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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL CURSO DE DOUTORADO MARCOS RODRIGUES ALVES BARREIRA HENRI LEFEBVRE: A CRÍTICA DA VIDA COTIDIANA NA EXPERIÊNCIA DA MODERNIDADE Rio de Janeiro 2009

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL

CURSO DE DOUTORADO

MARCOS RODRIGUES ALVES BARREIRA

HENRI LEFEBVRE:

A CRÍTICA DA VIDA COTIDIANA

NA EXPERIÊNCIA DA MODERNIDADE

Rio de Janeiro

2009

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Marcos Rodrigues Alves Barreira

HENRI LEFEBVRE:

A CRÍTICA DA VIDA COTIDIANA

NA EXPERIÊNCIA DA MODERNIDADE

Tese apresentada, como requisito parcial para a

obtenção de Título de Doutor em Psicologia Social,

ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia

Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Jorge Coelho Soares

Rio de Janeiro

2009

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CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta

tese.

___________________________________________ _______________

Assinatura Data

B271 Barreira, Marcos Rodrigues Alves.

Henri Lefebvre : a crítica da vida cotidiana na experiência

da modernidade / Marcos Rodrigues Alves Barreira.- 2009.

168 f.

Orientador: Jorge Coelho Soares.

Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de

Janeiro, Instituto de Psicologia.

1. Psicologia social – Teses. 2. Lefebvre, Henri, 1905-,

Crítica da vida cotidiana - Teses. 3. Modernidade – Aspectos

sociais – Teses. 4. Marxismo – Crítica e interpretação - Teses.

I. Soares, Jorge Coelho, 1947- II. Universidade do Estado do

Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.

CDU 301.151

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Marcos Rodrigues Alves Barreira

HENRI LEFEBVRE:

A CRÍTICA DA VIDA COTIDIANA

NA EXPERIÊNCIA DA MODERNIDADE

Tese apresentada, como requisito parcial para a

obtenção de Título de Doutor em Psicologia Social,

ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia

Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovado em 27, março, 2009

Banca Examinadora:

_____________________________________________

Prof. Dr. Jorge Coelho Soares (Orientador)

Istituto de Pscicologia da UERJ.

__________________________________________

Prof. Dr. Marildo Menegat

Escola de Serviço Social/UFRJ

__________________________________________

Prof. Dr. Helion Póvoa Neto

Istituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ

__________________________________________

Profa. Dra. Heliana de barros Conde Rodrigues

Istituto de Psicologia da UERJ

__________________________________________

Prof. Dr. Luiz Carlos do Rego Lima

Departamento de Letras/UERJ

Rio de Janeiro

2009

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“Um conhecimento só me interessa na medida em que

me permita viver melhor”.

Raoul Vaneigem

A arte de viver para as novas gerações, 1967.

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RESUMO

BARREIRA, Marcos Rodrigues Alves. Henri Lefebvre: a crítica da vida cotidiana na

experiência da modernidade. 2008, 167 p. Tese de Doutorado – Programa de Pós-Graduação

em Psicologia Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

Esta tese tem como objetivo descrever o desenvolvimento da “crítica da vida cotidiana”

elaborada pelo filósofo francês Henri Lefebvre. Analisamos os fundamentos teóricos e o

contexto histórico no qual foi formulada a teoria crítica do cotidiano e seu contato com as

experiências estéticas e políticas da primeira metade do século XX. Também analisamos a

maneira pela qual, a partir da apreciação do tema da “cotidianidade”, Lefebvre faz uma crítica

das leituras dogmáticas do marxismo, apreendendo o movimento de reestruturação da

sociedade capitalista depois da Segunda Guerra Mundial e formulando, juntamente com as

novas “vanguardas” do pós-guerra, um conjunto de idéias sobre a experiência social moderna

que antecipa aspectos importantes dos eventos de 1968.

Palavras-chave: vida cotidiana, modernidade, maio de 1968.

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ABSTRACT

This thesis has as objective to describe the development of the “critique of everyday life”,

elaborated by the French philosopher Henri Lefebvre. We analyze the theoretical beddings

and the historical context in which the critical theory of the everyday life was formulated and

its contact with the aesthetic and politics experiences of the first half of century XX.

We also analyze the way, from the view of the “dailyness", Lefebvre criticizes the dogmatic

readings of marxism, apprehending the reorganization of the capitalist society after World

War II and formulating, together with the new postwar “vanguards” of the period, a set of

ideas on the modern social experience that anticipates important aspects of the 1968 events.

Key-words: everyday life, modernity, May 1968

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Sumário

Introdução ........................................................................................................................ 07

1. As primeiras formulações da crítica da vida cotidiana

1.1. Um grupo de Filósofos ................................................................................................ 12

1.2. A formação do PCF e as vanguardas dos anos 20........................................................ 21

1.3. O surrealismo a serviço da revolução........................................................................... 31

1.4. A Frente Popular e a Questão Nacional....................................................................... 38

1.5. Hegel e Marx ............................................................................................................... 48

1.6. Leituras de Nietzsche: o advento das massas e o fascismo.......................................... 58

1.7. A crítica da vida cotidiana ........................................................................................... 69

2. A reestruturação capitalista do pós-guerra e a experiência moderna

2.1. A filosofia existencialista no pós-guerra ..................................................................... 81

2.2. Os anos de glaciação da filosofia marxista.................................................................. 93

2.3. A crise do stalinismo .................................................................................................. 102

2.4. As novas vanguardas ................................................................................................... 111

3. Teoria e prática da modificação da vida cotidiana

3.1. A fundação da Internacional situacionista ................................................................. 121

3.2. A Irrupção do radicalismo .......................................................................................... 128

3.3. Maio de 1968: a crise revolucionária .......................................................................... 153

Referências bibliográficas ................................................................................................ 162

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Introdução

O século XX teve início, efetivamente, quando o grande conflito mundial encerrou os

“tempos de prosperidade” da sociedade burguesa e as esperanças depositadas no progresso

técnico e na expansão econômica. A guerra iniciada em 1914, resultante do agravamento das

contradições e rivalidades entre as potências imperialistas, além de impor milhões de mortes,

fez desaparecer todo um período de relativa tranqüilidade social. Com o fim do conflito,

ruíram os impérios da antiga ordem e retornou com toda força o espectro da revolução

(adormecida desde 1871), renovado sob a forma de uma verdadeira onda proletária que

ameaçava varrer a Europa. Na vanguarda dos acontecimentos estavam os bolcheviques da

velha Rússia, com Lênin à frente, derrubando o vacilante governo provisório, retirando seu

país da guerra e iniciando um programa de transformações social no campo e nas cidades. O

impacto da revolução de 1917 foi extraordinário. O regime bolchevique rapidamente

transformou-se num pólo irradiador da mensagem revolucionária. Na seqüência dos

acontecimentos da Rússia, novas agitações protagonizadas pela classe operária tiveram lugar

em vários países, especialmente na Europa.

Os efeitos desestabilizadores provocados pela guerra não foram menores no plano cultural.

Se o bolchevismo, como expressão mais visível da força do proletariado organizado,

ameaçava a ordem política e institucional, desde o início da guerra ocorreu igualmente uma

grande agitação nos meios artísticos e intelectuais. Nestes, o protesto contra a matança se

impunha como uma exigência moral. Não era possível compactuar com uma guerra produzida

em nome do lucro, e muito menos apelando para sentimentos nacionais que encobriam a

verdadeira natureza do confronto entre as grandes potências. Uma enorme crise dos valores,

coetânea ao triunfo da produção orientada exclusivamente pelo lucro, abriu espaço para as

manifestações modernistas de repúdio à ordem instituída. A neutralidade da Suíça ofereceu

refúgio para os que se opunham à guerra e fez deste país um ponto de encontro para ativistas

dissidentes. Lá se organizou, em 1915, a Conferência de Zimmerwald, reunindo

representantes das tendências internacionalistas do movimento operário. Em Zurique, em um

clube noturno situado na mesma rua em que Lênin havia morado com sua esposa durante

alguns meses, nasceu a expressão mais radical e imediata de recusa da cultura dominante: o

dadaísmo. No Cabaret Voltaire, berço da agitação dadaísta, reuniram-se artistas marginais,

refugiados e desertores vindos dos mais variados cantos da Europa, todos atraídos por um

novo tipo de evento performático que mesclava improvisações coletivas, deboches, insultos

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ao público e protestos contra a guerra. Tristan Tzara, poeta e agitador oriundo da Romênia,

expôs em seu manifesto o “grande trabalho destrutivo” ao qual ele e seus amigos se

dedicavam. O que essa crítica entrevê é a eliminação do desencontro entre a obra de arte

separada do cotidiano e o cotidiano desprovido de sentido e beleza.

As duas esferas, política e cultural, não caminhavam inteiramente separadas. Richard

Huelsenbeck, que levou o Dadá para a Alemanha, declarou que o “homem dadaísta” era um

adversário radical da exploração. A versão alemã do movimento, definida como parte de uma

ação revolucionária internacional, participou ativamente nos levantes que eclodiram em 1918,

durante a queda do Império. Sobretudo em Berlim, os dadaístas adotaram um tom agressivo,

enquanto as técnicas de colagem e montagem de imagens discrepantes começavam a ser

usadas como instrumentos de desmistificação política. No auge das mobilizações de massa e

da formação dos “conselhos” de trabalhadores e soldados, os participantes mais destacados do

Dadá-Berlim aderiram ao KPD (Partido Comunista Alemão), unindo às lutas operárias a

rebelião contra a cultura dominante. A ciência e a cultura, escreveu Raoul Hausmann em um

panfleto que atacava com violência o modo de vida weimariano, eram os fusíveis de

segurança de uma sociedade condenada à morte.

Por todos os lados era possível notar o esvaziamento do conteúdo social dos valores

pertencentes à antiga ordem; esvaziamento captado, desde o final do século XIX, pelas

manifestações cada vez mais negativas do modernismo. Mas, por outro lado, o nascimento de

um mundo novo parecia se anunciar. Foi na Rússia que o repúdio à tradição e a perspectiva

revolucionária se aliaram de modo mais nítido e concentrado. O movimento revolucionário

que surgiu nesse país, em fevereiro de 1917, parecia confirmar as expectativas de mudança.

Ao longo do caminho percorrido até a derrubada do regime czarista, ocorreu o “ensaio geral”

de 1905, que espontaneamente deu à luz aos primeiros “conselhos” de operários e

camponeses. Nesse mesmo ano, ampliou-se nos meios artísticos russos a abertura para as

tendências estéticas do Ocidente, em um percurso que apontava os limites da tradição realista.

As primeiras tendências modernistas reproduziram as inovações ocidentais, absorvendo-as de

maneira mais ou menos crítica, porém, no momento seguinte, criou-se nos círculos culturais

da Rússia revolucionária um imenso laboratório de experiências ligadas às alterações pelas

quais a sociedade estava passando. As vanguardas russas, contemporâneas da onda

revolucionária, defenderam a ruptura com o fardo da objetividade e do passado feudal,

anunciando, não sem contradições internas, a “abstração absoluta”, a autonomia das formas e

a vontade de criar o “novo”. Essas tendências continuaram ativas quando se deu a eclosão da

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revolução, a qual muitas delas se juntaram, animadas pelas formidáveis possibilidades abertas

por uma época de grandes transformações. Na Alemanha, a escola Bauhaus, fundada em 1919

por Walter Gropius, também se dizia próxima do socialismo, e acabou se tornando um

importante centro vanguardista de ensino e criação, cuja pretensão era subordinar as

disciplinas estéticas aos problemas “vitais” da sociedade industrial.

Na França do pós-guerra, o dadaísmo trazido da Suíça por Tzara ensejou uma contestação

da cultura que se apresentava, com toda a sua negatividade, sob a forma da “antiarte”. O

movimento alimentou no seu interior uma tendência que contrariava o negativismo de Tzara.

Essa tendência, autodenominada “surrealista”, em referência à expressão que o poeta

Apollinaire usara para caracterizar o espírito modernista nas artes, propôs um programa

alternativo que se pretendia mais criativo - embora o novo movimento não tenha seguido um

caminho prático igual ao dos dadaístas alemães. Sem abandonar o problema da separação

entre a concepção artística e a vida cotidiana, os surrealistas desviaram-no para a relação entre

a imaginação criativa e a realidade. Enquanto o experimentalismo das vanguardas se

desenrolava em Paris e em outras cidades européias, a revolução liderada por Lênin

continuava a propagar sua mensagem. Como desdobramento dos acontecimentos que tiveram

lugar na nova Rússia, chamada “soviética” por seus dirigentes, foi criado o Partido Comunista

Francês, em 1920, três anos após a tomada do poder pelos bolcheviques e quatro anos antes

da publicação do Manifesto do Surrealismo de André Breton.

Fora do ambiente das vanguardas, a vida política e intelectual de Paris seguia seu curso

mais ou menos “normal”. Na França, o mundo da cultura recuperava-se do abalo causado pela

carnificina nos campos de batalha, sem tomar conhecimento das implicações mais profundas

de toda essa ebulição social. O PCF, cuja fundação passara despercebida, ainda não era uma

organização de massa e ninguém a essa altura acreditava que tanto ele quanto os

empreendimentos estéticos marginais pudessem algum dia representar qualquer papel

destacado na vida cultural e política do país. O que marcou o período que vai do início da

guerra ao aparecimento do surrealismo, o decênio 1914-24, foi a morte das duas figuras que

dominaram a cena anterior à guerra: o líder socialista Jean Jaurès, assassinado por um

militante nacionalista na véspera do conflito e, em 1923, Maurice Barrès, cujo

desaparecimento foi celebrado pelos dadaístas como o prenúncio do fim da cultura burguesa.

Anatole France, a figura mais eminente da literatura francesa na virada do século, faleceu

pouco depois, em 1924, fato igualmente saudado, dessa vez pelos surrealistas, em “Um

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cadáver”. Por outro lado, o mesmo período viu a ascensão de uma nova geração, representada

por André Gide, fundador da Nouvelle Revue française, que passou a se destacar no mundo da

cultura parisiense ao lado de figuras públicas ainda influentes como o escritor Henri Barbusse,

representante da esquerda pacifista, e o conservador Charles Maurras.

Nas próximas duas décadas, ainda na primeira metade do século XX, e antes da

consolidação da “modernidade” na Europa, as grandes modificações e catástrofes do mundo

capitalista fariam a normalidade desaparecer: a crise do sistema colonial, o colapso financeiro

de 1929, o crescimento alarmante do fascismo e, finalmente, uma nova guerra mundial com

conseqüências ainda piores que a anterior. Por outro lado, a URSS, consolidada após uma

intensa guerra civil, surge como alternativa ao sistema das democracias ocidentais. Nos anos

30, os comunistas anunciam seu apoio aos movimentos de libertação nacional, vivem um

formidável crescimento industrial que segue praticamente indiferente à crise econômica

mundial e se apresentam para muitos como a única força capaz de sobrepujar a ascensão do

fascismo no Ocidente. As artes, a literatura e a reflexão teórica sobre a sociedade não ficaram

imunes às convulsões sociais geradas a partir de tais acontecimentos, o que provocou grandes

alterações no ambiente cultural.

Mas, antes de passar por esses eventos, vamos retornar à década de 1920, quando um

pequeno grupo de estudantes de filosofia, que fazia parte de uma geração que acabara de

adentrar a vida adulta, resolveu aderir à ação política e à contestação do modo de vida

burguês...

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1.1 Um grupo de filósofos

Por volta de 1924, apareceram na França filósofos “que com todo direito podiam se chamar

existencialistas”, diz Henri Lefebvre (1948: 16). O encontro desses jovens estudantes ocorreu

de forma casual, na Sorbonne, por volta de 1922. Queriam renovar a filosofia. Em suas

reuniões, manifestavam o desencanto com a filosofia tradicional e a mentalidade positivista da

época. Seus nomes, além do próprio Lefebvre, eram Georges Politzer, Pierre Mohrange,

Norbert Guterman e Georges Friedmann.1 Começam a publicar a revista Philosophies, que

exprimia uma crítica do ensino universitário. Depois do fracasso relativo, seguiu-se a

dissolução no interior do marxismo. Já no PCF, Paul Nizan passou a freqüentá-los. Alguns

desses nomes se tornaram bem conhecidos do público francês. Nizan, por exemplo, foi colega

de Sartre na Escola Normal Superior e destacou-se no campo literário. Militante comunista,

rompeu com o Partido por ocasião do pacto germano-soviético e morreu, aos 35 anos, durante

a invasão alemã. Politzer foi o principal filósofo do PCF durante os anos 30, quando ajudou a

criar as universidades operárias. Capturado pelo exército alemão, em 1942, foi torturado e

executado na prisão; Friedmann, que também se ligou ao partido, tornou-se o pioneiro na

sociologia do trabalho após a Segunda Guerra Mundial. Por fim, Lefebvre e Guterman, que

também se juntaram ao PCF, colaboraram em pesquisas teóricas, até que este último foi

forçado a emigrar para os EUA.

Um olhar sobre o contexto no qual se desenvolveu a crise da filosofia nos permite

compreender o sentido da “renovação” propugnada pela revista Philosophies. O pós-guerra

foi o período no qual se afirmou, por meio da agitação cultural, o modernismo. A Paris do

início da década de 20 começava a se abrir para o que Apollinaire, antes da guerra, chamou de

“novo espírito”. A necessidade de ultrapassar as formas tradicionais de expressão e de buscar

novidades associava-se aos ecos, ainda relativamente distantes, da revolução de 1917. Para os

franceses, este foi provavelmente o ano mais sombrio de um conflito que se incumbiu de

destruir as ilusões a respeito do mundo “real”. O espírito de contestação, gerado na

consternação da guerra e prenunciado por numerosas vanguardas na pintura, na música e na

1Pouca atenção foi dedicada a este grupo que, segundo Lefebvre, pode ser considerado o precursor do pensamento

existencialista francês. Em 1991, Bernard-Henry Levy publicou em “As aventuras da liberdade” o que foi, provavelmente, a

última entrevista de Lefebvre. Essa pequena conversa com um pensador que, a despeitos dos seus 90 anos, ainda era capaz de

demonstrar “elegância e talento”, aborda unicamente a relação do entrevistado com aquelas figuras que nos anos 20

formaram o grupo Philosophies. Sobre o mesmo tema, dois autores, Fred e Bud Burkhard, publicaram em 2000 o livro

French Marxism Between the Wars: Henri Lefebvre and the “Philosophies”.

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literatura, chegou finalmente a Paris por intermédio da destruição dadaísta do objeto artístico.

Com ela vieram a sátira dos discursos culturais e políticos, a dissolução das convenções da

linguagem e uma postura de desafio ante a positividade da ordem, da razão e da cultura. O

escândalo tornou-se o principal meio de expressão dos dadaístas. O que caracterizava suas

performances era o aspecto convulsivo, planejado para impactar o público dos elegantes

salões da burguesia, como no polêmico evento da Salle Gaveau ou ainda no “julgamento e

condenação de Maurice Barrès pelo Dadá”, realizado em 1921, no qual o escritor foi

indiciado por crimes “contra a segurança do espírito”.

Durante o período da revista Philosophies, era comum o contato de seus editores com

figuras da vanguarda parisiense e com outras publicações, especialmente La Révolution

Surréaliste, a revista do movimento fundado em 1924, trazendo consigo a imagem do

modernismo literário. No entanto, desde a colaboração com Dadá, a prática literária foi

colocada sob suspeita pelos surrealistas. Tzara acreditava que antes de criar versos ou

escrever livros era preciso fazer da poesia uma “atividade do espírito”. A imaginação poética

era inspirada nas ruas, buscando uma nova sensibilidade, um novo modo de pensar e viver.

“Se criava obras”, diz Lefebvre, “era para servir à procura do estilo na vida, caracterizada pela

comunicação da consciência com as forças espontâneas, as da imagem e as da natureza

inconsciente” (1969: 126-7). Sob o influxo dessa crítica, os surrealistas se voltaram para a

busca do maravilhoso, isto é, a intensificação da experiência vivida, como numa emoção

efêmera e imprevista, por meio da qual se escapava ao tédio da vida moderna. No Manifesto

do Surrealismo, escrito em 1924, o homem é definido como um “sonhador definitivo, cada

dia mais descontente com seu destino” (Breton, 2001: 15). E a causa da tal insatisfação é a

falta de um sentido para viver, na medida em que o homem se tornou incapaz de experimentar

situações excepcionais, submetendo-se a “uma imperiosa necessidade prática que não admite

ser esquecida (2001: 16). O Manifesto se apóia na “liberdade do espírito” como a única

restante em um mundo dominado pela idéia de utilidade imediata e afirma que cabe à

imaginação mostrar aos homens os limites da sua experiência e aquilo que eles ainda “podem

ser”.

Enquanto isso, a filosofia, mais conservadora, se atrasava em relação ao momento criativo

representado pela literatura e pelas artes. Também não havia conhecido uma renovação tão

radical quanto a promovida por Freud nos estudos psicológicos ou pelas descobertas da física

moderna no domínio das ciências naturais. E, no entanto, a tradição filosófica perdia suas

bases. O grupo dos “filósofos” reage a essa crise, busca uma linhagem, tal como os

surrealistas começavam a fazer, mas não encontra nenhum ponto de apoio muito sólido. Entre

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eles e os adeptos do surrealismo havia alguma proximidade, apesar das diferenças. Enquanto

os primeiros, que chegaram a falar em uma “supra-racionalidade”, contrapunham-se ao

“intelectualismo” acadêmico, representado à época pela epistemologia de Leon Brunschvicg,

os surrealistas, falando em nome da renovação poética, elaboravam fragmentos dispersos de

uma crítica do modo de vida estabelecido. Surrealistas de primeira hora como René Crevel,

Paul Eluard e Philippe Soupault colaboraram com Philosophies, ao lado de outras figuras,

como o lingüista Émile Benveniste e o escritor Albert Cohen. Os surrealistas também visavam

uma alternativa ao racionalismo estreito, elaborando técnicas relacionadas às manifestações

do desejo e do inconsciente. Adotaram a psicanálise quando esta era uma novidade combatida

nos meios culturais da França. Este também foi um elo entre os dois grupos, já que

inicialmente, Politzer manifestou um vivo interesse pela obra de Freud, escrevendo ensaios

que apareceram nos primeiros números de Philosophies. Os surrealistas, por sua vez, não

eram inteiramente estranhos ao debate filosófico, como atesta o vivo interesse de Breton por

Hegel.2 Foi Breton, aliás, quem apresentou a obra de Hegel a Lefebvre. Tratava-se de um

velho exemplar da “Lógica”. Nas palavras de Lefebvre:

“Um dia vou a casa dele [Breton], perto da place Pigalle, e vejo sobre a mesa a Lógica de Hegel.

Breton me diz: „Leia primeiro isso e depois volte a me ver!‟. E me fez um brilhante resumo da

doutrina hegeliana do surrealismo e da relação entre o surreal e o real, que era uma relação dialética”

(Lévy, 1992: 133).

Outro alvo dos “filósofos” era Henri Bergson, então no auge de sua carreira no Collège de

France. A filosofia de Bergson era um produto da crise do positivismo, e concebia a si mesma

como uma renovação, isto é, um filosofar para além das concepções tradicionais de ordem e

racionalidade. Nos anos 20, já era grande a sua influência sobre o pensamento francês.

Especialmente importante, para Bergson, era a sua noção de “duração real”, desenvolvida a

partir de uma crítica das concepções científicas tradicionais do espaço e do tempo. Em linhas

gerais, essa filosofia afirmava que o conhecimento científico, devido a fixidez

“espacializante” dos seus conceitos, era incapaz de apreender a mobilidade do tempo vivido.

Era como se a filosofia saísse do domínio especulativo para adentrar o campo “intuitivo” da

experiência concreta. Do ponto de vista dos jovens filósofos, no entanto, nenhum

“interiorismo literário” era capaz de conduzir a uma verdadeira renovação do pensamento. Na

2A relação entre Hegel e o surrealismo é bem conhecida. Podemos encontrar inúmeras referências ao pensador alemão nos

textos de Breton. Igualmente importante é o fato dos surrealistas mais de uma vez terem atribuído às suas imagens poéticas

uma função desalienante. Em um de seus escritos, Breton afirma que “é a Hegel que se há de interrogar sobre os bons e os

maus fundamentos da atividade surrealista nas artes” (Breton, 2001). Sobre a importância da dialética hegeliana para a

elaboração do programa das vanguardas do século XX Cf. Jappe (1999b).

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Sorbonne, quando Bergson chegava à biblioteca, “Georges [Politzer] se colocava a rir – e não

à surdina, por certo. Para demonstrar o desprezo que merecia aquele que depreciava a vida

carnal, a ação, o mundo exterior” (Lefebvre, 1948: 25). O mesmo Politzer, acobertado por um

pseudônimo, escreveu o panfleto O fim de um desfile filosófico: o bergsonismo. A “conversa

espiritual” proposta por Bergson seria capaz de iniciar os homens em uma nova vida? Não

para Lefebvre e seus amigos. O que eles buscavam era, acima de tudo, um lastro de

objetividade, o “mundo real”, e por isso tomaram aversão ao intelectualismo (1948: 24).

Restou aos “filósofos” a busca de sua própria alternativa. Intitulavam-se “místicos”,

conquanto se tratasse de um “misticismo pagão, separado da religião, inspirado em Espinosa e

Schelling” (Lefebvre, 1975: 36). Existia no grupo uma influência das correntes

fenomenológicas, embora o cartesianismo fizesse parte do pensamento intelectualista da

época: “realmente, nos artigos de Philosophies, encontramos um pouco de tudo:

existencialismo, fenomenologia, psicanálise, ontologia”, lembra Lefebvre (1975: 36).

Os “filósofos” preocupavam-se, igualmente, com a criação de uma identidade própria que

os diferenciasse dos “poetas” surrealistas, com quem haviam estabelecido uma relação de

rivalidade. Nessa época, Lefebvre publicou em Philosophies um ensaio sobre o dadaísmo:

“Dadá destrói o mundo, mas os destroços são bons” (1975: 37), dizia a fórmula que lhe valeu

uma duradoura amizade com Tzara. O contato com Breton, resumido a uns poucos encontros,

foi mais conflituoso. Os desentendimentos podiam ser atribuídos à confusão ideológica que

imperava no grupo de Lefebvre. Em todo caso, a posição deste tendia mais ao acordo com

Tzara do que com as pretensões poéticas do surrealismo: “Entre a vontade literária, a busca de

uma linguagem própria, um estilo e o projeto essencial de mudar a vida havia um abismo”

(1975: 44). Tzara era capaz de recusar a escrita: “sua obra era sua vida e a vida era sua obra,

quer dizer, certa forma de viver”, escreveu Lefebvre (1975: 43). Tratava-se, portanto, da

recusa de toda tentação literária; recusa idêntica à encontrada, durante a guerra e nos anos que

a antecederam, nas declarações de Jacques Vaché sobre a nulidade da arte, ou na falta de

estima de Arthur Cravan pelos debates culturais do seu tempo. “A arte é uma parvoíce”,

escreve o primeiro, numa carta a Breton. Quanto a Cravan, lutador amador e escritor nas

horas vagas, distribuía pessoalmente sua pequena revista Maintenant, “por ódio às livrarias

abafadiças onde tudo se confunde e tudo cai aos bocados ainda em estado de novo” (Cravan et

alli., 1980: 5). Todos os animadores da vida cultural de Paris foram insultados em

Maintenant. Já em Nova York, fugindo da guerra, Cravan encontra-se com Marcel Duchamp,

figura ligada às vanguardas de Paris, e aparentemente com o seu consentimento protagoniza

um escândalo na conferência dos “Artistas Independentes”, bêbado, despindo-se em público

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durante o que deveria ser uma conferência sua. Antes disso, numa entrevista com Gide,

Cravan havia afirmado: “creio necessário declarar-lhe que à literatura prefiro, de longe, o

boxe, por exemplo” (1980: 23). A influência dessas figuras sobre Breton foi bastante

profunda, mas não integral. Desde o início, ele e os demais surrealistas manifestaram uma

seriedade investigativa que contrastava com a negatividade dadaísta. Breton jamais abriu mão

do uso da escrita, o mesmo valendo para Louis Aragon, que, ao rememorar no “Tratado de

Estilo” aquele momento de ebulição dos anos 20, repudiou o simplismo com que se

descartava a importância da arte, como se fosse “bastante feio uma pessoa ser literata” (1995:

36). Aragon se refere ao desespero daqueles que desejavam uma vida mais intensa, mas

tinham suas expectativas frustradas pela fratura entre arte e sociedade, isto é, pela

incapacidade de se colocar a beleza ao alcance mais imediato dos indivíduos. A negatividade

unilateral, no entanto, não foi muito longe. O surrealismo logo se apresentou como alternativa

para a crise, como se depreende da “Ocorrência” descrita por Jacques Rigaut: “Foi encontrado

ontem no jardim do Palais-Royal o cadáver de Dadá. Suspeitou-se ainda de um suicídio (pois

o infeliz ameaçava, desde o seu nascimento, pôr termo à vida) mas André Breton acabou por

confessar tudo” (Cravan et alli., 1980: 69).

O ponto de vista da revista Philosophies foi exposto pela primeira vez num texto redigido

por Lefebvre, mais tarde caracterizado como “o primeiro manifesto do existencialismo”

(1948: 34). O objetivo central do ensaio sobre a “Filosofia da consciência”, submetido a

Brunschvicg e parcialmente publicado na revista Philosophies (números 5-6, 1925) com o

título Posições de ataque e defesa do novo misticismo, era “reconhecer a matéria” e devolver

a primazia ao objeto. O desprezo pelo subjetivismo refletia a recusa de uma filosofia que

“depreciava a vida carnal, a ação, o mundo exterior...” (1948: 25). A filosofia abandonaria seu

tema principal, o “eu” aprisionado em si mesmo, para situar-se em relação com o “outro”,

que, por sua vez, não se reduzia nem a um elemento conceitual nem a um fato empírico, mas

fazia parte da constituição da própria consciência: “esta, pois, não podia consistir em um

movimento de fora para dentro, e sim em um movimento de dentro para fora, até o „outro‟, o

único vivente e o único verdadeiro...” (1948: 27). Iniciava-se, então, um movimento de

abertura para o mundo exterior, muito embora seu fundamento permanecesse místico, ao

pressupor o “reconhecimento espiritual de um absoluto” (1948: 34). Outra característica da

reflexão dos integrantes de Philosophies era recusar o pessimismo cultural em nome de uma

“fé” na renovação da vida e no “possível”. Assim, “a „fé‟ existencial, afirmada

doutrinariamente, permanecia no ar, injustificada. Ou bem só adquiria significado e conteúdo

através de uma religião...” (1948: 35). O tom místico-religioso dessa posição vinha de Pierre

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Morhange, mas foi adotado por todo o grupo, incluindo Lefebvre, que o expôs nas conversas

com os surrealistas para a formação de uma “Central” revolucionária. Ao representar as

posições de Philosophies sobre a transformação do vivido, Lefebvre foi compelido a colocar

as questões com as quais se debatia junto com seus companheiros e, como era de se esperar,

foi recebido com hostilidade: “Senti vergonha e teria praticado o que ainda não se chamava

„autocrítica‟, mas estava encarregado de uma missão e a cumpri. O que realmente me

emocionava era a morte de Deus, não o chamado a Deus”, relembra Lefebvre (1975: 46).

Lefebvre recorda ainda que, bem no início das atividades do grupo, ele, Morhange e

Guterman encontraram-se com Barbusse, então um escritor bastante reconhecido, autor de

livros considerados imorais como Inferno, além de O fogo, escrito em 1916, contra a guerra

que o autor conheceu de perto como voluntário. Barbusse, mais velho e pragmático, não se

impressionou com as idéias e com o entusiasmo de seus jovens interlocutores: “Éramos, para

Barbusse, a juventude, a juventude revoltada, senão revolucionária, e ele nos recebeu como

tal. Quanto a ele, seu discurso nos pareceu um pouco distanciado, um pouco defasado em

relação aos nossos novos problemas. Cumpre dizer que estávamos repletos de ilusões” (Lévy,

1992:137). Nessa mesma época, Politzer traduziu as investigações sobre A Liberdade

Humana de Schelling, que ganhou uma apresentação de Lefebvre. O mais nebuloso dos

pensadores que poderia servir de fonte para o “existencialismo”, como mais tarde o definiu

Lefebvre (1948: 45), supria a ausência de Kierkegaard, cuja obra, “sedutora” para os que se

deparavam com o esgotamento da tradição metafísica, era pouco divulgada na França.

Até a primeira metade da década de 20, os grupos de Lefebvre e Breton seguiam uma via

autônoma, circunscritos aos ambientes “culturais” e universitários. O primeiro impulso dos

surrealistas foi recusar a política, desconfiando das inclinações exageradamente “positivas” da

revolução de 1917. Por isso, evitaram uma identificação precipitada com o bolchevismo,

identificando nele uma possível “recuperação” da revolução pelo Estado. Em um texto

publicado em La Révolution Surréaliste, Aragon foi ao ponto de caracterizar

desdenhosamente os acontecimentos de Outubro como uma “crise ministerial” (Nadeau,

2008: 66). Uma revolução que não proclamasse a ruptura radical com os valores burgueses

parecia indigna de crédito. Sem comprometimento direto com a revolução política, os

surrealistas continuaram a ocupar-se do universo cultural e simbólico, realizando

provocações, resgatando figuras obscuras da poesia e contrapondo à moral estabelecida a

força da revolta baseada no desejo. Seus ideais eram personificados, na poesia, por Isidore

Ducasse (o Conde de Lautréamont), enquanto os escritos e a própria vida do Marquês de

Sade, aclamado como “escritor fantástico e revolucionário”, lhes fornecia o exemplo de

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insubmissão. A idéia básica que mobilizava os surrealistas era colocar, ao lado da perspectiva

de transformação das relações sociais anunciada por Marx, o apelo de Rimbaud para “mudar a

vida”. Se o grupo dos “filósofos” se aprisionava em enleios espirituais, a busca do absoluto

poético dos surrealistas não deixava de se aproximar do misticismo. Os participantes desse

ambiente de vanguarda permaneciam distantes de um projeto de ação política efetivo. Entre

os surrealistas, a prática mais comum continuava sendo o escândalo, como no banquete

literário Sait-Pol Roux, que terminou em tumulto depois que alguns surrealistas, protestando

contra os discursos patrióticos, desfecharam um inusitado “Abaixo a França!”. E Lefebvre,

falando em nome dos “filósofos”, recorda que o escândalo era “a única forma de rebelião que

nos parecia digna de interesse” (1948: 25).

A situação só começou a se modificar em 1925, ano em que as tropas francesas realizaram

uma intervenção no Marrocos para acabar com os conflitos que se arrastavam nas terras

africanas desde 1919. Os comunistas se mobilizaram contra a ação do exército e, em resposta,

o governo lançou uma violenta onda de repressão. As principais iniciativas do PCF foram a

criação de um comitê de ação contra a guerra e a mobilização dos trabalhadores numa greve

geral em defesa da independência da colônia. A “opinião pública” do país dividiu-se entre os

nacionalistas e os críticos da política colonial. Os grupos de Lefebvre e Breton posicionaram-

se contra a guerra e contra a política de manutenção das colônias. Juntaram-se a eles os

editores de outra revista, a Clarté, da qual Barbusse havia feito parte e que, nos dois últimos

anos, sem o escritor, substituíra o seu pacifismo inicial pela defesa de posições de esquerda

independentes. 1925 foi, portanto, o ano decisivo para a politização do grupo dos “filósofos”

(e também dos surrealistas), que progressivamente se aproximou da idéia da revolução social.

Nesse momento, os editores de Clarté afirmam ter encontrado suficientes “pontos comuns”

com os surrealistas para uma unidade (Nadeau, 2008: 85), enquanto os “filósofos”, que

haviam lançado um apelo abstrato à “ação total”, mantinham a disposição de criar um projeto

unificado de ação, sugeriram uma filiação conjunta ao PCF. Embora o comitê organizado

pelos comunistas contasse tanto com o apoio dos surrealistas quanto dos “filósofos”, as

respectivas adesões formais só ocorreriam dois e três anos depois.

No ano seguinte aos acontecimentos do Marrocos, a revista Philosophies passou a se

chamar L‟Esprit. A mudança refletia uma nova orientação, caracterizada, em contraste com o

nome escolhido, pela descoberta da política e da luta de classes. O título da publicação era

mais do que revelador: a confusão ideológica continuava presente, apenas desviando-se para

outra direção. Na “Introdução” ao primeiro volume da nova revista, Politzer conduz os

leitores no tortuoso caminho pelo qual os “filósofos” chegaram à sua concepção original da

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revolução (por meio do espírito...), enquanto Lefebvre redige outro ensaio, “O pensamento e o

espírito”. Esse momento é descrito como uma tentativa de passar das “regras gerais” às

situações reais, aos fatos concretos e atuais. Os “filósofos”, diz Lefebvre, procuraram a

“objetividade” e a “matéria” tal como “náufragos que se debatem a procura de algo sólido”

(1948: 24). O fracasso da renovação da filosofia, cada vez mais distante da matéria, “se

converte em L‟Esprit na promessa vaga, sibilina, literária, de uma „salvação humana‟” (1948:

42). Mais do que isso: a nova postura representava a “politização” de um grupo que começava

a se voltar contra a filosofia como tal. “A história da filosofia nessas últimas dezenas de anos

é a história de uma dolorosa agonia”, afirma Politzer (1978: 26). Mesmo as filosofias do

vivido, que se apresentavam como um retorno ao concreto, pareciam totalmente insuficientes

pois só se ocupavam da vida concreta “em geral”, isto é, como abstração. Por isso, ao atacar o

bergsonismo, caracterizando-o como mais uma escolástica sem vida, Politzer situou essa

degeneração particular em um quadro mais geral de impotência e inutilidade: em toda parte, é

a matéria real da filosofia que se esgota, gerando um pensamento cada vez mais “puro”,

isolado da realidade.

Com efeito, é nesse momento que Marx entra em cena, como aquele que apontou um novo

sentido para a reflexão crítica e para a ação; um sentido que se “desviava” da filosofia,

percorrendo os campos da economia e da política. Nenhum problema verdadeiramente

humano poderia ser colocado sem levar em consideração a revolução proletária. A dificuldade

principal consistia em saber como se daria a ligação do pensamento teórico com a luta de

classes. Para superá-la, a filosofia precisava descobrir o “Eu”, o homem concreto que vivencia

as transformações da sociedade (Politzer, 1978: 35-6). Embora a maneira de colocar o

problema sugerisse uma inclinação materialista, as teses de L‟Esprit permaneciam estranhas a

essa tradição. Ainda segundo Politzer, “de forma alguma sonhamos com uma matéria que

viesse a se opor ao pensamento e que, diante dele, constituísse uma realidade à parte...”

(1978: 21). Para os autores de L‟Esprit, as forças da vida identificavam-se positivamente com

o “espírito”, enquanto a “matéria” representava a prisão da humanidade. Ao “reconhecer” a

revolução, eles atribuíam uma grande importância ao “ato” revolucionário que abandona a

especulação para entrar campo da materialidade, ou seja, a luta contra as instituições da

civilização burguesa e a dominação econômica. No entanto, era o espírito que lhes parecia

verdadeiramente ativo, por oposição à imobilidade do mundo material. Nesse ponto, aliás,

eram acompanhados pelos surrealistas, que se situavam mais no plano das idéias e da escrita

poética (a libertação do espírito), do que no da organização de atividades pragmáticas - não

por acaso, alguns surrealistas posicionaram-se contra as aquisições materiais de sua época,

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especialmente a cultura do “maquinismo”, e identificaram a “liberdade absoluta” com a

autonomia da palavra em relação à matéria. Igualmente, para os “filósofos”, o que separava a

“salvação humana” por eles apenas “pressentida” e as posições políticas e teóricas do

marxismo era o fato de este último ter subestimado o elemento “humano”, identificando-se

não com a liberdade, mas com o “determinismo econômico” e a “fatalidade histórica”. Por

isso, afirmam que o materialismo histórico era somente a linguagem da ação, mas não uma

teoria essencial. A revolução não era um momento necessário no interior de uma dialética

abstrata, mas uma nova materialidade oferecida ao pensamento; um momento em que o povo

acorrentado se liberta e permite “transformar as aventuras espirituais em aventuras materiais”

(1978: 45).

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1.2 A formação do PCF e as vanguardas dos anos 20

Criado em 1920, o PCF foi o produto de uma cisão no interior da SFIO – Seção Francesa da

Internacional Operária.3 O processo de ruptura caracterizou bem a “falência da Segunda

Internacional”, anunciada por Lênin durante a guerra. Foi a maioria dos delegados da Seção

que se retirou para fundar, no Congresso de Tours, o novo partido. A maioria levou consigo o

jornal L‟Humanité, criado por Jaurès, e votou a adesão à Terceira Internacional. Oscar

Frossard foi eleito primeiro-secretário do PCF, mas renunciou pouco depois, por oposição à

política de bolchevização da organização.

A palavra de ordem da bolchevização ganhou força após o malogro da revolução alemã em

1923 e, sobretudo, em função das disputas pelo poder no interior do então denominado

Partido Comunista Russo (bolchevique). A partir de 1924, o que se viu no PCF, bem como

em outros “partidos irmãos”, foi uma acelerada uniformização, tanto no plano ideológico

quanto no organizativo, e uma adequação à linha política traçada pelo núcleo dirigente de

Moscou. Depois do afastamento de Frossand, que regressou à SFIO, Albert Treint tornou-se o

líder do partido por um período de menos de dois anos; Pierre Semard, que morreu durante os

anos da resistência à ocupação alemã, assumiu a direção em 1926, liderando um processo de

expurgo contra a oposição de esquerda (Fernand Loriot, Boris Souvarine, etc.). Semard

assumiu uma posição proeminente ao aplicar a política de frente única com os socialistas no

período que ficou conhecido como a “estabilização”. Depois da virada política de 1928, que

resultou na ruptura com os socialistas, o PCF adotou uma política de “classe contra classe”,

substituindo seu líder por um operário “autêntico” chamado Henri Barbé. Albert Treint se

alinhou à orientação oposicionista de Zinoviev no plano internacional e acabou expulso pouco

depois da oposição de esquerda se desligar do partido. Assim, as principais disputas no

interior da organização francesa acompanharam de perto a movimentação das tendências

políticas na URSS. No XV Congresso, em dezembro de 1927, a oposição russa foi declarada

“inimiga da classe operária”, e a mesma posição centralizadora repercutiu no PCF. Quando

Maurice Thorez, outro militante de origem operária, finalmente alcançou a posição máxima

de secretário geral em 1930 (função que exercerá ao longo dos próximos 34 anos) o PCF

havia sufocado suas contradições internas, tornando-se uma organização quase inteiramente

monolítica.

3 Em 1969 a SFIO se transformou no atual Partido Socialista (PS).

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A adesão dos intelectuais ao PCF foi uma constante ao longo da década de 30. Ocorria

então uma polarização na política nacional, que assistiu ao recrudescimento das ligas de

extrema-direita. O Partido começava a se tornar, aos olhos de alguns intelectuais e setores

“progressistas” das classes médias urbanas, o mais legitimo representante da classe operária

(no período da Frente Popular, em meados dos anos 30, o apoio ao PCF foi muito grande,

especialmente nas regiões industriais. Estima-se que o partido contasse com aproximadamente

300 mil militantes). Sua política era imediatamente associada à URSS, o que impunha

dificuldades aos militantes, pois suas atividades eram vistas como parte da política externa de

Moscou. No entanto, pouco a pouco a URSS começou a gozar de mais prestígio, tornando-se

a representante das promessas de pacificação social. Em 1926, o partido organizou um

importante Congresso contra o Imperialismo Colonial, dirigido por Barbusse e Marcel

Cachin, o veterano comunista que se gabava de ser um dos poucos homens políticos da

França que teve a oportunidade de travar contato com Lênin. Conseguiu atrair mais atenção

para si em 1929, quando da criação, em Paris, do Circulo da Rússia Nova, que ajudou a

divulgar, nos meios intelectuais, a aplicação do “materialismo dialético” ao domínio das

ciências. Ao longo da década seguinte, professores respeitados como Paul Langevin e Henri

Wallon animaram as publicações do Círculo. Entretanto, o que realmente contou para uma

mudança de postura em relação aos “soviéticos” foi, por um lado, o êxito do seu programa

econômico em meio ao colapso das economias ocidentais. No momento em que a economia

mundial vivia os seus piores dias, a URSS parecia marchar vigorosamente para o socialismo e

a favor dela contava o fato de que ainda não se sabia muito a respeito dos enormes “custos

humanos” da industrialização forçada. No imaginário da época, o programa de planejamento

centralizado da economia contrastava com a irracionalidade capitalista das crises de

superprodução. Apesar disso, no final dos anos 20, o apoio ao projeto político dos comunistas

permanecia limitado. Eram especialmente os grupos de vanguarda que se sentiam

verdadeiramente atraídos pelo que a revolução socialista oferecia em termos de uma “vida

nova”. Tais grupos figuraram entre os primeiros a adotar o marxismo como teoria e a

ingressar no PCF. Um caso a parte era o dos novos editores de Clarté, como Jean Bernier, que

adotaram progressivamente o marxismo, principalmente depois de 1925, mas tomaram

partido da “oposição russa” e não da linha oficial do movimento comunista. Na revista Clarté,

em 1926, aparece um texto de Naville condenando as “tendências confusionistas” do grupo

L‟Esprit e seu jargão “judeu-filosófico”. Nesse mesmo contexto, Lefebvre e seus amigos,

ainda distantes do marxismo, se defrontaram com as contradições objetivas da sociedade

burguesa e se viram forçados a abandonar o que restava de misticismo filosófico em suas

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idéias. Tal mudança não se verificou sem uma profunda crise de consciência, descrita por

Lefebvre como um “beco sem saída”, no qual “os temas haviam se esgotado e não se

renovavam facilmente” (1948: 58). No plano individual, a recusa em tentar um espaço no

mundo da cultura ou das letras agravava a sua situação material: “Não tentava nem mesmo

disfarçar com declamações poéticas ou relatos novelescos esse vazio „espiritual‟. Deixava-me

levar pela vida” (1948: 59). Durante o ano de 1927, Lefebvre trabalha como motorista de taxi.

Do mesmo modo que para os surrealistas, os meios reputados “intelectuais” de ganhar a vida,

tais como a carreira jornalística, o ensino universitário ou as atividades literárias, não lhe

interessavam. Só em 1929 assume o cargo de professor do liceu de Privas, capital do

departamento de Ardèche.

A “conversão” de Lefebvre e outros colaboradores de L‟Esprit ao marxismo se deu de

modo inesperado e acarretou nova mudança no interior do grupo: o projeto, em fins de 1928,

de criação da Revue marxiste, que pode ser considerada a primeira revista teórica alinhada ao

PCF. Essa mudança resultou em uma crítica, indispensável nos meios comunistas, do modo

de vida com o qual Lefebvre e os seus amigos haviam se identificado: “o espiritualismo

degenerava em parasitismo [diz ele] e isso ocorria nos marcos do capital financeiro, do qual

nos proclamávamos adversários e cujas conseqüências sofríamos” (1948: 58). O comunismo

impunha-se não só como uma opção política, mas como uma postura radicalmente nova em

relação à situação do indivíduo na vida social. Até então, Lefebvre e seus companheiros

envolveram-se em contestações muito pouco concretas, que chegaram a assumir formas

burlescas, como no caso de um projeto comunitário isolado, dedicado à Sabedoria e à

independência intelectual. O novo caminho a ser tomado representava, portanto, uma

mudança total. Breton não deixou de observar o caráter “religioso” e pouco amadurecido

dessa decisão. De fato, o que aproximava esses ex-estudantes de filosofia da perspectiva

marxista era mais a imagem da revolução, que representava um encontro com as “condições

sociais” nas quais a consciência livre poderia finalmente se desenvolver, do que a aceitação da

doutrina difundida pelos comunistas. Ademais, a obra teórica de Marx não era bem conhecida

na França. O pensamento de Marx e Engels chegou muito tardiamente à universidade. O

pioneirismo no que diz respeito aos estudos acadêmicos coube a Auguste Cornu, cuja tese,

defendida em 1934, tinha como objeto a passagem do hegelianismo ao materialismo histórico

nos escritos de juventude de Marx. Antes da recepção universitária, que não se deu sem dura

resistência dos saberes instituídos, o marxismo havia penetrado nos meios operários, através

dos seus órgãos de propaganda. Entretanto, o fez em sua versão simplificada, ela mesma

“instituída” como um sistema fechado sobre si mesmo, embora alimentado pelas necessidades

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políticas imediatas. Além disso, a divulgação das idéias de Marx e Engels resumia-se

essencialmente aos escritos políticos (muitos deles sobre a luta de classes na França). Existia a

edição de 1875 d‟O Capital, porém “os grandes textos filosóficos de Marx e Engels eram,

então, desconhecidos em francês” (Garaudy, 1968: 230).

A partir de 1920, as publicações ligadas ao PCF ampliaram a divulgação das obras

políticas clássicas do marxismo, juntamente com algumas obras de Lênin. Figurava entre os

principais escritos do líder bolchevique a tese do definhamento do aparato estatal exposta em

O Estado e a Revolução. O encontro com essa tese deixou Lefebvre vivamente

impressionado. Seu interesse pela perspectiva aberta pela revolução de 1917 se deu sob a

influência do espírito antiburocrático das teses de Lênin e pouco tinha a ver com a política

pragmática ou a linha “obreirista” do PCF. Porém, já no início dos anos 20 essa teoria fora

substituída por uma legitimação da expansão do domínio estatal sobre a vida social. O

impulso “libertário” do qual o movimento comunista se havia alimentado arrefeceu e muitos

militantes “se transformaram em integristas, dogmáticos e autoritários”, recorda Lefebvre

(1975: 63). A “Introdução” de 1926, na revista L‟Esprit, afirmava que os filósofos, para se

tornarem “amigos da verdade” deveriam tornar-se corruptores da juventude e inimigos do

Estado. O percurso de Politzer foi mais complexo, porém, uma vez concluído, resultou numa

acomodação maior à ortodoxia: como se apreende na mesma “Introdução”, o marxismo foi

censurado, de início, por abandonar o homem em favor das forças “anônimas” da História e

da economia. Politzer também não concebia nenhuma ligação entre a ação prática e o

materialismo. Ele acreditava que o estudo da economia política só era capaz de fornecer um

quadro muito geral dos fenômenos sociais, e que para dar conta da ação subjetiva sem reduzi-

la a esses “grandes quadros” era preciso elaborar uma “psicologia concreta”. Durante esse

período de transição para o marxismo, dedicou-se a uma série de estudos, incluindo a crítica

da psicologia clássica, da psicanálise de Freud e das teorias de Bergson. Somente em 1929,

com a leitura de Materialismo e Empiriocriticismo, obra de 1908 na qual Lênin faz uma

discutível defesa da teoria materialista do conhecimento contra os “desvios” idealistas, que

Politzer aderiu integralmente ao marxismo. O filósofo se exprimia, então, da seguinte

maneira, no primeiro número da nova Revue marxiste: “O pensamento de Lênin ia direto ao

cerne do problema, moldava-se pelas coisas, e não pelos conceitos. Nisso Lênin continuava a

boa tradição materialista” (apud Garaudy, 1968: 253); e concluía, no mesmo texto, com o

reconhecimento de que seu encontro com a obra do revolucionário russo significava um

verdadeiro ato de “redenção intelectual”.

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A separação entre as obras de agitação e as obras “filosóficas” ou teóricas era um sintoma

do tipo de adaptação a que o pensamento de Marx foi submetido para servir de base para os

programas políticos “operários” – o que não era, de modo óbvio, uma característica isolada do

marxismo francês. Também na direção partidária predominavam, desde a viragem de 1928, os

quadros operários e não os intelectuais. Contudo, a característica mais importante do PCF

nesse período era o centralismo e a rígida hierarquia interna. Não existia nenhum debate nas

esferas mais “baixas” da organização. O espaço para a reflexão teórica autônoma era ainda

menor. Já em 1929, a Revue marxiste deixou de existir. A publicação, juntamente com as

pesquisa de “psicologia concreta” desenvolvidas por Politzer, foram consideradas inaceitáveis

pelos dirigentes do Partido. “A Revue marxiste se pretendia muito aberta e a maioria dos seus

colaboradores rechaçava o economicismo a que se tinha reduzido o marxismo” (Lefebvre,

1975: 64). Esse tipo de abertura teórica era em tudo incompatível com a orientação partidária,

centrada na ideologia de “classe contra classe” e na teoria econômica da crise generalizada do

capitalismo. A publicação enfim se dissolveu em meio a um insólito escândalo, cuja versão

“oficial” (a da direção partidária) foi difundida por Breton: segundo ele, o grupo que editava a

“Revista marxista” era “culpado de dissipar, num único dia, em Monte Carlo, a quantia de

duzentos mil francos que lhe fora confiada para ser usada em propaganda revolucionária”

(2001: 175).4 Outro ponto de vista, mais indireto, sobre o grupo e os primeiros anos de

militância comunista foi expresso por Nizan em uma obra ficcional, que lhe valeu o prêmio

Interallié de 1938. A Conspiração, último livro publicado por Nizan, conta a história de um

grupo de jovens abastados que decide criar uma revista de combate ideológico. Para Lefebvre,

o livro não reflete de maneira fiel o período da juventude dos “filósofos”, reduzindo a uma

caricatura - a rebelião “pequeno-burguesa” de um jovem abastado contra sua família – “o

difícil problema da passagem do idealismo para o materialismo” (1948: 16).5 Essa passagem

se deu de maneira diferente para cada um dos colaboradores da Revue marxiste. Porém, ao se

realizar o movimento que conduziu o grupo à colaboração com o PCF, o que se seguiu foi

uma inevitável dissolução no interior da organização partidária.

4 A versão (bastante diferente) de Lefebvre para os acontecimentos de Monte Carlo é que o dinheiro, na verdade, pertencia

não ao partido, mas a Georges Friedmann, que acabara de herdá-lo (1975: 66).

5 Por outro lado, o livro de Nizan caracteriza bem o “espírito comunista” da época e sua tendência obreirista: referindo-se aos

operários de sua célula partidária (e em contraposição aos ex-amigos “intelectuais”), o traidor, Serge Pluvinage, recorda:

“Esse pequeno grupo de homens me deu a única idéia que terei de uma comunidade humana (...) Meus camaradas eram

alegres, sabiam rir, eram bem mais humanos que vocês mesmos, que não tiravam da boca as palavras Homem e Humanismo.

