuges: a yasrdstick of habitability. In: RAIOL, Ivanilson Paulo

Corrêa. Ultrapassando fronteiras: a proteção jurídica dos refugiados ambientais. Porto Alegre: Núria Fabris ed.

2010. p. 157.

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57. A escassez de recursos naturais gerou a necessidade cada vez maior expansão territorial,

o que, inevitavelmente, gerou conflitos de interesses entre os países em expansão. Com isso,

tornou-se mais presente a violação de direitos humanos, ante o desrespeito para com os

estrangeiros, causado pela própria filosofia de expansão inserida na sociedade.

58. Nesse contexto, ocorreram pelo mundo as duas grandes guerras mundiais. Após a

Segunda Grande Guerra, com os países ainda amargando as consequências da mesma, muitas

pessoas foram privadas de seu território, seja por perseguições ainda existentes, seja por

impossibilidade territorial, o que ocasionou um fluxo migratório jamais visto antes.

59. Com o fluxo incontrolável de pessoas em busca de melhores condições de vida em um

novo país, buscando apagar as tristes lembranças, bem como a sua história em seu país de

origem que foi suprimida, muitas acabavam ficando ao relento, sem qualquer tipo de

assistência governamental, bem como eram largadas na clandestinidade e marginalidade.

60. Com a situação se agravando de forma deprimente, e após a criação da ONU, o frágil

Programa de Apoio aos Refugiados que já existia foi ampliado consideravelmente, sobretudo

após a Convenção de 1951, adotada em 28 de julho de 1951 pela Conferência das Nações

Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos Refugiados e Apátridas, que buscou

amenizar as circunstâncias passadas por esses imigrantes, que em sua maioria eram europeus.

61. Apesar da significativa ampliação da proteção aos Refugiados, esta se deu de forma

restrita à época na qual a Convenção de 1951 foi adotada. E ficou mais restrita ainda, porque

se ateve principalmente ao contexto dos imigrantes europeus, por eles terem sido os

principais atingidos pela Segunda Guerra Mundial.

62. Para a referida convenção, a caracterização de uma pessoa como refugiado se dá pela

análise de cinco causas, sendo elas:

em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer

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valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele. (grifo nosso)21

63. Como já mencionado, os termos da citada Convenção se ativeram aos problemas vividos

na época, ou seja, há mais de 50 (cinquenta) anos. Com o passar do tempo foi observado que

as situações de caracterização de refugiado não poderiam ser restritas ao que a Convenção

estipulava.

64. Tanto não poderia ser restritiva a Convenção de 51 que pouco mais de 15 (quinze) anos

depois, com o Protocolo de 1967, foram retiradas algumas das restrições impostas pela

Convenção, sendo a principal delas concernente ao caráter temporal exigido pela mesma para

a caracterização de refugiado, sendo possível, após o Protocolo, a classificação e proteção de

refugiado a qualquer pessoa que se adequasse às hipóteses previstas na Convenção, sendo

retirada a exigência temporal.

65. Porém, mesmo com as alterações realizadas pelo referido Protocolo, não se poderia

admitir a permanência de restrições a casos específicos para a caracterização de uma pessoa

como refugiada. É latente a existência de outras circunstâncias que merecem a devida

proteção. Um desses casos é a situação dos refugiados ambientais, que foram igualmente

deslocados de seu lar por problemas alheios à sua vontade, e que modificaram integralmente

o seu modo de vida.

66. Desta forma, no contexto Americano houve um grande avanço com a Declaração de

Cartagena sobre os Refugiados, de 1984, a qual trouxe contribuições extremamente

importantes e necessárias. Dentre elas a extensão do conceito de refugiado, sendo agora

aplicado a pessoas em fuga de seus países em decorrência de ameaças à sua vida, segurança

ou liberdade “pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a

violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado 21 Convenção de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados, art. 1, §1º b.

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gravemente a ordem pública.”. Assim, emergiu um enorme leque de possibilidades para a

aplicação do novo conceito de refugiado, sendo possível, por exemplo, a inclusão do presente

caso, como sendo de refugiados ambientais.

67. O povo mirokaense residente na República dos Tucanos se adequa perfeitamente aos

moldes estabelecidos nas normas internacionais supracitadas, sendo, portanto, caracterizados

como refugiados ambientais, e como tais, carecem de uma atenção especial por parte do

Estado, bem como um tratamento diferenciado em prol da igualdade.

68. Os refugiados mirokaenses já sofreram um grave impacto de ordem social quando foram

assolados por sucessivas ondas tsunamis, e agora o governo Tucano pretende novamente

remanejar parte dessa população para outro local, ou seja, proporcionará a essas famílias de

imigrantes dupla violação de seus direitos humanos, e novamente relacionada a problemas

ambientais.

MÉRITO

A República dos Tucanos violou os arts. 4 e 5 em relação ao art. 1.1 da CADH

69. O artigo 4 da Convenção Americana é um dos mais importantes no âmbito da

Organização dos Estados Americanos, no sentido de garantir à todas as pessoas o direito à

vida. Esta previsão deve estar em plena consonância com o artigo 1.1, o qual estabelece a

obrigação de respeitar os direitos por todos os Estados Americanos.

70. A CorteIDH considera que o “derecho a la vida es fundamental en la Convención

Americana, por cuanto de su salvaguarda depende la realización de los demás derechos”22.

