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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ UFC FACULDADE DE EDUCAÇÃO FACED PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA LINHA MARXISMO, EDUCAÇÃO E LUTA DE CLASSES JORGE LUÍS DE OLIVEIRA O MARXISMO COMO TEORIA REVOLUCIONÁRIA NA FORMAÇÃO POLÍTICO-EDUCATIVA DOS TRABALHADORES VERSUS A FORMAÇÃO POLÍTICO-SINDICAL CUTISTA: UM EXAME ONTO-CRÍTICO Fortaleza 2012

CRÍTICO FORMAÇÃO POLÍTICO - repositorio.ufc.br · Marx, o caminho para apreender e expor essa problemática foi diferente, ou seja, partiu-se do concreto pensado, como textos,

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ – UFC

FACULDADE DE EDUCAÇÃO – FACED

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA

LINHA MARXISMO, EDUCAÇÃO E LUTA DE CLASSES

JORGE LUÍS DE OLIVEIRA

O MARXISMO COMO TEORIA REVOLUCIONÁRIA NA FORMAÇÃO

POLÍTICO-EDUCATIVA DOS TRABALHADORES VERSUS A

FORMAÇÃO POLÍTICO-SINDICAL CUTISTA:

UM EXAME ONTO-CRÍTICO

Fortaleza

2012

1

JORGE LUÍS DE OLIVEIRA

O MARXISMO COMO TEORIA REVOLUCIONÁRIA NA FORMAÇÃO

POLÍTICO-EDUCATIVA DOS TRABALHADORES VERSUS A

FORMAÇÃO POLÍTICO-SINDICAL CUTISTA:

UM EXAME ONTO-CRÍTICO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Educação Brasileira, da

Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do

Título de Doutor em Educação. Área de

concentração: Educação Brasileira. Orientadora: Professora Drª. Josefa Jackline

Rabelo

Fortaleza

2012

2

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Federal do Ceará

Biblioteca de Ciências Humanas

O47m Oliveira, Jorge Luís de. O marxismo como teoria revolucionária na formação político-educativa dos trabalhadores

versus a formação político-sindical cutista: um exame onto-crítico / Jorge Luís de Oliveira. – 2012.

345 f. , enc. ; 30 cm.

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-

Graduação em Educação Brasileira, Fortaleza, 2012.

Área de Concentração: Educação brasileira.

Orientação: Profª. Drª. Josefa Jackline Rabelo.

1. Sindicalismo – Brasil. 2.Socialismo – Brasil. 3.Trabalhadores – Atividades políticas –

Brasil. 4.Central Única dos Trabalhadores(Brasil). I. Título.

CDD 331.880981

3

O MARXISMO COMO TEORIA REVOLUCIONÁRIA NA FORMAÇÃO POLÍTICO-

EDUCATIVA DOS TRABALHADORES VERSUS A FORMAÇÃO POLÍTICO-SINDICAL

CUTISTA: UM EXAME ONTO-CRÍTICO

JORGE LUÍS DE OLIVEIRA

APROVADA EM 16 / 05/ 2012

BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Josefa Jackline Rabelo (Orientadora)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

___________________________________________________________________________

__Profª. Pós-Drª. Susana Vasconcelos Jimenez

Universidade Estadual do Ceará (UECE)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

___________________________________________________________________________

_Profª. Drª. Cristiane Porfírio de Oliveira do Rio

Faculdade do Ceará (FAC)

Profª. Drª. Betânia Moreira de Moraes

Universidade Estadual do Ceará (UECE)

Profª. Drª. Maria das Dores Mendes Segundo

Universidade Estadual do Ceará (UECE)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

4

Ao Vovô Luiz e Vovó Raimunda (in

memorian) e à minha Mãe.

Aos meus queridos avós do século passado,

semianalfabetos, que chegaram a Fortaleza nos

anos 1950, vindo de Areia Branca/RN, de

barco, com nove filhos/as para ter uma vida

melhor, dando-lhes educação escolar que eles

não tiveram num lugar tão longínquo. Ao meu

avô, que começou a trabalhar aos sete anos,

pescando no rio para sustentar sua mãe, junto

com mais dois irmãos e uma irmã que não

conheceram o pai. À minha avó, uma mulher

de fibra, que perdeu três filhos de onze, sendo

dois no final dos anos 1930: José, com meses

de vida, devido a uma queda de rede, Socorro

que morreu aos dois anos por causa de uma

bolhinha no pé, devido à escassez de médicos

em Areia Branca, e outro, com 23 anos, devido

à violência urbana. Uma mulher que passei a

amar profundamente nos últimos anos de sua

vida, dando-lhe assistência presencial e todo

meu afeto, da qual jamais esquecerei até o fim

de minha vida.

E, por fim, à minha querida Mãe, que sempre

me incentivou nos estudos, dando todo apoio

financeiro possível, buscando bolsas de

estudos para minha formação no ensino

escolar e curso de inglês. Uma mulher que

poderia ter ido longe nos estudos, pois tirou o

primeiro lugar, estudando com Lirycce Porto,

para fazer o ginásio no Colégio São

João,sendo reportagem no jornal da época

(1955?).

5

AGRADECIMENTOS

À minha família, pelo apoio incansável, ensinando-me os primeiros passos para a vida e a ser

persistente na minha trajetória intelectual, em especial, à minha mãe, que me incentivou a

estudar desde a minha infância até hoje.

Ao professor Dr. Eduardo Ferreira Chagas, a quem agradeço a contribuição intelectual, desde

a revisão e prefácio do meu primeiro livro Alienação, Trabalho e Emancipação Humana em

Marx, além de meu artigo, “A importância do marxismo na formação educativa sindical”, do

livro Filosofia em Onze Atos, até na maior parte da minha orientação da Tese de Doutorado

em Educação.

À minha orientadora de mestrado em Filosofia, Professora Pós-Doutora Mirtes Miriam

Amorim Maciel, por quem tenho um verdadeiro apreço e respeito humano e que sempre

apostou na minha capacidade intelectual, mesmo depois do final de defesa de minha

dissertação.

À Professora Drª. Josefa Jackline Rabelo, que foi minha coorientadora na minha primeira fase

do Doutorado em Educação Brasileira e que se tornou nessa última fase minha orientadora,

dando as orientações finais para a conclusão desta Tese.

À Professora Pós-Doutora Susana Vasconcelos Jimenez, que apostou na minha capacidade

intelectual para desenvolver esta pesquisa, ao me aprovar para o Concurso de Doutorado em

Educação Brasileira, sempre reconhecendo os pontos positivos das minhas reflexões

intelectuais.

À Professora Drª. Cristiane Porfírio de Oliveira do Rio, que me deu sugestões de leituras

importantes para o desenvolvimento desta pesquisa, fazendo suas averiguações na minha

segunda qualificação, já que a mesma é especialista em movimento sindical.

À Professora Drª. Betânia Moreira de Moraes, por ter aceitado o convite para participar da

Banca da minha Tese.

À Professora Drª Maria das Dores Mendes Segundo, por sempre ter me motivado a ir em

frente nesta pesquisa e também por ter aceitado o convite para participar da Banca da minha

Tese.

Aos meus amigos e amigas, do SINTSEF-CE e da Base Aérea de Fortaleza, que sempre

tiveram confiança na minha capacidade intelectual de desenvolver raciocínios críticos e, às

vezes, severos sobre o movimento sindical, mas que sempre estão ao meu lado para o que der

e vier.

Aos meus amigos e minhas amigas, do passado e presente, que sempre tiveram uma grande

afeição à minha pessoa e admiração pela minha perseverança de sempre seguir em meus

estudos, como também aos meus amigos e amigas do curso de Doutorado em Educação que

contribuíram para o aprimoramento de minhas reflexões.