Eram inteiramente despidos de ressentimento, de ódio, eram construtores saudáveis” (Nizan: 1988: 207).

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Já os surrealistas seguiram outro caminho. Seu modo de vida e suas idéias eram muito

menos assimiláveis pela militância política do que as de estudantes em busca de algo mais

concreto que a filosófica universitária. O espírito de revolta dos surrealistas estava ligado não

só à irrupção do desejo, mas a uma “atitude de vida intransigente”, como diz Maurice Nadeau

(2008:111). A retomada da crítica da cultura dominante se dava por meio do inconformismo

escandaloso ao estilo Dadá, mas o surrealismo falava também em nome de uma regeneração

criativa. O aspecto que mais o diferenciava de seu antecessor dadaísta era, deste modo, o

anseio em não se esgotar na “ação destrutiva” e na pura negação da arte. O que os surrealistas

buscavam era a invenção de valores inteiramente novos; mais do que simplesmente descobri-

los nos sonhos ou nas metáforas poéticas, empenhavam-se em vivenciá-los diretamente. Por

isso, as “obras” surrealistas tentavam exprimir as situações concretas nas quais seus autores se

envolviam e, pelo mesmo motivo, o exame das atitudes individuais de cada um deles estava

sempre em discussão e com freqüência levava às desavenças e exclusões. Mesmo lutando

contra a constante “tentação literária”, eles se aproximavam muito de uma autêntica

experiência coletiva de criação. “Para além de seus avatares estetizantes, a utopia concreta

que o surrealismo reclama com insistência é a de uma revolução da vida cotidiana” (Ardoino

e Lourau, 2003: 28).

Na base do surrealismo estava a problemática do imaginário e a contestação do princípio

da realidade: o sonho não é o contrário do real, diziam, mas um dos seus elementos

constitutivos. Em contraste com o dadaísmo, que tendia, pelo menos em sua versão parisiense,

a se exaurir na celebração do aleatório e das contradições, Breton tentou fazer da surrealidade

uma revelação dos limites do racionalismo tradicional. O “surreal” não era, pois, o oposto

absoluto do elemento racional; ele estava em relação com a realidade, revelando a repressão

do sonho, da fantasia e da expressão poética como contrapartida necessária da razão. Essa

concepção fundamental foi desenvolvida ao longo do Manifesto de 1924, que apresentava a

atitude realista como produto da mediocridade intelectual. Breton tentava mostrar que apenas

o recurso à imaginação conduzia para além da mera afirmação do existente. Esta sobre-

realidade indica a diluição das fronteiras entre a objetividade e o universo dos sentimentos e

da fantasia; por isso ela compreende tanto o sonho quanto o que estamos habituados a chamar

de “real”. Entre as técnicas utilizadas pelos surrealistas para explorar os universos do sonho e

da imaginação, estava o “automatismo psíquico” 6 e o deslocamento dos objetos, que visava,

6 O surrealismo é definido no “Manifesto” como um “automatismo psíquico em estado puro mediante o qual se propõe

exprimir, verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento,

suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral” (2001: 40). Através do

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de acordo com a fórmula tomada de Lautréamont, um “encontro ao acaso”, que visava a

depreciação dos critérios de utilidade. Além disso, havia as andanças em busca de encontros,

situações inesperadas e emoções novas, tal como nos eventos descritos por Breton em Nadja

ou nos relatos sobre a Passagem da Ópera, em O Camponês de Paris, nos quais Aragon

descreve os últimos dias de uma antiga galeria coberta, quartel-general das primeiras sessões

de Dadá, convertida em modelo do insólito que se revela no universo das grandes cidades.

Após muitas controvérsias, Breton, Éluard, Aragon e outros participantes do movimento

decidiram que o melhor para a “revolução surrealista” seria se juntar ao marxismo. A

evolução do movimento surrealista torna-se visível em uma comparação entre o Manifesto de

1924, que se ocupava de modo mais central das pesquisas “poéticas”, das formas de expressão

e do enquadramento psicanalítico, e as tentativas posteriores de Breton de expor a relação do

surrealismo com o marxismo em seus aspectos teóricos e políticos. Entre as duas posturas,

estão o ano decisivo de 1925 e as reuniões na Rua Jacques-Callot (antigo reduto surrealista)

envolvendo os diversos grupos de vanguarda. Breton e Aragon filiaram-se ao partido em

1927. Um ano antes, outro fundador do movimento, Pierre Naville, havia trocado a

companhia dos surrealistas pela militância marxista - isso depois de uma polêmica com

Breton sobre o engajamento político.7 Porém, no mesmo ano em que os outros surrealistas

ingressaram no PCF, Naville tomou parte de uma delegação que se encontrou com Trotsky

em Moscou. Ao retornar a Paris, durante a campanha contra a oposição, foi acusado de

atividade fracionista e expulso da organização. A aproximação dos surrealistas com o

marxismo ocorreu, portanto, a exemplo do grupo de Lefebvre, no momento em que a virada

interna no movimento comunista fazia com que o PCF se tornasse particularmente inflexível.

O fascínio que a revolução exercia sobre esses grupos explica o porquê deles se

aproximarem de uma ortodoxia marxista que, a primeira vista, parecia incompatível com as

suas inclinações radicais. Pouco a pouco eles foram seduzidos pelas notícias sobre as

primeiras conquistas dos trabalhadores e, no que diz respeito à França, pela atuação decidida

da militância comunista em diversas mobilizações de rua em defesa das causas populares.

Além disso, os pequenos grupos de esquerda, que permaneciam à margem do PCF, não

automatismo seria possível alcançar um “estado passivo” no qual se impõe a “onipotência do sonho”, produzindo um “jogo

desinteressado do pensamento”.

7 Afastando-se do surrealismo, Naville publica A revolução e os intelectuais, livro que prega a necessidade da participação

política integralmente dedicada à causa do proletariado. Para Naville, os escândalos produzidos pelo modo de vida surrealista

podiam ser facilmente assimilados pela sociedade burguesa. Esse limite colocava em evidência a contradição fundamental do

movimento: nenhuma libertação do espírito seria possível antes da abolição das condições materiais de existência da

sociedade burguesa. Por isso, mesmo a ação coletiva dos surrealistas permanecia presa aos “valores individualistas” (Nadeau,

2008: 89 e ss.).

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28

conseguiam manter contato direto e muito menos exercer uma influência real sobre a classe

operária. Estavam reduzidos à publicação de revistas de propaganda socialista que circulavam

entre intelectuais dissidentes, como Charles Rappoport ou Souvarine.8 Enquanto os

“filósofos” e surrealistas iniciaram a colaboração direta como PCF, a revista Clarté, com

quem não atuavam diretamente desde o período da crise do Marrocos, adotou uma posição

contrária à linha do movimento comunista. A partir de 1928, a revista se transformou, com

substancial colaboração de Naville, em La Lutte des Classes, funcionando desde então como

órgão francês da Oposição Comunista de Esquerda Internacional. Lefebvre manifestava pouco

interesse por esse tipo de iniciativa. Acreditava que o movimento comunista continuava vivo,

não institucionalizado. Além disso, idealizava uma democracia de conselhos de operários e

camponeses que nunca chegou a existir. Considerava as notícias a respeito da oposição, e

sobre Trotsky em particular, muito vagas. Aquele foi um período de “entusiasmo cego” que

tendia a favorecer a linha oficial do Partido, pois, em sua opinião, as “informações sobre a

realidade soviética deixavam muito a desejar” (1975: 61). Entusiasmo idêntico, por parte de

Breton, fez com que fosse interrompido o projeto de colaboração com a esquerda

independente, que durante um momento pareceu correr a passos largos. Uma publicação

comum, La guerre civil, anunciada em 1926, não se concretizou.9 “A guerra civil” era o nome

da revista que os militantes de origem “pequeno-burguesa” d‟A Conspiração de Nizan

publicam depois de “intermináveis férias”, fazendo-a funcionar como uma metralhadora que

dispara sua raiva contra pessoas “verdadeiramente respeitáveis”, sob o disfarce dos “grandes

aparatos filosóficos”.

A derradeira tentativa de ação comum nos meios de vanguarda, já inteiramente polarizado

pelo problema comunista, partiu de Breton – depois dos primeiros atritos com a estrutura

burocrática do PCF. Em 1929, ele envia um convite a possíveis aliados, intelectuais

“suscetíveis de estarem interessados na possibilidade de em uma ação comum”, todos

escolhidos entre suas antigas relações. Entre os convidados constavam Jean Bernier e Marcel

Fourrier, Naville, Lefebvre, Politzer e os outros membros da antiga L‟Esprit, Georges Bataille

e a revista Documents (na qual colaboravam ex-surrealistas), além de remanescentes do

8 Rappoport, militante de origem russa, nascido em 1865, era um remanescente da primeira geração de marxistas franceses.

Foi um dos editores da Revue marxiste, junto com Politzer e Morhange. Souvarine, natural da Ucrânia, participou do

Congresso de Tours, dos trabalhos da III Internacional e, alguns anos depois, seria o autor da primeira biografia crítica de

Stálin.

9 Mesmo assim, como nos informa Nadeau, as relações entre as duas revistas não cessou: “Apenas um entusiasmo não

controlado é responsável por esse fracasso provisório (...) A fusão projetada é substituída pela colaboração: consiste na

publicação, em Clarté, de poemas e ensaios surrealistas de Aragon, Eluard, Péret, Leiris, Desnos, até 1927. É dada uma

acolhida recíproca, na Révolution surréaliste, a estudos políticos e sociais de Marcel Fourrier e Victor Crastre” (2008: 88).

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29

dadaísmo como Tzara e Francis Picabia. Poucos atendem ao chamado. Entre os ausentes estão

Lefebvre e seus colaboradores mais próximos. A reunião da “rue du Château”, em cuja pauta

constava um “exame crítico da sorte dada a Leon Trotsky”, se transformou, por insistência de

Breton, num outro exame, o da qualificação moral dos participantes. A nova pauta colocou o

pretexto inicial em segundo plano e ensejou uma controvérsia a respeito de outro grupo que

tomava parte do encontro, os redatores de Grand Jeu. Um dos responsáveis pela revista,

Roger Vailland, havia publicado uma posição incabível, louvando um chefe de polícia, e

outro, Gilbert-Lecomte, deixara passar a oportunidade de um novo escândalo envolvendo um

grupo de estudantes que protestavam contra uma campanha militarista. O “processo” não

parou por ai, inviabilizando a ação comum: “não são apenas os redatores de Grand jeu que

não querem arcar com um julgamento inquisitorial (...) são todos os não-surrealistas que,

recusando-se submeter-se ás exigências de Breton, preferem ceder o lugar” (Nadeau, 2008:

117). Em virtude do fracasso do evento, seus participantes, impotentes, limitaram-se a reiterar

a necessidade de uma “ação coletiva” contrária ao individualismo literário. Irritado com a

negativa de uns e a passividade de outros, Breton partiu, em seguida, para o acerto de contas

geral que viria a ocupar grande parte do seu “Segundo Manifesto”.

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30

1.3 O Surrealismo a serviço da Revolução

Depois de 1929, os surrealistas voltaram a se aproximar mais decididamente do PCF.

Seguiram a orientação política comunista, mas preservando a incômoda autonomia como

movimento. A ambigüidade da situação resultou em um conflito permanente: de um lado, o

pragmatismo político e a concepção doutrinária da teoria; do outro, a crítica do “racionalismo

absoluto”. A reação inicial dos comunistas foi enxergar os surrealistas como aliados, tratando-

os de maneira condescendente, como jovens radicais instintivos, ao passo em que tentavam

trazê-los para o campo prático e “científico” do socialismo. Como se constata nas páginas do

L‟Humanité: “A fé revolucionária deve ser raciocinada, sistematizada, deve consolidar-se nas

leis econômicas formuladas, de um modo geral, por Marx e Lênin” (apud Winock, 2000:

234). Os surrealistas deviam domar seu espírito anárquico, subordinando-o à doutrina

marxista, a única, segundo os comunistas, capaz de apreender as “leis” da sociedade e da sua

transformação.10

Com isso, no interior do PCF, as polêmicas só se agravaram, fazendo aflorar

com maior nitidez os contrastes entre a “revolução surrealista” e aquilo que os comunistas

acreditavam ser a teoria científica da revolução. A maior diferença residia no fato dos

surrealistas não limitarem seu projeto aos aspectos políticos e econômicos, mas proclamarem

um inconformismo absoluto contra tudo o que servia de justificativa para o “rotineiramente

aceito” (Breton, 2001: 162). Isso não quer dizer que os comunistas não preconizassem uma

mudança no plano das relações cotidianas. Eles também almejavam um novo “modo de vida”

e, de certo modo, sua atividade militante o prenunciava: havia nela uma espécie de

absolutização da política, vivida integralmente em todos os momentos. Ao mesmo tempo,

censuravam na burguesia, outrora laboriosa, a queda no “parasitismo”. Em nome de um ideal

altivo do trabalho, o dispêndio de energia no processo produtivo foi idealizado como um fim

em si mesmo. Contraditoriamente, a mudança que se pretendia realizar era afirmada em nome

dos valores da sociedade combatida em termos quase exclusivamente políticos (mudança no

regime de apropriação da produção). De tal modo, os comunistas se afirmavam mais como

continuadores das realizações “progressistas” da cultura burguesa do que como críticos dessa

tradição. O apelo humanista, a importância atribuída à racionalidade científica e a confiança

10 Note-se que Breton não era inteiramente hostil a idéia de um processo histórico dominado por “leis”, embora fosse buscá-

la em uma tradição filosófica rival ao cientificismo dominante no ambiente cultural francês, qual seja, a filosofia clássica

alemã. Assim, ele concebeu a dialética hegeliana não só como o “trabalho do negativo”, mas igualmente como a ciência das

leis gerais do movimento da sociedade.

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ilimitada no progresso faziam parte da mentalidade comunista tanto quanto a idéia de uma

revolução protagonizada pela classe operária. A revolução era compreendida como

encarnação “prática” de todos esses valores que, em determinado momento, teriam sido

abandonados pela burguesia “decadente”.

O ataque generalizado à cultura dominante promovido pelos surrealistas atingia

inevitavelmente os valores cultivados pelo movimento operário, inclusive o mais importante

deles: a dignidade do trabalho. Essa crítica sempre se desenvolveu de modo “intuitivo” e

praticamente sem conceitos. E, sobretudo, possuía uma dimensão prática imediatista. Rigaut,

na revista Littérature, embrião do movimento surrealista, ironizava as atividades realizadas

em troca de dinheiro: “Logo que um cavalheiro se coloca na posição de aceitar de um outro

algum dinheiro, não deve admirar-se se lhe pedirem que baixe as calças” (Cravan et alli.,

1980: 93). O número 4 de La Révolution Surréaliste trazia estampada na capa uma declaração

de “guerra ao trabalho”. Outro caso exemplar é O Camponês de Paris, texto no qual Aragon

estabelece uma distinção entre o cotidiano burguês, reduzido ao trabalho e a rotina, e a busca

surrealista da aventura, do imprevisto, do mistério e do “maravilhoso”. A falta de estima pelo

trabalho (e a recusa de enxergar nele um valor moral), fazia parte do “modo de vida”

surrealista, admiravelmente exemplificado pelas deambulações ociosas nas ruas e “passagens”

parisienses. Breton expressa um ponto de vista idêntico quando se permite apenas conceber a

“necessidade material” do trabalho, sem atribuir-lhe qualquer tipo de honra especial. Por isso,

podemos ler em Nadja:

“De nada serve estar vivo enquanto se trabalha. O acontecimento de que todos

nós estamos no direito de esperar a revelação do sentido da nossa própria vida (...)

não é ao preço do trabalho que se alcança” (1972: 52).

A assimetria entre a pretensão surrealista de “mudar a vida” e a imagem da revolução

centrada no homo faber, no “produtor”, a qual o ideário comunista se fixou, revelava um

profundo desacordo: na URSS, a exaltação do trabalho correspondia a uma ideologia de

legitimação do crescimento econômico acelerado que se impôs como exigência prática da

“acumulação socialista”. O peso do cotidiano se impunha sob a forma da mobilização para o

trabalho, que atendia perfeitamente as demandas modernizadoras. Os surrealistas, que

protestaram contra um modo de vida reduzido à banalidade, seguramente não acreditavam que

seria possível encontrar a liberdade na disciplina da fábrica e nas pregações ideológicas de

uma ideologia estatal. Na França, além disso, os anos que se seguiram à Primeira Guerra

Mundial não se caracterizaram apenas pela divisão em relação às questões políticas (divisão

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32

cujo ápice ocorreu no período da Frente Popular), mas assistiu a formação de uma polarização

intelectual e artística que refletia o contraste entre diferentes valores sociais. Por um lado, a

recusa das convenções morais e sociais pelas vanguardas, mas também um sentimento

contrário, que deu origem, no mesmo período, a um reativo apelo à “ordem” e à

“racionalidade”. A mentalidade comunista, mesmo ligada à necessidade de mudanças

políticas (entendidas como momento da dialética histórica), permanecia bem distante de um

espírito de negação, tendendo, ao contrário, à afirmação de uma austera moral dos produtores

- “A grandeza, para mim, está apenas na afirmação”, exclama o representante do comitê

central do partido em A Conspiração de Nizan. Em última análise, o que os comunistas

defendiam era uma “nova organização” da sociedade, com base no planejamento econômico

centralizado. Tal preocupação com a lógica e a ordem das coisas se manifestou de modo ainda

mais inequívoco, fora dos meios comunistas, na ideologia fomentada por Le Corbusier. Foi

dentro dessa versão racionalista e geométrica do “espírito novo” que se colocou a alternativa:

arquitetura ou revolução.11

As experiências de planejamento central despertaram profundo

interesse em Le Corbusier, sobretudo quando este se viu forçado, nos primeiros anos da

depressão econômica, a abandonar a idéia do financiamento privado para os seus projetos. A

URSS, que ele visitou em 1928, não chegou a se tornar um laboratório para o urbanismo

modernista (a maior parte de suas obras não saiu do papel), mas o casamento deste com a

burocracia estatal foi esboçado por Le Corbusier, que o resumiu numa frase lapidar: “Projetar

cidades é tarefa por demais importante para ser entregue aos cidadãos” (apud Hall, 1995:

245).

Se o renomado arquiteto suíço, com a aquiescência da burocracia estatal, tomou partido

das formas urbanísticas de ordenamento da sociedade, os surrealistas, evidentemente,

adotaram a opção revolucionária. O surrealismo se associou ao movimento político na

tentativa de criar o que Breton chamava de “mito coletivo” (2001: 243). Mas a solidariedade

para com a classe operária guardava um sentido negativo: o proletariado dedicava-se à

contestação violenta porque nada tinha a perder com a derrocada da ordem existente. Assim,

no início da década de 30, a revista do movimento mudou o nome para Le Surréalisme au

service de la Révolution, considerando esta última uma “fatalidade” à qual todos os

11 A revista L‟Esprit Nouveau publicou um total de 28 números, entre 1920 e 1925. Ao contrário de outras vanguardas da

época, ela se destacava pela afirmação da necessidade de “controlar e corrigir” as tendências caprichosas da “intuição”,

sustentando a necessidade de valorizar os aspectos “puristas” da concepção intelectual em oposição à mera expressão dos

“sentidos”. Tais concepções não se limitaram ao campo da estética. Seguindo o exemplo de Gropius, que acreditava na

possibilidade de criação de uma “obra de arte total”, presente na vida cotidiana através de objetos utilitários, Le Corbusier

formulou uma idéia de ordenação da sociedade por meio das pesquisas estéticas. A arquitetura, segundo ele, devia ser

responsável pela “reconstrução moral e espiritual” da sociedade (Batchelor: 1998: 30).

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indivíduos comprometidos com a contestação da ordem dominante deveriam se juntar. Foi

uma tentativa, semelhante em muitos aspectos com a dos futuristas russos na década anterior,

de conciliar o espírito “anárquico” com a nova ordem que se edificava na URSS junto com a

promessa de uma vida diferente. Tarefa difícil, já que o novo governo revolucionário se

acreditava infalível e possuidor de um sistema teórico perfeitamente acabado. As atividades

de Breton e seus amigos foram submetidas à disciplina partidária e tornaram-se alvo de

freqüentes questionamentos. Isso obrigou Breton a expor novamente o seu ponto de vista em

relação ao projeto revolucionário. O “Segundo Manifesto”, além de motivado pelas querelas

pessoais, foi sobretudo um produto dessa transição. O texto representava a reafirmação dos

princípios do movimento, como a idéia de que o objetivo da agitação surrealista é provocar

“do ponto de vista intelectual e moral” uma crise de consciência, adotando o dogma da

“revolução absoluta” e da “insubmissão total” (2001: 153). A finalidade declarada dos

surrealistas era arruinar os aparelhos de “conservação social” (as idéias de pátria, família,

religião, etc.). Ao mesmo tempo, situavam-se em um novo plano - o da aplicação do método

dialético a domínios inexplorados - no qual a “distração artística” perdia espaço e previa-se

até mesmo a superação da filosofia. De passagem, Breton expõe, em um comentário

digressivo, a crítica dirigida aos antigos colegas “filósofos”: “O que eu tampouco aceito é que

pessoas com quem estivemos em contato e das quais, por tê-lo experimentado na própria

carne, vimos denunciando há três anos, em todas as ocasiões possíveis, a má fé, o arrivismo e

os fins contra-revolucionários, os Morhange, os Politzer e os Lefebvre, encontrem meio de

captar a confiança dos dirigentes do partido comunista a ponto de poderem publicar, com a

aparência, ao menos, de aprovação deles, dois números de uma Revista de Psicologia

Concreta e sete números da Revista marxista...” (2001: 175).12

No mesmo texto, Breton

resolve enfrentar o problema, até então adiado, do posicionamento político do grupo face ao

“regime social”, isto é, ao tipo de sociedade a ser edificada a partir da revolução. Nesse ponto,

a adesão ao modelo de Moscou não foi total e irrestrita. Breton manteve uma surpreendente

independência, que lhe permitiu inclusive evitar uma tomada de posição em relação à

“oposição tática”, como ele a chamou, entre Stálin e Trotsky (o que significava, na prática,

uma afronta à direção stalinista, pois reconhecia, ao menos em parte, a importância do ponto

de vista da oposição).13

Breton define, então, a sua posição como um “novo romantismo” e

12 Na reedição do “Segundo Manifesto”, em 1946, seu autor muda de opinião sobre Politzer: “... não sinto nenhum

constrangimento em declarar que me enganei inteiramente a respeito de seu caráter”. (2001: 144).

13 Trotsky foi excluído do partido em 1927, exilado no interior da URSS e finalmente expulso do país em 1929, um ano antes

da publicação do “Segundo Manifesto” de Breton. Portanto, as questões retomadas pelo texto em questão estavam superadas

no interior do movimento comunista.

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sustenta que a adesão do surrealismo à política do PCF não significa uma perda de autonomia

na criação coletiva do grupo, repudiando a idéia de uma “cultura proletária” que, de acordo

com alguns ideólogos marxistas, exprimia as aspirações da classe operária e da nova

sociedade.

A despeito dos esforços de Breton, essa colaboração, como era de se esperar, não foi muito

longe. A ruptura dos surrealistas com o PCF ocorreu antes da metade dos anos 30. Não por

coincidência, foi o período em que a URSS mais despertou o entusiasmo dos intelectuais de

tendência conformista. No contexto de ascensão do fascismo – inclusive a sua variante

francesa - e das ameaças de uma nova guerra, o que mais contava em favor da URSS não era

a idéia de subversão das relações sociais, mas o posicionamento em defesa da “paz” e do

“progresso social”. Foi nesse momento que escritores humanistas como Malraux e Gide, entre

muitos intelectuais antifascistas, tornaram-se simpatizantes do comunismo. Para eles, a

sociedade burguesa era sinônimo de colapso econômico, guerra e irracionalismo. Em resposta

direta às manifestações de esquerda, ocorreu um recrudescimento do conservadorismo francês

e, com ele, o apogeu das ligas fascistas e suas demonstrações de rua. Tratava-se de uma

reação ao declínio da tradição e, mais imediatamente, à crise do poderio militar francês, feita

em nome de uma anacrônica ideologia monarquista e clerical (Maurras e a “Ação Francesa”)

que incluía o antiparlamentarismo e a denúncia anti-semita da corrosão da sociedade pelo

poder do dinheiro “judaico”.14

Só nesse contexto, a alternativa comunista começou a parecer

mais aceitável. Gide, que jamais foi marxista, havia se aproximado da esquerda na época em

que denunciou a violência do colonialismo. Em 1931, falou do “entusiasmo da juventude

soviética pelo trabalho” e elogiou o “Estado sem religião” que se constituía na URSS

(Winock, 2000: 289). Outros, como Barbusse, adotavam um tom ainda mais entusiástico:

“Quem quer que sejais, a melhor parte de vosso destino está nas mãos deste outro homem

[Stálin] que vela também sobre todos, e que trabalha -, o homem que tem a cabeça do sábio, o

rosto do operário e o traje simples do soldado” (1945: 252)

Ao que tudo indica, se o progresso burguês parecia entrar em crise, não era uma

renovação integral da cultura e da sociedade que os comunistas (e seus aliados) buscavam e

14 Em A infância de um chefe Sartre expõe de maneira reveladora o universo psicológico do conservadorismo francês e a

influência que ele exercia sobre a juventude, com base no ressentimento anti-semita (o jovem Lucien, protagonista da obra,

dividia-se justamente entre as experiências libertárias bastante próximas do surrealismo e um conservadorismo cristão mais

adequado à sua futura condição de “chefe” da indústria). Mais significativo é o fato dos jovens dos anos 20, tipificados por

Lucien, sentirem-se profundamente enganados pelas tradições, considerando-as todas estúpidas. Por isso, antes de ser atraído

pelo amigo surrealista ou de aderir à fracassada “renovação da tradição”, Lucien, tomado pelo ceticismo, pensou em redigir

um “Tratado do Nada”.

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sim uma tentativa de prolongá-lo por outros meios. Antes de todo o resto, a aliança contra o

fascismo desejava salvar as instituições republicanas da ameaça reacionária. Todo esse clima

prenunciava a atmosfera da Frente Popular. Foi nesse período que o PCF fomentou a criação

das universidades operárias, nas quais o marxismo era resumido em um novo catecismo para a

massa dos produtores, e que Nizan publicou Os cães de guarda, atacando os intelectuais não

comprometidos com as causas populares. Pouco depois, em 1934, assustado com o rumo dos

acontecimentos na vizinha Alemanha, Maurice Thorez fez o seu célebre discurso em favor de

uma “frente popular do trabalho, da liberdade e da paz”.

Os esforços dos comunistas para atrair os intelectuais e artistas para o seu lado resultaram

na criação de movimentos antifascistas, como a AEAR15

, a cargo da qual foi organizado o

Congresso de Escritores em Defesa da Cultura, em 1935. A maior parte dos surrealistas foi

expulsa do PCF no final de 1933, depois de uma controvérsia a respeito do filme soviético, O

Caminho da Vida, que abordava em tom apologético as experiências de “reeducação” de

jovens delinqüentes pelo trabalho coletivo. Um artigo publicado na nova revista dos

surrealistas provocou enorme polêmica ao alertar sobre o “vento de cretinização” que soprava

sobre a URSS. Os surrealistas ainda tentaram tomar parte nas atividades do Congresso de

1935, mas as diferenças em relação à orientação oficial do evento eram muitas. Foram

considerados, a partir de então, elementos individualistas contrários à disciplina do partido.

Por essa altura, havia no seio do surrealismo um distanciamento entre Breton e as posições

cada vez mais “pró-soviéticas” de Aragon. A viragem na trajetória de Aragon ocorreu após

uma visita à URSS, quando, falando em nome dos surrealistas, buscou uma conciliação com

as posições da Terceira Internacional que equivalia à renúncia das posições de princípio do

surrealismo. A mudança de Aragon foi total. Em O Camponês de Paris, os alvos eram o

desprezo pela imaginação e o realismo ilusório dos homens de Estado e dos literatos. O

surrealismo era apresentado por Aragon como uma “máquina de revirar o espírito” e

“proporcionar vertigens” (1996: 91); agora, colocando sua “poesia” a serviço da

industrialização, Aragon pregava a “morte aos sabotadores dos planos qüinqüenais”. Os

surrealistas que permaneceram fieis à visão do seu movimento como uma “epidemia

anárquica”, podiam recusar semelhante domesticação do espírito empregando as mesmas

palavras que Aragon usou nos anos 20: “Os jovens vão se dedicar perdidamente a esse jogo

sério e estéril. Ele desnaturará suas vidas. As faculdades ficarão desertas. Fecharão os

laboratórios. Não haverá mais exército possível, nem família, nem profissões” (1996: 94).

15 Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários.

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Paradoxalmente, os surrealistas, que aderiram ao PCF em sua fase mais “dura”, o que

resultou, sem dúvida, em algumas tensões, só passaram a ser vistos como elementos

desestabilizadores quando o Partido se tornou mais flexível e aberto à colaboração com os

segmentos não-proletários. Então, as diferenças entre as posições do PCF e as dos surrealistas

finalmente se explicitaram e estes se tornaram um obstáculo à política de alianças. Sob o lema

“a mobilização contra a guerra não é a paz”, os surrealistas procuram alertar a esquerda

francesa a respeito dos equívocos do pacifismo. O escritor comunista Ilya Ehrenburg, bem ao

estilo moralizador, chegou afinal à hostilidade aberta contra Breton e seus amigos, como

quem coloca um ponto final numa relação repleta de mal-entendidos: “Os surrealistas gostam

muito de Hegel, de Marx e da Revolução, mas o que eles não querem é trabalhar. Eles têm

suas ocupações. Estudam, por exemplo, a pederastia e os sonhos...” (apud Winock, 2000:

326). A ruptura definitiva foi alardeada publicamente num discurso de Breton, lido por Éluard

durante os trabalhos do Congresso de 1935, contra a vontade dos organizadores do evento, em

meio à crise provocada pelo suicídio de Crevel. O texto de Breton era mais um ataque contra

o patriotismo, denunciando a nova “união sagrada” (em referência à de 1914) entre o

movimento operário e a defesa nacional. Preocupado com o perigo de ver o proletariado

francês jogado contra o alemão, Breton julgava retomar a estratégia empregada por Lênin

durante a Primeira Guerra Mundial, que consistia em transformar a guerra imperialista em

guerra civil; na seqüência, defendeu, com ares de provocação, o pensamento dialético alemão

e sua versão surrealista, compreendida como superação da oposição rígida entre o agir e o

sonhar. A última palavra de Breton condenava o apego às formas estéticas do passado e a falta

de audácia no plano político. Era, em linhas gerais, uma denuncia do caráter limitado da

revolução idealizada pelos comunistas. Com isso, o surrealismo não deixava de se colocar a

serviço da revolução, embora não mais se identificasse com o modelo posto em prática na

URSS. Os adeptos da “revolução surrealista”, fundada na “energia da embriaguez”, não

podiam se bater pela “defesa da cultura”, como pretendiam os escritores progressistas e os

representantes do “sovietismo” francês. Só lhes interessava a transformação da cultura.

Um balanço dos acontecimentos relativos ao Congresso de 1935 foi realizado por Breton

em No tempo em que os surrealistas tinham razão. O ensaio condenava a poesia de

propaganda e a política de compromissos da URSS - política homologada sem restrições pela

direção do PCF. Antes de qualquer outra coisa, o que preocupava os surrealistas era que o

“homem novo” edificado pela revolução política não se diferenciasse dos homens atuais em

termos de necessidades e aspirações e que o “Estado sem religião” pelo qual Gide havia se

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encantado antes de sua famigerada viagem à “pátria do socialismo”, produzisse uma nova

religião política de Estado. O resultado de tudo isso era uma vida cultural pós-revolucionária

que adotava como valores positivos a veneração pelo trabalho, a estreiteza da ideologia

patriótica e o respeito pelas antigas formas de autoridade e hierarquia. Com efeito, os

surrealistas manifestaram a partir de então sua falta de confiança na URSS e no seu chefe

ideológico. Na França, a política comunista, limitada a uma defesa dos interesses materiais da

classe operária, traduzia o fato de a revolução social ter se convertido “na negação mesma do

que deveria ser e do que foi” (Breton, 2001: 301). Então, à “miséria conformista” em que se

transformou a ideologia revolucionária oficial, os surrealistas opuseram um discurso ofensivo,

associado à contínua busca de novos meios de expressão.

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1.4 A Frente Popular e a Questão Nacional

No momento em que a burocracia de Estado se consolidava na URSS e que o crescimento

econômico e a conservação do poder se tornavam os únicos fins perseguidos pelos seus

dirigentes, a ameaça do fascismo ganhava contornos mais concretos, tanto na Alemanha

quanto, em escala menor, na França. Aumentavam os rumores de uma nova guerra e a URSS

passou a ser vista por muitos como a única força capaz de opor resistência à máquina de

guerra alemã. Essa era precisamente a opinião de Lefebvre: “As notícias sobre o que ocorria

em Moscou, os primeiros grandes processos, coincidem com a ameaça de guerra” (1975: 71).

Ademais, para a maior parte dos intelectuais de esquerda, não existia no Ocidente uma

democracia “ideal”, mas um sistema político liberal, fundado na exploração da classe operária

e na dominação colonial. O fascismo apresentava-se mais como uma degeneração dos regimes

burgueses no contexto de crise da economia mundial do que como a sua antítese. Só o

comunismo aparecia ao mesmo tempo como uma alternativa radical no plano dos valores e

como uma força efetiva, capaz de provocar uma “regeneração da sociedade”.

Depois da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, os comunistas franceses, de maneira

relativamente autônoma, interromperam a política inaugurada em 1928 e adotaram uma

postura de conciliação com a social-democracia. Foi essa aliança inicial contra o fascismo que

redundou, em seguida, na estratégia eleitoral unificada. Dois acontecimentos importantes

antecederam a criação da Frente Popular na França. Em 1934, a direita nacionalista realizou

protestos contra o governo liberal. No próprio ano de 1936, uma série de greves violentas

ocorreu nos redutos industriais, especialmente na cidade portuária de Brest. A revolta surgiu

de modo espontâneo, em decorrência de algumas medidas do Estado para combater os

problemas econômicos. O movimento escapou ao controle das direções sindicais e se

radicalizou, ganhando a forma de violentos protestos de rua. A estratégia adotada pelo PCF,

preocupado com o seu desempenho nas eleições, foi refrear a revolta. A Frente Popular se

formou a partir dessa crise política e social para se tornar um baluarte contra a extrema-

direita. Todavia, ela não foi, de modo algum, somente uma aliança eleitoral das esquerdas;

foi, na realidade, um amplo movimento de mobilização popular que tinha sua base nas

organizações da classe operária. Por um breve período, surgiram as grandes manifestações de

massa, alimentadas pelo mito da vida coletiva e pela necessidade de organização da produção

econômica (Lefebvre, 1969b: 87). A burguesia foi obrigada a se retrair, com medo. Enquanto

isso, o movimento político de união das esquerdas se ampliava.

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39

Na medida em que crescia a possibilidade da vitória da coalizão dos partidos de esquerda,

a discussão política ganhava rapidamente um caráter mais internacional: na ordem do dia

estava a guerra civil na vizinha Espanha, o rearmamento do exército alemão e a expansão do

bolchevismo sediado em Moscou. Não era raro que se interpretasse esse conjunto de

acontecimentos ao mesmo tempo como sinal do agravamento da crise sistêmica capitalista, e

também como a abertura de uma possibilidade histórica para a via do socialismo. Uma visão

paroxista dessa situação levou Trotsky a afirmar, em relação à França, que só uma revolução

proletária poderia livrá-la do fascismo.16

No momento em que se deu um primeiro contato das

massas com a perspectiva da transformação social, os representantes das bandeiras políticas

revolucionárias se recusaram a colocá-las em prática. A esperança de modificação da

sociedade se desviou para a ideologia, diz Lefebvre (1969b: 89). Os comunistas não se

ocupavam do problema da tomada do poder; estavam mais preocupados em assegurar sua

influência política e sindical sobre a classe operária do que em abalar a ordem estatal. Sua

política era a dos resultados mais imediatos: maiores salários, melhores condições de trabalho,

maior participação no regime republicano. Essa estratégia, que associava a perspectiva de

mudança social ao melhoramento da sociedade existente, correspondia cada vez mais “às

necessidades de uma classe que procurava conquistar um lugar no sistema capitalista”

(Gombin, 1972: 17). Ao mesmo tempo, tratava-se de defender as instituições republicanas

contra um possível golpe conservador. A política do PCF tornou-se, portanto, abertamente

reformista, não obstante a sua fraseologia revolucionária. O PCF voltou-se para a colaboração

com os socialistas e, no plano internacional, ambos comprometeram-se com uma intervenção

em defesa da república espanhola.17

Internamente, todas as energias do partido foram

canalizadas para o movimento que levou Leon Blum ao cargo de primeiro-ministro.

Os escritos de Lefebvre nesse período acompanharam de perto esse conjunto de

acontecimentos. Ele trabalha como professor de filosofia do liceu durante toda a década de 30

e realiza uma série de viagens à Alemanha e uma aos EUA – esta última, juntamente com

16 No pequeno livro Aonde vai a França?, escrito em 1934, Trotsky criticou as origens da Frente Popular. Argumentou que,

ao contrário da Alemanha pré-1933, a França não necessitava de uma aliança dos partidos operários porque o fascismo local

não possuía bases de massa. A Análise de Trotsky respaldava-se em um esquema mais geral sobre a decadência da

civilização capitalista e, conseqüentemente, sobre a iminência de uma nova onda de revoluções proletárias. Entre o

socialismo e a degeneração capitalista (fascismo) restava um frágil sustentáculo “bonapartista” cuja base não ia além da

pequena burguesia arruinada pela crise. De acordo com Trotsky, a única maneira de evitar que as bases do regime se

dissolvessem em proveito de um regime pró-fascista era uma política de antecipação, isto é, a tomada do poder pelo

proletariado.

17 O movimento comunista parecia ignorar que, na guerra civil espanhola, não era apenas a República que estava em jogo,

mas também o avanço no sentido das transformações revolucionárias (em parte já realizadas por forças não-comunistas). Tal

como nas greves de Brest, os comunistas preferiram sustentar a república e denunciar a contestação social como uma

“provocação” anárquica.

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40

Norbert Guterman.18

Numa entrevista a La Nouvelle Critique, Lefebvre relembra os

acontecimentos daquela época: “Na própria Alemanha, durante minhas viagens, eu ficara

chocado com a contundência e o impacto emocional e político do hitlerismo” (1980b: 89). Em

1932, fazendo um balanço de sua trajetória, Lefebvre publica na pequena revista Avant-Poste

o texto “Do culto do Espírito ao materialismo dialético”, cujo subtítulo é “notas para uma

crítica da vida cotidiana”. Entre 1933-5, incorporou às impressões de suas viagens um estudo

da ideologia do fascismo que resultou no livro A consciência mistificada, publicado em 1936,

em parceria com Guterman. Lefebvre se dedicou a temas da filosofia marxista pouco

explorados pelos ideólogos do PCF, voltando-se para as questões da subjetividade e da

ideologia. Insistia na crítica do racionalismo cartesiano, mantendo-se fiel à perspectiva

dialética – único ponto que ainda mantinha em comum com Breton e os surrealistas, não

obstante a distância política e pessoal que os separava. O livro de 1936 é a primeira obra

teórica mais desenvolvida de Lefebvre e, ao mesmo tempo, um estudo pioneiro no interior do

marxismo francês em termos de uma interpretação não imediatamente política do fascismo.

Por que as massas o aceitavam, junto com uma guerra ainda mais violenta que a anterior? A

explicação econômica não bastava para chegar a uma resposta satisfatória. Era preciso buscá-

la na consciência popular cotidiana. Os temas políticos, com efeito, apareciam mediados pela

problemática da alienação e da mistificação da consciência. Lefebvre resume a tese central da

obra afirmando que “nem a consciência individual, nem a consciência coletiva podem servir

de critérios autênticos de verdade” (1975: 71). Ainda de acordo com ele, “tentamos uma

análise concreta da situação, demonstrando como a classe operária não está isolada na

sociedade, como se fosse dotada de uma forma privilegiada de ver a verdade” (1975: 73).

O tema da mistificação já havia sido abordado em escritos anteriores (para o segundo

número de Avant-Poste). Um dos textos que constava nesta efêmera publicação chamava-se

“A mistificação: para uma crítica da vida cotidiana”. A preocupação teórica com o cotidiano

nasceu, portanto, atrelada aos conceitos de mistificação e alienação. Mas o livro de 1936,

apesar disso, não está centrado no desenvolvimento imediato dessa crítica. Ele colocou em

primeiro plano a afirmação de que as relações de produção capitalistas pressupõem, para se

reproduzirem, que a classe operária ignore os mecanismos a que está subordinada no processo

de exploração. Essa tese, aparentemente banal, se chocava diretamente com as abordagens

18 Guterman foi expulso do partido e denunciado à polícia no início dos anos 30. Exilado nos EUA, tomou parte de um

conjunto de estudos vinculados ao Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt (na Califórnia) que prolongavam as análises

realizadas junto com Lefebvre em 1936. Guterman trabalhou com Leo Löwenthal em Profetas do embuste, abordando as

técnicas demagógicas do discurso político (Jay, 2008: 298). Depois da guerra, realizou diversas traduções, entre elas alguns

escritos de Lefebvre.

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mais rígidas do marxismo. Contrapunha-se, por exemplo, à idéia “otimista” de que a

consciência da classe operária permanecia imune à sedução das ideologias reacionárias. Era,

nesse sentido, não só uma análise das mistificações inerentes à exploração capitalista, mas

uma crítica da mistificação que os próprios marxistas produziram em torno da “missão

histórica” da classe operária. Igualmente importante para Lefebvre foi a constatação de como

a consciência de classe tendia a se atenuar numa sociedade capitalista economicamente mais

desenvolvida, como os EUA, esvaziando a polarização social que ainda se fazia presente na

realidade européia. Com efeito, o livro foi alvo de ataques violentos no interior do PCF.

Politzer, que havia ajustado sua perspectiva teórica à linha do Partido, foi quem proferiu as

críticas mais duras. Os autores de A consciência mistificada, no entanto, se recusavam a ver a

política de massas do fascismo como um fenômeno superficial. Ele atingia “camadas

profundas do país” (Lévy, 1992: 136), e seu êxito não podia ser atribuído somente a uma

orientação pouco combativa da social-democracia.19

Por isso o fascismo se impôs não só entre

as camadas médias e a juventude, mas também no interior da classe operária, como Lefebvre

constatou in loco após a chegada de Hitler ao poder.

Nesse momento, Lefebvre não se contrapunha apenas ao marxismo vulgar e sua teoria do

fascismo, mas também tomava como alvo, ainda que somente de modo indireto, as

abordagens desenvolvidas por Lukács em História e consciência de classe (1923). A análise

original de Lukács a respeito da lógica da mercadoria e da “reificação” das relações sociais

antecipou de maneira notável um conjunto de questões que só começaram a ser debatidas no

interior do marxismo a partir da difusão dos textos inéditos do “jovem Marx”.20

Mas, em que

pese a influência dos estudos de Lukács sobre a teoria da alienação que Lefebvre começava a

desenvolver, o que este reprovou nas teses do marxista húngaro foi o fato delas terem

emprestado à classe operária uma roupagem filosófica (de inspiração hegeliana) que

reproduzia, em um plano mais abstrato, a mesma ilusão promovida pelas abordagens

marxistas tradicionais. A tentativa de demonstrar que, em função de sua posição na estrutura

da produção capitalista, somente o proletariado teria acesso a uma visão privilegiada do

conjunto do processo histórico, mostrou-se profundamente mistificadora. Lefebvre definiu-a

19 Analisando a situação da Alemanha, a Internacional Comunista considerou o fim do regime democrático burguês como um

“avanço” para a revolução proletária. Não era outro o ponto de vista dos comunistas franceses. Lefebvre recorda uma

conversa com Nizan na qual este dizia: “„Isso vai durar vinte anos, e a Alemanha hitlerista acabará voltando-se para o

socialismo e o comunismo!‟ Eu não estava de acordo com ele. Dizia: (...) A Alemanha é mais hitlerista do que você imagina;

e as coisas não serão tão fáceis; haverá catástrofes‟” (Lévy, 1992: 136).

20 Em obras posteriores, Lefebvre vai demonstrar seu desacordo também em relação à teoria da reificação, ou, mais

especificamente, à superestimação da capacidade das relações sociais assumirem integralmente a forma de relações entre

objetos.

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como uma “metafísica da classe operária” (1986: 29), na qual a “consciência do proletariado”,

identificada com a culminação da dinâmica histórica, tornava-se capaz de abarcar a totalidade

social.

A leitura de Lukács transferia as figuras do pensamento hegeliano para o contexto da luta

de classes (o proletariado como “sujeito-objeto” idêntico) e, em termos mais concretos, tendia

a minimizar os efeitos que as contradições imperialistas exerciam sobre a consciência de

classe. Mas, o conjunto dos episódios acumulados entre a onda revolucionária do início da

década de 20 e o ano de 1933 tornou inverossímil a idéia de que o ponto de vista do

proletariado poderia ser tomado como uma garantia do conhecimento da totalidade. Por isso,

o fato do povo alemão, incluindo uma grande parcela da classe operária, entregar-se ao

fascismo foi visto por Lefebvre como uma refutação prática de um dos argumentos centrais de

História e consciência de classe (1986: 20).

Outra contribuição de Lefebvre no período anterior à Segunda Guerra Mundial foi um

estudo sobre a questão nacional. Seu O nacionalismo contra as nações, de 1937, fazia parte

do esforço de teorização do PCF no contexto da Frente Popular. Ao contrário do livro

anterior, este último se engajava diretamente no projeto partidário, juntamente com os

trabalhos de Thorez e Politzer sobre o mesmo tema. O PCF ensaiava os primeiros passos da

teoria da “frente nacional”, desenvolvida no pós-guerra, valorizando a herança da tradição

nacional inaugurada pela Revolução Francesa. Na edição original, um prefácio de Nizan

anunciava uma reconciliação entre a forma e o conteúdo da nação. Essa guinada “nacional”

correspondia a uma evolução similar na URSS (simbolizada, por exemplo, pela recuperação

da figura lendária de Alexander Nevski no cinema de propaganda). No caso da URSS, a

ameaça de uma agressão alemã fez com que a tentativa inicial de combate ao nacionalismo

russo e de criação de um “povo soviético” fosse subitamente modificada com o propósito de

infundir o espírito patriótico em todo o país. Para os comunistas franceses, o mais importante,

do ponto de vista da estratégia política, era apagar a imagem bastante difundida de um

“internacionalismo” bolchevique contrário aos interesses da França. O PCF voltou-se, então,

para os ideais da liberdade e da democracia inspirados na Revolução de 1789.

A especificidade da abordagem de Lefebvre a respeito da nação reside na abrangência e na

multiplicidade das suas leituras e referências. Pela riqueza e abrangência das análises, o livro

de Lefebvre faz da questão nacional um problema teórico.21

Ele analisa as doutrinas fascistas

e pré-fascistas (Müller van der Bruck, Rosenberg), bem como a história da formação do

21 Cf. A apresentação a Le nationalisme contre les nations por Michel Trebitsch. Paris, Méridiens klincksieck, 1988.

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“sentimento nacional”, recorrendo a autores com os quais os marxistas franceses estavam

pouco familiarizados, a exemplo de Émile Durkheim, Max Scheler, Le Bom, etc. Analisa,

além disso, as obras de geógrafos eminentes das escolas alemã e francesa, como Ratzel e

Vidal de la Blache. A tese central do livro é que a Nação, produto histórico da ação de uma

comunidade, se destaca do contexto coletivo que a criou e aparece, no plano das

representações sociais, como uma substancia autônoma ou transcendental. Para Lefebvre, o

discurso nacionalista alimenta-se da substância da cultura nacional para, em seguida,

transformar seus símbolos em fetiches.

No início de O nacionalismo contra as nações encontramos um capítulo sobre a

“psicologia do sentimento nacional”: após uma exposição da “tomada de consciência de si da

nação”, com a Revolução Francesa, e do advento da reflexão marxista sobre o tema, são

abordados os autores que influenciaram diretamente as doutrinas do conservadorismo francês,

sobretudo Barrès e Maurras. O ponto de partida do primeiro foi o individualismo extremo,

que chegou a se tornar uma influência dos “espíritos negadores” e dos rebeldes. Sartre,

escrevendo em uma perspectiva histórica, situou Barrès entre aqueles que pretendiam “lançar

tudo por terra” e durante o “processo de Dadá”, nos anos 20, tornou-se evidente a importância

da primeira fase do escritor. Mas, em seguida, observa Lefebvre, Barrès abandona o

individualismo, voltando-se para os temas do nacional e do local, além do principal mote das

ideologias reacionárias: a reflexão sobre as origens (1988: 57). A substância do “eu”, não

mais definida como atividade presente, liberdade criadora ou sentimento de comunidade com

outros indivíduos, passava a se definir a partir da tradição e da raça, enquanto a idéia de nação

perdia o contato com os indivíduos vivos e atuantes, para representar uma “união mística”

entre a terra natal e os antepassados. A estrutura hierárquica da religião tornava-se um simples

meio, subordinado e usado pela política nacional, ao passo em que esta se convertia na

representação da “elevação espiritual”. No projeto de Barrès, o nacionalismo renunciava aos

vínculos com o ideário jacobino-revolucionário. As ideologias universalistas foram

denunciadas por ele como variantes do “internacionalismo” e este último como um

instrumento nas mãos dos judeus e dos demais “inimigos da nação” (1988:59).

Depois de Barrès, prossegue Lefebvre, o conservadorismo teve continuidade com a

doutrina da reação monarquista elaborada por Maurras. Com essa doutrina de grande

repercussão na França da primeira metade do século XX, tendo seu auge nos anos de 1937-8,

concluía-se o vínculo entre a política reacionária e o “sentimento nacional” – o que Barrès

realizara apenas no plano literário. A ideologia de Maurras, vista pelos comunistas como um

reflexo do agravamento da decadência ideológica burguesa, unificava dois princípios de

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épocas históricas totalmente distintas: a monarquia, originada na idéia de propriedade eterna

do solo e na figura do rei, e o patriotismo, de origem revolucionária, com sua referência no

conceito impessoal de nação. Do mesmo modo que o fascismo, o pensamento de Maurras

continha uma crítica da democracia formal que o levou a combater o regime republicano do

entre-guerras e a apoiar o governo colaboracionista de Vichy, entre 1940-44. Tal como no

discurso de Rosenberg, durante a ocupação, no qual o intermediário do Füher anunciava um

“acerto de contas” com as idéias de 1789, o nacionalismo francês tornou-se o porta-voz da

contra-revolução. Os comunistas enxergaram nessa atitude uma submissão ao poder do

invasor alemão: falaram do socialismo como uma vingança tardia contra o banho de sangue

que as elites de Versalhes impuseram ao povo de Paris em 1871, ao mesmo tempo em que

estas se encontravam submetidas às vontades de Bismarck. Assim, o PCF, identificado com

os eventos históricos da Comuna, associava diretamente a causa da emancipação dos

trabalhadores à libertação nacional: “nossa luta é a mesma dos membros da Comuna, que

haviam unido indissoluvelmente a causa da emancipação dos trabalhadores à da liberdade da

pátria. Essa luta dará à França e ao mundo o pão, a liberdade e a paz” (Politzer, 1978: 310).

Em um registro semelhante, Lefebvre afirma que o socialismo luta por uma renovação do

sentimento nacional e pela instauração de uma “comunidade nacional popular”. Ele o adotaria

sob uma forma “mais complexa e mais elevada, com um vocabulário e um simbolismo novos”

(1988: 83). Seu objetivo, no entanto, seria uma nação de tipo novo, sem “nacionalismo”. O

fascismo, pelo contrário, é internacional por essência, na medida em que representa os

interesses do grande capital financeiro. Ele é internacional, mas não internacionalista (1988:

85). A solução marxista para o problema nacional, diz Lefebvre, é a única que permite aceitar

o elemento de progresso da realidade nacional, emprestando-lhe novo significado: A

definição marxista de nação expressa o que existe de universal e humano, para além dos

“nacionalismos” e das políticas imperialistas de expansão e conquista (1988: 107). O fascismo

apresenta-se como o inverso, fazendo da nação uma abstração mítica. Na Alemanha, a

variante hitlerista do fascismo apresentou a nação em uma versão “dinâmica”, em permanente

construção. Isso porque o problema da unidade alemã ainda não estava resolvido, sobretudo

no aspecto administrativo e cultural. Os nazistas enalteceram a nostalgia de elemento cultural

que se arrastava na literatura e no pensamento alemão muito antes da realização de uma

unidade político-econômica, a comunidade. O mito comunitário foi alimentado em um

contexto mundial de crise econômica e crescente individualismo. O “nacional-socialismo”

propôs como objetivo a realização da “autêntica comunidade alemã”, que não passava de uma

pseudo-comunidade, aparente e formal, imposta a partir da destruição modernizadora dos

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particularismos e da diversidade cultural. Os partidos e do sistema democrático também foram

eliminados, enquanto o problema do anti-semitismo, alimentado pela crise, reaparecia na

propaganda mistificadora do projeto “nacional-socialista” - isso em um momento histórico

que tendia cada vez mais à assimilação cultural dos judeus. Para criar uma “comunidade

orgânica total” (1988: 155) era necessário superar as divisões do povo alemão, entre elas as

divisões de classe e de castas. Produziu-se então a imagem de uma alteridade radical a partir

da qual se fazia possível afirmar a “unidade mítica”, fundada no elemento racial. O projeto

exigia uma adesão integral dos indivíduos, uma nova religião, a redução das mulheres à

função biológica da reprodução e a destruição das aquisições da cultura alemã.

