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O Ideário Urbano na Virada do Século XIX. “...quem conhece a proposta das Cidades - Jardins não estranhará essas propostas” Theodoro Sampaio, 1912. Dar solução ao problema de remodelação de uma cidade “é na verdade dar solução a um problema vastíssimo que toca pelos costumes, pela economia,

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O Ideário Urbano na Virada do Século XIX.

“...quem conhece a proposta das Cidades - Jardins não estranhará essas propostas”Theodoro Sampaio, 1912.

Dar solução ao problema de remodelação de uma cidade “é na verdade dar solução a um problema vastíssimo que toca

pelos costumes, pela economia, pela arte e vem desde a história até as últimas conquistas da ciência”

Theodoro Sampaio, 1912.

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CAPÍTULO III

Segundo SOMEKH (1997: 33),

“O urbanismo paulistano é marcado pela ação de três

urbanistas: Vitor da Silva Freire (...); Prestes Maia (...) e

Anhaia Mello (...). Através deles São Paulo recebeu a

influência de Camillo Sitte (austríaco), Eugène Hénard

(francês) e Joseph Stübben (alemão), considerados criadores

do urbanismo moderno (Simões Jr., 1990). Numa segunda

fase, foi também marcante a influencia inglesa de Raymond

Unwin...”.

Acreditamos que estas influências antecedem a atuação de Silva

Freire, Preste Maia e Anhaia Melo. Desde o final do século passado e

com uma certa sincronia com as discussões levantadas por esses

autores, em São Paulo já sentia-se a presença deste por aqui;

marcadamente Sitte, Stübben e Howard. Na verdade, a creditamos

que já neste período as influências sofridas pelos engenheiros da

época em estudo vinham tanto da Europa como da América do Norte.

É nessa perspectiva que introduzimos as diferenças entre as duas

vertentes do urbanismo: a européia e a americana. (LEME, 1998b).

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O urbanismo europeu, tem talvez, no plano de Cerdá66 para

Barcelona (1867), a sua primeira manifestação, tendo sido ele o

primeiro a resgatar a palavra URBS; o fez para expressar um novo

conhecimento, um novo saber, uma nova prática. Urbanização para

ele, denomina não só um conhecimento como também uma prática,

aproximando–se do que ele entendia como urbanismo. Em francês , a

palavra urbanismo é um neologismo que vai aparecer pela primeira

vez em 1911. Agache reivindica a autoria da palavra; para ele,

urbanismo seria ciência e arte. Na corrente européia destacam – se

ainda os nomes de Sitte, Stübbem, Otto Wagner, Bouvard, Hénard, Le

Corbusier e Bardet entre outros. De forma geral, podemos dizer que

esta linhagem (sobretudo a desses autores que estamos a destacar –

a exceção de Le Corbusier) é a do urbanismo de planos (LEME,

1998b). Ao nosso ver, extremamente ligada à forma, ao desenho da

cidade.

Já o urbanismo americano tem seus primórdios, em 1840, com o

movimento City Beautiful (pode–se dividir em dois períodos o

urbanismo americano: de 1840/1914 e o de 1914/1945; sendo a

primeira fase a que nos interessa). O urbanismo nos Estados Unidos

da América nasceu com uma forte relação entre a estrutura política e

a infraestruturação territorial. Neste período, a estrutura do sistema

político estava em formação assim como o urbanismo. Olmsted é

responsável pelo Plano do Central Park sendo o propulsor do “Sistema

de Parques”. Contudo é o Plano de Chicago que está mais

diretamente ligado ao surgimento da idéia de urbanismo nos E. U. A.

Ele está associado ao planejamento urbano e foi, em parte, financiado

pelos empreendedores da área. A cidade era vista como mercadoria,

uma vez que o objetivo do primeiro plano para uma cidade americana

66 Neste plano destaca – se não só os eixos de crescimento da cidade, mas também as vias de circulação, diagonais e sobretudo a quadra. (LEME, 1998). Podemos dizer que o desenho da cidade é muito forte, sendo o planejamento da cidade uma coisa bastante corpórea, material.

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era tornar a cidade aprazível. O plano não é só para a cidade de

Chicago abrange toda uma região, uma vez que busca inserir a cidade

dentro desta. A participação civil era fundamental na implantação do

plano, e em um âmbito maior, no planejamento americano. (LEME,

1998b). Desta forma, acreditamos que o urbanismo da vertente

americana estava mais vinculado à esfera administrativa – legislativa,

deste modo a função (papel que desempenhava no território em que

se inseria) da cidade no planejamento era priorizada em relação a sua

forma–desenho.

Acreditamos, e pretendemos demonstrar ao longo dos próximos

capítulos, que Sampaio sofreu influências tanto de uma quanto de

outra vertente no desenvolvimento de sua concepção de cidade

moderna e essa por sua vez alicerçou a sua prática profissional. O

presente capítulo pretende elencar as principais influências sofridas

pelo Theodoro Sampaio, desta forma discutiremos sucintamente as

principais questões levantadas no período assim como, as referências

observadas na sua prática profissional buscando entrever como ele as

trabalhou ao longo de sua atuação como engenheiro – urbanista.

3.1. SANITARISMO: ENTRE A TEORIA MESOLÓGICA E A MICROBIANA.

Desde o século XIX,67as cidades como um todo, não só no Brasil,

vinham sendo problematizadas sob vários aspectos. Os médicos

exerceram papel fundamental neste processo por levantar uma das

67 A partir do século XVIII, principalmente na Europa, a cidade antiga (medieval) vai sofrer uma série de críticas sobretudo quanto à higiene e à circulação. Com o alastramento das pestes, a grande ansiedade do século XVIII foi a construção de um objeto que explicasse a morte, nesse sentido, a preocupação era com a busca de um novo saber que desemborcou no higienismo. Os miasmas eram então o ponto de partida, estando estes associados ao odor. Neste período, fazia-se mapas das áreas geradoras de olor, segundo o seu odor. O Higienismo, nesta perspectiva, seria uma busca de oposição à cidade medieval, cidade da baixa circulação de mercadorias, de pessoas, de água, de ar, e etc. O higienismo o tempo todo, estaria associando a cidade ao corpo humano. Sendo assim o higienismo, não queria trazer apenas a saúde para a cidade, queria antes trazer um outro modelo de cidade (PECHMAN, 1997). É bem verdade que é exeqüível estabelecer relações entre corpo e cidade bem anteriores a esse período. Nesse sentido ver SENNETT, 1997.

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questões centrais das mesmas: a Higiene. Na verdade, os

Engenheiros Sanitaristas do final do século passado vieram a

apresentar e concretizar de forma mais centrada e cabal as questões

e soluções que os médicos estavam aventando desde o início do

século. De uma forma geral, podemos dizer que são três as principais

questões urbanas percebidas durante este período: a higiene, a

circulação e a estética. Todas elas, de uma forma ou de outra,

relacionadas a fatores econômicos.

O problema da Higiene, como já mencionamos, ocupava

papel de destaque nesta época, como nos lembra DAMASCENO :

“Os médicos propunham-se a dar respostas adequadas a uma das principais questões apresentadas pela sociedade: a saúde e a qualidade de vida dos centros urbanos, num momento em que o crescimento das cidades provocava a degradação das condições de vida”.(DAMASCENO, 1996: 51)

Mais adiante a autora afirma: “... a medicina deste período não se

restringe aos aspectos clínicos da saúde, mas define também um

espaço social, que deveria ser estudado juntamente com o espaço

físico”. Os médicos e os reformadores do século passado buscavam

entender os problemas da cidade dentro desta perspectiva. Para eles,

a malignidade da cidade advinha de emanações pútridas, os

chamados miasmas, originados nas matérias orgânicas em

decomposição existentes nos pântanos, águas estagnadas, esgotos,

no ar viciado das habitações coletivas, na falta da circulação de ar.

Sendo assim, os pântanos, as casas insalubres, os cortiços, as vias

estreitas, tortuosas e de pouca declividade tornavam-se o alvo das

investidas destes. É assim que se introduz o conceito de salubridade,

cuja premissa básica e fundamental era a de que todos os fluidos

haveriam de circular.

Uma das formas de se ver a questão da higiene, é compreendê-

la pela ótica da reprodução da força de trabalho. A partir do início do

século passado, as cidades brasileiras passam a ser assoladas por

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uma série de epidemias: febre amarela, varíola, malária entre outras.

Concomitantemente, as mudanças na sociedade brasileira que

culminariam com a consolidação da mão de obra assalariada, levaram

a uma crescente preocupação com a manutenção/ sobrevivência do

trabalhador livre, sobretudo a do estrangeiro, uma vez que as

enfermidades colocavam em risco não apenas a vida dos

trabalhadores, mas também o fluxo imigratório. Desta forma, fica fácil

entender as colocações de FERNANDES:

“... grande parte do raciocínio que justificava a importância do saneamento das cidades se prendia precisamente ao cálculo econômico, sendo comum várias referências à economia realizadas pelo fato de se baixar em um ou dois pontos a taxa de mortalidade nas cidades, demonstrando ‘cabalmente’ a necessidade econômica do higienismo” (FERNANDES, 1995).

Como pano de fundo destas questões, havia todo um debate teórico-

técnico entre os higienistas do final do século passado: de um lado, os

que adotavam a teoria do sanitarismo mesológico e de outro, o

microbiano, como veremos a seguir.

Os dois outros problemas levantados na época, o da circulação

e o estético, podem ser compreendidos dentro da mesma concepção.

A circulação estava diretamente ligada ao escoamento da produção,

assim como ao acesso dos trabalhadores às suas áreas de trabalho,

estando portanto associada à mobilidade de capital. Assim, ocorre a

infra-estruturação de determinadas zonas da cidade em detrimento

de outras (e aqui nos referimos sobretudo aos planos de

melhoramentos que o centro das principais cidades brasileiras

sofreram no período). Em um âmbito maior, podemos dizer que tudo

deveria circular: pessoas, mercadorias e fluidos.

Já a questão da estética estava associada à imagem que se

pretendia formar para essas cidades. Aparentar um aspecto de cidade

civilizada, higiênica, “moderna” significava maior possibilidade de

manter contatos financeiros com o capital internacional, desta forma,

em grande medida, o que estava em jogo era o imaginário de cidade

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que se pretendia “vender”. Essas cidades precisavam se superar e se

transformar num espaço adequado às exigências do papel

desempenhado pelo Brasil na nova divisão internacional do trabalho.

A cidade passa a ser vista também como mercadoria.68

Ao analisarmos as três grandes questões do período: higiene,

circulação e estética, percebemos que a discussão sobre o urbano

estava tensionada por dois aspectos: a técnica (visto que o problema

da circulação pode ser entendido como um desmembramento do

problema da higiene) e a estética. Ou, dito de outra maneira, entre a

função (papel que a cidade em questão desempenhava dentro do

contexto em que se inseria) e a forma (digo, quanto ao seu desenho).

Claro que essa divisão não é tão rígida e nítida assim. As relações

entre elas, e a coexistência de ambas, é muito freqüente até tornar-

se simbiótica no Movimento Moderno.

Neste contexto, duas questões de fundo destacavam-se:

primeiramente, as condições das habitações, sobretudo as das

classes mais pobres; e segundo, a questão da educação. Os textos da

época apontavam para a necessidade de desenvolver uma nova

mentalidade na população, de se erguer uma nação, em que o povo

tivesse hábitos, modos e condutas civilizadas69. Caberia ao poder

68 Segundo Andrade: “A cidade como manufatura desenvolveu-se com o avanço do processo de urbanização do capitalismo industrial”. “...Na virada do século XIX para o XX, com a cultura urbanística oscilando entre a cidade como obra de arte e a cidade como manufatura, determinações que delimitavam campos do conhecimento e disciplinas distintas. Para alguns urbanistas de então, entre os quais Camillo Sitte, tratava-se de conciliar as dimensões técnica e estética na construção das cidades” (ANDRADE, 1992 c: 206). Segundo SZMRECSÁNYI: “...Esses capitais não apenas foram capazes de colaborar entre si como também mostram–se aptos a obter o apoio do Estado na provisão de serviços públicos essenciais, na regulação do parcelamento de terras com venda de lotes e na criação da infra–estrutura física dos sistemas de transportes e saneamento”. (SZMRECSÁNYI, 1993: 214). Portanto a cidade era , ela própria uma mercadoria. Esse aspecto é interessante pois, não que a vertente européia do urbanismo negasse isso, a discussão estética era extremamente forte, a exemplo de Sitte e Haussmann. Já a vertente americana está, ao que nos parece, mais associada à questão do capital, da interação entre o público e o privado, e da administração. São Paulo se insere, ao nosso ver, mais nesta dinâmica, sem com isso negar a nítida influência européia que sofreu.69 A exemplo de Theodoro Sampaio que aborda esses temas em seus escritos (COSTA, 1996) e de Saturnino de Brito (ANDRADE, 1992c).

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público - fosse via educação ou via legislação - promover uma

mudança de mentalidade da população a fim de abandonar o modo

de vida colonial e abraçar o “moderno”. É assim que ANDRADE

afirma:

“...sob o manto civilizador da ciência, a urbanística deveria ensinar os cidadãos a viverem em coletividade. Caberia então ao urbanismo disciplinar os comportamentos sociais tanto nos espaços públicos quando nos espaços privados, através da socialização do sentimento de intimidade e da negação de toda e qualquer promiscuidade, sobretudo através das ações dos higienistas e reformadores sociais” (ANDRADE, 1992c: 207 - 208).

Já a habitação, não raro, era vista como a célula organizadora

do urbano, e locus onde a reforma higiênica, estética e moral deveria

ter início. É nesta perspectiva que os comentários de BEGUIN acerca

da pesquisa de Chadwick ficam claros:

“... confirma a relação entre insalubridade e as más condições de habitação e uma taxa de mortalidade elevada, uma baixa esperança de vida e a doença, sua originalidade repousa na atenção dedicada ao custo econômico e social do desconforto”.(BEGUIN, 1991: 40).

Sendo assim:

“realizando as primeiras grandes operações de segregação espacial das cidades capitalistas, saneando e embelezando áreas deterioradas nos antigos cascos urbanos, o urbanismo do século XIX, através das obras realizadas ou das teorias formuladas, definiu o elenco das problemáticas urbanas que demandavam respostas ancoradas no avanço científico, mas que não podiam escapar às determinações estéticas das formas nas quais se expressavam, ainda que agora passassem a ser produzidas como objetos manufaturados, e não mais enquanto imagens representativas do poder de um príncipe, como no urbanismo barroco” (ANDRADE, 1992: 207).

Importante ressaltar que um dos instrumentos de intervenção

desta época era a legislação. Os Códigos de Posturas e as leis

higienísticas decretadas neste período apontam para isso. Se, por um

lado, havia a discussão sobre a necessidade de fomentar uma nova

mentalidade na população; por outro lado, as transformações dos

hábitos, costumes e crenças vigentes no período eram também foco

de ações coercitivas da lei. Contudo, não se pode ver em tais

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instrumentos apenas seu aspecto repressor. Eles constituem os

primeiros dispositivos de normalização da construção civil, de certa

forma, um antecedente dos atuais Códigos de Obras70. Por fim, cabe–

nos introduzir um debate teórico–conceitual e prático, fundamental

para se compreender as propostas do sanitarismo do final do século

passado e início deste. É a questão do saneamento de cunho

mesológico e o de cunho microbiano.

3.1.1. Saneamento Mesológico X Saneamento Microbiano

A teoria mesológica e a teoria do contágio buscavam:

“...explicar as condições do meio que favoreciam as doenças, bem como o modo delas se propagarem. Assim, após a descrição da topografia sanitária das cidades assoladas pelo mal, segue-se o registro dos pontos de passagem ou estadia dos doentes, bem como a condenação de reuniões e cerimônias coletivas. Revela-se, assim, que o controle das epidemias passará por uma ciência do território, dependerá de uma geopolítica e será exercido sobre grandes massas populacionais, anunciando modernas formas de controle político”. (ANDRADE, 1992 b:9 - 10) (Grifos meus).

É desta forma que ANDRADE, ao citar relatório francês do século

XVIII, descreve os objetivos das teorias mesológica e do contágio,

bem como o campo de ação de ambas. Entre os métodos utilizados

para o controle das epidemias estavam o cordão sanitário, a

quarentena, as fumegações, as fogueiras aromáticas, lavagens de cal

branca e rezas. Às vezes, quando a moléstia já estava instalada na

cidade a solução era abandoná-la71.

”...em uma cidade pestilenta, os quadros da sociedade se desfazem, pois, sob a ação do mal, a ordem cai. Aí então , a gratuidade imediata que impele a atos inúteis e sem lucros para a atualidade, contrapõe-se de modo subversivo às formas de sociabilidade estabelecida”.(ARTAUD apud ANDRADE, 1992 b: 13).

Essa afirmação é interessante na medida em que podemos perceber

que à questão da doença em si, a peste e, por conseqüência, do

saneamento agregavam-se outras de cunho social: a ordem, o

70 Para uma melhor discussão dos Códigos de Posturas ver GUNN (1998: 9).71 A exemplo do que ocorreu em Campinas por volta de 1889. (SOUZA, 1998).

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controle, a conduta.