Assim sendo, o Estado deve proporcionar aos seus jurisdicionados o direito a uma vida digna,

que se consubstancia no pleno exercício de todos os direitos que possuam relação com

22 CorteIDH. Caso "Instituto de Reeducación del Menor” vs. Paraguay, par. 156; Caso de los Hermanos Gómez

Paquiyauri vs. Perú, par. 128; Caso Myrna Mack Chang vs. Guatemala, par. 152; Caso de los “Niños de la

Calle” (Villagrán Morales y otros) vs. Guatemala, par. 144.

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aquele. Na mesma linha de pensamento, essa Corte também indicou que “el derecho a la vida

comprende (...) el derecho a (…) las condiciones que garanticen una existencia digna”.23

71. As ações do Estado devem ser positivas de modo que possam respeitar a vontade

daqueles que estão sob a sua jurisdição. Entende-se, assim, que o aparato estatal não pode

cercear o direito de certos grupos em detrimento de outros, com a justificativa do avanço

tecnológico e necessidade de geração de energia elétrica.

72. Em primeiro lugar, a vida das populações indígenas é fortemente baseada na sua relação

com a terra, na caça, na pesca e em tudo que for necessário para a sobrevivência dos seus

membros24. Não somente isso. A identidade cultural é, também, de extrema importância,

considerando-se os costumes e os hábitos perpetuados pelos seus ancestrais ao longo dos

séculos. Para eles, a terra não é apenas um título de propriedade conferido e validado pelo

Estado, é muito mais. Ela é um elemento inerente à sua sobrevivência; de caráter especial e

espiritual. É sagrada, como já definido.

73. Para a comunidade indígena, o direito à vida não é apenas o direito de estar vivo, e sim,

de manter relação com a terra em que vivem, conservando seus costumes e tradições em sua

integralidade. Para tanto, a Convenção nº 169 da OIT preceitua, no artigo 5º, que os povos

indígenas têm o direito de manter seus costumes e instituições próprias e de serem

respeitados pelo Estado e, no artigo 13, que os governos deverão respeitar a importância da

cultura e dos valores espirituais para os povos indígenas relacionados às suas terras ou

territórios25.

74. É relevante salientar a relação entre as populações indígenas e o direito a um meio

ambiente sadio, pautado na utilização racional dos recursos naturais e na preservação

23 CorteIDH. Caso Xákmok Kasék vs Paraguay, par. 183

24 Caso hipotético, par. 5.

25 Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais.

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ambiental. Partindo dessa interpretação, diz-se que suprimir as áreas preservadas, nas quais a

comunidade se situa, é violar o direito à vida. Logo, não se pode olvidar a previsão na

Declaração Sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU sobre o direito da população

indígena de “manter e de fortalecer sua própria relação espiritual com as terras, territórios,

águas, (...) outros recursos que tradicionalmente possuam ou ocupem e utilizem, e de assumir

as responsabilidades que a esse respeito incorrem em relação às gerações futuras”26.

75. Seguindo esse entendimento, a CorteIDH reconheceu que os Estados devem conceder

uma proteção efetiva que considere as particularidades próprias destes povos, bem como suas

características econômicas e sociais, e ainda sua situação de vulnerabilidade, direito

consuetudinários, valores e costumes27.

76. Em situação semelhante, a Comissão Africana de Direitos Humanos afirmou ser inerente

à vida a possibilidade das comunidades indígenas preservarem, desenvolverem e

transmitirem para as futuras gerações, os seus territórios ancestrais e a sua identidade

cultural, ressaltando que devem ser capazes de decidir o seu próprio destino para viver de

acordo com seus ditames culturais, sociais e religiosos28.

77. Para a população Aricapu, a questão da ancestralidade e antiguidade é inerente à sua

cultura e a terra deve ser garantida e perpetuada para as futuras gerações29. Ademais, o artigo

39 da Carta Interamericana de Garantias Sociais da OEA estipula que nos países em que

existem populações indígenas, deverão ser tomadas todas as medidas necessárias para

garantir proteção e assistência aos índios, salvaguardando as suas vidas, liberdade e

26 Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas, art. 25.

27 CorteIDH. Caso Sawhoyamaxa vs. Paraguay, par. 83; Caso Comunidad Yakye Axa vs. Paraguay, par. 62;

Caso Baena Ricardo e outros vs. Panamá, par. 127.

28 Comissão Africana de Direitos Humanos. Caso 276 / 2003 – Centre for Minority Rights Development and

Minority Rights Group International on behalf of Endorois Welfare Council vs. Kenya, par. 158.

29 CorteIDH. Caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Niaragua, par. 149.

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propriedade, prevenindo o seu extermínio30. A República dos Tucanos, ao permitir a

exploração daquelas reservas naturais, estará contrariando o referido dispositivo, já que o

deslocamento daquele povo ensejará o desaparecimento de cultura e meios de sobrevivência,

estabelecido ao longo dos séculos.

78. Em segundo lugar, os integrantes da população de Mirokai são considerados refugiados

ambientais, como exposto anteriormente, visto que foram forçados a se deslocarem do seu

país de origem em decorrência de tsunamis31, tendo violados seus direitos à vida, liberdade,

saúde e propriedade.

79. A situação de vulnerabilidade em que se encontra a comunidade de imigrantes diante das

ações estatais confere a ela condições de tratamento análogo ao de outros grupos comumente

vulneráveis, como ocorrem com indígenas, crianças, mulheres, afrodescendentes,

camponeses e pessoas de baixa renda.

