4

Click here to load reader

Couto, Mia - A Varanda Do Frangipani - Cap 04

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Couto, Mia -

Citation preview

Mia Couto

Mia Couto

(Moambique)

A varanda do Frangipani

Quarto captulo

Segundo dia nos Viventes

Na segunda manh, eu esperava que Izidine recordasse.

Aquele seria o seu segundo despertar naquela manh. J antes Marta o tinha feito saltar da cama. Trazia uma chvena de ch.

O polcia bebeu-a de um trago, olhos embrulhados de sono.

Entre ratos, baratas e pesadelos sobrava-lhe pouca cabea.

Marta riu-se de o ver assim e saiu para que ele repousasse um pouco mais. Logo a seguir, o polcia voltara a adormecer. Como tinha dormido mal naquela noite! Suspeitava de minha presena dentro dele? muito de duvidar: sou menos que a nvoa na teia de aranha.

Izidine voltou a acordar umas horas depois. Antes de sair ficou a olhar a roupa desarrumada sobre uma velha mesa. Ser que a deixara assim to espalhada? De repente, junto ao chapu, viu a mesma casca que deitara fora na noite anterior.

Levantou-se e recolheu-a. Guardou-a num dos bolsos do casaco.

Depois, deu andamento a um plano que traara previamente: descer praia para calcorrear as grandes rochas, mesmo junto rebentao. Tinha sido ali que encontraram o corpo.

A mar estava vazia e deixava a descoberto grandes pores de areia e rocha. Escutavam-se as gaivotas, suas tristes estridncias. No tardaria a ouvirem-se os chori-choris, esses passaritos que chamam pela mar cheia. O mar enche e vaza sob mando de aves. Ainda h pouco eram os tch-tch-tchs que ordenavam que as guas descessem. Engraado como um ser gigante como o oceano presta obedincias a to nfimas avezitas.

Existira, em tempos, um ancoradouro junto ao recife rochoso. Eu mesmo, Ermelindo Mucanga, carpinteirara nessa plataforma. A morte me interrompeu o servio. A Independncia parou o resto da obra. Depois, o mar se vingara naquele porto inacabado. Restavam pedras avulso. E troncos que teimavam ondear por ali.

Izidine ficou sentado na areia molhada. O barulho das ondas o ajudava a pensar. Parecia evidente que o crime tinha sido cometido por mais de uma pessoa. Eram necessrios vrios braos para transportar o corpo de um homem como Excelncio.

Ou, quem sabe, o crime poderia ter sido cometido ali mesmo, junto s rochas?

Olhou para a barreira e viu Marta. Ela o espreitava, seguindo-lhe as andanas. A enfermeira procedia como se suspeitasse de ocultas intenes. Naquela manh, depois de entregar o ch, ela recusara acompanhar o polcia:

- No quero atrapalhar. J bem basta voc mesmo para se atrapalhar...

- Desculpe, no entendi...

Marta se calou, arrependida. Rodou sobre s mesma, adiando a pedida explicao. Por fim, acedeu a falar, fingindo limpar uma poeira na camisa do inspector.

- O que se encontra nesta vida no resulta de procurarmos.

No aviso dela, o polcia deveria simplesmente sentar-se e ficar quieto. Aquele no era o seu mundo, ele que respeitasse.

Deixasse tudo quieto, mesmo silncios e ausncias. Izidine se atestava de dvida. Na noite anterior, o velho-menino j o tinha poeirado o suficiente. Navaia Caetano lhe pedira que escutasse o mar. Porque, para alm do marulhar, lhe haveriam de chegar gritos humanos.

- Gritos.?, perguntou Izidine. Gritos de quem?

- Dos falecidos, respondera Caetano.

E no mais disse. O polcia se intrigava. Porque, agora, Marta Gimo lhe solicitava quase o inverso.

- Ontem me pediram para ouvir. Voc me pede o contrrio.

- Pediram para ouvir o qu?

Repetiu o enigmtico conselho de Navaia. O que queria ele dizer? Bem que Marta o poderia ajudar nesse esclarecimento.