Lefebvre conclui sua reflexão com uma exortação da comunidade nacional, distinguindo,

para tanto, dois tipos de comunidades: a primeira é a produzida pela mitologia nacionalista e

assume a forma de uma totalidade fechada. Tende, com sua rigidez, ao isolamento, à negação

do movimento, à exclusão do “outros” e à formação do Estado totalitário. Um segundo tipo,

edificado na URSS, representaria a nação nova, com características mais abertas e

assimiladoras. Em tais condições, as culturas nacionais manifestar-se-iam como diferenças e

particularidades no interior de uma “universalidade concreta”. Desse modo, ratificava-se a

orientação da Terceira Internacional de que a construção do socialismo ocorreria junto com a

expansão das “civilizações nacionais” (Lefebvre, 1988: 184). A URSS aparecia, nesse

contexto, como a grande Pátria do socialismo, o que produzia outras formas de mistificação.

Na França, o PCF respondia às ideologias nacionais reacionárias do “sangue e do solo” (Blut

und Boden) com a reunião dos elementos da “cultura nacional”, a partir da qual se constituiria

uma autêntica comunidade. Em um quadro como esse, a defesa da cultura nacional no interior

do movimento comunista assumia um ar fantasioso ou, no míniomo, exageradamente

otimista. A despeito de seu caráter ideológico, essa posição tornava-se mais concreta pela

capacidade de mobilização imediata através da exploração do sentimento nacional enraizado

nas populações - recusando-se a tratar o nacionalismo como um problema exclusivamente

burguês (tese “extremista” defendida por Rosa Luxemburg e outros marxistas). Os comunistas

faziam da defesa da cultura o fundamento de um novo humanismo: acreditavam que o

significado da questão nacional passaria por transformações durante o período de “declínio”

do capitalismo e que a ascensão do socialismo daria um caráter social à problemática da

nação, historicamente ligada à consolidação da sociedade burguesa. Para Lefebvre, somente

as pretensões universalistas do socialismo seriam capazes de criar uma base cultural comum

para toda a humanidade. Sobre essa base, o “homem total”, entendido como a afirmação plena

das possibilidades do indivíduo compreendido como ser social, se realizaria concretamente.

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A participação de Lefebvre no debate político do período da Frente Popular o distanciou da

perspectiva esboçada pela convergência das vanguardas na década anterior. O PCF adota não

só o modelo de crescimento e planificação da URSS, como recorda Lefebvre, mas também o

seu “aparado político”. Mas ao mesmo tempo, o movimento se enraizava na classe operária

francesa. A ampla mobilização da esquerda em torno da defesa nacional jogava o discurso

surrealista na penumbra. Um texto de Crevel, escrito para o Congresso em Defesa da Cultura,

foi a última tentativa de conciliação entre revolta poética e revolução social: “não buscar um

acordo entre o próprio ritmo e o movimento dialético do universo é, para o indivíduo, correr o

risco de perder todo o seu valor e toda a sua energia” (apud Lottman, 2009). Com o suicídio

de Crevel, a última ponte ruiu. Após o Congresso, Breton, mantendo-se fiel à crítica do

ideário patriótico, organiza a revista Contre-attaque junto com Georges Bataille, um escritor

original, que havia aglutinado vários ex-surrealistas em torno de um projeto “concorrente” –

Bataille havia participado, antes de fazer as pazes com Breton, das atividades de um pequeno

grupo animado por Souvarine, o Circulo Comunista Democrático. Com a nova publicação,

ambos tentavam construir uma alternativa ao pacifismo da esquerda. Bataille era um escrito

original que rompeu publicamente com Breton em 1929, com um panfleto ironicamente

intitulado “Um Cadáver”, dessa vez voltado contra o “Papa” do surrealismo. No “Círculo”

desenvolveu estudos variados, sob influência de Marcel Mauss e Durkheim, além de um texto

sobre “O problema do Estado” no qual assumia posições libertárias. Desde 1933, realizara

estudos sobre a psicologia do fascismo, insistindo na apropriação das armas ideológicas do

inimigo. Bataille opunha à via da “filosofia racional” adotada pelo PCF uma política do

excesso baseada na “aspiração fundamental dos homens à exaltação afetiva e ao fanatismo”

(Nadeau 2008: 151). Seu sonho, diz Michel Leiris, “talvez fosse encontrar, em proveito da

esquerda, meios de propaganda tão eficazes quanto os empregados pela extrema direita”

(Lévy, 1992: 198). Breton era igualmente destoante, minimizando as diferenças entre a

Alemanha de Hitler e a burguesia francesa. Também era adepto da violência revolucionária,

contra os partidários da paz. Aproximando-se de Trotsky, julgou que a Frente Popular não

passava de uma estratégia das direções stalinistas para organizar as derrotas do proletariado na

Europa. Como os demais surrealistas, acreditava que estava sendo gestado outro “1914”, o

ano da “traição patriótica” dos dirigentes da social-democracia. Por isso, evocavam a antiga

palavra de ordem “nem paz, nem guerra”, justificada em uma declaração coletiva na qual

recusavam tanto a Europa dos regimes totalitários quanto a originada de Versalhes. No

entanto, o “contra-ataque” de Breton e Bataille não conseguiu ir além de uma pequena

associação, quase clandestina, de intelectuais. O vínculo com Trotsky, igualmente isolado,

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acossado pelos agentes de Stálin, oferecia escassas oportunidades de atuação. Em 1938, após

um encontro no México, Breton, o pintor Diego Rivera e Trotsky elaboraram o manifesto por

uma “arte revolucionária independente”, lançando um movimento de oposição internacional

contra o dirigismo ideológico nas atividades culturais. A essa altura, a estética do surrealismo

despertava grande interesse fora da França, ganhando o mundo em uma grande exposição

internacional. Fora de Paris, surgiram novos grupos, além dos já existentes em Bruxelas e

Praga. Foi a partir desse momento que Breton começou a falar mais abertamente do

surrealismo como um movimento “artístico”. A crítica do modo de vida burguês, que se

iniciou como uma revolta do espírito e aderiu, na seqüência, à política revolucionária, foi,

afinal, privada dos meios de ação. O sentimento de impotência diante de uma guerra iminente

e da falta de alternativas concretas fez o surrealismo refluir para o domínio estético,

declarando-se a favor da “independência da arte” como meio de libertação. Em contraste com

o “Manifesto” de 1924, que menciona uma única vez a atividade artística, e apenas para

constatar os limites da atitude realista, toda a concepção surrealista da vida, da atividade

criativa e da crítica em ato, parecia se reduzir a uma atividade especializada no âmbito da

produção cultural.

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1.5 Hegel e Marx

Desde a sua entrada no PCF, Lefebvre empreendeu um grande esforço de aprofundamento de

seus conhecimentos dos clássicos do pensamento marxista. Esse período conturbado no plano

dos acontecimentos políticos foi também o de uma intensa atividade teórica dedicada ao

pensamento de Marx e à filosofia alemã. Foi um período de isolamento dentro do partido. Sua

companhia mais próxima era ainda o amigo Guterman, com quem realizou os projetos de

tradução dos escritos de Marx e Hegel.

Um acontecimento importante para o desenvolvimento geral da teoria marxista marcou o

início da década. Foi a publicação, em 1932, dos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844)

de Marx. Guterman e Lefebvre traduziram o texto de Marx em 1933. No ano seguinte,

publicaram na Avant-Poste, revista que manteve viva a pretensão de reflexão filosófica

independente, um conjunto de obras escolhidas da juventude do pensador alemão. Em 1935,

traduziram para o francês excertos das anotações de Lênin sobre Hegel. Eram os cadernos de

estudos realizados na Suíça entre 1914-5. O material foi publicado na França com o título de

Cadernos sobre a dialética de Hegel. Em 1938, Lefebvre publicou ainda uma coletânea de

escritos escolhidos de Hegel. A escolha dos textos desse período não foi aleatória. Fazia parte

de uma estratégia de confrontação teórica com as leituras marxistas tradicionais. Era

sobretudo a tradição dialética que Lefebvre e Guterman tentavam recuperar. Foi um trabalho

incansável de difusão de novos temas associados ao pensamento de Marx, a começar pela

“antropologia filosófica” dos “Manuscritos” de 1844.22

Contrariando a tendência

economicista que impregnava o marxismo daquela época, o problema do “humanismo”

começou então a assumir um lugar de destaque nos debates teóricos em torno da obra de

Marx.

A importância atribuída a Hegel não foi menos significativa. Apesar da introdução do

hegelianismo na França ao longo dos anos 30 (principalmente através da leitura igualmente

“humanizadora” divulgada nos cursos de Alexander Kojève), o marxismo francês permaneceu

bastante refratário à tradição dialética. Prevalecia nos meios comunistas a imagem de Hegel

como um “mistificador” da dialética, ou até mesmo como um pensador da reação

conservadora. Além disso, a escola dos materialistas franceses do século XVIII foi resgatada

22 Falando sobre a introdução das idéias marxistas na França, Garaudy refere-se a Lefebvre nos seguintes termos: “é

incontestável que vários de seus livros, sobretudo durante o período de pré-guerra, desempenharam um profícuo papel na

vulgarização de certos temas do marxismo até então pouco estudados...” (1968: 333).

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no interior do movimento operário, como uma continuação do pensamento racionalista ao

qual o materialismo dialético, por sua vez, devia “completar”. Os marxistas franceses estavam

empenhados em reconstituir a história da sua filosofia “nacional”, de Descartes aos

Enciclopedistas, e de apresentar a obra de Marx e Engels como a culminação “científica” do

longo percurso da racionalidade moderna. De Hegel só era retido esse elemento do

“progresso” da razão, juntamente com o “método” que, uma vez despojado de suas

mistificações idealistas, poderia ser empregado pelo materialismo dialético. Precedia-se de

modo a “inverter” o pensamento de Hegel, dentro de um novo enquadramento fornecido por

uma filosofia materialista do “ser”. Os ensaios de Politzer escritos ao longo da década de 30

são representativos dessa tendência. Nizan foi ainda mais longe, escrevendo um breve estudo

sobre o materialismo da Antiguidade no qual aproximava Epicuro e Marx, investindo contra

as “calúnias” lançadas por Hegel contra o filósofo do jardim. As inclinações deterministas

dessas formulações não tardaram a se revelar. Coadunavam-se, além disso, à prática

reformista do PCF. Tais abordagens não estavam em total desacordo com a leitura de Hegel

realizada por Lênin nos “Cadernos” da Suíça. Contudo, elas tendiam a eliminar algo que

Lênin havia realçado com insistência: o “idealismo inteligente” está mais próximo do

“materialismo inteligente” do que o “materialismo estúpido” (Cf. anotações dos Cadernos

sobre as “Lições de História da Filosofia”) – ou ainda: “... o idealismo objetivo, e, mais ainda,

o idealismo absoluto, chegaram muito perto do materialismo e até mesmo, em parte,

transformaram-se em materialismo”. (Lênin apud Lefebvre, 1995: 244).

Durante muito tempo, somente os surrealistas fizeram a defesa de Hegel no debate francês.

Estes consideravam o caráter revolucionário da dialética e, no fundo, seu projeto de

reconciliação da arte com a vida deve muito ao filósofo de Iena. Os seminários de Kojève, por

sua vez, deram uma contribuição substancial - ainda que muito pouco “ortodoxa” 23

- para a

reinterpretação da obra de Hegel. Influenciado pelo clima existencialista de então, seus

comentários sobre a Fenomenologia do Espírito deixaram de privilegiar o percurso

“autônomo” da realização da razão, para desenvolver um aspecto particular dessa obra: a

dialética do senhor e do escravo - aspecto que se encontra igualmente nas raízes do

pensamento marxista. Em conseqüência, no Hegel tal como fora lido por Kojève, o progresso

da liberdade humana torna-se o produto da luta sangrenta através da qual os servos colocavam

23 “Independentemente do que pensa Hegel, a Fenomenologia é uma antropologia filosófica. Seu tema é o homem como

humano, o Ser real na história”. (Kojève: 2002: 37).

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50

a história em movimento para conquistar sua libertação.24

Mas, a renovação do interesse dos

franceses por Hegel não se limitou aos cursos de Kojève ou às declarações pomposas de

Breton. O filósofo foi resgatado a partir de leituras classificadas por Lefebvre e Guterman

como parte de uma onda de “misticismo pós-hegeliano”. Garaudy (1968), abordando o

mesmo período, falou a respeito de um “neo-hegelianismo existencial” que compreendia,

além de Kojève, os estudos de Jean Wahl e Jean Hyppolite.

Quando Lefebvre se defrontou com os “Cadernos” de Lênin, se deu conta de que, ao

contrário da maior parte dos seus contemporâneos, o revolucionário russo possuía uma clara

compreensão do papel de Hegel para o desenvolvimento do pensamento marxista. Daí o

famoso aforismo: “É completamente impossível entender O Capital de Marx, e em especial

seu primeiro capítulo, sem ter estudado e entendido a fundo toda a Lógica de Hegel” E

concluía: “Por conseguinte, há meio século nenhum marxista compreendeu Marx!” (1974:

172). Lefebvre se mostrou muito mais receptivo em relação à Hegel do que seus

companheiros do PCF, embora sua abordagem não deixasse de conter aspectos da “ortodoxia”

marxista da época. A versão resumida dos “Cadernos” por ele editada concentrou-se na seção

referente à leitura da Lógica. Hegel representaria o otimismo burguês e sua idealização do

progresso, embora existisse nele uma crítica do evolucionismo vulgar. Este foi um dos

aspectos que interessaram mais diretamente a Lênin, e que não deixou de exercer influência

sobre as suas interpretações mais tardias das “etapas” da revolução russa ou sobre o papel das

contradições internas no estudo da dinâmica do imperialismo. Isso porque “o intuito de Lênin

era captar na abstração aquilo que ela tem de concreto e atual”, como notaram Lefebvre e

Guterman (1938: 8). Hegel foi responsável pelo desenvolvimento da forma mais elevada da

elaboração dos conceitos. Muitas vezes, por trás de abstrusas elaborações conceituais,

escondiam-se observações muito concretas a respeito da história e da sociedade. Mas,

segundo Lefebvre e Guterman, a filosofia de Hegel representava, ao mesmo tempo, a

passividade da burguesia. Ao contrário de Kojève, que valorizou, por assim dizer, o lado

subjetivo da dialética, Lefebvre e Guterman afirmaram que o sistema hegeliano refletia de um

modo “invertido” o “automatismo do mundo” (1938: 12), apresentado sob a forma do

“espírito”, que, por sua vez, revelava a passividade do indivíduo burguês diante do

“automatismo do capital” (1938: 71).

24 “... o senhor não consegue nunca ultrapassar a liberdade realizada nele e a insuficiência dessa liberdade. O Progresso na

realização da liberdade só pode ser efetuado pelo escravo, que parte de um ideal não realizado de liberdade. (...) De modo

geral, é o escravo, e apenas ele, que pode realizar um progresso, que pode ultrapassar o dado, e – em particular – o dado que é

ele próprio” (Kojève: 2002, 171).

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51

O abalo dos fundamentos da sociedade burguesa, que pôs fim ao capitalismo liberal,

colocou em questão a idéia dominante de progresso. Para Lefebvre, a Aufheben25

hegeliana

desempenhou um importante papel em meio a essa crise: ela se apresentava como uma visão

histórica mais “flexível” e completa que a idéia burguesa de um progresso contínuo, linear e

automático. A noção dialética de “superação” seria sempre “concreta e específica”; permitiria,

de acordo com os momentos específicos, tanto a continuidade quanto a possibilidade do seu

contrário (1938: 65). Lênin teria sido responsável pela ênfase no problema da práxis, o

“imperativo da ação”. Para demonstrá-lo, os dois comentadores dos “Cadernos” lançam mão

de um conceito que, em todo caso, não desempenha um papel central nos textos de Lênin: o

“possível”. Dizem eles: “A Liberdade compreende, utiliza, domina o determinismo. O

possível verdadeiro e verdadeiramente aberto é prático e concreto” (1938: 78).26

Ao recusar a

interpretação “tradicional” do marxismo, que é também a de Lênin, Lefebvre e Guterman

afirmam que a categoria da “superação” deve ser pensada como um princípio ético, um

produto da ação humana tendo em vista as exigências do presente, e não como um

pressuposto automático situado “mais além” da história vivida pelos homens. Os dois

avançavam ainda mais na crítica do dogmatismo mostrando que os cadernos de estudo Lênin

sobre Hegel representaram uma ruptura com aspectos importantes de sua compreensão teórica

anterior. A visão de Lênin a respeito da dialética ainda não estaria completada em 1908,

quando da publicação de Materialismo e Empiriocriticismo. Nesse sentido, os “Cadernos”

assinalaram um importante aprofundamento do seu pensamento. Mais precisamente, a teoria

materialista do conhecimento teria sido reintegrada em uma perspectiva mais abrangente, que

é a do “Homem total” (1938: 101). A mudança de perspectiva acarretava, como conseqüência

maior, toda uma série de relativizações no interior da “teoria do reflexo”.27

Mas, independente

25 Dépassement na tradução de Lefebvre e Guterman.

26 A ênfase no “possível” desempenha aqui um papel contrário às concepções deterministas do progresso. Por outro lado,

omite o fato de que a leitura teórica que Lênin faz de Hegel no que diz respeito à relação entre determinismo e liberdade se

caracteriza não pela introdução da “abertura” para o possível, e sim para uma mera “inversão materialista” do automatismo

social presente no sistema hegeliano. Para Lênin, o motor da história não é o auto-movimento do espírito, mas o

desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. A liberdade é interpretada por Lênin em termos hegelianos, ou seja,

como uma tomada de consciência da necessidade (Cf. entre outros, o resumo do livro de Georges Noël sobre Hegel nos

“Cadernos”), e a práxis atua de maneira determinante apenas na medida em que “compreende” as “leis do desenvolvimento

da sociedade” e o sentido do processo histórico. O socialismo aparece como um produto irresistível dessas leis, isto é, das

contradições internas do capitalismo. Mas, longe de recusar o papel da práxis no processo de transformação que tende à

forma de sociedade mais elevada (e que pressupõe um “momento” de decadência da sociedade burguesa), o papel da teoria

marxista (leia-se, o papel desempenhado pela ciência, intelectuais, “vanguarda”, etc.), sempre segundo Lênin, consiste

justamente em apreender o sentido histórico para guiar uma prática em consonância com o período de ascensão do

socialismo.

27 Compare-se a esse respeito o livro, bastante difundido, do editor do L‟Humanité, Georges Cogniot (1974). Tal como os

escritos de Politzer nos anos 30, é uma obra representativa da “linha” partidária em matéria de filosofia. Nela os “Cadernos”

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52

da importância teórica dessa primeira edição dos “Cadernos”, ela praticamente não teve

repercussão. Alguns anos depois, Lefebvre afirmaria que, naquela ocasião, um livro sobre

Hegel “chegava adiantado em relação ao estado dos estudos marxistas na França” (1969:

145).

A relação entre Hegel e Marx é um dos temas principais de outra obra de Lefebvre, O

Materialismo Dialético, de 1939. Como assinala Perry Anderson, este é “o primeiro trabalho

teórico importante a formular uma nova interpretação da obra de Marx como um todo à luz

dos Manuscritos de 1844”. (1989: 77). E, nas recordações de Edgar Morin, que integrou as

fileiras do PCF no fim dos anos 40, O Materialismo Dialético contribuiu para lhe mostrar

“um aspecto do comunismo stalinista radicalmente distinto de sua propaganda ritual” (1973:

42). Outra obra importante para a elaboração do texto em questão é A Ideologia Alemã,

também publicada (integralmente) apenas em 1932. O que Lefebvre nos oferece nesse livro é,

de fato, toda uma “nova interpretação” de Marx, utilizando-se de textos até então inéditos,

abarcando uma enorme quantidade de assuntos e explorando as relações entre Marx e Hegel.

Era um projeto extremamente ambicioso, que tentava devolver ao pensamento de Marx a sua

amplitude original. Mesmo assim, seu estudo permanecia impreciso em muitos pontos, como

o próprio autor reconheceu mais tarde, e não imune às influências do dogmatismo marxista da

época.28

Na primeira parte do estudo, Lefebvre apresenta o conteúdo das obras de juventude de

Marx e os novos conceitos que elas introduzem: “alienação”, “práxis”, “Homem total”,

“totalidade”, etc. A partir de tais conceitos, tornava-se possível redefinir a relação entre Marx

e Hegel e, além disso, combater a versão dogmática do marxismo como uma filosofia

sistemática da natureza. Isso explicava a grande desconfiança nos meios dirigentes do

movimento comunista em relação às obras da juventude de Marx, as quais acreditava-se

estarem contaminadas pelo idealismo alemão. Na França, as posições mais alinhadas à

“ortodoxia” comunista em matéria de filosofia encontravam-se nos escritos de Politzer. Neles

a elaboração forjada no tempo da Segunda Internacional seguia impassível, sem que as

questões suscitadas pelas obras de juventude de Marx modificassem seus esquemas. Todo o

curso de Politzer na Universidade Operária, entre 1935-6, se baseava na contraposição radical

entre as “visões de mudo” idealista e materialista, e no estudo das leis fundamentais da

não desempenham nenhum papel na evolução do pensamento de Lênin. O autor limita-se a informar que o material ao qual

Lênin se dedicou na Suíça é um dos “mais abstratos do mundo” e que sua intenção era desvendar o conteúdo “vivo”

escondido por trás dessas “abstrações mortas”.

28 Cf. o prólogo à 5ª edição francesa (1961) de O materialismo dialético em Lefebvre (1999).

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53

sociedade a partir de uma idéia de confiabilidade absoluta oriunda das ciências naturais.29

O

tema da alienação não foi encarado como um problema central, mas como uma simples etapa

percorrida pelo pensamento de Marx e devidamente superada em sua teorização “madura” e

“científica”.30

No dizer de Lefebvre, “as autoridades ideológicas do movimento operário

pressentiam, não sem razão, que uma leitura cuidadosa dessas obras recém publicadas

introduziria grandes mudanças na compreensão do pensamento de Marx” (1999: 3).

Lefebvre realizou uma longa exposição do hegelianismo e de suas principais

conseqüências teóricas. Nos marcos dessa exposição, destacava-se a tese segundo a qual tudo

aquilo que se desenvolve no interior das categorias especulativas do “Sistema” de Hegel faz

parte de uma teoria da auto-produção do homem e da sua alienação. O ponto de partida de

Marx foi, desde o início, a crítica do hegelianismo. Embora este sistema não aceite o mundo

tal como nos é dado imediatamente, ressaltando os seus conflitos e contradições, sua

tendência permanece essencialmente especulativa. Hegel tem a pretensão de esgotar e definir

o mundo. Ele não se limita a dar um conteúdo à forma da razão, mas pretende preencher

totalmente esse conteúdo. O pensamento racional, no entanto, só apreende a si mesmo e se

converte na origem de tudo. Toda a realidade concreta aparece então como um

desenvolvimento da Idéia, apresentada em suas diversas manifestações ao longo da História.

A natureza, então, não é mais do que a alienação do “espírito”, de modo que o movimento

incessante do pensamento passa a girar sobre si mesmo. O conceito se converte no próprio

conteúdo e assim, além de sistematizar o mundo, Hegel o encerra em uma totalidade fechada.

Nesse conjunto de conceitos especulativos, seguindo a leitura de Lefebvre, as contradições

acabam sendo destruídas, tanto quanto na lógica pura que Hegel pretendia superar. Por isso, a

“realização do Espírito”, encarnada objetivamente no Estado, é tomada como uma superação

das contradições do mundo. A consciência dos fins universais, representada pela burocracia

estatal, promoveria a síntese dos interesses particulares. É nesse ponto que surge a crítica de

Marx. Ao romper com o esse sistema, Marx considera o Estado não como a “realidade efetiva

da idéia ética” (Hegel), mas, ao contrário, como uma realidade que se impõe de modo

opressivo sobre os homens. As obras seguintes de Marx aprofundam essa crítica e introduzem

29 As transcrições dos cursos, a partir de notas tomadas por alguns alunos, foram publicadas nos Princípios elementares de

filosofia.

30 Não se pode deixar de reconhecer aqui os traços essenciais de uma longa controvérsia teórica que se deu, sobretudo,

durante os anos 60 no interior do marxismo francês. Sugerimos que as leituras deste período que deram ênfase às noções de

“corte” e “descontinuidade” na interpretação do pensamento de Marx não só prolongaram, ainda que por novos meios, um

antigo ponto de vista dogmático, mas também que as indicações apresentadas por Lefebvre no livro de 1939 a respeito do

tratamento dado por Marx às categorias hegelianas constituem uma crítica avant la lettre a tais posições.

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54

um elemento novo no que tange à realização dos fins racionais da sociedade, que é o “ponto

de vista do proletariado”. Porém, Marx não deixou de lado o aspecto positivo do idealismo

hegeliano, encontrando na Fenomenologia do Espírito o “segredo” da filosofia de Hegel: foi

no interior da exposição do movimento progressivo da experiência da consciência que Marx

vislumbrou a teoria da auto-produção do homem por intermédio do trabalho. Para Lefebvre,

Hegel “examina a objetivação do homem em um mundo de coisas externas e sua

desobjetivação (sua tomada de consciência de si) como uma superação desta alienação”

(1999: 40). Mas ele compreende mal a alienação, invertendo-a. Hegel vê nas coisas

produzidas pelos homens sua alienação e naquilo que assume uma forma externa à ação

humana (riqueza, Estado, religião) ele vê a realização do Espírito. Diante disso, o objetivo de

Marx, especialmente nos “Manuscritos” de 1844, é desenvolver um “humanismo positivo”

capaz de recolocar a problemática da alienação social e da divisão do trabalho. Enquanto

Hegel vê o lado positivo e espiritual do trabalho, Marx coloca o problema da alienação da

atividade humana (e dos seus produtos): “A potência criadora do homem se torna uma

potência estranha que se opõe a ele e o subjuga, em lugar de por ele ser dominada” (Lefebvre,

1999: 48).

Na ruptura com o sistema hegeliano, outro pensador assume uma importância crucial para

Marx: Ludwig Feuerbach. Embora Lefebvre assinale que não é plausível falar em um período

“feuerbachiano” na evolução do pensamento de Marx, é sob influência desse pensador que

são estabelecidos os primeiros fundamentos para a crítica da filosofia especulativa. A partir da

crítica da religião, Feuerbach fez do homem o centro de suas preocupações e pretendeu

demonstrar que a teologia não passa de uma antropologia projetada em um céu imaginário.

Deste modo, a visão religiosa do mundo faz com que os atributos e capacidades humanas

apareçam como produtos de um ser superior que se coloca acima da sociedade, ainda que este

Deus seja um produto do pensamento humano. No entanto, Marx reprovou em Feuerbach o

fato de ele ter convertido o próprio homem em uma nova abstração. Nas Teses ad Feuerbach,

de 1845, Marx opõe a essa abstração um homem histórico e social, fazendo da atividade

prática o fundamento da crítica do “materialismo contemplativo”.

Para Lefebvre, as posições críticas de Marx representam a superação dialética da oposição

filosófica tradicional entre idealismo e materialismo, tendo em vista uma unificando num

plano superior os momentos que ela mesma reuniu (1999: 58). Marx “inverteu” os

fundamentos da dialética de Hegel, superando a atividade autônoma do espírito, e incorporou

à sua concepção da atividade prática as formas de determinação sociais. O caminho que levou

Marx a se apropriar inteiramente do pensamento dialético não é simples. Por um lado, os seus

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55

textos recém publicados demonstravam que as teorias econômicas maduras não desmentiam

as abordagens “humanistas” da juventude, mas as enriquecem com novos elementos. Por

outro lado, diz Lefebvre, somente “entre os trabalhos preparatórios à Crítica da Economia

Política (1957/9) e O Capital (1867) que Marx aprofundou novamente a sua concepção da

dialética” (1999: 61). O método dialético foi “reencontrado” e “reabilitado” no contexto da

crítica da economia. A partir desse reencontro, deu-se a ruptura com as categorias da

Economia Política e a sua “crítica” começou a ganhar uma forma mais acabada. Sendo assim,

nos escritos de juventude de Marx encontramos não uma valorização do método dialético,

mas, ao contrário, uma tentativa de ruptura e distanciamento para com a influência de Hegel.

“Nos Manuscritos de 1844, n‟A Ideologia Alemã e nas demais obras desse período a Lógica

de Hegel é tratada com grande desprezo”. E adiante:

“As primeiras exposições de Marx sobre temas econômicos (especialmente em A Miséria da Filosofia) se

apresentam de forma empírica. A teoria das contradições sociais no Manifesto de 1848 é mais inspirada no

humanismo e na „alienação‟, no sentido materialista do termo, do que na lógica hegeliana. A divisão da

sociedade em classes e a desigualdade social só podem ser abolidas por aqueles cuja „privação‟ material e

espiritual é tão profunda que não tem nada a perder” (Lefebvre, 1999: 55-6).

Seguindo essa leitura, pode-se afirmar que até o período de preparação da primeira redação

de O Capital, ainda não é possível falar em “materialismo dialético”, tendo em vista que o

exame das contradições sociais (p.e. o antagonismo entre as classes ou a oposição entre a

propriedade privada e as privações humanas) não consegue fazer com que tais contradições se

expressem em conceitos determinados. Um caso particular de ausência de determinação é a

confusão, em A Miséria da Filosofia, entre o “trabalho” e a “força de trabalho”. Também a

teoria da mais-valia e as concepções de Marx a respeito das crises só mais tarde serão

elaboradas de maneira precisa, depois de 1848; e somente dez anos após da publicação do

“Manifesto”, numa carta a Engels datada de 14 de janeiro de 1858, é que Marx fará

finalmente uma alusão positiva ao método de Hegel, ao tratar dos temas econômicos.31

Na medida em que avança no sentido da aplicação do método dialético, Marx adquire uma

nova compreensão da sociedade capitalista. Desde então, “a elaboração das categorias

econômicas e suas conexões internas superaram o empirismo, alcançando um nível de rigor

científico e tomando agora a forma dialética” (1999: 57). Fica cada vez mais claro para Marx

que a Economia Política, tal como, por exemplo, a religião ou a filosofia, também precisa ser

superada. Vê-se então que a “crítica” da Economia Política não é apenas uma apreciação

31 “Para o método de elaboração do material me prestou um grande serviço o fato de que, por pura casualidade, tenha lido

novamente a Lógica de Hegel...” (Lênin: 1976: 53).

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56

negativa das doutrinas econômicas da época. O que ganha força no pensamento de Marx é a

idéia de que o capitalismo, entendido como a generalização da lógica da mercadoria sobre o

conjunto da sociedade, promove uma inversão real entre o abstrato e o concreto. Em Marx

essa inversão ganha o nome de “fetichismo da mercadoria”: as relações sociais se submetem a

uma forma abstrata na medida em que os produtos da atividade humana, ao se inserirem nas

relações capitalistas de troca, adquirem uma “segunda existência social” distinta da primeira.

E quando o mercado começa a se tornar o elemento estruturador das relações entre os

homens, “esse novo todo social funciona, em relação aos indivíduos, como um organismo

superior” (1999:62). A mercadoria e o dinheiro passam então a impor suas próprias leis

abstratas aos indivíduos, e a organização do processo de produção, conseqüentemente,

começa a ser ditada por uma “fatalidade” cega e brutal. Dessa forma, os conceitos utilizados

por Marx na sua crítica da economia política não são simples abstrações mentais. Eles

reproduzem as contradições que existem de maneira efetiva nas relações capitalistas de

produção. Baseado nessa compreensão, Lefebvre caracteriza a inversão fetichista do seguinte

modo: diante do mercado e das suas “leis inexoráveis”, os indivíduos já não são mais

concretos, são abstrações. O produto social, por sua vez, adquire uma estranha autonomia

diante dos produtores. E, no entanto, a “sutileza metafísica” (Marx) da mercadoria reside no

fato de que, a despeito da produção adquirir um tipo de independência e tornar-se

“indiferente” às necessidades humanas, ela mesma é um produto das relações que os

indivíduos estabelecem entre si.

As conseqüências dessa abordagem são, entre outras, a afirmação da unidade do

pensamento de Marx (unidade que não exclui os avanços e recuos, as contradições e

superações), e a íntima relação entre a lógica de Hegel e as categorias econômicas da

sociedade moderna. Não é rompendo com a dialética de Hegel que Marx avança na

elaboração do seu método crítico. Esse avanço só se deu justamente no “reencontro” com a

dialética, no contexto da análise das categorias econômicas do capitalismo. A reflexão sobre

tais categorias apresentou, em um plano de análise distinto, as mesmas preocupações

levantadas pela temática da alienação nos escritos de Marx dos anos 40, o que deu à leitura de

Hegel um alcance prático inusitado. Para Marx, “quanto mais o trabalhador se desgasta

trabalhando, tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio que ele cria diante de si,

tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador]

pertence a si próprio” (2008: 81). Ao desenvolver seu método crítico, Marx pôde colocar o

mesmo problema, mas partindo de uma base mais sólida. Finalmente, Lefebvre observa que

se o capitalismo caracteriza-se pela lógica objetivada do processo econômico que faz com que

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o mundo se torne alheio aos indivíduos que o constroem, isso impede que o marxismo seja

reduzido a uma doutrina economicista, isto é, uma doutrina que afirma o privilégio absoluto

da economia sobre a vida social. A compreensão da lógica da mercadoria nos conduz em uma

direção contrária, na qual o marxismo se afirma precisamente como uma crítica do

predomínio das relações econômicas sobre a sociedade e, por isso mesmo, como “crítica da

economia política” e como uma defesa das necessidades concretas da humanidade.

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58

1.6 Leituras de Nietzsche: o advento das massas e o fascismo

Em 1939, após os estudos sobre Marx e Hegel, Lefebvre redigiu um livro polêmico sobre

Nietzsche.32

A época não podia ser mais inconveniente para os marxistas franceses, ocupados

como estavam em denunciar como aliado do fascismo qualquer um que não compartilhasse

com eles a visão do socialismo como um “degrau superior” na escada do progresso da

humanidade.

A relação de Lefebvre com a obra de Nietzsche é antiga. Remonta à sua mocidade, em

meio a uma educação cristã tradicional. Seu primeiro contato com o aprendizado filosófico se

deu através do pensamento católico, com a pouco ortodoxa “filosofia da ação” de Maurice

Blondel. Passou em seguida pela formação universitária convencional até que, pouco depois,

deu-se o encontro, por intermédio da agitação surrealista, com Hegel e Marx. O engajamento

político ofuscou seus primeiros interesses. Foram necessários muitos anos até que Lefebvre

reencontrasse o filósofo da sua juventude, o filósofo que, segundo ele, a cada nova leitura

trazia estímulos originais, como se estivesse sendo lido pela primeira vez: “se a perspectiva

nietzscheana se obscurecia com freqüência em proveito da vida militante, nem por isso ela

desaparecia” (Lefebvre, 1975: 78). Mediada pela leitura de Marx, a retomada do interesse por

Nietzsche, no final dos anos 30, resultou em uma tentativa de extrair de seus textos novos

elementos para uma crítica da sociedade e da cultura burguesas.

Nietzsche nunca desfrutou de grande prestígio entre os teóricos marxistas. Foi apenas

marginalmente – por exemplo, nas discussões estéticas mais vanguardistas - que ele começou

a ser lido. Plekhanov, o pai do marxismo russo, já havia declarado que “no mundo civilizado

contemporâneo não existe, ao que parece, um país cuja juventude burguesa não simpatize com

as idéias de Friedrich Nietzsche” (1969: 52). Na Rússia, pelo contrário, durante o período de

maior efervescência criativa da revolução, um grupo influente de escritores e artistas ligados

ao Proletkult se apropriou de temas de inspiração nietzscheana para elaborar o que eles

denominavam a “recomposição do homem”. Uma influência que se estendeu também a

muitos simbolistas e futuristas russos e foi sempre vista com desconfiança pelos

32 Intitulado simplesmente Nietzsche a primeira edição é de 1939. Durante a guerra, o livro entrou para uma lista de obras

proibidas pelo governo francês.

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representantes “oficiais” da teoria marxista. A imagem evocada por Plekhanov de um

Nietzsche apropriado à revolta da juventude burguesa contra os valores morais, mas de pouco

interesse para uma perspectiva “séria” da luta de classes, foi sempre predominante. Ela era,

apesar de tudo, bastante indulgente se comparada às leituras que se seguiram a partir de 1933,

na medida em que se configurava o projeto do fascismo alemão.

A ligação entre as idéias de Nietzsche e o fascismo foi assinalada por diversos autores. A

crítica mais conhecida é, provavelmente, a de Lukács, primeiro no ensaio intitulado

“Nietzsche precursor da estética fascista” e depois em um capítulo de A destruição da Razão

(1952) no qual o filósofo alemão é caracterizado como o “fundador do irracionalismo do

período imperialista”. Lukács escreveu outros ensaios sobre o assunto, entre eles “O fascismo

alemão e Nietzsche”, durante a Segunda Guerra Mundial.33

Apesar disso, no momento em que

Lefebvre visitou a Alemanha, a interpretação fascista não era majoritária no debate sobre a

obra de Nietzsche. Até mesmo naquele país “a politização extrema de Nietzsche, como

pensador germânico, a sua Aufnordung ou nordificação (...) era uma novidade para o público

intelectual dos primeiros anos 30” (Montinari, 2007a: 78). Na França, desde o início do século

XX, surgiram muitas interpretações contraditórias. Em linhas gerais, a esquerda recusava o

elemento “aristocrático” do pensamento de Nietzsche, embora autores pouco ortodoxos como

Georges Sorel e Charles Andler tentassem conciliá-lo com o socialismo proletário. Nos anos

30, Drieu la Rochelle propôs a fórmula “Nietzsche contra Marx” e Bataille evocou a

“experiência interior”, recusando a sujeição da vitalidade e da sensibilidade à consciência.

Nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, Bataille e Pierre Klossowski foram os

primeiros e a atacar a idéia de um vínculo direto entre Nietzsche e o fascismo. Nesse aspecto,

o estudo de Lefebvre lhes deu continuidade: foi, entre os marxistas franceses, uma tentativa

inicial de desmistificação das leituras que reduziam o autor de Assim falava Zaratustra à

condição de filósofo reacionário, irracionalista e anti-semita. Ainda assim, demarcar-se em

relação ao irracionalismo foi uma preocupação constante de Lefebvre nesse período. Além de

se ocupar da apresentação de Nietzsche e das interpretações colidentes sobre o filósofo,

33 Foi Alfred Bäumler, um apreciador de Nietzsche que acabou se tornando ideólogo do nacional-socialismo, quem fez a

interpretação que o liga mais diretamente a uma política “germânica”. Bäumler “se dedicou principalmente a difundir com

zelo a presumida obra principal de Nietzsche [A Vontade de Potência] e a transformou em um best-seller...” (Montinari,

2007a: 83). Para Montinari, a interpretação de Bäumler, que sistematizou Nietzsche a partir da teoria da “vontade de

potência”, foi imposta “até aos antifascistas e aos marxistas, que a fizeram justamente em negativo” (2007a: 79). Este é

precisamente o caso de Lukács, que deslocou o debate em torno da obra de Nietzsche para o plano político, obtendo como

resultado “a redução de toda filosofia de Nietzsche a uma polêmica contínua com o marxismo, com o movimento socialista,

quais quer que sejam as formas que a filosofia de Nietzsche assuma” (2007a: 115).

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60

Lefebvre confrontou e buscou pontos de contato entre a perspectiva da “transmutação dos

valores” e a análise marxista da sociedade.

Lefebvre acreditava que a chave para compreender a obra de Nietzsche residia no fato dela

exprimir não um irracionalismo puro e simples, como Lukács insistia em afirmar, mas as

contradições de uma cultura alienada e de uma consciência que se debatia contra os limites da

racionalidade - uma racionalidade que se tornava abstrata e ineficaz, exatamente no momento

em que afirmava sua primazia total sobre a vida. A afirmação do indivíduo moderno deu-se

em condições semelhantes. Marx ofereceu como resposta aos impasses do mundo burguês a

tentativa de encontrar um novo conteúdo para o racionalismo moderno; ele afirmou, em seus

textos de juventude, que era na classe proletária que a filosofia encontraria suas armas

materiais, criando as condições para a superação dos antagonismos sociais e para a realização

de uma nova organização social da atividade produtiva. O racionalismo de Marx, em

conseqüência, almejava superar as limitações do individualismo burguês (e da filosofia

tradicional), conferindo um novo sentido ao progresso. Mas, a partir de 1848, ocorreu uma

reviravolta decisiva. Depois dessa data, o projeto da revolução social, que era também o da

democracia e da unidade nacional, foi solapado pela reação conservadora. Aquilo que, para

Marx, parecia um movimento natural da realidade, se dissolve junto com a esperança

revolucionária.34

A burguesia se integrou ao Estado militar-feudal, prosperando

economicamente, mas de modo cada vez mais conformista. O destino de Nietzsche foi

marcado por essa situação e pela grande “confusão espiritual” que se seguiu aos eventos de

1848. Por isso, foi possível que ele chegasse a “criticar todas as realidades existentes com

paixão, mas indo de detalhe em detalhe, sem encontrar um fio condutor ou um ponto de apoio

para a ação” (Lefebvre, 1972: 68).

Sem alimentar a perspectiva burguesa (prolongada em mais de um aspecto por Marx) da

confiança na História, o ponto de partida de Nietzsche, desenvolvido em seus primeiros

livros, é a Grécia Antiga.35

Ele retoma a dualidade entre o dionisíaco e o apolíneo na cultura

grega ou, mais exatamente, a antítese que se manifesta quando o “sentido trágico” da vida,

34 Claro que Lefebvre lamenta esse fato, considerado como um “desvio” provisório da marcha da revolução social: “Marx e

Engels haviam dado uma forma – uma Bildung – européia ao sentimento germânico e hegeliano do devir. O momento em

que fora possível conceber essa grande síntese, em que seus elementos se haviam apresentado espontaneamente à meditação,

havia passado. A nova concepção de mundo, incompletamente formulada, desconhecida do grande público “cultivado”, não

havia produzido ainda suas conseqüências políticas”. (1972: 66).

35 Cf. A Origem da Tragédia no espírito da música, obra redigida por Nietzsche em 1871 e A Filosofia da Idade Trágica dos

Gregos, de 1873.

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fundado nesses dois aspectos, se degenera. Daí a instauração de uma nova contradição entre

as emoções violentas que traduzem os instintos mais básicos dos homens e a tendência à

“racionalização” metafísica, representada pela figura de Sócrates. Para Nietzsche, o elemento

apolíneo corresponde ao princípio da individuação e a aparência das belas imagens, enquanto

o dionisíaco é um reflexo da vontade, da embriaguez e dos instintos fundamentais. O que se

pretendia com essa leitura era revelar o papel da “arte” na maneira pela qual os gregos antigos

lidavam com os seus sofrimentos e com o sentimento de impotência diante da incapacidade de

superá-los. A tragédia grega era uma espécie de purgação coletiva que afastava, através do

mito, os sentimentos de fraqueza que conduziam à negação da vida. Em sua origem,

encontramos as bacantes, um tipo de festival dionisíaco associado ao vinho, ao prazer e à

fertilidade. O “êxtase” dionisíaco produzia uma superação dos limites impostos aos

indivíduos na vida diária e, por esse motivo, foi condenado como uma ameaça aos costumes

comunitários vigentes. Igualmente, não tardou para que fossem eliminados dos festivais os

elementos considerados “bárbaros”, habitualmente acompanhados de numerosos ritos

sacrificiais. O que restou da festa original acabou incorporado à sociedade e oficialmente

organizado pelas autoridades da polis. Ocorreu assim uma “domesticação apolínea” daquilo

que, no culto a Dionísio, apresentava um aspecto brutal e hostil à sociedade. A tragédia foi o

produto dessa incorporação do culto arcaico e violento à cultura grega. Ela passou a congregar

(na aparência estética) o dionisíaco como um conflito. A fonte de inspiração das festividades,

que mesclavam a epifania dionisíaca e pequenas representações, continuava a ser o conjunto

de mitos legados pela tradição, mas as novas festividades devotadas ao culto de Dionísio

tornaram-se momentos que mais se aproximavam de uma “sublimação” estética. Sobre as

condições do surgimento da tragédia, Lefebvre afirma que:

“No século VI, houve na Grécia continental, com um ritmo relativamente rápido, uma série de

fenômenos econômicos e sociais: declínio da aristocracia, ascensão econômica da classe artesanal e

mercantil das cidades, ascensão política da democracia, irrupção nas cidades da população dos

campos.

As idéias da classe mercantil entraram em conflito por um lado com a religião da comunidade

rural (ou seja, com os mitos da terra e das divindades ctónicas, subterrâneas, turvas, de origem

asiática – com o dionisismo) e, por outra parte, com as idéias aristocráticas (com a serenidade

olímpica do Epos e de Homero – com o espírito apolíneo)”. (1972: 182-3).

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O resultado do choque entre essas dinâmicas sociais distintas foi a consciência trágica e a

sua expressão estética (ainda impregnada de um caráter de culto); reflexão e catarse coletiva,

ambas revelando a unidade contraditória da comunidade e o conflito entre diferentes

interesses no interior da cidade.

Para Nietzsche, uma mudança importante no comportamento dos gregos ocorre com a

decadência das imagens míticas. No teatro, é com Eurípides que se dá o enfraquecimento do

poder catártico do mito. Assim, nasce o ideal de uma arte mais consciente, na qual

predominam a palavra e o argumento, diluindo a unidade entre a música e a palavra, entre o

mito e a vida. Em A Origem da Tragédia, a acusação que pesa sobre Eurípides é a de que suas

obras tendiam a excluir os elementos dionisíacos originais. Nietzsche interpreta esse

fenômeno como uma “racionalização” correspondente ao crepúsculo do trágico na cultura

grega. Mas, o seu alvo principal é outro: “Eurípides foi em certo sentido apenas uma máscara:

a divindade que falava através dele não era Dionísio, não era também Apolo, mas um

demônio recém-nascido e chamado Sócrates” (1953: 96). Configurou-se, desse modo, uma

nova contradição que opunha, de um lado, a afirmação dionisíaca da vida e, do outro, um

“socratismo estético” impregnado da idéia de que o belo, para se realizar, precisar ser

inteligível.

O declínio da tragédia se dá, portanto, a partir do que Nietzsche chamou de “invasão

racionalista”. Sócrates teria sido o responsável pelo início de uma “filosofia metafísica”, o que

significa, nesse contexto, um pensamento obcecado pela idéia de julgar a vida a partir da

idealização de “valores superiores”. Tais valores, pensados a partir de conceitos fechados

sobre si mesmos, resultariam da idealização transcendente de um “ser verdadeiro”. Nessa

operação, os valores supostamente superiores adquirem características de renúncia da vida,

pois têm a necessidade de rebaixar o mundo real para se afirmarem. Sócrates foi o primeiro

“homem teórico”, que fez do pensamento algo afastado de tudo o que é vital. A essa forma

“decadente” de pensamento, prisioneira das abstrações mentais e dos esquemas lógico-

racionais, Nietzsche contrapôs a filosofia da idade trágica: os gregos, antes de Sócrates,

“domaram o seu instinto do conhecimento” (2002: 20); eles filosofaram afirmativamente, “na

felicidade, na plena maturidade viril, na alegria ardente de uma idade adulta, corajosa e

vitoriosa” (2002: 18).

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63

O que Nietzsche visa com esse recuo histórico até a Grécia Antiga é o resgate de um

“heroísmo filosófico” capaz de ultrapassar o modo de filosofar moderno. A filosofia havia se

tornado uma conversa inofensiva entre eruditos solitários, sem a experiência de uma

“autêntica civilização”. Os gregos, ao contrário, sabiam que a vida deveria ser vivida em sua

plenitude e por isso seu pensamento era parte de uma “grande unidade de estilo”, na qual o

desejo imoderado de saber não frutificava: “o que aprendiam logo queriam viver”, diz

Nietzsche (2002: 20). A obra de arte, como momento de intensificação da vida, passa a

desempenhar um lugar privilegiado nesse projeto de renovação da cultura, tal como a

reconciliação entre embriaguez e forma promovida pela tragédia grega, cujo renascimento

moderno ele acreditou ter encontrado na obra de Wagner. A filosofia trágica dos gregos

demonstra que é possível “utilizar os conhecimentos adquiridos como apoio para a vida e não

para o conhecimento erudito” (2002: 19). Em contrapartida, a filosofia moderna, herdeira da

tradição socrática, não é capaz de produzir nada efetivamente vital. Não é criadora. A

estimulação recíproca entre o pensamento e a vida desapareceu em prejuízo desta última. Do

mesmo modo,

“Nietzsche descobre que a serenidade helênica é uma ilusão inventada pelos decadentes

modernos, pelos „homens teóricos‟, cujo prazer único é conhecer. Eles projetaram sobre a

antiguidade grega sua euforia racionalista e seu ideal vulgar de uma vida „normal‟” (Lefebvre,

1972: 73).

Nietzsche é definido por Lefebvre como “um dos escritores mais notáveis da época atual”

(1972: 127). Em sua leitura, no entanto, a crítica nietzscheana da racionalidade moderna

limitou-se aos momentos poético-filosóficos. Ela não foi capaz de se ocupar (com exceção de

alguns fragmentos dispersos) da ciência e da ação política. Uma das características do

pensamento de Nietzsche é a falta de contato com a ação prática. No entanto, isso não o

impediu de colocar problemas fundamentais: em primeiro lugar, o combate ao racionalismo

abstrato e formal, ao qual ele contrapõe uma “razão vivente” (1972: 134). Se Kant foi o

filósofo que procurou determinar os limites do conhecimento racional, Nietzsche, pelo

contrário, pretendeu libertar-lhe, por meio da palavra poética, as forças reprimidas. Sua idéia

de racionalidade não era indiferente aos aspectos sensíveis e vitais. Diferentemente de Kant,

ele não conferiu autoridade suprema à razão. Por esse motivo, Lefebvre o identifica com um

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“antídoto” contra a racionalidade negadora da vida, contra o “conforto interior” do indivíduo

burguês, ainda que tal postura “instintiva” não se identifique com nenhum tipo de

transformação social. Mas, “há em Nietzsche, mesmo quando suas teses são discutíveis, algo

de infinitamente saudável” (1972: 134). É inútil buscar nessas teses um sistema teórico ou um

conjunto de posicionamentos perfeitamente coerentes. As idéias se embaraçam em

contradições intransponíveis: apologia da tirania e da rebeldia, elogio da violência e da

generosidade, idealismo ingênuo e crítica do idealismo, etc. (1972: 136). Lefebvre insiste em

que o filósofo alemão “viveu para o pensamento” ainda que, contraditoriamente, o tenha feito

“para dizer que o pensamento não é a vida” (1972: 126). Em Nietzsche, a crítica da

racionalidade pode ser lida como uma tentativa unificadora que cobra os direitos da

sensibilidade e das relações imediatas. Porém, o caráter conflituoso desse pensamento faz

com que a descoberta dos elementos que deveriam corrigir o racionalismo abstrato se voltem

contra a própria razão.

A “Decadência” se tornou o tema central em Nietzsche. O modo de vida da sociedade

moderna só “expressa e acentua o declínio da vitalidade humana” (1972: 149). O

enfraquecimento do indivíduo, cujo potencial é obstado pela natureza de seus hábitos e

atividades, acompanha o declínio da cultura e da aristocracia. A burguesia é desprezada,

juntamente com seus valores, em diversas (e notáveis) passagens da obra de Nietzsche –

nelas, o que transparece é o espírito aristocrático e de casta que nega “amargamente” o

filisteismo e a ameaça de uma “nova barbárie” produzida por uma classe incapaz de criar algo

verdadeiramente grande (1972: 150). Um aspecto importante dessa denúncia da decadência é

o contraponto às doutrinas do progresso social. Em Ecce Homo, avaliando as suas

“considerações intempestivas” sobre a história, comenta: “o „sentido histórico‟, pelo qual esse

século se orgulha, foi reconhecido pela primeira vez como uma doença, como um sinal típico

de ocaso...” (2006: 89). Entretanto, como Lefebvre demonstra, não existe nessa reflexão

nenhum fio condutor capaz de levá-la mais além das contradições espirituais do seu tempo.

Outro paradoxo: Nietzsche coloca os problemas da civilização moderna, mas o faz “em

função das civilizações desaparecidas” (1972: 138). Sem relação com a prática, a

transformação ativa do mundo se isola das suas determinações concretas e o indivíduo

solitário, cheio de desprezo pelo tempo em que vive, volta-se para o passado mais remoto: sua

crítica “se realiza no passado e pelo passado”. (1972: 144).

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65

A ausência das práticas sociais em Nietzsche contribui para que a “questão social” seja

vista como parte da decadência moderna. O socialismo aparecia aos olhos dessa crítica como

parte integrante da “falta de espírito” do universo produtivista e estatal da burguesia. Era

também um prolongamento da moral de rebanho, baseada nos ideais ascéticos, tal como a

doutrina cristã. Aliás, Nietzsche também viu no projeto dos socialistas a promessa de um

“além” distante deste mundo. Em algumas passagens, esse projeto foi associado ao

despotismo de Estado. Em Humano, demasiado humano, livro destinado aos “espíritos

livres”, o socialismo é reduzido a uma tentativa de impor a perfeição do poder estatal sobre a

vida dos indivíduos, reduzindo-os ainda mais ao estado de uma “massa” ou de um rebanho

sem iniciativa. Em outros escritos, a “igualdade”, comumente associada ao socialismo, é

considerada uma reivindicação dos fracos. De modo semelhante, as “virtudes do trabalho”,

em oposição à vida contemplativa, pertenceriam a uma época de empobrecimento do espírito

e de nivelamento dos homens.36

O reino da igualdade social, portanto, afigurava-se para

Nietzsche como a melhor expressão da crise moderna: o robustecimento dos aspectos

negativos já presentes, a exemplo da tirania estatal, da massificação dos gostos e atitudes e da

educação voltada para as atividades “úteis” e “produtivas”, que desde o início impedem a

formação de uma personalidade livre.

