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No caminho para Muito Longe Gil Cleber D. Carvalho Romance

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No caminho para

Muito Longe Gil Cleber D. Carvalho

Romance

No caminho para Muito Longe

NO CAMINHO PARA MUITO LONGE é a história de um amor proibido, velho tema que eu retomo para compor um novo romance. Sobre isso, porém, prefiro calar-me, deixando que o leitor faça seu julgamento.

Direi, contudo, que é também a história da jovem Juliana, que luta por conquistar o amor do esquivo peão Mariano; de Marli, menina sapeca que aos onze anos começa a descobrir o sexo; do preto Agenor, peão de boiadeiro, cujo sonho é deitar-se com uma mulher branca e virgem; de nh’Argemira, feiticeira que com seus sortilégios investiga o desti-no dos homens; do jagunço e assassino Graciano com seu a-mor platônico e purificador por Ninice, a filha do perverso Co-ronel Pantaleão Valadares, seu patrão; e também da octogenária nhá Didinha, que guarda consigo um antigo segredo: a lembrança sutil do rosto bonito de um moço de sua juventude, e o retra-to misterioso de uma jovem há muitos anos morta, a quem ela se refere como a filha dos tempos (sua filha?).

NO CAMINHO PARA MUITO LONGE é, essencialmente, a his-tória de intensas paixões vividas no agreste do sertão brasileiro.

O autor

Este é o conteúdoda orelha do livro.

G i l C l e b e r

No caminho para Muito Longe

Romance

Editora Jornal do Interior Ltda.

2008

;

Copyright © 2008, Gil Cleber Duarte Carvalho

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução desta obra,no todo ou em parte, por qualquer meio, seja eletrônico, de fotocó-pia, gravação etc., sem a permissão do autor. Obra registrada no Escritório de Direitos Autorais – FundaçãoBiblioteca Nacional: Registro no 338.539, Livro 622, Folha 199.

Literatura brasileira Romance

Projeto e ilustração da capa: Gil Cleber Duarte Carvalho

Editora Jornal do Interior Ltda. Rua Prof. Marcelo de Alcântara Pinto, 173 Parque J.K. – Vassouras – 27700-000 – RJ (24) 2471-7645

N o t a i m p o r t a n t e : Sendo o autor radicalmente contra as mudanças introduzidas peloatual acordo ortográfico, mantém o texto de suas obras segundo oFormulário Ortográfico de 12 de agosto de 1943 com as alteraçõesaprovadas pela lei no 5.765 de 18 de dezembro de 1971.

Contato com o autor: [email protected]

Aos meus pais

A Isabel

No caminho para Muito Longe

– 1 –

Que de sonho e de realidade é feito o viver, sabedoria antiga, persis-te o homem à sombra do verbo: pois do concreto existir às duras penas, o sofrimento sem mezinha é o que no mais das vezes angaria em sua peregri-nação, neste mundo é à mercê das humanas fraquezas que se está, tanto havendo tempo para a alegria quanto para a lágrima, inda que do pensar geral seja – e nisso vai fundo entendimento – que mais tempo há para esta que para aqueloutra: o confinamento da vida é entre o abrir e o fechar dos olhos, disso não se escapa, e se o riso acompanha a luz, é a lágrima que encalça a escuridão. No que o humano ser destoa do padecimento buscan-do o sonhar luminoso, as esperanças, inda que tão só o sonhar lhe reste e nenhuma realidade resulte senão o despertar para as arestas cotidianas de existir.

É com sonhares que principia esta história, antanhos dias, que da-quela manhã na fazenda Macambira não ficou registro, por que haveria de ficar?, mas que, decerto ensolarada, mais branca tornava a pele da menina à janela, no tarde acordar da infância, inda de camisolinha com babado de renda e florinhas bordadas, os cabelos um ninho, um só desalinho, o pente esquecido na mãozinha gorda, enquanto espia para fora.

