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Marx e o Marxismo 2013: Marx hoje, 130 anos depois Universidade Federal Fluminense – Niterói – RJ – de 30/09/2013 a 04/10/2013 TÍTULO DO TRABALHO As crises na dinâmica histórica do capitalismo: algumas considerações a partir da obra de Karl Marx AUTOR INSTITUIÇÃO (POR EXTENSO) Sigla Vínculo Demian Bezerra de Melo Doutor em História pela UFF e professor substituto do Instituto de História da UFRJ IH-UFRJ Substituto RESUMO (ATÉ 20 LINHAS) Qual a relação entre o fenômeno recorrente das crises capitalistas e a perspectiva do fim deste modo de produção? E como essa questão foi tratada ao longo da obra de Marx? Seria mesmo este o autor de uma “teoria do colapso”? O propósito deste artigo é discutir a evolução das ideias de Marx acerca desta questão, especialmente do que se encontra em sua obra madura, cujo marco é a redação dos Grundrisse, escrito sob o impacto da primeira crise mundial do capitalismo (1857-1858). PALAVRAS-CHAVE (ATÉ TRÊS) Crise, capitalismo, Karl Marx, história ABSTRACT What is the relationship between the recurring phenomenon of capitalist crises and the prospect of the end of this mode of production? And how this issue was addressed throughout the work of Karl Marx? Is he really an author of a “collapse theory”? The purpose of this article is to discuss the evolution of the ideas of Marx on this issue, especially what is in his mature work, whose landmark is the writing of the Grundrisse, written under the impact of the first global crises of capitalism (1857-1858). KEYWORDS Crisis, capitalism, Karl Marx, history EIXO TEMÁTICO Historicidade do e no pensamento de Marx “A atual crise financeira global parece estar aumentando a busca por obras de um dos mais conhecidos e ferozes críticos do capitalismo: o pai do comunismo, Karl Marx. A editora alemã Karl Dietz, dedicada a livros de pensamento de esquerda disse já ter vendido, neste ano, 1,5 mil cópias da obra mais famosa de Marx, O Capital, escrita em 1867. Só no mês passado foram vendidas 200 cópias, o mesmo número que, no passado, costumava ser vendido em um ano.” 1 1 “Crise aumenta a procura por obras de Karl Marx na Alemanha.” BBC Brasil, 20 de outubro de 2008. Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/10/081020_marxvendas_mp.shtml (acessado em 21 de março de 2013)

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  • Marx e o Marxismo 2013: Marx hoje, 130 anos depois Universidade Federal Fluminense Niteri RJ de 30/09/2013 a 04/10/2013

    TTULO DO TRABALHO

    As crises na dinmica histrica do capitalismo: algumas consideraes a partir da obra de Karl Marx AUTOR INSTITUIO (POR EXTENSO) Sigla Vnculo Demian Bezerra de Melo Doutor em Histria pela UFF e professor

    substituto do Instituto de Histria da UFRJ

    IH-UFRJ Substituto

    RESUMO (AT 20 LINHAS) Qual a relao entre o fenmeno recorrente das crises capitalistas e a perspectiva do fim deste modo de produo? E como essa questo foi tratada ao longo da obra de Marx? Seria mesmo este o autor de uma teoria do colapso? O propsito deste artigo discutir a evoluo das ideias de Marx acerca desta questo, especialmente do que se encontra em sua obra madura, cujo marco a redao dos Grundrisse, escrito sob o impacto da primeira crise mundial do capitalismo (1857-1858).

    PALAVRAS-CHAVE (AT TRS) Crise, capitalismo, Karl Marx, histria

    ABSTRACT What is the relationship between the recurring phenomenon of capitalist crises and the prospect of the end of this mode of production? And how this issue was addressed throughout the work of Karl Marx? Is he really an author of a collapse theory? The purpose of this article is to discuss the evolution of the ideas of Marx on this issue, especially what is in his mature work, whose landmark is the writing of the Grundrisse, written under the impact of the first global crises of capitalism (1857-1858).

    KEYWORDS Crisis, capitalism, Karl Marx, history

    EIXO TEMTICO Historicidade do e no pensamento de Marx

    A atual crise financeira global parece estar aumentando a busca por obras de um dos mais conhecidos e ferozes crticos do capitalismo: o pai do comunismo, Karl Marx.

    A editora alem Karl Dietz, dedicada a livros de pensamento de esquerda disse j ter vendido, neste ano, 1,5 mil cpias da obra mais famosa de Marx, O Capital, escrita em 1867.

    S no ms passado foram vendidas 200 cpias, o mesmo nmero que, no passado, costumava ser vendido em um ano.1

    1 Crise aumenta a procura por obras de Karl Marx na Alemanha. BBC Brasil, 20 de outubro de 2008. Disponvel em http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/10/081020_marxvendas_mp.shtml (acessado em 21 de maro de 2013)

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    A profundidade da crise que atingiu o centro do capitalismo global desde 2008 trouxe mais

    uma vez o interesse pela obra de Marx, logo tratado pela mdia como um anunciador do fim

    inevitvel do sistema. E, de fato, os dados referentes ao impacto da recesso global no parecem

    nada animadores para seus defensores mais empedernidos, com uma dvida pblica mundial com

    um crescimento da ordem de 65% desde o incio da crise (algo em torno de US$ 49 trilhes),

    segundo dados compilados pelos insuspeitos The Economist e o FMI.2 Quanto ao desemprego, os

    ndices alarmantes na zona do euro, em economias que at ontem eram apresentadas como exemplo

    da aplicao das reformas (traduzindo, contra-reformas neoliberais), ultrapassa em alguns pases

    a marca dos 20% da PEA.3

    Enquanto isso, os famosos planos de austeridade, apresentados como panacia pela

    imprensa burguesa (um remdio amargo, porm inevitvel, dizem), so cada vez mais rejeitadas

    em massivas demonstraes pblicas, como na emblemtica greve geral europia de 14 de

    novembro de 2012, que envolveu os pases mais atingidos pela crise, Portugal, Grcia e Espanha,

    alm de inmeros atos de solidariedade por toda a Europa. Tal cenrio no deixa dvidas de que a

    proclamao do triunfo global do capitalismo que acompanhou o colapso da URSS coisa do

    passado.