E por fim, ao IMO – Instituto do Movimento Operário do Ceará –, que me impulsionou a

fazer o Mestrado em Filosofia em 2002, a partir de um curso de Marxismo realizado no meu

sindicato (SINTSEF-CE), em 2001, com os professores José Ferreira Alencar, Auto Filho,

Francisco Teixeira e Susana Jimenez.

6

[...] a classe operária não deve exagerar a seus

próprios olhos no resultado final dessas lutas

diárias. Não deve esquecer de que luta contra

os efeitos, mas não contra as causas desses

efeitos; que logra conter o movimento

descendente, mas não fazê-lo mudar de

direção, que aplica paliativos, mas não cura a

enfermidade. Não deve, portanto, deixar-se

absorver exclusivamente por essas inevitáveis

lutas de guerrilhas, provocadas continuamente

pelos abusos incessantes do capital ou pelas

flutuações do mercado. A classe operária deve

saber que o sistema atual, mesmo com todas as

misérias que lhe impõem, engendra

simultaneamente as condições materiais e as

formas sociais necessárias para uma

reconstrução econômica da sociedade. Em vez

do lema conservador de ‘Um salário justo

para uma jornada de trabalho justa!’, deverá

inscrever na sua bandeira esta divisa

revolucionária “Abolição do sistema de

trabalho assalariado!”

(Karl Marx)

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RESUMO

A Tese trata do Marxismo como uma teoria revolucionária na formação política sindical dos

trabalhadores. O objetivo é investigar e expor a relação entre marxismo e movimento sindical

a partir dos cursos de formação política. Nesse sentido, a formação polít ica da CUT foi

tomada como ilustração para este estudo, já que esta Central Sindical se propõe a representar

um sindicalismo socialista, classista e combativo. A pesquisa é teórica, bibliográfica, cuja

metodologia é o método de conhecimento de Marx: a investigação e a exposição da realidade.

Já que a realidade é o ponto de partida para ser exposto no plano da idealidade, segundo

Marx, o caminho para apreender e expor essa problemática foi diferente, ou seja, partiu-se do

concreto pensado, como textos, livros, teses, dissertações e documentos, para se chegar a

conclusões plausíveis. Portanto, se a teoria marxiana é importante e imprescindível para

formar o sujeito revolucionário ao capitalismo, é preciso defender a sua validade e atualidade.

Para isso, o primeiro capítulo explicita as bases fundamentais do marxismo, a saber, o método

de conhecimento, a concepção de trabalho e a política em Marx, desconhecidas pela maioria

dos trabalhadores sindicalizados. O segundo capítulo busca relatar a relação entre marxismo e

movimento sindical, apresentando a concepção marxista de sindicato, a crise entre marxismo

e movimento sindical a partir das crises das Internacionais, da crise teórica dentro do

marxismo e da crise e derrocada do socialismo soviético e, por fim, a ofensiva neoliberal e o

recuo do movimento sindical enquanto expressão da debilidade teórica e prática dos

trabalhadores. Para entender esse ateoricismo e acriticismo marxista dos trabalhadores, o

terceiro capítulo aprofunda a discussão sobre a questão da importância do marxismo na

formação humana como instrumento de revolução da consciência proletária para a revolução

social. De tal modo que foi preciso expor a concepção de formação humana em Marx, a

formação educativa como instrumento dessa revolução ideológica para e pelo socialismo,

quer dizer, esclarecendo a concepção de socialismo e comunismo em Marx, Engels e

seguidores. O quarto capítulo ilustra essa relação entre marxismo e movimento sindical a

partir da formação sindical cutista. Foi necessário historiar sucintamente a formação sindical

no Brasil desde o sindicalismo livre, passando pelo sindicalismo corporativo do Estado Novo,

até o Novo Sindicalismo que se concretizou na criação da CUT. Foi feito um breve histórico

sobre o surgimento e a trajetória da CUT, com suas estratégias e táticas modificadas, a partir

das resoluções congressuais e sua repercussão na Política Nacional de Formação (PNF) e no

Plano Nacional de Qualificação Profissional (PNQP). A pesquisa mostra que os

trabalhadores, ligados à maior Central Sindical da América Latina e à quinta do mundo

(CUT), não tiveram uma formação contínua no campo dos fundamentos marxistas para

entender os limites da luta no capitalismo e suas contradições socioeconômicas. Isso denota a

sonegação do marxismo nos cursos de formação política, pelo sindicalismo dito de esquerda,

enquanto legado teórico de compreensão da crise estrutural do sistema do capital e do

socialismo, como também denota um sindicalismo “antimarxista”.

Palavras-Chave: Marxismo. Movimento sindical. Formação política. Socialismo.

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ABSTRACT

This thesis deals with Marxism as a revolutionary theory in the union trade political formation

of workers. Its objective is to investigate and expose the relationship between Marxism and

the union trade movement from the political formation courses. In this sense, CUT’s political

formation was taken as an illustration to this study, since the Trade Union Central intends to

represent a socialist, class, militant unionism. The research is theoretical, bibliographic and its

methodology relies in Marx’s knowledge method: the investigation and exposition of reality.

According to Marx, since reality is the starting point to be exposed in terms of ideality, the

way to learn and to expose this issue was different, meaning that it originated from concrete

thought such as texts, books, theses, dissertations and documents, in order to reach plausible

conclusions. Therefore, if the Marxist theory is important and indispensable to form the

revolutionary subject against capitalism, it’s necessary to protect both its validity and

timeliness. In order to achieve this, the first chapter explains the fundamentals of Marxism,

namely Marx’s knowledge method, concept of work and politics, which are unknown to the

majority of the unionized workers. The second chapter aims to report on the relationship

between Marxism and the trade union movement, presenting the Marxist trade union, the

crisis between Marxism and the trade union movement from the international crises, the

theoretical crisis within Marxism, the Soviet socialism’s crisis and collapse, and finally the

neoliberal offensive with the retreat of the union movement as an expression of the workers'

theoretical and practical weaknesses. To understand this lack of Marxist theoreticism and

criticism by workers, the third chapter deepens the discussion on the matter of the importance

of Marxism human formation as a proletarian consciousness revolution instrument towards

social revolution. It is such that it was necessary to expose Marx’s conception of human

formation, the educational formation as an instrument for this ideological revolution by and

for socialism, which means, to clarify the concepts on socialism and communism by Marx,

Engels and their followers. The fourth chapter illustrates the relationship between Marxism

and the trade union movement from CUT's trade union formation. It was necessary to briefly

chronicle the union formation in Brazil ever since the free trade unions, through the corporate

unionism of the New State, up to the New Unionism which has resulted in the creation of

CUT.A brief history report was conducted about the emergence and path of CUT, with its

changed strategies and tactics, from congressional resolutions and its impact on the National

Policy on Education (PNF) and the National Professional Qualification (PNQP). Research

shows that the workers linked to the greatest Central Trade Union of Latin America and the

fifth of the world (CUT) had no continuous formation in the field of Marxism fundamentals to

understand the struggle limitations against capitalism and its socioeconomic contradictions.

This denotes the Marxism withholding in political formation courses by the so-called leftist

unions, as an understanding theoretical legacy on the structural crisis of both capitalist and

socialist systems, as well as it denotes an anti-Marxist unionism.

