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5/19/2018 COUTINHO-JacintoNelsonMiranda-SistemaAcusatrio-CadaParteNoLugarCo... http://slidepdf.com/reader/full/coutinho-jacinto-nelson-miranda-sistema-acusatorio-cada-p Brasília a. 46 n. 183 julho./set. 2009 103 Sumário 1. Os dois sistemas processuais penais. 2. Por que todos os sistemas processuais são “mistos”? 3. O sistema processual penal atual: a inquisição do CPP de 41. 4. O sistema proces- sual penal no Projeto 156/09-PLS. 5. O lugar constitucionalmente demarcado das partes e o projeto 156/09-PLS. 1. Os dois sistemas processuais penais Todos os sistemas processuais penais conhecidos mundo afora são mistos. Isto significa que não há mais sistemas puros, ou seja, na forma como foram concebidos. Há de se entender, porém, o que se quer dizer com tal assertiva, tão difundida quanto mal-entendida. A compreensão da questão passa por uma dúplice análise: em primeiro lugar, da própria noção de sistema e, depois, da possibilidade ou impossibilidade de se ter sistemas mistos. Ora, tem-se presente que os sistemas – ditos puros – nasceram, na forma como os conhecemos, no início do século XIII, embora outros tenham existido, inclusive com tais nomes, antes, por exemplo, entre os romanos. Esses, porém, só para alusões secundárias têm alguma importância naquilo que aqui interessa, ou seja, a in- vestigação dos modelos atuais, precisos e datados, inclusive para não se permitir uma maior confusão. Sistema acusatório Cada parte no lugar constitucionalmente demarcado  Jacinto Nelson de Miranda Coutinho  Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é Pro- fessor Titular de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR); Mestre (UFPR); Doutor (Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Coorde- nador do Núcleo de Direito e Psicanálise do PPGD-UFPR. Advogado. Procurador do Estado do Paraná. Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pelo Paraná. Membro da Comissão Externa de Juristas do Senado Federal que elaborou o anteprojeto de CPP, hoje Projeto n o  156/2009-PLS.

COUTINHO-Jacinto Nelson Miranda - Sistema Acusatório - Cada Parte No Lugar Constitucionalmente Demarcado (2010)

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COUTINHO-Jacinto Nelson Miranda - Sistema Acusatório - Cada Parte No Lugar Constitucionalmente Demarcado (2010)

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  • Braslia a. 46 n. 183 julho./set. 2009 103

    Sumrio1. Os dois sistemas processuais penais.

    2. Por que todos os sistemas processuais so mistos? 3. O sistema processual penal atual: a inquisio do CPP de 41. 4. O sistema proces-sual penal no Projeto 156/09-PLS. 5. O lugar constitucionalmente demarcado das partes e o projeto 156/09-PLS.

    1. Os dois sistemas processuais penaisTodos os sistemas processuais penais

    conhecidos mundo afora so mistos. Isto significa que no h mais sistemas puros, ou seja, na forma como foram concebidos.

    H de se entender, porm, o que se quer dizer com tal assertiva, to difundida quanto mal-entendida.

    A compreenso da questo passa por uma dplice anlise: em primeiro lugar, da prpria noo de sistema e, depois, da possibilidade ou impossibilidade de se ter sistemas mistos.

    Ora, tem-se presente que os sistemas ditos puros nasceram, na forma como os conhecemos, no incio do sculo XIII, embora outros tenham existido, inclusive com tais nomes, antes, por exemplo, entre os romanos. Esses, porm, s para aluses secundrias tm alguma importncia naquilo que aqui interessa, ou seja, a in-vestigao dos modelos atuais, precisos e datados, inclusive para no se permitir uma maior confuso.

    sistema acusatrioCada parte no lugar constitucionalmente demarcado

    Jacinto Nelson de miranda Coutinho

    Jacinto Nelson de miranda Coutinho Pro-fessor Titular de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paran. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR); mestre (UFPR); Doutor (Universit degli Studi di Roma La Sapienza). Coorde-nador do Ncleo de Direito e Psicanlise do PPGD-UFPR. Advogado. Procurador do Estado do Paran. Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pelo Paran. membro da Comisso Externa de Juristas do Senado Federal que elaborou o anteprojeto de CPP, hoje Projeto no 156/2009-PLS.

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    Os dois sistemas dos quais se fala (inqui-sitrio e acusatrio) vieram a lume, como se sabe, por razes polticas. Outras, de ordem teolgica, econmica, filosfica e jurdica (entre tantas), foram altamente relevantes mas, decididamente, secundrias ou, pelo menos, sempre estiveram subordinadas quelas polticas.

    O Sistema Inquistrio aparece no mbito da Igreja Catlica e tem seu marco histrico (1215) em face do IV Conclio de Latro.

    Em sntese, poder-se-ia dizer que desde o sculo anterior (sculo XII), mais parti-cularmente em seu final, a Igreja Catlica se debatia com um fenmeno social inte-ressante: pensavam alguns estar em risco o seu domnio sobre o mundo conhecido, do qual era detentora da grande parte. Sua doutrina era visvel j no encontrava ressonncia plena e, portanto, havia discr-dia em alguns pontos capitais. Pensava-se que isso era fruto de doutrinas herticas e, portanto, de postulados contrrios que-les pregados desde Roma. Sabia-se, por sua parte, isso s ser possvel em razo de ou-tros fundamentos epistmicos e, assim, no era tarefa fcil, nem banal, o seu combate.

    Algumas medidas j haviam sido toma-das: Inocncio III, o papa de ento, havia baixado uma Bula (Vergentis in senium), em 1199, equiparando o crime de heresia ao de lesa majestade, historicamente o mais grave dos crimes. Ela, como tal, produziu poucos efeitos, porque eventual punio ainda esta-va afeta aos leigos que, ademais, comeavam a avolumar poder em face do crescimento das nascentes cidades medievais, constru-das no pela decadncia dos feudos, mas, sobretudo, em funo da necessidade dos senhores das caravanas melhor conduzirem e distriburem suas mercadorias, fato deter-minante no s da criao dos entrepostos comerciais, mas, principalmente, para serem eles regidos por uma outra mentalidade, ligada ao comrcio e, portanto, muito dife-rente daquilo que se tinha nos feudos.