    Aps o colapso do bloco sovitico, ganhou enorme espao a ideologia da superioridade

    incontestvel da economia de mercado sobre qualquer forma de regulao social desde o Estado

    de Bem-Estar at o planejamento de tipo sovitico. There is no alternative!, o slogan de Margaret

    Thatcher nos anos 1980, tornar-se-ia a voz corrente na dcada seguinte, e mudanas radicais na

    Histria seriam desacreditadas ou tomadas como perigosas. Aliada enorme influncia das

    teorias ps-modernas nos meios intelectuais (e seu niilismo conformista/catastrofista), no incio da

    dcada de 1990 parecia mais fcil para amplos crculos imaginar a completa deteriorao da terra e

    da natureza do que a quebra do capitalismo, como pontuou Fredric Jameson.4 Na mesma poca,

    Slavoj iek chamou ateno para o carter ideolgico dessa virada descrita por Jameson,

    explorando o fato de que algumas dcadas antes ainda se imaginava

    2 Dvida pblica mundial aumentou 65% desde a crise, diz pesquisa. O Estado de So Paulo, 4 de setembro de 2012. Disponvel em: http://blogs.estadao.com.br/radar-economico/2012/09/04/divida-publica-mundial-aumentou-65-desde-a-crise-diz-pesquisa/ (acessado em 20 de maro de 2013) 3 OIT prev 202 milhes de desempregados no mundo em 2013. O Globo, 21 de janeiro de 2013. http://oglobo.globo.com/economia/oit-preve-202-milhoes-de-desempregados-no-mundo-em-2013-7361217 (acessado em 20 de maro de 2013). 4 JAMESON, Fredric. As antinomias da ps-modernidade. In. A virada cultural: reflexes sobre o ps-moderno. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006, p.91.

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    diferentes formas de organizao social da produo e do comrcio (o fascismo ou o comunismo como alternativas ao capitalismo liberal; hoje, como assinalou Fredric Jameson com muita perspiccia, ningum mais considera seriamente as possveis alternativas ao capitalismo, enquanto a imaginao popular assobrada pelas vises do futuro colapso da natureza, da eliminao de toda a vida sobre a Terra. Parece mais fcil imaginar o fim do mundo que uma mudana muito mais modesta no modo de produo, como se o capitalismo liberal fosse o real que de algum modo sobreviver, mesmo na eventualidade de uma catstrofe ecolgica global...5

    Entretanto, diante da profundidade da presente crise, ser possvel ainda sustentar com

    alguma segurana que o panorama continua o mesmo? No seria esse mesmo renovado interesse

    por Marx (e pelo marxismo), e, mais que isso, a intensidade dos conflitos sociais um sintoma de que

    talvez as certezas dos apologetas do sistema no mais tenham a influncia hegemnica que j

    desfrutaram?

    Todavia, entre os leitores da obra de Marx j vai longe o tempo em que se acreditava que na

    teoria marxiana estivesse vaticinado que esse modo de produo pudesse vir a pique simplesmente

    em razo de uma insanvel contradio econmica. Na verdade, no movimento operrio socialista

    sempre houve uma tenso permanente entre aqueles que acreditavam que a Histria fosse caminhar

    (quase automaticamente, numa viso notadamente fetichista) no sentido do fim do capitalismo, s

    restando aos trabalhadores acelerar essa derrocada final em um determinado ponto, e suas alas

    revolucionrias, que sempre desconfiaram desta espera (messinica) pelo juzo final. Esses

    ltimos moveram (e movem) suas vidas no sentido da organizao dos trabalhadores com vistas

    tomada do poder e instaurao de uma forma superior de sociabilidade. Em suma, para esta ltima

    posio, nada de ficar esperando que a Histria caminhasse a favor, sendo tal atitude autorizada

    pela vida e pela obra de Marx. Mas porque ento essa imagem to forte de Marx como um profeta

    do fim do inevitvel do capitalismo a partir de seus impasses econmicos?

    De fato, numa dimenso histrica mais abrangente, Marx previu sim o fim do capitalismo,

    ao caracteriz-lo como um modo de produo histrico, constitudo em certa poca da evoluo da

    humanidade, que anteriormente j se organizou e viveu de modo diverso e, portanto, poderia (e

    dever) organizar a vida de outro jeito. Como sabido, ao chegar concluso da necessidade

    histrica do Comunismo, Marx e Engels tambm apresentaram o sujeito social capaz de emancipar

    o gnero humano da misria provocada pela expanso do capital: a classe trabalhadora. Assim, do

    mesmo jeito que a burguesia protagonizou a constituio do mundo capitalista, caberia agora

    5 IEK, Slavoj. Introduo. O espectro da ideologia. In. IEK, Slavoj (org,). O mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p.7.

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    classe trabalhadora a tarefa histrica de emancipar a humanidade, superando sua pr-histria. Mas

    ento, qual o lugar das crises capitalistas nesta teoria?

    Da crise

    O uso corriqueiro do termo crise parece ter dissolvido seu significado, especialmente como

    um conceito til para a anlise histrica. Nesse sentido, comearemos com alguns comentrios

    breves sobre as origens do termo, para em seguida discutir o sentido que podemos encontrar na obra

    marxiana.

    Tal como a palavra crtica, crise origina-se do grego Krisis, ligando-se originalmente ao ato

    de separar, de romper, julgar, discernir, decidir, eleger etc. na medicina de Hipcrates (460 a.C.

    370 a.C.) onde tradicionalmente atribui-se o uso pioneiro do termo, denotando um momento de

    virada, de desdobramento de uma enfermidade, tanto para a melhora, quanto para piora do

    paciente.6 Entretanto, em sua Histria da Guerra do Peloponeso, Tucdides (460 a.C. 400 a.C) foi

    provavelmente o primeiro a utilizar o termo crise para anlise de um episdio histrico,

    relacionando ao momento decisivo antes da batalha entre a confederao espartana e Atenas.