Keywords: Marxism. Union trade movement. Political formation. Socialism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................... 10

CAPÍTULO 1 – AS BASES FUNDAMENTAIS DO MARXISMO

1.1 A Importância do Método de Marx...................................................................... 24

1.2 O Trabalho como Fundamento da Realidade Social............................................ 46

1.3 A Política: Consciência de Classe e Luta de Classes em Rumo ao Socialismo.. 70

CAPÍTULO 2 – MARXISMO E MOVIMENTO SINDICAL

2.1 A Concepção Marxista de Sindicato: Marx, Engels, Rosa, Lênin e Trotsky....... 100

2.2 A Crise entre Marxismo e Movimento Sindical................................................... 130

2.3 A Ofensiva (Neo)liberal e o Refluxo do Movimento Sindical............................. 158

CAPÍTULO 3 – O MARXISMO NA FORMAÇÃO HUMANA COMO

INSTRUMENTO DE REVOLUÇÃO PARA E PELO SOCIALISMO-

COMUNISMO

3.1 Concepção de Formação Humana em Marx........................................................ 199

3.2 Formação Educativa como Instrumento de Revolução........................................ 208

3.3 Formação Educativa para e pelo Socialismo-comunismo.................................... 229

3.3.1 O socialismo...................................................................................................... 229

3.3.2 O comunismo.................................................................................................... 236

CAPÍTULO 4 – MARXISMO E FORMAÇÃO SINDICAL CUT

4.1 Marxismo e Formação Sindical CUT – Introdução............................................. 244

4.2 A Política de Formação Sindical no Brasil no Início do Século XX................... 247

4.3 O Surgimento e a Trajetória da CUT: um Breve Histórico.................................. 256

4.4 A Política Nacional de Formação da CUT: da Formação da Consciência

Política à Formação Profissional Cidadã............................................................. 267

CONCLUSÃO........................................................................................................ 314

REFERÊNCIAS..................................................................................................... 334

10

INTRODUÇÃO

11

A presente pesquisa, desenvolvida no âmbito da linha “Marxismo, Educação e Luta de

Classes”, resultou da curiosidade pessoal de entender o porquê da classe trabalhadora ainda

pautar a sua consciência e ação sindical dentro dos marcos do sistema capitalista, ou seja, o

porquê dos trabalhadores não conseguirem desenvolver uma ação revolucionária de combate

ao sistema capitalista de opressão da humanidade e de degradação da natureza, do planeta, a

partir de sua União. Tendo todo um legado teórico-prático de crítica e denúncia do

capitalismo feito pelo marxismo, a partir de seus fundadores Marx e Engels e seguidores, seja

do ponto de vista ético, histórico, econômico, político, sociológico e mesmo ecológico, por

que a classe trabalhadora não tem tido acesso, de forma sistemática, correta e contínua, a esse

conhecimento “científico”, método de análise, para compreender a sua situação histórica

alienante e, assim, modificá-la a partir da construção de um novo processo de

desenvolvimento social? Eis, pois, a minha primeira indagação enquanto pesquisador. O interesse pela temática da relação entre “Marxismo e Movimento Sindical” é

consequência da experiência de quem viveu e ainda vive o sindicalismo no Serviço Público

Federal (SINTSEF-CE) desde 1989, no qual não percebeu o desenvolvimento teórico-prático

desses trabalhadores a partir do marxismo (com raríssimas exceções), mesmo que, em alguns

momentos, a formação política tenha sido dada em bases marxistas no começo dos anos 1990

pela CUT/CE-IMO e, posteriormente, somente pelo SINTSEF/CE-IMO em 2001. De todo

modo, tais cursos de formação marxista não foram suficientes para formar quadros teóricos

sólidos que pudessem ser antitéticos à burocracia e ao corporativismo sindical e, sobretudo, à

ideologia do capital (neoliberalismo); esclarecendo, pois, que não houve a continuidade dessa

formação. Também é resultado da minha inserção no campo dos fundamentos do marxismo, a

partir do curso de Mestrado em Filosofia, no qual comecei a ler algumas obras de Marx, da

juventude à maturidade, para dissertar sobre “Emancipação Humana em Marx”. Com certeza,

tais experiências me impulsionaram a ampliar a minha área de conhecimento, de modo que

me senti desafiado a desenvolver outro ponto de discussão de caráter mais pedagógico que é

“o marxismo como teoria crítico-revolucionária na formação educativa sindical dos

trabalhadores”. O objetivo da pesquisa, portanto, é perceber qual é a relação entre marxismo e

movimento sindical, ou melhor dizendo, qual é a relação entre marxismo e formação política

sindical. Este foi o ponto de partida para o desenvolvimento desta tese, visando observar,

perceber e relacionar práxis sindical com a ciência marxiana enquanto subsídio teórico-

metodológico da luta dos trabalhadores.

A partir dessa inquietação intelectual, outras questões foram surgindo para construir o

caminho de investigação e de exposição da temática, tendo como parâmetro o método de

12

conhecimento de Marx, a saber, pesquisar o objeto de estudo em suas múltiplas determinações

e descrever o seu movimento real no plano ideal. Nesse sentido, o fundamento para pensar

esta temática é a realidade, ou seja, enfatizar o primado do real sobre a consciência,

justamente por ser o real o critério da verdade. Em outras palavras, o objeto de estudo nos

fornece pistas de como ele se apresenta na realidade e o sujeito pesquisador informa à

subjetividade as determinidades do objeto com seu filtro de apreensão. Assim sendo, a

realidade possui sua lógica intrínseca própria que precisa ser apreendida e compreendida no

seu movimento, na sua totalidade, na sua contradição e nas suas íntimas conexões. Embora

“conhecer” e “ser” sejam distintos, mas formam uma unidade. Como diz Marx, em Para a

Crítica da Economia Política, é o objeto de conhecimento que vai definindo os passos que o

pesquisador deve fazer para atingir a sua cognoscibilidade. Esta é a nossa proposta teórico-

metodológica de pesquisa.

Como o nosso objeto de estudo é perceber a relação entre marxismo e movimento

sindical, a partir da formação política planejada pela CUT, então colocamos algumas questões

centrais para nos guiar nesta pesquisa. Senão vejamos: O marxismo é ainda um conhecimento

(uma teoria, método ou doutrina) atual, válido, que ainda pode auxiliar os trabalhadores a

compreenderem a sua situação histórica de exploração no capitalismo? Se sim, por que o

movimento sindical em geral abandona a teoria marxiana de análise da sociedade capitalista,

tornando-se um movimento de colaboração com o capital? A crise do movimento sindical (de

lideranças) não estaria relacionada à falta de uma formação mais revolucionária no campo do

marxismo, cujo resultado é um discurso sindical confuso e perdido teoricamente, e, portanto,

não apenas uma crise relacionada às questões estruturais/conjunturais do mundo do trabalho?

Por causa da precariedade teórica marxista revolucionária entre várias lideranças sindicais,

não estaria o movimento sindical suscetível às capitulações e à inércia política quando limita a

luta sindical à condição meramente economicista-salarial sem imprimir nela a luta política? A

“desideologização”, a “despolitização” e a ausência de uma utopia anticapitalista tornaram o

movimento sindical mais sensível às cooptações patronais?1 A falta de um discurso

antagônico ao capital, a partir do marxismo, por parte dos dirigentes sindicais, não levou os

trabalhadores a permanecerem numa luta corporativista, ateórica e acrítica ao capital, ou

melhor, levou-os a um rebaixamento teórico e/ou a um acriticismo político face ao capital?

Tais questões nos levaram a percorrer o caminho da investigação teórica,

1 “Desideologização” e “despolitização” entre aspas indicam que, na verdade, não há uma desideologização ou

despolitização no sentido pleno da palavra, mas ao contrário, há uma ideologização e politização dos

trabalhadores em sentido contrário à sua ideologia de classe.