    Os entrepostos comerciais foram trans-formados em burgos, vilas. E tinha outra

    perspectiva a vida que ali se levava: cria-se um novo sistema de trocas e j no mais cada um respondia pela sua prpria so-brevivncia, mas dependia dos outros, o que se v pelas chamadas Corporaes de Ofcio, cada uma produzindo um tipo (ou tipos) de bens.

    Era natural que se no pensasse nos burgos como se pensava nos feudos; e se vivesse de outro modo, embora, no incio, tenha sido muito difcil, no raro mais que antes (nos feudos), porque o regime das relaes pessoais era, em grande parte, pior que aquele dos escravos.

    Igreja Catlica (ou parte dela) impor-tava, porm, no o fato de haver diferena entre o burgo e o feudo, mas, sim, naquele que no mais tinha um domnio pleno, agora eclipsado por aquele dos burgue-ses, senhores das caravanas, do comrcio e do grosso do dinheiro. E, sem volta, pelo menos aparente. Aqui, ento, o dilema: o que fazer em relao a tal ponto?

    Por evidente e como no se duvida , o movimento migratrio na direo dos burgos foi acompanhado (como no poderia deixar de ser) pela Igreja Catlica. Sua presena nos burgos (desde o incio), principalmente nos sculos X e XI, no foi suficiente para aplacar o mvel do cres-cimento, ou seja, o desejo, mola mestra da propulso de qualquer sociedade.

    O problema, assim, estava em como no perder para essa nova mentalidade, dado ser complicado e sempre foi lutar contra o desejo.

    Por trs de tudo estava (j haviam diag-nosticado) Aristteles e um outro modo de se pensar a vida. Basta ver o que se passou com os Ctaros. Catlicos como todos os demais, essa gente no tinha, aparente-mente, nenhum motivo para ter contra si uma Cruzada ordenada por Inocncio III, a qual se converteu em uma guerra sem tamanho. Como pano de fundo estava sabe-se bem o pensamento de Aristteles, presumivelmente incorporado a partir do contato mediterrneo com os comerciantes

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    do norte da frica e do Oriente mdio. J no era, contudo, uma Cruzada contra os brbaros incrdulos, como se havia pas-sado (com tal desculpa) antes. Era contra iguais na f, por certo que determinada por outras razes filosficas e econmi-cas. Para tanto, basta ver o que fizeram a Carcassone, Toulouse e outras cidades arrasadas e saqueadas.

    Outro forte sintoma da fragilidade do domnio do pensamento da Igreja Catlica se deu com a criao das Universidades, quase todas produzidas como Studium Urbis, justo para preparar as pessoas para a nova realidade social dos burgos.

    O dilema, assim, no era simples, h de se reconhecer. E se sabia das causas no mbito da Igreja Catlica, onde nunca se desconheceu Aristteles, mas, por conve-nincia, adotou-se o pensamento de Plato (a verdade em um mundo hipostasiado), dado ser ajustado como uma luva aos seus interesses desde a converso de Constan-tino. Por sinal, Aristteles, na sua maior extenso, s toca o mundo cristo verda-deiramente com o gnio de So Toms de Aquino, mas no sculo XIV.

    No incio do sculo XIII, ento, presente o problema, Inocncio III rene a cpula da Igreja Catlica em So Joo de Latro e, ali, em 1215, decide-se (faz-se uma opo) pela fora. o nascimento de um novo modelo processual, ao qual no interessava aquele que estava em vigor, ou seja, os chamados Juzos de Deus, adotado (ou domesticado?) dos invasores brbaros vindos do norte para demolir o imprio romano.

    No IV Conclio de Latro decide-se, entre outras coisas, pela confisso pessoal obrigatria, pelo menos uma vez ao ano; e ela o marco histrico do novo sistema. A partir da a noo de Bulgaro (actus trium personarum: iudiciis, actori et rei) tende a de-saparecer, pelo menos em processo penal.

    Tudo se consolida com uma Bula de Gregrio IX (Ex Excomuniamus), de 1231, donde se delineia o arcabouo tcnico; e com a Bula Ad extirpanda, de Inocncio IV,

    em 1252, extendida ao mundo em 1254, pela qual abriu-se o espao definitivo para os mtodos utilizados na Inquisio, de modo que Inquisitor e Socius se absolvessem mutuamente por eventuais demasias, entre elas na tortura. A Igreja Catlica tocava barbrie que tanto havia criticado no incio do catolicismo romano, quando os catlicos foram perserguidos, torturados e mortos.

    Excludas as partes, no processo inqui-sitrio o ru vira um pecador, logo, detentor de uma verdade a ser extrada. mais importante, aparentemente, que o prprio crime, torna-se ele objeto de investigao. sobre si que recaem as atenes, os esforos do inquisidor. Dententor da verdade, dela deve dar conta. Eis a razo por que a tortura ganhou a importncia que ganhou, e a confisso virou regina probationum.

    Se o inquirido resistisse, merecidamente poderia ser absolvido; e de alguns se tem notcia. Era algo um tanto difcil, usando-se como se usava os mtodos de per-quirio. A verdade estava dada ex ante e o inquisidor dela tinha cincia, de modo que o trabalho (abjeto, em realidade) era um jogo de pacincia e, ao final, confessar, dentro do modelo proposto, era a vitria da Inquisio, mas, para o consumo geral, vitorioso era o inquirido que, como prmio, ganhava a absolvio, nem que de tanto em tanto fosse parar na fogueira para, mais rpido, entregar sua alma a Deus.

    modelo hipcrita, dado a deciso estar preordenada. Com o resultado antecipado (pelo menos ao raciocnio mais hbil), o resto eram os modos de se confirmar aquilo que a razo j havia projetado.

    Como modelo, a analtica de Aristte-les, pela lgica dedutiva. Com o domnio pleno das premissas, o inquisidor conduz o resultado para onde quiser.

    O modelo genial, no fosse, antes, diablico, embora nascido, como se viu, no seio da Igreja Catlica. Em um tempo extre-mamente mstico, no poderia ser diferente. Resistiu e resiste como o mais apurado sistema jurdico do qual se tem conheci-

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    mento, tendo persistido por tanto tempo justo por sua simplicidade, isto , porque usa o prprio modelo de pensamento (por excelncia) da civilizao ocidental.