80. Outro aspecto relevante é que a República dos Tucanos em momento algum pode impor

a construção da Hidrelétrica de Cinco Voltas sem a anuência ou consentimento dos povos que

serão diretamente prejudicados, podendo caracterizar como verdadeiro exercício arbitrário do

poder público, situação repelida pela CorteIDH32.

81. Paralelamente, o Estado da República dos Tucanos violou o artigo 5 da Convenção

Americana, qual seja, direito à integridade pessoal. Este artigo dispõe que todos têm o direito

ao respeito de sua integridade física, psíquica e moral. No caso em questão, ao construir a

Hidrelétrica de Cinco Voltas e ensejar a divisão das comunidades, esta conduta configurará

30 Carta Interamericana dos Direitos Sociais da OEA, artigo 39.

31 Caso hipotético, par. 11.

32 CorteIDH. Caso Baena Ricardo e outros, par. 78; Caso “Instituto de Reeducación del Menor” vs. Paraguay,

par. 23.

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um ato desumano, violando não apenas a integridade pessoal dos membros, e sim da

comunidade como um todo.

82. Deve-se considerar que os artigos 4 e 5 relacionados ao artigo 1.1 da CADH pressupõem

a proteção do direito à vida, de forma que se evite qualquer tipo de dano potencial à

integridade pessoal. Com a construção da Hidrelétrica, a integridade física das comunidades

ficará ameaçada, e não somente ela, também a cultural e psíquica, visto que a divisão das

comunidades destruirá o aspecto de união destes povos.

83. Os Drs. Cançado Trindade e Abreu Burelli concordaram que o “deber del Estado de

tomar medidas positivas se acentúa precisamente en relación con la protección de la vida de

personas vulnerables e indefensas, en situación de riesgo (...)”33. Portanto, a conduta positiva

do Estado34 é prover meios para a proteção dos direitos dos seus jurisdicionados, incluindo os

seus direitos à vida e integridade física, e não limitá-los ou impedi-los.

84. A CIDH, em respeito ao princípio pro homine, estabeleceu que “la protección de las

poblaciones indígenas constituye tanto por razones históricas como por principios morales y

humanitarios, un sagrado compromiso de los estados”35. E mais, estabelece que os estados-

membros da OEA se comprometeram a “preservación y fortalecimiento de la herencia

cultural de los grupos étnicos y la lucha en contra de la discriminación que invalida su

potencial como seres humanos a través de la destrucción de su identidad cultural e

individualidad como pueblos indígenas”36.

33 CorteIDH. Caso de los Ninõs de La Calle vs. Guatemala, Votos Concorrentes, par. 4.

34 CorteIDH. Caso de la Masacre de Pueblo Bello vs. Colombia, par. 120; Caso de la Masacre de Mapiripán vs.

Colombia, par. 232. Caso “Instituto de Reeducación del Menor” vs. Paraguay, par. 158; Caso Myrna Mack

Chang vs. Guatemala, par. 153; Caso Juan Humberto Sánchez vs. Honduras, par. 110; Caso Bámaca Velásquez

vs. Guatemala, par. 172; Caso de los Niños de la Calle vs. Guatemala, par. 144 a 146.

35 CIDH. Caso Yanomami vs. Brasil, resolução 12/85 OEA, par 8.

36 Idem, par. 9

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85. Diante disto, conclui-se que a violação dos direitos à vida e integridade pessoal destas

comunidades não apenas estão relacionados ao exercício dos demais direitos elencados na

CADH, mas também à necessidade de desfrutarem de um espaço que seja referido como

meio ambiente sadio, para garantir a sua qualidade de vida.

A República dos Tucanos violou os arts. 8 e 25 em relação ao art. 1.1 da CADH

86. O artigo 8 da CADH prevê o direito às garantias judiciais considerando que toda pessoa

deve ser ouvida “(...) com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou

tribunal competente, independente e imparcial (...)” e o artigo 25 dispõe que:

toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro (...) perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos (...) mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

87. A República dos Tucanos violou o artigo 8, pois no processo de implantação do projeto

para a construção da hidrelétrica seria necessário que as comunidades fossem ouvidas por

meio de audiência pública, segundo normas de direito internacional37. Não houve o

consentimento prévio ou conhecimento sobre o assunto pelas comunidades, contrariando o

entendimento da CorteIDH. Visto que a mesma se manifestou em reiteradas decisões a

importância da anuência de populações tradicionais para a construção de empreendimentos

que possam causar impactos significativos no estilo e modo de vida destes indivíduos38.

37 Comitê de Direitos Humanos da ONU, Subcomissão de Prevenção de Discriminação e Proteção das Minorias,

Directrices completas para los derechos humanos en relación con los desplazamientos basados en el

desarrollo, U.N. Doc E/CN.4/Sub.2/1997/7 Anexo, 2 de julio de 1997, art. 16

38 CorteIDH. Caso Comunidad Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay; CIDH. Resolución Nº 12/85. Caso 7615,

Pueblo Yanomami (Brasil), 5 de marzo de 1985; Caso Mercedes Julia Huenteao Beroiza e outras v. Chile,

Relatório de Solução Amistosa de 11 de março de 2004, Relatório No. 30/04. Petição No. 4617/02.

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88. No caso sub judice, os direitos em questão estão diretamente ligados à participação e à

necessidade dos povos prejudicados serem consultados previamente sobre o projeto, por

tratar-se de territórios de sua propriedade.