A referência que Nietzsche possuía a respeito do socialismo não era, como se pode ver, a

elaboração crítica de Marx, mas as práticas e valores adotados pelo reformismo parlamentar

social-democrata que ganhou força no último quarto do século XIX. Lefebvre recorda que,

praticamente na mesma época em que o Zaratustra de Nietzsche atacava o Estado como “o

mais frio dos monstros”, Marx distanciava-se criticamente (do ponto de vista dos princípios

teóricos e da estratégia política) dos partidos socialistas. Seus principais alvos no contexto da

elaboração do programa de unificação da social-democracia alemã, em meados da década de

70, eram o estatismo lassalleano, o discurso que fazia do trabalho a única fonte da riqueza e a

36 “As pessoas já se envergonham do descanso; a reflexão demorada quase produz remorso. Pensam com o relógio na mão,

enquanto almoçam, tendo os olhos voltados para os boletins da bolsa – vivem como alguém que a todo instante poderia

„perder algo‟. „Melhor fazer qualquer coisa do que nada‟ – este princípio é também uma corda, boa para liquidar toda cultura

e gosto superior. (...) Cada vez mais o trabalho tem a seu lado a boa consciência: a inclinação à alegria já chama a si mesma

„necessidade de descanso‟ e começa a ter vergonha de si (...) Sim, logo poderíamos chegar ao ponto de não mais ceder ao

pendor à vita contemplativa (ou seja, a passeios com pensamentos e amigos) sem autodesprezo e má consciência. Alguém de

boa família escondia seu trabalho, quando a necessidade o fazia trabalhar. O escravo trabalhava oprimido pela sensação de

fazer algo desprezível: o próprio „fazer‟ era desprezível. „A nobreza e a honra estão apenas no otium e no bellum [na guerra]‟:

assim falava a voz do preconceito antigo!” (Nietzsche, 2001:218-9).

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66

reivindicação do “direito igual”.37

Ademais, Marx não baseou a sua crítica da sociedade

capitalista em uma moral “plebéia” da renúncia individual ou coletiva. Marx, por assim dizer,

jamais se identificou com as fraquezas e misérias do proletariado, mas, ao contrário, exaltou o

que julgava ser a sua força, isto é, a capacidade atribuída a essa classe de romper os grilhões

que impediam a realização do “homem total”.

Esse conjunto de aproximações entre Marx e Nietzsche não escondeu as profundas

diferenças existentes entre os dois pensadores alemães. Para Lefebvre, fazer de Nietzsche um

pensador “de esquerda” seria tão pouco convincente quanto ressaltar apenas os

desdobramentos políticos elitistas ou reacionários da sua crítica da cultura moderna. Ele

pretendia se apropriar dos elementos não-conformistas contidos na revolta de Nietzsche

contra a decadência moderna. Esta revolta se recusava a adotar como parâmetro os elementos

exteriores à vida, porém não era capaz de encontrar nenhum tipo de respaldo material. Em

Nietzsche temos apenas o desespero individual dos “sem classe”. Sua revolta toma um sentido

imprevisto, debatendo-se entre as sobrevivências e possibilidades do mundo moderno,

lançando um “decreto desesperado, mais poético que filosófico, sobre a natureza do homem

(1972: 68). Essa postura resulta da desconfiança de Nietzsche em relação aos homens, cada

vez mais impotentes, prostrados diante da desordem e do vazio cultural instaurados pela

ausência de Deus. O resultado deste vazio é o niilismo. Por toda parte, mesmo na classe

trabalhadora, que servia de referência para Marx, as forças e possibilidades eram ignoradas,

enquanto prevalecia a desvalorização do mundo e a domesticação dos instintos vitais.

Por fim, Lefebvre tenta situar Nietzsche no seu contexto histórico, marcado pelo

aparecimento do imperialismo: “Vivemos, pois, em certo sentido, no período analisado por

Nietzsche: no extremo „declínio‟ e na extrema dissociação do humano” (1972: 141). No

imperialismo, que é interpretado segundo a perspectiva de Lênin, ou seja, como o “último

estágio” da sociedade capitalista, acentuam-se não só a concorrência por mercados e pelas

37 Ainda na Crítica do Programa de Gotha (1875), as referências de Marx aos problemas da educação e do trabalho nos

oferecem exemplos ilustrativos da proximidade e do distanciamento em relação aos escritos de Nietzsche. Próximo deste,

Marx classifica como inadmissível a “educação do povo a cargo do Estado”, argumentando que é preciso, pelo contrário,

“banir da escola qualquer influência do governo e da igreja” (1971: 32). Por outro lado, no mesmo texto ele se volta contra a

proposta de proibição geral do trabalho infantil, afirmando que esta seria “incompatível com a própria existência da grande

indústria” (1971: 34). Em contraste com outros momentos de sua obra, e também com o ideal aristocrático da “vida

contemplativa”, Marx situa-se aqui nas antípodas da desvalorização dos valores da sociedade burguesa. Mesmo assim, o

ponto de vista de Marx, obscurecido na “Crítica” de 1875 pela identificação do trabalho com as necessidades vitais, é

superior ao de Nietzsche em um aspecto decisivo: segundo Marx, tanto a formação do indivíduo quanto a perspectiva de

transformação social pressupõe alguma forma de atividade social, ainda que não caiba identificá-la imediatamente com a

produção industrial e com o “trabalho” moderno.

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fontes de matéria-prima para a indústria, mas, junto com ela, o ímpeto belicoso das potências

capitalistas. 38

Os elementos de “amoralismo” contidos no pensamento nietzscheano podem

ser vistos como um desdobramento desse período de exacerbação da violência no plano das

relações capitalistas. Este foi um dado que facilitou a assimilação fascista de Nietzsche, tal

como a exaltação da consciência mítica, que permitiu as leituras que aguçavam a defesa

unilateral do irracional e do primitivo. Lefebvre destaca ainda que “Nietzsche tomou posições

contraditórias sobre todos os problemas de seu tempo” (1972: 189). Isso, evidentemente,

permitiu a diversidade de interpretações. O anúncio da crise dos valores da civilização foi

lido, na interpretação fascista, como uma necessidade ainda mais “modernizadora” de

destruição do passado, abrindo espaço para a criação de valores fundados na afirmação

“instintiva” da vida. Nesse sentido, Nietzsche foi resgatado também como um pensador que

legitimava o emprego da força em oposição às promessas universalistas do socialismo e da

democracia. Mas, para enxergar em Nietzsche, como fez Lukács, um antecedente direto do

fascismo, seria preciso não levar em consideração a sua crítica direcionada ao Estado alemão

e à estreiteza do espírito burguês. A crítica do caráter “formador” do trabalho ou o desprezo

pelo homem nivelado indicam tendências incompatíveis com a exaltação fascista das

massas.39

No entanto, se Nietzsche tem razão em reivindicar um espírito livre e oposto às

tendências uniformizadoras do mundo burguês, isso não anula o fato de que sua revolta,

dividida entre a nostalgia e as visões de “superação”, entre o passado e o futuro, não possui os

meios de concretização, contentando-se com a ação isolada do espírito. E como se dá essa

ação? A ausência de um estilo de vida autêntico, que é a característica dos tempos modernos,

obriga o filósofo a se comportar como um “cometa imprevisível”. Para Nietzsche, é a própria

condição moderna que determina o isolamento e a degradação da filosofia: “a filosofia já não

tem razão de ser e, por isso, o homem moderno, se fosse corajoso e honesto, deveria rejeitá-la

e bani-la com palavras semelhantes àquelas com que Platão expulsou os poetas trágicos do

seu Estado” (2002: 26). A crítica de Nietzsche aponta um caminho de superação, uma

experiência imediata da vida. Mas esse novo otimismo, em última análise, permanece

espiritual. Ela manifesta um “espírito revolucionário”, diz Lefebvre, quando coloca o homem

e a vida humana no centro da filosofia, tomando o lugar das idéias e valores especulativos;

mas o que o filósofo nos propõe é somente a idéia do homem e da sua superação. O “além-

38 Para Lênin, a referência a um “último estágio” não designava algo como a etapa “mais recente” do capitalismo, e sim um

estado avançado de decomposição.

39 Ou do “animal de rebanho, de olho azul”, como escreveu Nietzsche em Ecce Homo (2006: 148).

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do-homem”, que ultrapassa as condições de sua época, não é concebível em termos puramente

espirituais, como resultado de uma “transmutação dos valores”. Para Lefebvre, “Nietzsche

definiu admiravelmente um problema fundamental: a reconciliação do homem com o mundo,

a elevação da natureza – instinto e vida espontânea – ao nível do espírito” (1972: 173), mas

negligenciou o outro lado do mesmo problema: a reconciliação do homem consigo mesmo: “a

integração dos elementos do conteúdo de sua consciência e de sua vida”. Para apreender essa

cisão entre o pensamento e a vida, fazia falta “uma teoria coerente da „alienação‟, e em

particular uma teoria da intelectualidade como resultado da diferenciação social e da divisão

do trabalho” (1972: 174). Lefebvre aproxima a idéia de superação e a realização concreta do

“homem total”, indicando o que seria uma convergência possível entre a vida e o espírito, o

instinto e a consciência, o “além-do-homem” e a superação das alienações sociais: “Por isso, é

absurdo escrever: Nietzsche contra Marx” (1972: 192).

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69

1.7 A crítica da vida cotidiana

“O bem-conhecido em geral, justamente por ser bem conhecido, não é reconhecido”, disse

Hegel (2003: 43). O conhecimento teórico tende a passar por cima dos acontecimentos

“familiares” da vida diária, como se não fossem dignos de interesse. No marxismo, a teoria

foi pensada como junção de uma doutrina econômica com o materialismo filosófico e a

perspectiva da luta de classes. Estas são, segundo Lênin, as suas três “partes constitutivas”.

Havia pouco lugar nessa reflexão para as relações externas ao âmbito da produção. Isso se

explica pelo fato do pensamento marxista ter começado a se estruturar, na segunda metade do

século XIX, a partir de uma realidade na qual a atividade industrial tornava-se efetivamente o

centro da vida social. Não obstante, essa atividade jamais conseguiu abarcar o conjunto das

formas de reprodução da sociedade – antes, ela rebaixou os elementos que lhe eram exteriores

à condição de momentos secundários e “improdutivos”. O próprio movimento operário, em

seus primórdios, quando ainda organizava um conjunto heterogêneo de indivíduos não

inteiramente desvinculados de suas origens predominantemente agrárias, tinha como objetivo

a formação de uma coletividade homogênea que afirmasse os valores do trabalho “em geral”,

suplantando as antigas ligas e associações baseadas em relações corporativas ou diferentes

tipos de atividades e localidades; foi assim que se constituiu a moderna “classe trabalhadora”.

A identidade coletiva dos indivíduos estabelecia-se, portanto, através de uma relação positiva

com a esfera produtiva que se destacava do contexto social agrário para se afirmar como uma

potência autônoma. Tudo aquilo que não dizia respeito a essa esfera da produção era pouco

interessante para a ideologia do movimento operário. Fora da teoria marxista, no entanto, a

situação era diferente: o cotidiano da sociedade burguesa foi descrito com riqueza de detalhes,

por exemplo, pela literatura realista. O pensamento filosófico seguiu um caminho semelhante,

reagindo contra os grandes sistemas especulativos da época “clássica” da filosofia. Nietzsche

e Kierkegaard não aceitaram a subordinação da individualidade a uma “massa” impessoal e

aproximaram-se do “vivido”, tornando-se os mais representativos dessa tendência. A mesma

preocupação se prolongou no século seguinte, até afirmar-se, nos discursos filosóficos e

literários, como ênfase na noção de “existência”: era o reconhecimento da vida cotidiana

como um aspecto fundamental da realidade.

O marxismo, cuja difusão mais ampla estava ligada, desde as duas últimas décadas do

século XIX, ao modelo objetivista das ciências naturais, viu a ênfase “existencialista” no

vivido como um obscurantismo inaceitável. Não havia lugar no seu interior para nenhuma

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70

“mística existencial” (Politzer, 1978: 113). A teoria devia se ocupar das determinações

materiais da existência, que eram buscadas na estrutura econômica da sociedade, nas relações

de produção e nos interesses de classe. A prática política dos marxistas, por seu turno, tendia a

menosprezar o presente em nome de uma dialética histórica.40

Nos anos 30, quando a

valorização do “aqui e agora” trazida pelo existencialismo começou a se afirmar, ela foi

associada, direta ou indiretamente, ao irracionalismo, à falta de confiança no progresso e à

reação política - a exemplo do que ocorria com Nietzsche. Criou-se um abismo entre as

explicações racionalizadoras e deterministas oferecidas pelo marxismo e a preocupação mais

direta com a experiência concreta de um mundo percebido pelos sujeitos como muito pouco

racional.

Lefebvre redigiu a Crítica da vida cotidiana no final de 1945. Dois anos depois ela foi

publicada.41

No pós-guerra, durante o esforço de reconstrução dos meios de produção, o

cotidiano, que no período da Libertação parecia abrir-se a novas perspectivas, retornou como

parte da reafirmação do velho mundo (Lefebvre, 1975: 208-9). Por isso, Lefebvre se esforça

para incorporá-lo ao corpo teórico do marxismo. Não que ele nos apresentasse uma versão

“existencial” da teoria marxista, mas compartilhava com as novas correntes filosóficas do

século XX algo que estava presente no “espírito do tempo”, a necessidade de pensar a teoria a

partir do que há de mais próximo e familiar ao indivíduo. O estudo de Lefebvre foi concebido,

nesse momento, apenas como uma “introdução” a um campo de investigação até então

inexplorado. Ele não pretendia dar ao cotidiano uma clara delimitação, com o que evitava as

definições acabadas e as sistematizações apressadas. Sua referência inicial era a percepção da

vivência cotidiana como parte da reestruturação da sociedade capitalista. Lefebvre propõe a

incorporação desse momento mais imediato ao método marxista: era preciso partir da

realidade vivida pelos homens para chegar à reflexão conceitual, o que significava, por outro

lado, elevar o cotidiano ao plano teórico. Procedendo a partir de reduções conceituais, tal

como o tratamento dado por Marx à lógica da mercadoria, a análise devia, em seguida,

40 Em uma passagem de sua “Autocrítica”, de 1958, Edgar Morin observa que os comunistas pensavam seu projeto de

sociedade como algo mais ligado a um futuro indeterminado do que à existência concreta dos trabalhadores (1976: 156).

Havia uma espécie de dissociação entre o projeto socialista e a política cotidiana - o que lhes garantia uma enorme margem

de manobra para justificar qualquer tipo de ação. Isso só ocorria porque o marxismo, e em particular a sua versão stalinista,

desvalorizava o presente, considerando-o como um momento de escassa importância diante de uma totalidade em curso de

evolução. A definição marxista do socialismo estava aberta apenas às possibilidades do futuro. Tal desvalorização do

presente resultava em uma série de opções “táticas” mais imediatas, cujos vínculos com o socialismo só podiam aparecer

muito indiretamente e como se estivessem, por assim dizer, “garantidos” pelo movimento histórico de ascensão do

proletariado.

41 Em continuidade com os textos anteriores, a “Crítica“ de Lefebvre dava primazia à reflexão sobre a alienação e a

mistificação ideológica. A crítica da vida cotidiana é vista como uma continuação de outros escritos. De acordo com o projeto

inicial, ela “devia figurar num tríptico com A Consciência mistificada e A consciência privada” (Lefebvre, 1991: 72).

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71

retornar ao plano concreto do vivido, elucidando-o a partir de um conjunto de conceitos não

redutíveis à realidade imediata.

Antes de Lefebvre, nenhum autor marxista havia dedicado um estudo específico aos

problemas do cotidiano. Trotsky foi uma exceção parcial, pois escreveu, em 1923, uma

pequena obra sobre as transformações do modo de vida, partindo da experiência prática da

URSS.42

Mas, em Trotsky o que se vê é acima de tudo o ponto de vista do dirigente político.

O cotidiano é analisado desde a perspectiva dos meios de ação sobre o modo de vida, em

função das demandas estatais. Assim, ele não é elevado a um plano teórico, ainda que se

anuncie um “estudo do modo de vida operário” (1979: 20). Esse estudo permaneceu

estritamente empírico; consistia, na realidade, em uma descrição dos diferentes aspectos da

vida da classe operária fora do processo de produção como, por exemplo, os lazeres,

atividades culturais, os jornais, a vida familiar e os hábitos “improdutivos”, tais como a

bebida e os ritos religiosos. Digna de nota é a quase total ausência do problema camponês,

mesmo que no início dos anos 20 essa classe compreendesse a imensa maioria da sociedade

que Trotsky pretendia analisar em “detalhes”. Na perspectiva de Trotsky, a vida cotidiana

enraíza-se na economia e é ao serviço desta que se deve mobilizá-la. Com base na

racionalização econômica, os aspectos “atrasados” do modo de vida seriam extintos e o

cotidiano modificado, tendo em vista um melhor aproveitamento do tempo (tanto da produção

“racionalizada” quando das atividades culturais). De passagem, Trotsky critica as concepções

das vanguardas russas (futurismo, construtivismo, a LEF, etc.) por almejarem uma “vida

nova” sem levar em consideração o modo de vida do presente.43

A dicotomia entre trabalho e

tempo livre não é problematizada nas Questões do modo de vida. A cultura permanece

“naturalmente” separada dos outros momentos da vida, ainda que se vislumbre a sua

ampliação. Fala-se alegremente do cinema como propaganda e entretenimento das massas,

como “distração e educação” da vida popular. As demandas da modernização se fazem

presentes na necessidade de superar a indolência no trabalho, a falta de disciplina, asseio e

pontualidade, etc. A indiferença em relação ao trabalho é oposta à “salutar” vontade de

“tornar-se um bom operário”. Em outra passagem do livro, Trotsky revela o que está na base

dessas posições:

42 Cf. Questões do modo de vida. A época do “militantismo cultural” e as suas tarefas. Lisboa, Antídoto, 1979.

43 Em seu debate com as “novas escolas artísticas”, Trotsky sintetiza o problema com uma fórmula bastante clara: “para que a

arte possa transformar como também refletir, deve haver certa distância entre artista e vida” (2007: 115). Isso porque a vida

cotidiana das massas operárias, vale dizer, o modo de vida em relação ao qual a arte se distancia, é compreendida como o

lugar do atraso e da imobilidade (identificados com a “tradição”), em oposição à teoria e às políticas modernizadoras do

partido comunista (1979: 59).

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72

“É o problema do modo de vida que nos mostra, mais claramente do que qualquer outra coisa,

em que medida um indivíduo isolado se mostra ser o objeto dos acontecimentos e não o seu

sujeito. O modo de vida, isto é, o meio ambiente e os hábitos cotidianos das pessoas, elabora-

se, mais ainda do que a economia, „nas costas das pessoas‟ (a expressão é de Marx). A criação

consciente no domínio do modo de vida ocupou um lugar insignificante na história da

humanidade”. (1979: 57).

Assim, o modo como os frutos da atividade humana se convertem em força alienada,

escapando (“por trás das costas”) ao controle dos produtores, é naturalizado em termos

sociológicos triviais, enquanto reserva-se somente à teoria marxista (a serviço do “Estado

operário”) a capacidade de ampliar a margem de conhecimento do modo de vida para

transformá-lo. Caberia, a fortiori, a uma vanguarda política destacada da classe operária a

tarefa de elevar as massas a um nível superior, do mesmo modo que a intelligentsia do século

XVIII em relação à sociedade burguesa, ajudando-a a pensar ou mesmo pensando por ela. O

limite da razão burguesa, no entanto, revelava-se na instituição da propriedade privada:

“Desde que a lei do mercado reinava em absoluto, era impossível pensar numa verdadeira

racionalização do modo de vida das massas populares” (1979: 61). A revolução da classe

operária eliminaria esse entrave pela via da propriedade e do planejamento econômico

estatais, elevando assim a produtividade do trabalho e ampliando o tempo destinado às

atividades culturais. Assim, a análise do modo de vida se tornava uma crítica do seu “atraso”

em relação ao progresso econômico realizado a partir do dirigismo estatal. Por isso, pode-se

dizer que o projeto de transformação do modo de vida é, na perspectiva elaborada por

Trotsky, uma revolução contra a vida cotidiana.

Um ponto de vista diametralmente oposto é oferecido por Lefebvre. Ele nos apresenta uma

leitura do caráter trágico da vida cotidiana - a tensão entre os seus diferentes elementos e

potencialidades. Pretende revelar não somente os aspectos negativos do modo de vida, mas

também a riqueza escondida sob as duras condições enfrentadas pelos trabalhadores. A

ambigüidade é o aspecto central do cotidiano. Ele não se resume a um conjunto de hábitos de

uma massa “atrasada” a ser “modernizada” de acordo com os objetivos de uma burocracia

estatal. Ao contrário, no cotidiano estão contidas, além das adversidades que caracterizam a

vida dos trabalhadores, as possibilidades de produzir uma vida nova: por trás da miséria dos

trabalhadores esconde-se uma autêntica capacidade produtiva e criadora.

Depois de trilhar o caminho, via Hegel e Marx, que o levou aos problemas concretos da

alienação na sociedade burguesa, Lefebvre se defrontou novamente com a antiga

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problemática dos anos 20. Daí o seu ajuste de contas com os surrealistas, cuja motivação - a

ambição de “mudar a vida” - é mantida como uma inquietação comum, mas “deslocada” para

o plano teórico marxista. Mesmo assim, o livro foi recebido com indiferença pelos

representantes do PCF, que tendiam a vê-lo como um conjunto de formulações sem relação

direta com os objetivos políticos da classe operária. Assim, a leitura de Lefebvre sobre o

cotidiano traduzia em boa medida o “espírito comunista” da época, tanto quanto se

distanciava dele em alguns aspectos. Essa atitude ambivalente derivava do modo como foi

adotado o “ponto de vista do proletariado” (Lefebvre 1977: 160). A visão do caráter ambíguo

das relações cotidianas refletia uma conjuntura realmente existente: as perspectivas de

reconstrução da Europa no pós-guerra e o papel ativo da classe operária nesse processo. O que

Lefebvre pretendia era elevar esse “papel ativo” do proletariado ao plano conceitual. Tal

postura indicava a idéia de uma regeneração da sociedade pela atividade produtiva; era

também uma adesão, ao menos parcial, ao otimismo histórico do marxismo. Lefebvre, no

entanto, se despojou dos aspectos mais inflexíveis da teoria marxista, tal como o prognóstico

da deterioração das condições materiais de existência da classe operária – a teoria do

“empobrecimento absoluto” sustentada pelo PCF. Além disso, seu conceito de “produção”

adquiriu um sentido mais amplo que o da atividade econômica em sentido estrito. Dessa

concepção aprofundada da produção,44

Lefebvre deduz a necessidade de um distanciamento

em relação aos critérios econômicos então dominantes. Durante a reconstrução da França,

processo no qual os comunistas estavam engajados, era em função desses critérios

produtivistas que a orientação política do marxismo “oficial” se limitada às reivindicações

quantitativas da classe operária. A elaboração de Lefebvre, no entanto, voltava-se

especialmente para a necessidade de transformar a vida em termos qualitativos. Assim, o texto

de 1945 apresentava, amalgamado com as posições reducionistas difundidas pelo stalinismo,

um traço original que permitia ao seu autor reconstituir, sob uma nova ótica, os conceitos

fundamentais do pensamento marxista.

A Crítica da vida cotidiana desenvolvia os elementos teóricos expostos nos escritos

anteriores, sobretudo aqueles extraídos das obras de juventude de Marx, como o “homem

total”, a alienação, mas também a teoria do fetichismo. Lefebvre confronta as abordagens

filosóficas com as suas limitações intrínsecas e introduz uma nova dimensão sociológica a

partir do estudo do modo de vida no campo. Interessa-lhe, nesse contexto, o exame das

tradições e o sentido comunitário que persistiam no meio rural (especialmente a festa

44 Produção de objetos, obras, produção do homem por ele mesmo, incluindo sua “natureza humana” etc.

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camponesa, em seu dispêndio suntuoso da vida, estabelecendo rupturas instantâneas com o

cotidiano, mas sem dele se afastar inteiramente). Do mesmo modo, critica as criações

estéticas e literárias que se divorciam do cotidiano. Em última análise, em todos esses temas,

é a contradição entre a atividade humana e os seus produtos alienados que está em questão,

juntamente com a separação dessa atividade em esferas superiores e inferiores.

No primeiro capítulo do seu estudo, Lefebvre apresenta o cotidiano a partir de um olhar

sobre o modernismo literário, que vai das suas fontes à contestação surrealista do modo de

vida burguês. Também aqui ele deve muito à perspectiva política do marxismo ortodoxo.

Desde o período de antes da guerra, Lefebvre compartilha com Aragon, a partir do momento

em que este abandonou seus antigos companheiros em nome da fidelidade ao PCF, o ponto de

vista segundo o qual o surrealismo, através da poesia, das imagens e metáforas, só foi capaz

de oferecer uma simulação da libertação (Lefebvre, 1975: 50).45

A “confusão mental”

produzida pela fuga do real em direção ao “maravilhoso” ou ao “grotesco” remontaria aos

escritos de Baudelaire e Rimbaud. O desregramento sistemático dos sentidos exaltado por este

último, serviu como “modelo” para aqueles que pretendiam fazer da poesia uma experiência

vital (além disso, pesava em favor de Rimbaud o fato dele, muito cedo, ter desistido da vida

literária). Em Rimbaud, o espírito e a ação se afastavam radicalmente. A poesia declara sua

aversão às atividades mundanas: “Tenho horror a todos os ofícios. Patrões e operários, todos

são camponeses, ignóbeis. A mão que segura a pena vale tanto quanto a que empurra o arado.

– Que século manual! – Não usarei jamais as mãos” (1982: 47). Na continuidade dessa

tradição, os surrealistas teriam depreciado o real em nome de elementos míticos e idealizados,

ou seja, um “realismo mágico” que se deslocava para fora da vida cotidiana em busca de um

“outro mundo” imaginário. O surrealismo seria, então, uma pseudo-revolução, um viver fora

do real, sem ele e contra ele (Lefebvre, 1977: 123-4). Além desses elementos, a concepção

estética do surrealismo afirmava que a beleza só poderia existir no sentimento do

“maravilhoso” - e este só podia ser o produto de uma sensibilidade que escapasse ao domínio

do repetitivo e do vulgar. Seguiam os passos de Baudelaire: distância das tediosas

vulgaridades do mundo burguês, imersão na solidão, no sonho; pretende-se encontra encontrar

algo novo mergulhando no Desconhecido.

Para Lefebvre, a fuga à realidade condenava, ao mesmo tempo e de forma indiferenciada,

as manifestações mais degradadas do real e as possibilidades nele contidas: se é verdade que

45 No entanto, as relações entre os dois se deterioraram durante a guerra, quando Lefebvre se deu conta de que Aragon

“conhecia perfeitamente (...) mais do que qualquer outra pessoa na França, tudo o que se passava com Stálin e o stalinismo na

Rússia” (1975: 49).

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Breton e seus amigos tentaram introduzir o “maravilhoso” na vida comum, como uma espécie

de “outro lado”, mais interessante, da vida, só o fizeram a partir de um ataque ao cotidiano.

Assim, fuga e negação desenvolveram-se até a paranóia, culminação negativa do afastamento

face ao real.

O cotidiano se fez presente igualmente de maneira limitada na tentativa da literatura

existencialista se aproximar da experiência concreta e imediata. Poetas, escritores e filósofos

metafísicos, diz Lefebvre, produziram elementos de uma crítica da vida cotidiana, mas apenas

de modo muito indireto. O elemento mais característico desses “metafísicos modernos”,

elaborado a partir da fusão dos discursos filosóficos e literários, era a confusão entre o ser

humano em geral e a realidade histórica capitalista (1977: 140). Para chegar a esse

diagnóstico, Lefebvre continuou aceitando a teoria da decadência do capitalismo. O surto de

crescimento econômico ainda não havia dado os primeiros passos e os traumas causados pela

guerra – acrescidos dos novos elementos de barbárie que se manifestaram como toda força

durante o conflito – continuavam apontando a falta de perspectivas do capitalismo. A

confiança marxista no progresso continuava depositada unicamente na capacidade da classe

operária liderar o processo de reconstrução da vida social. A literatura existencialista, que se

difundiu na França a partir do fim dos anos 30, especialmente as primeiras obras de Sartre e

Camus, foi identificada com a solidão individual e a degeneração de um modo de vida cuja

ausência de sentido ela tentava captar. Essa literatura, que mesclava angústia metafísica,

descrença generalizada e negatividade, era uma espécie de antítese dos temas de otimismo e

progresso da época ascendente da burguesia; ela tinha como missão, “contar o detalhe” e

“acompanhar o movimento monótono de suas criaturas derrisórias”, como disse Camus a

propósito de A Náusea (apud Aronson, 2007: 28). De fato, no livro de 1938, que se tornou o

seu primeiro sucesso literário, Sartre mostrava os efeitos dilaceradores da alienação humana,

como o absurdo e a solidão absoluta escondidos por trás da rotina de Antoine Roquentin, o

historiador que relata dia a dia seu desencanto, inicialmente com o trabalho e, em seguida,

com sua própria condição existencial. Faltava a esse retrato do cotidiano, no entanto, um

aspecto crítico e afirmativo que só a política coletiva pode alcançar. Com a práxis ausente, O

existencialismo se limitava a relatar a o isolamento da consciência, conferindo à desintegração

da subjetividade burguesa uma dimensão ontológica intransponível.46

Em resposta, Lefebvre

coloca como tarefa uma “reabilitação da crítica da vida cotidiana” (1977: 140) capaz de

46

Por isso Sartre procura a situação “autêntica” do homem na angústia individual, mesmo que em seus escritos ficasse à

mostra, em estado puro, a consciência privada do indivíduo moderno, tão bem expressada na passagem de Huis clos: “Então,

é isto o inferno. Eu não poderia acreditar... Vocês se lembram: enxofre, fornalhas, grelhas... Ah! Que piada. Não precisa de

nada disso: o inferno são os Outros” (2007: 125).

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76

efetuar uma distinção entre o humano (real e possível) e os aspectos humanos que apenas

refletem, de maneira pessimista, os limites da sociedade capitalista.

Apesar das duras críticas dirigidas aos surrealistas, a apreciação dos problemas estéticos à

luz do conceito de alienação levou Lefebvre a retomar as idéias surgidas no interior dos

movimentos da cultura marginal dos anos 20, e suas elucubrações em torno do problema da

superação da cisão entre a arte e a vida. Por esse motivo, a arte não aparece na “Crítica” como

uma atividade limitada à produção de objetos artísticos convencionais. Os problemas

estéticos, distribuídos ao longo da obra, não são pensados como elementos bem acomodados

em uma “esfera cultural”, mas como parte de uma dimensão criativa que envolve a

capacidade das pessoas vivenciarem os prazeres e emoções de forma autêntica – um tema

“pressentido” por Stendhal e reavido, em seguida, por Nietzsche: a arte de viver. A vida dos

indivíduos deve ser tomada como fim, ao invés de se ver limitada à condição de meio para a

produção de outras finalidades. São os momentos de intensificação da existência que

contribuem para a formação de um novo “estilo”, ou seja, para a unidade superior entre a

atividade dos trabalhadores e seus produtos. Como eliminação de uma finalidade exterior aos

indivíduos, afirma Lefebvre, “a arte de viver implica o fim da alienação” e essa superação

supõe uma condição extrema em que “a vida inteira – a vida cotidiana – torna-se obra de

arte”. Ou ainda: “a arte de viver tornar-se-á no futuro uma arte verdadeira, fundada como toda

arte sobre uma necessidade vital de expansão e também sobre certo número de técnicas e

conhecimentos” (1977: 213).

Em oposição ao cientificismo marxista da época, Lefebvre procurou valorizar a autonomia

relativa da filosofia - autonomia que se contrapunha ao seu engajamento nas teses orientadas

pelo “subjetivismo de classe” -, mas isso não o impediu de confrontar dialeticamente o

pensamento especulativo do filósofo, “ele mesmo uma figura abstrata do homem estranhado”

(Marx, 2008: 121), com os seus limites. Há uma similitude entre as aporias da filosofia e a

relação da estética com a vida social. A “superação” da filosofia torna-se, então, uma

denúncia da alienação humana e se volta para uma nova consciência da vida e da sua

transformação. O pensamento especulativo revela o abismo entre as abstrações filosóficas e a

realidade vivida. Portanto, a crítica da filosofia só se torna possível a partir do cotidiano. Para

colocar os problemas do homem em sua totalidade, a filosofia precisa se superar enquanto

pensamento separado da vida. Se a religião foi descrita por Marx como uma reação imediata e

equívoca, um “sol fictício que se desloca em torno do homem enquanto este não se move em

torno de si mesmo” (2003: 86), a filosofia se afigura como uma crítica “indireta”, igualmente

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77

imaginária e impotente. Por isso, “estudar a filosofia como crítica indireta da vida é encarar a

vida (cotidiana) como crítica direta da filosofia” (1977: 267).

Fazer da análise marxista um conhecimento crítico da vida cotidiana significa dotar a

análise e a própria vida de um sentido que só se revela plenamente em ato, através das

intervenções práticas. Essa análise mostrava o cotidiano como a realidade a partir da qual se

“destacam” os produtos alienados da atividade humana.47

A concretização da crítica da

alienação, por seu turno, só se torna possível graças a presença de uma força material capaz

de colocar um fim às separações no interior da atividade humana. Para Lefebvre, a

ambigüidade da vida cotidiana decorre da situação contraditória do proletariado no interior da

sociedade capitalista. Por um lado, ele é esmagado sob o peso do trabalho, das instituições e

das idéias dominantes. 48

Por outro, sua relação com a atividade produtiva faz com que ele

mantenha algo como um “senso de realidade” e um contato “orgânico” com a natureza (e com

a sua própria natureza) que os outros segmentos da sociedade, devotados às atividades

dispensáveis ou “improdutivas”, não possuem. Somente ao proletariado é reservado o

privilégio de ter a sua condição social atrelada a uma “atividade prática criadora” (1977: 156).

Por isso, a privação material e espiritual do proletariado se apresenta, de modo contraditório,

como uma condição rica em possibilidades - na medida em que as condições da alienação o

impelem à revolução contra o modo de produção existente.

A referência de Lefebvre ao capitalismo como uma sociedade agonizante estava presa à

expectativa dos comunistas em relação à sociedade burguesa: nada além de depressão

econômica, guerra, catástrofes e degradações. O desenvolvimento das forças produtivas

parecia depender essencialmente da capacidade do proletariado libertar o conjunto da

produção industrial socializada às restrições impostas pela propriedade privada dos meios de

produção. Só assim o “homem novo” poderia se realizar. Lefebvre evita o pessimismo

cultural que confundia a crise da sociedade burguesa com a crise da sociedade em geral. No

entanto, sua relutância em adotar um ponto de vista unilateral ou fechado para as

possibilidades históricas revela, por trás da visão “impressionista” do ocaso da sociedade

47 Lefebvre examina a natureza das relações capitalistas a partir de alguns de seus elementos, todos vinculados a alguma

forma de separação ou de ocultação das separações: a “consciência privada” como resultado da exacerbação do

individualismo em uma sociedade fragmentada; o dinheiro como forma abstrata da riqueza social; a mistificação como

ausência de transparência nas relações entre os indivíduos; a produção de necessidades articuladas à lógica “autonomizada”

da produção, etc.

48 Ao lado da crítica do dinheiro, das necessidades e da consciência privada, aparece também uma “crítica do trabalho” na

formulação lefebvreana (1977: 176). Essa crítica não se exprime em termos precisos. Mais exatamente, o conceito de

trabalho não é problematizado: trata-se da crítica da “alienação do trabalho” no contexto das relações capitalistas de

produção.

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78

burguesa, a idéia de um nexo necessário entre a crise do capitalismo e o momento positivo de

superação propiciado pela revolução proletária. Contudo, ao condicionar a crise, considerada

como manifestação do “último estágio” da sociedade burguesa, à ascensão de uma classe

antagônica que, por sua vez, era identificada com o progresso social, o “possível” ficava

limitado aos horizontes de uma tendência dada de antemão, enquanto a ação que tendia à

realização das possibilidades revelava-se somente um “reconhecimento” da tendência geral do

progresso histórico - e nesse aspecto Lefebvre permanecia fiel ao modo como Lênin concebia

a capacidade de atuação política no interior da necessidade histórica.49

Uma perspectiva diferente da noção vulgar de progresso que ensejou a imagem de um

parasitismo declinante da burguesia norteou as observações sobre o universo kafkiano que

Lefebvre retoma no final do livro para demonstrara coexistência e a imbricação entre o

absurdo e a razão moderna. Lefebvre afirmou, a partir de uma reflexão sobre a “barbárie

científica” da vida moderna, que faltava ao ideário de progresso da burguesia uma

compreensão menos unilateral dos fatos. Os aspectos contraditórios da evolução humana e do

processo histórico só poderiam ser apreendidos se a idéia de um “progresso material” aferida

em termos predominantemente técnicos e econômicos cedesse lugar ao exame da degradação

das condições concretas de existência dos indivíduos. Na mesma época em que Sartre

explorou o tema da crise dos valores e tradições, e que Adorno e Horkheimer trabalharam

juntos na Dialética do Esclarecimento, cujo objetivo era descobrir “por que a humanidade

mergulhou num novo tipo de barbárie em vez de chegar a um estado autenticamente humano”

(1985: 11), Lefebvre desenvolveu, em termos semelhantes, a idéia da convivência dialética do

absurdo e da racionalidade moderna: o absurdo no detalhe e na aparência revelava uma

racionalidade do conjunto (1977: 258).50

Por isso, os “momentos excepcionais”, nos quais as

situações extremas e a barbárie se revelam, não podiam ser inteiramente estranhos ao

cotidiano: “Numa fábrica, num escritório de administração, num tribunal, na caserna, ou

muito simplesmente numa grande cidade funciona um mecanismo implacável. E a Razão

49 Ao contrário do que se imagina, o reconhecimento de uma necessidade histórica não obsta de modo algum a atitude

voluntarista adotada por Lênin. Por isso, ele podia reconhecer ao mesmo tempo a inevitabilidade do socialismo como

resultado das leis da sociedade e afirmar a necessidade de ação política. “Com a mesma análise objetiva do regime capitalista

[Marx] demonstrou a necessidade de sua transformação em regime capitalista” (Lênin, 1948: 113). Nas palavras de

Plekhanov - o que existia de melhor na literatura marxista em matéria de filosofia, conforme a opinião de Lênin -, “a

consciência da necessidade absoluta de um fenômeno só pode aumentar a energia do homem que simpatiza com ele e que se

considera a si próprio uma das forças que originam esse fenômeno” (1963: 80).

50 Se a posição de Adorno e Horkheimer apresentava-se mais desesperançada do que a dos marxistas ortodoxos, incluindo os

posicionamentos de Lefebvre, isso se devia precisamente ao fato de a Teoria Crítica ter abandonado as idéias associadas à

ideologia da crise geral do capitalismo, e se aproximado de uma visão que tendia a afirmar a capacidade da sociedade

existente administrar suas contradições internas – incluindo a ação da classe operária – com maior eficácia.

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humana aparece apenas como uma razão inumana, remota, aterrorizante” (1977: 258).

Portanto, uma racionalidade aparente disfarçava a realidade irracional e, ainda mais

intensamente, os aspectos mais inumanos da Razão eram encobertos por uma aparência de

absurdidade (1977: 259). Depois que David Rousset, um sobrevivente do holocausto, chocou

a França do pós-guerra com o testemunho sobre o sistema concentracionário alemão, o que

transparecia no universo descrito por Kafka já não era nenhum conteúdo puramente fantástico

ou insólito, como julgavam seus poucos leitores de antes da guerra, mas a experiência mesmo

da sociedade moderna, levada às suas últimas conseqüências por uma racionalidade técnica a

serviço da barbárie.51

Na situação paroxista, na dramaticidade dos casos-limite, desvelava-se a

“essência” absurda da banalidade cotidiana. Lefebvre se pergunta então como interpretar o

poder do Castelo sobre os indivíduos: não faz tanta diferença se o poder é exercido pela

burocracia, pela racionalidade moderna ou mesmo pela providência divina. Essencial é o fato,

revelado pela obra de Kafka, de que a vida do homem moderno, especialmente as pessoas

comuns, tais como o agrimensor convocado para trabalhar no vilarejo administrado pelo

Castelo, é uma vida dominada pela contradição entre o absurdo e a razão, ambos “unidos de

maneira indivisível” (1977: 259).

Era nas cidades industriais e no modo de vida “moderno” que se fazia presente o universo

do absurdo e da racionalidade inumana. Seus elementos de irracionalidade tornavam-se ainda

mais visíveis quando confrontados com as formas de sociabilidade tradicionais, tais como os

vestígios de vida comunitária no campo. A despeito do tom negativo dessa abordagem, a

ênfase de Lefebvre nas formas de irracionalidade dominantes, que por si só contrastava com

qualquer otimismo militante, não dizia respeito a uma “condição humana” intransponível. A

análise que Lefebvre faz da festa nas sociedades camponesas fornece um exemplo do exame

dialético das potencialidades do ser humano. Ao contrário do lazer moderno, formado como

uma esfera afastada dos demais aspectos da vida social, a festa não representa, na tradição das

sociedades agrárias, uma cisão no interior das relações comunitárias. O que existe na festa em

termos de diferenciação em face de determinados aspectos do cotidiano só existe como

irrupção de forças acumuladas no próprio cotidiano. A festa possui a alegria e o sentimento de

comunidade, ao mesmo tempo em que se revela como parte integrante de uma totalidade

maior: uma “cooperação com a ordem natural”, como diz Lefebvre (1977: 217). O aspecto

ritual da festa camponesa, possuidora de uma dimensão cósmica que a liga organicamente à

51

Uma década depois, o mesmo Rousset se tornou o centro das atenções na Rive Gauche, denunciando os campos de

trabalho na URSS.

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80

natureza e à reprodução da sociedade, faz dela algo inteiramente distinto dos elementos

lúdicos presentes no modo de vida burguês, cuja característica básica é o fato de se

apresentarem tão apartados do cotidiano quanto as variadas atividades “especializadas” que

este modo de vida produziu. Formulada durante a euforia da Libertação, ela mesma uma

“festa popular” repleta de esperanças depositadas em um “renascimento francês” sob a

bandeira do socialismo, discussão aparentemente deslocada pois se tratava sobretudo de

trabalhar, produzir, mas é justamente essa contradição que anima a criticada vida cotidiana. O

que a crítica da vida cotidiana ensejava era o conhecimento de uma determinada configuração

histórica e social; uma reflexão sobre as possibilidades do humano em um contexto trágico,

marcado simultaneamente por possibilidades e misérias. Sustentava-se, enfim, que é no

cotidiano, e através dele, que tais possibilidades podem se afirmar. A perspectiva do possível

que se encontra nas páginas finais da obra de Lefebvre se constitui ao mesmo tempo como

uma crítica dos aspectos ordinários do cotidiano pelos momentos “convulsivos”, no sentido

empregado por Breton, e como um julgamento destes pelo que há de comum na vida

cotidiana. Na conclusão de Lefebvre, os elementos mobilizados contra a realidade alienada,

sejam eles o sonho e a arte ou a poesia e as formas modernas assumidas pela festa, deviam ser

criticados pela realidade cotidiana em função do que eles têm de parcial e provisório. A

superação das alienações no interior das relações modernas não poderia ser empreendida a

partir de algo alheio ao cotidiano. Por isso, nas palavras de Lefebvre, “o homem será

cotidiano ou não será” (1977: 140).

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81

2.1 A filosofia existencialista no pós-guerra

Entre os anos de 1945-7, enquanto Lefebvre concebia e publicava o primeiro volume da

Crítica da vida cotidiana, o PCF colhia os frutos políticos da sua combativa militância na

Resistência. Possuía então mais de 500 mil filiados e, pela primeira vez, o partido podia ser

considerado o incontestável representante político da classe operária. Os comunistas

afirmavam-se, ao lado do general De Gaulle, que liderou a resistência militar desde o

exterior, como uma das maiores forças políticas do país. O PCF era o “partido dos

fuzilados”, cuja dedicação à “grandeza da França” não podia mais ser contestada. Sem que,

na disputa pelo poder, um dos dois lados fosse capaz de sobrepujar o outro, formou-se um

instável governo unificado de reconstrução nacional. O PCF fez seu “chamado patriótico”

pela unidade de toda a Nação, dissolveu as milícias populares que permaneciam sob sua

influência e, já nas primeiras eleições, demonstrou grande força eleitoral, obtendo sozinho

28% dos votos. Em um livro dessa época, Lefebvre retoma sua posição sobre a necessidade

dos trabalhadores conquistarem a nacionalidade e a democracia: “A classe avançada”, diz,

não deve “nem deixar-se impressionar pelo nacionalismo burguês e ligar-se por um

juramento de fidelidade à concepção capitalista da pátria e às instituições que a representam,

nem afastar-se da nacionalidade” (1966: 34). Essa situação perdurou até 1947, quando os

comunistas, finalmente afastados do governo, deram uma guinada à esquerda em sua

orientação política, enquanto se formava, no plano internacional, a polarização ideológica da

“guerra fria”.

Além de assumir uma posição política cada vez mais importante, o marxismo, como

expressão teórica e política do movimento operário organizado, em certa medida conseguia

pautar o debate intelectual na França do pós-guerra. Dentro do espectro ideológico de

então, todos se posicionavam em relação a ele. Neste plano, contudo, o adversário imediato

do marxismo doutrinário do PCF não era nem o RPF gaulista, nem o movimento

democrata cristão (MRP) - e muito menos os socialistas -, mas a nova filosofia da

existência. Esta se popularizava rapidamente como a ideologia do pós-guerra através de

publicações como o jornal Combat, dirigido por Camus desde os piores momentos da

ocupação, e a revista Les Temps Modernes, criada em 1945 por Sartre, Merleau-Ponty e

Raymond Aron. Outros pensadores, como Jean Wahl e Gabriel Marcel, foram associados a

essa pouco definida corrente “existencialista", mas foi Sartre quem logo se tornou a figura

mais notória. Em termos políticos, o existencialismo de Sartre tendia a se afirmar como

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uma alternativa de esquerda não-comunista. Foi em torno dele que se formou o efêmero

movimento Socialismo e Liberdade, enquanto as obras literárias do período (por exemplo,

a trilogia Os caminhos da liberdade, escrita entre 1945-9) começavam a refletir a

experiência da Resistência através dos dilemas que envolviam a liberdade individual e o

engajamento. Um ensaio de divulgação, O existencialismo é um humanismo, de 1946,

resumiu os principais pontos de vista de Sartre, alcançando grande repercussão. O texto em

questão apresentava os temas da subjetividade e do “homem em situação”, abrindo uma

frente de combate contra o “esquecimento da liberdade” por parte do marxismo. Para

Sartre, era inadmissível que o homem, que parecia-lhe acima de tudo um ser atuante e

criador, se encontrasse subordinado a algum tipo de causalidade histórica exterior às suas

ações. O existencialismo superou a indiferença que o caracterizava antes da guerra e se

apresentou como um novo “estado de espírito”; pretendia ser, simultaneamente, uma

alternativa política, estética e filosófica. Camus, que formulou a moral da luta contra o

agressor alemão, falou, ao término da guerra, em passar da resistência à revolução,

enquanto Sartre classificou a posição do PCF, que havia renunciado a uma alternativa

socialista imediata, como um nacionalismo “defensivo” e “conservador” (2006: 186). A

posição política mais geral do existencialismo diante do problema comunista traduziu-se

no não reconhecimento da URSS como a encarnação do “poder do proletariado”, o que, no

entanto, não resultou em uma hostilidade aberta contra o regime de Moscou. Com uma

ressalva à tentativa frustrada de criar um movimento político e intelectual alternativo,

Sartre e seus amigos jamais levaram em consideração as opções mais a esquerda do partido

comunista. O posicionamento político que se afirmava relativamente ao PCF em Les

Temps Modernes podia ser definido como um tipo de distanciamento ao mesmo tempo

crítico e complacente: “pensávamos que a adesão ao comunismo era impossível,

acreditávamos que se impunha uma atitude de simpatia que conservasse as chances de um

novo fluxo revolucionário”, diz Merleau-Ponty (2006: 301).

A reação dos comunistas não tardou. Era preocupante o fato de, pela primeira vez, uma

corrente teórica de grande repercussão nos meios intelectuais, e cujos representantes também

haviam integrado a resistência, perseguir objetivos políticos de esquerda independentes da

orientação stalinista. A crítica do pensamento existencialista, que não deixou de apelar para

as corriqueiras campanhas de desmoralização dos adversários, refletia o início do isolamento

dos comunistas ocidentais no contexto da guerra fria. Apesar de poderoso, o PCF foi

impedido pelas circunstâncias políticas de dar um passo à frente; para manter o

compromisso com a estabilidade de uma ordem social que lhe garantia a influência sobre a

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classe trabalhadora, os comunistas a isolaram, fazendo uso dos aparelhos sindicais e de um

poderoso véu ideológico. Surgiu nesse contexto uma nova geração de ativistas, entre os

quais alguns ex-alunos de Sartre, como Jean Kanapa, que representava a estreiteza da

orientação “oficial” do movimento comunista imprimida por Zhdanov na URSS. Antigos e

importantes aliados do PCF, como Gide e Malraux, foram denunciados de modo

inquisitorial pelos representantes da linha cultural do partido. Foi nesse clima de polarização

do pós-guerra que Garaudy atacou a “filosofia reacionária” de Sartre, denunciando-a, em Les

Lettres françaises, como a ideologia de um “falso profeta” da pequena-burguesia. Coube a

Lefebvre, na condição de eminente intelectual comunista, convertido, após o

desaparecimento de Politzer, em porta-voz da filosofia marxista “oficial”, a tarefa de fazer

uma crítica mais abrangente do pensamento existencialista. Nesse período, que marca o

início do endurecimento ideológico do comunismo francês, as fórmulas mais incongruentes

de Lefebvre em relação à linha partidária perderam espaço em favor de uma postura bem

mais convergente.52

Foi como um representante da “ortodoxia” marxista que Lefebvre redigiu O

Existencialismo (1946), livro que incorporou parte do tom sectário utilizado pelo PCF nessa

época (o mesmo adotado, de maneira menos direta, contra os surrealistas), mobilizando-o

contra a nova “moda e esnobismo do pós-guerra”. Na primeira parte da obra, que apresenta

um título bastante pessoal, “Porque fui existencialista (1925) e como me tornei marxista”,

Lefebvre recordou as fórmulas existencialistas prefiguradas pela revista Philosophies nos

anos 20; em seguida, atribuiu a popularidade das “vedetes” do existencialismo à “incrível

inconsistência da filosofia universitária”, reduzida a uma “escolástica burguesa”, e à

“inutilidade da produção literária corrente” (1948: 15). A filosofia de Sartre, por fim, foi

rejeitada nos termos mais duros, como “la magie et la métaphysique de la merde” (1948:

86).

Ainda mais do que na Crítica da vida cotidiana, o livro sobre o existencialismo exprimia

uma enérgica “confiança” marxista na dialética do progresso e na missão atribuída à classe

52 Nessa condição de filósofo “oficial”, Lefebvre publicou algumas obras de divulgação do marxismo, tais como Marx e a

Liberdade (1947), Para compreender o pensamento de Karl Marx (1947) e um pequeno livro da renomada coleção Que sais-

je intitulado O marxismo (1948). Essas obras alcançaram grande difusão, inclusive internacional, mas o seu caráter didático e

o período em que foram escritas, faz com que elas não ofereçam uma imagem precisa da riqueza do pensamento lefebvreano.

Existem, nos textos desse período, inúmeras concessões à linha política e ideológica stalinista. Mesmo assim, as divergências

não cessaram. Em 1946, Lefebvre publica Lógica forma/lógica dialética, que era o primeiro de oito volumes de um

“Tratado” de materialismo dialético que não chegou a ter continuidade (com exceção de um segundo volume sobre a

metodologia das ciências, que permaneceu engavetado) por causa das discrepâncias em relação às posições do PCF. Segundo

Lefebvre (1995: 1), vigorava no partido a tendência à confrontação sectária entre a “ciência proletária” e a “ciência

burguesa”. Nesse contexto, o primeiro volume do “Tratado” foi acusado de não contribuir para a elaboração de uma “lógica

proletária”.

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operária. Era uma posição antípoda da ênfase sartreana na liberdade e na existência

individual que colocava em questão as causas e o sentido do processo histórico. Lefebvre

desenvolve, na segunda parte do livro, uma análise erudita e polêmica, centrada no exame

das obras de Kierkegaard, Nietzsche, Husserl e Heidegger, considerando-os como as fontes

do “neo-existencialismo” do pós-guerra. Lefebvre enxerga neste o saldo de todo um

movimento de renúncia do conhecimento objetivo da estrutura social – o que não o impede

de ver nos escritos de Sartre uma preocupação legítima com as condições concretas da

experiência humana, o que o aproximaria da crítica da razão abstrata realizada pelo

marxismo. Mas, de acordo com o ponto de vista de Lefebvre (aqui amalgamado com as

posições doutrinárias do PCF), o existencialismo isola a experiência interna dos indivíduos,

negligenciando a totalidade social para adotar os mesmos pontos de partida da tradição

metafísica: o “ser” e a consciência individual. Assim, pois, a ênfase que o pensamento

filosófico contemporâneo conferia à situação existencial foi considerada pelos marxistas

como o produto de um individualismo “pequeno-burguês” que prolongava o declínio da

filosofia iniciado após o esgotamento do sistema hegeliano.