    No obstante, o termo ficaria durante sculos confinado acepo mdica, at que, pelo

    menos desde o sculo XVII, crise passasse a ser utilizada em relao a momentos especficos do

    processo poltico, como na Guerra Civil inglesa. Transpunha-se, assim, da linguagem mdica para a

    poltica em um momento em que a prpria reflexo filosfica passou a tratar o Estado (e a

    sociedade) como um corpo, como no Leviat de Thomas Hobbes (1588-1679). Como esclarece

    Reinhart Koselleck:

    Dada a concepo, ento predominante, de Estado como um corpo, no era algo remoto aplicar a linguagem mdica da crise ao domnio da poltica. Mas Rousseau foi o primeiro a aplicar publicamente o termo ao grande corpo poltico, ao corps politique. 7

    Alm de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e outros iluministas franceses (como Diderot),

    que usaram o termo para caracterizar os limites do Ancien Rgime, Koselleck assinala tambm de

    The Crisis de Thomas Paine (1737-1809), srie de panfletos escritos entre 1776-1782 sobre o

    desenrolar dos acontecimentos da chamada Revoluo Americana, onde tambm conjura a

    6 ABBAGNANO, Nicola. Crise. In. Dicionrio de Filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2003, p.222. 7 KOSSELECK, Reinhart. Crtica e crise. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, p.145.

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    palavra no mesmo sentido.8 Nota-se que a emergncia desta aplicabilidade da noo de crise

    ocorreu no contexto poltico das revolues burguesas e das elaboraes tericas que as

    acompanhariam, expressas na atitude conhecida como Esclarecimento (Aufklrung), que, grosso

    modo, consistia na liberdade de crtica aos dogmas do Antigo Regime. Nesse sentido, a noo de

    crise se generaliza nos sculos XVIII e XIX no s como maneira de descrever uma sociedade em

    que determinadas estruturas sociais chegaram ao seu limite, mas tambm como aviso de que outra

    forma social deveria se impor (no caso, a sociedade burguesa). H assim, a esta altura, alm de uma

    (re)associao com a noo de crtica, tambm uma ntima relao entre as noes de crise e de

    revoluo, ou ao menos entre crise e mudana das estruturas sociais.

    No sculo XIX, crticos da sociedade capitalista ento em ascenso notariam a recorrncia

    de uma outra forma especfica de crise, que periodicamente passava a perturbar o desenvolvimento

    econmico. Ao contrrio do que at ento ocorria nas sociedades pr-capitalistas, onde as crises

    econmicas eram fundamentalmente de subproduo (muitas vezes em funo de problemas

    naturais tempestades, secas, rigorosos invernos etc. ou propriamente polticos como as

    guerras), com o desenvolvimento industrial do capitalismo, as crises econmicas se configurariam

    como de superproduo de mercadorias.

    Para estes crticos, tais crises eram resultantes dos movimentos internos que presidem o

    desenvolvimento econmico neste modo de produo. Em oposio evidente com o enunciado de

    Jean-Baptiste Say (1767-1832) que advogava a possibilidade de, em uma situao de

    funcionamento adequado das leis de mercado, existir um equilbrio metafsico entre produo e

    consumo ,9 os mais importantes destes crticos, Karl Marx e Friedrich Engels, buscaram

    reconhecer que estas crises eram parte da dinmica interna deste modo de produo. J no seu livro

    de juventude, A situao da classe trabalhadora na Inglaterra, Engels estabeleceu o vnculo entre a

    concorrncia e tais perturbaes,10 algo que posteriormente ganharia contornos mais precisos na

    lavra de Marx.

    Embora tenha sido o autor que esclareceu de forma mais precisa esta dinmica cclica da

    economia capitalista, Marx no foi o primeiro a perceber que o prprio sistema engendrava estas

    crises de superproduo. Em seu clssico livro sobre a formao da classe trabalhadora inglesa, E. 8 Idem, ibidem, p.229-230. 9 Segundo Marx, a ideia de um equilbrio metafsico entre vendedores e compradores, ou seja, da estupidez em torno da impossibilidade da superproduo, na verdade foi originalmente proposta pelo britnico James Mill (1773-1836). Todavia, tal hiptese acabou por ficar conhecida como Lei de Say, em razo da popularizao da mesma pelo economista francs. A Lei de Say seria largamente majoritria no pensamento econmico e influenciou mesmo o mais destacado economista poltico, David Ricardo (1772-1823), autor que Marx considerava como o ponto mais alto desta disciplina. Ver. MARX, Karl. Teorias da mais-valia. Vol.II. So Paulo: DIFEL, 1980, p.929 e passim. 10 No captulo A concorrncia. ENGELS, F. A situao da classe trabalhadora na Inglaterra. So Paulo: Boitempo, 2008, p.117-130.

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    P. Thompson localizou em uma resoluo dos teceles de Leicester de 1817 algo que caracterizou

    como uma espcie de teoria sobre as crises capitalistas baseada no subconsumo.11 Isso sem falar

    de economistas burgueses como Thomas Robert Malthus (1766-1834) em Princpios de economia

    poltica (1820), e romnticos como Jean Charles de Sismondi (1773-1842) com seu livro Novos

    princpios de economia poltica (1819), que buscariam estabelecer as razes da recorrncia das

    crises, tambm criticando a Lei de Say. No obstante esses ltimos casos, no interior do

    pensamento burgus a maior parte dos economistas polticos aderiu proposio de Say, passando a

    atribuir como causas das perturbaes econmicas questes exteriores prpria dinmica interna da

    lgica produtiva (guerras, problemas climticos, subverso da ral etc.), chegando no ltimo

    quartel do sculo XIX, a produzir posies extravagantes, como de atribuir existncia de

    manchas solares a razo das crises peridicas, j no contexto da emergncia da chamada

    economia neoclssica.12

    As crises e a revoluo na teoria de Marx

    Em sua crtica da economia poltica sintetizada em sua obra O capital, Karl Marx

    demonstrou, antes de tudo, o carter necessrio de tais crises, entendidas como desdobramento de

    suas contradies imanentes, estando sua possibilidade de ocorrncia presente na prpria oposio

    interna da forma mercadoria, entre valor e valor de uso, desdobrada no dinheiro (forma acabada do

    valor), que, como meio de pagamento, inscreve essa potencialidade. que, alm de realizar a

    mediao entre a troca mercantil, o dinheiro permite a interrupo desta mesma mediao,