    Ao permitir sobremaneira que se manipule as premissas (jurdicas e fticas), interessa e sempre interessou aos regimes de fora, s ditaduras, aos senhores do poder. Podendo-se orientar o xito, faz-se o que quiser. o reino do solipsismo, por excelncia. Da ter durado por tanto tempo; e seguir intacto, em muitos pontos, ainda que os novos tempos, pela realidade, du-ramente o tenham atingido, mormente por lhe desmascarar o falso discurso.

    Ora, ele interessa a quem no atingido por seus tentculos ou, pelo menos, pensa-se inatingvel, desde que as bases esto lanadas ex ante: o alvo so os outros!

    No de estranhar que ele confirme a aluso dos penalistas de se tratar o Direito Penal de uma luta de classes, dos que tm contra os que no tm. muito menos, por outro lado, desafia a inteligncia (pelo menos em relao ao sistema adotado) o re-sultado, no Brasil, de um mundo de pobres presos, quase a integralidade dos quatro-centos e vinte mil ora indicados nos dados oficiais, em visvel afronta ao princpo da isonomia constitucional. Afinal, a priso, numa ordem constitucional e democrtica, para culpados e de preferncia condena-dos , sejam pobres ou ricos. Tem-se, porm, uma opo preferencial pelos pobres e, por certo, pode-se desconfiar dos motivos, mas no se pode ter dvida de que o sistema processual penal adotado, aquele do Siste-ma Inquistrio, um dos responsveis.

    Doutra parte, o Sistema Acusatrio nasce na Inglaterra aps a invaso normanda levada a efeito por Guilherme, o Conquis-tador. Na realidade, a construo do novo sistema processual se d sob o reinado de Henrique II, talvez o mais importante dos reis ingleses para o Direito.

    Plantageneta, Henrique II governou de 1154 a 1189. Ajudou a implantar o sistema feudal na Gr Bretanha porque interessava

    aos normandos a centralizao do poder. Assim, colocando-se no lugar de senhor de todos os feudos, transformou os suseranos em grandes vassalos. Sua luta foi destinada unificao da Gr Bretanha, o que conse-guiu a partir de 1171, quando avana sobre a Irlanda.

    Para manter o controle integral e de-sestabilizar o poder dos suseranos/gran-des vassalos, Henrique II, seguindo um modelo visivelmente romano, impe uma lei do exrcito, pela qual impede a manu-teno e criao de exrcitos feudais em troca de proteo que a todos daria desde Westminster. Eis o lugar da fora, enfim concentrada em suas mos.

    Por outro lado, no campo jurdico, es-fora-se para acabar com os Juzos de Deus, presentes tambm na ilha desde a invaso dos nrdicos. E isso faz concentrando na ju-risdio de Westminster as decises; e para todos. O problema que alguns resistiram, como seria natural. Foi o que se passou com o bispo de Canterburry, Thomas Becket, morto por sicrios do rei.

    Assim, todos os que se sentissem pre-judicados poderiam reclamar ao rei e o faziam por meio de peties. Essas, em regra, eram recebidas e decididas pelo Lord Chanceler e, em nome do rei, emitiam-se ordens escritas (writ) aos representantes reais (locais), ditos sheriff, a fim de que esse ordenasse que o indicado desse satisfao ao queixoso ou, se fosse o caso, compare-cesse para dar explicaes.

    Tal modo de agir (forms of action) logo abarrotou a jurisdio real e, mesmo que o tribunal tivesse sido decomposto (dividiu-se o chamado Curia regia em trs tribunais), a situao no encontrava soluo.

    Foi da que Henrique II deu, quem sabe, o grande passo construo de um modelo singular. Por um novo writ, dito novel dis-seisin, instituiu para Clarendon, em 1166, um Trial by Jury. Por ele, um Grand Jury, composto por 23 cidados (boni homines) indictment um acusado e, se admitida a acusao, seria ele julgado por um Petty

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    Jury, composto por 12 membros. Nele, o Jury dizia o direito material, ao passo que as regras processuais eram ditadas pelo rei. O representante real, porm, no in-tervinha, a no ser para manter a ordem e, assim, o julgamento se transformava num grande debate, numa grande disputa entre acusador e acusado, acusao e defesa. Para tanto, a regra era a liberdade, sendo certo que o acusado era responsvel pelas explicaes que deveria dar. Por sinal, no se produziam provas no incio: o Jury era a prova. Elas s vieram como regra nos sculos XV e XVI, como evidence, quando j no se tinha mais conhecimento dos fatos e, portanto, era necessrio reconstituir o crime e seus pormenores.

    O julgamento, nesta dimenso, dava-se, normalmente, em locais pblicos e, do pon-to de vista poltico, foi uma opo e manobra genial de Henrique II. Afinal, se o povo condenasse, era a resposta do rei; se o povo absolvesse, era a resposta do rei e, assim, estava ele sempre do lado aparentemente correto. No de estranhar aparecerem aforismos como The king can do no wrong.

    Deste modo, as regras de processo (ou do como se deveria proceder) eram gerais e geravam um sistema comum (Common Law), ao passo que o direito material era local e expresso muito mais (como sempre foi) pelos costumes que pelas leis. Eis por que, no Common Law, remedies precede rights. De qualquer maneira perceba-se , em sendo um sistema, trata-se dO Common Law e no dA Common Law.

    Ao que por ora interessa, v-se que, nele, a disputa entre acusao e defesa aparentemente tendia e tende a ser leal e indicava uma paridade de condies entre os contendores.

    O vital, porm, era que os juzes deci-diam com base naquilo que sabiam (como no poderia deixar de ser), mas, depois, com base naquilo que as partes aportavam ao processo, o qual se mostrava como um jogo dialtico entre os argumentos delas, em geral travado em local pblico. Tal sis-

    tema o que se convencionou chamar, mais tarde, na forma como se conhece hoje, de Sistema Acusatrio e, a partir desse padro, domina boa parte dos sistemas processuais penais do mundo.

    Como se pode notar, a construo dos sistemas processuais puros se deu por op-es polticas historicamente demarcadas, embora tivessem variados os motivos que levaram a tanto.

    2. Por que todos os sistemas processuais penais so mistos?

    Um sistema processual penal misto, ao contrrio do que comumente pensam alguns, no a simples somatria de ele-mentos dos dois sistemas puros.

    E isso porque epistemologicamente no se sustentaria uma somatria do gnero, por um lado, mas, por outro (e qui mais relevante), porque o prpria noo de sis-tema no comporta algo do gnero.