Para entender o que isso significa é necessário voltar a Hegel, que representa, na leitura

apresentada por Lefebvre, a expressão teórica do apogeu histórico da sociedade burguesa. A

obra de Hegel é vista como uma construção intelectual profundamente contraditória: por um

lado, ela representa o maior esforço realizado pela filosofia para apreender a “totalidade

viva” e a racionalidade histórica - o que só acontece na medida em que essa totalidade é

aprisionada em um Sistema fechado, identificado com a Razão absoluta. Hegel almejava

abarcar o conjunto da realidade humana (o individual e o universal, a ação e o conceito,

etc.); mas a síntese por ele obtida só se efetuou ao preço da negação da “realidade humana

viva em proveito do pensamento puro e da „idéia‟” (1948: 100). Criou-se de tal modo o

sistema filosófico mais abrangente de que já se teve notícia, e contra o qual se insurgiu a

filosofia posterior, em nome dos instintos humanos e da angústia individual. Iniciou-se

então, no dizer de Lefebvre, uma “rebelião do irracional” (1948: 252), que teve como

resultado o desmoronamento do sistema filosófico de Hegel em inúmeros fragmentos

dispersos. Marx mobilizou alguns desses fragmentos, mas seu objetivo não podia mais ser

considerado “filosófico”. Já o prolongamento não-sistemático da filosofia seguiu um

caminho muito diferente daquele idealizado por Marx. Kierkegaard notou que era o

indivíduo concreto o grande ausente desse pensamento ordenador e enciclopédico que tudo

pretendia englobar. No entanto, a vivência individual por ele redescoberta logo foi isolada

da sociedade, restando absolutamente só na angústia e no desespero. Assim, o protesto

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contra a subordinação do indivíduo ao “pensamento puro” reconduziu a filosofia a um

“além” imaginário, pois o sentido da história vivida foi depositado numa transcendência

somente acessível ao homem por meio da fé religiosa. Nietzsche, ao contrário, atacou a

prioridade do saber sobre o vivido, colocando as contradições do indivíduo moderno em um

plano terreno e não mais nas abstrações espirituais. Entretanto, essa retomada da experiência

vivida sucumbiu à afirmação unilateral da vontade e dos impulsos vitais. Nos termos

freqüentemente empregados por Lefebvre, o “vivido” foi unilateralmente valorizado em

oposição ao “concebido”. O pensamento pós-hegeliano desenvolveu ainda, paralelamente à

descoberta e ao desvirtuamento da “vivência” por Nietzsche e Kierkegaard, uma tendência

oposta: o retorno ao formalismo abstrato típico da tradição “espiritualista”. Os filósofos que

seguiram esse caminho passaram a estudar abstratamente o conhecimento e o vivido, como

problemas dissociados das relações entre os homens. A crise do indivíduo moderno foi

reduzida a uma questão filosófica ingênua, separada do mundo prático e social. Husserl, que

buscou a relação da consciência com o mundo, é caracterizado em O Existencialismo como

o “mais monstruoso dos „homens teóricos‟” (1948: 175). Ainda que Husserl se aproximasse

da “vivência”, esta permanecia identificada com a consciência pura do filósofo, escapando-

lhe as relações do indivíduo com a realidade concreta, enquanto as contradições sociais eram

reduzidas a um conjunto de “erros” teóricos (1948: 178). A fenomenologia teria partido de

uma “subjetividade transcendental” para, só em seguida, voltar-se para “o mundo” e para a

experiência efetiva. Nessas condições, o filósofo tornava-se uma espécie de mônada solitária

e o mundo só se deixava apreender por meio de uma consciência inteiramente isolada. Em

Heidegger, por fim, convergiam as duas direções do declínio da filosofia posterior a Hegel:

o pensamento separado da vida social engendrou a consciência do vazio e o cotidiano foi

revisitado somente para ser desvelado como uma “queda” no universo das coisas e da

inautenticidade.53

53A posição de Lefebvre em relação a Heidegger não é simples como sugere essa critica sumária. Seu primeiro contato com o

pensamento do filósofo de Freiburg data de 1930, graças a Nizan, que lhe falou dele aproximadamente no mesmo momento

em que o grupo dos “filósofos” se dissolvia. Lefebvre recorda esse episódio em um diálogo com Kostas Axelos em 1959:

“proclamávamos o fim da filosofia diante da ação política. Digo bem o fim da filosofia e não a sua superação (...) No

pensamento de Heidegger vimos uma catarse do nada, uma espécie de purificação absoluta através da contemplação pura e

desesperada. Essa catarse nos parecia incompatível com o nosso gosto pela ação” (Axelos, 1973: 106). Essa recepção

negativa, baseada na absolutização do critério político, é anterior a adesão de Heidegger ao nacional-socialismo. Em 1946,

obviamente, a crítica de Lefebvre assumia um tom ainda mais pesado, mas, a partir do final dos anos 50, ele mostra-se mais

receptivo à problemática heideggeriana, como se depreende de um comentário a respeito dos Holzwege: “abordei sua leitura

com certa precaução, como uma obra literária e cuja poesia eu desejava impugnar. Depois, fiquei encantado e seduzido por

uma visão (...) tanto mais surpreendente, quanto se contrastava com a trivialidade da maioria dos textos filosóficos aparecidos

nos últimos anos. Ouvi como uma música nova o que Marx disse sobre a reconciliação do homem com a natureza” (Axelos,

1973: 105).

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A obra de Sartre ilustraria bem o impasse da filosofia contemporânea: seu ponto de

partida foi o contato com Husserl, cujo método foi-lhe apresentado por Raymond Aron. De

acordo com as recordações de Simone Beauvoir, foi em um café de Paris que Aron anunciou

de um modo prosaico a novidade: através do método fenomenológico a filosofia seria capaz

de trazer para si até mesmo as coisas mais simples e cotidianas, a exemplo do coquetel que

Sartre tinha em mãos. Segundo Beauvoir, era exatamente o que Sartre ambicionava: “falar

das coisas tais como as tocava, e que fosse filosofia” (apud Aronson, 2007: 54). Do

problema do método, a partir do qual foi abordada, entre outros tópicos, a questão do

imaginário, passa-se, em O Ser e o Nada, à elaboração de uma ontologia fenomenológica na

qual a consciência era identificada com a negatividade pura. As conclusões de Sartre,

aprisionadas nos problemas da consciência individual, não lhe permitiam ir ao fundo do

problema da alienação social. Para Lefebvre, tal limite marcava uma diferença fundamental

entre a crítica da vida cotidiana que destrói a “confiança e amor à vida” em nome do

“amargo ruminar do pessimismo, das desilusões e das decepções” (1948: 171) e a crítica

que, em contraste, coloca sua ênfase nas possibilidades do humano.

Posteriormente, o próprio Sartre consideraria o alentado volume de 1943 como “o fim de

uma formação burguesa e individualista” (apud Gerassi, 1990: 188). Durante a guerra, essa

filosofia “individualista” foi afinal confrontada com os dilemas práticos da vida social, entre

eles a necessidade do compromisso político e moral do filósofo. Tentando contornar o

impasse no qual havia se metido, Sartre se volta, então, contra o ponto de vista que adotara

até então:

“Cada palavra tem conseqüências. Cada silêncio também. Considero Flaubert e Goncourt

responsáveis pela repressão que se seguiu à Comuna porque não escreveram uma linha sequer

para evitar isso. Alguém poderia dizer que isso não é da conta deles. Mas o processo de Calas era

da conta de Voltaire? A condenação de Dreyfus, da conta de Zola? A administração do Congo, de

Gide? Cada um desses autores, num momento particular de suas vidas, avaliou sua

responsabilidade de escritor. A Ocupação nos ensinou a nossa. Uma vez que agimos sobre nossa

época pela nossa própria existência, decidimos que esta ação será deliberada” (Sartre apud

Aronson, 2007: 98-9).

A partir desse momento, tanto a reflexão teórica quanto a obra literária de Sartre

assumem um caráter cada vez mais político. Ele conclui que todo indivíduo é político, e que

mesmo a renúncia à ação é, em si mesma, um gesto que produz efeitos políticos. Nessa

transformação intelectual, que corresponde à passagem da ontologia à perspectiva histórica,

inicia-se um diálogo com a teoria marxista que resultará, depois de muitas controvérsias, no

apoio ao PCF, em 1952. Inicialmente, Sartre foi acusado pelos marxistas de pensar a

liberdade sob um ângulo abstrato, negligenciando as mediações sociais e a possibilidade do

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agir coletivo. Em termos práticos, o comportamento apolítico de Sartre o havia levado a

minimizar a importância das tensões que preparavam um novo conflito entre as potências

capitalistas – o qual, em 1939, ele ainda se limitava a considerar “uma idiotice total”,

ademais improvável (Gerassi, 1990: 163). Em conseqüência, Sartre não tomou parte em

nenhum acontecimento político dessa época: nem a Frente Popular, nem a associações de

escritores e artistas contra o fascismo. Só durante a ocupação é que o escritor, discípulo de

Heidegger, finalmente se convenceu da necessidade de reunir as “grandes consciências” da

França numa luta contra o invasor – e a partir de então, aderiu à Resistência. Portanto,

quando Lefebvre formulou sua crítica do existencialismo, em 1946, Sartre já se encontrava,

como notou Pierre Naville, em um “pré-engajamento”, ou seja, uma transição entre a

“consciência pura” e a tentativa de colocar o problema da responsabilidade do homem

perante os seus semelhantes. Em decorrência, Sartre adotou uma posição vacilante entre o

negativismo inicial e a concepção do humano e da liberdade como projeto. Os dilemas da

vida coletiva pareciam ganhar força em seus escritos, embora continuassem envoltos numa

constante hesitação. Esse movimento, presente na conferência de 1946, foi captado por

Lefebvre: “não se trata, de nenhuma maneira, de censurar em Sartre a sua evolução ao

humanismo”. Só que às tarefas políticas do pós-guerra, prossegue Lefebvre, correspondem

algumas tarefas filosóficas e, nesse sentido, “quem se propõe liquidar as seqüelas do

hitlerismo em todos os planos, julga inadmissível viver sobre um compromisso bastardo

entre o „estilo‟ heideggeriano e o do humanismo total” (1948: 234).

O existencialismo de Sartre foi visto por Lefebvre não como uma exitosa superação da

metafísica, e sim como uma deterioração intelectual dessa mesma metafísica no nível do

imediato e do não-conceitual; um passo atrás em relação ao pensamento de Hegel, que

considerou o “aqui e agora” somente um momento da consciência sensível, vale dizer, como

a primeira etapa do progresso do conhecimento e não a sua última palavra.54

O marxismo,

diz Lefebvre, rejeita a identificação da consciência com a existência; ele procura demonstrar

que “o ser consciente (o homem) não é consciente do seu ser, da natureza e da sua natureza,

de seus produtos sociais, de suas possibilidades” (1948: 262). Para dar conta de tal impasse,

a teoria marxista não se baseia numa “tomada de consciência” imediata, e sim nos meios de

superação real do estado de alienação social. A superação deveria ser pensada, então, no

contexto da ação da classe operária, nomeadamente em função da capacidade que se lhe

54 “A fenomenologia hegeliana contribuiu com um conteúdo incomparavelmente mais rico que a „descrição‟ de consciência

dos fenomenólogos contemporâneos, até quando estes enriquecem sua descrição a maneira de Sartre, com todo tipo de

anedotas „vividas‟, que nunca saem do imediato” (Lefebvre: 1948: 206).

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atribuía de superar a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações

de produção. Só por meio dessa força social atuante é que seriam eliminadas as limitações

impostas pela racionalidade abstrata e os homens se colocariam diante da necessidade de

organizar suas relações sobre novas bases. Tudo isso significava, por outro lado, transpor o

ponto de vista da consciência individual, reconhecendo o papel das classes sociais e das

relações econômicas como uma base na qual se desenrolava objetivamente a existência

humana.

A crítica Lefebvre, no entanto, deixava à vista não só uma admirável autoconfiança

marxista, mas igualmente, a certeza com que a teoria se fundamentava na “dialética

histórica” que Sartre recusou. Em que pese a disposição de abarcar a problemática do

engajamento, reconhecendo a existência do outro, e os conflitos de interesses que têm lugar

no interior da sociedade burguesa, Sartre não aprovava o esvaziamento moral acarretado

pela identificação da ação de uma classe determinada com um movimento ascendente da

história. Era contra isso que se voltava a preocupação com o “projeto” humano. Se o homem

é o que ele mesmo projeta para si, então não há como falar em “determinação” no que diz

respeito aos valores ou ao modo como a história é produzida. Na ausência de uma “essência”

humana anterior à existência, o homem estaria “condenado” a agir de acordo com suas

próprias escolhas e as condições nas quais ele se encontra – estaria “condenado a ser livre”,

como diz Sartre. O sujeito está colocado o tempo inteiro diante de escolhas e não pode ser

reduzido a um objeto da racionalidade histórica buscada pelo marxismo. Na conferência de

1946, Sartre afirma: “permaneço no reino das possibilidades; porém, trata-se de contar com

os possíveis apenas na medida exata em que nossa ação comporta o conjunto desses

possíveis”. E adiante: “Não sei qual será o futuro da revolução russa; posso admirá-la (...)

Mas não posso afirmar que tal situação irá forçosamente conduzir ao triunfo do

proletariado” (1987: 12-3).

Em síntese: faltava ao marxismo a dimensão da subjetividade e a liberdade de escolha

que só poderia se afirmar na especificidade do vivido e na “moral do engajamento”. O que

ressoa na crítica de Sartre é o confronto do “indivíduo isolado” de Kierkegaard contra o

movimento objetivo do sistema hegeliano. Quando o “eu” vivido concretamente se torna o

fundamento da ação, o homem deixa de ser uma peça no interior de uma dialética objetiva.

Para o materialismo filosófico marxista, no entanto, a realidade objetiva era compreendida

não só como exterioridade em relação à consciência, mas igualmente como um “sentido”

atribuído ao conjunto da atividade social - a ação política de classe operária se integrava

assim a uma dinâmica histórica definida em função do permanente desenvolvimento das

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forças produtivas. Sartre notou, a propósito, que a redução da liberdade a uma “causalidade

secreta”, cujas fontes remontam a Hegel, só podia ser interpretada como um sonho

proveniente da confiança no progresso seguro da humanidade (1987: 31). Na continuidade

dessa crítica, Merleau-Ponty sintetizou a posição existencialista: o mundo permanece aberto

às possibilidades humanas, pois “a própria contingência fundamental que o ameaça de

discordância o subtrai também à fatalidade da desordem” (1968: 183).

Na polêmica que conduziu em Les Temps Modernes a respeito da responsabilidade do

escritor, Sartre tentou realizar, no plano literário, a mesma passagem feita pela teoria, ou

seja, abandonar a presumida independência do pensamento e a “arte pela arte” em favor das

escolhas políticas que se impunham de acordo com a “situação” dos indivíduos. A discussão

foi compilada em Que é a literatura?, de 1948. Nesse conjunto de ensaios, Sartre continua,

como Lefebvre havia afirmado, em franca “evolução ao humanismo”, o que significava, nos

termos da época, a busca de um contato com as forças sociais capazes de edificar a nova

sociedade sem classes. Sartre se colocou, deste modo, em um campo bastante próximo ao

dos comunistas, embora estes preferissem desqualificá-lo, sem levar em consideração a

existência de um terreno comum. O fato, no entanto, é que Sartre se mostrava à época bem

distante do “pessimismo individualista” ou do ponto de vista apenas vagamente humanista

combatido pelos ideólogos do PCF. Antes de tudo, era a referência à produção das condições

materiais de existência que fundamentava o seu argumento sobre o engajamento.

O passo inicial de Sartre, no que diz respeito ao engajamento literário, consistia em

distinguir a contemplação desinteiriçada da linguagem poética e a prosa, considerando a

última como uma forma “utilitária por essência” (2006: 18). À pergunta “por que escrever?”,

responde: quando se trata de um autêntico impulso criador, é a si mesmo que o escritor

encontra nas obras que produz. Por isso, o escritor não realiza a obra para si, do contrário, lá

não encontraria nada além dele mesmo; a obra literária carrega seu sentido não só nas

palavras do escritor, mas também na relação com os leitores aos quais ela é destinada. Sartre

vê na atividade dos leitores uma postura criativa, embora estes sejam “conduzidos” pela

obra. A escrita, entendida como apelo dirigido aos outros, deixa de possuir uma finalidade

em si mesma (que é arrogada à poesia), para se propor como um fim para o leitor. A partir

dessa concepção, o problema central da literatura se desloca para a relação entre escritor c

público. Então, Sartre realiza uma análise da história dessa relação, centrando-se na

evolução da literatura francesa desde os clérigos medievais, que falavam apenas entre si a

respeito de valores eternos e imutáveis, passando pelos escritores da corte, no século XVII, e

os escritores burgueses do Século das Luzes, com os apelos à liberdade do “homem”. O

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século XVIII é descrito como o período no qual os escritores burgueses, engajados na luta

contra o regime aristocrático, fizeram da escrita um elemento de revolta identificado com a

democracia política. No entanto, quando o Ancien Régime foi suplantado, a ligação entre os

escritores e a classe burguesa se rompeu. A absorção da nobreza pelo regime burguês fez

com que o novo público não se encontrasse mais dividido e então à literatura só restou um

caminho: tornar-se útil e legitimadora ou rebelar-se contra as novas condições sociais. Após

1848, com as classes dominantes já “unificadas”, os escritores não tinham mais em nenhum

segmento da burguesia o apoio para um posicionamento autônomo, voltando-se então contra

o público em geral. Esse foi o período em que simultaneamente as exigências da escrita

literária tornaram-se incompatíveis com a ideologia “utilitarista” burguesa e o povo

começou a surgir como “objeto” em algumas obras. Em todo caso, os escritores recusaram o

“rebaixamento social” que lhes permitiria dar um novo conteúdo às suas criações,

permanecendo isolados dos movimentos proletários que começavam a ganhar força - assim,

a arte se isolou, diz Sartre, tornando-se perfeita e “sagrada” em sua falta de utilidade.

As observações de Sartre sobre o surrealismo são o ponto máximo dessa crítica da

atividade artística afastada das classes produtivas e reduzida a um “consumo puro” (2006:

99).55

Os movimentos de vanguarda posteriores a 1918 são vistos por ele como uma

continuação do negativismo dominante na literatura desde o momento em que a arte dos

jovens de origem burguesa perdeu o contato com a vida social. O surrealismo - ainda que se

lhe conceda o mérito de ser a principal expressão poética do período entre guerras -

representaria mais um passo na direção da “negação absoluta hipostasiada” (2006: 101). Os

escritores surrealistas não teriam estabelecido contato com nenhuma forma de “construção

concreta”, permanecendo ligados a uma ideologia irresponsável e “parasitária” que,

naturalmente, contrastava com qualquer tipo de austeridade. A onda de negatividade

provocada pelas vanguardas foi vista por Sartre como uma agitada, mas efêmera, “queima

de fogos” alimentada por uma ideologia do consumo perdulário dos bens acumulados pela

sociedade. Este seria um desdobramento da crítica da subjetividade contida na “escrita

automática” e da recusa do trabalho, na medida em que este, como diz Sartre, “implica em

conjecturas, hipóteses e projetos, portanto num permanente recurso ao subjetivo” (2006:

136). Com a mesma veemência, Sartre classifica a teoria do “dispêndio” de Bataille como

55 A crítica do surrealismo já aparece em escritos anteriores, como em 1946: “Está parecendo que, na ausência de uma

doutrina de vanguarda análoga ao surrealismo, as pessoas, ávidas de escândalo e de agitação, estão se voltando para esta

filosofia [o existencialismo], que, alias não pode ajudá-las em nada nesse campo; o existencialismo, na realidade, é a doutrina

menos escandalosa e mais austera” (1987: 4).

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um “eco enfraquecido das grandes festas passadas” (2006: 156). No entanto, Sartre não

desprezou o momento negativo da atividade literária: através dele era possível mostrar um

estado no qual o produtor não se reconhece e não encontra sentido em sua atividade, no

resultado de suas ações. Mais uma vez, o que estava em jogo para Sartre era a necessidade

de mostrar a história como resultado da ação livre e criadora dos indivíduos. Por isso, longe

de se conformar com a atitude negativa e isolada, a literatura deveria se engajar na afirmação

de um “fazer” coletivo, que Sartre não relutou em identificar com a atividade da classe

operária. Daí o elogio do homo faber e a idéia de uma “literatura da produção” (2006: 176)

que acompanham a depreciação das ideologias do “consumo puro”.

Assim, para o Sartre de 1948, “a sorte da literatura está ligada à da classe operária”

(2006: 186). No entanto, a relação entre os escritores e a ação criadora encontrava um

obstáculo intransponível: “a classe oprimida, enfiada num partido, abotoada numa ideologia

rigorosa, torna-se uma sociedade fechada” (2006: 181). O PCF assumiu o papel de

intermediário sem o qual não era possível estabelecer contato com as massas. Mas, para os

comunistas, as posições de Sartre sobre a necessidade de a literatura retomar os laços com a

sociedade eram insuficientes - ele podia compartilhar o mesmo “espírito produtivista” e a

recusa do “escândalo” das vanguardas, contudo, não acreditava que a liberdade do escritor

fosse compatível com a estreiteza ideológica e com a disciplina militante de um partido que

havia substituído a tática revolucionária pelo apaziguamento: “tranqüilizar a burguesia sem

perder a confiança das massas, permitir-lhe governar, mas conservando as aparências da

ofensiva, ocupar postos de comendo sem se deixar comprometer: eis a política do PC”

(2006: 188). Ao mesmo tempo, os editores de Les Temps Modernes faziam espantosas

concessões políticas, como a defesa dos expurgos na URSS, a cargo de Merleau-Ponty em

Humanismo e Terror,56

ou a insistência com que Sartre associava a “violência verbal” e o

aspecto de “grupo fechado” dos surrealistas aos conspiradores da Ação Francesa.

Nesse contexto, a crítica de Lefebvre ao existencialismo parecia fora de compasso, pois

se fixava em uma imagem do adversário que correspondia ao período anterior à guerra. Nem

o tema do engajamento, nem a adesão ao produtivismo entraram no esquema de

interpretação de Lefebvre. A visão deformadora, no entanto, não era casual. Os comunistas

não aceitavam mais as posições vacilantes com as quais se aliaram para formar a Frente

56 Para Merleau-Ponty, ao lidar com fatos reais e abertos para o futuro e não com “princípios gerais”, a justiça tornava-se

idêntica à perspectiva do governo revolucionário. Assim, ela não precisava julgar de acordo com provas materiais (nesse

sentido, as confissões obtidas por Vichinsky nos processos de Moscou eram uma fachada para as condenações políticas), mas

em função da responsabilidade histórica de fazer avançar a revolução. Nessas condições, assegura o filósofo, fazer oposição

ao sentido desse avanço encarnado pela linha oficial do Partido tornava-se “objetivamente” – isto é, independentemente das

intenções ou dos objetivos visados - o mesmo que cometer uma traição.

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92

Popular nos anos 30. Mesmo buscando um vínculo com a classe operária, Sartre continuava

visto como o filósofo-literato que esvaziava o conteúdo material da existência. As razoes

para isso decorriam mais da disputa pela atenção do público do que das posições assumidas

pelo existencialismo. Sartre era o “autor de uma filosofia complexa e atraente”, o “líder de

uma escola” que desafiava o marxismo como ideologia (Aronson, 2007: 139). Somente a

adesão efetiva à política do PCF, que Sartre se recusava a aceitar, o aproximaria dos

“produtores”, mas então era a liberdade do escritor que deveria ser esvaziada em proveito da

propaganda política. Para Lefebvre, no entanto, essa “filosofia da liberdade” deixava de lado

um elemento decisivo para a compreensão do funcionamento da sociedade capitalista: contra

a ingenuidade teórica do existencialismo, afirma que há de fato uma autonomização das

relações econômicas, embora não se possa atribuir a ela o caráter de uma “lei natural”. As

formas de objetivação social que atuam de modo determinante sobre os indivíduos são, na

realidade, o produto alienado de suas atividades – são uma “objetividade de pseudo-coisas

(1948: 262). O caráter fetichista das relações econômicas faz com que elas escapem à

consciência dos homens, impedindo-os de atuar livremente. É essa controvérsia entre a

liberdade individual e os fatores sociais e econômicos introduzidos pelo marxismo que

resultará, nos anos seguintes, em uma nova tentativa de síntese teórica realizada por Sartre.

O marxismo, por seu turno, será abrigado a confrontar seu otimismo histórico com as

circunstâncias trazidas pelo pós-guerra - e que seriam marcadas pela retomada do

crescimento capitalista -, o que não vai se dar sem profundas contradições.

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93

2.2 Os anos de glaciação da filosofia marxista

Durante a ocupação, Lefebvre foi impedido pelo governo de Vichy de continuar lecionando

no liceu. Ao longo de vários anos, a vinculação ao partido lhe proporcionou uma “humilde

vida militante”, bastante próxima dos trabalhadores, mas que, contraditoriamente, se revelava

uma vida isolada, voltada para o estudo e para a crítica da filosofia. A partir de 1940,

participou, como muitos outros, das atividades clandestinas da resistência. De 1944 até 1949,

trabalhou como diretor da Radiodiffusion française, uma estação de rádio de Toulouse. Desde

o final dos anos 40, com o seu plano de apresentação do marxismo parcialmente realizado,

Lefebvre mergulhou num estudo aprofundado do pensamento francês. O resultado foi uma

série de livros dedicados a apresentação de grandes pensadores, primeiro com Descartes

(1947), seguido de uma obra sobre Diderot (1949), dois tomos sobre Pascal (1949 e 1954) e

mais dois volumes publicados em 1955, sobre Musset e Rabelais. Desde 1948, trabalha junto

ao CNRS57

de Paris em uma série de estudos de sociologia rural, pesquisando os arquivos do

Vale de Campan e escrevendo o que viria a ser, em 1954, uma tese de doutoramento sobre a

região dos Pirineus. Em meio a essa intensa atividade, publicou, em 1953, uma pequena

Contribuição à Estética.

A inserção de Lefebvre em todos esses debates relacionava-se com a política partidária,

embora indicasse também um distanciamento em relação a ele. O período que vai de 1947,

com a dissolução do governo de unidade nacional na França e o início da campanha

zhdanovista, até os primeiros anos da década seguinte, foi o do reforço das posições

dogmáticas do marxismo francês. Isso se refletiu nas obras de Lefebvre, fazendo com que as

contradições que caracterizaram sua reflexão desde a adesão ao PCF se tornassem cada vez

mais infecundas (1973: 5). Lefebvre possuía luz própria; não era um repetidor de fórmulas

consagradas. Permaneceu dividido entre o homem de partido e o teórico desviante e original.

Em muitos aspectos, seu pensamento oferecia uma alternativa à filosofia marxista. Depois de

expulso do PCF, Edgar Morin comentou:

“[Lefebvre] era e segue sendo o único autêntico dialético do partido. Extraordinariamente

dotado e inteligente, talvez genial, se se tivesse permitido levantar vôo. Antes da guerra

arrancou a filosofia do seu sono letárgico, mas, como desgraçadamente toda filosofia do

real resulta impossível no partido, foi uma filosofia „pura‟, de igual natureza às filosofias

idealistas de que tanto criticava” (1976: 127).

57 Centre National de Recherches Scientifiques.

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94

Lefebvre pagou o preço por essa “originalidade”. Num total de onze obras escritas, entre

1946 e 1955, apenas quatro foram publicadas pela editora do partido. Alguns de seus livros

foram praticamente boicotados e o projeto do “Tratado” de materialismo histórico, a ser

difundido pelo partido em seus cursos de formação, foi interrompido. Em 1949, Lefebvre

entra para a redação da revista La Nouvelle Critique, mas nela não desempenha nenhum papel

relevante. Se em 1947 Kanapa o elogiava como o representante de uma “filosofia viva”, ainda

assim, durante o período em que esteve ligado à revista, Lefebvre não encontrou espaço para a

reflexão autônoma e com freqüência foi obrigado a se defender das acusações de “neo-

hegelianismo”.58

No debate francês, esse período assistiu ao florescimento de um pensamento cristão

renovado, que tentava responder às mesmas inquietações de um tempo de crise, guerras e

revoluções que propiciou o surgimento do existencialismo. Também em 1949, Lefebvre

participa como conferencista dos Rencontres Internationales de Genève. O evento reuniu

filósofos, teólogos e outros especialistas, cristãos e comunistas, para debater o problema do

novo humanismo. Além de Lefebvre, figuravam, entre alguns outros, Karl Jaspers, o cientista

J.B.S. Haldane e o teólogo Karl Barth. A participação de Lefebvre nos encontros de Genebra

fornece mais um exemplo do “espírito de partido” que o obriga a se posicionar entre os temas

mais ricos que podem ser extraídos da obra de Marx e a necessidade militante de fazer eco à

orientação comunista. Como em outras intervenções, Lefebvre desenvolve as noções de

“homem total” e de “alienação”, mas o que se destaca em sua formulação é o conceito de

“apropriação”. O homem define-se concretamente pelas formas de apropriação que se

constituem no intercâmbio material entre a sociedade e a natureza. Nessa concepção, a

liberdade humana é compreendida como uma ampliação contínua do poder sobre o mundo

natural, mas sem que o homem se dissocie inteiramente dele. Assim, o homem se desenvolve,

como um produto de sua atividade, através da apropriação da natureza (e de sua própria

natureza). A natureza dos indivíduos, que se transforma no curso do devir histórico e social,

se produz juntamente com numerosas formas de alienação: o “esquecimento” das mulheres, a

separação entre a cidade e o campo, a divisão da sociedade em classes, a consciência privada

do indivíduo burguês, separado da consciência social, etc. O projeto do homem total se afirma

como superação desse conjunto de separações, isto é, como uma crítica das diferentes formas

58 No entanto, era o stalinismo que se assumia como uma filosofia de Estado e que fazia deste, como Hegel fizera com o

Estado prussiano, a consciência de toda a sociedade, como recordou Lefebvre (1995: 2-4). Convertendo-se em porta-voz do

“Estado racional”, o marxismo inspirado por Stálin se despojava do que existia de mais concreto em Marx (e no próprio

Hegel) para transformar a teoria em uma síntese abstrata e definitiva.

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95

de manifestação da alienação. Nesse registro, Lefebvre polemiza com Jaspers, também ele um

representante da existenzphilosophie, a respeito do conceito de alienação em Marx (que o

filósofo alemão tentou reduzir a um empobrecimento dos temas hegelianos) e critica a

“caricatura do homem total”, ambicionada pelos regimes totalitários.

Entretanto, o que Lefebvre chama de regimes totalitário não abrange a sua variante

stalinista, mesmo que esta também tenha se caracterizado pelo enorme reforço do Estado e

pela autonomização das funções políticas, que serviram para mobilizar o conjunto da

sociedade em torno das exigências do processo de acumulação da “nova economia”. Aliás, na

definição do “homem novo” socialista, a ênfase não estava colocada na reconstituição de uma

comunidade social ou na autonomia individual e sim no triunfo do trabalho produtivo

massificado e nos êxitos do processo de modernização industrial. A ideologia comunista

“oficial” afirmava que a URSS estava em vias de superar toda e qualquer oposição de

interesses, incluindo a divisão entre o trabalho manual e intelectual, edificando uma coesa

“comunidade produtiva”. Nessa fábula stalinista, não havia lugar para as alienações

específicas do socialismo. Pelo contrário, o “homem novo” apontaria já no presente as formas

de pensar e agir coletivas do porvir, pois, na esteira do crescimento industrial, a estrutura

social da URSS estaria a ponto de se tornar superior à dos países capitalistas mais avançados.

Numa perspectiva semelhante, Lefebvre aborda, na Contribuição à Estética, o problema

das realizações culturais sob o socialismo de Estado. O livro reunia pequenos artigos escritos

entre 1947-8. Logo na introdução, uma epígrafe protocolar de Zhdanov defende a harmonia

das formas estéticas, dividindo espaço com uma falsa citação de Marx sobre a arte, “a mais

intensa alegria que o homem proporciona a si mesmo”, direcionada aos espíritos dogmáticos

do partido, para diminuir as restrições ao livro. Desde 1934 o realismo socialista fora adotado

oficialmente pelos partidos comunistas. Sem recusá-lo, Lefebvre defende a tese de que, na era

das revoluções proletárias, há um florescimento de “novas realidades” coetâneas à ruína da

arte burguesa, o que teria gerado a necessidade de um novo realismo como contraponto das

tendências negativas, individualistas e abstratas. Para dar conta dessa perspectiva, os critérios

de classe são utilizados abusivamente e, junto com eles, as idéias sobre a politização da arte. 59

A partir desse enquadramento, Lefebvre reconstitui a história da problemática estética no

interior da filosofia, abordando igualmente a contribuição específica de Marx e Engels, além

59 “A arte foi, em geral, uma arte de classe, associada aos destinos das classes dominantes, ao seu poder, ao seu luxo, sua

grandeza; logo, à sua decadência”. (1971: 55). Em seguida, são definidos os impasses da arte contemporânea: “Os indivíduos

isolados não se comunicam a não ser pelo seu lado negativo (separação, ansiedade, crueldade, desprezo, sadismo), o que

determina e limita singularmente os temas dessa „arte‟. Só uma classe nova e um conhecimento teórico do desenvolvimento

social podem recriar agora as condições da arte” (1971: 86).

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96

dos novos problemas envolvendo a relação entre forma e conteúdo na arte. Preocupa-se,

sobretudo, com os problemas acarretados pela autonomização da forma e procura resgatar,

através do conteúdo ideológico direto, a unidade da obra de arte e sua relação com a

experiência das revoluções socialistas do século XX.

A Contribuição à Estética encampa o realismo socialista e a visão partidária da arte e abre

uma verdadeira frente de combate contra as tendências modernistas. Afirma que a separação

entre a forma e o conteúdo é uma típica manifestação das artes associadas às classes

decadentes. A arte, para permanecer vinculada aos dilemas do presente, não poderia perder de

vista a sua unidade fundamental, bem como a primazia do conteúdo (ideológico) sobre a

forma.60

O problema da superação da arte, colocado por Hegel e retomado na Crítica da vida

cotidiana, a partir do debate dos anos 20 com as posições vanguardistas, desapareceu por

completo. Em lugar dessa problemática, são apresentadas algumas formulações simplistas,

como aquelas a respeito da “superação” do romance burguês. Esta crítica do romance não se

realiza à maneira de Breton, que o denunciou, no Manifesto de 1924, como um “estilo de

informação” ligado às formas tradicionais de expressão e às banalidades cotidianas.61

Bem ao

contrário, Lefebvre anuncia, sem mais, que a tradição do romance burguês será suplantada

pelas realizações de um realismo socialista. Como “superestrutura” de um novo modo de

produção erigido na URSS, esse realismo representaria a união da emoção estética com a

eficácia da política revolucionária. Ele também estaria vinculado ao triunfo do conhecimento

científico e, deste modo, devia se distanciar das formas de inconsciência e mistificação que

alimentaram as criações do romantismo e do surrealismo. O erro fundamental na estética do

período correspondente à ascensão do socialismo seria precisamente o de perpetuar a crença

na importância da inconsciência. Mesmo Lukács, de quem Lefebvre se aproxima em alguns

60 A obra de arte é definida como um produto de elementos naturais e imediatos (sensíveis), junto com mediações

conscientes: é o reencontro do sensível depois de passar pelo momento da mediação racional. Se tal reencontro não se realiza,

o imediato aflora como um “naturalismo” redutor da dimensão humana. Outra limitação é o formalismo: chegando aos

pontos mais extremos da experimentação unilateral da formal, a obra de arte se empobrece e tende a desaparecer. O

formalismo se volta contra a forma. As tendências abstratas e formais na arte são vistas como tendências especulativas,

separadas dos problemas “vitais” e das emoções. A pintura abstrata, por exemplo, “submete cores e formas a uma espécie de

„alquimia intelectual‟” (1971: 17). O cubismo apresenta importantes experimentações formais, mas oscila entre a capacidade

de fazer sensíveis as abstrações ou de tornar abstrata a sensibilidade. Outras tendências modernas, como a literatura

existencialista, também são acusadas: “as „obras‟ que se propõem somente intensificar a angústia, levar ao paroxismo a

náusea e o asco, não podem ter nenhum „valor‟ duradouro” (1971: 80).

61 Em Nadja, que narra os “caminhos sem destino” dos próprios surrealistas, Breton se distingue dos “empíricos do

romance”, “que pretendem pôr em cena personagens diferentes de si próprios...” (1972: 14). E no “Manifesto”, depois de

comentar o protesto de Paul Valéry, que não se prestava a escrever uma frase banal como “A marquesa saiu às cinco horas”,

Breton dá lições de como escrever falsos romances. Ainda sobre a banalidade (cotidiana) do romance ele afirma: “Digo

apenas que não tenho por hábito alardear os momentos nulos de minha vida, que pode ser indigno de qualquer homem

cristalizar os momentos que lhe parecem tais. Seja-me permitido não tomar conhecimento dessa descrição de interior: dessa e

de muitas outras” (Breton, 2001: 21).

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aspectos da caracterização do realismo, é criticado por se manter aferrado à época burguesa.

Essa crítica retoma a posição dos comunistas a respeito da burguesia “decadente”, após a

breve convergência, imposta pelo combate antifascista, entre o socialismo e as democracias

ocidentais. Projetando a reviravolta da situação política para o plano estético, Lefebvre

considera o grande legado clássico-burguês como uma expressão fidedigna dos conflitos de

seu tempo, mas esse fato, positivo à sua época, impossibilitava que a herança cultural

burguesa sobrevivesse ao declínio histórico de sua classe. Portanto, uma cultura socialista

renovada não podia se limitar a um lento desenvolvimento com base no legado humanista da

tradição clássica e burguesa. A autêntica cultura socialista só poderia florescer como um

produto de rupturas revolucionárias, ou seja, como resultado das novas lutas e conquistas do

proletariado (1971: 127).

Não por acaso, a Contribuição à Estética foi considerada “bastante medíocre” pelo próprio

Lefebvre em um livro posterior.62

De fato, ela reproduz com menor resistência do que em

outros escritos, a orientação ideológica do período que antecedeu a crise do stalinismo.

Mesmo assim, aparecem em suas análises alguns elementos destoantes em relação ao

partidarismo intransigente do movimento comunista e à renascença de um realismo

“passadista” na URSS. Lembrando a máxima do Fausto de Goethe, segundo a qual, a teoria

torna-se cinzenta quando separada da verde e fecunda árvore da vida, Lefebvre critica a

recuperação da herança do classicismo e do “realismo crítico” quando não devidamente

assimilada e atualizada por uma prática verdadeiramente criadora. Sua recusa das tendências

abstratas e “formalistas” se realizou nos mesmos termos: a abstração na arte foi considerada

como uma renúncia aos chamados “vitais”, estando a razão do seu limite num intelectualismo

excessivo.63

Sendo assim, a arte deveria extrair a sua substância da vida cotidiana. Certas

manifestações artísticas do passado, mesmo possuindo valor estético, permaneciam

intimamente vinculadas a formas sociais inferiores, afastando-se das condições de vida e das

possibilidades técnicas modernas. A sociedade moderna, sendo incapaz de reproduzir tais

manifestações no que eles possuíam de autêntico, acaba degradando-as a simples imitações

62 A soma e o resto (1959), obra em que o autor relata as suas “aventuras” e polêmicas dentro do PCF.

63 No entanto, o que é válido apenas para um abstracionismo mais conceitual não parece esgotar o problema. Lefebvre não

faz nenhuma referência ao fato, incômodo para a sua leitura, de que muitas tendências modernistas, chamadas “abstratas” e

“formalistas” por seus críticos, sobretudo na Rússia pós-revolucionária, visavam a relação da arte com a técnica, a produção

industrial, a propaganda e os objetos de utilidade na vida cotidiana. Até em Malevich, que levou o formalismo ao extremo da

dissolução formal, a idéia da autonomia da forma foi pensada não como um jogo intelectual, e sim como ruptura com a idéia

da arte como uma mera representação do real. Esse mesmo objetivo foi perseguido por outras tendências da vanguarda russa

dos anos 20. O construtivismo, por exemplo, assimilou novos materiais ligados à produção industrial e aos meios gráficos e

fotográficos, recusando a noção tradicional e “individualista” de “obra de arte”. Pensava-se que desse modo os produtos da

atividade estética poderiam tornar-se diretamente utilizáveis por uma nova cultura coletiva.

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formais. A arte do passado só pode ter sentido em função dos problemas e das condições do

presente, do contrário ela se transforma em uma representação morta da realidade. Com essa

crítica Lefebvre visava alertar para o perigo que acompanha a recuperação das formas

clássicas na pintura e na literatura por um humanismo e um realismo escolásticos,

conservadores e sem vida.

Outro problema do qual Lefebvre passou a se ocupar no final dos anos 40 foi o da questão

agrária: “durante dez anos, ou talvez mais, me dediquei aos problemas agrários. A título de

militante do Partido, mas também a título de investigador” (1975: 223). A escolha não era

casual e nem motivada por uma opção acadêmica. O problema agrário se impunha como um

dos principais, senão o maior, de todos os obstáculos à realização dos planos de “transição”

socialista. Na URSS, o processo de industrialização acelerada seguia seu curso, entretanto, os

programas de “coletivização” agrícola não foram capazes de obter os mesmos êxitos e

enfrentavam encarniçada resistência dos camponeses. Os graves problemas de abastecimento

nas cidades e a fome no campo eram freqüentes. No Terceiro Mundo e nas colônias o

problema agrário assumia igual importância. Além disso, a experiência chinesa se desenrolava

fora dos modelos tradicionais da esquerda e reforçava a idéia do camponês como um sujeito

político. Em suma, as circunstâncias da época faziam com que este se tornasse o um dos

problemas concretos determinantes e mais imediatos para a teoria marxista.

Lefebvre voltou-se para os problemas da reforma agrária e da estrutura econômica das

sociedades socialistas, mas, mesmo na condição de membro do PCF, era difícil o acesso às

informações relativas às economias dos países do Leste e da URSS. Nessas condições,

Lefebvre desenvolveu uma abordagem de caráter mais sociológico do que político, voltada,

além disso, para um estudo detalhado da realidade específica da França. Foi uma

oportunidade de colocar em evidência os limites do pensamento filosófico deslocado dos

problemas práticos, mas não exatamente no sentido de fornecer-lhe um “complemento

científico”. Lefebvre se preocupava, antes, com a confrontação entre o mundo filosófico e o

mundo não-filosófico, “em particular, entre o pensamento mais ousadamente abstrato e,

portanto, mais vasto, e a vida cotidiana”. (1973: 7). Em suas palavras, as pesquisas vinculadas

ao CNRS possibilitam “o trânsito da filosofia „pura‟ ao estudo da prática social e da

cotidianidade” (1973: 7). O recurso ao material empírico da sociologia, portanto, além de

fornecer o “ponto de aplicação” para as pesquisas, revelou-se uma alternativa à filosofia

marxista tradicional, conduzindo a teoria a uma dimensão concreta. Entretanto, Lefebvre

ressalta que a abordagem sociológica, em si mesma, esbarra em outros limites que fazem

necessária uma atitude crítica permanente: como saber parcelar, a sociologia pretende

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demarcar o “social” como algo distinto da lógica econômica e, ao mesmo tempo, visa o

conjunto social, o que só ocorre a partir do reducionismo sociológico (1973: 13). Por esse

motivo, a análise sociológica não poderia prescindir de todo um conjunto de complementos

que vão desde a pesquisa histórica até o senso de totalização (igualmente limitado) da

experiência humana presente na filosofia.

Os assuntos tratados por essa sociologia rural giravam em torno da teoria marxista da

renda da terra, das classes sociais, do modo de vida e da comunidade camponesa. Para

apreender toda essa diversidade, que é também o produto de uma longa tradição, Lefebvre

esboça alguns princípios metodológicos da abordagem histórico-sociológica (Cf. o breve texto

sobre as “Perspectivas da sociologia rural” publicado em 1949). Durante aproximadamente

dez anos, recolhe informações empíricas e históricas tendo em vista a elaboração de uma

teoria sociológica geral do problema camponês. Nesse percurso, surgiram alguns temas

derivados, como a questão regional e a influência da cidade, como centralidade política e

econômica, sobre o campo.64

No entanto, as análises revelam, contra as suas expectativas

iniciais, o declínio da importância do problema camponês e não a confirmação da sua

centralidade:

“A importância da reforma agrária e da questão camponesa diminuem pouco a pouco. As

potencialidades (revolucionárias) do campesinato se esgotam, depois de sua culminação na

China. Com Fidel Castro e a revolução cubana lançam um último resplendor, um último grito

que aviva esperanças quando já é demasiado tarde”. (1973:8).

A realidade camponesa foi ignorada pela teoria quando era o modo de vida dominante.

Seu estudo sistemático só começou no século XIX. Na França, foram os historiadores e

geógrafos que o iniciaram. Com freqüência, tais estudos se limitaram às descrições

monográficas de determinadas regiões. Tendiam a se perder em detalhes locais, deixando de

lado o essencial (1973: 70). Outro conceito que norteava os estudos, sobretudo os da

geografia humana da escola de Vidal de La Blache, era o de “gênero de vida”, pensado em

ligação com os regimes agrários e os quadros naturais. A abordagem da sociologia rural teria

como objetivo atualizar esse conjunto de conhecimentos empíricos, mas passando dos antigos

64 Em um artigo de 1945, Lefebvre desenvolveu uma crítica das políticas de centralização estatal articulada ao exame do

problema occitano. Seu artigo “enumera as contribuições da civilização occitana à cultura européia” como a “recondução das

tradições municipais romanas” e formas antigas e mais amenas de comércio. No entanto, “o bereau político do PC

anatemizou o artigo, mostrando assim sua essência centralizadora e jacobina” (Lefebvre, 1976: 136). Sobre a relação cidade-

campo analisada nos marcos da sociologia rural Cf. Clases sociale sem la sociedad rural. Toscana y la “mezzadria clássica”

em Lefebvre (1973).

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quadros estáveis que caracterizavam a realidade camponesa à sua inserção nos novos

processos sociais desencadeados pela industrialização.

A comunidade camponesa é vista por Lefebvre como uma forma social dotada de relativa

autonomia, uma vez que foi capaz de atravessar, com modificações pouco profundas, os

diferentes modos de produção, sem se confundir com eles. A comunidade camponesa é

definida como:

“uma forma de agrupamento social que organiza, segundo modalidades historicamente

determinadas, um conjunto de famílias fixadas ao solo. Estes grupos primários possuem por

uma parte bens coletivos ou indivisos, por outra, bens „privados‟, segundo relações

variáveis, mas sempre historicamente determinadas. Estão relacionados por disciplinas

coletivas e designam (...) responsáveis mandatários para dirigir a realização das tarefas de

interesse geral” (1973: 31-2).

Entretanto, Lefebvre observa ainda que esse tipo de organização comunitária do modo

de vida começou a ter as suas bases sociais corroídas pelo processo de industrialização que

acompanhou o desenvolvimento capitalista da agricultura. A comunidade perde sua

autonomia diante do poder de intervenção do Estado e do efeito dissolvente da uma

economia mercantil que se generaliza muito rapidamente. A sociologia tradicional (escola de

Durkheim) abordou esse momento de transição como a formação de uma nova solidariedade

“orgânica” proveniente do processo de individualização e da divisão do trabalho. Lefebvre

inverte essa fórmula, afirmando que onde o dinheiro se generaliza como mediação social,

não pode mais haver equilíbrio comunitário e nem organicidade, mas somente uma nova

forma de solidariedade “mecânica” entre indivíduos cada vez mais isolados – fórmula que se

aproxima das análises de Marx sobre o tema. Essa reflexão também se articulava ao

problema da coletivização da produção agrícola levada a cabo pela URSS. No entanto,

também aqui se manifesta o “otimismo histórico” de Lefebvre e sua referência positiva no

processo de “construção do socialismo” na URSS. Em primeiro lugar, a dissolução da

comunidade é vista como parte de uma necessidade do progresso histórico, que precisa se

realizar através da destruição das formas sociais obsoletas. A realidade camponesa deixa de

se reproduzir de acordo com os costumes tradicionais, na medida em que se insere em trocas

econômicas mais complexas e sofre a influência cada vez maior da vida urbana, do

desenvolvimento tecnológico e das políticas centralizadoras. A sobrevivência de formas

arcaicas - no domínio ideológico, sobrevivem mitos agrários; no plano estrutural,

permanecem os traços patriarcais da organização familiar (1973: 75) - passa a conviver com

relações tipicamente modernas. Em alguns lugares, como nos EUA, o processo de

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colonização marcado pelo predomínio dos modelos culturais urbanos resultou na ausência

de uma cultura camponesa tradicional. Diante dessa visão de conjunto, Lefebvre aponta a

possibilidade de um renascimento, sob novas bases técnicas e sociais, de antigas

características da comunidade camponesa, o que produziria um “novo sentido da Terra”

(1973: 38). De acordo com essa tese, a vida camponesa foi destituída de sua autonomia. Seu

futuro está ligado às relações de produção modernas. Nos anos 40, a industrialização da

agricultura seguia em duas direções opostas: a grande exploração capitalista mecanizada ou

a reestruturação socialista do campo. No que diz respeito ao socialismo, de acordo com

Lefebvre (1973: 38), a comunidade rural devia passar por uma ampla reestruturação

fundiária, além de modificações que envolveriam a criação de cooperativas destinadas a

superar o atraso da agricultura em relação à produção industrial e, por fim, pela criação de

agrocidades inteiramente novas.

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2.3 A crise do stalinismo

Com a exacerbação da luta contra os desvios ideológicos no interior do PCF,

aproximadamente a partir de 1947, a reflexão teórica autônoma ficou cada vez mais difícil. O

partido aglutinador dos segmentos progressistas da sociedade dava lugar, no contexto da

guerra fria, a uma organização cada vez mais isolada, empenhada em defender o modelo

socialista contra as denúncias anti-soviéticas que começavam a surgir e a expor o aparato

burocrático e repressivo da URSS. É verdade que, antes da guerra, publicações dissidentes de

esquerda na França alardearam uma série de denúncias sobre a degeneração do socialismo,

como o Stálin (1935) de Souvarine e, no ano seguinte, os escritos de Victor Serge. Naquela

época, obras com esse teor crítico não passavam de denúncias isoladas, eficazmente

desacreditadas pela propaganda dos comunistas. O caso de maior repercussão pública foi, sem

dúvida, o depoimento de Gide em Retorno da URSS, também de 1936. O escritor, que

desembarcou em Moscou ainda como um aliado do PCF, regressou afirmando que “no fundo,

o comunismo não existe mais lá, não há nada além de Stálin” (apud Winock, 2000: 375).

Mas, a despeito do impacto de declarações como essa, o papel decisivo dos comunistas na luta

contra o fascismo, durante a Segunda Guerra Mundial, minimizou as críticas ao sistema

“soviético” e deu munição à contra-ofensiva ideológica dos seus partidários.

Somente no final dos anos 40 é que a situação começou a se modificar. Primeiro, o caso

Rajk, na Hungria, que fazia parte da campanha de Moscou contra o “titoismo”65

; depois, o

processo Kravchenko, as denúncias de David Rousset sobre os campos de trabalhos forçados

(não mencionados por Gide) e mais uma grande quantidade de informações que se tornaram

cada vez mais freqüentes na imprensa francesa. Essa circunstância fez com que muitos

intelectuais e simpatizantes rompessem com o PCF. Curiosamente, foi nesse momento que

Sartre se aproximou mais decididamente da política comunista. Isso fez com que se

configurasse a ruptura com os seus antigos aliados. Entre eles Merleau-Ponty, que escreveu

As aventuras da dialética (1955), um conjunto de ensaios filosófico-políticos que dava luz a

65 O regime comunista da Iugoslávia, sob a liderança do marechal Tito, foi criado em 1945. Depois das primeiras

expropriação e estatizações realizadas no período da “centralização”, o governo se afastou da orientação stalinista, afirmando

sua autonomia. Como resposta à estagnação econômica, e com receio de uma intervenção militar soviética, o governo

estimulou a maior participação da classe operária. Os decretos de 1950 sobre a autogestão (na realidade, uma co-gestão ao

nível das unidades de produção) é anunciada como parte de uma política progressiva de “definhamento do Estado”, através

do alargamento dos espaços de participação das massas. Assim, “contrariamente à imagem comum, os iugoslavos atacam os

stalinistas em nome da ortodoxia marxista, e foram eles que, a propósito da URSS, elaboraram o conceito de „revisionismo

moderno‟” (Guillerm e Bourdet, 1976: 136).

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103

um novo debate no interior da esquerda francesa: a política comunista era analisada com o

objetivo de repensar o problema da dialética revolucionária. Antes disso, os únicos intentos

originais do pós-guerra em termos de reelaborarão crítica do marxismo partiram da Crítica da

vida cotidiana de Lefebvre e da revista Socialismo ou Barbárie. Criada em 1949 por um

pequeno grupo homônimo formado por intelectuais egressos da militância trotskista, esta

revista preocupava-se com uma redefinição do conteúdo do socialismo: seus eixos de

pesquisa dividiam-se entre o interesse pelas formas de organização conselhistas e importantes

análises do processo de degeneração da URSS. O livro de Merleau-Ponty, por seu turno,

retomava um debate iniciado nos anos 20 entre o marxismo “oficial”, que então começava a

usar o Materialismo e empiriocriticismo de Lênin como um manual de filosofia, e o marxismo

“ocidental“ de Lukács e Karl Korsch. Avança, em seguida, para um a crítica da filosofia

marxista-leninista, que tem em Lefebvre um de seus defensores, e para a discussão com

Claude Lefort sobre Trotsky. O último ensaio, que é também o mais longo, é dedicado a

Sartre e a sua justificação dos meios de ação do PCF em Os Comunistas e a paz (1952).

A análise de Merleau-Ponty parte do significado da obra de Lukács nos anos 20. Encontra-

se nela um esforço de renovação da filosofia marxista que, segundo o esquema interpretativo

de Korsch, liga-se espontaneamente à onda revolucionária inaugurada pela revolução russa.

Lukács pretendia incorporar a subjetividade à história, afastar de sua compreensão do

marxismo a noção de uma dialética da natureza ou do determinismo econômico. Em História

e consciência de classe, diz Merleau-Ponty, “a dialética das coisas apenas torna os problemas

cada vez mais urgentes, e é a dialética total, aquela em que o sujeito intervém, que pode

encontrar uma solução para eles” (2006: 37). Junto com a afirmação do marxismo como uma

filosofia da ação revolucionária do proletariado (na qual reside o sentido da história), Lukács

propõe uma análise da forma mercantil, em cuja estrutura ele pretende descobrir “o protótipo

de todas as formas de objetividade e de todas as formas correspondentes de subjetividade na

sociedade burguesa” (Lukács, 1989: 97). Daí se desdobra a teoria da reificação das relações

sociais, na medida em que a lógica da mercadoria transforma as relações sociais à sua

imagem, produzindo a inversão fetichista da atividade social e dos seus produtos: as coisas,

enquanto mercadorias, relacionam-se entre si numa “objetividade fantasmagórica” (Marx),

enquanto as relações entre as pessoas assumem a forma de coisas.