Em meados do século XIX, segundo o médico Aguiar Fonseca,

em Pernambuco “os meios de evitar essas moléstias não eram as

quarentenas, nem os cordões sanitários. Mas obras e medidas

sanitárias que tinham por fim remover e prevenir as diferentes

condições localizadas” (ANDRADE, 1992 b: 16). Em muito, é isso que

a engenharia sanitária irá buscar fazer no final do século. É nesse

sentido que:

“...a higiene desempenhará a função principal de impedir o contágio em uma situação de amontoamento, desfazendo misturas e domesticando os corpos, impedindo a estagnação dos elementos do meio, como o ar e a água, e controlando os fluxos de toda a natureza”. (ANDRADE, 1992 b: 17).

A higiene, “enquanto técnica social, estará, pois diretamente

relacionada aos sentidos e às suas percepções, como também às

representações feitas, por uma certa sociedade, das doenças e dos

modos de cura”. (ANDRADE, 1992 b: 17).

A teoria mesológica está galgada nos postulados de Hipócrates

que estabelecia uma relação determinante entre as características do

meio físico e as condições de saúde, entre os aspectos físicos e os

costumes dos habitantes do lugar. Não buscarei traçar aqui a linha

evolutiva que une Hipócrates aos sanitaristas do século XIX. Destaco

apenas que estas idéias ao serem retomadas no século passado

suscitarão a formulação da noção de salubridade, isto é,

“...a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde possível aos indivíduos e a higiene pública como técnica de controle e de modificação dos elementos materiais do meio que são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário, prejudicar a saúde”.(ANDRADE, 1992 b: 22 - 23).

É isto que leva Andrade a afirmar que “não será à toa, portanto, a

presença de higienistas e sanitaristas entre os principais

formuladores das concepções organicistas da cidade, assim como as

freqüentes analogias entre a saúde da cidade e a do corpo humano”

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(ANDRADE, 1992 b: 23). Para os higienistas, as águas nas cidades

não podiam estagnar. Elas deveriam fluir. Este era também um dos

princípios básicos da Engenharia Sanitária que preconizava que as

águas deveriam circular de maneira salubre. A fim de fazer

desaparecer suas qualidades pútridas era preciso ordenar seu curso e

conduzí-las aos esgotos72. O mesmo era preconizado para o ar,

estando aí a razão das constantes propostas de derrubada de morros

e de outros acidentes geográficos.

A outra teoria que se articulava no século XIX, e que constituiu

como a mais legitimada e aceita no decorrer deste século, foi a

microbiana. “Louis Pasteur fez mais que estudar micróbios ou

descobrir vacinas (...) ele introduziu um novo paradigma científico”.73

Essa teoria, que teve talvez em John Snow seu primeiro articulador,

afirmava que a transmissão das doenças era feita por micróbios e não

por miasmas como era até então amplamente difundido e aceito. É

com essa assertiva que dar-se-á o início do embate entre a teoria

mesológica e a teoria microbiana de forma mais acirrada.

O problema que se colocava não era apenas de cunho teórico.

O contágio implicava em quarentena e em cordão sanitário que

limitavam a liberdade do indivíduo e do comércio opondo-se desta

forma aos interesses liberais-capitalistas da burguesia ascendente. É

bem verdade que por, outro lado, tal teoria substanciava a

intervenção no meio físico e promovia uma infra–estruturação do

mesmo. Vista sob o ângulo do capitalista, a produção do espaço

construído abria novas oportunidades de investimento (ver capítulo

II).

Quando Pasteur atribuiu a fermentação a microorganismos, ele 72 Os seguidores da teoria mesológica defendiam o “tout-à-l’égout” como forma de tratar as águas pútridas. Nesta concepção, as águas pluviais e as águas do esgoto iriam juntas em um mesmo leito. Em contrapartida, Pasteur defendia que os esgotos deveriam ser conduzidos até o mar por uma canalização separada. (ANDRADE, 1992 A: 80).73 Folha de São Paulo. “Entenda o que foi a Revolução Pasteuriana”. Ver ainda: BENCHIMOL (2000).

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pela primeira vez na história da medicina conseguiu precisar a causa

das doenças e mais, conseguiu desenvolver mecanismos para evitar

tais enfermidades: as vacinas. No Brasil, o principal seguidor dessa

teoria foi Oswaldo Cruz. Foi sob sua administração que a Diretoria

Geral de Saúde Pública do governo de Rodrigues Alves (1902-1906),

no Rio de Janeiro, protagonizou, segundo SEVCENKO (1998), um dos

episódios menos compreendidos da história recente do país: a

Revolta da Vacina74. Com o objetivo de combater a febre amarela,

malária, tifo, a tuberculose, a lepra, a varíola, doenças que assolavam

o Rio de Janeiro e colocavam em risco a economia do país, Oswaldo

Cruz recebeu plenos poderes do governo federal para sanear a

cidade. Indubitavelmente o fez com muita competência e com muita

organização, mas também com muito autoritarismo, introduzindo as

campanhas sanitárias de cunho nitidamente militar. A visão de

Oswaldo Cruz sobre a sociedade era igualmente autoritária,

baseando-se em uma equação simples: doença é igual a micróbio,

desencadeando desta forma uma cruzada contra os inimigos

invisíveis e seus vetores75.

As medidas do referido sanitarista de uma forma geral

eram tomadas com deboche pela população (sua “perseguição”

contra mosquitos e ratos), contudo, quando ele instituiu a vacinação

obrigatória, despertou a ira da mesma população. Dois fatores

contribuíram para isso: 1º- a população, sobretudo a mais pobre, não

compreendia a necessidade da vacina, ao mesmo tempo em que a

74 “...a vacinação desde o início do Império se transformou numa tarefa do poder público. Em meados do século XIX, o médico do Recife Dr. Joaquim Fonseca ocupou o cargo de Vacinador oficial da província além da presidência do Conselho de Salubridade. Depois de 1870 e especialmente no rastro dos avanços científicos da biologia iniciaram–se novos campos de pesquisas na Ecologia – denominado por Haekel – e na Eugenia – denominada por Galton. No campo de micro–biologia, seguindo as pesquisas de Louis Pasteur e Robert Koch houve uma concentração de descobertas dos micro–organismos responsáveis pelas doenças epidêmicas tropicais e outras. (...) As descobertas sobre a origem e o meio de transmissão das doenças iniciaram novas práticas baseadas na teoria de imunização antibacteriana”. (GUNN, 1998: 8).75 Folha de São Paulo. “Entenda o que foi a Revolução Pasteuriana”.

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via de forma incrédula e reservada, quando não, agressiva ao seu

corpo. Era em grande medida uma questão de mentalidade. A

“modernidade“ assustava. 2º- os vacinadores não eram habilidosos,

treinados para lidar com a população. O embate entre as partes não

raro gerava conflitos. Eles, a fim de levar a cabo suas obrigações

invadiam casas, exigiam que todos – idosos, mulheres e crianças -

expusessem braços e coxas para a vacinação. Isso tudo somado à

urbanização do “bota-abaixo” promovida por Pereira Passos na

mesma época e que expulsou milhares de pessoas de cortiços e

barracos localizados sobretudo no centro da cidade, agravou ainda

mais a situação de descontentamento da população.

Esse quadro levou à eclosão da Revolta da Vacina, que

uniu sindicalistas, monarquistas, anarquistas, positivistas, todos

contra Oswaldo Cruz. Seguiu-se um forte conflito com o surgimento

de barricadas que duraram cerca de 10 dias e que só veio a ser

debilitado por interferência do exército, da marinha, do corpo de

bombeiros e de reforços policias de São Paulo e Minas Gerais. Ao

término da revolta teve início à repressão.

“O chefe de polícia da capital deu ordens para que toda e qualquer pessoa abordada no centro da cidade que não pudesse comprovar emprego e residência fixos, fosse detida. Como a tripla reforma [portuária, sanitária e urbana] criara um imenso déficit habitacional e como a maior parte da população vivia de expedientes temporários, num mercado de emprego instável, esse decreto envolvia praticamente toda a população pobre. Os detidos eram levados para a ilha das Cobras, onde eram despidos e violentamente espancados, para então serem espremidos nos porões de vapores que partiam incontinente para a Amazônia. Lá, a pretexto de servir de mão-de-obra para a extração da borracha, os prisioneiros eram despejados no meio da selva, sem qualquer orientação nem guias, sem recursos nem ajuda médica, para desaparecer em meio à floresta” (SEVCENKO, 1998: 26).

Como percebe–se, a conduta médica encerrava uma forte intenção

“moralizante”, cujo conteúdo ideológico levava à exclusão de todos

aqueles que não apresentassem ou se aliassem ao perfil moderno

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que a elite queria imprimir à cidade e, em um plano maior, a toda

sociedade. Desta forma, as causas da referida revolta, não estariam

tanto no fato da população ser propriamente contra a vacinação, até

mesmo porque não tinham informações suficientes para formar um

juízo crítico próprio, mas nos métodos usados, na forma com que a

vacinação foi posta em prática76. Estes sim, despertavam a revolta

não só da população como também de todo um segmento da

sociedade, em particular aqueles contra a teoria microbiana, como

Saturnino de Brito. Neste sentido podemos entender as palavras de

ANDRADE:

“Saturnino de Brito, argumentando contra as práticas sanitaristas que promoviam o constrangimento dos corpos e a invasão dos lares pelos inspetores sanitários, baseadas segundo ele em conhecimentos suspeitos e práticas infundadas, recomendava (...) a moderação nos processos administrativos da higiene, quer dizer, o seu desenvolvimento pela educação, isto é, pela razão e pelo sentimento; essa moderação torna-se indispensável porque é incongruente pretender cuidar da higiene social ou individual por meio de processos que perturbem a integridade do homem e a paz salutar dos lares”. (ANDRADE, 1992 b).

Nesse sentido, pelo menos no Brasil, o embate entre a teoria do

contágio X teoria microbiana inseria-se num debate moral, ideológico

que remetia a uma concepção de sociedade, o que aponta para um

outro debate, este sobre o tipo de Estado que se estava gestando.

Segundo JULIÃO, os objetivos dos planejadores do final do

76 Interessante notar que a partir da década de 1920 há uma mudança na forma de tratar a questão sanitária, passa–se de medidas de caráter coercitivos para medidas baseadas na educação do indivíduo (CAMPOS, 1998: 2). Contudo há de se destacar dois aspectos: desde o período que estamos a analisar, a educação da população já está colocada com um dos elementos das medidas a serem tomadas, Sampaio é um bom exemplo disso. O segundo aspecto é que, no período, a questão sanitária era uma questão de vida ou morte, não que hoje não seja, contudo as proporções e danos imediatos eram assombrosos, o que, em certa medida, explica a medicina de resultados então praticada (a despeito do seu conteúdo ideológico segregador). Depois, já sanadas as epidemias, colocava-se a questão da medicina preventiva. Cabe ainda notar que: “A ligação do Saneamento com a saúde pública nasceu com a história dos europeus. Porque quando se construíram as grandes adutoras, já estava se fazendo saúde pública, só que não se conectava isso ao micróbio” (SILVA apud BUENO, 1994: 43).

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século passado e início deste era :“assegurar condições mínimas de

vida para uma população em rápido crescimento, normalizar a

ocupação e o uso dos espaços e equipamentos e adequar a cidade

aos negócios, às instituições e ao poder burguês”. (JULIÃO apud

CAMPOS, 1998:6). (Grifos meus). De nossa parte, acreditamos que

era a normatização da ocupação e do uso do solo o aspecto mais

importante dos planos realizados em São Paulo. Ainda nesta

perspectiva, é que a opção pela teoria mesológica ganha um outro

sentido. No embate com a teoria microbiana, aquela ganhava maior

aceitação uma vez que justificava cientificamente a dominação do

espaço. BRESCIANI afirma que :

“embora [tenha] ficado provado posteriormente o erro da teoria miasmática, sua influência foi salutar pois ao acreditarem que o cólera provinha de meio malsão (acúmulo de sujeira, superpopulação, deficiência de ar e luz, drenagem defeituosa, esgotos infectados, água poluída, alimentos estragados) dirigiram seus esforços no sentido de implementar medidas que remediassem o mal, ao invés de persistirem na prática das inúteis e costumeiras quarentenas”. (BRESCIANI apud LIMA, 1998).

Se se pensar bem, não havia tanta diferença entre as medidas a se

tomar e os resultados obtidos. Enquanto a teoria microbiana atacava

as causas, a teoria dos meios atacava não a doença em si mas as

condições propícias à manifestação desta. A teoria dos meios não

erradicava de vez a real fonte de propagação das doenças (vírus e

bactérias), mas minava o ambiente no qual tais seres se

desenvolviam. Eis porque, para o planejamento urbano, não havia

tanta diferença em ser seguidor de uma ou outra teoria77. O

problema surgia quando o debate sobre a cidade transcendia o

debate sobre o território e inseria-se em uma discussão mais ampla

que abarcava questões tais como: saúde pública, educação higiênica

e qualidade de vida da população. Em uma outra perspectiva, o

debate entre teoria mesológica x teoria microbiana envolvia um

77 Um bom caso para se observar isso é a prática profissional de Saturnino de Brito e Theodoro Sampaio. Ver COSTA (1998).

94

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debate de consolidação da medicina como uma ciência moderna.

Como a teoria dos miasmas buscava não apenas controlar a natureza

como o próprio meio78, ela prestava–se muito bem para os intuitos da

classe dominante.

3.1.2. Saturnino de Brito e o Saneamento de Santos

A atuação de Saturnino de Brito (1864-1929) no saneamento de

Santos foi marcante. As razões da execução das obras de

melhoramento de Santos eram justificadas basicamente por dois

fatores: de um lado, o fator econômico - a importância que a cidade

adquire como núcleo exportador; e de outro, às suas “condições

sanitárias, que a transformaram em um foco irradiador de doenças

para o interior, colocando em risco a entrada do imigrante e o

funcionamento do porto” (ANDRADE, 1991: 56). O plano de Saturnino

de Brito para Santos de 1905 “constituiu uma das primeiras obras do

urbanismo moderno” (ANDRADE, 1991: 55) no país. Algumas das

posições adotadas pelo sanitarista distinguem sua atuação das

demais efetuadas na mesma época, a saber:

diversos aparelhos e processos inovadores foram desenvolvidos

por Brito na construção dos esgotos santistas;

destaca-se, pela inovação: o emprego do concreto armado nos

canais de drenagem das águas pluviais, a adoção de estações

elevatórias distritais e a construção de inúmeras peças para as

instalações domiciliares;

propõe a construção de emissário submarino;

no campo da administração e da economia, esses trabalhos

inauguraram novos procedimentos no sentido de racionalizar

operações e obras;

o traçado do plano de expansão da cidade, cujo desenho era

extremamente moderno para a época. Nele destaca-se o

78 Nesse sentido consultar também GUNN, 1998.

95

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

respeito à topografia do terreno79 e o uso das diagonais,

subordinando o traçado a questões de salubridade. Na verdade,

esta estaria subordinando: a circulação, a estética e a

segurança; ainda nesse quesito destaca-se a adoção do sistema

separador absoluto para os esgotos da cidade, que possibilitou

a construção de canais a céu aberto, “principal elemento

formal” e estruturador do referido projeto;

a concepção de que era fundamental a previsão da expansão

da rede de esgoto, para o futuro desenvolvimento da cidade, a

médio e longo prazo;

a elaboração de planos gerais, cuja pertinência se devia a:

evitar o erro proveniente de deixar o crescimento urbano

suceder ao acaso, diminuir os conflitos entre interesses do

público e do privado e impedir que as obras de saneamento em

dado momento ficassem prejudicadas;

utilização do zoneamento80.

ANDRADE, vê no projeto dos canais de Santos o momento de

inauguração do “townscape tropical”, uma vez que tais obras

possibilitavam “novas práticas sociais e despertavam formas de

sensibilidade moderna”. Para ele, o desenho do referido plano, como

um todo destaca-se pelo seu racionalismo funcional e pela sua

beleza. As influências de Brito seriam: L’Enfant, as cidades-jardim e,

sobretudo, Sitte.

Ainda segundo esse autor,

“vemos, em Brito, o pinturesco de Sitte reconhecendo-se no urbanisme nascente, articulando-se com exigências

79 “Brito via em uma topografia acidentada a necessidade de as ruas se adequarem às linhas de drenagem das águas pluviais, de tal modo que os sistemas viário e de escoamento das águas pluviais coincidissem. Mas também considerava a possibilidade de aproveitamento das características pinturescas do terreno para obtenção de efeitos artísticos”. (ANDRADE, 1992 c: 209).80 “Um certo zoneamento já é indicado ao propor a Vila Monjardim como um núcleo operário, situado além da Vila Hortícola, a qual deveria atender às necessidades agrícolas da nova área urbana, embora jamais o zoneamento funcional da cidade venha a ser a base de seu urbanismo”. (ANDRADE, 1992 c: 221).

96

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higiênicas, o que só foi possível porque ambos partem da idéia de cidade como organismo, a cidade como um corpo, belo e são e, por isso mesmo, produtivo”. (Andrade, 1992: 210 - 211).

Positivista, partidário dos ortodoxos do Apostolado, incrédulo à

teoria microbiana, foi um ardoroso crítico desta, chegando a

ridicularizá-la. Quanto às investidas de Oswaldo Cruz, caracterizava-

as como “despotismo sanitário”:

“Mais do que um meio físico, a cidade, para Saturnino de Brito e os urbanistes, era também um meio moral. (...) Para Brito, a teoria dos meios era formada pelas “relações recíprocas entre os seres vivos e os modificadores mesológicos, este sendo considerado tanto do ponto de vista físico, químico e biológico dos meios líquidos, sólidos, e gasosos, quanto devido à influência de condições sociais e morais”.(ANDRADE, 1992: 228 - 229).