    Ora, como precitado, o nascimento dos sistemas processuais penais puros no se deu em funo de bases filosficas ou, pelo menos, no foram elas as foras motrizes das suas constituies, e sim opes polticas, tanto na Igreja Catlica (quando do nasci-mento do Sistema Inquisitrio, embora nela se soubesse da questo ligada ao pensamento aristotlico) quanto na Gr Bretanha de Henrique II, onde nasce, como hoje estrutu-rado, o Sistema Acusatrio, quando, por certo, sequer se cogitou sobre o assunto, dado estar a ateno quase que integralmente voltada para outros pontos, todos polticos.

    Do ponto de vista filosfico, ento, a preocupao com os modelos processuais penais s aparece mais tarde e, como no poderia deixar de ser, em face do momento histrico, sempre vinculada chamada Filosofia da Conscincia.

    Tendo por referncia o pensamento cartesiano, objeto e mtodo sempre foram os ncleos da base filosfica de descoberta da verdade. Assim se pensava o mundo e da mesma forma se passava, ento, com o

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    Direito e seus ramos. Com o Direito Pro-cessual Penal no seria diferente.

    Enquadrado como uma estrutura com-plexa por definio, o processo (e a teoria toda que lhe sustentava) no poderia ser pensado hilemorficamente, mesmo porque integrado por elementos que, por si ss, eram de uma complexidade intolervel reduo unidade, necessidade inafastvel no modelo aristotlico. Bom exemplo era e segue sendo a audincia.

    Eis por que, dentre outros motivos, com o tempo passou a ser pensado, o processo, pela matriz sistmica, agora vista no mode-lo kantiano. Ora, como se sabe, foi Kant que concebeu, na sua Arquitetnica da Razo Pura (na sua obra Crtica da Razo Pura), a possibilidade de se encontrar a verdade em es-truturas complexas e assim o fez imaginando a possibilidade de se conhecer os conjuntos (sstema, do grego). Para ele, sistema era o conjunto de elementos colocados em relao sob um ideia nica. Ela, por sua vez, seria determinada pela finalidade do conjunto e estaria colocada como princpio de liga-o entre os elementos integrantes, logo funcionaria como um princpio unificador, reitor da conexo e, como tal, dado a priori. Foi assim que se pode pensar em sistemas nos mais variados campos, algo que vai do sistema solar ao sistema de governo, ou seja, matria aparentemente de conhecimento corriqueiro no cotidiano. Em todos, porm, h um princpio unificador.

    Por este vis, no difcil compreeender que todas as cincias e teorias se fundam em princpios unificadores, ali colocados como a representao da coisa, da Verdade que, se existir, no pode ser dita, justo por faltar linguagem para tanto. Tal princpio unifica-dor, reitor, fundante, que se coloca no lugar da Verdade que se no pode dizer, um mito, ou seja, a verdade (com minscula) que dita, como linguagem, no lugar daquilo que, em sendo, no pode ser dito. o significante primeiro.

    Os sistemas processuais penais, por tal vereda, vo pensados assim e, por isso, relacionados ao fim ltimo do processo

    (dicere ius ou iuris dictio), expresso do sentire (sentena) do rgo jurisdicional. Para decidir/sentenciar, todavia, precisa-se de conhecimento e, para tanto, faz-se mis-ter, como se sabe, da prova: tudo aquilo que produzido (introduzido) no processo com o objetivo de tornar conhecido fatos, pessoas ou coisas. Neste momento, ganha grande sig-nificado o conceito de processo aventado por Canuto mendes de Almeida, isto , algo como a reconstituio histrica de um fato pretrito que o crime.

    No se trata do crime tenha-se bem presente j existente (pelo menos apa-rentemente), mas da sua reconstituio, algo que se faz pela linguagem, como no se pode negar. Eis, ento, a razo pela qual a lingua-gem to importante no espao do Direito Processual Penal. Afinal, consumado o crime (teoricamente falando, obviamente), da por diante tudo j matria processu-al e, assim, caminha-se nos labirintos da linguagem. Salvo as rarssimas excees dadas pelos chamados atos reais (embora at eles sejam discutveis enquanto tal), vistos na viso de Goldschmidt, tudo o mais pura linguagem. No de estranhar, no obstante: a investigao preliminar sempre linguagem; a denncia , no que mais interessa (a imputao), linguagem; a prova, mormente aquela quantitativamente mais significativa, a testemunhal, pura linguagem; as razes e alegaes das partes so pura linguagem; as decises, mxime as sentenas, da mesma forma, so linguagem; e assim por diante. Est-se, portanto, no reino da linguagem.

    Sem embargo disso, no so poucos os que sustentam a necessidade e por que no a concreta possibilidade? de se enten-der e discutir tudo a partir da descoberta da Verdade, por evidente que ignorando os giros produzidos pela linguagem. Para tanto se passar como parece elementar h, sem dvida, uma crena na real possibi-lidade de se obter a Verdade pelo conhecimento do objeto e, assim, aposta-se nos postulados da Filosofia da Conscincia como o genial

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    caminho de descoberta. O sujeito d conta do objeto porque, antes de tudo, cr no mtodo do qual dispe: a lgica dedutiva! No de estranhar que tudo seja pensado por silogismos.

    No processo penal o sujeito deve conhecer e, assim, ter acesso e por ele domnio ao fato criminoso (objeto demarcado pelo caso penal que dele resulta com a aparente ou concreta consumao do crime), o que se d pela reconstituio precitada, ou seja, pelo mtodo adotado.

    O problema que o fim do sistema como referido , que resignifica o princpio unificador e ele, como elementar, ganha um colorido diferente nos dois sistemas co-nhecidos: o princpio unificador ser inquisitivo se o sistema for inquisitrio; e ser dispositivo se o sistema for acusatrio. Como ideia nica, no comporta diviso e, deste modo, no se pode ter um princpio misto e, de conse-quncia, um sistema misto.

    Ora, se todos os sistemas processuais penais da atualidade so mistos e, desde a noo de sistema no se pode ter um sis-tema misto, parece bvio que que se trata de um problema meramente conceitual, e no ftico.