– Tive um sonho engraçado. Ninice. Menina. Doze anos por completar. Tão linda! – A menina andou sonhando o quê? A preta Apolinária, atarefada na arrumação do quarto, dobra que

dobra cobertas e lençóis, estica a colcha na cama, pela janela despeja a água do jarro e, inda que nem resposta de imediato obtivesse, sai com seu andar sacudido, de regresso provém da cozinha trazendo água limpa e fresca – mas a menina ainda está à janela, parada, espiando…

– Vem cá – e a menina obedece: na bacia de esmalte a preta Apoli-nária derrama água e Ninice se lava, enche a boca, bochecha, cospe. Duma alvura a toalha com que seca as mãos, o rosto. – Dá o pente – e fazendo-a virar-se de costas penteia-lhe os cabelos embaraçados, abundância de fios longos, noturno negrume, rebrilho. No que se segue, o apanhado de uma

mecha que ao resto se sobrepõe, e prende com a fita de cetim azul, laçada firme que no transcurso do dia não se desmanche.

– Um moço – prolata a menina. Costumava ter seus abismamentos? Não era de seu natural, no comum saía da cama, aprontava-se ligeiro, a preta Apolinária para nada se movia a não ser o de função, arrumar, varrer, trazer água fresca.

Naquele dia, porém, diferindo. “Um moço”. – Mas um tico feito vancê já com pensamento pro mode algum

moço? – a preta alarmava-se, e baixando a voz: – Que nhô coroné disso não saiba, manda lhe dar de chinela – e no desabotoar a camisolinha, res-vala a fina peça pelos ombros, cai ao chão, a pele nua e branca se desvela, tenra doçura, o rosado das mamilas que preludiavam a moça do não tardo amanhã.

A menina toca esses rijos sinais, cariciosa, no curvar do pescoço pa-ra contemplar-se – sua inocência.

– Não, Póli – esclarece à negra, de costume por esse afável trata-mento se lhe dirigia –, é o moço que vi no sonho – e ajuntando explicação de maior minudência: – Vinha a cavalo, mas o chapéu não deixava eu ver o rosto dele, sabe como?

– Apois, se a menina disser… Mas o belo e sagrado deve resguardar-se de todo, no seu tempo dar-

se à vista tão só daquele que for escolhido, o que de direito puder sem mancha tomá-lo para si, conforme mando divino, assim está nas Escritu-ras: e um vestido de seda azul-claro se lhe joga por cima, a tudo vela, os bracinhos levantados brotam das mangas fofas, o cinto atrás se prende com um laço firme, fazendo cinturinha.

– Assim: ele vinha a cavalo, mas ainda não muito perto, e o chapéu estava tombado para diante.

– E foi só esse o sonho? – preta Apolinária botava sentido num so-nho de tanta simpleza? Para fazer agrado à sinhazinha ia reperguntando, suas atenções, sinhazinha era a alegria da casa.

De seguida entrega-lhe os sapatinhos de verniz, as meias, embone-crava-se Ninice menina – do que se calcula que fosse domingo? Fosse: que uma vez de dois em dois meses – ou calhava menos delonga, mês a mês, nem sempre – procedia missa na capela da fazenda, vinha de Serradinho o pároco, padre Porfírio por nome, a gente do lugar zelosa de suas devoções apresentava-se. A garota Ninice devia aparecer formosa, exigência do pai, Coronel Pantaleão (senhor de muitos haveres e duma só filha, que outros rebentos não gerou, a não ser um, que vingou mas despois morreu). Não que por enquanto cogitasse mais, queria poder orgulhar-se dela, bonita sem igual!, de uma por esse molde não se tinha notícia milhas em derredor,

inda que melhor raciocinando coubesse solene indagação: outra haveria tão linda?

Já a preta Apolinária suspendia a guilhotina da vidraça, e um cheiro de madressilva, por acompanhamento o canto de uns quaisquer pássaros, entrava com a brisa. O sol fazia desenho de luz no soalho, grãos de poeira rebrilhenxameavam nesse jorro de claridade, dos fundos da casa um retar-do canto de galo provindo, redesenhando as horas: galo não devia cantar de madrugada?

Mas Ninice não calçara os sapatinhos de verniz, nem as meias puse-ra ainda: de sua distração sentara-se na borda da cama, cabisbaixa cismava – o que via no quadrado de luz do assoalho? Seu futuro, esconsamente? O mundo sem governo do sonho? Havia um cavaleiro nele que vinha vindo devagar: o tropel tão perto, mas não padecia medo.