Defensor, inicialmente do sistema tout-à-l’égout e, depois, do

sistema separador; Brito defendia o lançamento in natura dos esgotos

em mar aberto, o que adotou no caso de Santos.

“Além de sanear as cidades tomadas ou ameaçadas pelas epidemias, o urbanismo de Saturnino de Brito dará a elas um padrão estético moderno, formas urbanas próprias de uma tecnologia de saneamento cuja implantação se tornou, durante toda a República Velha, um dos objetivos principais do Estado brasileiro. É nesse contexto que devemos situar a atividade profissional de Brito e suas posições teóricas em relação às cidades e a seu futuro”.(ANDRADE, 1992 c: 208).

Sua justificativa para a necessidade dos planos de conjunto era:

“ ‘Entre deixar extensão das cidades depender do acaso, dos caprichos dos proprietários e das administrações locais’ ou fazer algo em relação à orientação orgânica do crescimento da cidade, (...) opta pela segunda alternativa. Para Brito, trata-se de intervir no processo de urbanização, prevendo e ordenando o crescimento do organismo urbano. O acaso, os interesses fundiários dos proprietários e os interesses locais eram apontados como males que os planos gerais deveriam eliminar. Contra o acaso, a previsão sobre o modo de funcionamento e a extensão da cidade; contra os proprietários, uma legislação concernente à edificação e à urbanização apoiada em critérios científicos do urbanismo nascente; contra os interesses locais, uma administração e gestão centralizadas, evitando-se eleições para cargos administrativos, os quais deveriam ser ocupados apenas em função de critérios de reconhecida competência, de modo a se constituir um corpo técnico-administrativo permanente,

97

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

politicamente neutro e, por isso mesmo, para Brito eficiente”. (ANDRADE, 1992 c: 212).(Grifos meus).

A título de contraposição parece-nos pertinente ressaltar que,

embora não tenham alcançado a mesma magnitude e a mesma

relevância da obra de Saturnino de Brito, outros engenheiros,

inclusive com orientação teórica diferente da dele, elaboraram planos

(não só para Santos como para outras cidades brasileiras) igualmente

interessantes e que apontavam para as mesmas questões como é o

caso de Theodoro Sampaio. No capítulo VI discutiremos de forma

mais ampla o saneamento de Santos entre 1893 e 1905.

Sampaio diferentemente de Brito, não praticou um

sanitarismo de cunho mesológico, atuou galgado na teoria microbiana

(COSTA, 1998). Suas observações, conclusões e propostas em muito

se assemelham às de Brito. Distinguia-se daquele basicamente em

três pontos: a base teórica, a questão dos planos gerais (Sampaio

quase que intuía a necessidade destes, no entanto só em 1912 vai

formular de forma clara e concisa a necessidade dos mesmos) e o

campo de atuação (Sampaio atuou em grande parte de sua vida

profissional, no interior de órgãos públicos, o que certamente

interferiu em seu poder de ação; já Brito, estava menos

comprometido com as máquinas estatais). No mais, os problemas

levantados, a metodologia aplicada, os pontos focais de ambos

convergem para um mesmo horizonte: a Cidade Moderna.81

3.1.3. Sanear e Excluir

Uma das possíveis conclusões a que se chega ao estudar a

questão higienística dos séculos XVIII ao XX é que o saneamento das

cidades esteve sempre vinculado à exclusão. Fosse esta de cunho

técnico–científico, fosse de ordem social-cultural. Do ponto de vista

da técnica, sanear era retirar, excluir, segregar tudo aquilo que fosse

pútrido, fétido ou que impedisse a circulação dos fluidos (morros,

matas, curso de rios), ou ainda os agentes promotores de

81 Para uma melhor discussão sobre o assunto ver, COSTA, 1998.

98

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enfermidades, isto é, micróbios, bactérias, mosquitos. Sanear

pântanos, córregos, ruas - eliminar dejetos, lixos e excrementos - era

excluir tudo aquilo que de alguma forma apontasse para a sujeira,

para o impuro, para o obstáculo, para o inimigo. Era em grande

medida uma atitude que buscava o claro, o racional, o puro, o fluido,

o seguro, o aceito.

Do ponto de vista cultural, era excluir todas as idéias “antigas”,

era a busca do novo, de uma forma moderna de existir, viver, e

sobretudo de ocupar e ver a cidade. Buscava-se segregar tudo aquilo

que de alguma forma lembrasse o passado medieval ou, no nosso

caso, colonial, obstruidor do progresso ou que retardasse a

modernização e transformação da sociedade e, por conseqüência, da

cidade, palco definitivo da vida moderna. Desenvolver uma nova

sensibilidade que estivesse a serviço da modernidade, da concepção

burguesa da vida em detrimento das concepções medievais ou

coloniais, era então a tarefa do saneamento cultural.

Do ponto de vista social, era excluir tudo aquilo que

comprometesse o desenvolvimento capitalista, que se opusesse à

reprodução e manutenção da força de trabalho, inclusive hábitos e

costumes (o alcoolismo, a prostituição, a promiscuidade, a

“vagabundagem”) que interferiam na dinâmica veloz que a economia

e a cidade capitalista adquiriam. Santos, assim como São Paulo,

como veremos a seguir, é um bom exemplo disso. O saneamento da

cidade não trouxe apenas uma mudança físico–espacial-higienística,

buscou-se ao mesmo tempo uma mudança administrativa, social e

cultural82.

No caso particular do Brasil, a exclusão estava presente

também no projeto nacional. O projeto republicano visava descartar,

por exemplo, o negro, diferente do projeto imperial, nesse aspecto,

uma vez que o negro no Império não era cidadão, era escravo, e

82 Nesse sentido ver LANNA (1996).

99

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

portanto, “não fazia parte da nação”. Nesse sentido, a segregação

sanitarista era a tentativa de eliminar o pobre e o negro enquanto

agentes sociais83. Sendo assim, discordamos da posição de JULIÃO:

“(...) a nação brasileira e imprimir–lhe uma identidade capaz de proporcionar à sociedade uma consciência de sua unidade, mediante a instituição e o reforço de valores e direitos comuns.Ora, ao se associar a República à noção de progresso, procurava–se, justamente, obliterar a memória histórica da sociedade brasileira. O seu passado colonial e escravista maculava a imagem civilizatória do novo regime, devendo ser, portanto, desqualificado como fonte da identidade nacional. Configurou–se, por conseguinte, a busca de uma identidade que, contraditoriamente, não se fundava no passado, mas no futuro”. (JULIÃO apud CAMPOS, 1998: 4).

Questionamos em que medida o projeto republicano estava

preocupado em “criar uma identidade nacional”, parece-nos que esse

era o projeto do Império. Se a identidade nacional foi buscada, na

República, baseou–se no branqueamento e europeização brasileira

sendo feita às custas dos menos favorecidos. É nesta perspectiva que

afirmamos que muito pouco foi feito para mudar a mentalidade da

sociedade, particularmente em relação ao negro, e melhorar a sua

condição de vida.

Por estas razões, em um âmbito maior, podemos dizer que o

urbanismo então emergente buscava identificar e paralisar o inimigo e

83 É necessário que se diga que quando a Abolição ocorreu só uma pequena parte dos negros ainda eram escravos. Como já notamos anteriormente, a Abolição não incluiu um projeto que incorporasse os negros nem na economia, nem na política, nem no âmbito cultural. Como lembra MARTINS (1979) os cafeicultores paulistas preferiam a mão de obra estrangeira a do negro. O mesmo autor assinala também que a liberdade do negro estava associada ao ócio, isto é, ao direito de nada fazer. Se, de fato, isso ocorreu, essa afirmação é pertinente só em parte, pois os negros, libertos tinham que trabalhar para manter a sua sobrevivência. Em uma economia capitalista, como a que emergia, isso implicava na venda da força de trabalho. Sabido é, que parte da população negra após a Abolição da Escravatura fez o caminho inverso: rumo à África. Contudo a pergunta que se faz é: que destino levou a outra fração que aqui permaneceu? Essa pergunta torna–se relevante quando notamos que no censo de 1872, 22,40% da soma da população dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas era negra e que essa população correspondia a 54,26% de toda a população negra do país (SAMPAIO, 1978: 89). Logo a exclusão dessa fração da população, não se fazia “apenas” pela cor da epiderme destes, se fazia em um plano muito pior que era o da exclusão dos negros como possível força de trabalho, o que só vem a acentuar as outras exclusões a que estavam sujeitos.

100

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que este não mais estava fora da cidade, como na cidade medieval,

mas sim dentro dela. Como sugere PECHMAN (1997), o urbanista seria

um detetive, aquele indivíduo que iria identificar a patologia, o crime

e o criminoso, buscando antecipar-se a ele e portanto pará-lo. Ou de

outra forma: sanear era uma questão de “vigiar e punir” tudo aquilo

ou todo aquele que não se enquadrasse na nova ordem que se

estabelecia.

3.2. A CONCEPÇÃO HISTORICISTA DE CAMILLO SITTE.

Publicado em 1889, o livro de Camillo Sitte, A Construção das

Cidades Segundo seus Princípios Artísticos, de imediato recebeu uma

grande acolhida por parte dos profissionais da área. Escrito, segundo

alguns autores, como uma resposta-crítica às obras que o Barão de

Haussmann operou na Paris do século passado, e em um patamar

mais amplo, como uma crítica à forma com que as cidade vinham

sendo “construídas” à sua época.

Um dos pontos que gostaríamos de destacar deste livro, é a

utilização do suporte histórico como instrumento projetual. As suas

considerações a respeito do passado não têm um caráter de erudição,

mas antes, uma forma de compreensão dos princípios que nortearam

no passado a construção das cidades e que deveriam ser

apreendidos, não na sua forma, mas na sua essência. Portanto, nele,

a análise histórica é uma opção metodológica. Neste sentido, parece-

nos ser uma das teses deste livro, não a exposição apenas de uma

maneira/forma de produção da cidade, mas antes, a exposição de

uma maneira galgada em uma “natureza intrínseca” à própria cidade,

na existência de uma essência estético - antropológica no construir as

cidades, na qual as dimensões tácitas do espaço são determinantes

para o sucesso da empreitada.

101

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

Logo na introdução do seu livro, o referido autor defende a

construção da cidade não meramente como uma questão técnica,

mas antes estética, e que segundo Aristóteles e Pausânias “Não se

pode chamar de cidade um lugar onde não existam praças e edifícios

públicos”. SITTE busca no passado (sobretudo na Antigüidade) as

bases de sua argumentação, porém não descarta em momento algum

a questão técnica, concentrando-se nas praças e espaços públicos.

No capítulo “A relação entre construção, monumentos e

praças”, Sitte introduz um conceito particularmente interessante para

nós: “pinturesco”. “No original alemão, malerisch, termo

costumeiramente traduzido por pictórico ou pitoresco. todavia, por se

tratar de um termo-chave - em Sitte - cuja concepção do elemento

pictórico na imagem urbana (...) confere relevância ao seu caráter

pitoresco -, optamos pelo arcaico pinturesco, que, apesar de causar

certa estranheza, associa pintura com pitoresco, mostrando-se mais

eficiente na tradução”84.

SITTE aceitava que a arte cedesse lugar, quando fosse o caso,

aos aspectos de higiene ou outros que se apresentassem como

prioritários, justificando sua pesquisa como uma forma de

apresentação dos conhecimentos antigos no tratamento do espaço

público.

“A coesão das praças” tem como mote a relação das ruas com

as edificações, defendendo que as ruas deveriam ser perpendiculares

à linha de visão. Ele era contra os grandes espaços vazios,

contrapondo-os aos espaços com a presença de edifícios e obras de

arte que, a depender da distribuição no espaço, poderiam causar uma

sensação de fechamento, de aconchego, coisa que ele identificava na

cidade antiga e que gostaria de conservar. Em “Irregularidades das

praças antigas” é o momento de discutir a irregularidade dos espaços

em sua dimensão estética, como é percebida pelos homens, assim

84 Nota de pé de página do tradutor do livro. (SITTE, 1992)

102

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como o efeito que causam; a simetria e a concepção de tabuleiro

xadrez dos sistemas modernos, criticando-o. Dá destaque à

introdução da perspectiva como instrumento projetual a partir do

Barroco.

SITTE critica a produção do seu tempo duramente. Segundo ele,

“nos tempos recentes há uma dissociação entre a construção urbana

e a arquitetura e outras artes”. Critica as ruas retas, que só

atenderiam à circulação, não dando a devida atenção ao fator

estético. Não é contra a retilineidade propriamente dita, é sim contra

não se tirar partido disso quando a retilineidade for precisa.

Argumenta que a implantação das ruas de forma perpendicular e

rígida não foi empecilho aos conjuntos barrocos que seguiam este

esquema para conseguirem obter efeitos estéticos. Ele tinha uma

clara preocupação com o sítio: a topografia, deveria ser rejeitada no

projeto. Outro ponto criticado são as alamedas e os jardins, que só

encontram bons resultados nos bairros residenciais. Nas áreas

centrais das cidades, a vegetação mal localizada atrapalha a

apreciação das obras principais. As largas e longas avenidas

cercadas de árvores, não escapam à monotonia. Os jardins

modernos, abertos, fogem aos objetivos da higiene a que se propõem,

principalmente durante o verão quando a livre circulação dos ventos

espalha a poeira e o calor e que as novas avenidas e os novos

requisitos da circulação e da economia são incompatíveis com os

antigas características dos espaços públicos.

Ao longo do texto, fica claro que Sitte não negava os avanços da

ciência, da técnica, nem das condições de contorno que a vida

moderna impunham aos cidadãos e à cidade. Tampouco, para ele era

o caso de criar pastiches do passado, pois a “régua e o compasso”

não podem substituir a casualidade. Não seria possível reconstruir as

linhas de contorno do tempo pretérito. Propõe, sim, que a arte e a

técnica tivessem a mesma importância.

103

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

Já quase no fim do livro, há uma sistematização das idéias

anteriormente expostas pelo autor, sugerindo um método projetual:

primeiro um estudo das condições de contorno e, segundo, uma

resposta a essas condições. É quando defende a necessidade de um

plano de conjunto, que ele chama de programa a ser seguido. Este

constaria de dois pontos fundamentais: a) estudo do possível

crescimento da cidade (horizonte de 50 anos), denotando uma certa

separação de funções (circulação, residência, vilas suburbanas, zonas

destinadas ao comércio e às indústrias); b) “com base nestas

informações indispensáveis, deveriam ser definidas a quantidade, as

dimensões e a forma aproximada dos edifícios públicos

programados”.

Daí passa a defender os estudos de melhores agrupamentos

para esses edifícios, a fim de aproveitar a topografia do sítio;

incorporando os acidentes geográficos objetivando tirar partido do

inesperado, das visuais que o terreno podesse oferecer, afim de

hierarquizar as praças, os espaços públicos. Do ponto de vista

sanitário, as quebras das ruas eram aconselhadas, pois resguardam

as pessoas dos ventos e das tempestades, o que no sistema ortogonal

não ocorreria.

A influência de SITTE no pensamento urbano brasileiro, tem na

obra do engenheiro Saturnino de Brito, o caso mais bem estudado85.

3.3. A CIDADE-JARDIM E HOWARD.

Ebenezer Howard escreve em 1898 o livro Tomorrow: A Peaceful

Path to Social Reform, posteriormente (1902) reeditado como

Gardens Cites of To-morrow. A sua época era fortemente marcada

pela rejeição à grande cidade levando ao desenvolvimento de um

forte desejo pela vida e trabalho na pequena cidade, um desejo por

85 Referimo-nos aqui a um conjunto de artigos de Carlos Roberto Monteiro de

Andrade sobre Saturnino de Brito.

104

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um real envolvimento em assuntos comunitários, como também, um

desejo de transformação do estilo de vida (buscava-se o verde, a

qualidade do ambiente em oposição ao que havia), e social, vendo o

caminho para isso através de um projeto para uma cidade nova. O

livro, por ter um sólido sentido prático, obteve êxito imediato e

considerável. Confirma isso a construção de Lethworth (1903) e

Welwyn (1919).

Howard afirma que sua proposta não se enquadra nem no

socialismo, nem no comunismo, nem tampouco no capitalismo. Ele

levantava a alternativa de juntar as vantagens de se viver no campo

com as de se viver nas cidades; “por que ter que viver na cidade ou

no campo, e não em um lugar onde fosse possível a combinação de

todas as vantagens de uma vida cidadã decisivamente dinâmica e

ativa com a beleza e o deleite do campo. Neste lugar seria construída

uma nova forma de vida que compartilharia a natureza dos dois

pólos: campo e cidade”. Ainda segundo ele, “a união entre cidade e

campo seria a oportunidade de se elevar o nível de saúde e de bem

estar, de se aplicar de fato os princípios éticos e econômicos, seria

enfim, a oportunidade do social se manifestar plenamente”. Para

Howard, a cidade-jardim teria as seguintes vantagens: garantia do

princípio de liberdade; valorização da natureza humana e estímulo ao

desenvolvimento da capacidade altruísta; existência de um equilíbrio

entre o individual e o coletivo. Permitiria ainda que o individual e o

coletivo desenvolvessem um largo esforço de cooperação e que o

homem realizasse o seu desejo de produzir para uso e deleite

pessoal. A Cidade-Jardim também estimularia a independência e a

iniciativa das pessoas de modo que o homem pudesse se auto-gerir

possibilitando a concorrência leal e não o monopólio exacerbado.