89. E não apenas isso, o Principado de Araras em nenhum momento foi ouvido a respeito do

assunto. Trata-se da uma área (confluência dos rios Betara e Corvina) que também está sob o

domínio do citado país, tanto que já foi alvo de disputas territoriais39, situação que exige sua

anuência, visto que os impactos sociais e ambientais poderão atingir proporções que

influenciarão naquele país.

90. O ato de não consultar o Principado de Araras, que certamente será atingido com a

construção da hidrelétrica, apenas certifica a conduta arbitrária do Estado tucano, que, além

de violar os direitos de comunidades fragilizadas, desconsidera os direitos de outro Estado

soberano, passando por cima do devido processo legal.

91. Além disso, o Estado não apresentou alternativas para a execução do projeto, decidindo

que a hidrelétrica naquele local seria a melhor opção. Observe-se que os estudos indicadores

daquela área como a mais favorável para a construção da hidrelétrica datam da década de

1980, o que torna duvidosa a precisão do projeto em quesitos como a quantidade de energia a

ser gerada e os impactos sociais e ambientais produzidos.

92. Ressalte-se que o artigo 10 da Declaração do Rio de Janeiro, de 1992, preceitua,

basicamente, o direito à informação e garantias judiciais, estabelecendo a necessidade de cada

cidadão ter acesso adequado às informações relacionadas ao meio ambiente que possam

influenciar de alguma maneira na vida de suas comunidades. Preceitua também que o Estado

deve facilitar e estimular a participação pública, conscientizando e incentivando a informação

para todos. Ao fim, dispõe sobre o acesso efetivo a procedimentos judiciais e administrativos,

inclusive a respeito de reparação e compensação de danos.

39 Caso hipotético, par. 2.

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93. O supracitado dispositivo já demonstra uma preocupação internacional em garantir a

participação efetiva das sociedades na tutela dos seus direitos, que no caso em questão, estão

intimamente ligados com a proteção do meio ambiente.

94. É notável que no caso houve uma celeridade excessiva no andamento da elaboração do

projeto em favor do Estado, o que não seria um problema se tivessem sido respeitados os

direitos das vítimas, tais como, terem suas opiniões ouvidas e respeitadas, obedecendo aos

ditames democráticos do país. A questão crucial é que ao considerar a construção de um

projeto de grande magnitude, o tempo de quatro meses é insuficiente para a discussão de

direitos essenciais, entre eles, o direito à vida. Tanto que o deslocamento daqueles povos para

outra região não será suficiente para fazer com que retomem à sua antiga vida, uma vez que

esta está entrelaçada com aquele território.

95. Apesar de o Estado ter realizado um Relatório de Impacto Ambiental, este apenas

considera as alterações territoriais do espaço em questão, e não os impactos sociais e culturais

nas populações indígenas e imigrantes. É obrigação do Estado, ao realizar obras de

infraestrutura, que supostamente contribuirão para o desenvolvimento da sociedade, realizá-

las de forma diligente, tempestiva, com a anuência das pessoas diretamente afetadas, e sem

omitir os seus efeitos e consequências aos povos que habitam a terra e dele obtém todos os

meios de subsistência.

96. É nesse sentido que, para as vítimas, a rapidez na tomada de decisões se mostrou

desfavorável e viola os seus direitos de acesso e garantias judiciais, aliado à questão de

ausência de audiência pública. A CorteIDH já decidiu a necessidade de, no tocante aos

direitos indígenas, e consequentemente aos imigrantes, o Estado outorgar uma proteção

efetiva que considere as particularidades de cada povo, características econômicas e sociais,

bem como sua situação de vulnerabilidade, direito consuetudinário, valores e costumes40.

40 CorteIDH. Caso Yakye Axa vs. Paraguay, par. 63.

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97. Além desses fatores, a rapidez do Estado demonstra uma forma de desrespeito às

normas internacionais das quais é signatário41, evidenciando uma espécie de descaso com as

vítimas do projeto. Conclui-se que a República dos Tucanos agiu desta maneira por saber

que, na ocorrência de uma audiência pública, o projeto provavelmente não seria aceito pelas

comunidades.

98. E mais, a disponibilização do RIA na internet42 não é suficiente para viabilizar a

informação adequada, pois os povos afetados não possuem acesso a esta tecnologia, já que

isso não é inerente às suas culturas, limitando assim a possibilidade de conhecimento do

projeto. Deve-se considerar que, apesar da República dos Tucanos ter avançado em termos

econômicos, industriais e tecnológicos, ainda é um país em desenvolvimento. Em face disso,

a internet acaba se transformando em um meio ineficaz de informação.

99. A necessidade de informação é de suma importância para tais comunidades, tanto que a

Declaração dos Povos Indígenas da ONU estabelece em vários artigos43 que deve existir

consentimento prévio na tomada de decisões que possam afetar o bem estar dessas

comunidades. Há ainda previsão semelhante no Projeto de Declaração dos Povos Indígenas

da OEA, no artigo XIII, 2: “Los pueblos indígenas tienen derecho a ser informados de

medidas que puedan afectar su medioambiente, incluyendo información que asegure su

efectiva participación en acciones y decisiones de política que puedan afectarlo”44.

100. Portanto, o Estado não deve impedir o acesso à justiça nessas comunidades nem a

supressão de suas participações nas decisões que influenciarão diretamente em suas vidas.

Decisões estas que podem, inclusive, ocasionar a extinção dessas culturas.

41 Caso hipotético, par. 1.

42 Idem, par. 19.

43 Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas – ONU, artigos 10, 13, 16, 19.