– Não, Póli – ela por fim despertava, não de todo, um tanto per-manecia na concha, feito caracol –, o sonho não era só assim: é que o mo-ço vinha a cavalo, e o rosto dele eu não via, porém ele parava, num lugar de muito mato.

– E que lugar era esse, menina Ninice? – Eu não sei… tinha árvores de um lado e outro do caminho… é

que não havia bem um caminho, só um trilho, sabe?, ele vinha por um trilho, e então parava como se alguma coisa no meio do mato lhe chamasse a atenção, e ficava olhando, muito tempo…

A preta Apolinária agora abria a porta do guarda-roupa, recolhia peças do chão, que menina Ninice nem s’importava, largava tudo caído por ali, seus brinquedos, seus mimos: uma filha de nhô coroné vai cuidar de tais miudezas?

– E o que é que ele ficava olhando, sinhazinha? – preta Apolinária queria saber, enquanto isso ia dobrando peças de roupa e ajeitando nas gavetas.

– Não vi direito, Poli… estava no meio do mato… umas moitas… ele ficou ali, olhando…

– Mas sinhazinha! – e a preta se virava para a menina, avexava-se, de joelhos recolhia das mãos de Ninice as meias, os sapatos, afligia-se pois Coronel, de rigores, aperreava-se com tardança. – Menina Ninice quer ver sinhô zangado?

A porta do quarto se entreabriu, apontou sinhá Felícia com pentea-do alto, vestido severo de mangas compridas e golas altas – dama de muita prosápia, os bons costumes, uma pele sem viço, sem cor, no desbotar da idade. Envelhecia antes do tempo sinhá, guardava suas amarguras em secre-to cofre dentro do peito, na filha menina a derradeira alegria. Pressupunha carinhos na voz:

– Vamos, Ninice.

E já calçada com meias brancas e sapatinhos de verniz ela se enca-minha para a mãe, que lhe passa um braço pelos ombros, e juntas descem para a sala. Ali, Coronel Pantaleão já espera, já vigia o relógio de bolso pisando alto, de cá para lá, com impaciência, já põe o chapéu e abre a por-ta que dá para a varanda.

Fora, um povo miúdo abicava – o povo sertanejo, das casinhas ex-traviadas na distância dos chapadões, das encostas, do mato fechado: bro-tavam desses recantos, para sua devoção vinham, faltos de leitura não sabi-am o catecismo mas tinham fé, o invisível possuía poderes, Deus no céu e o mais que se desconhecia, tremendas forças. Uns outros, nem tanto de esconsos habitares, provinham de Serradinho, arruamento reles a duas ou três horas de distância medidas em passo de alimária.

De ressabiado respeito guardavam-se do portão pra fora, pelo ca-minho, inté que nhô coroné desse licença de entrar. Quando ele surgia na varanda havia movimento, os homens se descobriam, as donas encolhiam-se um pouco por detrás, despois punham-se a andar: tomavam então pelo atalho que conduzia à capela, e, no terreiro ensaibrado, compunham rala, dissolvida multidão.

O pároco já aguardava – chegando cedo, aportara primeiro na sala de jantar da fazenda: por ordem de Coronel servia-se farta dejuação, pro-vido de voz grossa brincava com o sacerdote, “que de estômago vazio a prece não ganha força mode subir inté o céu, seu padre”, Coronel Pantale-ão tinha suas severidades mas apreciava uma chalaça, o pároco acostumado com elas sorria, servindo-se de uma rosquinha de leite, um bolinho aman-teigado, uma fatia de broa… Porém despois, sem tardança, ocupava sua posição junto ao altar à espera dos fiéis.

Coronel, descobrindo-se, sinhá Felícia pelo braço e na frente Nini-ce, que com sua formosura para todos um encanto, eram os primeiros a adentrar a capela: adentravam, ocupavam o primeiro banco, dos demais por maior intervalo destacando-se. Em seguida o resto, a gente miúda, nem tantos assim que todos cabiam debaixo do teto forrado de tábuas bem lavradas, fora das paredes de pedra ninguém, uns poucos não lhes restando assento permaneciam de pé, atentos à palavra do homem de Deus que lá na frente depunha o turíbulo, um fumo branco subindo feito a alma de algum anjinho morto.