Absorveria as comunidades preexistentes; não restringiria direitos, ao

contrário, ampliando-os; permitiria uma combinação prévia dos

interesses. Dirigindo-se a indivíduos, grupos, entidades e cooperativas

105

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

basear-se-ia em princípios éticos, morais e econômicos.

Desta forma podemos afirmar que as cidades - jardins estão

relacionadas com a tentativa de construir mais que uma cidade, antes

uma sociedade. Estando essa sociedade configurada em uma cidade

autônoma, cujos jardins despontam como uma crítica à metrópole e

buscam a qualidade de vida. Para ele, na construção de uma cidade -

jardim “é mais simples e ordinário, mais econômico e absolutamente

satisfatório partir de um material novo para criar um novo

instrumento, do que reformar e modificar um velho”. (HOWARD,

1996)

A viabilidade do empreendimento se faria via empréstimo

contraído por “quatro cavaleiros de situação respeitável e de

confirmada honradez” sendo a terra adquirida por estes e tendo um

único proprietário, a comunidade, representada pela municipalidade.

Seria uma cidade de crescimento limitado, tendo sua dimensão física

limitada por um cinturão verde. Uma vez alcançado seu limite,

construir-se-ía uma outra cidade-jardim ligada a essa por estradas de

ferro, seu transporte básico. Desta forma, Howard estava pensando

num sistema de cidades, onde a cidade-jardim “original” seria o

centro e as outras que se acoplassem a ela, seriam cidades satélites.

Autônomas na produção agrícola e com pequenas indústrias, essas

cidades objetivavam antes de mais nada o abastecimento destas, não

vendo problema na exportação do excedente.

Possivelmente, por estar mais preocupado com a estrutura e

concepção de uma sociedade, a Cidade-Jardim de Howard ainda não é

uma cidade propriamente dita, mas antes um esquema que, como ele

próprio afirma, deverá ter sua forma estudada por arquitetos.

Apresenta um esquema de como ele a vislumbrava: radiocêntrica,

com a presença de um parque central, de avenidas e bulevares

fartamente arborizados, edifícios públicos, mercado central, habitação

unifamiliar - cujas condições higiênicas deveriam ser controladas pela

106

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municipalidade - sendo sua tipologia arquitetônica variada (algumas

casas seriam providas de jardins comuns e cozinhas cooperativas),

estando sua localização intimamente relacionada com o local de

trabalho.

Gostaríamos de nos deter em três aspectos particularmente

importantes para nós: a questão fundiária, o papel das ferrovias e o

desenho da cidade.

Parece-nos relativamente claro que em boa medida, a cidade-

jardim de Howard é uma resposta à teoria de mercado e da renda da

terra, formuladas por economistas como Von Thünen, neo-clássico, e

Ricardo, ligado à economia política. Para Ricardo, a renda fundiária

era uma manifestação particular da riqueza social. As classes sociais

não eram vistas pelo acúmulo de riqueza mas através das relações

econômicas. Segundo ele, os latifundiários não produzem, mas têm

direito a parte do lucro, dado pelo direito à propriedade. Para ele, a

riqueza produzida no campo não é obtida pelos trabalhadores, e sim

pelos proprietários da terra.

Já para Von Thünen, a riqueza é uma coisa escassa. Sua teoria

da renda da terra tenta explicar a melhor forma de utilizar essa

escassez. O proprietário é um ser passivo, e o mercado seria o melhor

locador do uso do solo. A renda seria a expressão da concorrência

espacial. Essas idéias na década de 1960 serão reelaboradas por

Alonso para a renda da terra urbana. 86

86 É interessante notar a semelhança entre o modelo utilizado por Thünen e o

modelo de cidade de Howard. Ambos são radiocêntricos. O primeiro localiza no

centro o mercado e o segundo o localiza nas suas proximidades. Já a estrutura de

cidade obtida por Alonso (1964) baseado na Renda da Terra Urbana, é bem parecida

com a de Howard: seu modelo é concêntrico, onde no centro estaria o comércio,

depois as famílias e por fim a agricultura. Diferindo marcadamente pelo fato de nas

cidade-jardim de Howard o centro propriamente dito ser ocupado por um jardim

tendo nas suas proximidades o comércio. Com essas observações não queremos

dizer que Howard foi um antecipador de Alonso, apenas sugerimos que seu modelo

107

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

Ora, partindo destas premissas, aliado ao fato de Howard ser

abertamente contra a organização social/produtiva capitalista, é

razoável pensar que sua cidade-jardim vem a atacar exatamente

essas formas de apropriação da renda da terra, de acúmulo de

riqueza, pois ao propor que a terra seja bem comum e que os lucros

advindos da valorização destas (seja pela transformação do solo

agrário em urbano, seja pela infraestruturação da cidade ou ainda

pela produção agrária) sejam revertidos para a própria sociedade

(seus reais proprietários) ele está se contrapondo à lei do mercado,

por um lado, e, por outro, negando o acúmulo do capital por apenas

uma classe social. Precipitado seria afirmar que Howard estivesse

defendendo a formação de uma sociedade socialista ou comunista

(declaradamente ele é contra estas). Na verdade, seu modelo é mais

complexo. Complexo, pois ele não nega as leis do mercado, visto que

vai ao mesmo para adquirir as terras, paga-as sujeito as suas leis

(com seus juros e lucros), entretanto, uma vez construída a Cidade-

Jardim, ela agiria fora destas leis que a viabilizaram. Aqui, fica uma

dúvida: como poderia uma cidade que se desenvolve fora das regras

do mercado se relacionar com outras cidades que por sua vez estão

sujeitas a estas leis por ela negadas?

O segundo aspecto que gostaríamos de destacar é o papel

estruturador do espaço que as ferrovias desempenham nas cidades-

jardins. LINS, busca compreender como dentro das propostas de

Cidades Jardins, Cidade Linear e Cidade Industrial, foi utilizada a

ferrovia, meio de transporte recentemente criado, como definidor de

conceitos e desenhos de cidades. Segundo o autor, na Cidade-Jardim

de Howard:

“O limite externo que define o plano de transição entre a cidade e o campo é caracterizado pelo anel ferroviário (...). a ferrovia, nesse

de cidade guarda relações com o modelo de cidade gestada pela economia urbana.

Como referência da obra de Alonso ver de autoria do mesmo: Location and Land Use

(1964), em particular capítulo I e II.

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caso, é definidora do espaço urbano, como se a área por ela ocupada formasse um anel divisório, quase como uma muralha. Junto à faixa de domínio da estrada de ferro estão dispostas as fábricas e os depósitos, reforçando a divisão espacial cidade-campo. (...), a relação da cidade jardim com seu território é estabelecido pela via férrea. Assim também é tratada a ligação dos diversos núcleos urbanos e o que seria a capital, numa rede de cidades jardins, (...)” (LINS, 1998).

Quanto à primeira parte das colocações de LINS, não estamos

bem certos, visto que o objetivo maior de Howard era unir os

melhores aspectos da cidade e do campo e não segregá-los. Já a

segunda parte de suas afirmações nos parece muito interessante,

uma vez que indicam a ferrovia como elemento estruturador, capaz

de dar unidade ao espaço, isto é, ligar áreas distintas, possibilitar a

fluidez de pessoas e mercadorias, e ser um meio de transporte

coletivo.

O último aspecto que gostaríamos de destacar é o aspecto

formal da proposta, seu desenho propriamente dito. Segundo o

próprio autor: os diagramas por ele apresentados seriam “úteis para

acompanhar a descrição da cidade em si - descrição que consiste em

mera sugestão, a ser provavelmente muito modificada”. (HOWARD,

1996). Disso advém que seu desenho não é uma forma fechada,

podendo ser amplamente modificado. Sua preocupação maior era

com o conceito de cidade e não com a forma, podendo esta adquirir

outra configuração a depender do seu projetista. Creio que aqui o que

se coloca é que para ele, a concepção de sociedade é mais forte do

que o seu desenho. É razoável pensar que desde que não houvesse

“traição” daqueles pressupostos por ele defendidos, a forma que a

cidade iria obter, pouco importava.

De fato, o desenho que ficou como marca registrada das

cidades-jardins foi concebido, por Raymond Unwin e Barry Parker

(Letchworth) e Louis de Soissons (Welwyn). É bem verdade que tais

desenhos contavam com a aprovação de Howard, visto que ele estava

diretamente ligado à construção de ambas as cidades. Contudo, em

109

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

uma nota de rodapé de seu livro, ele faz um comentário interessante

sobre o desenho das cidades, ao comentar o crescimento das cidades

americanas:

“É comum pensar que as cidades dos Estados Unidos são planejadas. Isso somente é verdadeiro no sentido mas inadequado. As cidades americanas certamente não constituem intricados labirintos de ruas cujas linhas parecem ter sido traçadas por vacas (...). Algumas ruas são traçadas, e à proporção que a cidade cresce, vão sendo estendidas e repetidas com uma monotonia raramente interrompida. Washington é uma magnífica exceção a esse padrão de arruamento, mas mesmo essa cidade não está planejada com a finalidade de assegurar a sua população acesso fácil à natureza, pois seus parques não são centrais nem suas escolas e outros edifícios estão distribuídos de forma científica”.87

Bem, o plano de L’Enfant (1791) para Washington decerto não

se assemelha ao desenho que se tornou marca das cidades-jardins. O

que, ao nosso ver, vem a confirmar nossa hipótese. Uma outra

observação que gostaríamos de fazer é que, no desenho de uma

cidade, os aspectos que mais chamavam a atenção de Howard eram:

a acessibilidade das pessoas à natureza e aos edifícios públicos, o

zoneamento funcional, assim como a dimensão estética, que o

arruamento das cidades deveriam ter (ele fala de monotonia,

simetria, beleza).88

Duas cidades foram construídas sob as diretrizes das idéias de

Howard assim como sob sua interferência pessoal - Lethworth e

Welwyn. Ambas constituíram-se em tentativas bem sucedidas de

implementação dessas idéias, não obstante as dificuldades e ajuste

que foi necessário operar. O desenho destas cidades difere

significativamente do proposto por Howard - não são radiocêntricas,

as ferrovias cortam as cidades ao meio. Conserva-se o cinturão verde

87 Howard,1996 , Nota 21. Igualmente interessante é a Nota 22, onde comenta o crescimento das cidades inglesas, operadas por proprietários que interviam de forma pontual e especulatória na cidade destacando a necessidade de planos gerais. A título de localização, cabe lembrar que Howard mora por quatro anos nos EUA, em Chicago, não sendo impossível que ele conhecesse o projeto de Washington de perto.88 Nesse sentido ver HOWARD, 1996: notas 21 e 22.

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e a forte presença de parques e ruas arborizadas. O zoneamento

funcional, também foi implementado. O desenho das ruas é sinuoso,

evitando o geometrismo e há a presença das unidades de vizinhança.

É dada uma atenção especial à moradia operária. Nestas cidades o

espírito de construção de uma nova comunidade perpassava toda a

sociedade local. Conseguiram constituir-se como cidades autônomas

e não como “simples” subúrbios - jardins. A propriedade da terra era

da comunidade e os lucros advindos da valorização das terras eram

revertidos na infra-estruturação das mesmas. Nelas, a indústria e o

comércio floresceram dentro dos cânones howardianos.

As idéias de Howard tiveram uma repercussão que extrapolou a

Inglaterra, chegando ao Brasil, de forma mais contundente, por volta

da década de 1910 em São Paulo através da Companhia City e tendo

como características uma forte relação entre a Prefeitura e a

Companhia, de capital estrangeiro; e um forte caráter de especulação

imobiliária. Em São Paulo não houve a construção de uma cidade-

jardim, houve sim, a construção de bairros - jardins. Para isso foi

escolhido o quadrilátero sudoeste da cidade, que contou com projetos

de Barry Parker (propondo e/ou construindo) para os bairros do

Pacaembu, Jardim América entre outros (uns destes destinados às

classes menos favorecidas, outros destinados à alta classe

paulistana). Das idéias de Howard, o que ficou nestes

empreendimentos foi o nome da cidade, com sua forte conotação

simbólica e a forte presença de jardins e avenidas arborizadas e as

condições sanitárias - higiênicas. De resto, o desenho que Unwin e

Parker criaram para Letchworth: ruas sinuosas e curvas, jardins

internos aos quarteirões, a relação casa-cidade, e a implantação do

empreendimento no terreno (topografia, insolação, disposição do

sistema viário). Aqui as ferrovias não exerceram nenhum papel na

definição do espaço. Destes projetos, o que mais se notabilizou foi o

do Jardim América.

111

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

3.4. A EXPERIÊNCIA ALEMÃ

Ao que tudo indica, a origem mais remota da palavra urbanismo

vem da tradução da palavra alemã stadtplan (plano da cidade) que

era usada conjuntamente com stadtbau (construção da cidade) desde

meados do século XIX (SIMÕES, 1990), contudo não é só o termo que

vem do alemão. Segundo PINEDO JUNIOR (1988, 86):

“A origem do corpo disciplinar [urbanismo] no final do século XIX e começo do século XX vem no sentido de responder as necessidades de controlar não só as deseconomias provocadas pelas novas necessidades criadas pelo fator de aglomeração e as condições gerais de produção como também pelo rebaixamento dos custos de reprodução da força de trabalho. O surgimento do instrumental de Zoning Planing (teoria do zoneamento Urbano) proposta por Franz Adicks, em Frankfurt em 1893 e depois transformada em legislação para toda a Alemanha tinha um nítido sentido de controlar as rendas fundiárias urbanas dentro da cidade do capital”.(grifos meus).

Sendo assim, é também do alemão que vem um dos instrumentos

mais poderosos do urbanismo: o zoneamento. Como se vê, desde

sempre, intimamente relacionado à renda fundiária e ao valor do solo

urbano. Sampaio, como veremos adiante, compactuava com essas

idéias.

Um dos grandes propulsores do que veio a se estabelecer como

urbanismo foi Joseph Stübben (1845-1936). Coube a este urbanista

alemão elaborar em 1881 o plano de extensão da cidade de Colônia.

Contemporâneo de SITTE, escreveu entre 1883 e 1890, Der Städtebau

(a construção de cidades). Stübben tinha grande interesse pelo

problema da circulação – do tráfego. Para ele, a base do plano de

construção das cidades estava no sentido do tráfego e no sentido de

seu fluxo. Contudo sua concepção de plano de extensão das cidades

era mais ampla, na verdade, baseava-se em quatro aspectos, a saber:

circulação, higiene, edificação e estética.

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Destes quatro aspectos, os que mais interessam para os nossos

intuitos são os três últimos. No aspecto higiênico, segundo SIMÕES

(1990: 14):

“Stübben, propõe a obediência do plano a quatro requisitos básicos: a defesa do solo contra as águas potáveis, o estabelecimento do serviço de esgotos e a boa insolação (orientação e largura das ruas em função da altura dos edifícios);

Já quanto as edificações o mesmo autor afirma:

“Stübben sugere que, nos planos gerais de intervenção, sejam sempre definidos previamente os locais para a futura construção de edifícios públicos significativos (...). Os cruzamentos de ruas formando ângulo agudo, devido à presença de transversais, não devem ser evitados, mas sim trabalhados de forma a se integrar harmonicamente com o entorno. Estabelece também tamanhos ideais para os quarteirões, em função de seu uso e ocupação (residencial, comercial, industrial). Por último, sugere que o parcelamento dos lotes seja executado de forma a ter a linha de divisa sempre perpendicular ao alinhamento da rua”. (grifos meus).

E por fim, sobre os aspectos estéticos SIMÕES (1990, 15)

coloca:

“a concepção de Stübben não é favorável ao uso exclusivo da linha reta nos arruamentos, podendo-se em alguns casos se utilizar de curvas suaves no ajuste e contornos superficiais, sobretudo em situações de elevação acentuada do nível da rua. O aspecto pitoresco deve ser evitado através de mudanças constantes no alinhamento, nos passeios e mesmo nas pistas dos arruamentos de grande extensão”.

Como se vê, na gênese do urbanismo alemão, já estavam colocados

os problemas centrais: circulação, estética, higiene e edificação como

elementos fundamentais na estruturação do urbano. Note-se que

mais que uma proximidade com a solução, são os problemas e a

forma como eles são postos que os aproximam das questões postas

por Sampaio, como veremos a seguir.