44 Projeto de Declaração dos Povos Indígenas da OEA aprovado pela CIDH em 26 de fevereiro de 1997.

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A República dos Tucanos violou os arts. 21 e 22 em relação ao art. 1.1 da CADH

101. A CADH, em seu 21 (2) declara que ninguém poderá ser privado de usufruir de seus

bens. Por “bens”, entende-se que são “elementos corporais e não corporais e qualquer outro

objeto imaterial suscetível de ter um valor”45. Tendo por base essas definições, percebe-se

que o Estado tucano violou tal princípio ao permitir a degradação dos territórios do povo

indígena Aricapu e dos refugiados ambientais.

102. A interpretação positiva deste artigo sugere uma visão individualista e patrimonialista

da propriedade. Contudo, leva-se em consideração que a terra, para o grupo Aricapu, não é

vista como algo pertencente a um indivíduo, mas à toda comunidade, usufruindo-a de

maneira a retirar somente o necessário para a sua sobrevivência.

103. A Corte Interamericana superou a visão patrimonialista do direito à propriedade e

interpreta o artigo 21 da Convenção Americana de forma a abrigar uma visão holística, uma

dimensão coletiva da propriedade comunitária indígena46. Para tal avanço, a Corte recorreu à

Convenção nº 169 da OIT que dispõe sobre o direito à propriedade comunal das comunidades

indígenas, conforme exemplificado nas decisões dos casos Xákmok Kásek vs. Paraguay e

Yakye Axa vs. Paraguay47.

104. O Estado, apesar de ter reconhecido o direito à propriedade dos povos indígenas e dos

imigrantes mirokaenses, e destes terem recebido títulos de propriedade48, não honrou os

direitos advindos desse reconhecimento.

105. Para o grupo de refugiados ambientais, a terra também possui um valor inestimável, já

que foi nela que conseguiram reerguer a sua dignidade e consciência como povo. Após terem 45 CorteIDH. Caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Niaragua, par. 144.

46 CorteIDH. Caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicaragua, par. 148; Caso Xákmok Kásek vs. Paraguay,

par. 157; Caso del Pueblo de Saramaka vs. Surinam, par. 129.

47 CorteIDH. Caso Xákmok Kásek vs. Paraguay, par. 88; Caso Yakye Axa vs. Paraguay, par. 127.

48 Caso hipotético, par. 7 e 14.

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perdido sua “vida” em seu país de origem, “ressuscitaram” na República dos Tucanos. Uma

nova terra que trouxe somente benefícios para eles.

106. A República dos Tucanos, com uma mão abrigou essa comunidade de imigrantes em

seu território, e com a outra caminha, agora, para retirar a terra dessa comunidade. Mais uma

mudança de ambiente para os mirokaenses seria um segundo choque, trazendo grandes

malefícios sociais ligados à sobrevivência desse povo.

107. O art. 22 (1) da Convenção assegura a todos que se encontrem legalmente em um

Estado o direito de circular livremente e de residir no lugar de escolha. Como uma pessoa não

pode ser privada do uso e do gozo de sua propriedade, também não pode ser privada de fixar

residência onde quiser e tampouco ser proibida de se movimentar no território do seu Estado.

A Corte declara que:

el derecho de circulación y deresidencia consiste, inter alia, en lo siguiente: a) el derecho de quienes seencuentren legalmente dentro de un Estado a circular libremente en ese Estado y escoger su lugar de residencia.49

108. Para a construção da hidrelétrica, o Estado propôs, sem o consentimento das

comunidades Aricapu e mirokaense, que estas receberiam terras novas para morar,

designadas pela República, com recursos econômicos suficientes para a sua sobrevivência na

nova terra50.

109. O art. 1º, § 2º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos declara que em

nenhuma hipótese poderá um povo ser privado dos seus meios de subsistência. A construção

da Hidrelétrica de Cinco Voltas não traria somente problemas relacionados à sobrevivência

dos povos, mas também à salubridade da água dos Rios que serão utilizados para a

hidrelétrica, trazendo, consequentemente, problemas de saúde às comunidades.

49 CorteIDH. Caso Moiwana vs. Suriname, par. 110.

50 Caso hipotético, par. 20.

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110. Ainda, a construção da Hidrelétrica causará um aumento desenfreado do fluxo

migratório na região, fenômeno este que poderá trazer efeitos drásticos a todos os habitantes

daquela área, e não apenas às comunidades citadas nesta demanda, tais como: a ocupação

irregular de terras – inclusive das áreas destinadas às comunidades indígena e imigrante –, o

aumento da demanda por serviços de saúde e educação, o surgimento/aumento de áreas

periféricas nas cidades próximas, o aumento da pobreza, violência, e outras consequências de

violação direta aos direitos humanos.

111. Assim, quando o Estado admite o deslocamento das comunidades de sua terra,

proibindo-as de viverem no território que escolheram residir e onde residem por um período

significativo, viola, de maneira expressa, os direitos de propriedade, circulação e residência

dessas comunidades.

A República dos Tucanos violou o art. 24 em relação ao art. 1.1 da CADH

112. Em que pese a Comissão não ter verificado a violação do direito à igualdade,

entendemos que o direito violado é inquestionável. Tendo em vista a fundamentalidade do

direito de não-discriminação, invoca-se o artigo 55 do Regulamento da CorteIDH no sentido

de apontar a necessidade de seu reexame.