E a homilia se arrastava por quase hora e meia – puxados pelo sa-cerdote todos entoavam os cânticos, no chão retumbando o tacão pesado de Coronel, que marcava o compasso levantando tão só o calcanhar e arri-ando-o com força a intervalos regulares. Seguia-se a prédica, o sermão prolongando-se nas frases, o padre pregava sobre os enganos do mundo, que muitos são e de todas as formas se apresentam ao homem para arran-cá-lo do bom proceder, “o caminho do Senhor é estreito, e sua vontade

nosso entendimento não alcança” e ensinava a obediência. O povo simples não colhia bem o sentido de tanta enfiada de palavras, perdia-se, mas mesmo sem de todo compreender a pregação baixava a cabeça numa quieta reverência, pois tão bonitos dizeres no seu pensar tinham o sinal do céu, “um homem santo” cochichavam as donas mais velhas, na cabeça panos amarrados, nem lenços, só panos de muito uso, os vestidos que desciam inté pra baixo das canelas, os pés descalços, gretados, sujos de terra.

Pouco antes da prece final, Coronel Pantaleão fazia um sinal ao pa-dre, ninguém notava, mas o sacerdote se detinha, corria as vistas pelo povo:

– Antes de finalizar, prezados irmãos, a querida filhinha de Coronel Pantaleão, a menina Berenice que aqui se apresenta, irá dizer uma poesia em honra da Virgem Santa.

O povo matuto se remexia, espiavam curiosos, sentiam-se tocados, uma que outra criança da mesma idade dela, que por ali se perdiam, per-plexas em face de tanta lindeza. E a princesinha da Macambira, de pé lá na frente, à vista de todos, declamava: durante a semana havia decorado aque-la poesia, longamente pronunciava, de memória, o povo matuto assombra-do duma cabeça tão boa, Coronel Pantaleão orgulhoso, sinhá Felícia com os olhos marejados.

Terminado o ofício todos partiam, sumiam-se na vastidão da terra – pr’adonde se botava toda aquela gente? Mas padre Porfírio não tinha licença de ir-se – não senhor, sinhô e sinhá faziam questão de privar de sua santa presença para o almoço, e no chalacear do costume Coronel lançava que “despois do esforço de fazer a prece alcançar o céu, padre santo, ta-manha lonjura, não vê?, carece de fornir o estômago a contento”, e o padre com seu sorriso cheio de simpleza aceitava satisfeito.

Deu-se no que tomaram assento, sinhô na cabeceira, e sinhá, mais Ninice, uma de cada lado, padre Porfírio na outra cabeceira, que a preta Apolinária adentrou a sala de jantar com notícia de visita recém-chegada: provindas da Aroeira, fazenda Aroeira, sinhá Deolinda mais a filha já se apeavam da charrete lá fora. Num respiro ansiado, pois levantar-se de pronto resultava dificultoso para Coronel Pantaleão mode o despropósito de seu corpo, levantou-se ele: que entrasse sinhá Deolinda com a filha, não terá vindo também coronel Otávio?, não, que coronel Otávio não acompa-nhava a mulher e a filha, não viera, padre santo não arrepare – e padre Porfírio fazia um gesto, não reparava – mas convinha esperar que as visitas adentrassem, a eles se reunissem mode provar o sal, “Apolinária, mais dois pratos!”. Ao mesmo tempo sinhá Felícia se dirigia à varanda para receber a amiga, muito gosto lhe fazia, e de lá já provinha com as duas: sinhá Deo-linda balofa, sinhá-moça Lúcia Helena no florejar de sua juventude, es-plendor de graça, moça das faces rosadas.

– Sá dona Deolinda se apresenta em hora propícia – exclama coro-nel ainda de pé –, tomem assento, que hoje temos a companhia do padre santo.

– Bons dias, coronel – sinhá Deolinda curva-se –, é com muito gos-to que aceitamos.

– Se adiante, gente – e Coronel Pantaleão inclina um tanto mais pa-ra frente o corpo roliço –, venham tomar assento, em boa hora… – e ex-clama, como se só então percebesse: – Mas a menina Lúcia Helena está muito formosa hoje!