Essa análise da lógica da mercadoria, no entanto, estava inteiramente ausente nas

formulações marxistas tradicionais ou então era apreendida superficialmente, como uma

espécie de “extensão” filosófica de pouca importância para a crítica das relações capitalistas

de produção. É o que Merleau-Ponty constata: “...a ortodoxia marxista não enfrenta

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francamente o problema. Contenta-se em justapor as coisas e as relações entre as pessoas, em

agregar à dialética uma dose de naturalismo” (2006: 79). Os livros de Lefebvre datados desse

período (do imediato pós-1945 até a crise do stalinismo) são exemplos significativos do

conflito entre a análise da estrutura da mercadoria e o naturalismo cientificista, típico da

versão ortodoxa da teoria marxista criticada por Merleau-Ponty. Lefebvre afirma, por

exemplo, que “o desenvolvimento histórico é um processo „natural‟ e deve estudar-se como

tal, isto é, „objetiva e cientificamente‟” (1966: 148). Não é, de modo algum, uma afirmação

isolada. Exemplo disso é a sua apresentação didática do marxismo, de 1948, na qual se afirma

que o caráter inconsciente e objetivado das relações de produção se dá em dois planos: uma

objetividade natural que caminha rumo ao desenvolvimento das forças produtivas e da “crise

final” e, por outro lado, uma objetividade apreendida como momento “ilusório”, que a

organização socialista da produção deve submeter ao seu controle racional (Lefebvre, 1979:

66-7).

O ano de 1956 é decisivo para os rumos da teoria marxista e do movimento comunista

internacional. Em fevereiro deste ano, abrem-se os trabalhos do XX Congresso do Parido

Comunista da União Soviética (PCUS) e, entre outros temas, discute-se a questão do culto à

personalidade de Stálin (morto três anos antes), considerado doravante como um desvio

ideológico no interior da vida partidária. Pela primeira vez era reconhecida, e pelas próprias

autoridades de Moscou, a crise no interior do marxismo. A situação gerou muita instabilidade.

Em vários países socialistas as oposições cresceram e tomaram como base para sua atuação o

“discurso secreto” de Kruschev. Nesse ano de 1956, Lefebvre se referia a esse problema no

prefácio à reedição de um dos seus livros:

“Na altura em que este livro saiu (1948), o marxismo atravessava uma espécie de crise,

bastante dolorosa e difícil; e o mal-estar que se seguiu, tanto entre os marxistas convictos

como entre todos os que, de perto ou de longe, se interessavam por ele, não desapareceu

ainda” (1966: 9).

No caso francês, antes mesmo da confusão ser deflagrada, surge no interior do PCF uma

oposição. Lefebvre assinala em suas recordações: “se segui como membro do partido depois

de 1948 foi precisamente porque a luta ideológica, teórica e política havia começado no seu

interior” (1975: 88). O outro acontecimento decisivo ocorrido em 1956 foi a rebelião anti-

burocrática na Hungria, seguida da intervenção das tropas do Pacto de Varsóvia. Na França, a

repercussão entre os simpatizantes do partido foi enorme. Os eventos da Hungria, e também,

numa proporção menor, as greves operárias na Polônia, reivindicavam reformas drásticas no

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regime, com maior liberdade de expressão e formas autogestionárias de organização. Nas

palavras de Kostas Axelos, “a insurreição húngara e o movimento revolucionário polonês de

1956 criaram certa efervescência e agitação política e ideológica na esquerda da „margem

esquerda‟ de Paris...” (1973: 168). Muitos militantes se desligaram do partido. Surgiu uma

oposição política de esquerda contrária à orientação stalinista e, pela primeira vez em muito

tempo, referenciada em acontecimentos objetivos. Durante esse processo, se deu a ruptura de

Sartre, então o intelectual de maior expressão pública do país, com o PCF. Ocorreu, além

disso, a criação de um “Circulo internacional de intelectuais revolucionários”, incluindo

colaboradores da nova revista de Breton (Le surréalisme même), o grupo Socialismo ou

Barbárie e alguns outros. Estavam em pauta os conselhos operários, a questão colonial e a

crítica da ideologia marxista “oficial”. No mesmo ano, como iniciativa de alguns intelectuais

independentes e ex-comunistas, nasceu outra revista vital para o desenvolvimento da nova

esquerda francesa, a Arguments.66

No interior do PCF também surgiram diversas reações à crise da ideologia stalinista.

Nessas condições, a posição adotada por Lefebvre foi passar à luta aberta contra o

dogmatismo. Em 1955, publicou o ensaio “Uma discussão filosófica na URSS”, no qual

constatava que todas as questões herdadas do hegelianismo e elaborados criticamente por

Marx foram recusados ou condenados de modo arbitrário pela filosofia oficial: a “alienação”,

o “homem total”, além de algumas pesquisas sobre as formações históricas pré-capitalistas

que não se encaixavam no esquema stalinista da sucessão dos modos de produção. No mesmo

ano, Lefebvre participou de uma homenagem a Lukács organizada pelo instituto húngaro de

Paris, por ocasião do seu 70o aniversário. Existia um “caso Lukács” instaurado nos anos 50, e

Lefebvre, que o havia encontrado duas vezes, uma em Paris em 1949 e outra em Budapeste,

toma partido do pensador húngaro e de sua crítica dos limites do realismo socialista. Em sua

conferência, que as autoridades ideológicas do PCF se recusaram a publicar, Lefebvre

desenvolve uma breve avaliação do conjunto da produção teórica de Lukács, mostrando-se

bastante familiarizado com seus escritos. A importância das teorias estéticas de Lukács pode,

segundo ele, ser dividida em três pontos: primeiro, na maneira como a herança clássica é

retomada sem cair no academicismo ou na imitação do estilo; em segundo lugar, o novo

66 A revista Arguments abriu espaço para nomes como Kostas Axelos, Edgar Morin, Roland Barthes, Jean Duvignaud, Pierre

Fougeyrollas, etc. Esses autores desenvolveram todo um conjunto de temas novos, da crise do marxismo ao problema da

modernidade, passando pela questão da técnica, da linguagem, da moda. Uma novidade, que apareceu com mais força nos

livros de Axelos, era a reflexão sobre a técnica e a modernidade a partir de um diálogo entre Marx e Heidegger. Em seguida,

a revista se tornou uma importante coleção editorial na qual foram lançados, entre muitos títulos, a primeira edição francesa

de História e consciência de classes de Lukács, Marxismo e Filosofia de Korsch, Eros e Civilização de Marcuse, além de

vários livros de Trotsky e Pierre Broué e muitos outros. Lefebvre publicou quatro livros pela coleção, incluindo a Introdução

à Modernidade, de 1962 e seu Matafilosofia, de 1964.

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realismo (socialista) também não se define por um estilo (uma forma), e sim pelo método que

apreende o conteúdo para dar-lhe a forma apropriada. De outro modo, o realismo ficaria

reduzido a um esquema formal. Por fim, Lukács diferencia-se do mero historiador da

literatura, pensando sempre no interior dos conceitos estéticos (1986:76).

No entanto, na apreciação crítica do conjunto da obra de Lukács, Lefebvre também ratifica

suas críticas anteriores ao livro de 1923 e discorda de alguns aspectos importantes de A

destruição da razão (1954). Os motivos da divergência estavam nas “conclusões” a respeito

de Nietzsche e do romantismo. Lefebvre ressaltou a diferença entre o desenvolvimento

peculiar da cultura alemã, que conduziu a um processo destrutivo, e a tradição romântica em

geral, que, em muitos aspectos, chegou a possuir uma disposição subversiva - ou até mesmo

revolucionária. Mesmo levando em conta as advertências de Lukács, sobretudo no que diz

respeito ao contexto especificamente alemão, Lefebvre afirma que o romantismo não pode ser

sacrificado globalmente. No caso da França, foi o romantismo que captou as sensações mais

profundas da vida e mostrou as contradições no interior do indivíduo burguês, com todos os

momentos conflituosos cada vez mais intensos entre o “eu” e a sociedade, entre a consciência

e a vida, etc. Ele foi o produto de um desajustamento social que revelava as alienações das

relações humanas. Com os escritos de Nietzsche ocorre algo semelhante. Tal como no livro de

antes da guerra, Lefebvre vê no filósofo alemão não só o anúncio do irracionalismo e da

vontade de poder, mas também a revelação dos sintomas da modernidade, como os limites do

projeto de racionalização da vida moderna e as aporias do progresso burguês.

Nessa controvérsia surge, pela primeira vez, mas ainda debilmente, a afirmação da

perspectiva romântica de Lefebvre. Poucos depois ele afirmaria de maneira mais categórica:

“Hoje constatamos na estética inspirada pelo marxismo, duas tendências. Uma na direção

do neoclassicismo, fundada no estudo do romance, de obras pictóricas. Outra, na direção de

um neo-romantismo, fundada no estudo da música, da poesia e do teatro. O filósofo

marxista Georg Lukács, que merece o respeito universal, liga seu nome à primeira

tendência. O autor do presente livro espera ligar o seu nome à segunda” (1958:3).

Do ponto de vista político, as posições de Lukács e Lefebvre convergiam em pontos

importantes. Ambos realizaram, ao longo dos anos 40-50, uma crítica indireta do stalinismo,

que partia da defesa da autonomia intelectual diante do poder do aparato partidário-estatal.

Em meados dos anos 50, Lukács não seguiu a “linha dura” stalinista e se comprometeu, na

condição de ministro da cultura do governo Imry Nagy, com as reformas anti-burocráticas. No

mesmo período, Lefebvre passou a fazer uma oposição declarada no interior do partido, o que

lhe valeu, depois de algumas controvérsias internas, uma “suspensão” por período indefinido.

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107

O período de crise do marxismo levou Lefebvre à radicalização de suas posições e à

possibilidade de desenvolver temas até então somente esboçados. O resultado foi uma

campanha contra os dogmas vigentes no PCF: rechaça o subjetivismo de classe, para o qual a

luta de classes parecia capaz de esgotar as relações de produção, e insiste na importância de

um retorno às fontes do pensamento crítico, em particular as obras da juventude de Marx e

sua relação com os conceitos utilizados em O Capital.67

No debate político, o ponto

primordial era a crítica da vulgata stalinista em seus diferentes aspectos, o que implicava,

além disso, a ruptura com o modelo do socialismo estatal em vigor na URSS e na Europa do

Leste.68

Lefebvre volta sua atenção para o caso iugoslavo, que, segundo ele, enfrentava pela

primeira vez, desde a estabilização política dos regimes pós-revolucionários, o problema das

bases sociais e econômicas do desaparecimento do Estado (1958:33).

Outra inflexão decisiva de Lefebvre se deu no âmbito estético. Também aqui ele não

acompanha Lukács. Em uma carta de 1956, endereçada ao redator de um periódico cultural de

Moscou, Lefebvre reafirma sua posição “romântica” em termos mais ostensivos do que na

conferência do ano anterior: as vanguardas dos anos 20, diz ele, tiveram um papel importante

na afirmação da modernidade. Cultivaram, além disso, um espírito anti-burguês que as

aproximou da revolução de 1917. Se o modernismo das vanguardas representava um processo

de dissolução da cultura, ele não deixava de oferecer, em contraposição, um caráter ativo e

criador. Toda a arte desse período representaria uma dimensão inventiva, seja ela atrelada ao

processo modernizador ou à busca surrealista de um novo “estilo de vida” avesso à estética

tradicional. Lefebvre recorda que, no interior do debate marxista, a proletarização da cultura

foi imposta pela via burocrática, desaguando em um conformismo por ele caracterizado nos

mesmos termos em que Breton já havia feito no “Segundo Manifesto”: os escritores do

realismo socialista “cantaram a felicidade conjugal, as qualidades familiares, o trabalho bem

67 “A teoria da „alienação‟ (separação do homem de si mesmo, por algumas das obras e produtos da sua própria atividade)

torna-se em O Capital a teoria do „fetichismo‟ (o dinheiro que representa relações sociais e relações históricas entre os

homens, adquire uma espécie de realidade independente)” (1966: 17).

68 Lukács não seguiu o mesmo caminho. Mesmo tornando-se alvo de perseguições e campanhas de difamação, o pensador

húngaro jamais rompeu politicamente com o regime. Em sua Carta sobre o stalinismo, redigida nos anos 60, Lukács fez um

balanço histórico do movimento comunista, insistindo na falta de abertura para as discussões durante o período em que Stálin

reinou absoluto, e falou ainda das numerosas perseguições e condenações injustas, demonstrou como a orientação política e

ideológica do movimento foi prejudicada pelos equívocos do “partidarismo” e do “taticismo”, mas, em última análise,

prosseguiu justificando as iniciativas políticas decisivas do próprio Stálin. Entre outros trechos: “Neste período [após a morte

de Lênin, em 1924] Stálin se revelou um estadista notável e que via longe. Sua enérgica defesa da nova teoria leninista

quanto à possibilidade do socialismo em um só pais, contra os ataques sobretudo de Trotsky, representou, como não se pode

deixar de reconhecer hoje, a salvação da revolução soviética. É impossível fazer justiça histórica a Stálin sem considerar

deste ponto de vista a luta de tendências havida no partido comunista” (1967:31-2).

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feito, o devotamento, em resumo, todas as virtudes que os escritores burgueses não ousavam

enaltecer, com medo de cair no ridículo” (Lefebvre, 1969b: 133).

Pouco depois, em um importante texto de 1957, publicado na Nouvelle revue française,

Lefebvre volta ao problema do romantismo, apresentando-o dentro de um enquadramento

mais amplo que o do debate estético. O romantismo é tratado nesse novo texto como a busca

de um “estilo” que aprofunda a idéia do indivíduo “desgarrado” em busca da intensificação da

vida. Na consolidação da modernidade, contudo, o ímpeto romântico acaba assumindo um

conteúdo original, revestido de um caráter revolucionário que nada tem a ver com as visões de

mundo cosmológicas, nutridas pela evasão estética ou pelos mitos passadistas. O romantismo

original defendeu uma nova relação entre a arte e a vida. Se o Werther de Goethe, que

anunciou o movimento na Alemanha, foi um porta-voz da angústia da juventude e do protesto

contra uma realidade que sufocava a “plenitude da existência”, Lefebvre retoma esse protesto

como um símbolo da oposição da juventude moderna às formas de alienação do presente.

Esse novo romantismo implica um ajuste de contas com alguns pontos de vista apresentados

na Crítica da vida cotidiana a respeito do modernismo literário e uma ruptura total com as

posições realistas afirmadas nos ensaios “partidários” sobre a teoria estética. Nessa nova

leitura, Lefebvre encontra em Baudelaire e no seu “terrorismo poético anti-burguês” uma

primeira manifestação do novo romantismo. O mesmo vale para o surrealismo, ainda que

Lefebvre lhe repreenda o fascínio “ocultista” pelas imagens e objetos extraídos e deslocados

da vida cotidiana.69

A postura romântica parte da constatação de um vazio espiritual: os herdeiros da tradição

realista continuam apresentando grandes ambições, mas são pobres em realizações. Isso é

ainda mais válido para o realismo socialista. É grande a sua tendência em ocultar os

desacordos fundamentais entre o indivíduo e a sociedade moderna. As realizações poéticas

tornaram-se igualmente escassas e Lefebvre chega a afirmar que o tempo das vanguardas

acabou (1975: 139). Com autores como Beckett e Ionesco, o teatro consegue captar algo de

sua época, como os limites da expressão que manifestam a crescente impossibilidade de

comunicação entre os homens, mas isso somente para converter o problema da ausência numa

ausência de problemas dirigida aos “restos da humanidade” (Ionesco). Essa crise se propaga

para outros domínios e coloca a urgência de uma nova forma de comunicação. À sensação de

69 Em fins dos anos 50, Lefebvre também reformulou a sua visão sobre o surrealismo. Ele o concebeu desde então como uma

continuação (e também uma forma de degeneração) do romantismo e descreveu a apreciação negativa da “Crítica” de 1946

como unilateral: “O erro do surrealismo como doutrina (...) não impede que [ele] exprima certas aspirações de uma época”

(1977: 37). O desprezo pelo mundo utilitário, identificado com a vida cotidiana, era, ao mesmo tempo, um desprezo pela

“prosa do mundo burguês”, e isso conferia um sentido crítico à revolta do surrealismo.

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incompletude do primeiro romantismo, que reagia de maneira escapista contra o esvaziamento

do sentido da existência humana, o novo romantismo opõe a busca (revolucionária) do

possível. Para tanto, é preciso chegar à raiz do mundo alienado que impede a realização do

homem. Essa tarefa a fascinação e o sentimentalismo românticos não conseguiram realizar. O

indivíduo que opunha resistência à frieza racionalista do mundo terminava por isolar-se em si

mesmo, perdendo toda a lucidez crítica, como no Werther de Goethe, para quem o prazer de

viver se dissocia do conhecimento: “Deus do céu! Arranjaste o destino dos homens de sorte

que apenas possam ser felizes antes de alcançarem a razão ou depois de perdê-la!”.70

A tarefa

do novo romantismo é explorar o possível. No entanto, mantendo a consciência reflexiva do

estado de alienação social.

Na crítica da alienação, o novo romantismo se distancia espontaneamente do mundo

existente, abrindo-se para a criação do possível. Paralelamente a esse debate, Lefebvre retoma

a obra de Rabelais como um exemplo da postura crítica na qual se ajustam a tentativa de

exprimir as dores do tempo presente e a percepção do nascimento de uma realidade

inteiramente nova. Daí a importância do riso, que zomba das tradições e da visão hierárquica

de mundo, atrelada a uma sociedade que começa a expor seus anacronismos. Lefebvre

interpreta a obra de Rabelais, produzida numa época de grandes mudanças históricas – a

transição para o mundo burguês -, como uma “exploração do real pela imaginação” (2001:

214). Para esse “visionário realista”, a fantasia e a imaginação não escapavam ao real,

tornando-se meios para que a razão o penetrasse mais profundamente. Pode-se dizer que o

novo romantismo segue o caminho aberto por esse ilustre precursor. Só que, ao deparar-se

com os impasses da vida moderna, ele precisa assumir a contradição entre a abertura para um

possível cada vez mais ilimitado, propiciado pelo avanço técnico, e o estado de impotência

generalizada que domina a sociedade. Introduzindo a imaginação na crítica do real, o novo

romantismo se torna capaz de pensar as contradições da vida cotidiana em termos diferentes

dos adotados pela postura política e estética do realismo convencional.

Ao questionar os cânones do realismo socialista Lefebvre se colocou em franca oposição

ao marxismo ortodoxo do seu tempo. As suas idéias acerca do romantismo revolucionário, do

mesmo modo que o romantismo tradicional, representavam muito mais que uma polêmica

estética. Não por acaso, a fórmula retomada por Lefebvre foi muito comum nos primeiros

anos da revolução bolchevique, quando esta ainda se caracterizava pela efervescência política

e social. A retomada dessa perspectiva do inconformismo romântico implicava uma revisão

70 Os sofrimentos do jovem Werther, (carta de 30 de novembro).

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110

profunda da teoria marxista e o despertar do “sono dogmático” imposto pelas ideologias do

crescimento econômico. Ainda que as oposições à linha stalinista tenham sido derrotadas

(provavelmente, já em 1956), essa revisão da teoria marxista conseguia captar as

manifestações de uma nova visão de mundo anti-autoritária que surgia fora das organizações e

instituições políticas. Essa crítica atualizava-se em relação às exigências da sociedade

moderna, contudo assumia certo distanciamento em relação ao presente e às ideologias

pragmáticas. Sua forma de manifestação dialética é o Lefebvre chamou de possível-impossível

(1973b: 50). O possível é o que se opõe ao real, embora continue pertencendo a ele. Quando

se fixa no que é imediatamente dado, o possível fecha-se para a mudança, recusa o impossível

e se “instala na vida”, como diz Lefebvre. A busca de outro modo de vida só pode ser pensada

no terreno do possível, mas desde as suas contradições internas, ou seja, a partir daquilo que

aparece imediatamente à consciência dos sujeitos como impossibilidade. “O homem em busca

do possível: essas palavras não designam um solitário, um intelectual, um poeta profético”

(1973b: 50). Tais palavras refletem, pelo contrário, uma condição histórica. Entretanto, não é

na esfera da produção que Lefebvre encontra as manifestações do possível. Elas se dão no

domínio cada vez mais ampliado do tempo livre, domínio no qual se mobilizam todos os que

desejam viver integralmente a vida, incluindo a juventude insatisfeita, as mulheres, que

suportam duplamente o peso da vida cotidiana, colocando no primeiro plano o problema da

sua modificação, e todos os que recusam o vazio cultural existente.

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111

2.4 As novas vanguardas

A Primeira Guerra Mundial produziu inúmeras manifestações culturais de repulsa à ordem e à

racionalidade vigentes. Algumas foram tão intensas que só conseguiram se manifestar como

uma recusa integral da própria linguagem da cultura. Com o movimento surrealista, delineou-

se uma regeneração cultural, com investigações que abriam caminhos inexplorados. Outras

tendências ativas da invenção estética vincularam-se aos processos revolucionários, às

demandas modernizadoras e aos novos elementos técnicos que invadiam a sociedade. A

destruição da velha cultura (Dadá) logo deu lugar às posturas mais “construtivas”. Em 1945, o

quadro se apresentava muito diferente. Os impulsos criativos do primeiro quarto de século

pareciam ter se “esgotado”. O novo conflito mundial, com seus traços peculiares de barbárie,

gerou muitos protestos imediatos, mas nenhuma esperança em relação ao novo. O surrealismo

prosseguiu sua trajetória ao longo dos anos 40. Permaneceu fiel ao compromisso com o “livre

pensamento” e a “ética revolucionária”, mas estava isolado politicamente e ofuscado pela

literatura existencialista. No entanto, seu isolamento não foi imposto exclusivamente pelas

tendências concorrentes. Com o fim das esperanças revolucionárias, a qualidade da atividade

dos surrealistas declinou e o movimento perdeu os meios de intervenção: com exceção de

alguns poucos trabalhos mais interessantes, como a Ode a Charles Fourier, de Breton, “ele

parece acomodar-se no já dito, na imitação dos mestres e na tristeza dos elogios mútuos”

(Dupuis, 2000: 45).

Depois de 1945, portanto, muitos se desiludem com o surrealismo e a sua falta de idéias,

criando tendências dissidentes que procuram, de alguma forma, resgatar o seu significado

original. Surge na Bélgica, organizado por Christian Dotremont, um grupo surrealista

revolucionário, que entra em conflito com os surrealistas de Paris. E, além disso, demonstra

interesse pelas idéias da recém-publicada Crítica da vida cotidiana de Lefebvre. Depois,

Marcel Mariën, também na Bélgica, animará um surrealismo renovado, com a revista Les

Lèvres Nues. Mas a primeira manifestação de vanguarda realmente original da França do pós-

guerra foi o movimento letrista, encabeçado pelo poeta romeno Isidore Isou. A aparição

pública do movimento ocorreu em 1946, e pode ser considerada a primeira grande ruptura

com a estética surrealista. No ano seguinte, Isou publicou um manifesto intitulado

Introduction à une Nouvelle Poésie et à une Nouvelle Musique. O letrismo nasceu de uma

retomada da destruição dadaísta da linguagem, que Isou pretendia levar ao limite. Sua idéia

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112

era fazer do letrismo o último estágio da desconstrução da arte moderna, substituindo as

palavras e os padrões de entendimento por letras e, a partir desse procedimento, elevar-se

mais além das expressões habituais. Uma vez finalizado o processo de autodestruição das

formas convencionais da arte, cujo início Isou identifica com Baudelaire, os pintores

impressionistas e Debussy, teria início um movimento de retomada criativa, ou de

“amplificação”, no qual uma nova arte unitária ganharia forma, tomando a letra e a

experimentação acústica como seus pontos de partida.

O anúncio dessa teoria foi feito ao estilo das vanguardas históricas. Num relato desse

período, o Maurice Lemaître, ele mesmo um dos jovens letristas, conta como foi produzido o

primeiro escândalo envolvendo o seu grupo:

“Em 1946, durante a primeira performance pós-guerra de La Fuite (O Vôo) de Tristan Tzara,

chefe incontestável (sic) do movimento Dada, muitos jovens desconhecidos pularam no palco

do Teatro Vieux-Colombier, gritando: „Nós já sabemos tudo isso, chega dessa coisa velha!

Queremos algo novo, vamos ouvir sobre o Letrismo!‟. E um deles, com um sotaque romeno,

começou a recitar poemas estranhos e incompreensíveis, que soavam como cânticos africanos.

O escarcéu foi enorme, pois veio dos representantes do escândalo poético: os próprios

dadaístas e os surrealistas! No dia seguinte, naturalmente, os jornais estavam cheios de

Letrismo...” (Lemaître apud Home, 1999: 32).

Passados os primeiros anos, Isou se lançou em uma nova empreitada, articulada à

produção visual. Primeiro, os letristas exploram as possibilidades da pintura e, em seguida,

concentram-se no cinema de vanguarda. O movimento ampliou de forma considerável suas

atividades quando da incorporação, por volta de 1951, de novos membros, entre eles Gil J.

Wolman e Guy E. Debord. Fazem parte desse período diversos filmes como A bobagem e o

ensaio da eternidade (1951) de Isou, que empregava técnicas experimentais como as imagens

produzidas diretamente na película e as “montagens discrepantes”, isto é, a artifício de

desconectar o som e a imagem, dando existência autônoma aos monólogos e poesias

onomatopéicas que funcionam como uma trilha sonora. A princípio, não existia nada

inteiramente novo no método de Isou. Como afirma Bourseiller (1999: 57), a sua

originalidade está na teorização sistemática de práticas já existentes e no discurso de

destruição do sentido da obra. Mesmo assim, ele provocou alvoroço no Festival de Cinema de

Cannes. Ao filme de Isou podemos acrescentar outros títulos representativos do cinema

letrista: O filme já começou? (1951) de Lemaître, O anticonceito (1952) de Wolman e Uivos a

favor de Sade (1952) de Debord.71

Depois de sua primeira exibição, no Avant-Garde 52, o

71 Este filme de Debord era uma provocação, com o objetivo de frustrar as expectativas do público por divertimento e acabar

com a sua indiferença. Logo no início, após confrontar os espectadores com uma representação da sua própria imagem, uma

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113

filme de Wolman foi censurado; Uivos a favor de Sade de Debord, também exibido em um

cineclube de vanguarda, foi interrompido pelo público.

Um acontecimento importante foi a ruptura, liderada por Debord, no interior do

movimento letrista. O próprio Isou, relatando o acontecimento, afirma que “em julho de 1952,

justamente depois da primeira exibição de Uivos a favor de Sade, Wolman e Debord

formaram com [Jean-Luis] Brau e [Serge] Berna uma tendência clandestina no interior do

Movimento” (Isou, 2000: 22). Contudo, uma mera tendência não era suficiente já que Isou

continuava ofuscando todos os demais integrantes do movimento. Debord esperou a ocasião

adequada para transformar o conflito interno dos letristas em algo bastante ruidoso. Foi a

chegada de Charles Chaplin a Paris para o lançamento do filme Limelight que, pouco tempo

depois, forneceu aos letristas dissidentes a ocasião para um novo escândalo. A facção de

Debord interrompeu o evento para ler um comunicado agressivo que acusava Chaplin de

senilidade e de já não cumprir nenhum papel relevante no cinema. O texto terminava com a

palavra de ordem: Go home, Mr. Chaplin! Em seguida, todos os jornais, indignados,

culpavam o movimento letrista pelo disparate, forçando Isou a se distanciar dos

acontecimentos:

“Nós os letristas que desde o início éramos contrários ao trato de nossos camaradas,

sorríamos diante da expressão desajeitada que toma a amargura da nossa juventude (...) Nós

ficamos desolados com a conduta de nossos amigos e nos somamos juntamos à homenagem

feita a Chaplin por toda a população” (Isou apud Bourseiller, 1999: 81).

Isou classificou o conteúdo da carta aberta como “ultrajante e confuso”. Para ele, Chaplin

estava “acima de qualquer crítica”. Quanto Debord e Wolman leram as declarações que Isou

publicara no jornal Combat, reagiram proclamando a falência do antigo grupo e a fundação

do “verdadeiro letrismo”. Numa carta pública que nenhum jornal concordou em publicar,

Brau declarou que se o velho letrismo ainda tinha uma mensagem eles saberiam compreendê-

la, mas a presença de Isou entre eles já não era mais necessária. O problema, é claro, não

estava na desaprovação que Isou manifestara em relação aos termos usados contra Chaplin.

Por trás dessa polêmica escondiam-se profundas divergências que mesmo após a ruptura não

deixaram de se manifestar e que diziam respeito, sobretudo, à capacidade de renovação da

voz declara: “O que vamos ver agora não é nenhum filme. O cinema está morto. Não é mais possível fazer nenhum filme. Se

vocês desejam, podemos passar para uma discussão”. Enquanto diferentes vozes pronunciam algumas frases de conteúdo

poético ou sobre o cinema e a construção de situações, o som e a imagem se interrompem com intervalos progressivamente

alargados: de início, 1 ou 2 minutos de tela escura e silêncio total; depois 3 ou 4, e depois duas seqüências de 24 minutos em

total escuridão apenas interrompidas por algumas vozes.

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114

arte. No letrismo original, estava presente “a convicção de que o mundo inteiro deve,

primeiro, ser desmontado e, depois, reconstruído, não mais sob o signo da economia mas sob

o da criatividade generalizada” (Jappe, 1999: 70). A ruptura com Isou, no entanto, apontou

uma nova direção, na medida em que essa criatividade já não se limitava mais ao plano

estético. Debord criou, então, junto com a “ala esquerda” do antigo movimento, uma

Internacional letrista, cujo objetivo era investigar o problema da superação da arte e

realização, na vida cotidiana, do programa libertador anunciado pela poesia. Se a elaboração

de uma doutrina estética interessava menos do que o problema do “modo de vida”, então o

campo da exploração criativa se ampliava de modo extraordinário, guiado pela idéia de criar

uma vida apaixonante a partir do emprego consciente do tempo livre. A atividade artística não

podia mais se justificar enquanto obra superior, pois se tornava incompatível com as novas

forças produtivas sociais. A partir de 1954, depois de algumas depurações e novas adesões, a

Internacional letrista começou a publicar um pequeno boletim intitulado Potlatch,72

anunciado como “a publicação mais engajada do mundo” e enviado gratuitamente (o nome

“Potlatch” evocava formas não-comerciais da circulação dos bens) para um número limitado

de endereços selecionados. Seu objetivo era criar ligações entre a criação cultural e da crítica

revolucionária da sociedade.

A irreverência dos letristas era diretamente inspirada no surrealismo. Eles se consideravam

um novo instantâneo da inteligência européia, que dava os primeiros passos para superar as

tentativas frustradas de modificações no campo da política e das emoções. Em Potlatch não

encontramos nenhuma elaboração estética doutrinária, mas apenas a indicação de tendências

como as explorações urbanas, os escritos metagráficos e a técnica do “desvio”, inspirada em

Lautréamont e através da qual se almejava dar uma nova utilização à herança cultural. Ao

mesmo tempo, os letristas faziam um julgamento severo dos seus contemporâneos. Em

Potlatch 19, afirma-se que é inútil esperar por uma invenção estética importante e que o

cinema tornou-se “um espetáculo repetido ao infinito, como as missas ou as partidas de

futebol”. (I.L., 1996: 79). O número 24 do boletim é todo ele dedicado a um “panorama das

vanguardas” em fins de 1955. Nele podemos ler os comentários a respeito do

desaparecimento “quase total” da poesia e uma idêntica falta de novidade no terreno das artes

plásticas e da literatura. “Toda pintura abstrata depois de Malevich, arrombou portas abertas”

72 Potlatch apareceu 29 vezes como o boletim da Internacional letrista, entre 1954 e 1957. Além de expor posições políticas

e de realizar a crítica da produção cultural de sua época, Potlatch retomava também o fascínio surrealista pela cidade,

explorando vários temas urbanos, a exemplo dos jogos psicogeográficos e a crítica da ideologia urbanística.

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e é inútil esperar uma renovação a partir da recriação de “velhas surpresas” há muito

conhecidas (I.L, 1996: 116). Por toda parte, estaríamos diante do mesmo dilema: as emoções

sempre ruminadas em planos literários ou artísticos, distanciadas dos verdadeiros

acontecimentos. A condenação letrista da cultura se estendia ainda aos domínios da política e

da filosofia e até mesmo àqueles considerados mais críticos ou originais, tal como Julien

Gracq, escritor influenciado pelo surrealismo e que rejeitou o prêmio Goncourt em 1951:

nada de recusá-lo, dizem os letristas, “ainda é necessário não o ter merecido” (I.L., 1996:

117).

Outro movimento importante do pós-guerra foi o coletivo internacional de artistas

experimentais, conhecido como grupo Cobra. O nome era uma referência às três cidades,

Copenhague, Bruxelas e Amsterdã, de onde veio a maior parte dos integrantes do coletivo.

Reunido no final dos anos 40, o grupo resultou da união dos integrantes da revista holandesa

do grupo Reflex,73

dos “jovens pintores belgas”74

e de alguns artistas dinamarqueses, entre

eles Asger Jorn e seu irmão Jörgen Nash. Jorn compartilhava as opiniões críticas dos pintores

belgas em relação a Breton, aproximando-se deles após um contato desastroso com os

surrealistas de Paris. No primeiro número da revista Cobra, em 1949, um texto assinado por

Jorn tentava, sob a influência do marxismo, demarcar as posições da nova vanguarda em

relação ao surrealismo, criticando Breton por causa de sua teoria do “automatismo psíquico

puro” (Jorn, 2001: 91). Porém, as características estéticas do grupo Cobra não deixavam de

remeter ao surrealismo. Era uma arte espontânea e fantástica, que explorava os temas da

loucura e da imaginação infantil. Somava-se a isso uma fórmula original baseada na mitologia

dos povos primitivos e no uso agressivo e violento do traço e das cores (“pinto como um

bárbaro numa época bárbara”, disse o pintor holandês Karel Appel). Além da crítica do

surrealismo e das tendências puramente abstratas, o grupo Cobra tomou como alvo a estética

comunista oficial, como no panfleto de 1950 O “realismo socialista” contra a revolução, de

Dotremont.

73 O processo de formação do grupo, que trouxe para o CoBrA a sua concepção espontânea e imediatista da criação artística,

ocorreu a partir de uma exposição envolvendo vários artistas, todos eles muito jovens, dentre os quais figuravam Karel Appel

e o futuro situacionista Constant Nieuwenhuys. Em seguida, publicam a revista Reflex, para propagar a sua arte instintiva,

como uma reação direta à influência da revista holandesa De Stijl, de Mondrian.

74 Os principais nomes desse grupo de Bruxelas eram os pintores Pierre Alechinsky e Doutremon. Constituiu-se como uma

dissidência do “Grupo Surrealista Revolucionário”. Sua composição era eclética, tento como elementos unificadores a defesa

de uma arte de tendência não-figurativa, politicamente radical e marcada pela tradição local.

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116

O elo entre as propostas experimentais do Cobra, dissolvido em 1951, e a Internacional

letrista foi Asger Jorn, um pintor, escultor e ceramista que alcançou algum sucesso na França

a partir da década de 1950. Jorn acreditava que surrealismo havia se tornado um novo

misticismo manipulado como ferramenta pessoal nas mãos de Breton. Era preciso criar um

novo movimento que desviasse a revolta para fora do universo “socialista” representado pela

URSS e fora do alcance da ditadura que Breton mantinha sobre os surrealistas. Outro

problema era recuperar a “unidade” (rompida desde os anos 30) entre as vanguardas artísticas

e a política revolucionária. Com esse intuito, Jorn aproximou-se de diferentes movimentos,

desde o lendário Colégio de Patafísica, que difundia a “ciência das soluções imaginárias”

(Alfred Jarry), até os influentes Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna

(C.I.A.M.), organizados em torno de expoentes do urbanismo modernista como Le Corbusier,

de quem foi assistente. Desde 1938, Jorn publicava artigos na revista Helhesten, contrapondo-

se às idéias difundidas pelo movimento De Stijl. Em 1953, fundou o “Movimento

Internacional por uma Bauhaus Imaginista” (M.I.B.I.) e desenvolveu no livro Imagem e

Forma suas idéias não-funcionalistas sobre a arquitetura, entendida como construção de

ambiências e modos de vida. Jorn unia a imaginação artística ao olhar sobre o espaço urbano e

sobre a técnica. Daí o seu interesse pela escola da Bauhaus, que, desde a sua fundação, havia

realizado pesquisas que visavam a articulação entre arquitetura, artes plásticas e produção

industrial. As pesquisas de Mondrian representavam uma articulação semelhante. Suas idéias

sobre a abstração e a espiritualização da vida na era da máquina, assim como a busca de

atividades mais amplas que as artes tradicionais incluíam um novo papel atribuído à cidade

moderna. Assim, ele escreve na revista De Stijl:

“O artista genuinamente moderno vê a metrópole como um viver abstrato convertido em forma;

ela lhe é mais próxima do que a natureza e tem maiores probabilidades de excitar nele o senso

de beleza... é por isso que a metrópole é o lugar onde se está desenvolvendo o temperamento

artístico matemático vindouro, é o lugar de onde emergirá o novo estilo” (Mondrian, apud

Banham, 2003: 241).

O ideal da Bauhaus, cuja inspiração relativamente distante foi a idealização romântica do

fim da oposição entre arte e funcionalidade proposta por William Morris, se desenvolveu no

contato com a lógica da moderna produção industrial, como tentativa de introdução dos

objetos estéticos na vida cotidiana. Tratava-se, como observou Lefebvre, de uma tentativa

vanguardista de transformação do conjunto da vida, ou seja, uma questão “vital” e não apenas

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117

estética (1975: 18). Em Mondrian a idéia de integração da arte na vida também se fez

presente, mas isso dentro de uma perspectiva muito particular, qual seja, a da progressiva

absorção da arte pelas atividades do espírito. A simplificação formal, tal como na defesa da

“linha reta” contra a aleatoriedade ditada pelas emoções, levou Mondrian a fazer a defesa da

pureza das abstrações formais. Uma postura bem diferente podia ser encontrada em Gropius.

Ainda que a escola da Bauhaus tendesse à valorização dos elementos funcionais e utilitários,

encarnados pela produção em série de objetos industriais, as idéias de Gropius não se

mostraram inteiramente unilaterais:

“Minhas idéias foram amiúde interpretadas como se ficassem apenas na racionalização e

mecanização. Isso dá um quadro inteiramente falso dos meus esforços. Sempre acentuei

também o outro aspecto da vida, no qual a satisfação das necessidades psíquicas é tão

importante quanto a das necessidades materiais, e no qual o propósito de uma nova

concepção espacial é algo mais do que economia estrutural e perfeição funcional. O lema „o

prático também é bonito‟ só é real pela metade” (Gropius, 1974: 26).

A “nova arquitetura” propugnada por Gropius tinha como motivo principal a idéia de

experimentação. Esta havia se tornado o centro da arquitetura, fato que exigia “um espírito

aberto e coordenante, e não o tacanho e limitado especialista” (Gropius, 1974: 32). A

experimentação se ligava às idéias de ação coletiva, à visão unitária da sociedade e ao papel

do artista como um protótipo do “homem integral”, cujas idéias representariam um antídoto

contrário às tendências redutoras da era da máquina. Portanto, não é difícil compreender o

porquê do entusiasmo de um artista como Jorn diante da possibilidade de reabilitação desse

projeto, desde a interdição do original, durante a ascensão do nacional-socialismo na

Alemanha. Em 1953, Jorn fez contato com Max Bill, um arquiteto formado na Bauhaus. Bill

também era pintor, escultor, além de adepto radical da arte concreta. Era também uma figura

central na retomada do projeto de uma nova Bauhaus na cidade de Ulm, mas agora sem as

mesmas pretensões da escola original e sob forte orientação racionalista (orientada para o

design industrial). Foi nesse mesmo ano que Jorn iniciou seus contatos com o italiano Enrico

Baj, um pintor por vezes caracterizado como “neodadaista” e conhecido como criador da arte

nuclear. Ao passo que Jorn e Bill se desentendiam, aquele se aproximava de Baj e outros

artistas, preparando o terreno para o renascimento de uma internacional de artistas

experimentais da linhagem do grupo Cobra. No ano seguinte, Jorn e Baj aproximaram-se de

Debord e dos letristas franceses. Foi nesse período que o pintor dinamarquês convenceu

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118

vários ex-membros do Cobra (entre eles o pintor e arquiteto utópico Constant) a compor um

novo movimento. A idéia inicial de Jorn, exposta numa carta endereçada a Baj, era a seguinte:

“...um arquiteto suíço, Max Bill, decidiu reestruturar a Bauhaus de Klee e Kandinsky. Ele

deseja fazer uma academia sem pintura, sem pesquisa de imaginação, fantasia, signo e

símbolos – quer apenas instrução técnica. Em nome de todos os artistas experimentais, eu

pretendo criar um Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista...” (apud Home,

1999: 44).

De fato, como tantos outros, o movimento não foi muito além de uma boa “idéia inicial”,

mas teve o mérito de aglutinar algumas pessoas. Dos contatos realizados por Jorn surgiu, em

1954, a Reunião Internacional de Cerâmica, celebrada na pequena cidade italiana de Albisola.

A cidade se converteu em um núcleo de atividades do grupo. Foi lá que Jorn entrou em

contato com dois futuros situacionistas, Pinot-Gallizio e Piero Simondo. Antigo combatente

antifascista e vereador independente da esquerda, Gallizio interessava-se pelas experiências

em “pintura industrial”, além de compartilhar com Jorn muitos dos seus pontos de vista, o que

os levou a criar conjuntamente o Laboratório Experimental de Alba em 1956. Finalmente,

nesse mesmo ano, os membros da Internacional letrista, os nuclearistas e o M.I.B.I,

organizam um congresso de “artistas livres”, dando início a uma nova etapa de atividades que

culminaria, depois da exclusão de Baj e de alguns outros, na fundação da Internacional

situacionista (I.S.).

* * *

Durante muito tempo, o vínculo entre arte e intervenção política foi quase inexistente. O

isolamento da arte chegou ao seu auge no final do século XIX. Poucos, como o pintor realista

Courbet, amigo de Proudhon, fizeram de sua arte um instrumento de solidariedade para com a

classe trabalhadora. Uma tendência mais forte era a que concebia a arte não como meio de

transformação social e sim como um “escudo protetor em relação ao mundo exterior”

(Manfredonia, 2001: 36). A virada do século XIX para o XX foi um período no qual os

artistas que se comportavam de maneira mais reflexiva em relação às suas atividades foram

colocados diante de um dilema. A condição de isolamento da arte, descrita por Baudelaire

como uma “torre de marfim”, ou seja, como um espaço de sensibilidade não redutível ao valor

econômico, começou a ser minada pelo avanço do mercado de bens culturais. Diante dessa

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119

situação, ou o artista abraçava o modo de vida mercantilizado ou optava por uma via de

oposição. As vanguardas históricas do primeiro quarto do século XX optaram pela aversão à

cultura dominante. Essa recusa, mesmo que as vezes tenha assumido formas bastante radicais,

preocupou-se mais com determinados valores e comportamentos do que com a maneira pela

qual se impunham as relações mercantis.75

Essa cegueira para o problema da lógica da

mercadoria fez com que muitos dos experimentos de vanguarda se alinhassem

involuntariamente ao processo de imposição das modernas relações capitalistas de produção.

No plano teórico também era comum esse tipo de confusão, como, por exemplo, na

justificativa que Trotsky (com quem os surrealistas flertaram), dá ao processo de

modernização na URSS: “a época da transição entre o capitalismo e o socialismo, considerada

na sua totalidade, exige não a diminuição da circulação das mercadorias, mas o seu extremo

alargamento” (1980: 50). Com efeito, encontramos a mesma negligência teórica nos

surrealistas. Como notou Dupuis (aliás, Raoul Vaneigem), o surrealismo foi o ultimo

movimento de contestação da ordem que levou a sério a idéia da pureza da arte dentro do

sistema da mercadoria (2000: 45). Do mesmo modo que em Trotsky, bastava que a volição

dos sujeitos, ou seus valores e interesses, fossem distintos dos da burguesia para que,

independente da forma real na qual se estruturavam as relações, a produção das obras

adquirisse um caráter crítico e revolucionário.

Ocorre que, no processo de reconstrução capitalista que se iniciou em 1945, o mercado

cultural, que já havia adquirido muita força no início do século, assumiu uma posição ainda

mais proeminente. A valorização da cultura como uma esfera “separada” tornou-se cada vez

mais importante para a tendência geral de desvalorização da vida. A produção de obras de arte

integrou-se ao universo mercantil, reduzindo sua carga de negatividade. A fuga surrealista do

cotidiano, criticada por Lefebvre, ganhava assim um novo significado, pois ela não podia

mais ser considerada um escapismo estético. Na realidade, essa fuga deixava de existir

enquanto tal, aproximando-se de alguma modalidade de consumo integrado. Mesmo quando

fez uma revisão do problema do surrealismo (no prefácio à segunda edição da Crítica da vida

75 O ponto máximo desse radicalismo foi a denúncia do utilitarismo burguês e dos valores do trabalho pelos surrealistas. Mas,

essa denuncia não era acompanhada por nenhuma preocupação com o papel da mercadoria como forma geral da mediação

social. Outras vanguardas se colocaram diante de impasses ainda maiores. Quando pretendiam negar radicalmente os “valores

burgueses”, supunham-nos já realizados. Em sua perspectiva histórica, não podiam notar que tais valores ainda se

apresentavam mesclados às formas aristocráticas ou patriarcais de dominação. Assim, não se davam conta de que sua crítica

dos valores dominantes também “limpava o terreno” para um processo de mercantilização completa da vida. Outros

buscaram uma superação da antiga arte individualista e “burguesa” em nome de um a postura mais imediatamente

revolucionária, coletiva e “construtiva”. Nas condições de atraso em que ocorreram os processos revolucionários, a separação

entre a arte e a vida diária só podia ser ultrapassada ao preço dos diversos momentos da vida se deixarem reduzir aos

imperativos econômicos.

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cotidiana, em 1958), Lefebvre considerou o perigo de uma nova alienação estética na qual as

representações do vivido se sobrepõem à vida. Ele reabilitou parcialmente as primeiras

atividades surrealistas como um ativismo cultural anti-burguês, mas o contexto do pós-guerra

provocava uma mudança de conjuntura que exigia a ampliações do diagnóstico crítico: o que

se anunciava era o inicio da “recuperação” das descobertas criativas dos surrealistas. Como

exemplo ilustrativo dessa tendência, a prática surrealista do “deslocamento”, que visava

produzir o choque de imagens e objetos fascinantes, não tardou a ser apropriada pelo consumo

cultural e pelas modernas técnicas de publicidade. Com a ampliação do mercado da cultura,

foram absorvidas as contradições entre a estética surrealista e a sociedade que ela pretendia

afrontar – o êxito comercial de vários pintores surrealistas refletia o fato de que a idéia de uma

arte a serviço da vida havia se convertido em utilização cotidiana da arte pela sociedade

capitalista (Dupuis: 2000: 96).

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121

Capítulo III – Teoria e prática da modificação da vida cotidiana

3.1 A criação da Internacional situacionista

Em 27 de julho de 1957, os letristas de Debord e os integrantes do M.I.B.I realizaram

em Cosio d‟Arroscia uma conferência de unificação que resultou na fundação da I.S.

Tomando como referência uma das idéias do grupo, Ralph Rumney apresentou-se como

representante de um inexistente Comitê Psicogeográfico de Londres, dando ao evento uma

aparência “mais internacional”. Rumney recorda que os temas debatidos na conferência

constituíam uma síntese de Rimbaud e Lautréamont, Marx, Hegel e Feuerbach, futurismo,

Dadá e surrealismo, além do “vandalismo” especialmente caro a Jorn (1999: 44). A

recuperação do surrealismo pela cultura instituída e a contestação operária de um marxismo

convertido em propaganda estatal, somados às grandes mudanças que a sociedade capitalista

começava a atravessar depois dos anos 40, foram os elementos que possibilitaram a criação da

I.S. Esta, como já se observou, também sofreu a influência da filosofia existencialista. Aliás, a

noção de “situação” desempenhou um papel importante na tentativa sartreana de pensar a

inserção concreta do homem no mundo: “... é inegável que já se encontra em Sartre, ainda que

em termos diferentes, os temas da „situação‟, do „projeto‟, do vivido e da práxis. A firme

convicção de Sartre de que o homem cria na história seu próprio destino, a oposição que

estabelece entre as „coisas‟ e os „homens‟, ou seja, o papel central do sujeito forte, encontram

eco em Debord” (Jappe, 1999: 163). Por isso, os integrantes da I.S. definem a palavra

“situacionista” como a capacidade que os indivíduos têm de criar ativamente as situações nos

diferentes níveis da prática social, ao invés de simplesmente reconhecê-las como algo

exterior.

Debord redigiu um importante documento, o Relatório sobre a construção de situações e

sobre as condições de organização da tendência situacionista internacional, que serviu como

texto preparatório para a conferência de fundação da I.S. O texto em questão preconizava uma

articulação entre ação revolucionária e atuação no plano “cultural”, compreendendo esta

como a possibilidade de criação e organização de um novo uso da vida. Uma revolução

cultural devia extinguir antigas paixões atreladas ao fascínio pelas mercadorias e liberar

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desejos inteiramente novos (Debord, 2003: 53). O relatório escrito por Debord analisava ainda

o “estilhaçamento” da cultura e seus subprodutos de consumo, afirmando que as antigas

ideologias e valores dominantes haviam perdido a sua coerência, entrando em uma fase de

declínio.76

Tais formulações são representativas do otimismo do pós-guerra, sobretudo no que

diz respeito à ampliação da capacidade de apropriação da natureza pela sociedade, isto é, a

ampliação da produção e dos meios técnicos disponíveis. Se existe um “declínio” da

sociedade burguesa, ele não se refere mais, como na maior parte das abordagens marxistas de

antes da guerra, à estrutura capitalista da reprodução social, mas apenas à legitimação

ideológica das formas de dominação - com a diferença, bastante significativa, de que essa

ideologia começou a se fundir com a sociedade, de modo que pouca coisa lhe escapa. Nessas

condições, a perspectiva de mudança tornava-se menos dependente de uma crise que

colocasse em perigo o conjunto das relações de produção, bastando a convicção, por parte dos

sujeitos, de que era possível recusar o “modo de vida” que a economia lhes propiciava. Para

os situacionistas, a recusa parecia surgir espontaneamente como resposta à “nova pobreza”

produzida pelo espetáculo: se a sociedade capitalista garantia a sobrevivência dos indivíduos,

nem por isso ela é capaz de oferecer uma vida autêntica. Debord constatava, no entanto, um

atraso das formas de atuação política em comparação com as possibilidades oferecidas pelas

técnicas modernas e tirava daí a conclusão de uma necessária “organização superior do

mundo” (2003: 43); organização que só poderia desenvolver-se a partir de um programa

revolucionário na cultura. Os situacionistas se consideravam herdeiros da moderna crítica da

cultura - sobretudo aquela que se fez presente no universo parisiense. Por esse motivo, o passo

inicial foi realizar um balanço das experiências e pesquisas das vanguardas históricas, bem

como da crise dos meios de expressão artísticos mais recentes. Nessa avaliação, o futurismo

foi criticado, a despeito de suas inovações formais ou do gosto que seus adeptos nutriam pelo

escândalo, em função da visão esquemática do progresso técnico por ele adotada - além, é

claro, da inclinação fascista de seus representantes italianos: “o pueril otimismo futurista

desapareceu junto com o período de euforia burguesa que o provocara” (Debord, 2003: 45).

Uma importância bem maior foi conferida ao dadaísmo e ao surrealismo. O primeiro se

caracterizava pela destruição do conceito habitual de cultura, adotando uma concepção quase

exclusivamente negativa da arte.77

Já a tentativa surrealista de renovação das formas de

76 Esse é o estado de “decomposição da cultura”, a partir do qual se esboça um dos traços mais importantes da teoria do

espetáculo elaborada pelos situacionistas: a tese de que apesar do seu declínio, a coesão ideológica do mundo burguês é

mantida por uma “propaganda publicitária” que a sociedade faz a respeito de si mesma, induzindo os sujeitos à passividade.

77 Ainda assim, os dadaístas não ficaram alheios aos acontecimentos de sua época, a exemplo do grupo de Berlim, que falou

em nome de uma reestruturação integral da vida que incluía a edificação de novas cidades, atividades supra-individuais e até

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percepção apostava acertadamente na “soberania do desejo” e na construção ativa de um

“novo uso da vida”, mas exagerava o papel da imaginação e do inconsciente. Depois de 1945,

a própria burguesia, com o desgaste de sua visão de mundo tradicional, se serviu mais

amplamente da idealização do desejo e do irracional, fomentando uma ideologia do consumo

desenfreado - um consumo que se baseava não tanto na utilidade concreta dos objetos, mas no

apelo muito pouco racional que estes exerciam sobre um público de consumidores cada vez

mais conformista. Foi esse contexto que determinou a “amarga vitória do surrealismo” (I.S.,

1997: 3-4) e o seu reconhecimento como parte integrante do mundo da cultura instituída.

Esse quadro das atividades das vanguardas do início do século XX foi resumido por

Debord: se o dadaísmo negou a arte sem superá-la, o surrealismo preconizou uma superação

da arte que prescindia do momento de negação. Um novo programa revolucionário na cultura

significava a retomada das questões relativas ao progresso técnico e a negação dadaísta da

cultura, só que, doravante, tais elementos seriam mediados por uma ação construtiva,

racionalmente orientada para a criação de formas superiores de organização da vida. Em

outros termos, a arte só poderia ser negada a partir de uma “superação” dialética - e nisso

Debord adota uma posição idêntica àquela reivindicada pelo jovem Marx, em 1843, ao se

deparar com os limites do pensamento especulativo: “não podereis superar a filosofia sem

realizá-la” (2003: 93).