    produzindo uma ruptura na metamorfose mercantil, o que implica na destruio de capital:

    falncias, desemprego etc.13

    Quando de seu exlio em Londres, Marx pde observar o desenvolvimento da crise de 1857,

    a primeira de carter mundial na histria do capitalismo,14 lanando-se na escrita do primeiro

    esboo de sua crtica da economia poltica, manuscrito publicado postumamente e que seus editores 11 THOMPSON, E. P. A formao da classe operria inglesa. Vol.II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.31. 12 De autoria do economista britnico W. S. Jevons (1835-1882), tal noo absurda buscou explicar os ciclos agrcolas com base na incidncia destas manchas solares (sunspots). Cabe notar que, quando o pensamento econmico elaborava tal hiptese contexto em que surge o chamado pensamento neoclssico de que Jevons um dos fundadores , o capitalismo vivia sua primeira grande depresso (1873-1896). apenas com a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda (1936) de John Maynard Keynes (1883-1946) e os estudos de Joseph Alois Schumpeter (1883-1950) que o pensamento econmico burgus passou a tentar explicar os ciclos econmicos como parte da natureza da economia capitalista. 13 MARX, Karl. O capital: crtica da economia poltica. So Paulo: Nova Cultural, 1983, captulos 1, 2 3. 14 KRTKE, Michael R. The first world economic crisis: Marx as an economic journalist. In. MUSTO, Marcello (Ed.). Karl Marxs Grundrisse: foundations of the critique of political economy 150 years later. London/New York: Routledges, 2008, p.162-168.

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    deram o nome de Grundrisse.15 Um conjunto de oito cadernos, totalizando um milhar de pginas,

    onde, entre outras coisas, Marx apresentou um primeiro roteiro da sua exposio, onde concebia a

    existncia de seis livros dos quais o ltimo seria dedicado ao exame das crises. Como assinalou

    Roman Rosdolsky, possvel afirmar que neste roteiro o tema ocuparia o papel de uma sntese

    dialtica de todo seu raciocnio.16 Como se sabe, tal roteiro seria posteriormente abandonado, e

    quando publicou finalmente o primeiro volume de O capital, em 1867, o tema da crise aparece

    incorporado ao movimento dialtico de desdobramento das categorias, ganhando maior concretude

    no livro III, publicado postumamente por Engels, em 1894. O que certo que no existe nem

    mesmo um captulo em sua obra onde se possa ler uma teoria de Marx sobre as crises, muito

    embora a seo terceira do livro III, que trata da tendncia queda da taxa de lucro, seja

    comumente referida como tal. Em certo sentido, como ensina Jorge Grespan, do mesmo modo que

    tambm no existe um captulo onde se possa ler uma definio acabada do que seja o prprio

    capital sendo necessrio percorrer toda obra (os trs livros) para se conhecer o capital como uma

    rica totalidade de mltiplas determinaes , o mesmo se pode dizer do conceito de crise, que,

    pressuposto ao longo da exposio, constitui-se dialeticamente no negativo do capital.17 Vejamos.

    Ao longo dos trs livros que compem sua Magnum opus, Marx expe desde as condies

    imanentes que, num plano mais abstrato, tornam possvel a existncia de crises, at a concretude de

    sua efetividade, quando j incorpora a questo da concorrncia entre os capitalistas no livro III.

    Portanto, embora Marx no tenha nos deixado um livro ou mesmo um captulo de sua obra onde

    exista uma exposio completa do conceito de crise, h uma constante reflexo sobre esta que

    acompanha a autonomizao categorial das formas sociais ao longo de O capital. Da mercadoria

    desdobrando-se no dinheiro no incio do livro I at os desdobramentos no capital portador de juros e

    no capital fictcio no livro III de O capital suas formas mais reificadas e fetichistas , a crise

    constitui um dos momentos deste modo de produo. Em sntese, sendo as prprias crises

    capitalistas o resultado do desdobramento de todas as contradies deste sistema, no texto marxiano

    no h como ela no estar pressuposta em todas as fases da exposio categorial de sua crtica.18

    No movimento tautolgico de valorizao desmedida da forma acabada do valor (dinheiro

    que se torna mais dinheiro), de tempos em tempos so produzidas essas perturbaes: o volume da

    15 Com exceo de um pequeno texto publicado por Karl Kautsky em 1903 a Introduo crtica da economia poltica o manuscrito ficaria indito at que em 1939/1941 fossem publicados na URSS com o nome de Grundrisse der Kritik der politischen konomie. Rohentwurt (1857-1858), mais conhecido como simplesmente Grundrisse. O texto foi s recentemente publicado no Brasil: MARX, Karl. Grundrisse. So Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed.UFRJ, 2011. 16 ROSDOLSKY, Roman. Gnese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, p.27-60. 17 GRESPAN, Jorge. O negativo do capital. O conceito de crise na crtica de Marx economia poltica. So Paulo: Hucitec; FAPESP, 1999. 18 GRESPAN, Jorge. A crise na crtica da economia poltica. Crtica Marxista, So Paulo, v.10, p.94-110, 2000.

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    produo social no encontra possibilidade de realizao, sendo interrompida a metamorfose

    mercantil (basicamente as operaes D-M e M-D). Isso decorre do fato de que, sendo o processo de

    acumulao capitalista composto pela unidade contraditria entre as esferas da produo e da

    circulao de mercadorias, a acelerao do processo produtivo nas fases de expanso da atividade

    econmica acaba por produzir uma autonomizao relativa entre estas duas esferas, exacerbando

    essa oposio como se fossem dois processos independentes.19 Tal contradio acaba por se

    explicitar historicamente nas crises, que contraditoriamente restabelecem, de forma violenta, a

    unidade entre esses dois processos. Da a natureza cclica da economia capitalista, com fases de

    expanso da atividade produtiva seguidas de depresses.20

    Para entender como essa possibilidade de crise se impe efetivamente como necessidade,

    em primeiro lugar preciso entender o sentido daquilo que Marx define como a lei geral da

    acumulao capitalista, conforme est exposta na ltima seo do livro I de O capital. Sendo

    dialtica, tal lei to somente uma tendncia que o movimento tautolgico de valorizao do valor