13

bibliográfica, para esclarecer, dentro do possível, essa problemática, já que averiguar a

relação entre Marxismo e Movimento Sindical, a partir da pesquisa empírica ou de campo,

fica mais difícil de realizar, devido ao tempo limitado para a sua conclusão e à falta de

recursos financeiros, dentre outras coisas. Por isso, delimitamos abordar teoricamente a

temática nos marcos do Plano Nacional de Formação da CUT, como sendo ilustrativo para

perceber e analisar a relação entre o Marxismo e o Movimento Sindical no campo da

formação política. Sendo a maior Central Sindical de “esquerda” da América Latina e a quinta

do mundo, acreditamos que a CUT possa refletir essa realidade de “relação” ou “não” entre

Marxismo e Movimento Sindical. Sabemos que o real é o ponto de partida para se formar as

abstrações razoáveis na forma de conceitos, categorias, já que estas são ontologicamente

formas de existir do ser, do objeto, possibilitando-nos fazer o caminho inverso da viagem para

o desvendamento da lógica das coisas; mas entendemos que os estudos realizados sobre esse

tema, a partir da leitura de livros, documentos, teses e dissertações, nos permitiram chegar a

conclusões plausíveis sobre as questões postas durante o percurso de desenvolvimento da

Tese. De qualquer forma, os livros ou documentos não deixam de refletir a realidade concreta

estudada pelos autores em suas áreas específicas; e a análise desses estudos nos poupa de

realizar uma pesquisa empírica na qual teríamos quase as mesmas apreensões e percepções, já

refletidas nas nossas experiências do cotidiano sindical. Seria o mesmo que extrair novamente

a universalidade da particularidade já amplamente pesquisada em sua singularidade, ou seja,

repetir o já pesquisado. Ler o concreto pensado, como diz Chasin, é também uma escavação

do objeto enquanto possibilidade de outras prospecções, como leitura imanente.

Tomamos como base teórica, para validar e atualizar o pensamento marxista, os

autores clássicos, seus comentadores e intérpretes; como também os autores contemporâneos

que analisaram o pensamento sindical de Marx e Engels, o movimento sindical na história, a

trajetória da CUT e seus planos de formação política etc. Apoiamo-nos, portanto, no

referencial teórico de Marx, Engels, Lênin, Rosa Luxemburgo, Trotsky enquanto clássicos e

de seus comentadores (Gramsci, Suchodolski, Lukács etc.); como também nos estudos feitos

pelos autores contemporâneos como Hobsbawm, Mészáros, Chenais, Boito Jr., Jácome

Rodrigues, Martins Rodrigues, dentre outros.

Partimos, então, do pressuposto de que os trabalhadores enquanto agentes

potencialmente revolucionários só poderão ser agentes transformadores da história humana, se

eles conhecerem a realidade capitalista, ao qual estão subsumidos, em suas múltiplas

determinações. Esse conhecimento não pode ser o puramente perceptivo-emocional ou

imediatista, nem mesmo o puramente racional, mas o teórico-metodológico, em que teoria e

14

prática se medeiam como práxis na história, isto é, a partir do materialismo histórico e

dialético. Nesse sentido, o desconhecimento da teoria marxiana pela maioria dos

trabalhadores faz com que eles só desenvolvam a luta corporativa, artesanal, objetivando

apenas auferir aumento em seus soldos, conquistas de direitos sociais e melhores condições de

trabalho, mas dentro da concessão capitalista, ou melhor, dentro de uma conjuntura favorável

de expansão e acumulação do capital, caso contrário, os trabalhadores ficam acuados em sua

luta cotidiana em tempos de recessão. Disso decorre, geralmente, certa apatia, aparticipação e

até mesmo rejeição à luta sindical por parte dos trabalhadores, justamente por não

compreenderem o objetivo final da luta, nem os seus limites, mas apenas a sua condição

imediatista. Como no cotidiano da luta sindical pouco se ganha, a descrença e a falta de

engajamento da maioria dos trabalhadores acabam enfraquecendo a luta sindical que faz parte,

ou pelo menos deveria fazer, da luta pela emancipação humana.

Tal situação nos levou a outra questão relevante, ou seja: a ausência do marxismo na

formação política é responsável, em larga medida, pela precariedade teórica e prática

ambivalente dos trabalhadores no movimento sindical para o desenvolvimento de uma

consciência emancipatória de classe? Noutras palavras, poderíamos desdobrar essa questão

em outras três, a saber: na formação política sindical, o conhecimento do marxismo enquanto

teoria ou método de reflexão poderia tornar a práxis sindical dos trabalhadores menos

economicista, corporativista e, portanto, mais política, para anteverem uma nova concepção

de sociedade antagônica ao capitalismo? A teoria marxista por si só levaria a uma mudança

mais radical no comportamento dos trabalhadores face à constante ofensiva do capital? Ou o

aprendizado teórico e prático poderia ocorrer simultaneamente no processo da luta?

Problematizando o estado da questão, observamos que o movimento sindical está,

predominantemente, ignorando o marxismo enquanto teoria revolucionária dos trabalhadores

da sociabilidade capitalista devido a um conjunto de fatores: 1) a chamada crise do marxismo

como a crise e quase completa desintegração dos movimentos políticos que professavam

lealdade à concepção marxiana de socialismo (MÉSZÁROS, 2002); 2) crise do socialismo

como decorrência da stalinização do projeto socialista original que refletia em detalhes,

conforme Mészáros, a estrutura do comando do capital, liquidando a memória dos legítimos

objetivos socialistas; 3) crise sindical como consequência da crise de lideranças, do

pragmatismo e burocratismo sindical, do sindicalismo propositivo em detrimento do

sindicalismo combativo, do desemprego estrutural, da dessindicalização, do declínio do

número de greves realizadas, da reestruturação produtiva, da “despolitização” e

“desideologização” da luta etc.; e por fim, 4) crise estrutural do sistema do capital, como

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corolário das recessões periódicas ou contínuas, que trouxe o projeto neoliberal em

substituição à política keynesiana do Estado de bem-estar social, ou seja, o Estado “mínimo”

e a ascensão do mercado, com apoio estatal, como regulador das relações sociais de produção,

restringindo o movimento sindical às lutas de caráter defensivo dos empregos e direitos

trabalhistas, ou melhor, às lutas setoriais e institucionais, fragmentando e pulverizando a luta

dos trabalhadores etc. A conexão desses fatores, associados a uma formação política sindical

não marxista, contribuiu para desencadear o sindicalismo economicista, propositivo, portanto,

não combativo e “despolitizado”, liquidando a luta de classes e optando, assim, pela linha da

menor resistência. Ora, se o desconhecimento das contradições (insolúveis) do sistema

capitalista pelos trabalhadores produz esse tipo de comportamento sindical, que aconteceria se

eles tivessem conhecimento da teoria marxista como reveladora desse antagonismo social?

Para entendermos as questões colocadas anteriormente, e submetermos à defesa esta

Tese, estruturamos o texto em quatro capítulos.

O primeiro capítulo, As bases fundamentais do marxismo, tem como objetivo

mostrar a validade e a importância do pensamento de Marx/do marxismo para a luta dos

trabalhadores, expondo seu método, sua concepção onto-histórica de trabalho como

protoforma do ser social e sua reflexão sobre a política. Em outras palavras, visamos resgatar

a atualidade e a profundidade do pensamento de Marx, fazendo a defesa do marxismo como

instrumento analítico fundamental para os trabalhadores perceberem e se contraporem à

condição histórica de sua exploração laboral nos marcos do capitalismo. Dividimos este

capítulo em três seções.