113. É apenas admitindo a procedência deste artigo que o Sistema Interamericano de

Direitos Humanos poderá ser uma ferramenta para alcançar a igualdade, a equidade e a

justiça social em nosso continente, como pretende Luz Patrícia Mejía Guerrero51.

114. “A primeira espécie de democracia é aquela que tem a igualdade por fundamento”.52

115. Nesse contexto, pergunta-se: o que é a igualdade? Aristóteles responderia que ela

consiste em tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual53.

51 Discurso da Presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos na Cerimônia Inaugural das

Sessões da CIDH de 2009.

52 ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2001, p. 236.

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116. Assim, se República Federal de Tucanos se autodenomina uma república

democrática54, o direito consagrado no artigo 24 da Convenção sobre Direitos Humanos

certamente é um de seus fundamentos.

117. E, ainda que não o fosse, a Corte alegou sobre o mencionado artigo que esse princípio,

por ser inelutável do direito internacional consuetudinário, tem caráter de jus cogens e isso,

por sua vez, implicaria que essa regra fundamental deve ser observada por todos os Estados,

mesmo que não tenham ratificado as convenções que sobre ela dispõem55.

118. O art. 44 da Carta da OEA, bem como a Declaração Americana sobre Direitos e

Deveres do Homem em seu artigo II dispõem que todos os seres humanos, sem distinção de

raça, sexo, nacionalidade, credo ou condição social tem direito à igualdade. Foi nesse sentido

que a CorteIDH entendeu no Caso Yakye Axa vs. Paraguay56.

119. Desta forma, tem-se que o referido direito à igualdade foi mitigado no caso sub judice,

na medida em que o Estado realizou uma distribuição desigual de sacrifícios ambientais ao

permitir que os habitantes da República dos Tucanos se beneficiem excessivamente da

construção da hidrelétrica, discriminando a população de imigrantes mirokaenses e o povo

Aricapu. Sobre esse tipo de discriminação, a Corte afirmou que:

La noción de igualdad se desprende directamente de la unidad de naturaleza del género humano y es inseparable de la dignidad esencial de la persona, frente a la cual es incompatible toda situación que, por considerar superior a un determinado grupo, conduzca a tratarlo con privilegio; o que, a la inversa, por considerarlo inferior, lo trate con hostilidad o de cualquier forma lo discrimine del goce de derechos que sí se reconocen a quienes no se consideran incursos en tal situación de inferioridad. No es admisible crear diferencias de tratamiento entre seres humanos que no se correspondan con su única e idéntica naturaleza.57

53 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2002. p. 198.

54 Caso hipotético, par. 1.

55 CorteIDH. OC-18/03; Caso Xákmok Kásek vs. Paraguay, par. 269

56 CorteIDH. Caso Yakye Axa vs. Paraguay, par. 25.

57 CorteIDH. OC-4/84, par. 55.

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120. Ressalte-se, por oportuno, que a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos

Indígenas assevera, em seu artigo XVI (3) que “Na jurisdição de cada Estado, os assuntos

referentes a pessoas indígenas ou aos seus interesses serão geridos de modo a proporcionar

aos indígenas o direito de plena representação, com dignidade e igualdade perante a lei (...)”.

121. E mais, a Convenção 169 da OIT preceitua, em seu artigo 2º, que os Estados devem

desenvolver ações para assegurar aos membros de comunidades indígenas que gozem dos

mesmos direitos e oportunidades, em condição de igualdade, tal qual a legislação nacional

outorga aos seus demais membros.

122. Não há que se falar em gozo de direitos em condição de igualdade no presente caso

com relação a essas comunidades. A República dos Tucanos reconheceu seus direitos

coletivos a terra e concedeu-lhes títulos de propriedade, mas não honrou com a concessão,

deixando-lhes apenas prejuízos em relação à Hidrelétrica de Cinco Voltas.

123. Em relação aos “direitos dos migrantes”, em 1988, no Chile, foi celebrado o “Plan de

Acción de la Segunda Cumbre de las Américas”, no qual os chefes de Estado das Américas

concordaram: "desplegaremos especiales esfuerzos para garantizar los derechos humanos de

todos los migrantes, incluidos los trabajadores migrantes y sus familias”58.

124. Nesse sentido, as instituições de proteção do Sistema Interamericano de Direitos

Humanos tem se pronunciado acerca da efetivação e da proteção que se deve dar aos direitos

dos imigrantes. A fim de colocar a situação dos imigrantes mirakoenses em sintonia com o

posicionamento do Sistema nessa matéria, reporta-se ao caso “Margarita Cecília Barbería

Miranda vs. Chile” 59.

58 Segunda Cumbres de las Américas. Declaración de princípios. Chile, 1998.

59 CIDH. Informe nº 59/04. Peticion 292/03. Margarita Cecilia Barbería Miranda vs. Chile. 13 de outubro de 2

2004.

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125. A CIDH admitiu nesse caso que houve, por parte do Estado do Chile, a violação do

direito à igual proteção ante a lei (artigo 24), em relação às obrigações dispostas no artigo 1.1

da CADH.

126. A situação dos imigrantes mirakoenses é similar por estarem sendo tratados de forma

desigual em relação aos nacionais da República dos Tucanos.

127. Sobre o direito à igualdade daqueles que tem que se deslocar forçadamente de seu país

de origem, a CorteIDH, através de suas recomendações em casos e informes, vem

incentivando a adoção de leis e a implementação de políticas públicas para garantir uma

melhor proteção deste grupo vulnerável60.