Acreditamos que já no final do século XIX havia um fluxo alemão

de idéias para o Brasil; na capital paulista isso vai estar posto de

forma mais explícita a partir da década de 1920. Em São Paulo a

questão do adensamento, isto é, da verticalização está intimamente

113

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

ligado com as experiências de zoneamento europeu, em particular

alemã (SOMEKH, 1997: 34). Anhaia Mello, segundo SOMEKH

(1997:43), acreditava que o modelo alemão de urbanismo “conseguira

transformar suas cidades industriais num organismo a serviço da

população, “pela educação, pela higiene, pelo contato íntimo entre o

perito e o administrador, tornando a política serva da ciência””. Outra

referência explícita ao urbanismo alemão é feita por Prestes Maia:

“Citando o “Städebau” de Stübben, Prestes Maia afirmava

que nos Estados Unidos a grande atividade urbanística

desde o início do século tinha influência da literatura

urbanística alemã. Na Alemanha, o urbanismo tinha sido

elevado ao grau de ciência e somente nesse país

reconheceu-se a cidade como ponto central da civilização

futura. Os americanos, porém, atacavam os problemas com

maior grandiosidade que os alemães. (...). A prática alemã

da regulamentação de construções por zonas foi imitada,

adaptada e desenvolvida em Nova York e em outras cidades

americanas. Nos Estados Unidos o urbanismo tornou-se

objeto de sociedades particulares, mas sua eficácia parecia

ser mais aparente do que real, sobretudo em comparação

com a Alemanha”. (SOMEKH, 1997: 55).

Se a partir de 1920 esses problemas já estão claramente postos,

antes já vinham sendo gestados e, em certa medida, discutidos pelos

engenheiros da virada do XIX para o XX. Em particular, Sampaio

vinha se aproximando destas questões e apontando para certas

proposições que posteriormente tomaram corpo definitivo.

Chamamos ainda a atenção para o fato do urbanismo nos Estados

Unidos da América ter bebido desta fonte. Ao longo desta

dissertação, pretendemos argumentar que o urbanismo gestado por

Sampaio aproximava-se do americano, não tanto pelas soluções

apresentadas, mas muito mais pelos problemas postos e pela maneira

como eram enfrentados. Nesse sentido, cremos que Sampaio

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aproximou-se sim do “urbanismo” alemão de então, refletindo sobre

as questões postas assim como sobre as soluções apontadas89. Talvez

tenha sido a legislação a maior influência alemã de Theodoro

Sampaio.

Segundo TOLEDO (1996: 245):

“A Alemanha desenvolveu grande atividade urbanística, tanto teórica quanto prática, principalmente a partir da última década do século XIX. Essa ação foi facilitada e encorajada pela legislação referente às intervenções urbanas, os planos de extensão multiplicaram-se, como conseqüência do processo de industrialização do país, e também do desenvolvimento da rede de estradas de ferro”

Ainda segundo o mesmo autor, delineavam-se “duas tendências

básicas de princípios no planejamento urbano alemão”, a saber:

“Uma refletia a abordagem técnica dos problemas que mais chamavam a atenção na época, como o tráfego, saneamento, condições de habitação, legislação, etc, e era adotada pela maioria dos órgãos governamentais. A outra tendência questionava o modelo “oficial” e preocupava-se mais com aspectos estéticos e arquitetônico do planejamento, caso de Sitte e de seus seguidores”.

Concentremo-nos na legislação alemã. É sabido que as legislações

urbanísticas foram resultantes da evolução das leis sanitárias.

Decorrentes daquelas, os planos de remodelação e expansão das

cidades, tornaram-se obrigatórias. De certo que a Alemanha não foi a

primeira a elaborar uma lei nestes moldes, contudo foi ela que deu

um significativo exemplo “ao atuar com grande realismo e abordar de

maneira metódica a questão da remodelação e expansão da cidade”

(TOLEDO, 1996: 254).

É assim que

“Em 1891 o burgomestre de Frankfurt, Franz Adickes, fez com que se aprovasse um plano de ocupação do solo dividindo a cidade e suas áreas de expansão em zonas, cada qual com função e regulamentação específica. O método teve grande aceitação na Prússia e em outros estados alemães, dando origem ao termo “zonung”. Em 1901, o mesmo Adickes, aprovou uma lei que foi, a seguir, adotada em outras localidades, facilitando às comunas a

89 Sampaio em seus diários do período cita textualmente o nome de Stübben.

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

obtenção dos terrenos necessários para a transformação e extensão das cidades.O sistema administrativo permitia, assim, o controle eficaz desse processo provendo medidas que abordassem o problema numa escala maior, resultando em intervenções mais homogêneas e desetimulando os empreendimentos isolados. As cidades poderiam, desta forma, intervir nas questões urbanas, tais como o tráfego e a circulação no centro, de forma efetiva, e planos de extensão também seriam elaborados; eram ainda, como citado, divididas em “zonas” determinando a destinação de cada bairro e regulamentando usos, densidade, tipo de ocupação. O exemplo alemão exerceria considerável influência na elaboração e estabelecimento de leis de zoneamento nos outros países...” (TOLEDO, 1996: 255).

Daqui se apreende que a legislação – planos – zoneamento –

administração – questão fundiária estavam sendo articuladas

intimamente, fazendo parte do cerne da questão urbana como

colocada pelos alemãs. O zoneamento como instrumento de controle

do espaço construído permitia à administração estabelecer os

parâmetros para o crescimento da cidade e, desta forma,

operacionalizar as transformações que ela requeria.

Ao nosso ver, Sampaio enfrentava, guardando as devidas

proporções e idiossincrasias dos processos, os mesmos problemas, ou

de outra forma, para ele a questão urbana estava circunscrita entre

estas relações; no capítulo V isso será melhor abordado.

3.5. A EXPERIÊNCIA FRANCESA.

De todas as influências sofridas na formação do urbanismo

brasileiro, sem dúvida, é a francesa a mais estudada. Aqui,

destacamos apenas dois autores Haussmann e Agache90.

90 Há de se destacar também a influência de Eugène Hénard: No dizer de SIMÕES (1990:15), o arquiteto francês Hénard “foi o idealizador da cidade construída sobre pilotis e o teórico do urbanismo subterrâneo”. Contudo, muito provavelmente, sua maior contribuição tenha sido o estudo do problema da circulação. Em seu clássico “Études sur les transformations de Paris” ele elaborou sua teoria geral da circulação na qual ganha destaque a concepção de “perímetro de irradiação” e a ”circulação giratória” formuladas a partir da análise do sistema viário estruturador das cidades de Londres, Moscou e Berlim. Entretanto, suas preocupações não limitavam-se a isso apenas, entre outras questões, discutia ainda: a transformação dos aglomerados já existentes; o aumento da densidade de ocupação do solo;

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Das intervenções em aglomerados existentes, com a finalidade

de saneá-los, objetivando transformá-los segundo as necessidades de

seu tempo, as grandes “operações cirúrgicas” empreendidas por

Haussmann em Paris foi, sem dúvida, a que mais se notabilizou.

Entre 1853 – 1870, o Barão de Haussmann:

“promoveu uma operação extensiva de reorganização, homogenização e saneamento da cidade, que implicaram excessivos trabalhos de demolição. Esse fato lhe rendeu, por várias vezes, críticas, já que grande parte dos edifícios e do tecido urbano medieval da cidade foram sacrificados. As novas construções utilizaram, em sua maioria, um repertório eclético sem muita originalidade, mas discreto e regular. Esse fator, somado ao apego à linha reta para a abertura de grandes avenidas, foi interpretado como meio de sanear a cidade, e, também, como estratégia para facilitar a ação armada, em caso de revoltas.Apesar da procedência de tais críticas, essa seria uma maneira muito limitada de encarar a obra de Haussmann. Sua abordagem do problema urbano era pioneira para a época. As decisões baseavam-se num pormenorizado levantamento e estudo da situação existente em toda a cidade e na consideração do fator “tempo”, analisando, dessa forma, a história do local e, igualmente, dados estatísticos para sua projeção futura. Seus objetivos eram também muito mais abrangentes do que os de seus contemporâneos, uma vez que ele encarava o espaço urbano como um organismo que, para operar com funcionalidade, não poderia ser apenas a justaposição de suas partes. Sua forma de atuar estava alicerçada, principalmente, no estabelecimento de um sistema de circulação e de aeração eficientes, onde a questão do fluxo de tráfego era prioritária.Suas intervenções incluíam grandes obras viárias, como criação de ruas em terrenos periféricos, urbanizando áreas mais extensas e, também, o traçado de novas vias em bairros

verticalização; espaços verdes na cidade. Segundo TOLEDO (1996: 254) para Paris, “propõe (...) o estabelecimento de um cinturão verde no lugar das antigas fortificações”; mais adiante o mesmo autor afirma que Hénard: “encara a cidade, não como uma unidade fechada, mas como centro de uma região maior, abordando a questão territorial a partir do sistema viário”. Com essas preocupações distingue-se dos seus contemporâneos europeus pois, diferentemente deles, não pensa uma cidade fechada – como os ‘socialistas utópicos”, Howard, entre outros – a pensa de forma mais abrangente, associando-se de certa forma à concepção americana de cidade – referimo-nos aqui à questão de inserir a discussão do urbano no âmbito do território. Aparentemente Sampaio não sofreu influência de Hénard. Note-se: foi consultada, uma tradução feita por Jorge Daniel de Mello Moura e Marcos Fagundes Barnabé, deste livro e apresentada em seminário da disciplina “Urbanismo e a cidade moderna – a questão das origens”, ministrada pela prof. Dra. Maria Cristina Leme.

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

antigos, o que exigia que se erigisse edifícios correspondente ao novo alinhamento. Os trabalhos de transformação e saneamento das áreas centrais fizeram com que a parte da população mais pobre tivesse de se deslocar para a periferia; desta forma, iniciou-se, mesmo que de forma insuficiente, um programa de construção de moradias para as classes menos favorecidas. Haussmann foi responsável, igualmente pela renovação e ampliação da rede de serviços públicos, como a de esgotos, a iluminação, a de transporte e a hidráulica, e ainda pela criação de vários parques, (...). O administrador promoveu, ademais, a construção de diversas edificações públicas, bem como uma reforma administrativa da capital ampliando os seus limites até o das antigas fortificações, anexando comunas de sua periferia. Com isso, elevou o número de ‘arrondissements’de 12 para vinte e deu a eles maior autonomia, descentralizando certas funções administrativas”. (TOLEDO, 1996: 242)

A mais conhecida e estudada presença do urbanismo francês no

Brasil seria a sofrida pela cidade do Rio de Janeiro. A primeira

intervenção mais ampla que de fato ocorreu nesta cidade, entre

1902/06, foi durante a gestão de Pereira Passos91. Responsável pela

operacionalização das transformações que então eram requeridas ao

Poder Público a fim de sanar os problemas que a referida cidade

91 A intervenção de Passos no Rio de Janeiro é objeto de varias interpretações. Apresento aqui a que mais me parece acertada. Segundo Andrade “ essas intervenções, embora no bojo de um projeto de remodelação da capital visando criar uma imagem européia em pleno trópico, não consistia, de fato, em aplicação do urbanismo moderno então nascente. Nem mesmo as proposições haussmannianas pode-se dizer que ali estiveram presentes, apesar da abertura da Avenida Central ou pelo fato de Passos ter sido um admirador das cirurgias urbanas do prefeito de Paris sob Napoleão III. (...). Pois, se nas operações haussmannianas ainda não temos a concepção de plano urbano em sua acepção moderna, isto é, como um elemento determinante do crescimento da cidade, portanto, antecipador de seu futuro, por outro lado, já encontramos nelas a representação da cidade como meio de redefinição do conjunto da estrutura urbana. O mesmo já não sucede com as reformas de Passos no Rio de Janeiro que, mesmo se vinculadas às obras de modernização do porto e às realizações de Paulo Frontim tiveram um caráter pontual e fragmentário, sem pretenderem dar uma resposta ao problema do crescimento da cidade a médio ou longo prazo. Claro que tais observações não devem nos levar a reduzir a importância das obras de Passos, na medida em que elas formularam um tipo novo de espaço público, induzindo novas formas de sociabilidade e criando uma imagem urbana que rompiam com a tradicional paisagem herdada da colônia. No entanto, para se atingir tais objetivos, não foi preciso os princípios do urbanismo moderno ou mesmo as formulações haussmanianas. Bastaram as concepções contidas em projetos de embelezamento inspirados na tradição neoclássica, com o alargamento de algumas ruas e o saneamento de quarteirões insalubres, sem a necessidade de um plano enquanto elemento de previsão do destino da cidade”. ANDRADE (1993).

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apresentava, concretizando assim “...os anseios de uma determinada

elite desejosa há algum tempo de transformações” (STUCKENBRUCK,

1996). Ainda segundo a mesma autora, Passos desempenhará papel

relevante, na medida que incorporará a concepção de reforma urbana

ao poder estatal e sua conseqüente objetivação em obras públicas.

Em seguida completa:

“Em Passos, o que se faz é abrir ruas, praças, alargar avenidas, construir um rígido código de posturas, regulamentando o uso do espaço urbano - mas não há um projeto para a cidade como um todo, não há técnicos especializados (ou especializando-se) na Cidade, não há um campo definido de atuação para o futuro profissional urbanista - não há urbanismo! O que há são intervenções pontuais e localizadas na malha urbana, orientadas pelos princípios do higienismo e da ciência positiva”. (STUCKENBRUCK,1996: 20)Ainda sobre esse período e segundo SEVCENKO,

“(...) a imagem de progresso se transforma na obsessão coletiva da nova burguesia (...); quatro princípios fundamentais regeram o transcurso dessa metarmofose: a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento da cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburquesadas; e um cosmopolismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense”. (SEVCENKO apud STUCKENBRUCK, 1996: 21)

e completando com PECHMAN:

“(...) Entre nós as idéias urbanísticas tiveram muito mais um caráter de resolução de “problemas técnicos” e intervenção da cidade, do que o de uma política de reforma urbana baseada no pressuposto da necessidade de planejamento da cidade que enquadrasse seus problemas sociais derivados de uma “má urbanização”. Aqui a experiência urbanista se esgotara na “regeneração” do corpo urbano e na hierarquização do corpo social, sem necessitar negociar melhorias nas condições de vida dos grupos, que da cidade, sobreviviam de seus restos e por isso mesmo violavam, nas suas práticas cotidianas, as normas sanitárias”. (PECHMAN apud STUCKENBRUCK, 1996:22)

É nesse contexto que eclodira o famoso episódio da Revolta da

Vacina anteriormente discutido. Note-se que de Haussmann o que,

de fato, ficou foram as demolições, a forma arrogante de atuação e

sobretudo a “imagem” – “estética” de cidade pelo francês cunhada.

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

A partir da década de 1920, o discurso muda. A cidade passa e

ser objeto de intervenções que abarcavam sua totalidade, e para isso

intensifica-se a necessidade de um corpo técnico especializado que

contasse com o respaldo do status científico. Mais uma vez é

Stuckenbruck que afirma: “o que caracteriza esse momento é uma

mudança de conteúdo no discurso sobre urbano, marcada pelo

surgimento de novos profissionais especializados e pela concepção

global da cidade, utilizando-se da metáfora do organismo,

emprestada do saber médico.”

A discussão sobre os destinos da cidade ganhava o interesse

dos mais variados setores da sociedade, desde os engenheiros e

técnicos da prefeitura até os médicos sanitaristas, passando pela

opinião pública. Neste contexto, o poder público define uma clara

política de urbanização da cidade, como não poderia deixar de ser,

repleta de um teor ideológico elitista. É nesse contexto que na

segunda metade da década de 1920 será realizado um amplo plano

de urbanização para a cidade que veio a ser conhecido como Plano

Agache.92 Segundo ABREU (1992): “o Plano de Agache constitui o

exemplo mais importante da tentativa das classes dominantes da

República Velha de controlar o desenvolvimento da forma urbana

carioca, já por demais contraditória”.

92 Vasta é a bibliografia sobre o Plano Geral para a Cidade, de autoria de Alfred Agache elaborada para o Rio de Janeiro, assim como sua repercussão no Brasil. De forma resumida, esse plano consistia: grandes avenidas arborizadas e áreas com jardins para o centro, enfoque global da cidade nas questões de saneamento básico, água, esgotos e drenagem; escoamento do lixo e das inundações; a circulação constitui uma das principais funções da cidade, propõe a implantação de um sistema metroviário; criação de áreas habitacionais com deslocamento da população de baixa renda para os subúrbios, e os de alta renda para os bairros-jardins na zona sul (LEME, 1999). O plano Agache que foi encomendado em 1927 pelo Prefeito do Rio de Janeiro, Prado Júnior, e entregue em 1930, é um plano no sentido europeu, isto é, pensa a cidade em sua globalidade. Nele, há uma certa preocupação com a questão social e industrial. (CARDOSO, 1997).

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Por ser capital da República, a cidade do Rio de Janeiro93 era e

foi e, de certa forma ainda é, o centro propulsor de novidades e

espelho (imagem?) do país. Desta forma, as considerações de caráter

introdutório, aqui expostas verificavam-se em maior ou menor grau,

em outras cidades brasileiras, sobretudo nas capitais, a exemplo de

São Paulo e Salvador.

Nota-se no Brasil uma forte influência do pensamento

urbanístico francês - através a demolição construtiva do Barão

Haussmann94 (a exemplo das Avenidas Sete de Setembro 95e Carlos

Gomes em Salvador – guardavam certa influência desta prática

urbanística), e via o sanitarismo aqui praticado. Theodoro Sampaio

comenta tal projeto em texto intitulado “Ruas”, assim como ele

próprio elabora uma proposta. Segundo o engenheiro, as ruas na

Bahia deveriam ser adequadas às novas necessidades da cidade

tanto do ponto de vista da higiene, como da circulação, devendo-se

demolir o que fosse necessário para alcançar esse fim e preservando

o que de valor histórico tivesse.