A seção – A importância do método de Marx – explicita o seu método de análise,

apresentando uma proposta de conhecimento, baseada nos princípios da contradição, da

negação, da totalidade, enfim, objetivando fornecer as condições de possibilidade de

conhecimento da realidade social, a partir da ideia de movimento dialético, pois a realidade

não é estática, mas sim movimento na/da materialidade histórico-social, como “negação da

negação” enquanto “nova afirmação” ou “superação” do que está caducando historicamente.

Nesse sentido, compreender o método de Marx e aplicá-lo na análise da realidade social é

conditio sine qua non para a luta política dos trabalhadores contra a exploração dos

capitalistas. A exposição do método de Marx é também uma forma de desmistificar as

ciências especializadas que fragmentam a realidade social em particularidades específicas sem

fazer relação com a totalidade. A importância do método de Marx, segundo Lukács, em

Existencialismo e Marxismo, é que ele permite determinar se uma crise grave do capitalismo

pode tornar-se fatal em determinadas circunstâncias concretas. Vale dizer que para discorrer

16

sobre o método de conhecimento de Marx, tivemos que garimpar trechos reflexivos em O

Capital, Para a Crítica da Economia Política, Manuscritos Econômico-Filosóficos,

Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, A Sagrada Família, Teses sobre

Feuerbach dentre outros, como também nas obras específicas de Engels, Lênin e Lukács.

A seção – O trabalho como fundamento da realidade social – visa reafirmar o

trabalho como uma atividade inalienável do homem, condição de sua eterna relação

metabólica com a natureza e os outros homens, para reprodução de sua espécie enquanto

gênero humano em todas as formas histórico-sociais. Outrossim, denuncia o caráter negativo

do trabalho na sua forma de trabalho alienado, estranhado e abstrato, como negação do ser

humano em seu existir, a partir de uma história construída sob a exploração do homem pelo

homem. O objetivo é desmistificar a forma de trabalho no capitalismo, antevendo, a partir de

um ato consciente da classe trabalhadora, uma nova forma de atividade humana que resgate

seu ser genérico enquanto ser de liberdade, de criação e de realização individual. Em seguida,

fazemos uma inversão do que seja o trabalho “não alienado/estranhado” a partir dos

Manuscritos Econômico-Filosóficos. A finalidade, portanto, é denunciar o trabalho em sua

expressão negativa no capitalismo e anunciar a sua condição positiva numa sociabilidade de

produtores associados, pois, infelizmente, não percebemos esta reflexão marxista no

movimento sindical. A crítica sindical se reduz a uma crítica moral dos baixos salários e

condições de trabalho, sem a perspectiva crítica, materialista-dialética, do capitalismo que

possa determinar as causas da crise estrutural do capital no interior de uma totalidade social.

Por outro lado, em O Capital, explicitamos o duplo caráter do trabalho abstrato e concreto que

produzem valor e valor de uso; como também apresentamos os componentes fundamentais do

processo de trabalho: trabalho, matéria-prima e instrumentos de trabalho. Complementando a

análise, tomamos Lukács, em As bases ontológicas do pensamento e da atividade, para

analisar o caráter ontológico do trabalho no processo de formação social a partir de Marx, ou

seja, seu desvelamento e aperfeiçoamento.

A seção – A política: consciência de classe e luta de classes em rumo ao socialismo

– apresenta a crítica de Marx à política liberal-burguesa, isto é, ao aperfeiçoamento do Estado

burguês e à sua política de dominação. Noutras palavras, buscamos desmistificar o caráter

“democrático” do Estado burguês e sua política de formação do cidadão. Aqui temos uma

reflexão profunda que contrasta com o tipo de política sindical atual que visa fazer a política

cidadã, sem combater o capitalismo que produz as mazelas sociais a partir de suas

contradições. Para isso, apreendemos as reflexões políticas de Marx/Engels em Contribuição

à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Glosas Críticas, A Questão Judaica, As Lutas de

17

Classes na França, 18 Brumário de Luís Bonaparte, A Guerra Civil na França, Crítica ao

Programa de Gotha e Manifesto do Partido Comunista. Pelo menos quatro categorias fazem

parte do desenvolvimento teórico-político de Marx: o Estado moderno, a sociedade civil, a

emancipação humana e o socialismo. Para Marx, o entendimento político é entendimento

político, porque pensa dentro dos limites da política (burguesa). No entanto, três perguntas se

nos impõem: a classe trabalhadora tem hoje consciência do objetivo final da sua luta histórica

que é a emancipação humana? Ela percebe a contradição entre o social e o político como algo

inconciliável? E que ela é a classe antagônica a essa base social? Desse modo, tentamos

demonstrar com Marx que se torna improfícuo a luta política do Estado moderno em

combater as mazelas sociais, porque sua natureza é contraditória e os limites de sua ação

esbarram nos interesses do capital, pois os “libertadores políticos”, como diz Marx, reduzem a

cidadania e a comunidade política ao meio de preservar os direitos dos homens, mas sem

realizá-los plenamente na prática. Quebra-se, portanto, o aspecto revolucionário das

reivindicações sociais dos trabalhadores, pois estes se infectaram com os princípios

democráticos burgueses.

O segundo capítulo, Marxismo e movimento sindical, objetiva relacionar marxismo

e movimento sindical, a partir de três pontos de discussão: uma discussão teórico-prática

sobre a concepção de sindicato nos clássicos do marxismo, uma discussão político-ideológica

sobre a crise entre marxismo e movimento sindical e uma discussão político-prática sobre a

ofensiva neoliberal e o recuo do sindicalismo. Analisamos o processo histórico do movimento

sindical desde o fim do século XIX, com suas tendências ao sindicalismo revolucionário, até o

final do século XX, com suas tendências para o sindicalismo mais reformista. Também

dividimos o capítulo em três seções que se complementam em suas análises e nos dão um

parâmetro crítico-reflexivo sobre o que foi e como está sendo o movimento sindical surgido

no campo da luta pelo socialismo.

A seção – A concepção marxista de sindicato em Marx, Engels, Rosa, Lênin e

Trotsky – explicita como esses clássicos entenderam o papel do sindicato no processo de

evolução da luta de classes dos trabalhadores, apontando seus limites, contradições e

estratégias e táticas de atuação econômica e política. Com Marx e Engels, apreendemos essa

reflexão, sobretudo, nas obras Miséria da Filosofia, Manifesto do Partido Comunista e A

Situação da Classe Operária na Inglaterra, como também em alguns textos da Associação

Internacional dos Trabalhadores (AIT). O que vai caracterizar essa discussão sobre o papel do

sindicato no processo da luta emancipatória dos trabalhadores é a sua União e Ação Política.

Também eles desmistificam o caráter da luta meramente econômica, apontando a

18

contraposição entre salário e lucro e denunciando as péssimas condições de trabalho na esfera

da produção; além, claro, das violentas leis criadas para criminalizar as coalizões operárias. Já

com Rosa, Lênin e Trotsky, recuperamos o caráter político da luta sindical, a importância do

papel da teoria para dar significado prático à luta dos trabalhadores, o sentido da greve geral

(greve de massas) e da greve política para a educação revolucionária e o desenvolvimento da

luta de classes. O objetivo é mostrar, e contrastar com o que vemos hoje, o que é e como se

forma a consciência de classe, o que ensina a luta sindical ao trabalhador, o significado das

greves, as tarefas e o papel do sindicato e a fusão da luta econômica com a política.

A seção – A crise entre marxismo e movimento sindical – aborda tanto a chamada

crise no marxismo como a crise no movimento sindical, ou seja, uma crise que provoca uma

crise de relação entre teoria e prática. Com relação à crise do e no marxismo, apresentamos os

momentos históricos em que ela se originou e suas consequências, como a crise nos

movimentos político e sindical que professavam lealdade ao marxismo enquanto teoria,

método ou doutrina. Assim, apontamos três momentos históricos que desencadearam a crise

nos movimentos marxistas e, em particular, o distanciamento do movimento sindical das

ideias de Marx: Crise da II Internacional, Crise do stalinismo e Fim do “socialismo real”.