– Agradecida, coronel – responde Lúcia Helena, delicada no dizer, vozinha miúda, mas sem qualquer acanhamento.

– E o esposo, sinhá Deolinda? – Coronel quer saber , sentando-se despois de todos acomodados. – Não apeteceu vir provar do nosso tempe-ro?

– Releve, coronel, não foi má vontade, vossência bem conhece Otá-vio – respondeu a outra –, mas deu-se que teve umas urgências… de últi-ma hora uma viagem, e como já estava acertado que viríamos hoje, viemos sós.

Mas o almoço transcorre festivo, pois coronel profere algumas de suas chalaças, adequando-se, que tudo convinha conforme as presenças: à mesa estava o padre, homem de batina, aquele que mantinha entrevista com Deus Nosso Senhor, e as duas de fora eram pessoas de posição. Padre Porfírio, por sua vez, consultado sobre uma passagem das Escrituras por sinhá Felícia, explana, ilustrada explicação que muito gosto proporciona a todos, e enquanto se servia o café, tendo a preta Apolinária dado ordens aos da cozinha para retirarem os pratos, sinhá Deolinda aproveita para elucidar os motivos de sua chegança: pois que sua filha casava-se, e ali es-tavam para convidar Coronel Pantaleão e família, “convite que não se es-tende a padre Porfírio, não é, padre?”, ora, pois não seria ele mesmo a ce-lebrar? Padre Porfírio sorri com modéstia, pronuncia alocução sobre a importância do matrimônio, que sinhá Deolinda ouve com gosto e a moça Lúcia Helena com uma espetadela de ironia no sorridente olhar (decerto despercebida, a menina era atrevidota mas comportava-se; consigo mesma, lá por dentro, dizia-se “o que entende um padre de casamento, se ele não pode casar-se?”).

– Antão a moça Lúcia Helena se casa – Coronel comenta. – E pra quando será?

– Janeiro, coronel – informa sinhá Deolinda. – Último domingo do mês.

– Ah, anda pelos dias, o quê?… Três, quatro meses? – Quase quatro ainda, coronel – torna sinhá Deolinda.

– É… O noivo, dele eu me alembro, por aqui esteve daquela vez, nas concorrências.

– Não, coronel – intervém Lúcia Helena no seu delicado desdizer –, já não me caso com aquele rapaz. Não me convinha. Caso-me com Augusto Fortes, dos Fortes, o senhor deve saber quem são.

Coronel sabia. E aprovava a escolha da menina, gente bem os For-tes; inda que de posses menos relevantes eram esforçados no lidar, progre-diam, em época antiga já negociara com eles. Coronel Pantaleão por vezes não sabia a polidez, decerto não fizera por mal e logo se apercebeu, sem embaraço, pois providenciou emenda: não teria ficado bem dizer à mesa que os Fortes eram gente de menor cabedal, inda mais sendo a família do noivo. Mode desviar atenção, mostrou interesse:

– E casados, vosmecês vão assistir adonde? – Na Viçosa, coronel – responde sinhá-moça Lúcia Helena –, que

Augusto acaba de adquirir. Uma propriedade muito bonita, o coronel teria gosto em ver – com o que Coronel Pantaleão num movimento amplo de cabeça “inda lá irei, sinhá-moça, apreciar” exclama, “casados lá m’esperem que é promessa”, e o almoço prosseguiu animado.

Da mesa passaram à varanda, onde se acomodaram mode prosear, momento porém em que padre Porfírio se despedia, mais tardança descon-vinha, os compromissos da igreja requeriam sua presença. Coronel aper-tou-lhe a mão, as donas curvaram-se, Ninice tomou-lhe a bênção e ele partiu.

A tarde possuía larguezas, calorosa persistia, prolongamentos. Co-ronel Pantaleão, sentado mais distante das donas, escutava, esperava a dei-xa mode entrar num assunto seu de durável preocupação, e numa hora de não-palestra entre elas limpou a garganta:

– Sinhá Deolinda, não vê?, inté pensei que a senhora mais coronel Otávio andavam arredados de nós por motivo d’alguma zanga…

– Qual o quê, coronel! Mas adonde o senhor busca uma idéia des-sas?