    Desde uma viso mais adequada, os sistemas so mistos no por fora da simples somatria dos elementos que os integram, mas, fundamentalmente, porque em sendo sistemas regidos pelo princpio inquisitivo, tm agregados a si elementos provenientes do sistema acusatrio, como vai suceder com o sistema processual penal brasileiro em vigor e que tem por base o CPP de 1941; ou, em sendo regidos pelo princpio dispositivo, tm agre-gados a si elementos provenientes do sistema inquisitrio, como vai suceder com o sistema processual penal norte-americano.

    Neste passo, porm, ainda no se tem uma diferena concreta entre os sistemas mistos, como se pode perceber. E ela (a di-ferena) no se d em razo do arcabouo filosfico colocado disposio, muito menos pelas regras jurdicas que podem reger a matria. Na realidade e em com-

    patibilidade com o que se pode ler dos fundamentos histricos dos dois sistemas a opo, no caso, poltica, seja por um ou por outro sistema.

    Ora, faz-se uma opo poltica quando se d a funo de fazer aportar as provas ao processo seja ao juiz (como no Sistema Inquisitrio), seja s partes, como no Sistema Acusatrio, por evidente que sem se excluir (eis por que todos os sistemas so mistos) as atividades secundrias de um e de outros, tudo ao contrrio do que se passava nos sistemas puros. Da que a gesto da prova caracteriza, sobremaneira, o princpio unificador e, assim, o sistema adotado.

    Isso, embora no seja por nada compli-cado, tem sido difcil muito difcil fazer entender a alguns que primam pela leitura bvia da vida como linearidade, como se fossem imagens de um espelho e, assim, seguem insistindo, contra a Constituio, em manter o Sistema Inquisitrio que se retira, antes de tudo, do CPP, em permanente conflito com o modelo constitucional que reclama um devido processo legal e, assim, in-compatvel com aquele no qual o juiz o senhor do processo, o senhor das provas e, sobretudo como sempre se passou no Sistema In-quisitrio pode decidir antes (naturalmente raciocinando, por primrio e em geral bem intencionado) e depois sair cata da prova que justifique a deciso antes tomada.

    Nos labirintos do sistema processual penal brasileiro habita Inocncio III; e no so poucos os que gozam o lugar de um Tor-quemada. Nunca se ter democracia proces-sual desse modo, por evidente, mesmo se se pensar to s nos grandes magistrados. Um sistema desse porte, em que se controlam as premissas, no s no alheio ao solipsismo como lhe incentiva. E o pior que a Consti-tuio da Repblica no se faz viva.

    3. O sistema processual penal atual: a inquisio do CPP de 41

    O sistema processual penal brasileiro atual, assentado no CPP de 41 (cpia do

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    Codice Rocco, da Itlia, de 1930, o fascista Vincenzo manzini na dianteira), tem por base e sempre teve a estrutura inqui-sitorial.

    Por trs de todos estava o Code Napolen, de 17.11.1808 (em vigor desde 01.01.1811), pilotado por Jean-Jacques-Regis de Cam-bacrs, homem de habilidades polticas conhecidas mas, sobretudo, conhecedor das maneiras de como dobrar o Imperador. Foi dele (depois arquichanceler do Imprio) a ideia de mesclar a investigao preliminar colhida nos mecanimos inquisitoriais das Ordonnance Criminelle de 1760, de Lus XIV, com uma fase processual no melhor estilo do Jri ingls, ento adotado pelos franceses, mutatis mutandis, por um De-creto de 16-29.09.1791 e combatido desde a adoo. Salvava-se, retoricamente, pela fase processual, a democracia dos julgamentos, dando-lhes uma aparncia acusatria e, assim, um espetculo com partes, acusao e defesa, debates orais e, de certa forma, to s a interveno do juiz para o controle da sesso. Tudo era, contudo, s retrica de um chamado processo misto.

    No fundo, toda a prova produzida na primeira fase da persecuo, em regra por um juiz instrutor, na investigao preli-minar puramente inquisitorial, era usada na fase processual, por exemplo por sua leitura no chamado Jugement. A sesso vi-rava, como era sintomtico, teatro, no raro pantomima; puro embuste; e os discursos, pomposos e longos, inflao fontica. As cartas do jogo j estavam marcadas e para desdizer isso era preciso desacreditar na figura democrtica do juiz instrutor, to inquisidor quanto qualquer outro que, na histria, ocupou aquele lugar. O mister no era e segue no sendo singelo. Querendo-se ou no a figura do juiz sem-pre foi e continuar sendo muito prxima quela do pai, inclusive pelas funes que ambos exercem. Natural, ento, que se no tenha muito nimo para dele discordar, mormente quando vai coadjuvado pela acusao ou pela defesa, tomando-se em

    considerao poder pender para qualquer dos lados embora, como regra, tenda a prestigiar a acusao.

    O dito processo misto, com o hlito do qual Napoleo tocou o mundo a partir da Europa continental mostrou-se, desde sem-pre, uma fraude democracia processual. No fundo, o sistema napolenico nada mais era e , para quem o adota um Sistema Misto, ou seja, um Sistema Inquisitorial mesclado com elementos provenientes do Sistema Acusatrio, sobretudo partes, acusao separada formalmente do rgo julgador e debates orais.

    Por ele e para ficar em poucos exem-plos , nazistas, fascistas, soviticos e todos os regimes totalitrios chamaram de democrticos seus sistemas processuais penais, em geral tratando-os como Sis-temas Acusatrios. Cambacrs segue, desde o inferno, gozando a dor da injus-tia que se perpetua pelo mundo, sempre em nome da Verdade, das boas intenes dos inquisidores (basta estar naquele lugar para ser um deles) e do chamado Sistema Misto (Inquisitorial agregado com elemen-tos outros), apresentado como Sistema Acusatrio em razo da fase processual comportar rgo de acusao diferente aparentemente daquele julgador, debates orais e, sobretudo, partes. Tais elementos, como se sabe, so deveras importantes para ajudar a se caracterizar um sistema processual, mas sem dvida (assim como outros), secundrios. O processo regido pelas precitadas Ordonnance Criminelle de Lus XIV tinha todos eles e foi, quem sabe, o maior monumento inquisitorial laico da histria da humanidade.

