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crítica de cinema «A Outra Margem» By Daniel Ribas para além da diferença O cinema português sempre viveu com um dilema incompreendido entre o cinema de autor e o cinema comercial. Muito da discussão desse dilema passa por um ponto fundamental do processo produtivo do cinema: o argumento. Essa etapa decisiva é motivo de discórdia. Contudo, muitas das vozes do cinema comercial acabam, na mesma, por descurar o guião e os filmes acabam por ser amálgamas frágeis de um projeto de filme. Vem esta discussão a propósito da estreia, esta semana, do mais recente filme de Luís Filipe Rocha: «A Outra Margem». O realizador é já um veterano do cinema português, tendo assinado filmes como «Camarate», «Adeus, Pai» ou «Cerromaior». Foi também ele o autor do guião de «Até Amanhã, Camaradas» que foi exibido em televisão. Na verdade, com «A Outra Margem» estão lá os propósitos do autor e uma certa realização «televisiva» que faz do filme um projeto límpido e sereno. A linha narrativa do filme dedica-se a aproximar a história de duas pessoas totalmente opostas. Ricardo é um travesti que fugiu da sua terra natal para emigrar para Lisboa, abandonando a sua noiva no dia do casamento. No início da narrativa percebemos que o grande amor de Ricardo se suicidou. Ricardo entra em depressão profunda. Do outro lado, temos Vasco, um jovem adulto portador de Trissomia 21, que vive com a sua mãe Maria. Ricardo é tio de Vasco e irmão de Maria. Depois de uma tentativa de suicídio, Ricardo vai uns tempos para junto da Maria. É aí que ele é obrigado a enfrentar o passado e a conhecer Vasco. Será a sua alegria de viver que irá transformar Ricardo e dar-lhe vontade para voltar ao seu dia-a-dia. Mas também será a oportunidade para Vasco fazer o que quer: tornar-se ator.

Crítica de Cinema-A Outra Margem

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crítica de cinema «A Outra Margem»By Daniel Ribas

para além da diferença

O cinema português sempre viveu com um dilema incompreendido entre o cinema de autor e o cinema comercial. Muito da discussão desse dilema passa por um ponto fundamental do processo produtivo do cinema: o argumento. Essa etapa decisiva é motivo de discórdia. Contudo, muitas das vozes do cinema comercial acabam, na mesma, por descurar o guião e os filmes acabam por ser amálgamas frágeis de um projeto de filme. Vem esta discussão a propósito da estreia, esta semana, do mais recente filme de Luís Filipe Rocha: «A Outra Margem». O realizador é já um veterano do cinema português, tendo assinado filmes como «Camarate», «Adeus, Pai» ou «Cerromaior». Foi também ele o autor do guião de «Até Amanhã, Camaradas» que foi exibido em televisão. Na verdade, com «A Outra Margem» estão lá os propósitos do autor e uma certa realização «televisiva» que faz do filme um projeto límpido e sereno.

A linha narrativa do filme dedica-se a aproximar a história de duas pessoas totalmente opostas. Ricardo é um travesti que fugiu da sua terra natal para emigrar para Lisboa, abandonando a sua noiva no dia do casamento. No início da narrativa percebemos que o grande amor de Ricardo se suicidou. Ricardo entra em depressão profunda. Do outro lado, temos Vasco, um jovem adulto portador de Trissomia 21, que vive com a sua mãe Maria. Ricardo é tio de Vasco e irmão de Maria. Depois de uma tentativa de suicídio, Ricardo vai uns tempos para junto da Maria. É aí que ele é obrigado a enfrentar o passado e a conhecer Vasco. Será a sua alegria de viver que irá transformar Ricardo e dar-lhe vontade para voltar ao seu dia-a-dia. Mas também será a oportunidade para Vasco fazer o que quer: tornar-se ator.

O problema fulcral de «A Outra Margem» é, de facto, a estrutura narrativa. Não negamos a sinceridade da história, nem a ideia subjacente, a saber: trazer para o palco da discussão duas personagens marginais (um travesti e um mongoloide) que acabam por mostrar a sua «normalidade» (isto é, têm os mesmos problemas e as mesmas

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alegrias). Contudo, não é esse assunto «marginal» que está em causa. São, antes, os processos com que se mostram estes «temas» (ao fim e ao cabo, as formas de fazer cinema). O formato do guião parece desprezado e surge um outro formato – o mini-videoclip, que abunda demasiadas vezes durante a narrativa. Este formato – caracterizado por passagens de tempo em que, com uma música, se mostram imagens sem diálogos – descaracteriza o filme, ganhando com isso demasiadas elipses que não ajudam ao ritmo.

Porque é que achamos que estes detalhes esvaziam o filme? Porque há sinais de que tínhamos personagens com vontade de serem desenvolvidas e porque, desta forma, a narrativa estilhaça-se, isto é, não há profundidade e os acontecimentos não parecem sustentados. Numa frase: quer-se contar demasiadas coisas em tão pouco tempo. Parece mesmo que é uma potencial série de televisão comprimida num filme de hora e meia. E esses problemas estruturais são tão mais frustrantes quanto a história tem um imenso potencial. Na verdade, a personagem de Vasco é de uma riqueza impressionante e a sua presença em campo é comovedora (como são as cenas onde o grupo de teatro constituído apenas por portadores de Trissomia 21).

Enfim, num certo sentido, «A Outra Margem» padece do mesmo problema do cinema comercial português: há uma vontade forte e uma premissa bastante consistente, mas essa força é perdida na estrutura. Por exemplo, neste filme são demasiadas as sequências onde a lentidão narrativa é desesperante e há diversos planos que mereciam ser cortados mais cedo. Em boa verdade, «A Outra Margem» tem uma história encantadora e comovente, mas perde-se nos seus próprios labirintos.

«A Outra Margem» («A Outra Margem») um filme de Luís Filipe Rocha