No mesmo relatório, Debord descreve os aspectos inócuos ou regressivos da cultura

dominante irradiada a partir de Paris e Moscou, como a “estética da ausência”, além das

tendências abstratas e da interminável repetição das realizações das vanguardas históricas. No

Leste, o realismo socialista sacrificava a perspectiva da criação em nome do passado,

defendendo os valores culturais “heróicos” de uma burguesia obsoleta. O texto prossegue

qualificando a poesia e o romance como “formas condenadas”. Mesmo as tentativas letristas

na pintura, no cinema ou na poesia revelaram-se insatisfatórias e, em última análise,

retardatárias em relação ao seu período histórico, por conta da confiança ilusória na

capacidade de renovação da arte. Algo idêntico ocorreu com os artistas ligados ao grupo

Cobra. Depois que o grupo foi dissolvido, seus ex-participantes buscaram novas formas de

ação. No entanto, “alguns artistas (...) abandonaram a preocupação com a atividade

experimental, usaram seu talento para colocar na moda este estilo particular de pintura que era

mesmo a introdução de um “desemprego progressivo” conquistado por meio da mecanização das atividades. Por outro lado, a

correspondência entre Debord e o veterano dadaísta Raoul Hausmann, na década de 60, mostra como as tentativas de

renovações do dadaísmo limitavam-se ao plano estético, reproduzindo aspectos formais do movimento original – Debord as

tratava como “imitações reacionárias”. Para Hausmann, também o letrismo de Isou de não passava de uma copia de velhas

técnicas empregadas nos anos 20 (Debord, 2001a: 204).

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124

o único resultado tangível da tentativa Cobra (por exemplo, Appel no Palácio da UNESCO)”

(I.S., 1997: 36-7).

Para os situacionistas, a crise generalizada das atividades culturais criou as condições para

uma intervenção revigorada. Lefebvre sugeriu, em referência direta aos situacionistas, que

estava ocorrendo um ressurgimento da vanguarda, cujo desaparecimento se verificara desde

os anos 30 (1969b: 396). Em diversos momentos, os próprios situacionistas se definiram

como um tipo de “vanguarda atual”. Mas, na realidade, a I.S. apenas constatava a ausência de

autênticas criações estéticas. Muito mais importante do que novidades culturais facilmente

assimiláveis era absorver o legado e as promessas da antiga arte, direcionando-os para outras

finalidades. Só assim os problemas centrais da atividade cultural - como criar efetivamente

aquilo que a arte só pode oferecer como uma representação ilusória - poderiam se colocar em

sintonia com os sinais de contestação gestados pelo capitalismo moderno. Ao mesmo tempo,

surgiram as primeiras crises no interior do “bloco socialista”, especialmente durante os

eventos de 1956, na Hungria, considerados como o início de um novo período de lutas. O

dadaísmo e o surrealismo foram contemporâneos dos levantes proletários do início do século

XX. O fracasso da ofensiva proletária contra a ordem capitalista aprisionou a crítica das

vanguardas no terreno da cultura, cuja falência elas mesmas haviam decretado. As “novidades

libertadoras na cultura e na vida cotidiana” (2003: 50), em contraste com o isolamento e a

impotência dos administradores do mundo da cultura no período de refluxo da revolução

mundial, dependiam fundamentalmente de uma nova onda proletária. Para os situacionistas, o

conteúdo da “revolução cultural” devia ser preenchido por uma concepção “unitária” da

cultura, capaz de expressar os novos desejos e comportamentos ligados ao meio urbano: “o

que muda nossa maneira de ver as ruas é mais importante do que o que muda nossa maneira

de ver a pintura”, declara Debord (2003: 58). Daí as explorações psicogeográficas, baseadas

na relação entre o comportamento afetivos dos indivíduos e as formas de condicionamento

propiciadas pela vida nas cidades modernas. A prática da deriva e o “Urbanismo Unitário”

possuíam, principalmente, um caráter antecipador, que devia revelar o acúmulo de realizações

técnicas potencialmente aplicáveis no âmbito da vida cotidiana.78

O vínculo dos situacionistas com a nova esquerda tornou-se bastante estreito, embora eles

se apropriassem apenas de alguns aspectos particulares das diferentes teorias, recusando o

78 A idéia básica do Urbanismo Unitário era partir da construção de ambiências em ligação com os comportamentos

experimentais. Seu caráter “unitário” se devia ao emprego conjunto de técnicas e meios artísticos na construção superior de

uma ambiência. Quanto à deriva situacionista, pode-se dizer que ela constituía uma primeira tentativa de criar um

comportamento lúdico e de explorar as possibilidades oferecidas pelo meio urbano.

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125

conjunto do debate marxista dos anos 50 devido ao seu caráter excessivamente especulativo: a

crítica do papel estruturador da mercadoria nas relações sociais, a denúncia do marxismo

“oficial” como ideologia, a elaboração de uma teoria unitária, imediatamente vinculada à

prática e hostil aos conhecimentos parcelares e, por fim, a problemática do cotidiano,

assinalam o contato da I.S. com as obras “malditas” dos anos 20, de Lukács e Korsch, e

também com as elaborações mais recentes de Lefebvre. Esse arsenal de idéias começou a ser

apresentado em meados de 1958, com o lançamento da Internationale Situationniste, revista

que retomava temas das vanguardas, atualizando-os. No primeiro número, aparecem os temas

da automação produtiva, do novo urbanismo e das técnicas mais desenvolvidas de

condicionamento – especialmente a ideologia do consumo. Aparecem igualmente a crítica das

formas de evasão estética e da superestimação dos meios artísticos obsoletos. Além disso, os

situacionistas constatam o interesse das novas técnicas empregadas no cinema, “a arte central

de nossa sociedade” (I.S., 1997:8), ainda que ele seja somente um substituto passivo das

formas de criação unitárias que se tornaram possíveis na sociedade moderna. Todos esses

problemas foram elaborados de acordo com a perspectiva de uma transformação da cultura a

ser efetivada com base no uso inteligente (i.e., “situacionista”) dos meios já disponíveis: “os

sonhos surrealistas correspondem à impotência burguesa, às nostalgias artísticas e à recusa de

encarar o emprego libertador dos meios técnicos superiores de nosso tempo” (I.S., 1997: 65).

Daí a importância conferida à discussão a respeito da técnica, como nas posições de Jorn

sobre a automação, vista como condição para a primazia do lazer sobre o trabalho, na pintura

industrial desenvolvida por Pinot-Gallizio e na reflexão de Constant, para quem “a indústria é

o único meio de satisfazer as necessidades, mesmo estéticas, da humanidade na escala

mundial” (I.S., 1997: 56). Na concepção situacionista, é o trabalho mecanizado e a produção

em série que possibilitam as formas renovadas de criação. Outra característica importante da

I.S. (e nisso ela permanecia idêntica a outros movimentos, incluindo a “esquerda letrista”), era

a maneira como Debord exercia uma espécie de liderança estratégica, forçando o afastamento

de vários companheiros. Já na II Conferência, em Paris, viram-se expulsos os membros da

seção italiana Walter Olmo, Piero Simondo e Elena Verrone. “Nenhuma indulgência inútil”,

escreveu Michèle Bernstein, para os que não foram capazes de se adequar à disciplina da I.S.

Pouco depois, Rumney também foi excluído, após a fracassada tentativa de exploração

psicogrográfica da cidade de Veneza – fato documentado no primeiro número da revista, em

“Veneza venceu Ralph Rumney”.

No seu primeiro filme realizado após a criação da I.S., que contém referências à origem

dos situacionistas, Debord define a si e seus amigos como “umas poucas pessoas que

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126

colocaram em prática um questionamento sistemático de todo o trabalho e de todo o lazer da

sociedade”.79

Como escreveu Pierre Canjuers a propósito do seu contato com a publicação da

I.S., ela parecia possuir algo de inverossímil, ao mesmo tempo em que dava a impressão de

conter todo um fascinante e inexplorado território da modernidade.80

Ao invés da aridez

positivista que caracterizava as publicações políticas e intelectuais, a revista da I.S. trazia

elementos nitidamente “modernos”, ligados à utilização irônica de imagens publicitárias, além

de quadrinhos, vários tipos de mapas e fotografias que documentavam as atividades coletivas.

A revista não apresentava nenhum discurso especializado - seus temas misturavam-se uns aos

outros, quase sempre com ênfase na negatividade: o deperecimento da arte, a supressão da

economia, a realização da filosofia, a recusa da política especializada, etc. Também estava

impregnada de um “otimismo antecipador” idêntico ao reivindicado por Breton. Uma das

idéias básicas enunciada por Debord é a de que “já se interpretaram bastante as paixões; trata-

se agora de descobrir outras” (2003: 59). As idéias burguesas a respeito da felicidade deviam

ser ultrapassadas, o que exigia a ruptura com a não-participação e uma valorização das

capacidades criadoras dos indivíduos. O programa da I.S. foi influenciado por pensadores

como Charles Fourier e Johan Huizinga; a ênfase era colocada na criação de comportamentos

capazes de romper o estado geral de passividade. Era uma tentativa de adequar a noção de

criação, que sempre fora associada ao trabalho ou à produção artística, a um contexto

diferente, caracterizado pela recente valorização do tempo-livre na sociedade burguesa, “após

dois séculos de negação por uma idealização contínua da produção” (I.S., 1997: 9). Contudo,

a I.S. recusava a forma de organização industrial do lazer e o caráter espetacular (ao mesmo

tempo passivo e competitivo) e infantil assumido pelo jogo. Os situacionistas valorizavam no

jogo, nos encontros e nas deambulações ociosas o que tais atividades podiam oferecer em

termos de ampliação dos momentos significativos da vida. Porém, a cultura mercantil tendia a

esvaziar as atividades lúdicas no que elas possuíam de livres e criadoras. Tendia a limitá-las

no tempo e no espaço, eliminando seus aspectos espontâneos.81

O que dava sentido à

“construção de situações” era o resgate dessa noção de criação, praticada sem entraves no

âmbito da vida cotidiana. Assim, a construção coletiva de ambiências devia se realizar junto

com um comportamento lúdico ligado a um cenário material momentaneamente instituído. A

79 Sobre a Passagem de algumas pessoas por um curto período de tempo, filme de 1959, com 20 minutos de duração.

80 P. Canjuers (pseudônimo de Daniel Blanchard) foi militante do grupo Socialismo ou Barbárie. Entrou em contato com os

situacionistas em 1959 e no ano seguinte redigiu, juntamente com Debord, uma plataforma de intervenção conjunta das duas

organizações.

81 Cf. Huizinga (1971), especialmente o último capítulo: “O elemento lúdico na cultura contemporânea”.

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noção de situação construída extrapolava as definições “culturais”; ela representava um tipo

de criação integral não redutível às atividades parciais e opostas ao caráter imutável das obras

estéticas. A situação construída seria um “momento da vida” consumido imediatamente num

“jogo de acontecimentos”.

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3.2 A Irrupção do radicalismo

Em 1958, depois de três décadas de militância no interior do PCF, finalmente concretizou-se

o afastamento de Lefebvre. Por essa altura, era possível constatar o nível de estagnação do

movimento revolucionário. O pensamento dogmático havia se tornado, como indica a fórmula

satírica empregada por Lefebvre, “o caminho mais curto de uma citação a outra” (1958:26). A

política dos comunistas, desprovida do prestigio dos tempos da Libertação, não oferecia

alternativas ao profundo mal-estar que se instalava, sobretudo entre a juventude. De maneira

ainda desorientada, após a crise das convenções sociais dominantes, a juventude se formava

em contato com um mundo esvaziado de referências e “valores superiores” (o niilismo

moderno anunciado por Nietzsche). Sem aceitá-lo como uma condição necessária da

existência, como fazia a ontologia sartreana, essa juventude não deixava de perseguir o mito

de uma “vida nova”,82

sem vislumbrar, contudo, suporte nos partidos comunistas, que mal

podiam compreender as fontes e sintomas da insatisfação da juventude. Convertido em uma

monótona pedagogia de massas, o discurso comunista não oferecia nada além da legitimação

das razões de Estado, dos valores “decadentes” do trabalho e do primado das questões

econômicas sobre os da vida social. Mesmo para a classe operária não se oferecia nada além

de um pequeno aumento do poder aquisitivo para que ela desfrutasse de maneira limitada uma

vida condicionada pelos produtos do consumo massificado. A idéia de uma transformação

qualitativa da sociedade parecia fora de questão. Conforme afirma Lefebvre, “indicações

sobre a produção, o número de toneladas de aço ou de trigo - ou sobre o devotamento do

trabalhador à produção - não constituem um estilo de vida” (1958: 10).

A separação entre Lefebvre e o PCF ocorreu em meio a ataques pessoais. Lucien Sève

entrou em cena como critico das “heresias” de Lefebvre e da sua versão das polêmicas

internas do partido. Pouco depois, Garaudy, que já havia polemizado com Lefebvre nos

82 Mito cujas origens Lefebvre faz remontar às heresias do século XIII, quando Joaquim de Fiore anuncia a realização do

“Tempo do Espírito”. Depois dele, no umbral da sociedade burguesa, Rabelais constrói suas “imagens de vida ardente e

alegre” (1969b: 83) e, nos tempos modernos, Rousseau anuncia um retorno à comunidade natural. O tema da vida nova chega

até Marx, passando pelo pensamento utópico da primeira metade do século XIX. Embora o marxismo a tenha desprezado (ou

melhor: projetado a transformação do modo de vida para um futuro indeterminado), o mesmo não aconteceu com Marx, que

considerou o conjunto da história humana, e particularmente a sua “culminação” no processo de acumulação capitalista,

apenas como uma “pré-história” incapaz de assegurar aos homens uma vida autêntica.

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129

Cahiers du Communisme83

, fez a denúncia do caráter especulativo e “neo-hegeliano” do seu

pensamento, notando o seu afastamento em relação ao ponto de vista do proletariado:

“No pensamento de Lefebvre, o papel da classe operária decresce de livro para livro:

enquanto que em suas primeiras obras (por exemplo, em A consciência mistificada, que

continua sendo seu melhor livro) via na ascensão da classe operária a condição necessária

do florescimento espiritual da humanidade, em suas últimas obras a perspectiva é

completamente inversa” (1968: 333).

Em seguida, deu-se um silêncio por parte dos comunistas em torno de sua obra. Fora da

esfera do PCF, no entanto, se ampliava o debate teórico. A idéia de uma crise do marxismo e

da filosofia tornou-se quase um truísmo entre os expoentes de uma “nova esquerda” que

começava a se configurar. Colocava-se em questão, no âmbito dessa nova esquerda, a

renovação do marxismo e a necessidade de adequação da teoria aos problemas do mundo

moderno.

Em termos políticos, a “nova esquerda” francesa84

era bastante heterogênea, mas se

diferenciava claramente da antiga orientação comunista. A denúncia ruidosa dos crimes do

stalinismo (com Sartre à frente) ganhava cada vez mais adeptos. Ao mesmo tempo, surgiam,

nos países do Terceiro Mundo, movimentos políticos que possuíam uma história e uma

dinâmica diferente do modelo político criado a partir da revolução de 1917. De tal modo,

junto com as contradições do socialismo na URSS, toda a história do socialismo,

especialmente a sua variante bolchevique, começou a ser colocada em questão. Os comunistas

franceses tentaram, no XV Congresso (1959), romper o isolamento político por meio de uma

aliança com o partido socialista; relutavam, por outro lado, em promover o “degelo” no

interior da organização. Outra característica da esquerda não-comunista era a percepção mais

clara da dimensão das grandes transformações pelas quais a França (e a Europa) estava

passando: modernização da indústria, expansão do setor de serviços, ampliação do consumo

interno, “invasão” de objetos técnicos (automóveis, eletrodomésticos), etc. Surgiram, então,

diversas tentativas de teorização desses fenômenos, o que contrastava com a fixação dos

83 A revista do Comitê Central do PCF.

84 Embora não se trate de um fenômeno apenas francês, foi neste país que se concentraram as novas elaborações críticas do

marxismo, bem como o resgate das contribuições críticas anteriores (Lukács, Korsch, etc.), desenvolvidas, em sua maior

parte, na Alemanha da década de 20. A propósito desse deslocamento da teoria crítica marxista para a França, Perry

Anderson (1989) nos fala de uma “mudança de centro” do que ele denomina “marxismo ocidental”. Ao contrário da

abordagem de Anderson, no entanto, não pretendemos tratar o conjunto de teorias da “nova esquerda” francesa como uma

“tradição intelectual comum”. Mais do que isso, não acompanhamos as conclusões de Anderson a respeito do caráter

“especulativo” de tais teorias. Pelo contrário, julgamos importante demonstrar que as formulações da “nova esquerda”

encontram-se intimamente relacionadas com as lutas políticas do seu tempo e com a crise revolucionária de 1968.

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130

comunistas nas teorias da pauperização da classe operária e da crise geral do capitalismo.

Lefebvre passa a defender um retorno às fontes, isto é, aos conceitos de Marx negligenciados

pela tradição comunista. Abdica das concepções objetivistas de Engels acerca da “dialética da

natureza”, identificando no colaborador de Marx uma tendência à simplificação didática e ao

esquematismo – por exemplo, em sua sistematização do materialismo como “concepção de

mundo” do proletariado. Lefebvre reivindica um resgate da dimensão concreta da dialética,

cujo exemplo mais vivo, segundo ele, pode ser encontrado nas análises teóricas e políticas de

Lênin. Além disso, desde meados de 1955, Lefebvre realiza uma apreciação global do

“pensamento de Lênin”.85

Isso o distinguia da maior parte da “nova esquerda”, sobretudo

daqueles que procuravam retornar às tradições conselhistas dos anos 20, como o grupo

Socialismo ou Barbárie ou os situacionistas. A crítica do dogmatismo comunista realizada por

Lefebvre se concentrava, portanto, não em Lênin e no partido bolchevique, e sim na

interpretação que Stálin dera ao marxismo. Em Problemas atuais do marxismo, de 1958,

Lefebvre expõe as limitações dessa interpretação: a valorização unilateral dos aspectos

econômicos e a “superstição política” que teria culminado no fortalecimento da ideologia

estatista. Na base dessas idéias estava a teoria do “atraso da consciência”, uma das primeiras

“contribuições” de Stálin ao marxismo, apresentada no texto Anarquismo ou Socialismo?

(1906). De acordo com essa teoria, a consciência, reduzida a um reflexo do mundo exterior, é

sempre precedida e determinada pelo desenvolvimento do que Stálin chama de “aspecto

material”. “O essencial [diz Lefebvre] é que para ele a consciência se atrasa. Não analisa a

consciência humana em si mesma para saber se ela não teria uma função concreta de previsão,

de prospecção, de antecipação” (1958: 113). Reduzindo a consciência a um epifenômeno da

matéria, desaparece da teoria marxista toda a dimensão utópica, a imaginação, o possível e até

mesmo a capacidade de previsão científica.

Um dos acontecimentos mais importantes do debate marxista dos anos 50 foi o interesse

suscitado pela obra de Lukács dos anos 20, História e consciência de classe, que acabou se

tornando um livro célebre na França. No posfácio de 1967 à reedição dos seus ensaios,

Lukács, contrariado pelo sucesso extemporâneo do livro por ele renegado desde o final dos

anos 20, se refere à “mistura de marxismo e existencialismo” que, sobretudo na França, o

redescobriu. Por outro lado, constata um fato positivo envolvendo a retomada da sua obra:

pela primeira vez, “a alienação do homem foi reconhecida como problema central da época

em que vivemos (1989: 362). O debate francês em torno de História e consciência de classe,

85 Título de um de seus livros, publicado em 1957.

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131

antecipado por Merleau-Ponty em 1955, encontrou no sociólogo Lucien Goldmann seu maior

divulgador. Goldmann acentuou o papel da reificação na teoria marxista, dando-lhe um

caráter mais subjetivo, que ressaltava as conseqüências psíquicas e intelectuais da existência

de uma produção voltada para o mercado. Nessas condições, as relações sociais se reduziam

ao resultado objetivo e involuntário da concorrência enquanto os indivíduos contemplavam

passivamente o movimento das coisas produzidas sob a forma de mercadorias. Goldmann

tirou desse fato algumas conclusões importantes, entre elas a de que somente a partir da teoria

da reificação é que se torna possível apreender as ralações entre a “base” e a “superestrutura”

da sociedade. Mais do que isso, afirma que o problema histórico da “determinação

econômica” e o da consciência como “reflexo” não são elementos historicamente persistentes

da vida social, mas problemas específicos das modernas condições capitalistas de produção.86

A reflexão desenvolvida por Lefebvre convergia com tais esforços de renovação crítica, mas

seguia um caminho diverso. Inicialmente, ele se ocupou predominantemente dos aspectos

conceituais do marxismo, pretendendo corrigir as suas interpretações empobrecidas, tal como

a teoria do “subjetivismo de classe”, o messianismo proletário e as tendências economicistas.

François Chatelet, que apresentou em 1959 uma tese à Sorbonne sobre a crise do marxismo,

notou que os esforços de Lefebvre orientavam-se para o estudo de determinados conceitos

capazes de “desobstruir” o marxismo (1972: 315). Chatelet adverte para a lacuna, nessa

análise, das questões ligadas ao processo de degeneração do socialismo na URSS e à

modernização capitalista na França.87

Além da crítica da burocracia levada a cabo pelas

análises econômicas e sociológicas da revista Socialismo ou Barbárie, surgia, a partir da

experiência húngara, o problema da autonomia do proletariado. Os escritos de Castoriadis

colocavam esse problema a partir da crítica do conceito tradicional de organização. A própria

idéia de “direção” foi considerada limitada e a ela se opôs uma teoria da organização como

“instrumento” político revolucionário. Na revista Arguments, que se apresentava mais eclética

e menos comprometida em termos políticos, o tema da burocracia apareceu com a mesma

86 Cf. Goldmann (1967), especialmente o ensaio A reificação, publicado originalmente em 1958.

87 Essa análise, por outro lado, desempenha um papel importante nas teorias do grupo Socialismo ou Barbárie, e

particularmente em Castoriadis. Rompendo com as posições trotskistas, Castoriadis recusou a caracterização da URSS como

um “Estado operário” degenerado. Para ele, a tese de que a estatização da propriedade era suficiente para lhe garantir um

caráter não-capitalista carecia de fundamentos. Castoriadis alegou que as formas “superestruturais” da propriedade não eram

suficientes para definir as relações de produção e, além disso, que, em termos marxistas, não era possível diferenciar as

relações de produção e as formas de distribuição. Assim, a URSS foi caracterizada como uma variante burocrática do

capitalismo, na qual a camada dirigente não só se reproduzia enquanto camada privilegiada (sustentada por mecanismos de

exploração da força de trabalho e de apropriação do excedente econômico), mas havia encontrado meios de anular qualquer

participação política dos operários.

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132

freqüência, por exemplo, nas análises de Edgar Morin sobre o “aparato” político.88

Ademais, a

maioria das críticas desenvolvidas pela nova esquerda não se detinha unicamente no

fenômeno do stalinismo, encontrando, ao menos em parte, as raízes do sistema burocrático

nas concepções de Lênin e dos bolcheviques.

Nesse momento, Lefebvre aparecia como representante de um ponto de vista político mais

ortodoxo, que acolhia o problema da autogestão e da necessidade de revisão crítica do

marxismo, sobretudo no que diz respeito ao Estado e à sua intervenção no domínio

econômico, mas continuava aferrado às antigas convicções leninistas. Ele julgou encontrar no

socialismo iugoslavo um contraponto à URSS, mas não tanto como um modelo alternativo e

sim como uma referência positiva que permitia colocar em debate os problemas do Estado

burocrático e do sentido da produção. Ao mesmo tempo, o processo revolucionário na China,

que Lefebvre acompanhou à distância, com uma mistura de simpatia e suspeição, começou a

rebater publicamente a ideologia “soviética” do crescimento econômico a qualquer preço.

Lefebvre também lembrou que Lênin, em sua polêmica com o marxismo da Segunda

Internacional, já rompera com a tese de que o nível de desenvolvimento econômico pode ser

tomado como critério determinante para a ação revolucionária. Nesse aspecto, Lefebvre se

somava aos esforços da nova esquerda, opondo-se à tendência unilateral de apoiar-se no

incremento da grande indústria, como se este fosse suficiente garantir um caráter socialista ao

processo de transformação da sociedade. Para Lefebvre, os limites do modelo realizado da

URSS ficavam claros na medida em que esta se limitava cada vez mais a uma aceleração do

regime de acumulação econômica (1969b: 97), tornando impraticável a busca efetiva de um

novo modo de vida.

Todo esse contexto de crise do marxismo oferecia a oportunidade de retorno à

problemática do cotidiano. O fim do monopólio stalinista sobre o discurso teórico da esquerda

permitia não só enxergar a crise e formular os seus problemas, mas, além disso, animava o

renascimento do pensamento criativo. Por isso, logo em seguida ao seu afastamento do PCF,

Lefebvre reeditou a introdução à Crítica da vida cotidiana, o que indicava, no trajeto da

reflexão lefebvreana, a retomada de questões preteridas ao longo de toda uma década. Assim,

Lefebvre começava a ir além do diagnóstico da crise da teoria marxista, para se aproximar dos

aspectos mais concretos da vida social, ou seja, as formas do capitalismo consolidadas entre

os anos 40-50.

88 Cf. Morin (1969), especialmente o texto de 1957 sobre o “comunismo de aparato” e as contradições internas da burocracia

stalinista.

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133

O que motivou Lefebvre a dar prosseguimento ao projeto sobre a vida cotidiana foi o

crescente interesse por parte das ciências sociais e históricas a respeito dessa temática. Uma

motivação não menos importante veio do fato de seu livro ter sido lido com interesse por uma

nova geração empenhada na renovação da arte e da intervenção política, a exemplo do grupo

Cobra.89

No extenso prólogo à reedição do primeiro volume da “Crítica”, Lefebvre anuncia o

seu novo plano: trata-se, em linhas gerais, da ampliação da análise tendo em vista um estudo

metódico das pequenas práticas cotidianas no contexto da modernização capitalista e da

urbanização da sociedade. Os elementos pouco desenvolvidos, e por vezes somente aludidos

na “Introdução” de 1945, começaram, a partir de então, a ocupar maior espaço na teorização.

Completou-se assim a passagem dos estudos centrados na filosofia marxista (que assumiram

amiúde o aspecto de uma crítica marxista da filosofia), para uma abordagem de caráter mais

sociológico. Lefebvre retoma nesse texto a sugestão de Lênin, segundo a qual, Marx soube

apresentar a estrutura e a evolução da “formação social” capitalista em seu conjunto, como

um organismo vivo que inclui “os diversos aspectos da vida cotidiana”.90

Contudo, é a partir

de um conceito inteiramente negligenciado por Lênin que se desenvolve a leitura de Lefebvre:

a alienação. A problemática da alienação foi retomada como base para uma crítica das formas

assumidas pelo desenvolvimento “tardio” do capitalismo. Tal análise abordava, entre outros

temas, as novas relações entre o trabalho e o lazer e as condições de existência nos países que

viviam o assim chamado processo de “transição socialista”. Além disso, o conceito de

alienação serviu de base para Lefebvre abordar algumas obras contemporâneas do teatro e do

cinema. A análise dos filmes de Chaplin, por exemplo, enfatiza o fato das narrativas se

constituírem a partir de “imagens invertidas” que servem para caracterizar as relações entre os

homens e o mundo material. Sobre Brecht, ele assinala os procedimentos estéticos que o

dramaturgo utiliza para revelar as máscaras e papéis sociais assumidos pelos indivíduos em

suas relações cotidianas.91

89 Lefebvre (1983) comenta o início de sua aproximação com as novas vanguardas, incluindo os situacionistas: “Começou

com o grupo CoBrA. Eles foram os intermediários (...) Eles queriam renovar a arte, renovar a ação da arte na vida. Era um

grupo extremamente interessante e ativo (...) e um dos livros que inspirou a fundação do grupo foi o meu Crítica da Vida

Cotidiana”. Por isso, estive envolvido com eles desde muito cedo.

90 Lênin, Quem são os „amigos do povo‟ e como lutam contra os social-democratas? (1948: 96).

91 Lefebvre acrescenta que o “efeito de distanciamento” criado por Brecht é uma conseqüência da inserção dos indivíduos na

divisão do trabalho e nas trocas privadas. As máscaras são reais e não meras ilusões ideológicas, ainda que os indivíduos não

se resumam aos seus papeis sociais. “As máscaras são e não são”, diz Lefebvre. E uma vez que os indivíduos, através dessa

ambigüidade contida na experiência da vida alienada, não são idênticos a si próprios, não pode haver identificação – as

máscaras não podem ser rasgadas e denunciadas como falsas. Desse modo, resume Lefebvre, o teatro épico de Brecht rompe

com o teatro de ilusões: ele não purifica o cotidiano através da imposição de identificações idealizadas. Ao contrário, o teatro

épico, que se pretende crítico e popular, atinge o nível da vida cotidiana com a finalidade de elucidar suas contradições. Cf.

(Lefebvre, 1977: 21-32).

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134

Em 1958, nas páginas da revista La Nef, Edgar Morin escreveu um comentário sobre a

reedição da Crítica da vida cotidiana. Para Morin, o estudo de Lefebvre não aborda em

profundidade a dinâmica da nova configuração capitalista do pós-guerra, que se encontrava

reduzida a algumas notas dispersas. Essa “nova configuração” é uma alusão à “cultura de

classe média” e aos “costumes americanos” impostos pela via dos “meios de comunicação” de

massa - inclusive no seio da classe operária -, com a ascensão do modo de vida “pequeno-

burguês” e das ideologias de conforto material e consumo cultural (Morin, 1969: 247). Assim,

na obra de Lefebvre, os elementos concernentes à dinâmica da vida cotidiana no século XX

encontrar-se-iam dispersos no interior de análises mais preocupadas com o alcance dos

conceitos teóricos marxistas (especialmente os das obras da juventude de Marx) do que com

as novas realidades do capitalismo do pós-guerra. Em 1961, no entanto, é publicado o

segundo volume da Crítica da vida cotidiana. Nela, Lefebvre procura desenvolver os

“fundamentos de uma sociologia da cotidianidade”. O contexto no qual o projeto foi retomado

era tão diferente daquele dos anos 40 quanto a conjuntura política, marcada pela crise do

stalinismo. No pós-guerra, Lefebvre via o cotidiano como terreno da realização do homem:

“em 1946 a vida cotidiana me parecia rica”, diz ele (1975: 209). Interessava-lhe, nesse

contexto, resgatar o cotidiano do esquecimento teórico. O cotidiano abordado por Lefebvre

nos anos 60 se afigurava muito diferente: ele havia se tornado objeto do planejamento estatal

e das técnicas publicitárias. Em seus diferentes aspectos, a vida cotidiana teria se tornado mais

“programada”. Além disso, ela não era mais “esquecida” pela teoria. Após 1945, o Estado se

fortaleceu e foram criados meios mais eficientes de organização da produção mercantil.92

Através da ampliação do consumo e da maior capacidade de ingerência do poder estatal no

conjunto da vida social, o cotidiano passou a ser organizado de maneira “produtiva”. A partir

dessas modificações no âmbito da vida cotidiana, Lefebvre sustenta a necessidade de um

conceito capaz de dar conta desses novos aspectos da sociedade capitalista e do crescimento

econômico: o conceito por ele formulado é o da “sociedade burocrática do consumo dirigido”

(1975: 210; 1991: 68).

92 Lefebvre nota de passagem que essa “reestruturação” produtiva não estava prevista nos esquemas marxistas clássicos.

Desde Marx, acreditava-se que o desenvolvimento econômico e social pressupunha a superação das relações capitalistas de

produção. Sobretudo nos teóricos marxistas do início do século XX, era comum a idéia de que o capitalismo havia esgotado

todas as suas possibilidades (o que supostamente havia se confirmado com a crise de 1929 e com a Segunda Guerra

Mundial). O imperialismo foi definido por Lênin como a “última etapa” de um capitalismo moribundo. Do mesmo modo,

existe um “catastrofismo” onipresente nas teses de Trotsky a respeito da “agonia mortal” do capitalismo e nas suas idéias

sobre a impossibilidade do desenvolvimento das forças produtivas ou na teoria do fascismo como a “última jogada” da

burguesia, etc..

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135

A passagem para uma nova configuração do capitalismo, que os teóricos do PCF

interpretaram restritivamente através da fórmula do “Capitalismo Monopolista de Estado”,

produziu profundos efeitos na reflexão teórica de Lefebvre. “Durante esse período (1950-60)

[o autor] mais de uma vez encarou a possibilidade de abandonar o conceito e o estudo

empreendido. Isso explica o longo intervalo entre o primeiro volume [...] e o segundo” (1991:

68). Referindo-se ao segundo volume da “Crítica”, Lefebvre argumenta que esta obra aponta

uma importante mudança de perspectiva em relação à anterior, “porque a mesma vida

cotidiana havia mudado para pior: uma passividade crescente, um empobrecimento” (1975:

109). Portanto, essa diferença “não é produto de um erro retificado, e sim da transformação da

realidade” (1975: 210); não obstante, reconhece que sua posição inicial estava ligada a uma

“apologia bastante confusa” (1975: 209) do cotidiano. Lefebvre recorda que era comum para

um marxista atribuir ao trabalho, sobretudo ao trabalho manual, uma enorme dignidade. O

homem definia-se em primeiro lugar pela atividade na esfera da produção. E foi em função

desse culto do trabalho que historicamente o proletariado encontrou as “justificações para sua

consciência de classe” (1991: 40). Em seguida, criou-se o projeto político “de uma

organização da sociedade de acordo com os „valores‟ do trabalho e dos trabalhadores. Propõe-

se à classe trabalhadora um modelo no qual a produção desempenha um papel central” (1991:

40).

Ao reconstituir as principais etapas da sua crítica da vida cotidiana, Lefebvre ressalta que,

inicialmente, o cotidiano estava associado ao caráter ativo e criativo da classe trabalhadora.

Existia a preocupação em manter um distanciamento em relação a tudo o que parecia não

envolver a centralidade da atividade produtiva (a arte, a filosofia e a “evasão” surrealista

apareciam como atividades alheias à maneira pela qual os homens produziam e reproduziam

as suas condições de existência). Se tais atividades possibilitaram, em função do seu

distanciamento, uma crítica dos hábitos e modos de vida, também deviam ser criticadas a

partir da vida cotidiana como atividades cindidas da totalidade social. O que existia para além

das atividades produtivas especializadas podia ser encontrado no “estilo” unitário das

sociedades do passado (a exemplo da festa, de origem camponesa, que conserva resquícios

desse modo de vida).93

Contudo, a consolidação da sociedade moderna, na segunda metade do

93 Para Lefebvre (1967: 169), o cotidiano se impõe junto com o advento da sociedade moderna. Antes havia uma “vida

cotidiana” entendida como “repetição dos gestos e costumes”, mas essa vida era vivida como parte de uma unidade maior.

Ela estava envolvida por grandes ciclos e grandes sistemas. Havia, por exemplo, o sentimento do sagrado, que se fazia

presente em todos os aspectos da vida. Também as atividades estéticas ou a produção não se deixavam diferenciar como os

âmbitos sociais autônomos da “arte”, “cultura” e “economia”. Ainda segundo Lefebvre, nas sociedades antigas a vida

cotidiana não se separava do que existia de mais “elevado”. Mesmo que o cotidiano e o “sublime” (ou o sagrado e o profano)

não se revelassem aspectos da vida inteiramente indiferenciados, tampouco não eram vividos como “separações” (1980: 321).

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século XX, fez com que o cotidiano se distanciasse cada vez mais das noções de “produção” e

“criação”. A classe operária começou a perder seu antigo peso social e político em favor da

ampliação das camadas médias. A respeito desses acontecimentos, Lefebvre afirma: “... o

autor verificou tais modificações na vida social em que seus „objetos‟ se dissipavam sob seus

olhos ou se modificavam até o ponto de se tornar irreconhecíveis” (1991: 47). As suas

análises se voltaram, a partir de então, para essa nova configuração histórica, tentando

apreender as modificações na estrutura da produção, a ampliação dos setores de “serviços”, os

novos hábitos do consumidor passivo, a transformação do espaço habitado e a destruição dos

valores e modos de comportamento atrelados ao período histórico anterior.

As abordagens da sociologia tradicional não permaneceram indiferentes a esse conjunto de

mudanças. Foram criadas várias teorias que pretendiam incorporar em seu repertório os temas

do lazer, da técnica, da abundância, da comunicação, etc. A partir dos anos 50, falou-se com

muita freqüência do advento de uma “sociedade de consumo”. Nesse contexto, foram

particularmente afetados os valores tradicionais do trabalho, ainda vinculados ao período de

carência material. Na obra de Lefebvre, o reflexo das modificações no âmbito da sociedade

capitalista se expressou com nitidez num distanciamento em relação ao “espírito comunista”

dos anos 30-40 e sua mística do trabalho e da produção. Mas, essa inflexão não significou

uma adesão ao novo “espírito do tempo”, uma vez que, para Lefebvre, os potenciais criados

pelas forças produtivas e pelo processo de automatização, além da abundância de bens

materiais e da ampliação do tempo disponível, pareciam entrar em contradição com a

capacidade de a sociedade determinar de modo consciente os seus objetivos e utilizar de

maneira conseqüente os recursos e capacidades disponíveis. Por isso, sua crítica da vida

cotidiana pretendia mostrar “o lugar dos conflitos entre o real e o irracional na nossa

sociedade” (1991: 30).

As teorias da “sociedade de consumo”, ao contrário, estavam freqüentemente envolvidas

em promessas ilusórias de felicidade e de satisfação imediata das necessidades dos indivíduos,

omitindo a natureza profundamente contraditória das relações capitalistas de produção e os

seus traços burocráticos. Para Lefebvre, criou-se, em nome da teoria sociológica, uma

verdadeira ideologia das sociedades de consumo (1991: 64). O aspecto mistificador de tais

abordagens resultava quase sempre do seu caráter parcial. A idéia de abundância, por

exemplo, negligenciava as contradições entre os potenciais técnicos e os limites impostos pelo

“valor de troca”, além da nova miséria cultural e as “novas raridades” (tempo e espaço). A

ideologia do consumo eliminou as idéias e valores “ativos”, tais como os da classe operária,

abrindo caminho para os hábitos dos consumidores passivos. A idéia de uma sociedade do

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lazer, por seu turno, favorecia a constatação da importância cada vez maior do tempo de não-

trabalho, mas omitia que o emprego consciente do “tempo livre” é apenas uma perspectiva e

não uma realidade dada imediatamente. Ao contrário, com o crescimento capitalista do pós-

guerra, o lazer continuou acorrentado ao trabalho, como necessidade de uma sociedade que

continua levando os trabalhadores à exaustão. Assim, os divertimentos, férias e distrações

(TV, cinema, turismo) que começaram a fazer parte do cotidiano dos trabalhadores, como

novas modalidades de consumo, são ainda condicionados pelos ritmos da organização do

trabalho.

Para colocar o problema das contradições gerais do capitalismo era preciso elaborar uma

problemática unificadora, voltada para a totalidade social. Em História e consciência de

classe, Lukács já afirmava que não é o predomínio dos elementos econômicos que diferencia

de maneira decisiva o marxismo das ciências burguesas, mas o ponto de vista da totalidade.

Lefebvre retoma a perspectiva inaugurada por Lukács, acrescentando-lhe, por meio de uma

“sociologia aberta”,94

um conjunto de descrições e análises dos fenômenos da experiência

cotidiana da segunda metade do século XX. Acrescenta, ademais, a necessidade de subordinar

a categoria da totalidade à negatividade (ou negação dialética), fazendo com que ela se

diferencie das mistificações “totalizadoras” do culturalismo e do estruturalismo (1980: 189).

Para Lefebvre, “nunca Marx concebeu o econômico como determinante ou como

determinismo, mas sim o capitalismo como modo de produção em que predomina o

econômico” (1991: 208). De modo semelhante, sustenta que somente as leituras dogmáticas

têm a pretensão de definir o homem pelo e para o trabalho (1980: 99). O dogmatismo

marxista define o homem de modo unilateral, com uma ênfase no mundo das “coisas” e

“objetos materiais”. Assim, o homem é privado de suas outras dimensões vitais. Em

contraposição, Lefebvre procura resgatar a idéia do “fenômeno humano total” (1980: 99), que

não confere privilégio à produção de “coisas” e utensílios, abarcando igualmente outros

“níveis”, tal como a esfera das necessidades, da fruição, da prática criativa, da linguagem, etc.

A problematização da centralidade da “produção” no discurso do marxismo tinha como base a

superação da condição geral de escassez material que permitia a formulação de novos valores

ligados ao emprego do “tempo livre”. Lefebvre observa que o “não-trabalho” torna-se uma

perspectiva, vislumbrando o momento em que poderão ser superadas as “exigências e

imposições do trabalho produtivo material, passando-se às atividades múltiplas produtoras de

obras” (1991: 61). Essa perspectiva, já vislumbrada por Marx, nos Grundrisse, afirma que o

94 A expressão é de René Lourau (2004: 249).

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tempo disponível, situado não no processo de produção imediato, mas “ao seu lado”, devia

tornar-se o verdadeiro fundamento da riqueza social.95

Ao falar do “fenômeno humano total”,

o que Lefebvre almeja é, antes de tudo, ultrapassar a pretensão, típica da ontologia tradicional,

de esgotar o humano na definição de uma “essência” (1980: 99). Mas, seu objetivo maior é

outro: ele pretende indicar o estado geral de separação ao qual a atividade social está

submetida.96

Por outro lado, a tendência à abundância material, propiciada pela incorporação

direta da ciência como força produtiva e pela ampliação das formas massificadas de consumo,

no centro da sociedade capitalista, colocou a contestação social em um novo patamar: ela não

nasce mais da miséria e da luta pela sobrevivência, e sim da potencialidade dos desejos e das

novas necessidades que a sociedade já estaria em condição de satisfazer plenamente (1980:

37).

Outra característica do segundo volume da Crítica da vida cotidiana é que o livro traz a

marca da aproximação e da influência mútua entre Lefebvre e as idéias situacionistas.

Segundo Jappe (1999: 100), quando os “jovens letristas passam de uma atitude de recusa

espontânea a um aprofundamento teórico, descobrem a obra de Henri Lefebvre, cuja

influência sobre as futuras teorias situacionistas é importante”. Para Gombin, que dedicou

todo um capítulo do seu estudo sobre o “esquerdismo” à crítica da vida cotidiana,

considerando-a “o núcleo central da nova teoria radical” (1972: 76), a influência recíproca

entre Lefebvre e os situacionistas é inegável (1972: 80).97

Lefebvre se refere diretamente a

Debord e sua tese sobre a “colonização da vida cotidiana” (1980: 17) e sobre o papel dos mass

media na produção da não-participação generalizada (1980: 225-6). Foi a partir do texto sobre

o “romantismo revolucionário”, publicado no mesmo ano em que se formou a I.S., que

Lefebvre entrou em contato direto com os situacionistas. Desde 1961, Lefebvre tornou-se

professor da Faculdade de Letras e Ciências humanas de Estrasburgo. Seu contato pessoal

com os situacionistas era então bastante intenso. Jappe recorda que “Lefebvre foi a única

95 Lefebvre menciona os trabalhos preparatórios de O Capital já em 1939, em O materialismo dialético (1999: 61). Nesse

mesmo ano, os esboços de Marx (Grundrisse) foram publicados pela primeira vez em Moscou, em alemão. Encontramos

outra referência, dessa vez mais direta, aos textos dessa época, no livro de 1947 sobre o pensamento de Marx (1966: 177).

Nos anos 60, Lefebvre incorpora diretamente várias contribuições dos Grundrisse., extraindo deles, entre outras coisas, a tese

de que uma “crítica da economia política” significa que, tanto quanto a religião e outras manifestações do “mundo invertido”,

a economia política deve ser criticada e superada. O empreendimento de Marx não se limita, portanto, somente de uma crítica

das doutrinas econômicas burguesas, mas é também uma crítica da separação e da inversão real, no interior da sociedade

moderna, entre os homens e os seus produtos.

96 A própria idéia de “cotidianidade” anuncia a mudança: enquanto o cotidiano diz respeito à entrada da vida na modernidade

e nas relações mercantis, a “cotidianidade” reforça o aspecto repetitivo, homogêneo e fragmentário assumido pela vida

moderna (Lefebvre, 1989: 134).

97Essa relação, por mais direta e bem documentada que seja, escapou à maioria dos comentadores da obra de Lefebvre. Nesse

aspecto, os estudos sobre a reflexão lefebvreana acompanham um silêncio geral, só muito recentemente rompido, em relação

à teoria situacionista e ao seu papel nos assim chamados “eventos” de maio de 1968.

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personagem ilustre com um papel institucionalizado no mundo cultural com quem os

situacionistas aceitaram colaborar (1999: 102).98

Essa proximidade só ocorreu em função da

importância da idéia presente nos primeiros anos da I.S. de realizar construções experimentais

da vida cotidiana.

O primeiro número da revista Internationale situationniste, de junho de 1958, é bastante

marcado pelo debate “cultural” e pela crítica do surrealismo. Nele, Debord apresenta algumas

teses sobre a “revolução cultural”, nas quais polemiza com a perspectiva “romântica” de

Lefebvre. Para Debord, as “superestruturas culturais” entraram em desacordo com as

possibilidades contidas nos “poderes materiais” da sociedade, originando o “desacordo”,

identificado por Lefebvre, entre o mundo e a consciência individual que se permite pensar as

possibilidades do tempo presente em sua dialética do possível-impossível. Mas, segundo

Debord, o defeito dessa concepção consistiria em “fazer da simples expressão de desacordo

um critério suficiente para uma ação revolucionária dentro na cultura” (I.S: 1997: 21). Essa

polêmica já havia aparecido na correspondência entre Debord e Lefebvre, em 1960, quando

aquele adverte que a perspectiva da construção de situações, como forma ativa de recusa do

presente, deve ultrapassar todo romantismo (Debord, 1999a: 331). A postura romântica não

corresponde à superação do desencontro entre as aspirações revolucionárias e o mundo, mas à

manutenção da decomposição cultural que impede a realização de construções experimentais

mais elevadas. Por esse motivo, diz Debord, “seremos „romântico-revolucionários‟, no

sentido de Lefebvre, na exata medida de nosso fracasso” (I.S. 1997: 21).

O diálogo entre os situacionistas e Lefebvre, que elaborou uma “teoria dos momentos”

conhecida pelos situacionistas, prossegue nos números seguintes da revista da I.S. Em fins de

1959, aparece outra polêmica, dessa vez envolvendo o problema das possibilidades de criação

e o esgotamento da arte.99

Debord toma como referência as observações de Lucien Goldmann

a respeito do fim da obra de arte como atividade autônoma. Para Goldmann, que Debord

considerava um importante marxista “independente”, em uma futura “sociedade sem classes”

e sem divisão do trabalho social, “não haverá provavelmente mais arte separada da vida

porque a vida terá ela mesma um estilo, uma forma na qual ela encontrará sua expressão

98 Em uma entrevista dos anos 80, conduzida por Kristen Ross, Lefebvre fala de sua relação pessoal com Debord e os

situacionistas: “Nunca fui parte do grupo. Eu poderia ter sido, mas tive cuidado desde que conheci o caráter de Guy Debord e

suas maneiras e o modo que ele tinha de imitar Andre Breton, expulsando todo mundo a fim de chegar a um pequeno núcleo

duro e puro” (1983).

99 Em uma carta a Asger Jorn, de julho de 1959, Debord refere-se à teoria dos momentos, apresentada por Lefebvre pela

primeira vez em A soma e o resto, afirmando que essas questões são o “coração” dos problemas situacionistas (Debord,

1999a: 242).

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adequada” (1967:43). Tal como Lefebvre, Goldmann também colocava as questões de base

para pensar uma práxis criadora, mas, do ponto de vista situacionista, o problema da

superação da arte e da criação de momentos inteiramente novos permanecia, na obra de

ambos os pensadores, isolado em uma reflexão teórica ”exterior” aos sujeitos. Do ponto de

vista da I.S., não bastava acreditar, como fizera Goldmann, que a própria vida devia tornar-se

um “estilo” permanente de criação. Era necessário reconhecer as possibilidades de realização

daquilo que a reflexão teórica anunciava. De nada adiantava resgatar, no espírito do

romantismo, uma antiga forma de expressão capaz de criar um estilo de vida integral: para os

situacionistas, ao contrário, era necessário apreender o sentido da destruição geral das formas

de expressão. Toda a história da arte moderna apontaria para um movimento contínuo de

dissolução, culminando na completa ausência de sentido e de comunicação100

. Em tais

condições, a crítica da arte não é a “negação do estilo”, mas o “estilo da negação” que

proclame a capacidade de criar e modelar a vida sem a mediação da arte (I.S., 1997: 71-6).

A despeito das diferentes perspectivas, a colaboração entre Lefebvre e os situacionistas se

intensificou bastante no início dos anos 60. Lefebvre se apropria de várias idéias

situacionistas e seu nome é mencionado com alguma freqüência nas publicações da I.S. No

número 4 da revista, em 1960, os foi publicado o texto “Teoria dos momentos e construção

das situações”, que se ocupa do “encontro” entre as duas teorias. Os momentos, no sentido

que lhes é dado por Lefebvre, não se situam fora do cotidiano: articulam-se com o cotidiano

para nele introduzir o que está ausente. Além disso, os momentos visam a superação das

cisões no interior do cotidiano. A “situação construída”, por seu turno, diferencia-se dos

“momentos” lefebvreanos por ser mais particularizada. Ao contrário dos momentos, ela é

inseparável do seu consumo imediato, não podendo ser repetida (I.S., 1997: 118-9).

100 Em sua crítica literária, Goldmann afirmou a existência de uma “vanguarda da ausência”. Segundo ele, “é um dos fatos

mais marcantes da cultura ocidental contemporânea que a maior parte dos escritores de avant-garde exprima, sobretudo, a

impossibilidade de perceber ou de formular valores aceitáveis, em nome dos quais eles pudessem criticar a sociedade” (apud

Konder, 1967: 171). Entre os representantes dessa vanguarda que exprime a recusa da reificação sem lhe opor valores

positivos estariam Beckett, Ionesco, Adamov e o “novo romance” francês. De modo semelhante, Lefebvre falou da

descoberta de um cotidiano “cada vez menos tolerável” e “pouco interessante” por parte da vanguarda literária (1991: 16).

Para os situacionistas, esse conjunto de autores não faz mais do que ressuscitar o antigo “papel negativo” desempenhado pela

cultura de vanguarda do início do século XX, mas agora como mera repetição das realizações do passado e prolongamento

indefinido da crise da cultura. A “vanguarda da ausência” de Goldmann seria, na realidade, a ausência da vanguarda. Daí a

necessidade de preencher o vazio cultural com formas de ação que se situem na “vanguarda da presença”. Esta, por sua vez,

não estaria mais limitada à criação literária ou cultural. Sua esfera de intervenção deveria ser um terreno concreto da vida

cotidiana (I.S., 1997: 310-18).

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141

Em 1961, Debord colaborou com o “Grupo de pesquisa sobre a vida cotidiana” reunido

por Lefebvre no CNRS.101

A intervenção de Debord resume o estado das discussões sobre o

tema: o cotidiano, definido nos mesmos termos de Lefebvre, “é o que resta quando se retiram

do vivido todas as atividades especializadas” (I.S., 1997: 218).102

Para Debord, o projeto de

criações de níveis mais elevados de participação na vida implica que se tome o cotidiano

como a “medida de tudo”: ele é a medida da não-realização das possibilidades de emprego

consciente do tempo. Por isso, Debord retoma a idéia lefebvreana do cotidiano como lugar de

“atraso” em relação às potencialidades técnicas (sobretudo no que diz respeito à capacidade

de ampliação do tempo livre) desenvolvidas de forma inconsciente pela sociedade. Produz-se,

assim, uma assimetria entre o caráter “unitário” da vida cotidiana e as diferentes

especializações: “a sociedade moderna se constitui de fragmentos especializados,

praticamente intransmissíveis, e a vida cotidiana, na qual todas as questões surgem de modo

unitário, torna-se, portanto, o domínio da ignorância”. Mas, esse atraso não obscurece o fato

de que “todos os desejos impedidos pelo funcionamento da vida social, residiam nela, e não

nas atividades ou distrações especializadas” (I.S. 1997: 221). Para Debord, a arte e a filosofia,

como domínios especializados, são impotentes para a transformação do cotidiano. Se a vida

cotidiana é o que “sobra” quando abstraímos as atividades especializadas que lhe escapam,

então, conclui Debord, a crítica da vida cotidiana só pode ser a crítica que o próprio cotidiano

exerce sobre tudo o que se tornou exterior a ele. Debord identifica outros problemas relativos

à vida cotidiana, como a forma pela qual a “sociedade da alienação” manipula o desejo de

intensificação da vida, a partir de imagens publicitárias do sexo e do consumo de mercadorias

ou ainda através do uso das drogas.103

Outro problema era o da apropriação capitalista dos

“momentos” de não-trabalho (o consumo, repouso, lazer, etc.), definidos como a “passividade

cotidiana” fabricada e administrada pelo capitalismo (I.S., 1997: 223). Debord conclui suas

observações com outra idéia importante: o descompasso entre o real e o possível produz uma

101 A participação de Debord na reunião do grupo de estudos resumiu-se a uma palestra, feita por meio de um gravador, em

maio de 1961. Foi a primeira vez que Debord apresentou suas idéias em um contexto institucional. A palestra foi publicada

no número 6 da revista I.S., com o título “Perspectivas de modificações conscientes da vida cotidiana”.

102 Cf. também o texto “Introdução à psicosociologia da vida cotidiana”. Nele encontramos elementos que nos aproximam de

uma definição (não-sistemática) do cotidiano: “se eliminarmos as atividades delimitadas e especializadas (técnicas, trabalhos

parcelares, cultura, ética) e os valores admitidos, o que nos resta? Nada, dirão alguns, os positivistas, os cientificistas. Tudo, a

saber, o ser profundo, a essência, a existência, dirão certos filósofos e metafísicos. Nós diremos: „Algo, a substância do

homem, a matéria humana, o que lhe permite viver, resíduo e totalidade há um só tempo, seus desejos, suas capacidades, suas

possibilidades, suas relações essenciais com os bens e com os outros homens, seus ritmos, através dos quais é possível passar

de uma atividade delimitada à outra totalmente distinta, seu tempo e seu espaço ou seus espaços, seus conflitos‟...” (1973:

88).

103 A esse respeito, Debord lembra as palavras do moralista francês La Rochefoucauld, para quem “o que nos impede de

entregarmo-nos a um vício é o fato de termos vários”, observando que esta idéia, uma vez despojada dos pressupostos

moralistas, poderia se tornar a “base de um programa de realização das capacidades humanas” (I.S., 1997: 222).