93 Para uma análise mais profunda sobre o período no Rio de Janeiro sob o ponto de vista urbanístico, ver: Resende, Evolução da Produção Urbanística na Cidade do Rio de Janeiro (1900-1950-1965).94 Pinheiro em seu texto “A “haussmannização” e sua difusão como modelo urbano no Brasil”, ao comparar Paris, Rio de Janeiro e Salvador, afirma: “ Já comentamos que as obras realizadas no centro do Rio tem pontos que podem ser comparados às obras realizadas por Haussmann em Paris. Se no Rio e em Paris uma nova rede viária se sobrepõe a uma malha antiga, em Salvador as intervenções se realizam sem com isso alterar a malha urbana. A principal abertura, a avenida 7 de Setembro, se realiza através do alargamento e da retificação de ruas já existentes de forma que a malha se alarga mas não muda o traçado. As novas ruas que surgem não são alheias ao urbanismo existente anteriormente, já fazem parte dele. (...) A própria forma das novas vias se diferenciam, enquanto no Rio e em Paris estas são retas, em Salvador mantêm o traçado original, muitas vezes sinuoso, como no caso da avenida 7 de Setembro. No que se refere ao objetivo, as três cidades buscam a mesma coisa: através do alargamento das ruas ou aberturas de novas, se privilegiam os deslocamentos, se facilitam os encraves entre os pontos mais importantes das cidades de forma simples, e se adaptam para os novos meios de transportes. As formas de ação, também coincidem. São contabilizadas demolições, desapropriações e expulsão da população residente e um aburguesamento do centro com a construção de um conjunto mais coerente deixando para trás as características coloniais ou medievais”.95 Ver Costa (1996) e Sampaio, “Planta do distrito de São Pedro e Parte do Distrito da Victoria na Capital da Bahia com Projecto de Melhoramentos”. Acervo do CEAB.

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

3.6. A EXPERIÊNCIA AMERICANA.

A influência americana no pensamento urbanístico paulista e

brasileiro é comumente apontada a partir de 1920 - 193096 quando

Freire, Anhaia Mello e Prestes Maia passam a citar uma série de

autores e planos americanos como referências para as suas reflexões

e planos. Decerto que o fizeram; sobretudo quando discutiam a

verticalização, ou não, da cidade de São Paulo (SOMEKH, 1997). Por

exemplo: Freire cita A Model Housing Law ; Prestes Maia e Anhaia

Mello baseiam-se no zoning de Nova York para desenvolver leis

quando da sua atuação na prefeitura paulistana. O Código de

Edificação de 1929, segundo SOMEKH (1997: 34) era uma

“reprodução não nominada de um zoning ao estilo americano”. A

mesma autora afirma que:

“Os desenhos do Plano de Avenidas, de 1930, Prestes Maia, também não fugiam à estética haussmaniana, embora sua aplicação tenha se aproximado muito mais do zoning americano. A concepção de Prestes Maia apresentava uma diferença básica em relação a Haussmann na possibilidade de verticalizar e, nesse sentido, foram modelos explícitos do urbanista os arranha-céus de Nova York e o urbanismo da Escola de Chicago” (SOMEKH, 1997: 34).

No caso de Freire, o Código Sanitário do Estado e da Capital teve na já

citada A Model Housing Law sua fonte de inspiração; para Freire os

americanos “inovaram em matéria de urbanismo, embora se

inspirassem nas municipalidades alemãs. Inovaram na forma de

elaboração e na atuação da administração municipal” (SOMEKH,

1997: 43). (grifos meus).

Anhaia Mello, talvez seja o que maior influência americana

tenha sofrido; citando-o:

“Os americanos compreendiam admiravelmente o problema urbano, procurando sempre formar “um ambiente favorável às grandes realizações de remodelação e extensão urbana, às grandes operações de alta cirurgia estética exigida pela haussmanização das suas cidades xadrez”

96 Entre outros autores: TOLEDO (1996), SOMEKH (1997) e FELDMAN (2000).

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“Os pesadelos dos urbanistas – o automóvel e o arranha-céu -, os verdadeiros ‘matapaus’ da cidade moderna, desenvolveram-se de forma extraordinária nos EUA. O Skyscraper agravou de tal forma o problema da circulação nas cidades, que foi quase um milagre a conquista integral do território norte-americano pela arte e ciência do urbanismo”.O urbanista valorizava no modelo americano a participação da opinião pública na elaboração dos planos urbanísticos. “É de importância excepcional que o público em geral tenha uma noção perfeita e exata daquilo que a cidade deve e pode ser e qual o verdadeiro fim da vida urbana”. Os americanos haviam compreendido que o urbanismo não é apenas questão de técnica ou de administração, “mas é essencialmente uma questão de educação” (ANHAIA MELLO apud SOMEKH, 1997: 44). (Grifos meus).

SOMEKH (1997: 45) completa:

“Nos Estados Unidos, lembrava Anhaia Mello, existiam associações do comércio e da indústria que lutavam pelas suas cidades. Em São Paulo, associações idênticas, prestigiosas e ricas, não saíam do circuito das suas respectivas finalidades para dedicar parcelas de seu esforço e recursos ao progresso da cidade”.

De nossa parte, acreditamos que o fluxo de idéias americanas

que animaram o debate intelectual e a atuação sobre o urbano

antecedeu a esse período. Acreditamos que desde as últimas

décadas do Império esse fluxo já se fazia sentir. É neste sentido que

CARVALHO (1998) atribui à influência americana no pensamento e

propostas do engenheiro André Rebouças o fracasso de suas

empreitadas. Bem, aqui não buscaremos aprofundar esse tema97.

Pontuaremos alguns aspectos importantes para nossas articulações

futuras. SOMEKH comentando a obra de Anhaia Mello afirma:

“No zoneamento americano, a legislação é estadual, delegando ao legislativo municipal o poder de regular e restringir usos comerciais e industriais, dividindo a cidade de forma conveniente para estabelecer esses usos. É o município que também define a altura e o volume dos edifícios e as relações entre áreas livres e construídas. Esses regulamentos deveriam ser organizados de modo a diminuir o congestionamento das ruas e adequar o caráter das edificações de acordo com o valor do terreno, racionalizando o seu uso a fim de conservar o valor dos edifícios e estabilizar o preço dos terrenos nos diferentes distritos”;

97 O estudo da presença americana no pensamento urbanístico brasileiro desde fins do século XIX, constitui-se em nosso objeto para tese de doutorado.

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

E em seguida,

“o sucesso do zoning americano, além desses instrumentos que o flexibilizavam, dependeu também do preparo preliminar do ambiente e da opinião pública, que lhe asseguraram legitimidade. O Urbanismo exigia a colaboração de todos” (SOMEKH, 1997: 47-48),

e acaba por citar o próprio Anhaia Mello:

“As administrações e os governos passam; os administradores e governantes se sucedem, são humanos e não têm muitas vezes as mesmas idéias e as mesmas opiniões. O desenvolvimento da cidade não pode estar sujeito a essas contingências. (...) Dirigir as grandes cidades modernas não é fazer leis às centenas. Os serviços e as atividades urbanas não são governo, são negócio. (...) A comissão é, pois, a diretoria da grande empresa de negócios públicos locais, que é a cidade.(...). A ciência do urbanismo tem por objetivo dar uso apropriado a todo terreno urbano. Deve promover, diz Basset, the right use to the right land. É, pois, um problema de Economia ou de Econômica”. (ANHAIA MELLO apud SOMEKH, 1997: 48).

Anhaia, segundo SOMEKH (1997: 48), “relutava em chamar de

governo as atividades de construção, calçamento, serviços coletivos,

água, luz, gás e esgoto. Eram negócios e isso definia a cidade

moderna: a cidade como negócio”. Logo em seguida acrescenta:

“Para Anhaia Mello, o urbanismo tinha como finalidade assegurar a utilização mais eficiente da terra, extrapolando a questão meramente urbana. Deveria-se encarar a questão de forma ampliada em termos regionais ou unidades econômicas completas, excedendo o limite administrativo do município: “Americanos e ingleses não dizem apenas town planning ou city planning, mas land planning e development planning que são as denominações verdadeiras. Urbanismo define um setor da ciência, e setor muito limitado e dependente – a urbs.” (MELLO apud SOMEKH, 1997: 48)”.

Para os americanos “a terra era um bom investimento”. No

dizer de Anhaia Mello, “Todos os problemas urbanos, agravados pelo

dinamismo e rápido crescimento das supercidades modernas, nascem

do uso atual ou potencial dos terrenos. (...) O fim da economia da

terra urbana é justamente a exata utilização deste” (ANHAIA MELLO

apud SOMEKH, 1997: 50). De todos os temas discutidos por Anhaia

Mello, esse é o mais caro à Theodoro Sampaio:

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“No modelo americano, os meios de manifestação da autoridade pública eram o poder e polícia, o domínio iminente, a taxação. Através do primeiro, o poder público pode limitar o direito de propriedade em benefício do interesse coletivo. Através do eminent domain era possível a transferência de propriedade para uso público, através da desapropriação. E, finalmente, através da taxação, instrumento de controle social e não apenas um meio de obtenção de recursos, se fazia a política urbana” ( SOMEKH, 1997: 50).A relação de Sampaio com estas questões será melhor explicitada

nos capítulos IV e V, por ora aprofundaremos um pouco esse tema em

sua realidade americana. É de um livro de Luis Anhaia Mello, de

1927, doado, ao que tudo indica, pelo próprio, à biblioteca da

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

que tiramos informações precisas e preciosas para nossos intuitos. o

livro Land Planning in the United States for City, State and Nation,98 de

autoria de Harlean James, escrito em 192699. Particularmente

interessante para nós é a primeira seção da obra, pois está

diretamente associada ao nosso argumento desenvolvido nesta

dissertação. No capítulo intitulado “Early Land Policies in Layout”100

trata do “The National System of Survey”101, das rotas de estradas –

comunicação local e da relação entre água e ferrovia entre outros. De

uma forma geral, o livro aborda o planejamento moderno nas cidades

americanas, no momento em que ele estava acontecendo.

Na seção “The National System of Survey” (JAMES, 1926:18)

após uma rápida descrição de como eram as representações gráficas

do território americano e de como estavam divididas, afirma: “but in

the early days of the Republic a national system of land survey and

land description was adopted for the vast public lands on which the

government was seeking to place settlers”102.98 Em tradução livre: Planejamento Territorial nos Estados Unidos para a cidade, o estado e a nação.99 Note-se a sincronia entre a publicação do mesmo (1926) e a aquisição dele por Luis de Anhaia Mello (1927).100 Tradução livre: “Desenhando as primeiras políticas territoriais”. Realizada por nós.101 Em tradução livre: Sistema de Levantamento Nacional.102 Tradução livre de nossa responsabilidade: “mas no início da República um sistema

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

Ao discutir o planejamento das cidades americanas, o autor

parte da questão das terras públicas não ocupadas. Afirma que na

República é criado um “SURVEY” afim de reconhecer e descrever as

terras para que nelas fosse fomentada a colonização. Ora, o que o

autor está fazendo é estabelecer, ainda que de forma não tão clara

assim, uma relação entre a ocupação do território (planejamento

territorial) e as cidades (planejamento urbano). Nesse sentido, o que

ele está nos dizendo é que nos Estados Unidos da América estes dois

fazem parte de uma mesma coisa: política territorial; note-se o título

do capítulo – “Early Land Policies In Layout”; note-se ainda que esta

observação vem ao encontro do que Anhaia Mello afirmava sobre o

urbanismo e sobre o urbanismo americano.

No próximo capítulo, veremos como esta prática aproxima-se do

que, no estado de São Paulo, foi realizado pela Comissão Geográfica e

Geológica de São Paulo. É necessário que se diga que no caso

americano primou-se pela adoção do sistema decimal, do qual

resultou uma divisão espacial baseada na rigidez geométrica

“desrespeitando a topografia, o solo, o clima e as condições

econômicas”103 (JAMES, 1926: 19). Não sem razão, o autor chama a

atenção para os problemas advindos da adoção deste sistema e que

estava afetando não só as fazendas como as próprias cidades e ruas.

Chamamos a atenção para o fato de que BENEVOLO (1976: 214)

destaca esta relação entre “planejamento” territorial e urbanismo ao

comentar a Land Ordinance:

“Em 1758 faz aprovar a Land Ordinance para a colonização dos territórios do oeste, e de 1789 a 1794, como Secretário de Estado [Jefferson],promove a fundação da cidade de Washington e o concurso para o Capitólio. (...)A Land Ordinance de 1785 estabelece que os novos territórios seja subdivididos segundo uma malha orientada com os meridianos e paralelos; adequados múltiplos e submúltiplos da

nacional de levantamentos e descrição das terras foi adotado para as vastas terras públicas na qual o governo estava visando como lugar de colonos”.103 Tradução livre de nossa responsabilidade. Se em São Paulo isto não ocorreu, como veremos a seguir, o “espírito da coisa”era o mesmo!

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retícula principal (...) servem sejam para definir os lotes agrícola quanto os terrenos industriais, e mesmo a rede viária da cidade. Jefferson teria preferido que a malha crescesse também em escala geográfica, a fim de estabelece os confins dos novos estados, e de fato assim se fez em certos casos, mas muitas vezes se preferiu utilizar algumas fronteiras naturais, como curso de um rio. Esta providencia fundamental deixou uma marca indelével na paisagem urbana e na paisagem rural dos Estados Unidos, generalizando o sistema do tabuleiro de xadrez já experimentado no período colonial”.(grifos meus);

No próximo capítulo veremos que no Estado de São Paulo isso não foi

muito diferente.

Uma outra fonte interessante para nossos intuitos é o artigo “A

City of the Future under a democratic Government”104 escrito por

Daniel H. Burnham em 1910. O artigo propõe-se a discutir, entre

outros aspectos, qual o papel do governo democrático na estruturação

das cidades do futuro. Nele, Burnham chama a atenção para a

necessidade da participação civil, em um governo democrático, para a

elaboração de um plano compreensivo para o desenvolvimento da

cidade. Notória é sua intenção de alertar para o fato de que “o

trabalho é duro, porém que nos Estados Unidos da América, há menos

de 10 anos isso não ocorria”, entretanto “hoje a mobilização política e

da sociedade civil é uma prática corrente na elaboração de planos”,

através o que ele chama de “Plan Commission". De suas idéias, há de

se notar uma clara compreensão da dimensão política para a

realização de um plano. Anterior a um desenho de cidade, é

necessário que haja uma vontade política – neste contexto, não é à

toa que ele crava a expressão “Democratic Goverment” - e portanto,

de certa forma, um plano político; e que haja uma mobilização da

sociedade civil – mobilização esta que deveria ser fomentada pelo

governo. Outro aspecto importante deste texto é que ele sugere a

elaboração de planos de conjunto e que prevejam o crescimento das

cidades (BURNHAM, 1910: 371).

104 Em tradução livre: A cidade do futuro sob um governo democrático.

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

Ora, há de se notar que isso foi escrito em 1910, ou seja, pelo

menos 10 anos antes já se pensava em planos de conjunto e previa-se

o desenvolvimento de cidades. No E. U. A., isto estava associado a

uma questão de cidadania, de democracia, e portanto fruto de um

“projeto de nação”. É nesse sentido que compreendemos a frase

“education is important, not that individuals may be happy, but much

more for the good of the state”105 (BURNHAM, 1910: 371).

Em nosso entender, esta é uma das bases do planejamento

territorial e urbano americano. Eles são necessariamente atividades

políticas. Acreditamos que a dimensão política, a participação da

sociedade civil, desde sempre, foi um dos alicerces da intervenção no

espaço físico no E. U. A. articulada a um projeto de país.

De certa forma é para isso que também a ponta FAIRFIELD

(1993). Segundo este autor:

“The most visible symbol of the transformation of American society, the metropolis also served to disguise that transformation and to give it na apparent physical implacability and inevitability, which placed it beyond criticism and control. A major purpose of this study is to unravel the mystery of the new metropolitan form. A variety of factors, from the availability and location of natural resources and the ups and downs of regional, national, and world markets to technological innovation and the development of scientific knowledge and professional expertise, shaped metropolitan development. Although some of those factors were beyond human control, this study argues that the new metropolitan form and the social order it embodied were primarily the result of conscious, political decisions. Reflecting the conviction that human design plays a decisive role in urban development, the central thesis of this work is that the American city was in important ways “planned”before the rise of professional city planning.In describing the great cities of the Gilded Age, Alan Trachtenberg has made a similar point.

Cities did not expand and change mindlessly, by mere entropy. If they lacked democratic planning, they submitted to corporate planning – which is to say, to the overlapping, planned evolution of many private competitive enterprises. The visible forms

105 Em uma tradução livre de nossa autoria: “Educação é importante, não para que os indivíduos sejam felizes, mas muito mais para o bem do estado”.

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make this clear: the power of organized wealth, answerable only to the limits of the possible.