Mas ela sorriu, negando com a cabea. A enfermeira se fazia de cara. Izidine voltou a pedir-lhe. Por fim, ela acedeu. O que o velho dissera foi que, sob o rudo da rebentao, se escondiam vozes de naufragados, pescadores afogados e mulheres suicidadas. De entre esses lamentos lhe haveriam de chegar os gritos do prprio Vasto Excelncio. O polcia sorriu, desdenhoso. Marta lhe corrigiu o cepticismo:

- Est a ver a sua arrogncia? Pois fique sabendo que, todas as manhs, o morto grita o nome do assassino.

- No posso crer.

- Todas as manhs o morto clama juras de vingana.

Agora, sentado junto rebentao das ondas, o inspector lembrava as palavras da enfermeira. E sorria. Quem sabe Marta tinha razo? Ele estudara na Europa, regressara a Moambique anos depois da Independncia. Esse afastamento limitava o seu conhecimento da cultura, das lnguas, das pequenas coisas que figuram a alma de um povo. Em Moambique ele ingressara logo em trabalho de gabinete. O seu quotidiano reduzia-se a uma pequena poro de Maputo. Pouco mais que isso. No campo, no passava de um estranho.

Levantou-se e sacudiu a areia. Havia uma certa raiva no seu gesto, como se quisesse sacudir no os gros mas as suas prprias lembranas. Caminhou sobre as rochas. At que encontrou uma espingarda. Nem sequer estava escondida. Parecia ter sido arrastada pelas ondas. Procurou nas cercanias. Havia restos de paus. Como se fossem pedaos de uma jangada. Uma embarcao ali? Se todos lhe tinham certificado que aquelas guas eram inavegveis!? Lembrou as palavras do velho Navaia:

- O mar aqui carrega mais traio que ondas.

Na noite anterior, Navaia lhe contara uma histria. Se passara, em tempos, quando um velho tentara fugir por mar.

Improvisara uma jangada e se fizera gua. Mas as rochas e o mar, como que por magia, trocaram aparncias. Aquilo que o fugitivo acreditava serem ondas, de repente, se solidificavam, empedernidas. E os penedos se dissolviam, liquefeitos. A embarcao se desamantelou. Sem desfecho ficou o velho que sonhara evadir-se.

Navaia tirava estria de sua imaginao? Houvesse ou no uma inventada histria, o certo que aquele mar no dava conselho para viagem. A histria da jangada era, afinal, verdadeira? Seria aquele um resto material dessa frustrada fuga? A suspeita enrugou a testa do inspector: alguma coisa lhe escondiam. Distrado, nem notou que a noite estava j caindo. Rapidou-se pelo caminho de regresso. Aquela noite, tinha marcado encontro com o velho portugus, Domingos Mouro.

Esperou-o no ptio mas o outro se demorou. O polcia se sentou na amurada do forte sentindo, ao fundo, o rumor do oceano. De repente, acreditou ouvir reais vozes junto praia.

- Esse barulho no so pessoas.

Era Marta que se chegava perto, vinda do escuro, embrulhada em capulana. Se aproximou, parando junto dele. Ficaram como sentinelas silenciosas, junto fortaleza.

- Ser o mar que faz esse rudo?

- O mar tambm no . Esse barulho a prpria noite.

Voc, l de onde vem, h muito que deixou de ouvir a noite.

Depois ela se sentou, cobrindo as pernas com a capulana.

Comeou, ento, a entoar em surdina uma antiga cano de embalar. Izidine foi levado para longe, para fora do acontecvel.

- Minha me me cantava essa mesma melodia.

Mas Marta j no estava ali. Ela se retirara, sombra vadia.

O polcia ficou ainda um tempo, tentando decifrar os sons que chegavam da rebentao. Os olhos lhe comearam a pesar e acabou vencido pelo sono. Despertou, minutos depois. Uma mo lhe chamava realidade. Era o velho portugus:

- Venha ver o mar daqui de cima!

Domingos Mouro se aprontava num banco de pedra, junto rvore do frangipani. E assim, olhos postos no horizonte, lhe perguntou:

- O senhor me perdoe a indelicadeza. Ser que nasceu perto do mar?

Izidine negou. O portugus disse que ouvira falar de uma terra longnqua em que os velhos se sentavam, de noite, ao longo da praia. Ficavam assim em silncio. O mar vinha e escolhia quem ia levar.

- Quem sabe se, esta noite, sou eu o escolhido?

E o velho portugus fechou os olhos, se internando num silncio demorado. Depois, falou.