    No Brasil, tal modelo foi adotado qua-se que com a mesma conformao, isto , aquela copiada do cdigo italiano de 1930. Interessava ao ditador de planto, ainda mais porque, em face dos jogos de poder do Imprio, acabou-se por adotar, em 1871 (Lei no 2.033, de 20.09.1871), no lugar do chamado Juizado de Instruo, o Inqurito Policial. No fundo, no h diferena excep-

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    cional entre eles dado se tratar, sempre, de mecanismo inquisitorial (onde reside o problema): qualquer um que estiver naque-le lugar repita-se tender a fazer o papel de inquisidor, exera a funo que exercer. Por sinal, o mister j esteve em mos aos bispos e tudo deu no que deu, como se sabe. O diverso, sem dvida, entre l e c, que nos modelos europeus continentais, quase sempre variaes do modelo primei-ro do Code Napolen, o Juizado de Instruo permitiu, quando do avano democrtico do sculo passado, adaptaes tanto ne-cessrias quanto interessantes, a ponto de se poder seguidamente colocar em causa o prprio sistema, como sucedeu na Itlia do ps-guerra. Aqui, porm, isso no pos-svel (em funo do status constitucional da investigao preliminar realizada pela Polcia Judiciria) e uma evoluo deve ser pensada desde outra perspectiva.

    O certo, no obstante, que o CPP configura um Sistema Misto e, deste modo, mantm na base o Sistema Inquisitorial e a ele agrega elementos tpicos da estrutura do Sistema Acusatrio.

    Pesa, nele, em todos os quadrantes, a sobreposio de funes do rgo jurisdicional e do rgo de acusao. Quando o juiz o senhor plenipotencirio do processo ou quase e pode buscar e produzir a prova que quiser a qualquer momento (na fase de investigao e naquela processual) no s tende sobremaneira para a acusao como, em alguns aspectos, faz pensar ser despiciendo o rgo acusatrio.

    O srio problema que surge com certo ar de naturalidade que esse mesmo rgo jurisdicional que investiga e produz provas vai, depois, julgar, ou seja, acertar o caso penal. Isso, por si s, faz pensar na falta de im-parcialidade (tomada como equidistncia das partes e seus pedidos) e, por suposto, no vilipndio daquilo que , para alguns, quase sacro na Constituio: o lugar que a nao delega a quem investido do poder jurisdicional, mormente para decidir, por ela, contramajoritariamente.

    O CPP e o sistema como um todo como poucos outros instrumentos legais, oferece condies quase ilimitadas para o agir jurisdicional nesse mbito (de busca e produo da prova), em qualquer das fases processuais, agora ainda mais ressaltado pelas regras do art. 156 (CPP), com redao da Lei no 11.690, de 09.06.08, comprovao inequvoca de ser o sistema, na base, in-quisitorial:

    Art. 156. A prova da alegao in-cumbir a quem a fizer, sendo, po-rm, facultado ao juiz de ofcio:I ordenar, mesmo antes de iniciada a ao penal, a produo antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessida-de, adequao e proporcionalidade da medida;II determinar, no curso da instru-o, ou antes de proferir sentena, a realizao de diligncias para dirimir dvida sobre ponto relevante.

    Com tamanha liberdade probatria, o juiz, no sistema processual penal brasileiro e basta apontar em tal direo pode fazer quase tudo o que pretender. Isso se dar, no mais das vezes, dentro daquilo que Franco Cordero chamou de lgica deforme:

    La solitudine in cui gli inquisitori la-vorano, mai esposti al contraddittorio, fuori da griglie dialettiche, pu darsi che giovi ao lavoro poliziesco ma sviluppa quadri mentali paranoidi. Chiamiamoli primato dellipotesi sui fatti: chi indaga ne segue una, talvol-ta a occhi chiusi; niente a garantisce pi fondata rispetto alle alternative possibili, n questo mestiere stimola cautela autocritica; siccome tutte le carte del gioco sono in mano sua ed lui che lh intavolato, punta sulla sua ipotesi. Sappiamo su quali mezzi persuasivi conti (alcuni irresistibili: ad esempio, la tortura del sonno, calda-mente raccomandata dal pio penalista Ippolito marsili; usadoli orienta lesito dove vuole. Nelle cause milanesi de

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    peste manufacta, giugno-luglio 1630, vediamo come giudici nientaffatto disonesti, anzi inclini a inconsueto garantismo, fabbrichino delitto e de-linquenti: linquisito risponde docil-mente; linquisitore gli scova in testa i fantasmi che vi h proiettato.1

    Aqui, quem sabe, o grande motivo por que a opo poltica deve ser pelo Sistema Acusatrio. Afinal, o primado das hipteses sobre os fatos no algo excepcional no Sis-tema Inquisitrio, e sim mecanismo compa-tvel como o simples modo de pensar (por sinal, da civilizao ocidental toda), logo, tende a atingir qualquer um; e no porque so juzes, mas porque so humanos.

    Ora, navegando com o pensamento para o futuro e para o passado, tende-se a acreditar nas imagens produzidas pela razo. certo, no obstante, que tal crena no definitiva e, assim, poder-se-ia dizer que admite prova em contrrio, ou seja, pode-se voltar atrs da posio anteriormente tomada, mesmo porque, se assim no fosse, a imagem assumida se converteria em real e se estaria diante de uma psicose tpica, a parania. Sem se poder descartar tal hi-ptese, a regra que assim no seja e, por isso, Cordero, como se v, fala em quadros

    1 CORDERO, Franco. Guida all procedura penale. Torino: UTET, 1986, p. 51-52. A solido na qual os inquisidores trabalham, jamais expostos ao contra-ditrio, fora dos grilhes da dialtica, pode ser que ajude no trabalho policial, mas desenvolve quadros mentais paranicos. Chamemo-os primado das hip-teses sobre os fatos: quem investiga segue uma delas, s vezes com os olhos fechados; nada a garante mais fundada em relao s alternativas possveis, nem esse mister estimula, cautelarmente, a autocrtica; assim como todas as cartas do jogo esto na sua mo e ele que as coloca sobre a mesa, aponta na direo da sua hiptese. Sabemos com quais meios persuasivos conte [alguns irresistveis: por exemplo, a tortura do sono, calorosamente recomendada pelo pio penalista Ippolito marsili]; usando-a orienta o xito para onde quer. Nos processos milaneses sobre a peste manufa-turada, junho-julho de 1630, vemos como juzes por nada desonestos, antes inclinados a um incomum ga-rantismo, fabriquem delito e delinqentes: o inquirido responde docilmente; o inquisidor lhe retira da cabea os fantasmas que lhe h projetado.

    mentais paranicos. Em suma, tendem a pre-valecer as hipteses assumidas sobre os fatos e, com liberdade, o juiz orienta o xito para onde quiser. Duvidoso, desde sempre, o acerto da deciso tomada pelas aparncias. Esse lugar, sem embargo de iludir a muitos , na anlise estupenda de Lacan, por excelncia, o lugar do engodo, da fraude, do engano; como no poderia deixar de ser.