That sort of corporate planning remained a major factor in urban development even after the rise of professional planning. Addressing a group of professional planners in 1926, Chaarles Beard quoted President Coolidge’s remarks to the leaders of the automobile industry. Among “the problems with which you gentlemen are dealing”, Coolidge had told the assembled capitalists, are the “physical confuguration of our cities”and “the elementals of social organization”. Beard reminded the professional planners that the actions of transportation corporatins and “speculation in traction stocks and bonds”had long been anong “the prime factors in the dynamics of planning” and that such powerful agencies must still be taken into account.But corporate planning has aalways been answerable to more than simply the limits of the possible. The private market decisions of millions of individuals have provided at least a limited check upon corporate power. More importantly, a variety of individuals and social groups (less powerful or less conscious of their power that the great corporations but still influential) shaped metropolitan development through various forms of mass action, the articulacion of new ideas, and the creation of new institutions. Many of those individuals and groups developed public visions of the urban future in na effort to challenge and to transform theprivate city of corporate and individual decision-making. Thus a public debate about what the city could and ought to be, as well as the private pursuit of

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

wealth, shaped the new metropolitan form” 106 .(FAIRFIELD, 1993:2-4). (Grifos meus).

Do anteriormente transcrito sobressaem algumas observações

importantes. De certa forma, toda a primeira parte da citação poderia

ser aplicada a São Paulo; mudou-se muito mais a forma da cidade do

que a da sociedade. As mudanças executadas foram em grande

medida de ordem operacional. No capítulo II buscamos mostrar como

São Paulo – cidade e estado – estavam sujeitos à essas tensões

106 “O símbolo mais visível da transformação da sociedade americana, a metrópole também serviu para disfarçar essa transformação e para dar-lhe uma implacável e inevitável aparência física que a colocou em uma posição que não permitia–lhe ser criticada ou controlada. O maior intuito desse estudo é esclarecer o mistério da forma da nova metrópole. Uma variedade de fatores, desde a disponibilidade e localização dos recursos naturais e os altos e baixos do mercado regional, nacional e mundial até inovações tecnológicas e o desenvolvimento do conhecimento científico e profissional especializado, modelou o desenvolvimento metropolitano. A despeito de que alguns destes fatores estivessem além do controle humano, esse estudo questiona que a nova forma metropolitana e a ordem social foram resultado da incorporação inicial de decisões políticas. Refletindo a convicção de que a vontade humana representa um papel decisivo no desenvolvimento urbano, a tese central desse trabalho é que a cidade americana foi de maneira importante planejada antes da ascensão do City planning profissional.Em sua descrição do crescimento das cidades na idade dourada, Alan Trachtenberg, fez observação similar.Cidades não expandiram e mudaram sem projeto, por mera entropia. Se elas não tinham um planejamento democrático, foram submetidas a corporação de planejamento – isto é, para a sua remodelação foi planejada a evolução de muitas empresas privadas competitivas. As formas visíveis o tornam claro: o poder da riqueza organizada, simplesmente respondia aos limites do possível.Este tipo de planejamento corporativo permaneceu como o principal fator do desenvolvimento urbano, mesmo após a ascensão do planejamento profissional. Dirigindo-se a um grupo de planejadores profissionais em 1926, Charles Beard citou a observação do presidente Coolidge para os lideres da indústria automobilística. Dentro “os problemas com que os senhores estão enfrentando”, Coollidge teria dito na reunião capitalista, estão a “configuração física de nossas cidades” e “os elementos da organização social”. Beard lembrou aos planejadores profissionais que as ações da corporação de transportes e “especulação in traction stocks e bondes” por muito tempo tem estado entre “os principais fatores da dinâmica do planejamento” e que tais agências poderosas devem ainda ser levadas em consideração.Entretanto o planejamento corporativo tem respondido mais que simplesmente aos limites do possível. As decisões do mercado privado de milhões de indivíduos tem fornecido uma supervisão de forma limitada sobre o poder corporativo. Mais importante, uma variedade de indivíduos e grupos sociais (menos poderosos ou menos conscienciosos de seu poder que as grandes corporações, mas ainda influentes) modelaram o desenvolvimento metropolitano através das várias formas de ação das massas, da articulação de novas idéias, e da criação de novas instituições. Muitos desses indivíduos e grupos desenvolveram uma visão pública do futuro urbano em um esforço para mudar e para transformar a cidade privada das corporações e decisões individuais. Deste modo, um debate público sobre o

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sublinhadas por Fairfield. Isso implica em dizer que, para a realidade

americana e, em parte, para a realidade paulista também, ainda que

não houvesse a profissão, nem o profissional e que o corpo da

disciplina estivesse sendo montado, já havia sim um planejamento

das cidades e decerto que este passava por uma intervenção política.

Desta forma, nos E. U. A, o planejamento urbano era uma atividade

necessariamente política. Naquele contexto, os interesses

corporativos, econômicos desenhavam a cidade. Ao nosso ver, esta é

uma característica inerente à cidade liberal, à cidade dos serviços –

fruto de uma visão da cidade como mercadoria. Portanto, neste

quadro, não era o desenho, a forma que importava; neste tipo de

planejamento o que importava era o papel que a cidade

desempenhava no esquema do qual fazia parte. Não é à toa que o

autor frise que mesmo depois da institucionalização do planejamento

profissional esse fator continuasse a ser importante no

desenvolvimento urbano.

Também é deste texto que retiramos as evidências que, ao

nosso ver, provam que o planejamento urbano no E. U. A. surgiu da

tensão de dois pólos: de um lado, os interesses dos capitalistas e do

outro, as pressões da sociedade civil organizada. Nesta perspectiva,

não é de se estranhar que o urbanismo americano estivesse

necessariamente ligado a uma atividade política. Só ela poderia

equacionar essas tensões da melhor forma possível e assegurar o

desenvolvimento do país, ou como queria Burnham, do estado. Em

nosso entendimento, Sampaio aproximava-se não só destas questões,

como dos problemas decorrentes e das soluções buscadas. Ele não

as explicita, porém, como veremos nos capítulos IV e V é esta a

abordagem que se entrevê em sua prática profissional.

que a cidade podia e deveria ser, bem como a busca pela riqueza particular, modelaram a nova forma metropolitana”

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

FAIRFIELD identifica duas tradições distintas do pensamento e

da reforma urbana.

“in the Gilded Age a republican and idealistic vision of the

urban future imagined na urban commonwealth free of

class conflict, populated by virtuous republicans, and

shaped by Christian ethics. That vision, which began to

emerge in the 1840s and 1850s based upon traditional

republican and free labor values, is represented in this stdy

chiefly by Frederick Law Olmsted and Henry George. In

calling for a balance between the city and the country, a

balance that would mediate urban artificie, structure, and

organization with rural nature, spontaneity, and

community, the republicans hoped to inject the urban

order with the civic and political equality, economic

opportunity, and, perhaps most importantly, the social

harmony they associated with the free labor republic”.107

(FAIRFIELD, 1993: 4)

Estas duas tradições seriam a republicana e a realista. Não nos

deteremos nelas, apenas situaremos que entre 1840-1870

predominou a visão republicana. Durante a depressão de

1870,começou a crescer a tradição realista, adquirindo sua

maioridade em 1920. A primeira cria na possibilidade de equacionar

as tensões da visão liberal (isto é, aceitação do “laissez-faire”e da

107“Na idade dourada uma visão republicana e idealista do futuro urbano, imaginou um estado democrático livre de conflitos de classe, popularizado pelos virtuosos republicanos e moldado pela ética cristã. Essa visão que começou a emergir entre 1840 e 1850 baseada na tradição republicana e no valor do trabalho livre, está representada neste estudo, principalmente, por Frederick Law Olmsted e Henry George. Conhecidos por um equilíbrio entre a cidade e o campo, um equilíbrio que mediaria o urbano artificial, estruturado e organizado com o rural natural, espontâneo e comunitário, os republicanos esperavam introduzir a ordem urbana com a igualdade civil e política, oportunidade econômica, e, talvez o mais importante, a harmonia social que eles associaram a republica do trabalho livre”. Tradução de nossa responsabilidade.

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visão do darwinismo social) com as demandas populares de uma

ordem social mais justa e humana. Já a segunda no dizer de Fairfield:

“The realists, a group that included corporate leaders, good-government reformers, city and social planners, and urban academics, and whose most important theorist was the sociologist Robert E. Park, were less intereted in imagining alternatives to the increasingly hierarchical, corporate, and artificial character of metropolitan America. Embracing the new developments in the name of progress, the realists accepted the metropolis on its own terms, viewing its unrepublican political order and class conflicts as problems to be managed rather than resolved”108 (FAIRFIELD, 1993: 5).

Já o Livro de MONKKONEN (1990) desponta como uma rica fonte

por apresentar-nos uma análise contemporânea da história urbana

americana no período que estamos a estudar. Destacamos os

capítulos: “The Emerging Service City: Fighting Fire and Crime”109 -

aqui o autor detém-se nas transformações ocorridas nas cidades

americanas no período pós 1870 dando ênfase aos serviços

governamentais, em especial à polícia e aos problemas urbanos; “Da

Corporação fechada para a Democracia eleitoral” – onde o autor

busca desenvolver a idéia de que o crescimento das cidades

americanas deu-se com base na tradição legal, na legislação

capacitante e na interpretação jurídica desta, cujo principal enfoque é

o político; “Transportes: do animal ao automóvel” – o autor analisa o

papel desempenhado pelo Estado no desenvolvimento das tecnologias

de transporte e como estas contribuíram para o crescimento das

cidades americanas no século XX; e “A Cidade ativa, 1870-1980”, cujo

mote é a passagem da cidade regulamentada para uma cidade ativa e

108 “os realistas, um grupo que incluía chefes de corporações, bons governantes reformadores, planejadores sociais e da cidade, e acadêmicos urbanos, e cujo o mais importante teórico era o sociólogo Robert E. Park, estavam menos interessados em imaginar alternativas para o crescimento hierárquico, corporativo e artificial característico da metrópole americana. Adotando para o novo desenvolvimento o nome de progresso, os realistas aceitaram a metrópole com seus próprios termos, vendo sua ordem política não republicana, e os conflitos de classe como um problema para ser antes administrado que resolvido”. Tradução de nossa responsabilidade.109 Tradução livre realizada por nós: “A cidade dos serviços emergentes: lutando contra o fogo e o crime”.

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

provedora de serviços, ou seja, aponta para a constituição da cidade

capitalista moderna com todos os seus problemas.

Outro aspecto da experiência urbanística americana no século

XIX é ressaltado por TOLEDO (1996: 255):

“Os Estados Unidos forneceram múltiplos exemplos de práticas urbanísticas. O País havia adquirido certa experiência em urbanismo no decorrer do século XIX devido à profusão das “Company Towns”. Estas foram criadas em conexão e com financiamento das grandes indústrias, beneficiando-se, igualmente, do recente e bem-sucedido desenvolvimento das estradas de ferro. Funcionavam como um modo de ocupação do território, sendo sua viabilização possibilitada por uma vasta especulação imobiliária ao longo das ferrovias, principalmente a partir da segunda metade do século passado”.

Desnecessário é apontar a semelhança com o processo verificado na

região Noroeste do estado de São Paulo. A seguir pontuaremos

algumas experiências americanas deste período e que ilustram bem o

que eles vinham pensando.

A primeira experiência que gostaríamos de destacar é a de

George M. Pullman. Magnata das ferrovias, bancou a elaboração de

um plano em 1880 para uma área próxima à Chicago (Pullman) que

objetivava aumentar a produtividade, obter maior controle sobre seus

operários e mantê-los distantes da “instabilidade social de Chicago”.

Com o crescimento de Chicago, Pullman foi incorporada à área

metropolitana daquela cidade. TOLEDO (1996: 255) vê nesta

experiência o apogeu e o início da decadência dos “sistemas de

especulação do laissez-faire”.

Outra experiência que também consistiu em uma resposta a

esse sistema de especulação, foi o movimento de criação de parques

que tem na figura de OLMSTED (1822-1903), muito provavelmente,

seu maior expoente. Resumidamente, com esses parques,

objetivava-se não apenas a criação de áreas livres para a areação nos

centros urbanos, como também a criação de áreas destinadas à

recreação das “massas”. Guardando-se as devidas proporções,

134

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acreditamos que é possível estabelecer certas relações entre a

proposta de Sampaio para a Várzea do Carmo, em São Paulo na

virada do século XX, e estes parques americanos. É projeto de

Olmsted o famoso Central Park de Nova York e do Prospect Park no

Brooklyn. Não comentaremos estes projetos, apenas chamaremos à

atenção para o fato de que ao propor a ligação entre estes dois

parques e o oceano, criaram as “parkways” “lançando as bases para a

organização regional”. Destacamos ainda que entre as preocupações

de Olmsted estava a melhoria da qualidade de vida das cidades

americanas.

Em 1893, na Feira de Chicago, surgiu o movimento “City

Beautiful” Um dos exemplos mais conhecidos deste movimento foi a

proposta do Senador MacMillan para que se fizesse melhorias no

projeto de Washington (1791) que visava sobretudo a disposição dos

edifícios públicos e o desenvolvimento de um “park sistem”para a

capital americana. Este projeto deu mais destaque ao movimento.

“Muitas cidades no país procuraram realizar benfeitorias e projetar

conjuntos monumentais, como a criação de grandes terminais de

transporte ou de centro cívicos e a maior valorização de edifícios

públicos” (TOLEDO, 1996: 256).

É dentro desta busca pela construção de “civic centers” e de

transportes que se enquadra o plano de Burnham, Carrère e Brunner

para Cleveland. Na verdade a atuação de Burnham neste período foi

intensa, projetando várias obras relevantes. Contudo seu plano mais

importante, sem dúvida, foi o Plano para Chicago que teve ainda a

participação de Bennett. Um plano para Chicago vinha sendo

discutido desde o início do século. Em 1906, Burnham foi convidado

para dirigir os trabalhos, cujos fundos foram fornecidos pelo

“Merchants Club” e pelo “Commercial Club” de Chicago. Ao que

consta, Burnham não teria recebido nada pelo seu trabalho na

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

elaboração do plano tendo empregado as verbas no pagamento de

sua equipe e na publicação do plano.

Segundo Toledo ( 1996: 257-258):

“proposta era de grandes melhorias tanto no sistema viário, que até então era uma extensa retícula ortogonal, quanto no ferroviário, nos parques e “parkways”, e na beira do lago. Foi também sugerida a criação de um sistema de rodovias, abrindo, neste aspecto, perspectiva para um planejamento de caráter regional. (...) Para cuidar da execução do plano, uma comissão foi criada pelo “city Council” em 1909, sendo o projeto adotado oficialmente em 1911. Desenvolveu-se também um sistema de divulgação, (...), para conquistar o apoio público e convencer sobre a necessidade e a eficácia do plano. Procurou-se, desta forma, mostrar não só o lado “city beautiful” do plano, mas também o “city efficient”.

3.7. Os reformadores sociais do século XIX.

Decerto que as transformações decorrentes da industrialização

provocaram uma mudança substancial nas cidades o que levou a uma

enxurrada de críticas a estas. “Os críticos passaram a confrontar os

valores do desenvolvimento tecnológico e do “progresso” com a

condição miserável de trabalho, higiene e moradia dos operários”

(TOLEDO, 1996: 240). Entre esses críticos estavam Charles Dickens,

Vitor Hugo, Friedrich Engels, Karl Marx, John Ruskin e William Morris

entre outros.

Entre os que propuseram uma intervenção no espaço físico

estão Robert Owen, Saint-Simon, Charles Fourier todos, em sua

maioria, de essência socialista. A eles convencionou-se chamar de

“socialistas utópicos”. Estes, que não eram arquitetos, a despeito de

criticarem a sociedade industrial como conheciam, criam na

possibilidade de transformação do homem e da sociedade através do

desenvolvimento tecnológico. Para eles, à nova sociedade deveria

corresponder uma nova cidade. Algumas experiências concretas

neste sentido foram realizadas.

Segundo TOLEDO (1996: 241):

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“Os utópicos”, em suas cidades “ideais, procuraram resolver de forma racional a questão do trabalho e da moradia, ao mesmo tempo em que previam a instalação dos serviços coletivos necessários, como escolas, creches, etc... Sugeriam uma organização espacial onde houvesse muito verde, ar e luz, daí resultando a descontinuidade entre as várias construções e a separação espacial entre elas, de acordo com sua destinação. Para o problema da habitação, foram propostos tanto grandes conjuntos coletivos, como o de Fourier em seu “Falanstério” (...), quanto resistências individuais, caso de Hygeia, livro publicado em 1876 pelo médico inglês Benjamin Ward Richardson (1828-1896)”.

Segundo PINEDO Jr. (1988:81):

“Na visão contida nestes manuais, a origem do urbanismo moderno não está na formação concreta da metrópole do século XIX e XX, mas em modelos e princípios teóricos de experiências realizadas pelos socialistas utópicos: Fourier, Godin, Owen, Saint-Simon, etc, e nas cidades –jardins. A eleição desses modelos está baseada no conceito de que o edifício e a cidade formam um único objeto, com as mesmas leis regendo a ambos, (...)”.

Ainda segundo o mesmo autor, “o espaço físico neste caso, traduz

nitidamente o caráter anti-urbano desses modelos. (...) levam a uma

tentativa de reinterpretação do “caótico” crescimento das cidades

capitalistas como se fosse possível resolver os problemas sociais a

partir do ordenamento espacial”.

Logo em seguida,

“os socialistas utópicos, em suas experiências procuram resolver os principais problemas urbanos devido ao crescimento desordenado das cidades capitalistas. Assim procuravam estabelecer uma relação íntima e direta entre o trabalho e a moradia baseados nos modelos pré - capitalistas do modo de produção mercantil simples (...), onde a oficina como local de trabalho estaria próxima à moradia ou, como na maioria dos casos, a moradia e a oficina se localizaria num único edifício”. (PINEDO Jr.,1988: 82).