128. No Caso “Comunidade Moiwana vs. Suriname”, a CorteIDH entendeu que o fato de os

membros de uma comunidade não serem nativos de uma determinada região não se constitui

fator impeditivo de serem tratados de forma igual aos povos autóctones.

129. Reitera-se “a responsabilidade dos Estados de erradicarem, com o apoio da comunidade

internacional, as causas que originam o êxodo forçado de pessoas e, desta maneira, limitar a

extensão da condição de refugiado para além do necessário”61.

130. Quando se fala em migrantes, ainda mais com relação àqueles que saíram de seu pais

forçadamente, não se pode deixar de pensar que estes têm grandes dificuldades para se

adaptar em outros Estados em razão de diferenças culturais, raciais e idiomáticas62. Ao invés

de amenizar essas dificuldades, o Estado dos Tucanos vem agravando a exclusão sofrida

pelos refugiados ambientais.

60 Discurso do Presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Felipe González, na apresentação

do Informe Anual de 2009 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ante o Comitê de Assuntos

Jurídicos e Políticos do Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos.

61 Colóquio Internacional em Comemoração do Décimo Aniversário da Declaração de Cartagena sobre

Refugiados, Cláusula oitava.

62 Introdução do Informe Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de 1999, par. 21.

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131. Portanto, em respeito ao aludido princípio, o Estado deve cumprir as obrigações

assumidas em âmbito internacional harmonizando-as com as normas de direito interno, de

modo que possam abranger e garantir maior proteção às pessoas afetadas pela construção da

Hidrelétrica. Pode-se, inclusive, adotar o entendimento do artigo 27 do Pacto Internacional de

Direitos Civis e Políticos da ONU, que expressa o direito das minorias em possuir sua

cultura, de professar e praticar sua religião e uso da própria língua63.

A República dos Tucanos violou o art. 11 do Protocolo de San Salvador.

132. Após as grandes Revoluções Industriais, houve a transformação do processo de

produção, com captação acelerada dos recursos naturais, consumo em massa e geração

extraordinária de resíduos, gerando uma crise ambiental que precisa ser gerida tanto para o

bem da qualidade de vida de todas as espécies, quanto para o próprio desenvolvimento

global.

133. Em 1968, o empresário Aurélio Pecei reuniu um grupo de especialistas, chamado Clube

de Roma, para identificar os principais aspectos da crise ambiental. O grupo produziu o

relatório “The Limits to Growth”, que foi debatido em 1972 pela Organização das Nações

Unidas, originando a Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente, que visa a proteção

do meio ambiente dando a ele caráter de princípio geral. Após a aprovação dessa Declaração,

outros tratados relacionados ao meio ambiente surgiram ao longo do tempo, como a

Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, aprovada durante a

Conferência das Nações Unidades sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92).

134. A proteção ao meio ambiente é um objetivo a ser cumprido por todos os Estados

democráticos de Direito. Essa proteção é assegurada na Carta Democrática Interamericana

em seu art. 15, o qual afirma que para proteger o ambiente é necessário que o Estado

63 CIDH. Caso Yanomami vs. Brasil, Resolução 12/85 OEA, par. 7.

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implemente políticas e estratégias de proteção, sempre respeitando os tratados e convenções,

para, assim, alcançar um desenvolvimento sustentável.

135. A primeira forma de reconhecimento do direito humano a um meio ambiente sadio, de

maneira expressa e vinculante, aconteceu no Continente Americano por meio do Protocolo

Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1988

(Protocolo de San Salvador), que entrou em vigor em 16 de novembro de 1999.

136. De acordo com Cançado Trindade64, o Protocolo

representou o ponto culminante de um movimento de conscientização no continente americano, paralelo à evolução similar, ocorrida no âmbito das Nações Unidas e do Sistema Europeu, em prol da proteção internacional mais eficaz dos direitos econômicos, sociais e culturais.

137. A relação direitos humanos - meio ambiente pressupõe repensar problemáticas político-

sociais a partir de uma perspectiva integral e ampla sobre as condições de vida que enfrentam

a maioria das sociedades americanas, considerando a sociedade e o seu entorno como um

sistema inter-relacionado.

138. O direito ao meio ambiente tem o propósito de salvaguardar a própria vida humana sob

dois aspectos: a existência física e saúde dos seres humanos e a dignidade desta existência65.

A partir da leitura do art. 11 do Protocolo de San Salvador, quando este afirma que toda a

pessoa tem direito a uma vida em ambiente sadio, ressalta-se que o direito ao meio ambiente

está ligado aos direitos humanos. A proteção de um meio ambiente sadio não diz respeito

somente ao ambiente em si, mas a tudo que pertence a esse meio, sendo o homem parte deste

ambiente. Com a degradação ambiental, surge a degradação do próprio homem. A

64 Apud. AIDA, Associação Interamericana para a Defesa do Ambiente. Guia de Defesa Ambiental:

Construindo a estratégia para o litígio de casos diante do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. [S.I.]:

2010, p. 18.

65 CANÇADO TRINDADE. p. 76; CorteIDH. Caso Comunidad Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguay, par.

145, c.

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Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano, de 1972, proclama exatamente esta

corrente “ambientalista humanitária”, e em seu primeiro princípio demonstra isso.

139. Para que as comunidades dos Aricapu e de Mirokai possuam uma vida com dignidade e

integridade, devem viver em um meio ambiente equilibrado e sadio. O impacto gerado pela

construção de uma hidrelétrica gera um desequilíbrio ambiental que atinge todas as espécies,

em especial as comunidades diretamente atingidas.