Também, damos ênfase à crise no interior do marxismo enquanto crise teórica sobre a

atualidade e validade das ideias de Marx (do marxismo tradicional), denominados de

revisionismo ou pluralismo que fragmentou o Movimento Comunista Internacional. Com

relação ao movimento sindical, a repercussão da crise do e no marxismo foi sintomática, pois

essa relação teórico-prática ficou abalada. Portanto, explicitamos o distanciamento ou

abandono dos movimentos sindicais em relação à teoria marxista, a partir da derrocada do

socialismo soviético, cujo resultado foi a “desideologização” e desmarxianização da luta

sindical, pois o ceticismo, relativismo e pragmatismo contaminaram, em geral, o movimento

sindical.

A seção – A ofensiva (neo)liberal e o refluxo do movimento sindical – trata de

como o neoliberalismo, a reestruturação do capitalismo na produção e no sistema financeiro

mundial, enfraqueceu o poder sindical. O propósito é traçar a relação entre neoliberalismo e

recuo do movimento sindical a partir de algumas análises estruturais e conjunturais. De início,

mostramos a filosofia da doutrina liberal clássica, sua forma política e ação econômica, a

partir da concepção de direito natural, em Hobbes, Locke e Stuart Mill, que fundamenta os

pressupostos filosóficos e políticos do liberalismo, fazendo a posteriori uma diferenciação

entre o pensamento liberal clássico e o neoliberalismo. Em seguida, apresentamos, a partir de

vários estudiosos do movimento sindical, da globalização e do neoliberalismo, a relação

19

conflituosa, tensa e de cooperação forçada entre neoliberalismo e movimento sindical, como

também os fatores que acarretaram o enfraquecimento do sindicalismo mundial. Nesse

ínterim, mencionamos algumas teses de autores que negam a centralidade do trabalho como

Gorz, Kurz e Habermas, confrontando este último com Lukács. Discorremos brevemente

como ocorreu o advento do neoliberalismo no Brasil e na América Latina, as crises

financeiras dos anos 1990 na Ásia e América Latina, como também a crise estrutural do

capital, e suas consequências para o mundo do trabalho. Tomamos a CUT e a Força Sindical

como ilustração para comparar a ação sindical destas duas Centrais que ficaram ou numa

postura defensivista ou de conciliação com o neoliberalismo. O objetivo é, pois, apropriar-se

desses fatos e das teses sobre eles e mostrar que o enfraquecimento do movimento sindical

não é só resultado da conjuntura e reestruturação do capital, mas da ausência de uma

estratégia teórico-prática do movimento sindical face à ofensiva do capital no campo do

marxismo.

O terceiro capítulo, O marxismo na formação humana como instrumento de

revolução para e pelo socialismo-comunismo, visa compreender a formação humana e

educativa em Marx, enquanto instrumento de revolução, para a emancipação. O objetivo é

fazer uma correlação com o tipo de formação política que é dado hoje pelo movimento

sindical CUT, que foi a expressão mais emblemática no campo do sindicalismo classista. Daí

extrairmos de Marx a sua concepção de formação humana e educação política para formar o

sujeito revolucionário e antagônico ao capitalismo. Tomamos Gramsci e Suchodolski para

ampliar essa reflexão e explicitamos, em seguida, a concepção de socialismo e comunismo em

Marx e Lênin. Enfim, o objetivo é perceber o contraste entre formação política marxista e

formação política cutista, sendo esta última uma negação do marxismo. Vejamos as seções

que se articulam neste capítulo.

A seção – Concepção de formação humana em Marx – expõe in nuce os tipos de

formação humana desde a Grécia Antiga, passando pela Idade Medieval, até chegar à Idade

Moderna e Contemporânea. Tomamos como parâmetro de formação e/ou educação humana

algumas reflexões de Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista, Manuscritos

Econômico-Filosóficos e n’A Ideologia Alemã, isto é, a educação revolucionária, a formação

do “ser genérico” do homem e a formação do ser social a partir das relações materiais de

produção.

A seção – A formação educativa como instrumento de revolução – tem como foco

a formação política e/ou intelectual do proletário em Gramsci e as concepções de ensino e

educação em Marx a partir de Suchodolski. Ambos buscam definir que tipo de educação ou

20

formação política precisa ter a classe trabalhadora para tornar-se sujeito revolucionário da

transformação social. Gramsci trabalha com a ideia de que o processo revolucionário não se

limita às dimensões políticas e econômicas, mas envolve também a preparação cultural dos

trabalhadores para elevar o seu nível de consciência. Gramsci dá ênfase na preparação

intelectual dos trabalhadores para desenvolver a consciência da realidade de forma ideológica

em contraposição à consciência limitada do conflito e de si mesmos. Já Suchodolski expõe os

elementos básicos da teoria da educação materialista, elucidando o caráter pedagógico nas

obras Marx e Engels; também ressalta a importância das instituições proletárias como locus

de formação educativo-revolucionária. Em outras palavras, Suchodolski enfatiza a atividade

educativa proletária para organizar a luta revolucionária e, assim, construir as condições

sociais fundantes do novo homem.

A seção – Formação educativa para e pelo socialismo-comunismo – está

intrinsecamente ligada à seção anterior, sobre o objetivo da formação educativa

revolucionária, explicitando os conceitos de “socialismo” e “comunismo”. De Marx e Engels,

apreendemos essa reflexão nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Manifesto do Partido

Comunista, A Ideologia Alemã, Critica ao Programa de Gotha e n’O Capital. Para

complementar, Lênin e Fromm nos auxiliam teoricamente, ampliando essa discussão de forma

mais sistemática, ou seja, em O Estado e a Revolução apreendemos essa concepção leninista

diferenciando o socialismo do comunismo e em Conceito Marxista de Homem, Fromm faz

uma correlação entre conceito marxista de socialismo e conceito marxista de homem.

O quarto capítulo, Marxismo e formação sindical CUT, começa com uma seção

introdutória para as três seções seguintes que ilustram como o movimento sindical no Brasil

se relacionou com o marxismo enquanto teoria revolucionária desde os primórdios até hoje,

isto é, da formação política realizada nas lutas cotidianas até à formação política realizada em

cursos sindicais. A finalidade é saber até que ponto o marxismo, como teoria crítica ao

capitalismo, foi disseminado na formação política sindical, através de seus processos

educativos. E se a sua precária apreensão ou não pelos trabalhadores foi empecilho para travar

uma luta mais ideológica contra o capital do que corporativista ou colaboracionista.

Iniciamos, assim, a problematização da crise do sindicalismo, da crise do fordismo e do

advento do neoliberalismo; ressaltamos a importância do marxismo e a sua presença ou não

no sindicalismo cutista. Colocamos em foco de análise a preparação teórica e prática dos

trabalhadores para enfrentar os desafios históricos postos pela crise estrutural do capital, isto

é, do ponto de vista político-ideológico, e não apenas pragmático. A formação política da

21

CUT é, portanto, o nosso objeto de análise enquanto Central que representou o sindicalismo

classista durante certo período. Desdobramos o capítulo em quatro seções.

A seção – Marxismo e formação sindical CUT - Introdução – inicia-se com o

pressuposto do abandono do movimento sindical cutista da perspectiva marxista; retoma en

passant a questão da crise do sindicalismo, da reestruturação produtiva capitalista e do fim do

socialismo; e reintroduz o debate da cultura marxista a partir da II Internacional, a

importância do marxismo para luta sindical e a chegada tardia do neoliberalismo ao Brasil.