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crise da vida cotidiana; essa crise é sentida com maior intensidade pelos jovens e se expressa

nas manifestações artísticas – ainda que Debord se apóie “no projeto, defendido pela classe

operária, de abolir toda a sociedade de classes e de começar a história humana” (I.S, 1997:

222-3). No entanto, a ampliação do descontentamento nada tem a ver com a dinâmica das

“crises cíclicas” da economia e com os antigos problemas da escassez. Ela reflete a

impossibilidade da realização dos desejos e a “colonização” da vida cotidiana pelo

crescimento tecnológico e econômico autônomizados. Assim, a perspectiva de um uso

consciente da vida assume, a partir da ampliação da insatisfação e do tédio no interior da

sociedade, a forma de uma revolução contra tudo o que ultrapassa o cotidiano: as várias

especializações, a “grandeza” das lideranças políticas e a “imortalidade” das obras de arte,

etc. Desse modo, o cotidiano deixaria de ser o lugar da ambigüidade, como o definiu

Lefebvre, para se tornar o palco da história feita conscientemente pelos homens.

Motivado pelo intenso debate com Debord e os outros situacionistas, Lefebvre retoma, no

capítulo final do segundo volume da Crítica da vida cotidiana, a sua “teoria dos momentos”.

A idéia central dessa teoria é que o cotidiano, malgrado seu inegável empobrecimento, possui

momentos diferenciados em relação às formas de comportamento condicionadas: o amor, o

ócio, a festa, a ação, o conhecimento, etc. A teoria dos momentos, como reflexão sobre a

desalienação do cotidiano, parte da contradição entre alienação e desalienação. Ela reconhece

as tensões no interior desses momentos e a maneira pela qual os lazeres, o sexo e os

elementos lúdicos se transformam em formas de consumo, resultando em mais mal-estar e

frustração. Mas, o que Lefebvre pretende é combater a idéia de que o cotidiano só pode ser

compreendido e criticado a partir de uma posição mais “elevada”, notadamente a posição

representada pelas atividades do teórico, do filósofo ou do artista. Para Lefebvre, ao contrário,

a cotidianidade, entendida como degradação da vida cotidiana, pode ser contestada também

pelo “homem simples”, mesmo que ele não possua os atributos “intelectuais” do artista ou do

filósofo (1980: 356). Em sua própria experiência diária, os homens possuiriam a capacidade

de emergir acima da alienação cotidiana justamente porque vivenciam momentos

diferenciados: “os momentos apresentam-se como o duplo, tragicamente magnífico, da vida

diária” (1980: 355-6). Essa perspectiva adotada por Lefebvre distingue-se de sua posição

inicial, na qual os “momentos excepcionais” tendiam a ser tratados como tentativas de escapar

à ambigüidade da vida cotidiana. A inversão do ponto de vista de Lefebvre se deve, como

vimos, às modificações sofridas pela vida cotidiana com a consolidação do estágio mais

avançado do capitalismo. O cotidiano era visto como um palco sobre o qual se confrontavam

as alienações e as realizações humanas e os “momentos” apareciam vinculados a um elemento

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“sobre-humano” recusado por Lefebvre (1977: 140). Com o desenvolvimento das forças

produtivas surgiram as possibilidades de libertação do fardo do trabalho. Mas, ao mesmo

tempo, o aprimoramento dos mecanismos de organização da passividade do consumo de

mercadorias fizeram com que o cotidiano se tornasse um componente decisivo da reprodução

heterônoma da sociedade e, portanto, um elemento incompatível com a criação e a

intensificação da vida. Se as possibilidades de criação autônoma ainda persistem, isso ocorre

apenas em função dos “momentos” que integram o cotidiano sem se identificar com ele,

escapando à “colonização”.

Para Lefebvre a livre criação de momentos (ou situações) é a base da critica da vida

cotidiana, ou seja, é ao mesmo tempo parte do cotidiano, pois não se desenvolve como

atividade especializada, mas é também a negação do modo como o cotidiano é organizado e

degradado pela forma abstrata assumida pela atividade social, pela administração política e

pelo “consumo dirigido”. Ainda na obra de 1961, Lefebvre polemiza com o tratamento dado

por Lukács à vida cotidiana.104

Lukács considerava a arte como uma intensificação da

realidade humana. Ela representaria uma “elevação” no plano da consciência que refletia

sobre o cotidiano. Nesse sentido, a arte seria a manifestação sensível e imediata de algo que

lhe é exterior, ou seja, a própria vida cotidiana representada no plano estético. A

representação estética, portanto, seria sempre uma “autonomização” em relação à vida

cotidiana. No entanto, o que Lukács chama de “autonomia” é, para Lefebvre, bem como para

Debord e os situacionistas, o produto de uma separação, vale dizer, uma forma alienada de

representação da realidade.105

Ao contrário de Lukács, a posição de Lefebvre “tem o mérito

de sublinhar as possibilidades de uma gênese da práxis a partir da vida cotidiana” (Konder,

2003: 243). Em todo caso, para Lefebvre, não basta que o “centro real da práxis” (1991: 38)

esteja situado no interior da vida cotidiana. É preciso que a atividade consciente e criadora se

volte contra as formas assumidas pela vida cotidiana na sociedade capitalista avançada. Por

isso, a cotidianidade é definida como o principal produto do “consumo dirigido” (1991: 82).

Portanto, se a práxis é tomada como um instante da vida cotidiana e não como algo “elevado”,

104 Lukács desenvolve algumas teses a propósito da vida cotidiana em sua Estética. Essa reflexão teve continuidade desde os

anos 70 na obra de uma aluna e seguidora, Agnes Heller.

105 Na teoria do cotidiano desenvolvida por Heller (2000) essas diferenças ficam ainda mais explícitas. Para Heller, a criação

de “obras” só ocorre a partir da ruptura com o cotidiano. Ainda que não se afirme uma separação rígida entre o

comportamento cotidiano e não-cotidiano (por exemplo, o artista, enquanto indivíduo particular, também vive a regularidade

do cotidiano), a abordagem de Heller, tal como a de Lukács, tende a ratificar as separações da vida social. Ela impede que se

pense o que Heller chama de “objetivação duradoura”, partindo do próprio cotidiano. Por isso, o cotidiano nunca é práxis.

Desaparece o problema das cisões no interior da vida social – ou melhor, as cisões deixam de ser um problema. Nessa leitura,

os produtos “duradouros” da sociedade diferenciam-se obrigatoriamente da espontaneidade do cotidiano, mas o pressupõem.

A “estrutura” da vida cotidiana é uma espécie de “base” permanente sobre a qual se eleva a práxis, ou seja, a atividade

“humano genérica” realizada conscientemente pelo artista, pelo sábio ou pelos “grandes estadistas”.

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144

isso não significa deixar de reconhecer os limites da consciência e das ações que se

desenrolam no interior desse cotidiano. A noção mesma de práxis sugere a afirmação

consciente de um outro uso da vida., de modo que a práxis, como parte integrante do

cotidiano, é inseparável da crítica do cotidiano pela práxis. Ou, no dizer de Lefebvre, é

“impossível compreender o cotidiano sem o recusar” (1967: 372).

O conjunto de idéias desenvolvidas por Lefebvre junto com os situacionistas desde o final

dos anos 50, começa a ganhar uma forma mais definida por volta de 1962. Nesse mesmo ano,

é publicada a Introdução à Modernidade, na qual Lefebvre tenta articular suas idéias a uma

“maiêutica da modernidade” (1969:55). Para tanto, propõe uma reflexão “irônica” inspirada

em Sócrates, filosofo sem sistemas, que pensa a partir das questões suscitadas pela vida

prática da cidade grega. Essa reflexão sobre a modernidade é igualmente não-sistemática,

mas, ao mesmo tempo, fragmentária (é feita através de “prelúdios”) e crítica dos

dogmatismos. Lefebvre se distancia do determinismo histórico: não possui conceitos

inteiramente acabados, nem um ponto de chegada determinado de antemão. A noção de

“modernidade” refletiria um fenômeno em desenvolvimento, com seus traços mais

fundamentais ainda pouco nítidos. Assim, a postura irônica adotada por Lefebvre o coloca

diante não de uma realidade acabada e apreendida por sistemas teóricos, e sim da abertura

para a escolha dos caminhos possíveis.

Uma primeira condição para essa “abertura” era o ajuste de contas com o sistema teórico

do marxismo. A renovação do pensamento marxista, que Lefebvre defendeu obstinadamente

desde a sua adesão ao PCF, partia da recusa das sistematizações. A modernidade deveria ser

apreendida como parte de um processo de crescimento econômico e avanço ininterrupto da

tecnologia que deram origem a conflitos e contradições distintas da realidade da fase

“clássica” do capitalismo do século XIX. O cotidiano, por exemplo, foi “invadido” por uma

enorme quantidade de objetos técnicos, mas prosseguiu separado do domínio conseqüente dos

novos artifícios por uma nova “alienação tecnológica” (1969: 267). Devido a determinadas

circunstâncias históricas, o pensamento marxista foi impedido de se relacionar com esse

conjunto de fenômenos de uma maneira crítica. O problema da alienação, que é o cerne da

crítica de Marx ao capitalismo, deixou de ser colocado por causa das tarefas imediatas da

industrialização. A “ironia do marxismo”, diz Lefebvre, foi apresentar-se como uma religião

político-estatal: não só o culto a Stálin, mas igualmente a elaboração de todo um sistema

especulativo, “que especula sobre a „matéria‟, como os antigos sobre o „Ser‟” (1969: 32). Esse

marxismo acabou por se converter em “uma ideologia consagrada ao crescimento econômico”

(1969: 35) e seus representantes “revelaram-se essencialmente aceleradores da acumulação

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145

econômica nos países atrasados” (1969: 97). Daí o seu conformismo, baseado numa moral do

trabalho, e seu o entusiasmo irrefletido pela técnica.

Para Lefebvre, a modernidade era revelada pela experiência concreta, mas ainda não

existiam explicações do ponto de vista teórico. O sentido das mudanças era apreendido a

partir de uma percepção das contradições que se acumulavam em meio à abundância material.

Era a partir do espírito do romantismo, retomado na parte final da Introdução à Modernidade,

que Lefebvre buscava um caminho para compreender essa “sensação” de mal-estar que

começava a se generalizar em alguns meios. Se, no início do século XX, os “sinais” de

mudança dos hábitos e ritmos da sociedade foram representados de maneira concentrada por

uma arte questionadora do seu papel na vida cotidiana, agora se fazia necessário dar

continuidade a esse programa, introduzindo-lhe elementos novos. Com Baudelaire, a poesia

descobriu o cotidiano e a vida moderna na agitação das ruas e “passagens” de Paris. Marx, seu

contemporâneo, identificou os primeiros sinais da modernidade com a forma abstrata das

relações capitalistas de produção e suas “separações”. Mas, foi com o surrealismo e o

dadaísmo que se explicitou a relação entre a arte e o cotidiano. A intervenção dessas

vanguardas traduzia o incômodo vivido pelo artista no interior da sociedade burguesa: os

artistas se viam diante de uma arte separada do cotidiano e de um cotidiano destituído de

sentido e de “encanto” (1969: 213). A capacidade de criação se aliena no “esteticismo”,

perpetuando-se como uma atividade separada da vida. Ela invade o cotidiano, mas como

produção de obras impotentes ou mesmo “decorativas” e supérfluas (além da criação do

mercado de obras). No romantismo, por sua vez, Lefebvre busca uma postura que é ao mesmo

tempo de recusa e de criação.106

Ele vê nas intuições estéticas de Musset, o “poeta da

juventude”, uma analogia com a crise de valores do século XX. Em A confissão de um filho

do século, de 1836, o poeta francês descreve a sensação de vazio da existência que se

impunha, sobretudo aos jovens, no período da Restauração, após as guerras napoleônicas.

Depois da ventania que estremeceu as florestas da velha Europa, diz Musset, veio o mais

completo silêncio. Desde então, a juventude viveu um período de indefinição, marcado pelo

106 Lefebvre retoma a polêmica entre clássicos e românticos a partir de uma leitura de Stendhal (especialmente Racine e

Shakespeare, considerado um dos primeiros manifestos da crítica romântica na França), afirmando que mesmo no século XX

este conflito perdurou e teve conseqüências sobre as revoluções contemporâneas. Para Lefebvre, desde os anos 30, o

movimento revolucionário inclinou-se para as formas estáveis do classicismo. O que se esconde por trás de uma perspectiva

“estética” é a perda de vitalidade dos processos revolucionários. O fortalecimento da burocracia acarreta a negação das

contradições internas do sistema. Assim, a burocracia afirma a aparente coesão entre o indivíduo e a sociedade e a primazia

da “realidade imediata” sobre o possível. O romantismo é recusado a partir do momento em que a revolução torna-se mais

“respeitosa” e desaparecem as virtudes criadoras da imaginação e do prazer. Por isso, Lefebvre assevera que “toda ordem

estabelecida, saída de uma Revolução ou de uma Restauração, deseja um classicismo que a justifique”. E, do mesmo modo,

“toda burocracia, da Igreja ou do Estado, teve e terá a sua filosofia, sua doutrina do Ser (ontologia), seu critério do que é ou

não é” (1969: 282).

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146

tédio, pela ausência do imprevisível e das paixões. Musset falou de um “mal do século” para

caracterizar esse estado de espírito que se abateu sobre os jovens dessa época. Para Lefebvre,

a situação dos países industriais avançados, que corresponde à realização das tendências

contra as quais os românticos se manifestaram no século XIX, produz contradições

semelhantes. O moderno é, sobretudo, contraditório. Ele produz conflitos e integrações, bem-

estar e insatisfação. Quem melhor expressa essas contradições é a juventude, que antecipa a

revolta.

Ao mesmo tempo em que coloca o problema da insatisfação e do tédio da modernidade,

Lefebvre se pergunta se uma crise não poderia provocar uma “repolitização” da sociedade –

porém, acrescentando a necessidade de alargar os estreitos horizontes da política:

“Não seria preciso reinventar uma política revolucionária audaciosamente total,

restituindo ao pensamento marxista a sua amplidão e visando a transformação radical do

mundo humano e da vida cotidiana sob todos os seus aspectos, para estimular ao mesmo

tempo a imaginação e a sensibilidade política?” (1969: 230).

A antiga idéia da “vida nova” reaparece, então, como uma “revolução total” que subverte a

vida cotidiana, ultrapassando a sua “pré-história” (I.S., 1997: 144). O marxismo, restrito à

ideologia produtivista e às políticas de resultados “econômicos” imediatos, não se permite

pensar os problemas que estão na base desse questionamento da totalidade social. Ele não é

capaz de incorporar os problemas do não-trabalho, da ampliação do lazer, do tempo-livre.

Enfim, ele não coloca o problema do “estilo de vida” a inventar. Eram os pequenos grupos de

“vanguarda”, vinculados por Lefebvre ao novo romantismo, que conseguiriam equacionar

criticamente esse conjunto de problema. Assim, as vanguardas ativas servem como

mediadoras entre as possibilidades e as práticas sociais instituídas, diz Lefebvre (1969: 111).

Elas colocam o problema da “conquista da vida cotidiana”, isto é, a apropriação do potencial

criativo que se encontra disperso no cotidiano ou alienado nas atividades especializadas

(sobretudo a estética).

Para Lefebvre, é nas “cidades novas”, produzidas pelo urbanismo moderno, que esse

conjunto de problemas se coloca com maior urgência, devido ao papel mais acentuado das

separações na estruturação do espaço-tempo cotidiano. Essa ideologia urbanística molda o

espaço e o cotidiano de acordo com um conjunto de necessidades concebidas abstratamente:

as “funções” segmentadas do trabalho, do lazer, da habitação e da circulação. Por isso, a

formulação do problema do cotidiano “programado”, isto é, a cotidianidade, surge

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147

simultaneamente às primeiras análises de Lefebvre acerca da cidade e do urbanismo.107

Referindo-se aos situacionistas, Lefebvre evidencia a relação entre as práticas experimentais

do “novo urbanismo” e a crítica da vida cotidiana:

“Alguns espíritos audaciosos prevêem que a arte de construir cidades novas e sobretudo a

arte de habitá-las criarão estilos, situações e participações ativas, jogos e prazeres que não

terão mais nada de comum – senão eventualmente o vocabulário - com o que nós

denominamos ainda „arte‟” (1969: 319).

Além do problema da modificação revolucionária da “cultura”, os situacionistas se

ocuparam mais concretamente de como passar da passividade à participação efetiva. Numa

polêmica que visava a elaboração de um programa comum com os integrantes do coletivo

Socialismo ou Barbárie, Debord demonstra que, no âmbito da produção dita cultural, as

relações entre o espetáculo e os espectadores são idênticas às relações entre “dirigentes” e

“executantes” que constituía, para Castoriadis, o cerne do processo capitalista de produção.

Para Lefebvre, essa vanguarda já não tem as mesmas preocupações “quantitativas” da velha

esquerda. Eles pretendem mudar a vida, prolongando o legado do surrealismo e criando um

“estilo” que corresponda à construção autônoma da própria vida. O meio urbano seria o

terreno privilegiado para a “construção de situações”, entendida como tentativa de dar a essas

idéias uma forma experimental (1969: 298). Por isso, afirma Lefebvre, “se os situacionistas

pensam na obra, é na cidade que eles pensam, como lugar de uma maneira de viver que exige

participação e que, englobando o espetáculo, sabe-se irredutível ao espetáculo” (1969: 399).

No entanto, esse conjunto de referências aparentemente “simpáticas” à intervenção

situacionista escondia divergências importantes, a começar pela referência ao romantismo e à

idéia de “prolongar” as atividades surrealistas. Igualmente, as idéias e atividades ligadas às

“ambiências urbanas”, como a deriva e a psicogeografia, começam a perder importância no

conjunto das formulações situacionistas.108

Mas, o que menos agradou os situacionistas foi

sua assimilação à juventude. Os situacionistas responderam aos elogios do último livro de

Lefebvre no número 8 da sua revista, com a afirmação de que não representam nem a “bela

juventude”, nem tampouco uma antecipação do futuro (I.S., 1997: 357). Ao mesmo tempo, no

interior da I.S. ocorreu uma mudança que caracterizava os limites da intervenção na “cultura”

107 Por exemplo, o texto de 1962, Introdução à psicosociologia da vida cotidiana (incluído em Do rural ao urbano), que

constitui uma primeira aproximação entre a problemática do cotidiano e a “vida urbana”. 108 Nesse momento, Lefebvre ainda se referia aos situacionistas como “espíritos audaciosos” lançados na “arte de construir

cidades novas” e “a arte de habitá-las” criando jogos, situações e participações ativas. Entretanto, observa logo em seguida

que tais atividades “não terão mais nada de comum – senão eventualmente com o vocabulário – com o que nós denominamos

ainda „arte‟” (1967:319).

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148

e que resultou na exclusão de vários membros que estavam descontentes com o

distanciamento definitivo em relação às “fantasias surgidas do velho mundo artístico” (I.S.,

1997: 367). Além disso, nessa mesma época os situacionistas passaram das pesquisas em

torno de um “novo urbanismo” à crítica direta do urbanismo como ideologia e técnica de

manutenção da ordem. O texto que expôs a nova orientação foi escrito por um novo integrante

da I.S., Raoul Vaneigem. Seus “Comentários contra o urbanismo” foram publicados no

número 6 da dos situacionistas, em 1961.

Em meados dos anos 60, a I.S. passou a se ocupar dos acontecimentos que

desestabilizavam a ordem do espetáculo moderno, tais como a revolta dos negros nos bairros

pobres de Los Angeles, a Argélia, que recolocava, embora de maneira limitada, o programa

da autogestão, e uma reflexão sobre a Comuna de Paris e a recriações dos conselhos

operários. Nessa época, os situacionistas estão entre os poucos a criticar as idéias maoístas

que começavam a influenciar muitos ativistas e intelectuais da esquerda.109

“Por volta de

1965, praticamente está terminada a elaboração da análise situacionista da sociedade”, como

afirma Jappe (1999: 110). No período seguinte, os situacionistas vão se dedicar aos meios de

ação e difusão de suas idéias. Em “Agora, a I.S.”, que abre o volume 9 da revista, em 1964,

afirma-se que “a coordenação dessas investigações e dessas lutas no plano prático (uma nova

união internacional) é nesse momento inseparável da coordenação no plano teórico”

(I.S.,1997: 369). Em seguida, é anunciada a preparação da exposição integral da perspectiva

situacionista no plano teórico, entendendo esta não como uma reflexão separada sobre um

“objeto”, e sim como apreensão do sentido das formas de negação da sociedade e das

contradições sociais em curso.110

Uma das últimas elaborações originais da I.S foi um conjunto de “teses sobre a Comuna”,

aparecido inicialmente em 1962. No centro das 14 teses assinadas por Debord, Vaneigem e

Attila Kotanyi, figurava uma interpretação dos acontecimentos de 1871 como uma “festa”

revolucionária. Era uma idéia aparentemente simples, no entanto pressupunha o

questionamento dos êxitos aparentes dos processos revolucionários do século XX e elogiava a

109 Sobre a revolta no distrito de Watts, em Los Angeles, Debord redigiu em 1965 “O declínio e a queda da economia

espetacular-mercantil”, difundido em inglês e, em seguida, publicado na revista da I.S. Para Debord, os negros possuíam, nos

EUA, sua própria versão do espetáculo, com sua imprensa, vedetes e produtos de consumo. Por se tratar de uma versão

empobrecida do espetáculo, sua mentira se tornou visível com maior facilidade, gerando a revolta. Em 1965, apareceu na

mesma revista o texto coletivo sobre “As lutas de classes na Argélia”, que aborda o golpe contra o governo de Bem Bella e as

possibilidades da “autogestão”. Sobre o problema chinês, Debord publica, em 1967, em um opúsculo não assinado, “O ponto

de explosão da ideologia na China”, classificando a “revolução cultural” como uma disputa no interior do poder burocrático e

o culto à personalidade de Mao como o triunfo da alienação.

110 Em 1967, foram publicadas as duas sínteses teóricas do pensamento situacionista, o “tratado” de Vaneigem sobre A arte

de viver para as novas gerações e A sociedade do espetáculo, de Debord.

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149

Comuna por aquilo que normalmente era visto como um defeito: a sua espontaneidade, a

autonomia dos grupos armados e, não menos importante, a ausência de líderes. De acordo

com as teses, era preciso levar a sério a opinião de Marx segundo a qual a maior realização da

Comuna foi a sua própria existência em atos – e, entre eles, a destruição do poder de Estado.

Como a maior festa do século XIX, encontra-se na Comuna de Paris “a impressão de que os

insurgentes se tornaram os donos de sua própria história” (I.S., 1997: 677). Por isso, ela não

devia ser considerada como manifestação de um “primitivismo” revolucionário a ser superada

por formas mais “disciplinadas”, e sim como uma experiência positiva. De acordo com

Lefebvre, toda essa discussão era produto de uma reflexão coletiva envolvendo ele próprio e

os situacionistas. Ainda em 1962, Lefebvre faz publicar na revista Arguments - considerada

uma publicação “rival” pela I.S. -, um texto praticamente idêntico ao dos situacionistas,

anunciado como esboço de um estudo histórico maior. A partir de então, estes o acusaram de

plágio e se deu o fim das boas relações e da colaboração teórica que se estendia desde 1958.

Em 1965, finalmente, Lefebvre publica o livro A proclamação da Comuna, que incorpora

no seu último capítulo, sobre a “significação” dos eventos de 1871, as teses elaboradas em

conjunto com os situacionistas. Nele, a Comuna de Paris é vista como um projeto de

superação [dépassement] total (1965: 396). Lefebvre vê na essência da Comuna a

“desvalorização do Estado e da política como tais” (1965: 404) e concebe o proletariado como

o elemento negativo (e, por isso, criador) que se lança numa “espontaneidade fundamental”

(1965: 389), abrindo-se em direção ao possível. Na festa revolucionária, as práticas sociais

destacadas umas das outras deviam se converter finalmente em formas de “comunhão” nas

quais “o trabalho, a alegria, o lazer, a satisfação das necessidades sociais – e de sociabilidade

– não se separam mais” (1965: 388). Com essa reflexão, Lefebvre pretende retomar a idéia,

anunciada por Marx, de uma “práxis total”, que supere as contradições entre a prática criativa

e a prática cotidiana, ou ainda, uma práxis que transforme a cotidianidade em uma “festa

perpétua”, na qual não terá mais sentido a luta cotidiana por pão e trabalho (1965: 389).

A elaboração mais desenvolvida dessa práxis encontra-se na Metafilosofia, livro concebido

por Lefebvre ainda em Estrasburgo, juntamente com os estudos sobre a Comuna e que pode

ser lido como um “prolongamento”, no terreno da filosofia, das posições dos situacionistas

sobre a arte. Ao longo dos anos 60, o próprio Lefebvre adotou essas posições, como se

depreende da leitura de sua intervenção de 1967, intitulada “Da literatura e da arte modernas

consideradas como processos de destruição e autodestruição da arte”.111

Nessa conferência,

111 Intervenção no colóquio “Literatura e Sociedade” em Bruxelas, seguido de um debate com Lucien Goldmann e outros.

Cf. Lefebvre (1973b).

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150

Lefebvre retoma o diálogo com Hegel. Na Contribuição à Estética, Hegel figurava apenas

como aquele que reintroduziu na estética o seu “conteúdo histórico”, superando o formalismo

burguês (1971: 25). Porém, logo filósofo alemão era suplantado, na reconstituição da história

das teorias estéticas, pela filosofia materialista e seu esforço realista. A partir dessa

perspectiva realista, Lefebvre constata que as tendências da arte moderna tendem, no limite, à

desaparição. Mas, em nenhum momento questiona-se se não é essa a verdadeira intenção do

artista. Lefebvre formula o problema da dissolução das formas estéticas em termos de uma

arte da decadência e não como decadência da arte. Ao retomar Hegel, no entanto, Lefebvre se

depara com o problema da ausência da “plenitude vital” da arte na sociedade burguesa: “a

satisfação que nela procuram e encontram outros povos não no-la oferece, a nós, a arte. (...) a

arte já não ocupa o lugar de outrora no que há de verdadeiramente vivo na vida...” (Hegel,

1996: 19). A arte, para Hegel, tornou-se um “objeto” afastado da vida e que tem por

finalidade servir ao pensamento. Por isso, no interior do sistema hegeliano, a arte, como

manifestação “sensível” do espírito absoluto, é absorvida pela religião e pela filosofia.

Hegel pensou o “fim da arte” como uma espécie de reintegração dos momentos estéticos

na plenitude da vida. Além disso, situou o romantismo, identificado com a tradição cristã, ao

mesmo tempo como o apogeu da arte e sua última expressão. A tese de Lefebvre é

diretamente inspirada em Hegel. Porém, ao invés de pensar o fim especulativo da arte, ele se

volta ao cotidiano. Diz ele na conferência de 1967: “A idéia que propus é bastante diferente

da de Hegel, ainda que se inspire nele. Apresentarei teses sobre a arte e a vida cotidiana”

(1973b: 130). Suas teses sobre a arte e o cotidiano reproduzem quase nos mesmos termos as

afirmações de Debord e da I.S: o cotidiano moderno tornou-se fragmentado, dividido em

esferas separadas. Ele é marcado pelo tédio, pela passividade e pelo “espetáculo

generalizado” (1973b: 130); nas sociedades do passado, ao contrário, a vida cotidiana estava

integrada ao culto e à dimensão estética. Os objetos utilizados no cotidiano traziam a marca

de uma práxis unitária. Nesse sentido, as sociedades pré-modernas possuíam um “estilo” e

não havia lugar para o que hoje chamamos de “cultura”, isto é, a esfera que recupera os

fragmentos estéticos antes vivenciados diretamente.112

Em seguida, com o consumo em

massa, a cultura “invade” o cotidiano, mas sem o modificar. Assim, a arte perde seu antigo

espaço e começa a refletir o estado de crise da cultura a partir do processo de autodestruição.

Por fim, em sua última tese, marcada por um otimismo idêntico ao dos situacionistas,

Lefebvre assevera que a arte “separada” desaparecerá com a transformação consciente da vida

112 A cultura acompanha a “cristalização do cotidiano” na modernidade, diz Lefebvre. (1973b: 131).

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cotidiana. A partir de então, ela contribuirá para criar um novo “estilo”: as obras serão vividas

concretamente ao invés de se limitarem às representações separadas do vivido.113

No que diz respeito à filosofia, Lefebvre argumenta que ela vive um impasse semelhante

ao das atividades estéticas. Na Metafilosofia, o ponto de partida para a elaboração de uma

nova práxis é o diagnóstico dessa crise, apresentado como um conjunto de aporias do

pensamento especulativo. Para Lefebvre, a filosofia depara-se, primeiramente, com o

problema da separação: ela está restrita a um domínio que não se faz mundo, que não se

concretiza, a não ser parcialmente, no Estado ou na vida privada. Em última análise, os

problemas levantados pela filosofia, como lembra Marx (1974: 57), nunca são puramente

filosóficos e só encontram sua solução no terreno da práxis. A pretensão de universalidade

sustentada pela filosofia está em contradição com o mundo não-filosófico. Essa contradição

só se resolve quando o pensamento abstrato absorve ilusoriamente o mundo no seu sistema

especulativo ou, inversamente, quando o pensamento “se torna mundo”, abandonando sua

forma filosófica. Assim, a despeito de seus mais variados anseios, a filosofia não pode nem

partir e nem alcançar a totalidade. Há sempre um mundo não-filosófico que lhe escapa,

tornando inadequada sua tentação de constituir-se num “sistema”. Ao constituir-se enquanto

pensamento sistemático e auto-referenciado, o discurso filosófico afasta-se das questões

vitais. Nasce desse divórcio, a indiferença do filósofo em relações às coisas do homem

comum e cotidiano; este homem, por sua vez, uma postura de desconfiança em relação ao

discurso do filósofo. Para Lefebvre, esse limite do pensamento separado remonta às suas

origens, na Grécia: a filosofia grega se constituiu como tal no momento em que se diferenciou

de outras práticas sociais (1967: 123). Novamente, para resolver tal impasse, ou a filosofia se

isola como um pensamento “rigoroso”, mas que “rompeu as conexões com o mundo” (1967:

127), ou retoma os seus laços iniciais (e nunca inteiramente rompidos) com a práxis e a

poièsis. A partir desse diagnóstico severo para com o “pensamento separado”, Lefebvre busca

nos eventos da vida cotidiana os sinais de uma nova prática criadora que restitua a filosofia

como obra, o que corresponde à superação da sua condição de filosofia (1967: 155). Tal como

em Marx, para quem a emancipação do proletariado não podia ocorrer sem a “realização da

113 Nesse momento, a arquitetura assumirá um papel central (1973b: 132). Mas não o modelo funcional da arquitetura

moderna. Para Lefebvre, concepções como as de Le Corbusier tornaram-se obsoletas. A arquitetura devia se ocupar, tal como

o situacionista Constant, da inversão dos valores e da elaboração de uma cidade lúdica, ou seja, uma forma de organização

espaço-temporal na qual o par trabalho-residência se torna periférico em relação ao jogo, aos encontros e às possibilidades do

ócio criativo.

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152

filosofia”,114

o fim das atividades separadas pressupõe que os problemas e os valores que

alimentam o discurso filosófico, ou seja, o seu “núcleo racional”, abandonem sua forma

alienada, seu “invólucro perecível” (1967: 167), e se realizem no mundo.

114 É o que se lê nas palavras finais da Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: “A filosofia não pode se

realizar sem a extinção do proletariado nem o proletariado ser abolido sem a realização da filosofia” (Marx: 2003: 102).

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153

3.3. Maio de 1968 – A crise revolucionária

Embora a idéia de que a arte e a filosofia sejam formas estreitas de apreensão e transfiguração

da realidade e que, em última análise, devam ser superadas, esteja presente no cerne da crítica

de Marx à sociedade burguesa, ela sempre pareceu, mesmo aos olhos dos marxistas que foram

capazes de compreendê-la, demasiado utópica e impraticável. Para conceber uma superação

prática das atividades especializadas, seria necessário pôr em questão o conjunto das relações

sociais e seus fundamentos, ou seja, a forma abstrata de produção da riqueza, incluindo as

atividades políticas e teóricas especializadas. Seria necessário, enfim, ir além da questão

política da “tomada do poder” e do seu programa paralelo de reivindicações econômicas

“imanentes”, colocando o problema da emancipação social. Nos anos 60, poucos estavam

dispostos a reconhecer a viabilidade desse programa. Alguns, como Sartre, continuavam

falando em termos de uma sociedade da escassez, o que só lhes permitia pensar os problemas

básicos da sobrevivência. Nessa mesma época, Marcuse falou em uma cultura da recusa que

devia manter aberta a possibilidade do “negativo” em uma sociedade repressiva que fechava

todas as possibilidades da política e da comunicação. Em termos semelhantes, Lefebvre fez

referência à “espontaneidade selvagem” (1969c: 92) que se desenvolvia nas margens do

debate “cultural”, entre os pequenos grupos. Mas, ele não deixava de assinalar o isolamento

dessas teorias e a sua falta de eficácia prática. Em Posições: contra os tecnocratas, livro

publicado em 1967, no qual Lefebvre contrapunha a sua perspectiva do possível às tendências

estruturalistas da época, ele critica os situacionistas por não levarem em conta as necessidades

“estratégicas” da elabora cão da nova práxis. Para Lefebvre, o que estava na ordem do dia era

um “programa em longo prazo de investimento da técnica na vida cotidiana”, o que só seria

atingível através de um “urbanismo revolucionário que mobilize os recursos da arte, do

conhecimento, da técnica e da imaginação” (1969c: 37). Em seguida, crítica a “utopia de

esquerda” que pretende realizar um salto imediato do cotidiano para a festa. Antes, argumenta

Lefebvre, é preciso devolver à utopia o seu realismo, desenvolvendo uma “estratégia do

possível” (1969c: 48). No final do livro, Lefebvre reconhece os méritos da proposta

situacionista, afirmando que eles foram os primeiros a reconhecer a importância da “crítica da

vida cotidiana” e praticamente os únicos que preservaram o aspecto mais essencial do

programa defendido no período histórico anterior pelo surrealismo: a necessidade de “mudar a

vida”. Fala ainda do desenvolvimento da teoria da alienação realizado pela I.S, como crítica

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154

das separações, do “trabalho alienado” e da passividade do espetáculo. No entanto, recrimina

os situacionistas por não terem desenvolvido nenhuma teoria da transição:

“Ora, eles não propõe uma utopia concreta, mas sim uma utopia abstrata. Acreditam de

fato que um belo dia, ou uma bela noite decisiva, as pessoas irão se olhar de frente e dizer:

„Basta! Chega de trabalho e de tédio! Acabemos com isso! e que eles entrarão para a festa

imortal, na criação de situações? Se isso aconteceu uma vez, a 18 de março de 1871, ao

alvorecer, essa conjuntura não se reproduzirá mais” (169: 1969c).

Para Lefebvre, portanto, não havia uma solução imediata para o problema da práxis e

muito menos uma “teoria vivida” diretamente, como sugeriu Debord em A sociedade do

espetáculo. Ao longo dos últimos anos, sua teoria do “homem total” ganhara uma elaboração

mais sofisticada e a crítica da alienação, ou seja, o projeto de voltar contra o “mundo

invertido” (Marx) as realizações desse mesmo mundo, ganhava uma formulação teórica

acabada, mas não havia nenhum “sujeito” capaz de realizar tal programa. No século XIX,

Marx havia identificado, sem mediações, o desenvolvimento da classe operária com a crítica

das relações capitalistas. A teoria revolucionária era apenas uma forma de “expressão” das

lutas de classes travadas no interior da sociedade burguesa. Para Lefebvre, no contexto do

capitalismo moderno, a situações se apresenta de outra maneira. Em primeiro lugar, havia se

desenvolvido, especialmente nas décadas de crescimento econômico (anos 50-60), uma

variedade de práticas sociais e valores que já não se apresentam como parte da esfera da

produção industrial.115

Além disso, o século XX testemunhou a consolidação do cotidiano. Ao

contrário da época de Marx, o proletariado moderno estaria imerso na cotidianidade (1967:

172) e vivendo no meio de numerosos “signos do consumo” (1991: 101). Seu papel não se

resume mais ao da classe produtora. Nessas condições, também marcadas pela presença do

Estado na organização da vida social e dos padrões de informação que circulam por toda a

sociedade, novos hábitos são produzidos e o próprio contorno da classe operária se dissolve.

Assim, o proletariado deixa de ser uma “negatividade imediata” (1967: 252). Lefebvre

caracteriza essa situação nos mesmos termos de Marcuse, isto é, como uma integração do

proletariado. Por isso, ele vislumbra um papel importante a ser desempenhado pelos grupos

marginais que captam os sinais e as tendências que o proletariado não é capaz de perceber.116

No entanto, Lefebvre assinala a dimensão contraditória desse processo: a integração da massa

115 Lefebvre identifica essas atividades, cujo sentido se afasta da lógica da produção, com uma “sociedade urbana” em

formação (Lefebvre, 1999b).

116 Vale notar que a tese situacionista do “novo proletariado” se assemelha bastante à teoria “hegeliana” de Lukács

desenvolvida em História e consciência de classe e recusada por Lefebvre como uma “metafísica do proletariado”.

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155

de trabalhadores da produção industrial, que se dá pela via do consumo de mercadorias, tem

como contrapartida a “proletarização” de outros segmentos da sociedade. É justamente no

interior desses novos segmentos, que incluem os estudantes oriundos das camadas médias,

que surgem as maiores dificuldades de integração. Outra contradição deriva do fato da

sociedade estar em condições técnicas e materiais de superar a obrigação permanente de

produzir, o que faz com que ela seja obrigada a prolongar artificialmente a condição proletária

e seus valores, ao mesmo tempo em que fornece um número cada vez maior de meios de

aproveitamento ilusório do tempo não-produtivo. Essa caracterização da sociedade capitalista

foi formulada por Vaneigem em vários de seus textos, inspirados em Nietzsche, que

descreviam o espetáculo como um sucedâneo cada vez menos operacional do “pensamento

sagrado”.

Em meados dos anos 60, era possível observar novas formas de ação e contestação

produzidas por esse conjunto de contradições e por uma pluralidade de sujeitos. Lefebvre

acompanhou de perto alguns deles, como o movimento Provo em Amsterdã. O movimento

tinha como objetivo “manter a vida urbana intacta, impedindo a cidade de ser eviscerada por

auto-estradas e de ser aberta para o tráfego de automóveis” (Lefebvre, 1983). Um dos

inspiradores da atividade dos Provos era o ex-situacionista Constant, expulso da I.S. Por volta

de 1965, quando o movimento chegou ao seu auge, Lefebvre viajou com freqüência para a

Holanda junto com Constant, acompanhando de perto o que pode ser considerado o

nascimento da “contracultura” protagonizada pela juventude. Outro acontecimento importante

ocorreu em 1966, em Estrasburgo, quando alguns ex-alunos de Lefebvre (que nessa época já

havia se transferido para a Universidade de Nanterre) foram responsáveis por um escândalo

no meio universitário. Tendo sito eleitos para o diretório dos estudantes com uma proposta

“pró-situacionista” de abolição do mesmo, o grupo de “anti-estudantes” utilizou todos os

fundos da organização estudantil para viabilizar a publicação, em edição de luxo, de um

panfleto da I.S. Mustapha Khayati foi quem redigiu o texto, que foi revisado por Debord. Em

seguida, os situacionistas divulgaram um comunicado que esclarecia sua participação nos

acontecimentos.117

Mais do que um pequeno escândalo local, o evento foi significativo porque

expôs as contradições que já se faziam presentes entre os estudantes. O panfleto redigido por

Khayati chamava-se “A miséria do meio estudantil” e logo se tornou o mais difundido texto

117 “Nossos objetivos e métodos no escândalo de Estrasburgo”, publicado no número 11 da revista Internationale

situationniste.

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156

situacionista.118

Além da habitual caracterização da degradação cultural, esse texto

apresentava um quadro da crise do sistema universitário, seus reflexos na vida estudantil e

como, a partir dessa crise, os estudantes passavam a integrar as formas de contestação do

modo de vida dominante.

“A miséria do meio estudantil” parte de uma caracterização dos estudantes como aqueles

que “participam positivamente da realidade dominante” (I.S, 2002: 30), com uma posição

provisória por eles vivenciada enquanto são preparados para “desempenhar um papel” na

sociedade espetacular. O estudante converte a sua precariedade material em um pseudo-estilo

boêmio e se apresenta como o principal consumidor dos produtos da cultura industrializada. O

modo de vida do estudante se alimenta dos ambientes de permissividade moral e da

mercantilização, ainda que seu destino inevitável, a despeito do consumo cultural, seja

engrossar as fileiras dos “pequenos funcionários”. Muitos desses estudantes desprezam o

trabalho, mas aceitam sem reservas o mundo das mercadorias. Seu modo de vida logo passa a

alimentar os nichos de mercado produzidos para “recuperar” a revolta através do consumo

“contracultural”. Os Provos de Amsterdã, por sua vez, são caracterizados pela I.S. como

adeptos do “reformismo da vida cotidiana”, recebendo as pequenas melhorias em troca da

aceitação da totalidade.

No que tange ao ensino universitário, ocorria nos anos 60 um intenso debate a respeito da

necessidade de sua “modernização”. O ensino tornava-se mecânico e especializado, voltado

diretamente para as demandas da indústria e do mercado. Para Lefebvre, este foi o período em

que a universidade abandonou um “humanismo obsoleto” para se converter num lugar de

formação de “executivos de baixo nível” (1975: 116). O panfleto da I.S. reproduzia a mesma

opinião: a universidade tornou-se uma “organização institucional da ignorância”, enquanto “a

própria „alta cultura‟ se dissolve ao ritmo da produção em série dos professores” (2002: 34-5).

A crise do ensino universitário “traduz simplesmente as dificuldades de um ajuste tardio desse

setor especial da produção a uma transformação global do aparelho produtivo” (2002: 35). Os

alicerces da cultura liberal-burguesa desaparecem, mas, ainda assim, “professores nostálgicos

opõem seus arcaísmos à tecnocratização da universidade e continuam imperturbáveis a recitar

fragmentos de uma cultura dita geral para futuros especialistas que dela não saberão o que

fazer” (2002: 36). O sistema universitário era apena um dos diversos “sistemas” que

começavam a apresentar suas fraquezas. Diante desse quadro, os situacionistas concluem que

os papeis sociais, ou seja, os comportamentos identificados com as funções no interior do

118 Na entrevista a Kristen Ross (1983), Lefebvre considerou o texto “muito bom”, ainda que seu “metafilosofismo” figure

entre os inúmeros alvos polêmicos da I.S.

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espetáculo começam a se decompor. No caso dos estudantes, a I.S afirma que a rebelião

contra a sociedade pressupõe, em primeiro lugar, que eles se voltem contra sua própria

condição, ou seja, contra os estudos universitários. As reivindicações positivas começam a

perder sua legitimação ideológica porque ninguém encontra sentido nas suas atividades. Por

toda parte, Debord vê os “novos sinais de negação” que se anunciam (SdE, 115). Uma

passagem da Fenomenologia do Espírito de Hegel é empregada pelos situacionistas para

fornecer um quadro geral da sua época de aparente normalidade:

“...o espírito que se forma lentamente, tranquilamente, em direção à sua nova figura, vai

desmanchando tijolo por tijolo o edifício de seu mundo anterior. Seu abalo se revela

apenas por sintomas isolados; a frivolidade e o tédio que invadem o que ainda subsiste, o

pressentimento vago de um desconhecido são os sinais precursores de algo diverso que se

avizinha” (Hegel, 2002: 31).

De fato, o caso dos estudantes de Estrasburgo não foi um evento isolado ou produzido

artificialmente por um voluntarismo “esquerdista”. O descontentamento com o sistema de

ensino começou a se disseminar. Em seu curso de sociologia, em Nanterre, Lefebvre dava voz

aos estudantes que organizavam os protestos. Seus cursos foram os primeiros a abordar

criticamente as correntes estruturalistas que invadiam as ciências sociais e a falar, juntamente

com os temas da alienação e da vida cotidiana, dos problemas da sexualidade e da

feminilidade. Na cadeira de sociologia, teve como assistente Jean Baudrillard e René Lourau.

O primeiro iniciava suas pesquisas sobre a sociedade de consumo, enquanto Lourau

desenvolvia dinâmicas de grupo voltadas para a construção de meios de comunicação

diferenciados. O método de “intervenção em situação” de Lourau, que recusava a separação

entre a atividade de pesquisa, a reflexão teórica e a vida cotidiana, colocava em cena o

problema das instituições e a “implicação” do pesquisador no seu objeto de estudo. Essas

experiências já faziam parte do clima de agitação política na universidade. Tal como o

panfleto situacionista de 1966, voltavam-se contra a tradição da universidade francesa e, ao

mesmo tempo, recusavam sua “modernização” tecnocrática e mercantil. Outras formas de

protesto começaram a ser empregadas, como a interrupção das aulas e o insulto aos

professores. Uma síntese desse sentimento difuso de insatisfação que tomava conta da

universidade foi formulada pelos situacionistas, quando afirmaram que “o sistema de ensino é

o ensino do sistema” (I.S., 2002: 31).119

119 A influência dos situacionistas cresceu consideravelmente na véspera dos “eventos” de 1968. O mesmo não ocorreu com

publicações “concorrentes” como a Arguments, dissolvida em 1962, e Socialismo ou Barbárie, que encerrou sua publicação

em 1965, depois de uma cisão entre os críticos do marxismo e os adeptos mais “ortodoxos” do conselhismo.

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158

Foi precisamente em Nanterre que eclodiu o movimento de 1968. Para Lefebvre, esse foi o

ponto culminante de um longo processo iniciado por volta de 1957-8, com a crise do

movimento comunista e a conformação de um pensamento de esquerda alternativo (1975:

107). Em sua avaliação, os motivos do movimento eram a falta de perspectivas para os

estudantes, reduzidos à condição de “material humano” para o mercado de trabalho. Tudo

começou quando protestos contra a punição de estudantes “esquerdistas” desencadearam uma

violenta repressão policial, fazendo com que a revolta se estendesse para outras universidades.

A revolta, que saia da órbita dos discursos políticos institucionalizados, começou a ganhar

uma grande proporção, a ponto de ser denunciada pelo PCF como uma “provocação”

esquerdista. Segundo Garaudy, que era um destacado dirigente do partido, a atuação dos

comunistas caracterizou-se por “não sublinhar devidamente o caráter da repressão

governamental e policial”, preferindo denunciar os estudantes radicais (1970: 17). O panfleto

situacionista sobre a miséria do meio estudantil foi um dos mais difundidos em 1968 e nele já

se encontram as razões da hostilidade dos comunistas para com o movimento estudantil: “a

denúncia teórica e prática do stalinismo sob todas as suas formas deve ser a obviedade de base

de todas as futuras organizações revolucionárias” (I.S., 2002: 52).

Na seqüência dos acontecimentos, a revolta estudantil desembocou em uma greve geral de

enormes proporções e em uma grave crise institucional. O exemplo das universidades

ocupadas foi seguido nas fábricas. Em seguida, a rua foi ocupada e apareceram as barricadas.

Parte significativa da população deu apoio aos trabalhadores e estudantes rebelados. Por um

curto período, o aparelho de Estado perdeu totalmente o controle sobre a situação. Para

Lefebvre, produziu-se “virtualmente”, uma crise revolucionária (1968: 116). Ainda segundo

Lefebvre, a política tradicional mostrou seus limites em 1968. Os representantes da política

institucional não foram somente incapazes de prever os acontecimentos (e o papel da

espontaneidade revolucionária), mas estavam em aberta contradições com as formas de

“democracia instituinte”, criadas a partir das bases do movimento e mobilizadas contra o

Estado e os aparatos do poder (Lefebvre, 1968: 120). Tanto nas universidades quanto nas

fábricas emergiu a autogestão e as formas de participação direta, sem delegação de poderes. O

PCF, através de sua influência na organização sindical, tentou inutilmente evitar o contato

direto do movimento operário com as idéias “esquerdistas” dos estudantes e intelectuais. A

estratégia das direções burocráticas era eliminar as forças vivas da revolta, alimentando as

expectativas em relações a eventuais “ganhos quantitativos”. Ela era alimentada pelo peso da

cotidianidade, por seus padrões de felicidade no consumo e no seu realismo político. Para

Lefebvre, o movimento de 1968 mostrou como o problema da autogestão não pode se limitar

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159

à esfera da produção: ele parte da produção para alcançar o conjunto da sociedade, eliminando

as dissociações no interior da vida cotidiana. Assim, a autogestão generalizada supera os

diversos âmbitos de atuações instituídos e alimenta o desejo de modificação da vida. A

autogestão promove o encontro da participação “política” com a revolução cultural

generalizada.

Na avaliação de Lefebvre, os acontecimentos de 1968 serviram ainda para colocar outros

problemas, todos eles estranhos à política tradicional. Surgiram clivagens distintas da

perspectiva de classe centrada na produção (os jovens, a questão feminina e a sexualidade, os

grupos marginalizados, ou seja, os guetos, periferias e subúrbios, etc.), além das contradições

produzidas pela urbanização e o problema da ausência de criatividade, cujo produto direto era

o tédio moderno (1968: 152). Esse conjunto de problemas indicava que a contestação, longe

de se limitar aos aspectos políticos e econômicos, entrava no terreno da vida cotidiana, como

uma “revolução total”. No entanto, essa reinvenção da contestação social teve implicações

econômicas e políticas. No nível econômico, a fabricação de “produtos” (no sentido de

objetos da produção industrial) deixou de ser a referência principal, dando lugar à riqueza do

emprego do tempo e às “novas necessidades” criadas pela abundância material e pelo

acúmulo do desenvolvimento técnico. Além disso, foi recolocado o problema do

enfraquecimento do Estado. Por meio da autogestão, descobriu-se o nível “social”, até então

obstruído. A partir de então, foi possível reformular alguns dos problemas fundamentais do

marxismo: a “base econômica” deixava de ser um elemento determinante na medida em que a

condição da escassez era superada pelo desenvolvimento das forças produtivas sociais. A

esfera política, situada acima da sociedade, perdia sua função conforme era ampliada a

capacidade da sociedade se apropriar dos produtos que ela mesma cria. A atividade do

pensamento separado via sua importância reduzida enquanto os fins, racionalmente

estabelecidos, podiam se concretizar no controle consciente dos produtos da sociedade. Por

fim, a capacidade criativa dos indivíduos deixava de ser uma mera representação do real,

tornando-se obra presente imediatamente em todos os momentos da vida.

Portanto, 1968 revelou a possibilidade de um movimento de negação total – e, ao mesmo

tempo, a afirmação de uma prática total a ser construída na vida cotidiana. Como disse

Debord, “deixemos de lado o ridículo qualificativo de „estudantil e intelectual‟ aplicado a um

movimento histórico que foi tão indubitavelmente proletário e revolucionário” (2001: 27).

Mas, o proletário, na definição “ampliada” de Debord, não se resume aos operários

industriais. Ele inclui o conjunto das pessoas que perderam o controle sobre a sua própria

vida. O problema vislumbrado por Debord não é devolver à classe operária o excedente

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160

produtivo expropriado, mas devolver-lhe a capacidade de criar a sua própria vida cotidiana.

Por isso, Debord definiu o espetáculo como “o movimento autônomo do não vivido” (SdE, 2).

Ele constata que a maior parte do tempo vivido na sociedade moderna já se situa fora da

produção, mas a autonomização das relações econômicas faz com que “a mercadoria domine

tudo o que é vivido (SdE, 37), convertendo o que era vivido diretamente em uma

representação, isto é, “a representação ilusória do não-vivido” (SdE, 185). Em Lefebvre

encontramos afirmações muito semelhantes, embora ele não conceba o proletariado da mesma

maneira que Debord. Para Lefebvre, os elementos econômicos (o mercado, o dinheiro, o

capital, etc.) também assumem um sentido “auto-regulador” e passam a organizar as relações

sociais e cotidianas em função de seu próprio movimento (1967: 97). Na Metafilosofia,

podemos ler, por exemplo, que a vida se reduziu à sua simulação, isto é, uma forma de

“sobrevivência” (1967: 302). Porém, Lefebvre não concebe, como fez Debord e a I.S., uma

revolta imediata do proletariado contra os fetiches econômicos que dominam a vida. Na

realidade, sua leitura das transformações do capitalismo moderno admite uma concepção mais

ampla e “relativizada” do proletariado, mas ele não chega ao ponto de afirmar a existência de

uma “proletarização do mundo”, como faz Debord (SdE, 26). Lefebvre se mantém fiel à idéia

de que o proletariado tornou-se uma classe hesitante a partir do momento em que se

consolidou a cotidianidade. Ele contrapõe às idéias situacionistas uma estratégia derivada da

sua teoria dos momentos, argumentando que todas as atividades separadas tendem a se fechar

num sistema autônomo. Entretanto, tais sistemas não podem deixar de produzir o que

Lefebvre chama de resíduos, ou seja, os elementos irredutíveis ao quadro fechado do sistema,

a exemplo do “movimento” que escapa à estrutura, o “desviante” que escapa à organização, o

“individual” que escapa à burocracia ou o lúdico e o cotidiano, que escapam aos domínios

separados da filosofia. A estratégia proposta por Lefebvre consiste no agrupamento desses

resíduos, mobilizados contra os sistemas (1967: 69).

O conjunto dos elementos irredutíveis (ou residuais) mobilizados como base de uma

intervenção voltada para os diferentes aspectos da vida social incluía o cotidiano, o singular, a

criatividade, o imaginário, o desejo, entre muitos outros. O fato desse conjunto de elementos

ter pautado os debates de 1968, a exemplo das frases pichadas nos muros de Paris (“seja

realista, exija o impossível”), guardavam uma íntima relação a teoria dos momentos e com a

dialética do possível-impossível pensadas como parte integrante de uma intervenção voltada

para a mudança qualitativa do modo de vida. Mas, ao contrário dos situacionistas, que logo

após o maio de 1968, saudaram o movimento como o “início de uma nova época” (I.S, 1997:

571), Lefebvre não apostou na fragilidade do espetáculo. Para ele, os eventos de 1968

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representaram a confirmações de muitas de suas idéias, especialmente a de que é na vida

cotidiana e não nos domínios separados da política, da economia e da teoria que se dá a

revolução social. Em todo caso, 1968 foi apenas um momento de afirmação do possível.

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