140. As comunidades sofrem com a privação da escolha de onde irão residir, sendo o local

escolhido pelo Governo da República dos Tucanos. A escolha do melhor local para as

comunidades deve estar fundamentada tanto no atendimento as suas crenças e costumes,

quanto na qualidade de vida gerada em um meio ambiente sadio, onde as comunidades

possam perpetuar a sua existência66.

MEDIDAS PROVISÓRIAS

141. A comunidade indígena Aricapu e a comunidade de refugiados ambientais de Mirokai,

por meio de seus representantes, vem respeitosamente, perante essa Corte Interamericana de

Direitos Humanos requerer Medidas Provisórias, de acordo com o artigo 63.2 da Convenção

Americana e o artigo 27 do Regulamento da CorteIDH.

142. A presente solicitação visa evitar os danos irreparáveis que ocorrerão com o

prosseguimento das obras de construção da Hidrelétrica de Cinco Voltas, que resultarão no

alagamento de uma área de 1.450 km² na confluência dos rios Betara e Corvina, na Região

Norte da República de Tucanos, onde habitam as referidas comunidades.

143. Pelas razões de fato e de direito expostas anteriormente, é notória a situação de grave e

iminente violação de Direitos Humanos por parte do Estado tucano, que não está cumprindo

com suas responsabilidades internacionais previstas na Convenção Americana e em outros

66 CorteIDH. Caso del Pueblo Saramaka vs. Surinam, par. 144.

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diplomas por ele ratificados, nem tampouco efetivou medidas em âmbito interno que velasse

pela proteção dos direitos das comunidades e do meio ambiente no referido caso.

144. Os danos que ocorrerão com o prosseguimento das obras da Hidrelétrica atingirão não

apenas as comunidades autoras desta demanda internacional, e seus direitos individuais, mas

também toda a sociedade da República de Tucanos e a comunidade global, pelo caráter

coletivo e transindividual que possui o bem meio ambiente ecologicamente equilibrado.

145. Como se sabe, as obras foram iniciadas por volta do dia 29 de março de 201067, o que

demonstra, pelo tempo transcorrido, que já estão em estágio bem avançado, configurando a

real urgência da presente solicitação e adoção de medidas.

146. Iniciadas as inundações na área para a construção do gigantesco lago, serão perdidas as

áreas de habitação das comunidades, onde estão fincadas suas raízes e tradições, ameaçando

sua vida e integridade, além da afetação do ecossistema local, tudo de maneira irreversível,

Observe-se aí a irreparabilidade dos danos que serão causados, além das violações de direitos

já ocorridas.

147. As comunidades e seus representantes solicitam a essa Corte, em caráter de urgência,

que ordene a paralisação imediata das obras de construção da Hidrelétrica de Cinco Voltas, e

ainda a suspensão das licenças concedidas pelo governo da República de Tucanos para o

referido empreendimento até que a decisão definitiva seja proferida, a fim de evitar a

concretização das violações de Direitos Humanos anteriormente expostas.

PEDIDO

148. Ante o exposto, os representantes das vítimas solicitam a essa Corte que:

I. Outorgue o pedido de medidas provisórias para garantir os direitos à vida, integridade,

propriedade, livre circulação e residência, acesso à justiça, igualdade, meio ambiente sadio, e

direitos conexos à comunidade indígena Aricapu e à comunidade de refugiados ambientais de

67 Caso hipotético, par. 23.

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Mirokai. Visando a suspensão das licenças concedidas e a paralização imediata da construção

da Hidrelétrica de Cinco Voltas, mediante a gravidade, a urgência e a irreparabilidade dos

danos provenientes da obra.

II. Declare a responsabilidade internacional da República de Tucanos pela violação dos

artigos 4, 5, 8, 21, 22, 24 e 25 relacionados ao dever geral que fixa o artigo 1.1, todos da

CADH, cominados com o artigo 11 do Protocolo de San Salvador, pelos danos causados à

comunidade indígena Aricapu e à comunidade de refugiados ambientais de Mirokai, ambas

localizadas na região de confluência dos rios Betara e Corvina, a fim de determinar que o

Estado tucano:

i. Anule as licenças concedidas para a construção da Usina Hidrelétrica de Cinco

Voltas;

ii. Reinicie os estudos de viabilidade de construção da referida Hidrelétrica,

observando as normas e princípios de Direitos Humanos, em âmbito doméstico e

internacional, inclusive com relação ao equilíbrio do meio ambiente;

iii. Mantenha efetivo diálogo com as comunidades que serão diretamente afetadas

com a possível construção do empreendimento, discutindo in loco os estudos e relatórios

realizados;

iv. Pague indenização compensatória e equitativa pelos danos materiais e morais

sofridos pelas comunidades a respeito das violações anteriormente expostas;

v. Pague justa compensação pelos gastos e custos que incorreram os membros das

comunidades e seus representantes em procedimentos judiciais e administrativos em âmbito

interno e internacional;

vi. Publique a sentença proferida por essa Corte na Imprensa Oficial do Estado, para

que se dê a devida publicidade à decisão internacional em âmbito interno;

vii. Pague as custas judiciais decorridas desta demanda internacional.

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III. Recomende à República de Tucanos:

i. A assinatura e ratificação da Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em

Países Independentes da Organização Internacional do Trabalho;

ii. A assinatura e ratificação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos

Povos Indígenas.