Contudo é TOLEDO (1996: 242) que, ao nosso ver,

resume melhor a questão:

“É preciso ter em mente o fato de que todas procuravam proporcionar qualidade de vida superior, tentando solucionar racionalmente a questão do trabalho e da habitação. Esta era, na maioria das propostas, isolada no verde, com grande espaços abertos, em busca de melhores condições de higiene. Em alguns modelos eram

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apresentadas moradias em casas isoladas e aglomerações com limites precisos; em outros, apareciam habitações em grandes edifícios, sendo que a cidade poderia expandir-se indefinidamente; e havia ainda os que se posicionavam contra a própria noção de cidade, pregando o contato direto do homem com a natureza, limitado pela sociedade industrial”. (TOLEDO, 1996: 242)

Como se vê a questão central para esses autores era a relação

moradia-trabalho, contudo, outras questões estavam contempladas:

higiene, qualidade de vida, as relações e condições sociais advindas

da Primeira Revolução Industrial. Entretanto, é inegável que eles

estivessem mais preocupados com a transformação da sociedade,

apontando saídas para os conflitos existentes, do que “desenhando”

ou “construindo” cidades. A maior crítica que fazemos a estes

aproxima-se da crítica que fazemos a alguns modernistas: não

acreditamos que os espaços possam, por si sós, transformar a

sociedade e os homens (ainda que potencializem tais

transformações). Os espaços, são sim produzidos por essa sociedade,

pelo homem, que os cria e os transforma.

Apresentaremos a seguir, resumidamente, os principais pontos

do pensamento de dois destes autores.

Robert Owen (1771-1858)

Podemos dizer que suas idéias estavam baseadas em três

pilares: redução das horas de trabalho, melhoramento do habitat

(cidade-modelo, num espaço verde) e na educação, esta última sendo

a base de todo o seu sistema – para Owen, o meio fazia o homem. Do

ponto de vista formal, seu modelo é um “estabelecimento ideal,

higiênico, ordenado e criador: pequenas comunidades semi-rurais de

500 a 3000 indivíduos, federadas entre si” (CHOAY, 1979:62). Eram

portanto limitadas no tamanho mas, no entanto, dialogavam entre si.

De uma forma geral, seu discurso era um depoimento de fé na razão,

na ciência; uma busca da universalidade com um significativo

conteúdo ético. Seu projeto era de uma unidade fechada, includente

que via na máquina um progresso e no trabalho um elemento

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importantíssimo. Sua forma em muito se parecia com a de uma

cidade medieval; a grande diferença está na organização social e

espacial interna a essa cidade. Owen trabalha com a idéia de

“modelo” – partia de uma família tipo: casal mais dois filhos. Sua

proposta partiria de uma iniciativa estatal (“para realizar os princípios

que formam a ciência social, seria desejável que o governo

estabelecesse vários núcleos ou associações – modelos...”), parte

integrante de um plano político. O desenho proposto tem a forma

quadrada, no centro está a dimensão pública. Por fim, chamamos a

atenção para dois pontos: de certa forma, menciona um planejamento

de âmbito territorial - “é preciso investigar pelo país todo e selecionar

os locais mais propícios à instalação desses estabelecimentos –

agrícolas e industriais simultaneamente” (OWEN apud CHOAY, 1979:

64) - e preocupa-se com o valor da terra (mercado de terras): “Todas

as terras do reino suscetíveis de ser adquirida para esse fim deverão

ser corretamente avaliadas e compradas pela nação. Quando essas

disposições tiverem sido adotadas e levadas a bom termo seguir-se-

ão conseqüências admiráveis. O valor real da terra e do trabalho

aumentará, ao passo que abaixará o valor de seus produtos” (OWEN

apud CHOAY, 1979: 64).

Charles Fourier (1772-1837)

A obra de Fourier parte de uma crítica impiedosa à sociedade

industrial. A aglomeração ideal que propõe é, Segundo CHOAY

(1979:66), a mais célebre peça de um sistema completo, de que é

indissociável. Sua principal contribuição foi o Falanstério no qual

vislumbra-se um espaço racionalizado e hierarquizado, e buscava-se a

fomentação de uma nova sociabilidade baseada na higiene e na

estética. O modelo de sua cidade é concêntrico. Nela já se anuncia a

necessidade de um “plano geral” , há um certo zoneamento e uma

certa “legislação” - “código de obras” - esta seguiria uma tipologia

única, padronizada e uniforme. “As ruas deverão estar voltadas para

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

paisagens campestres ou monumentos da arquitetura pública ou

privada: o monótono tabuleiro de xadrez será abolido” (FOURIER apud

CHOAY, 1979: 70). Como se vê, havia toda uma preocupação com a

estética assim como com a possibilidade de especulação de terras. O

habitar seria coletivo, calcado na unidade familiar.

Fredrich Engels e Karl Marx a despeito das duras críticas à cidade

industrial e à condição de vida-trabalho–moradia dos operário não

chegaram a apresentar uma proposta de intervenção no meio urbano,

uma vez que criam que a mudança a ser operada estava no modo de

produção, única capaz de transformar essa situação.

3.8. O ideário urbano de Theodoro Sampaio.

De todos os textos escritos por Theodoro Sampaio, o que deixa

mais claramente entrever o imaginário de cidade que o mesmo

possuía, é o seu discurso, proferido no Instituto Geográfico e Histórico

da Bahia em 1912110. Esse discurso torna-se, indiretamente, uma

grande exposição de sua concepção urbanística e mais, um plano

informal para a cidade da Bahia. Não retomaremos aqui este

discurso111, apresentaremos apenas os pontos que mais nos

interessam.

Sampaio começa por afirmar que falará sobre o que está

relacionado com sua área de engenharia, “a já iniciada remodelação

da Cidade do Salvador”. Logo de início afirma:

“a cidade, fundada em 1549 e que por tanto tempo tardou o seu desenvolvimento, está a desfazer-se dos moldes de outro tempo, para tomar as formas garridas das cidades modernas: quer rasgar amplas, extensas as suas artérias e avenidas aos reclamos do tráfego intenso; quer reconstruir-se bela, elegante, elevada por tributo à estética, a que o homem de agora, já envolvido nas suas faculdades sensitivas, não olha mais como causas supérfluas e acessórias, mas que exige como necessária e essencial aos fins da moderna civilização”.

110 Esse discurso foi publicado na integra no Jornal de Notícias, Salvador, Setembro de 1912. Há um recorte do mesmo arquivado no Caderno Nº 72. Arquivo Theodoro Sampaio, Instituto Histórico Geográfico da Bahia111 Para uma completa discussão, ver: COSTA, 2000.

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Para ele, o problema da remodelação de uma cidade é uma

questão muito complexa, pois há uma tradição, um jeito de viver e de

construir arraigados nos séculos, e que essa remodelação seria não só

no plano do visível (nas ruas, encostas, etc...), mas também no plano

do invisível (nos esgotos, na higiene, etc...). E que dar solução a estas

questões é dar solução “a um problema vastíssimo que toca pelos

costumes, pela economia, pela arte e vem desde a história até as

últimas conquistas da ciência”. “Uma cidade, como todos os centros

humanos de atividades humanas, não surge a esmo, sem causas de

natureza econômica e social reconhecida. (...) a cidade de hoje é, sem

dúvida alguma, a resultante dessas causas”. Quando se propõe a

falar sobre aspectos para possíveis diretrizes de uma remodelação da

cidade, sugere: primeiro, tirar partido da posição de Salvador, ou seja,

“tirar partido do gracioso e do pitoresco”; segundo, atentar para a

topografia do terreno, especialmente de seus “recortes”.

E então cita a sua referência conceitual - teórica: as cidades -

jardins:

“...há de notar como a casaria de tetos vermelhos da cidade emerge do seio de uma floresta imensa, à imitação das chamadas cidades-jardins dos modernos higienistas e, para logo, compreender o segredo do pitoresco da antiga metrópole de outrora e também a razão da saúde de que ela desfruta, a despeito de suas faltas imperdoáveis nos domínios da higiene”. Theodoro passa a fazer uma comparação entre Salvador e estas cidades, e afirma que está aí a razão da saúde da cidade “a despeito de suas faltas imperdoáveis nos domínios da higiene”.

Para Sampaio não se deve perder de vista a concepção da

cidade grega, a Acrópole, sugerindo que Salvador deveria tê-la em

mente quando da sua remodelação. Sugere em linhas gerais que as

fachadas dos edifícios deveriam seguir o estilo grego. Quanto ao

rasgar das

“avenidas, respeitar tão somente as relíquias veneráveis pelo que elas têm de histórico e artístico, corte o que for mister cortar, para conseguir o bom efeito estético, para ampliar e alargar, em bem da saúde pública, e para encurtar distâncias, em favor do tráfego mais intenso.”

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Já no final de sua fala, afirma:

“quem conhece o plano das cidades-jardins, da moderna arte de construir cidades, segundo os ditames da higiene e da estética, não estranhará, por certo, esse traçado das artérias ou vias irradiantes, por trechos concordados e melhorados das ruas atuais. A linha reta nem sempre é a preferida no projetos novos. As ruas traçam-se à feição do terreno, ora curva, ora em tangente, aqui mais largas, além mais estreitas, ligando entre si espaços, deixando livres, para logradouros e jardins, que se multiplicam até no interior dos quarteirões, quais outros tantos pulmões do corpo habitado. Uma cidade-jardim, o ideal das cidades de agora, não é um plano traçado em xadrez; foge, pelo contrário, da monotonia das linhas para imitar a natureza nas suas manifestações mais nobres”.

No entanto, para ele, não era realizando obras “mais urgentes”,

que os trabalhos cessariam. Depois destas, deviam começar as “que

se destinam ao preparo dos caminhos e estradas que levam aos

subúrbios, donde vem o suprimento dos mercados...”; abordando

questões como: passeios, os abrigos e jardins públicos (no estilo

inglês) e arborização de vias. Afirma: “mas não é só a remodelação

do meio físico que nos deve preocupar. O meio moral deve ser o da

nossa predileção. A instrução do povo requer cuidados especiais. De

que serve uma cidade-jardim, cheia de beleza e de monumentos, se o

povo que a habiata é um povo inculto e incapaz de sentir-lhe os

benefícios e efeitos?”

Do pouco exposto, vê-se que seu discurso é bem claro. Sua

visão da cidade moderna é a visão das Cidades-Jardins, isto é, sua

concepção de cidade aproxima-se desta no que toca a suas

concepções mais gerais, digo, “unir as vantagens do campo às da

cidade”, “melhoria da qualidade de vida”, busca de uma vida “cidadã

decisivamente dinâmica e ativa com a beleza e deleite do campo”,

“elevar o nível de saúde e de bem estar”, de modo que “os princípios

éticos e econômicos” tenham a oportunidade de manifestar-se. Tudo

isto está, de uma forma ou outra contemplado, neste “plano” para

Salvador, do qual suas preocupações para a formação de uma “nova”

sociedade pode ser inferido.

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Sampaio, no seu “Economia Política” (1876), coloca-se de forma

crítica e contrária ao socialismo e ao comunismo. Quanto ao

capitalismo, discorda completamente de Howard, uma vez que o

defendia. Clara também é a afinidade ente eles quanto às questões

higienísticas. Ambos as defendem, assim como se preocupam com a

qualidade das habitações112. Em Sampaio, não podemos dizer que a

habitação ganhe um contorno de habitação social, ainda que este

tenha projetado uma vila operária em Salvador (COSTA, 1996) e tinha

se envolvido com outra em Santos (ver capítulo V).

Entretanto, a semelhança entre ambos acaba por aí. Howard

pretendia transformações mais profundas com as quais,

aparentemente, Theodoro não estava acenando; a estrutura

econômica e social para as cidades-jardim era mais “radical” do que o

discurso de Theodoro deixa entrever; aliás, este não explicita como

seria viabilizada a remodelação por ele proposta. De resto, as

soluções formais do primeiro pouco se assemelham às do segundo,

até mesmo conflitavam, uma vez que Howard afirma: “é mais simples

e ordinário, mais econômico e absolutamente satisfatório partir de um

material novo para criar um novo instrumento, do que reformar e

modificar um velho”, no que, certamente, Salvador não se

enquadrava.

Salvador constitui-se muito mais como um sítio propício à

aplicação dos postulados sitteanos do que os howardianos. E, de fato,

é isso que se nota neste discurso. Nitidamente, Sampaio cita e

discorre sobre a possibilidade de tirar “partido do pitoresco”, numa

referência nítida, ao nosso ver, a Sitte. Isto fica mais claro ainda

quando fala do “peso” do passado na Bahia, quando aponta para o

respeito a esse passado durante a elaboração do projeto, quando

remete à Antigüidade greco-romana (a Acrópole) para expor suas

idéias; quando aponta para o respeito à topografia; quando expressa

112 Para uma análise desta questão na obra de Sampaio ver COSTA (1996).

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

suas preocupações com os espaços públicos, abertos, de convívio e

com o desenvolvimento de uma nova sensibilidade, o que, decerto,

está associado a uma dimensão estética da cidade. De resto, nota-se

uma total sincronia do discurso de Theodoro Sampaio com as

questões então em voga no cenário urbano nacional: a circulação, a

salubridade e a estética. Sua consciência para o “surgimento” de uma

cidade moderna baseada na técnica fica clara, assim como também,

para as dimensões sociais desta. Nas entrelinhas, está a intenção de

um plano de conjunto, apontando para a expansão da cidade.

Sete anos mais tarde, em 1919, Sampaio projeta o que

consideramos sua mais explícita obra de urbanismo: o projeto para a

Cidade Luz (COSTA, 2000) em que parte destas proposições

anteriormente discutidas. Ao nosso ver, a Cidade Luz – fortemente

influenciada pelas cidades – jardins, não era uma mera cópia de um

modelo, por mais que este modelo seja pertinente, mas antes, uma

reinterpretação das questões e proposições de Howard adaptando-as

às condições de contorno de sua realidade e de seus interesses, o

mesmo acontecendo com a obra de Sitte.

O que nos parece mais importante do pensamento de Howard

tomado por Sampaio é a concepção de cidade. Ao propor a Cidade

Luz, Sampaio a pensa como uma unidade independente e de certa

forma auto suficiente, com toda uma infraestrutura própria, ainda que

esta pudesse, em dado momento, dialogar com a capital baiana; ao

fazer um forte discurso galgado nas questões higienísticas e de

salubridade; e por fim, ao pensar as novas formas de sensibilidade e

de convivência requeridas por sua época, na harmonia entre campo e

cidade, no equilíbrio ambiental, ele os pensa galgado em Howard.

Outra referência teórica explícita de Sampaio era Sitte. Deste

parece-nos que a aceitação e absorção das idéias foi feita de forma

mais direta por aquele. Nosso engenheiro claramente era um homem

ligado ao passado, assim como teve uma sólida atuação como

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topógrafo. Não é estranho portanto, que das idéias de Sitte, tenha

absorvido as preocupações para com o passado; que veja nos

contornos históricos elementos importantes para a projetação. É

ainda neste sentido que seu cuidado para com a topografia, com as

curvas de níveis na alocação de sua proposta e, em um âmbito maior,

para com o sítio, se façam presentes. A sua concepção estética está

voltada para os estilos pretéritos, não se atendo às novas conquistas

nesse campo. Suas preocupações também convergem com as

preocupações do austríaco no tocante à concepção do pinturesco -

pictório, mencionado pelo próprio engenheiro, em outro texto seu.

Sampaio não subordina a técnica à história ou à estética. Nele,

elas dialogam, como queria Sitte, sendo que para ele a técnica surge

como prioritária, estando aí, talvez, a explicação para o fato da opção

pela forma de “tabuleiro xadrez” no desenho da Cidade Luz. Sampaio

demanda particular atenção para com os espaços públicos abertos,

praças, jardins e monumentos. Como Sitte, ele tinha toda uma

preocupação para com as condições higienísticas. Aqui cabe

mencionar que, em Sampaio, assim como em Saturnino de Brito,

como nos lembra Andrade, as concepções sitteanas se reconhecem

em um urbanismo sanitarista.

Por fim, nos parece que a metodologia projetual de ambos se

assemelha (Sitte e Sampaio): partem da análise das condições dadas

(físicas, ambientais e sociais), levam em conta o preexistente,

atentam para o crescimento da cidade e então elaboram suas

propostas.

É partindo destas considerações que entendemos como estas

duas influências foram reelaboradas por Sampaio. De Howard veio

sobretudo a concepção, o imaginário de cidade, de Sitte, sobretudo o

desenho. Obviamente que esta cisão por nós sugerida é simplista,

sendo muito mais complexa a mistura operada por Theodoro

Sampaio, como facilmente se verá nos três próximos capítulos.

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COSTA Capítulo III – O Ideário Urbano Paulista na Virada do Século.

Contudo, ela nos possibilita entender como foi possível ao engenheiro

apropriar-se de duas vertentes urbanísticas do início do século, e que

muito contribuíram para o desenvolvimento do urbanismo moderno,

ao mesmo tempo em que vemos como ele as elaborou.

Se anteriormente explicitamos as possíveis relações entre

Sampaio, Sitte e Howard nos próximos capítulos buscaremos

explicitar sua relação com os “socialistas utópicos”, com o urbanismo

alemão e sobretudo, com o urbanismo americano.

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