    impe substantivamente. Ligada dinmica da reproduo social deste modo de produo, a

    acumulao capitalista o consumo produtivo de parte do mais-valor transformado em capital

    adicional, isto , novamente convertido em meios de produo e fora de trabalho, capital constante

    e capital varivel.21 O desenvolvimento do modo de produo especificamente capitalista , deste

    modo, a repetio cclica desta relao social cujos sujeitos so: os donos dos meios de produo e

    os produtores direitos de mais valor (os trabalhadores). Tal processo de expanso das foras

    produtivas acaba por apresentar tambm uma disfuncionalidade, posto que tendencialmente leva ao

    aumento da composio orgnica do capital, o que acaba por impor um crescimento relativamente

    menor do capital varivel em relao ao capital constante, provocando tanto a concentrao e

    centralizao do capital, quanto a criao de uma superpopulao relativa, o exrcito industrial de

    reserva.22 Deste modo, do prprio movimento interno do capital, que se caracteriza por uma

    19 MARX, Teorias da mais valia, op. cit., p.929 e passim. 20 (...) crise apenas a imposio violenta da unidade das fases do processo de produo, as quais se tornam independentes uma da outra. Idem, ibidem, p.945. Ver tambm CARCANHOLO, Marcelo. Formas, contedo e causa: uma proposta de interpretao marxista do fenmeno crise. Leituras de economia poltica, Campinas, n.5, p.15-31, 1997. 21 No livro I, ao localizar como categoria central de sua crtica da economia poltica o mais-valor ou mais-valia, como aparece na traduo mais corriqueira Marx identificou os dois investimentos bsicos feitos pelos proprietrios dos meios de produo: capital constante maquinrio, matrias primas, impostos etc.; e capital varivel salrios. Este ltimo recebe o adendo varivel pelo fato de ser o nico cujo valor de uso possui o atributo de valorizar as mercadorias. Sendo o salrio a forma fetichista com a qual o contrato jurdico se efetiva entre capital e trabalho no capitalismo, este se apresenta como o pagamento por toda a jornada do trabalho social, quando na verdade corresponde apenas o pagamento pelo preo da fora de trabalho. MARX, O capital: crtica da economia poltica. Livro I, Seo VI, op. cit., p.125-148. 22 Em polmica com a teoria da populao de Malthus, a abordagem marxiana entende a constituio de uma massa de despossudos como parte da lgica interna do capital, sendo esse mesmo exrcito de reserva funcional por pressionar os salrios para baixo. Cf. o captulo XXIII do livro I. Idem, ibidem, p.187-259.

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    expanso desmedida de suas foras produtivas, impe uma barreira ao consumo da produo e,

    consequentemente, ao seu prprio desenvolvimento.

    Alm disso, sendo o capital varivel o nico que efetivamente produz mais-valor, a taxa de

    lucro que sua forma de manifestao na circulao tende a cair, retraindo os investimentos

    produtivos e aumentando ainda mais o montante de desempregados. Deste modo, conforme Marx

    discute no livro III dO capital, da lei geral da acumulao capitalista desdobra-se dialeticamente a

    tendncia histrica queda da taxa de lucro,23 que, tambm dialeticamente (e no de forma

    determinista), opera em face de fatores contra-atuantes que impedem que o capitalismo entre em

    colapso; e que em momentos de crise servem para o capital recolocar as condies de um prximo

    ciclo de expanso das suas foras produtivas.24 Deste modo, como define Marx, tais crises so

    sempre apenas solues momentneas violentas das contradies existentes, irrupes violentas que

    restabelecem momentaneamente o equilbrio perturbado.25

    Sendo deste modo a crise um processo necessrio a partir do qual esse sistema regula seus

    excessos, importante notar que a ocorrncia de tais crises comparecem na cena histrica nesta

    forma de sociabilidade contempornea sem que estejamos diante de seu esgotamento. Ao contrrio,

    tais crises fazem parte do seu modo de ser. Mas se obviamente no podem existir crises econmicas

    que no possuam desdobramentos na vida social, para Marx estas so crises bastante especficas.

    que, segundo sua leitura, a modernidade capitalista instaura uma abstrao da esfera econmica de

    tal modo que acaba por produzir uma dinmica temporal de ritmo prprio, algo que E. P. Thompson

    explorou em conhecido artigo e Moishe Postone, um fecundo leitor da obra de Marx, denominou de

    um tempo abstrato.26 Assim sendo, esse ritmo relativamente autnomo do desenvolvimento

    econmico do capital passa a conviver com outras temporalidades, outros tempos discordantes

    como definiu Daniel Bensad,27 como os tempos da natureza, ou o das conjunturas polticas, que

    23 Verificada desde David Ricardo, Marx lhe atribuiu o status de principal lei de movimento da economia, conforme aparece nos Grundrisse, enquanto em O capital apresentada como um desdobramento da lei geral da acumulao capitalista, como vimos acima. MARX, Grundrisse, op. cit., p.626. ______ O capital: crtica da economia poltica. Livro III, Tomo 1. So Paulo: Abril Cultural, 1983, p.161-200. 24 Deve haver influncias contrariantes em jogo, que cruzam e superam os efeitos da lei geral, dando-lhe apenas o carter de uma tendncia, motivo pelo qual tambm designamos a queda da taxa geral de lucro como uma queda tendencial. Idem, ibidem, p.177. 25 Idem, ibidem, p.188. 26 THOMPSON, Edward P. Tempo, disciplina do trabalho e capitalismo industrial. In. Costumes em comum. Estudos sobre cultura popular tradicional. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.267-304. POSTONE, Moishe. Time, Labor and Social Domination: A Reinterpretation of Marx's Critical Theory. Nova York e Cambridge: Cambridge University Press, 1993, captulo 5, p.186-225. Podemos pensar tambm no que Ellen Wood denomina de separao entre o econmico e o poltico, prpria do capitalismo. Cf. WOOD, Ellen M. A separao entre o econmico e o poltico no capitalismo. Democracia contra capitalismo: a renovao do materialismo histrico. So Paulo: Boitempo, 2003, p.27-49. 27 BENSAD, Daniel. La discordance des temps: essais sur les crises, les classes, lhistorie. Paris: Les ditions de la Passion, 1995. _____Marx, o Intempestivo. Grandezas e misrias de uma aventura crtica (sculos XIX e XX). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1999.