– Bom, se não é… Mas de uma vez que houve um certo desenten-dido… calculei que coronel Otávio e a senhora, inté a menina Lúcia Hele-na, hein, menina?, não se dá o caso, pois não?

– Qual nada, coronel. Já passou, está passado – Lúcia Helena res-ponde com seu melhor sorriso.

Do sucesso, um mero desentendido no dizer de coronel1, consta ter-se passado por época de uns rodeios que na fazenda a ocasiões se davam – fato que ele inté vacilava trazer de volta à luz comentando com sinhá Deo-

1 A narrativa da zanga de Lúcia Helena com o coronel Pantaleão é contada em “Notícia de um combinado entre amigos”, do livro de contos Histórias de Muito Longe.

linda, um suposto agastamento dela e família com sua pessoa, assim se explica: que no último festival de rodeio, já se passara ano sobre isso (me-nos porém de dois), surgiu mode montar um burro famoso de brabo que lá havia um certo peão em quem ninguém depositou confiança, miúdo e preto, pessoa menor, de insignificâncias com quem coronel não simpati-zou. Porém o peão (do nome nem se alembrava) não só montou o famoso burro como também o fez sem qualquer embaraço, nem tombos nem de-sacertos, só uns carinhos no bicho e um cochichar feito o bruto pudesse entender uma gente – lembrava inté feitiço, aventou-se, o negro teria par-tes com o capeta. Restou muito desapontado Coronel Pantaleão, que com o insucesso do negrinho esperava divertir a parentada e citadinas amizades, tendo ainda de suportar umas graçolas ditas a meia-voz, não menos porém de zombaria, e mais desconjurou quando viu sinhá-moça Lúcia Helena passeando ao lado do pretinho de animado proseio com ele, toda atenções, querendo saber como ele procedia no seu modo de domar chucros animais de montaria. Coronel Otávio, por sua vez, não se sentia à vontade com o comportamento da filha, então noiva doutro moço mas nariz empinado e dona de suas intenções, ao que Coronel Pantaleão respondeu que, sendo filha sua, saberia dobrá-la ao seu gosto, “quebrar-lhe a crista” teria dito, produzindo um mal-estar pois além do mais sinhá-moça com sua língua destravada comentou que ele, Coronel Pantaleão, não passava dum grossei-rão de marca e bem fariam indo embora dali. Por aí a suposta arrelia, que porém naquela visita se punha às claras: nenhum ressentimento sobrevivera ao episódio, e ali estavam sinhá Deolinda e a menina Lúcia Helena que vinham convidá-los para o casamento, e com eles tinham almoçado, bem chalaceado e divertido sob a luz e a bênção de padre Porfírio, de tudo testemunha. Sossegado com o esclarecimento Coronel se levantou, todo sorriu-se, desculpou-se, eram horas: “A mania do cochilo, sá dona Deolin-da, despois do almoço é lei, pois de noite padeço duma insônia!…” e ar-rastou-se para dentro, pesado, manquitola – que seu joelho encravado principiara a doer agora pela parte da tarde – se retirou, deixando as donas mais à vontade entre si.

Nhá Deolinda falava dos planos do casamento, descrevia o enxoval da filha; referia, só as donas agora na varanda, o que havia sido aquele rompimento, “essa menina tem me dado umas dores de cabeça” dizia o-lhando a filha com carinho, “tem gênio”, mas a menina Lúcia Helena pro-testava, era direito seu explicar-se, “o que os outros não vão pensar de mim, mamãe?” e respondia: que sim, rompera o noivado com um rapaz presunçoso, “um bobão, sinhá Felícia”, agora casava-se com um homem de verdade. Havia mal nisso? E sinhá Felícia sorria por admiração, e súbito tomada de uns íntimos pensamentos virava o rosto para contemplar a fi-lha, que ao pé passava as páginas de um almanaque. Ela seria feliz? O pen-

samento é terreno cercado de altas muralhas, ninguém alçando o pescoço lá para dentro vasculha, mas o rosto de sinhá Felícia demarcava alguma tristura. No silencioso momento era de perceber-se que alguma coisa ia-se-lhe riscando no meditar – um enviesamento, dobras, asperezas, e os dedos correm suaves pelos cabelos da menina. Mas no seguimento, levanta o rosto, sorri – diz-se feliz com a novidade.