São reflexões propedêuticas para se discutir a política nacional de formação da CUT e assim

perceber ou não a relação entre marxismo e movimento sindical cutista.

A seção – A política de formação sindical no Brasil no início do século XX – tece

um resumo histórico das primeiras experiências do movimento operário brasileiro no campo

da educação política e profissional. Apresentamos sucintamente como os primeiros

sindicalistas – socialistas, anarquistas, anarco-sidicalistas e comunistas – compreendiam a

educação e a formação política dos trabalhadores desde o final do século XIX até o século XX

com a Primeira República, Estado Novo, Ditadura Militar, chegando à redemocratização do

Brasil nos anos 1980-1990 com o Novo Sindicalismo, tendo a CUT como estandarte da

formação política de caráter classista e socialista em seu nascedouro. Para isso, pautamo-nos

nos estudos de Manfredi, Ghiraldelli Jr., Oliveira do Rio e Gonçalves. Nesse sentido,

objetivamos relatar a ascendência teórica do movimento sindical brasileiro em seus

primórdios, e perceber a sua descendência teórica na atualidade, sem ideologia ou utopia

classista que norteie o rumo da luta pela emancipação humana.

A seção – O surgimento e a trajetória da CUT: um breve histórico – trata da

criação da CUT a partir dos CONCLAT’s e de sua estruturação e institucionalização a partir

dos CONCUT’s, ou seja, o aparecimento da CUT como resultado do sindicalismo combativo

do final dos anos 1970 contra o fim da ditadura militar e a favor da redemocratização do

Brasil. Elaboramos uma sinopse do I ao V CONCUT, mostrando suas especificidades, isto é,

da primeira fase da CUT como uma Central combativa, classista e socialista à sua fase mais

negociativa, propositiva e participacionista. Nesses CONCUT’s podemos perceber como se

deu o processo de institucionalização e burocratização da luta sindical cutista em detrimento

de uma luta classista, anticapitalista e de confronto com o capital. O III e IV CONCUT’s

foram definidores para a CUT ser o que ela é hoje, ou seja, uma Central de caráter social-

democrata, anticlassista, concertacionista e corporativista. Das resoluções congressuais,

decorreu a Política Nacional de Formação da CUT: formação política e formação profissional.

A seção – A política nacional de formação da CUT: da formação da consciência

22

política à formação profissional cidadã – relata as fases na trajetória da CUT desde 1983

até o presente, mostrando sua mudança na forma de luta sindical e seu reflexo na sua Política

de Formação Nacional. Demonstramos os enfoques políticos e históricos de vários estudiosos

do movimento sindical brasileiro sobre essa transição do movimento sindical cutista, de uma

linha de ação mais combativa e classista para uma mais propositiva e conciliadora; dentre

eles, destacamos Tumolo, Giannotti & Lopes Neto, Boito Jr. e Manfredi. Buscamos assim

estabelecer, a relação entre os últimos fatos históricos contemporâneos e o comportamento da

CUT face às adversidades que surgiram a partir dos anos 1990, sobretudo, no que diz respeito

ao fim do socialismo real e advento do neoliberalismo e suas consequências para o mundo do

trabalho e sindical. Mas o ponto central da discussão é a questão da formação sindical cutista

que abandona uma formação ideológica classista e opta por uma formação profissional e

cidadã. Apresentamos alguns cursos e temáticas dados pela CUT em seus sindicatos, para

demonstrar a ausência da perspectiva marxista da realidade capitalista. Tomamos como dados,

livros de autores que pesquisaram a formação política da CUT, teses e dissertações que

abordaram a temática para dar subsídios teóricos e práticos para a corroboração de nossa Tese

do afastamento do movimento sindical cutista do marxismo como teoria revolucionária na

formação educativa dos trabalhadores. Para isso, citamos várias teses sobre o enfraquecimento

do movimento sindical que podem ser resumidas em duas: a tese conjuntural e a estrutural.

Por fim, na conclusão, buscamos fazer um cotejo entre marxismo e movimento

sindical cutista, mostrando o seu distanciamento das teorias marxistas sobre a sociabilidade

capitalista, em que é possível perceber o rebaixamento teórico no projeto de formação dos

trabalhadores no movimento sindical brasileiro, a saber, do ponto de vista marxista,

percebemos que a classe trabalhadora foi “desideologizada” e/ou “despolitizada” para não

fazer a crítica ao capitalismo, quer dizer, para não ser o sujeito antagônico ao capital. Nessa

perspectiva, destacamos o papel da CUT como uma Central Sindical que prioriza a luta na

forma de emancipação política em detrimento da luta na forma de emancipação humana, ou

seja, sua linha de atuação sindical e/ou sua política nacional de formação vai na contramão do

marxismo enquanto legado teórico-metodológico que visa superar revolucionariamente a

ordem do capital.

23

CAPÍTULO 1

AS BASES FUNDAMENTAIS DO MARXISMO

24

1.1 A Importância do Método de Marx

Tematizar a importância do método de Marx suscita uma questão que está

intrinsecamente ligada ao tema deste trabalho, ou seja: qual a finalidade do método marxista

para o desenvolvimento teórico da luta dos trabalhadores? Lukács nos dá uma resposta

plausível a esta indagação, a saber, “[...] a doutrina e o método de Marx fornecem, enfim, um

método correcto para o conhecimento da sociedade e da história.”1 Para Lukács, o método

marxiano é na sua essência íntima um método histórico e sua finalidade é o conhecimento do

presente. Em O que é o Marxismo Ortodoxo?, Lukács – ao dizer que a ortodoxia em matéria

de marxismo refere-se ao método e não uma adesão acrítica aos resultados da pesquisa de

Marx – conclui que com o marxismo dialético encontrou-se o método de investigação justo,

podendo ser aperfeiçoado e aprofundado a partir de seus fundadores. Deste modo, o método

marxista, a dialética materialista como conhecimento da realidade, só é possível do ponto de

vista de classe, da luta do proletariado, pois o método é produto desta luta.

Nesse sentido, a grande tarefa é tornar os trabalhadores cientes do método de Marx,

objetivando esclarecer-lhes a fecundidade deste método para solucionar problemas que se

apresentam insolúveis no nível da aparência. O ponto central desta indagação sobre o método

de Marx se manifesta na falsa dicotomia entre conhecer e ser, entre sujeito cognoscente e

objeto cognoscível, entre teoria e prática. Superar essas antinomias é o que Marx faz no seu

processo reflexivo, dando primazia ao ser em relação ao conhecer, não descartando, porém, o

papel ativo do pensamento nesse processo de apreensão e exposição do objeto, quer dizer, da

matéria em suas determinidades. A famosa carta de Marx em Berlim ao pai, de 1837, revela

bem esse outro caminho do conhecimento, id est, “o princípio de buscar a ideia na própria

realidade”.

Conforme Chasin2, não há método em Marx, se entendemos como método uma

arrumação operativa a priori da subjetividade que necessita de um conjunto de procedimentos

ditos “científicos” que são utilizados pelo investigador para fazer sua pesquisa, sem precisar

de um fundamento gnosiológico como pressuposto de investigação. Apropriar-se, então, desse

método investigativo adotado por Marx é uma tarefa imprescindível para os trabalhadores que

buscam entender sua situação histórica de explorados pelos capitalistas para transformar esta

realidade social que se lhes opõe.

Partindo do pressuposto de que o método abstrativo de Marx é uma superação tanto do

1 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Porto: Escorpião, 1974. p. 9. 2 Cf. CHASIN, José. Estatuto ontológico e resolução metodológica. In: TEIXEIRA, Francisco J. S. Pensando

com Marx. São Paulo: Ensaio, 1995. p. 389.