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    possuem seus prprios ciclos. Por outro lado, como tambm apontou Marx, estas crises constituem

    situaes nas quais aos sujeitos sociais se apresenta a limitao e o carter to-somente histrico e

    transitrio do modo de produo capitalista,28 constituindo a forma mais contundente em que o

    capital aconselhado a se retirar e ceder espao a um estado superior de produo social.29

    Destarte, importante considerar que, se Marx buscou apreender essa dinmica

    relativamente autnoma do movimento de valorizao do valor, isso no significa dizer que em sua

    teoria possa se conceber uma economia como uma esfera absolutamente apartada do Estado,

    como aparece na vulgata liberal. Ao contrrio, essa autonomia precisamente relativa, e no

    absoluta, pois desde sua constituio at sua reproduo histrica, o Estado opera na acumulao

    capitalista. Tanto naquilo que entendido como acumulao originria,30 passando pela ativao

    por parte do Estado das contra-tendncias queda da taxa de lucro, como tambm atravs do

    mecanismo na dvida pblica, no h um Estado exterior lgica da acumulao capitalista. Nem

    mesmo na poca de vigncia do capitalismo concorrencial, em que viveu Marx, este prescindiu do

    Estado.31

    Entretanto, qual a relao entre essa forma especfica de crise surgida da objetivao do

    capitalismo industrial e as crises polticas, j tematizadas desde o sculo XVIII? Como isto se

    relaciona na teoria de Marx? Sendo um revolucionrio interessado em investigar o funcionamento

    do capitalismo, Marx tambm produziu uma srie de reflexes importantes sobre esse tema, antes

    mesmo de ter dado a forma mais acabada de sua crtica ao capitalismo sintetizada em O capital.

    No seu balano da derrota da Revoluo de 1848, publicada no fim de 1850 na sua revista

    Neue Reinische Zeitung, num tom deveras melanclico, Marx afirmou:

    Nessa prosperidade geral em que as foras produtivas da sociedade burguesa se desenvolvem to exuberantemente quanto possvel no seio das relaes burguesas, no se pode falar de uma verdadeira revoluo. Tal revoluo s possvel nos perodos em que ambos os fatores, as modernas foras produtivas e as formas

    28 MARX, O capital, Livro III, op. cit., p.184. 29 MARX, Grundrisse, op. cit,, p.627. 30 Ao contrrio do que comumente se afirma, uma leitura mais atenta do captulo XXIV do livro I de O capital, nos mostra que, embora Marx esteja remetendo ao processo histrico de constituio do pioneiro capitalismo ingls, a lgica de seu argumento diz respeito a entender como o capital se pe a partir da expropriao dos produtores diretos do processo de reproduo de sua vida, em condies histricas nas quais j existe a generalizao da forma mercantil. Deste modo, aquilo que ironicamente Marx denomina de a assim chamada acumulao primitiva (ou acumulao originria) no um processo datado entre os sculos XIV e XVIII, e sim uma dinmica que constitui a expanso (at mesmo territorial) das foras produtivas capitalistas at o presente. Uma boa discusso sobre esse ponto est em FONTES, Virgnia. Capitalismo, excluso e incluso forada e As condies histricas e sociais de generalizao do trabalho abstrato: permanncia e transformao das formas de expropriao. In. Reflexes im-pertinentes. Histria e capitalismo contemporneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005, p.19-50 e 73-90. 31 Como, alis, verificou um no-marxista como Karl Polanyi. POLANYI, Karl. A grande transformao. As origens da nossa poca. 2 Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.

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    burguesas de produo, entrem em contradio entre si. (...) Uma nova revoluo s possvel na sequncia de uma nova crise. , porm, to certa como esta.32

    inegvel que esta concluso expressa uma posio absolutamente determinista quanto ao

    problema da relao das crises econmicas com as situaes polticas. E sobre isso alguns

    comentrios so oportunos.33

    Em primeiro lugar preciso notar que o equvoco de Marx esteve ligado tambm sua

    polmica com a ala mais esquerdista da Liga dos Comunistas, liderada por Karl Schapper (1812-

    1870),34 que acreditava que, ainda em 1850, o processo revolucionrio estava em curso. Em

    segundo, conforme ele e Engels expressaram no Manifesto Comunista, Marx acreditava j estar

    vivendo os estertores da sociedade burguesa, quando na verdade esta s estava dando seus

    primeiros passos, conforme ambos reconheceriam posteriormente.

    Isto naturalmente no deve jogar uma cortina de fumaa sobre o equvoco da concluso do

    trecho supracitado. Todavia preciso tambm notar que uma das fontes principais do pensamento

    de Marx para pensar o tema da revoluo foi a prpria historiografia liberal sobre a Revoluo

    Francesa,35 que, toda ela, estava convencida que um dos estopins para as grandes revolues (no

    s a de 1789, mas tambm a de 1830) foram os problemas econmicos.36 E de fato, a crise

    comercial da Inglaterra havia contribudo para a ativao do prprio Cartismo e da Revoluo no

    continente. No era to absurdo assim estabelecer esse vnculo, ainda que no seja difcil consider-

    lo simplista.

    Daniel Bensad37 comenta que, tendo em vista as revolues anteriores, como em 1789,

    1830 e naquela em que o mesmo atuou (1848), Marx acabou por fazer um prognstico no qual

    buscava sincronizar as futuras crises econmicas o que era demonstrvel (dada a natureza cclica

    do sistema) uma nova revoluo algo indemonstrvel por si s. De acordo com o filsofo

    francs, haveria nessa concluso ambgua de Marx um mal-estar terico entre sua nascente crtica

    32 MARX, Karl. As lutas de classe na Frana 1848-1850. In. A revoluo antes da revoluo. So Paulo: Expresso Popular, 2008, p.183, grifo nosso. 33 Discuto esse tema em MELO, Demian Bezerra de. Marx, as crises e a revoluo. Outubro, So Paulo, n.20, p.123-147, 2012. 34 Ver ENGELS, Friedrich. Contribuio histria da Liga dos Comunistas. In. Karl Marx & Friedrich Engels (obras escolhidas). Vol.3. So Paulo: Alfa-mega, s.d., p.152-168. 35 Cf. HOBSBAWM, Eric. Ecos da marselhesa: dois sculos revem a Revoluo Francesa. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.25. 36 Na Introduo de seu livro Histria e Verdade, o filsofo polons Adam Shaff fez um interessante apanhado sobre a historiografia a respeito da Revoluo francesa e mostrou que at os anos cinquenta do sculo XIX todos os seus grandes interpretes creditaram como uma de suas causas a crise fiscal do Estado e as dificuldades econmicas do Antigo Regime. Ver, SCHAFF, A. Histria e verdade. So Paulo: Martins Fontes, 1978, p.9-62. 37 BENSAD, La discordance des temps, op. cit., p.83-84.