Nhá Deolinda e a filha partem no refrescar do sol. Da varanda quem por demais fica espiando é Ninice: a charrete nem era vista mais na estrada, nem tropel se escutava, Ninice pensando no casamento de Lúcia Helena. Aquilo lhe povoou a cabeça o resto do dia.

Pelo anoitecer tinha um pouco de febre, as bochechas mostravam um rosado desconforme. Preta Apolinária foi quem deu pela coisa, adver-tiu sinhá que de imediato acorreu, “há de ser uma constipação” dizia a dona sem no entanto sossego. Tocou o pescoço da filha com as costas da mão, “meu Deus!”, e ordenou se enfiasse na cama tão logo, que ia prepa-rar-lhe um suadouro.

Agora preta Apolinária veste a menina com sua camisolinha de fla-nela, calça-lhe meias grossas de lã, enfia-lhe o capote. Deitada, cobre-a com cobertores.

– Pra que tudo isso, Póli? Vou sentir calor. – Apois, é pra sentir calor mesmo, sinhazinha. Tem de suar mode a

febre ir-se embora – e preta Apolinária senta-se ao lado da garota, seu riso escavacado recheio dos maternos amores revela a mãe que ela não tinha sido, em Ninice enxergava a filha que seus deuses africanos lhe recusaram: Apolinária casara-se menina nova com um negro forte que inté bem pouco tempo lidara com nhô coroné, morrera o coitado duma picada ofídica. Mas ela mesma, suas entranhas não produziram: urdira artifícios em busca de todo efeito, mezinhices e simpatias, coisas que ora lhe mencionava a gente branca ou antepassadas receitas, reza a santo católico ou ritual em cachoeira mode oferecer agrado às entidades: desencantou-se, estava ani-quilada por dentro, resseca, não daria à luz.

Os olhos de Ninice, do fundo dos cobertores, discerniam o rosto corrugado e meditativo de Apolinária, que a vigiava com singelo amor. Esticou o bracinho pra fora das cobertas, tocou com os dedos o pretume daquela cara:

– Sinhá-moça Lúcia Helena vai se casar, não é, Póli? – Antão! Pois cá não vieram mode convidar pra festança? – Casamento é bonito, Póli? – A coisa mais linda, menina Ninice, e de mais destacado valor

pr’uma moça de família: toda de branco, entrar na igreja polo braço do pai inté perto do altar, adonde antão é entregue ao noivo. Bonito demais da

conta… mas que pergunta! Antão a menina não se alembra? Do casamento da filha de sinh’Antonina, ano passado?…

– Eu lembro, Póli – Ninice responde, e agora é ela quem parece va-guear –, eu lembro… – Remergulhava nos seus sonhares? As faces mais rosadas e quentes, na testa alva porejavam suores, sobre o lábio gotículas apareciam. E então: – Póli, todas as moças se casam?

– Apois, é de costume, e não havera de ser assim? As moças nasce-ram pra casar, lá um dia surge um moço mode o agrado delas, e antão…

– Ele, Póli – ela diz espiando para longe da hora presente –, esse moço da noite passada…

– Que moço, menina Ninice? – preta Apolinária pergunta, esqueci-da.

– O moço do meu sonho, Póli – Ninice diz enquanto descaía para um febril adormecer –, o que vinha a cavalo com o chapéu tombado no rosto… é ele o meu prometido.

Isso se deu na fazenda Macambira em dias passados: desde aquela manhã – em que Ninice acordou diferente por obra dum sonho e que no entardecer uma febre nervosa a prostrou na cama por mais duma semana – as flores haviam murchado há muito, os pássaros tinham se convertido em caveirinhas brancas e despois se desmanchado em cinza; um vento veio vindo, veio vindo, passou, no encalço muitos outros ventos desfolharam as árvores em tantos outonos. Somente a presença de sinhazinha persistiria nos anos, tempos em fora, num diferente existir, inda que de sua pessoa apenas uma que outra gente, muito rara, se lembraria.

Este é o primeiro capítulo.Se você gostou e tiver interesse em

saber como termina a história, peça atra-vés do e-mail

[email protected] para receber um exemplar em sua

casa.