    A nica esperana, diante de tal quadro, o juiz desconfiar, sempre e sempre, das suas prprias aparncias/imagens e, de consequn-cia, das suas decises, colocando-as prova at quando no mais for possvel, em face do rito e o momento determinado para a sentena porque, teoricamente, nela, poderia encerrar sua ativida-de judicante no caso concreto. Estar-se-ia, por elementar, no oposto da lgica deformada e, por certo, seria o ideal. Trata-se, como se pode perceber, de tarefa impossvel, ou quase. Seria como pedir ao humano que deixasse de pensar ou, por outro lado, que resistisse sempre s pulses inconscientes. Em realidade, no possvel nem uma nem outra, e, se assim , a soluo no plano da normalidade est em outro lugar.

    4. O sistema processual penal no Projeto 156/09-PLS

    A Comisso que elaborou o anteprojeto de lei de reforma global do CPP, agora convertido no Projeto no 156/09-PLS, ao meditar sobre a questo e como no po-deria deixar de ser diante das regras cons-titucionais optou pela adoo da base do Sistema Acusatrio e, assim, estabeleceu-se um cmbio epistemolgico sem preceden-tes no pas: se aprovado o precitado projeto se ter um Sistema Misto e, deste modo, base do Sistema Acusatrio se agregar elementos provenientes (em menor escala) do Sistema Inquisitrio. mas o sistema de re-gncia ser o acusatrio; e isso abre novas e melhores perspectivas para a democracia processual.

    Depois de mais de oitocentos anos de domnio inquisiorial chega-se conclu-

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    so bvia que o problema ele: o Sistema Inquisitrio; e que no vale o investimento na certeza de que os homens vencero a batalha contra sua conscincia e inconsci-ncia. O Direito, por certo, como sempre demonstrado, tem um papel vital na socie-dade mas no o condo de lhe ditar, com proeminncia, os passos.

    Neste caso, a opo pela base do Sistema Acusatrio uma prestao de contas com a realidade, principalmente porque depois de 1988 no mais faz sentido comean-do pela inconstitucionalidade nenhum ordenamento que se coloque de forma incompatvel com a Constituio.

    Desde este ponto de vista, o princpio republicano, o princpio da isonomia, o princpio do devido processo legal e o princpio da fundamentao de todas as decises (dentre outros) formam um qua-dro onde no h espao para o predomnio da base do Sistema Inquisitrio. Eis por que a opo da supracitada Comisso foi, com preciso, pelo Sistema Acusatrio.

    No Projeto no 156/09-PLS aparece a ma-tria, antes de tudo, na regra do art. 4o:

    Art. 4o - O processo ter estrutura acusatria, nos limites definidos neste Cdigo, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigao e a substituio da atuao probatria do rgo de acusao.

    O texto merece alguma reflexo, sem embargo da sua preciso lingustica, mes-mo porque, em tal matria (e em tantas ou-tras), nada se concluiu sem discordncia.

    Neste aspecto, o anteprojeto hoje Projeto no 156/09-PLS foi um exemplo de democracia e contou com o comando do ministro Hamilton Carvalhido (o Coorde-nador da Comisso), sem o qual, por certo, no teria vindo lume. Da mesma forma, foi imprescindvel o esforo do Relator, Prof. Dr. Eugnio Pacelli de Oliveira, autor, inclusive, de grande parte da Exposio de motivos. Decisivo, no obstante, foi a tolerncia e compreenso de todos os mem-bros. Com diferenas to marcantes, nada

    teria andado e muito menos o resultado teria ocorrido se no fosse o ambiente de respeito mtuo e amizade. Em definitivo, a democracia s se perfaz onde houver respeito pela diferena.

    Isso, de qualquer forma, no retirou acirradas disputas por pontos capitais e, dentre eles, este referente ao sistema pro-cessual a ser adotado. A resistncia, tenaz e acompanhada de um discurso inteligente, fez presente um lugar comum naqueles que apostam nas possibilidades de cmbio do Sistema Inquisitrio. Para eles, pode-se mudar sem mudar a estrutura, o que do ponto de vista epistemolgico, como antes anotado, no parece ser possvel.

    Por elementar, no se precisa saber muito de Bachelard para se ter presente que a evoluo cientfica se d a partir de rompimentos epistemolgicos da o cor-te de que ele falava , justo para se negar um passado de erros. Esses, sabem todos, traduzem-se nas verdades que se carrega, as quais precisam ser abandonadas para se poder evoluir cientificamente. Afinal, como disse Warat em certa passagem, as verdades consolidadas nos escravizam quilo que eternamente ontem.

    Trata-se de uma escravido, sem d-vida, mas arregimenta para o vivente um gozo traquilizador, aquele mesmo que lhe d a sensao de segurana. Romper, desta maneira, superar a disputa entre a razo e o desejo, sendo certo que dele no se tem domnio algum.

    Falou mais forte, no caso concreto, a exigncia que a Comisso se imps de elaborar um anteprojeto que estivesse em plena compatibilidade com a Constituio da Repblica, motivo pelo qual, daqui por diante, ser difcil sair de tal via, em consonncia com os ditamos regentes da vida atual.

    Eis, ento, por que a opo foi pelo texto do art. 4o precitado. Nele, resta patente que a gesto da prova escapa do comando direto do juiz e, assim, passa ele a ter, em sua plenitude (ou quase), a funo que a Constituio lhe

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    reserva: garante de ordem constitucional e, por isso, do cidado.

    Procura-se acabar, deste modo e de vez, com a sobreposio de funes entre o rgo ju-risdicional e aquele acusador. Da a criao de um Juiz das Garantias para a Investigao Preliminar, na qual no atua seno para controlar eventual invaso indevida na es-fera dos direitos e garantias individuais: O juiz das garantias responsvel pelo con-trole da legalidae da investigao criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada auto-rizao prvia do Poder Judicirio,... (art. 15). No tem competncia, assim, para sair cata da prova que, em tal momento, no lhe interessa eis que buscada para propiciar ao ministrio Pblico exercer a ao penal e obter, se for o caso, a tutela jurisdicional para o processamento do caso penal.