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    da economia poltica e a filosofia da histria hegeliana, com a qual Marx e Engels j haviam

    acertado suas contas entre 1845-1846.38

    O que certo que Marx acabaria por abandonar tal raciocnio em funo, no apenas do

    aprofundamento de seus estudos, mas principalmente por um fato concreto: a crise seguinte,

    aparecida em 1857 mais profunda que a precedente , no foi seguida por nenhum dilvio; por

    nenhuma revoluo ou algo minimamente parecido.39 Isso obviamente impactou suas elaboraes, e

    no momento seguinte, nos atrevemos a dizer que ao produzir uma das mais controversas snteses de

    seu pensamento, no clebre Prefcio sua Contribuio crtica da economia poltica de 1859,

    Marx apresentou uma abordagem mais nuanada sobre essa relao entre crise e revoluo:

    Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as foras produtivas materiais da sociedade entram em contradio com as relaes de produo existentes ou, o que nada mais do que a sua expresso jurdica, com as relaes de propriedade dentro das quais aquelas at ento se tinham movido. De forma de desenvolvimento das foras produtivas essas relaes se transformam em seus grilhes. Sobrevm ento uma poca de revoluo social.40

    Naquele escrito, ao referir-se s condies que possibilitam uma revoluo, Marx fala agora de uma

    poca de revoluo social, o que certamente remete a tempos longos.

    Ao mesmo tempo, o grau de abstrao da proposio tambm remete para contradies

    profundas na estrutura social, e no ao resultado de uma interrupo peridica do metabolismo

    econmico. No se trata, portanto, de uma relao de causalidade mecnica entre os ziguezagues da

    conjuntura econmica imediata e a luta de classes, como de certo modo aparece no balano da

    Revoluo de 1848. At porque, como desenvolvido naquele mesmo antolgico Prefcio de 1859,

    uma formao social nunca desaparece sem que antes tenham sido desenvolvidas todas as suas

    contradies e potencialidades; e que os homens no se pem tarefas histricas para as quais as

    condies de sua resoluo no estejam dadas ou em vias de aparecer. Isto certamente esteve ligado

    a percepo de que, ao contrrio do que aparece no Manifesto Comunista, quela altura o

    capitalismo estava apenas na sua infncia, como Marx e Engels posteriormente reconheceriam no

    Prefcio edio alem de 1872, onde anotaram o desenvolvimento colossal da grande indstria

    nestes ltimos vinte e cinco anos.

    38 Refere-se aos textos de A sagrada famlia (1845) e dA ideologia alem (1845-46), onde os dois jovens autores haviam criticado a concepo teleolgica e fetichista da filosofia da histria de Hegel. 39 Como esclareceu Hobsbawm, Marx e Engels, que mantiveram alguma esperana no renascimento revolucionrio por um ou dois anos depois de 1849, transferiram depois essas esperanas para a grande crise econmica seguinte (a de 1857) e resignaram-se depois. HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 12 edio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p.160. 40 MARX, Karl. Para crtica da economia poltica. Os economistas. So Paulo: Abril Cultural, 1982, p.25.

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    Ademais, depois da experincia da Revoluo de 1848, o processo que mais impressionou

    os autores, como de resto todo o movimento socialista, a Comuna de Paris (1871), no parece poder

    ser explicada como resultado de qualquer perturbao peridica do desenvolvimento econmico,

    mas sim por uma crise de outra natureza, a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871). Melhor dizendo,

    a experincia acumulada do proletariado francs, atravs mas no s da constituio da

    Associao Internacional dos Trabalhadores (1864-1876), combinada prpria crise do regime

    bonapartista que, derrotado, entregou Paris para Bismarck constituram-se nos elementos

    fundamentais explicativos daquele memorvel assalto aos cus!

    Deste modo, em sua persistente militncia, Marx apostou suas fichas muito mais na auto-

    organizao da classe operria (o que passava necessariamente crtica ontolgica do modo de

    produo capitalista) do que num colapso econmico do sistema, a despeito de muitos continuarem

    a lhe atribuir uma teoria catastrofista. certo que tinha plena conscincia de que, ao constituir-se

    num sinal do carter to-somente histrico e transitrio do modo de produo capitalista, os

    momentos de crise poderiam se constituir numa oportunidade importante para a revoluo.

    A existncia de uma suposta teoria do colapso na obra de Marx sempre foi alvo de

    controvrsia. Uma das mais importantes polmicas da social-democracia alem na virada para o

    sculo XX, o conhecido Bernstein-Debatte, girou de certo modo em torno a esse problema, ainda

    que tivesse sido mal colocado por Eduard Bernstein (1850-1932) que defendeu o abandono da

    teoria do colapso (Zusammenbruchstheorie) que segundo ele teria embasado a teoria Marx sobre

    a transio ao socialismo. A conhecida resposta de Rosa Luxemburgo (1871-1919), por exemplo,

    para combater tal revisionismo, acabou por reafirmar a existncia (e a correo) da alegada teoria do

    colapso de Karl Marx.41

    Posteriormente, argutos leitores da obra marxiana como Henryk Grossmann (1881-1950) e

    Roman Rosdolsky (1898-1967) atriburam ao autor de O capital a tal teoria do colapso.42

    Entretanto, de acordo com o historiador Franco Andreucci, no congresso do SPD em Hannover

    (1899) contexto de divulgao das posies revisionistas de Bernstein , um delegado de nome

    41 BERTELLI, Antonio Robert. O pano de fundo histrico-terico do Bernestein-Debatte. Novos Rumos, So Paulo, n.32, p.3-47, 2003. 42 A afirmao de que Marx no havia proposto uma teoria da derrocada deve remontar-se, antes de tudo, interpretao revisionista de sua obra econmica, posterior Primeira Guerra Mundial. Levando isso em conta, nunca poderemos apreciar suficientemente os mritos tericos de Rosa Luxemburgo e de Henrik Grossmann. ROSDOLSKY, Gnese e estrutura de O capital de Karl Marx, op. cit., p.573.

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    Woltmann defendera que no havia indcio da teoria do colapso inevitvel do capitalismo em

    Marx, sendo apenas encontrada em Engels e nos auto-identificados marxistas. 43

    As crises na Histria contempornea: guisa de concluso

    Nos anos cinquenta de seu sculo, trabalhando como correspondente do New York Daily

    Tribune, Marx foi um dos jornalistas mais lidos do mundo de lngua inglesa.44 Quando sobreveio a

    j mencionada crise econmica de 1857, ao mesmo tempo em que escrevia os Grundrisse, escreveu

    diversos artigos para aquele jornal, dos quais destacaremos um: A crise comercial na Inglaterra,

    de 15 de dezembro de 1857. Marx inicia ironizando o Times de Londres por este ter reafirmado

    durante todo o perodo precedente a firmeza do comrcio britnico, chegando ao ponto de

    asseverar em seus editoriais que, com a vitria definitiva do livre-cambismo, as crises comerciais

    haviam sido banidas definitivamente da Inglaterra. Diante da crise, a melodia do jornal londrino

    tornara-se mais melanclica, foi o cido comentrio do Mouro.

    Simplesmente, apesar da reiterada repetio das crises de superproduo como quela

    altura a histria do sculo XIX j o demonstrara , os apologetas do capital acharam por bem

    decretar o fim das crises. Quando esta finalmente reapareceu em 1857 no puderam fazer outra

    coisa seno atribuir a culpa a um comportamento irresponsvel de alguns indivduos e

    especulao. Sobre este ponto, a reflexo de Marx de uma atualidade notvel:

    Quando a especulao se manifesta no final de um determinado ciclo comercial imediatamente antes do desastre, no se deve esquecer que a prpria especulao tinha sido gerada nas fases anteriores do ciclo e , em si, portanto, um resultado e um fenmeno e no causa final essencial. Os economistas que explicam estes tremores regulares da indstria e do comrcio como consequncia da especulao se assemelham quela escola j desaparecida de filsofos da natureza que veem na febre a verdadeira causa de todas as enfermidades.45

    A semelhana com a qual grande parte da imprensa referiu-se (e ainda se refere) a crise atual

    patente. Inclusive para parte da opinio dita de esquerda, a atual crise teria sido provocada pela

    desregulamentao dos mercados, maneira preferida da retrica keynesiana, como se as crises

    43 ANDREUCCI, Franco. A difuso e a vulgarizao do marxismo. In. HOBSBAWM, Eric. Histria do Marxismo II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.30. O debate sobre a existncia de uma teoria do colapso em Marx transcende esse contexto, atravessando o sculo XX. Um apanhado da questo at os anos setenta, cf. COLLETI, Lucio (org.). El marxismo y el derrumbe del capitalismo. 2 ed. Mxico: Siglo XXI, 1983. 44 KRTKE, The first world economic crisis: Marx as an economic journalist, op. cit. 45 MARX, Karl. La crisis comercial en Inglaterra. Marx y Engels, escritos econmicos menores. Obras fundamentales II. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1987, p.201, grifo nosso.

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    no fizessem parte do modo de ser da sociabilidade do valor, ou mesmo pudessem ser evitadas a

    partir de prticas regulacionistas. Do mesmo modo, a crise estrutural do capitalismo nos anos 1970

    at hoje comumente referida mesmo na literatura de esquerda a partir de termos como choque

    do petrleo, em interpretao na qual uma deciso poltica da OPEP (e em algumas verses

    racistas, dos rabes) apresentada como a raiz de todos os problemas. Em suma, como se as

    crises do capitalismo fossem todas resultado de decises errneas (ou irresponsveis) dos atores

    polticos relevantes, sejam eles governos ou agentes do mercado.

    Outro problema importante certa tendncia a creditar o impacto das crises econmicas

    quase como se estas tivessem uma relao sincrnica com a luta de classes, quando, por exemplo,

    se atribui a uma delas a ocorrncia de uma revoluo, ou mesmo o recrudescimento da luta de

    classes. Para os historiadores materialistas, esse ltimo ponto particularmente importante, j que,

    como vimos, embora existam indicaes em passagens da obra marxiana que autorizam tal leitura,

    ao longo desse artigo discutimos como esse foi um ponto que o prprio Marx submeteu reviso

    em sua obra madura.

    Crises econmicas, em certas circunstncias, podem, ao contrrio de despertar a classe

    trabalhadora para a atividade poltica, levar a uma grande desorganizao, em razo da debilidade

    das condies objetivas da classe, agravada pelo desemprego. Como assinala a historiografia, na

    Primeira Repblica no Brasil, por exemplo, o impacto das crises cclicas levavam desapario dos

    sindicatos mais combativos. Em outros contextos, em razo de equvocos de conduo das

    organizaes revolucionrias, recesses contribuiram para derrotas histricas, como ocorreu na

    Alemanha dos anos 1930, com a contrarrevoluo nazista. Enquanto isso, a notvel ativao da luta

    de classes nos anos 1960 ocorreu quando as condies econmicas eram francamente favorveis

    acumulao capitalista, e buscar uma crise econmica para coincidir com 1968, por exemplo, pode

    ser muito decepcionante.

    Em sntese, esperar que uma crise econmica possa levar o capitalismo a conhecer sua

    dbcle est mais prximo a uma espera messinica, e bem distante da aposta de Marx na revoluo

    social. E apresentar o desenvolvimento do processo histrico como um mero desdobramento das

    flutuaes econmicas constitui um equvoco que no condiz com a necessidade premente de

    retomar Marx como inspirador de uma historiografia crtica.