    Na fase processual da persecuo, por seu turno, o juiz do processo (e no mais aquele Juiz das Garantias) ter uma par-ticipao decisiva, mas no em matria probatria. acusao cabe provar os fatos imputados (como deve ser, de fato), sem a interveo direta do magistrado, a no ser para sanar dvida pontual em algumas hipteses, por exemplo complementando com perguntas as inquiries das testemu-nhas. Da o veto iniciativa do juiz no sen-tido da substituio da atuao probatria do rgo da acusao.

    Dvida maior, porm, veio com a inter-veno dele quanto produo da prova de defesa. Parte da Comisso entendeu que isso no se deveria passar, dentre ou-tros motivos pelo fato de que, ao final, se houver dvida, deve o ru ser absolvido, em face do in dubio pro reo. Ademais, interveno probatria do magistrado no se tem, pela lei, qualquer mecanismo de garantia que no atuar ele contra o ru; e sim a seu favor. mais que jurdica, por-tanto, a questo se demostrar tica; e os riscos da sobrevivncia inquisitorial sero concretos dado se continuar a depender dos prprios juzes e, assim, da construo de

    uma cultura que os coloque, para sempre, no seu devido lugar, algo aparentemente muito difcil no incio, enquanto no houver (contra o sistema atual) uma mentalidade constitucional arraigada.

    5. O lugar constitucionalmente demarcado das partes e o

    Projeto 156/09-PLS

    guisa de concluso, parece relevante ressalvar um dos maiores efeitos da ado-o, no Projeto no 156/09-PLS, da base do Sistema Acusatrio, ou seja, o lugar das partes no processo, em face das regras constitucionais.

    Ningum desconhece que um processo de cariz acustrio faz sobressair os direitos e garantias individuais e, diante dos casos penais, acaba por salientar a proibio de excesso (art. 5o). Est-se em consonncia com a CR/88.

    A cultura acusatria, do seu lado, impe aos juzes o lugar que a Constituio lhes reservou e de importncia fundamental: a funo de garan-te! Contra tudo e todos, se constitucional, devem os magistrados assegurar a ordem posta e, de consequncia, os cidados individualmente tomados. ordem de prevalncia, nesta dimenso, no se tem muito o que discutir, mormente porque no h direito coletivo mais relevante que aqueles fundamentais dos cidados.

    Deve-se ver com parcimnia, portanto, toda a grande disputa que se levou ribalta entre os direitos individuais e os coletivos (da sociedade, como um todo), mormente porque em um Estado de democracia tar-dia, a figura do juiz imprescindvel para o cidado, com frequncia vilipendiado em seus direitos e infinitamente mais fraco, por sinal como projetado pelos contratualistas, embora no se possa ingenuamente asse-verar sem restries, em relao a todos, coisa do gnero. A isonomia, porm, no faz distino entre os cidados e isso imprescindvel para se deitar a luz consti-tucional sobre todos.

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    Da sua parte, o Ministrio Pblico tam-bm vai ganhar o lugar que a Constituio lhe assegura, muito mais relevante que aquele do Sistema Inquisitrio, algumas vezes secundrio , outras de coadjuvante , mas tambm em constante conflito com a CR/88.

    A noo do dominus litis agora poder, enfim, calhar-lhe como devido. Afinal, para ele que se produzem as provas na investigao preliminar e, por isso, ser-lhe primrio o controle externo dela. Ganha, por outro lado, uma mitigao o princpio da obrigatoriedade da ao e, por isso, em muitos casos poder optar, entre outras coisas, por uma forma peculiar de bargaining, embora ainda seja acanhada a proposta do Projeto. Da mesma maneira, embora tenha havido evoluo na aplicao do princpio da dispo-nibilidade do contedo do processo, ela ainda foi tmida: num processo penal de matriz acusatria o mP deve ter a mais ampla liberdade neste sentido porque, valendo quase que to s a prova da instruo processual (a ressalva so aquelas reais), mais coerente poder retirar a acusao que ser forado a levar os pedidos at o final e v-los improcedentes, com trnsito em julgado material da sentena, logo, sem a menor possibilidade de renovao da ao. Pouco razovel, neste contexto, a manuteno da regra atual do art. 385, no art. 409 do Projeto. Ora, o juiz poder condenar contra o pedido do mP, vertido, no texto, como mera opinio: O juiz poder proferir sentena condenatria, nos estritos limites da denncia, ainda que o ministrio Pblico tenha opinado pela absolvio, no podendo, porm, reconhecer qualquer agravante no alegada ou causa de aumen-

    to no imputada. Em suma, espraiada pelo Projeto inteiro, v-se uma grande evoluo das atribuies do mP mas, sem dvida, ainda foi acanhada e fruto de um aparente medo j no mais cabvel nos tempos atuais. A maior liberdade sabe-se bem sempre acompanhada da responsabilidade se, em questo, est a ordem constitucional.

    Por fim, a defesa ganha mecanismos para se efetivar corretamente. Autodefesa e de-fesa tcnica, como previses legais, podem no ser nada se as pessoas que as agitam no tm o devido domnio do lugar ocupa-do. Fala forte, neste espao, a diferena eco-nmica dos rus e a conscincia necessria sobre o assunto. Da ser inarredvel a exi-gncia do Estado construir, como de sua obrigao, em todos os nveis competentes, Defensorias Pblicas que respondam, den-tro do devido padro de qualidade exigido, pelas funes que lhes foram atribudas na Constituio. Assim, sem o correto acesso Justia aos menos favorecidos, no haver, nunca, democracia processual.

    No se trata h de se entender de pregar e impor um sistema processual em favor dos criminosos como, sem qualquer procedncia, tm pregado os menos avisa-dos, sempre adeptos fora, em geral Lei e Ordem, desde que seja contra os outros, obviamente. O Sistema Acusatrio no e nunca foi sinnimo da impunidade, algo, por sinal, por que se reclama tanto do sistema atual. Trata-se isso sim de um sistema que reala o papel das partes a comear por aquele do juiz no s por compatibiliz-los com os ditames constitucionais mas, sobretudo, em razo de permitir que se caminhe na direo de uma maior demo-cracia processual.