25

idealismo subjetivo quanto do idealismo objetivo3 ou, melhor dizendo, do subjetivismo da

filosofia especulativa (baseado no primado da razão) e do objetivismo das ciências naturais

(baseado no empirismo grosseiro, no qual o objeto por si só se impõe ao pensamento),

podemos explicitar como esse novo modo de se fazer ciência e filosofia se apresenta no

pensamento de Marx.

Já dizia Marx, no “Posfácio da 2ª Edição” de O Capital, que o método empregado por

ele não foi bem compreendido, e assinala as várias críticas feitas ao seu método.

Primeiramente, a “Revue positiviste” de Paris acusa Marx de tratar a economia

metafisicamente e de limitar-se à analise crítica de uma situação dada, em vez de fornecer

fórmulas positivistas que fossem úteis para o futuro; em contraposição a esta visão, o

professor Sieber afirma que Marx não é metafísico, mas que seu método é o dedutivo da

escola inglesa; por conseguinte, o senhor M. Block – em seu trabalho “Les Theóriciens du

socialisme en Allemagne” – assevera que o método de Marx é analítico; por outro lado, os

censores alemães denominam o método de Marx como uma sofisticação hegeliana; e, por fim,

o periódico de São Petersburgo, o “Mensageiro Europeu”, num artigo que trata de O Capital,

define o método de pesquisa de Marx como rigorosamente realista e não idealista como

aparentemente se possa perceber. Todavia, Marx dá uma resposta para o autor deste artigo,

citando alguns trechos do próprio artigo, fornecendo uma pista onde ele afirma que o autor

ventilou o fundamento materialista de seu método. Senão vejamos:

Diz o autor do artigo sobre O Capital que para Marx a única coisa importante é

descobrir as leis dos fenômenos que ele pesquisa, mas não apenas a lei que

rege os fenômenos enquanto forma definida e situada num determinado

período histórico, mas, sobretudo, o que mais lhe importa, é descobrir a lei da

transformação, do desenvolvimento de um determinado período histórico, ou

seja, entender como se dá a transição de uma forma histórica de produção para

outra ou de uma ordem de relações sociais para outra. Ao descobrir a lei, é

possível investigar os efeitos pelos quais tal lei se manifesta na vida social. Daí

– diz o autor – o esforço de Marx demonstrar, a partir de uma rigorosa

3 Há diversas orientações no interior do idealismo subjetivo: aquela orientação em que “a consciência se

identifica com todas as formas de consciência individual, da qual a existência é apenas produto, enquanto

sensação, ilusão, idéia etc.”; aquele tipo de idealismo subjetivo que afirma a existência objetiva como algo

incognoscível por princípio (Kant); e o solipsismo que considera inexistente tudo que ultrapassa as formas e os

conteúdos da consciência. Quanto ao idealismo objetivo, este confere o caráter exclusivo de realidade

propriamente dita e tem a natureza “de criar mitos para demonstrar e ilustrar a existência dessa consciência

objetiva e seu papel de criador universal”. Sobre essa discussão, ver LUKÁCS, Georg. Existencialismo ou

Marxismo?. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda., 1979. p. 209.

26

investigação científica, a necessidade de determinadas relações sociais e

verificar os fatos que servem de base e ponto de partida para tais relações.

Contudo, para atingir o objetivo é só observar a necessidade de outra ordem

(social) que, certamente, transformará a primeira, mesmo que os seres

humanos não tenham consciência disso ou acreditem nisso. Em outras

palavras, segundo o autor, Marx entende o movimento social como um

processo histórico-natural, isto é, governado por leis independentes da vontade,

da consciência e das intenções humanas. No entanto, é aqui que o autor do

artigo cita o fulcro do método de investigação de Marx, a saber:

Se o elemento consciente desempenha papel tão subordinado na história da

civilização, é claro que a investigação crítica da própria civilização não pode ter, por

fundamento, as formas ou os produtos da consciência. O que lhe pode servir como

ponto de partida, portanto, não é a idéia, mas, exclusivamente, o fenômeno externo.4

Desse modo, a inquirição crítica se restringirá a comparar e confrontar fato

com fato e não o fato com a ideia. O importante é que os fatos se investiguem

precisamente, ou seja, que eles se constituam forças do desenvolvimento, ao

comparar-se um com o outro. Tal inquirição tem que levar em conta o estudo

da série de ordens de relações, a sequência e a ligação dos estágios de

desenvolvimento que aparecem. Conforme o autor do artigo de o “Mensageiro

Europeu”, Marx contesta a proposição de que as leis econômicas sejam sempre

as mesmas, isto é, as mesmas leis utilizadas no passado e no presente. Não há

leis abstratas para Marx, pois cada período histórico possui suas próprias leis

que regem a vida quando passamos de uma fase histórica para outra,

determinada, pois, por uma etapa do desenvolvimento. Em suma, Marx busca

pesquisar e esclarecer, deste ponto de vista, a ordem econômica capitalista, ao

estabelecer, com maior rigor científico, o objetivo que deve ter qualquer

investigação correta da vida econômica; portanto, o valor científico da

pesquisa marxiana se manifesta, à medida que ela esclarece as leis especiais

que regem o nascimento, a existência, o desenvolvimento, a morte de um

determinado organismo social, cuja teleologia é substituir por outro de mais

alto nível.

Para Marx, o autor do artigo sobre O Capital (“Mensageiro Europeu”) não faz nada

mais do que caracterizar seu método de dialético. Sua preocupação está em fazer uma

4 MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1988. v. I, p. 15.

27

distinção entre o método de pesquisa e o método de exposição. Marx esclarece então esses

dois momentos da pesquisa: a investigação e a descrição do movimento do real. De acordo

com Marx,

A investigação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas

diferentes formas de desenvolvimento, e de perquirir a conexão íntima que há entre

elas. Só depois de concluído êsse trabalho, é que se pode descrever, adequadamente,

o movimento do real. Se isto se consegue, ficará espelhada, no plano ideal, a vida da

realidade pesquisada, o que pode dar a impressão de uma construção a priori.5

Assim sendo, os trabalhadores precisam ter ciência do método de análise marxista da

realidade para entender que a sua situação de classe não é produto natural da história ou

simples condição da evolução histórica (pensamento do marxismo vulgar), e sim que, ao

tomar consciência teórica da sua condição proletária, eles podem ser agentes transformadores

dessa etapa histórica que os confinam na alienação negativa do trabalho. E Marx salienta no

final do “Posfácio da 2ª Edição” de O Capital que “Para o burguês prático, as contradições

inerentes à sociedade capitalista, patenteiam-se, de maneira mais contundente, nos vaivéns do

ciclo periódico, experimentados pela indústria moderna e que atingem seu ponto culminante

com a crise geral.”6 São as crises periódicas do capitalismo que apontam as condições

objetivas “de como fazer” o movimento emancipatório dos trabalhadores na história, mas para

isso, é imprescindível que as condições subjetivas da luta de classes estejam também

desenvolvidas: a consciência de classe “para si”.

Marx, no “Prefácio da Edição Francesa” de 1872 de O Capital, nos dá uma dica

fundamental para se adquirir esse conhecimento teórico emancipatório, declarando que “Não

há estrada real para a ciência, e só tem probabilidade de chegar a seus cimos luminosos,

aquêles que enfrentam a canseira para galgá-los por veredas abruptas.”7 Daí a importância da

educação teórica marxista para os trabalhadores fazerem o enfrentamento com a classe

capitalista que os vem explorando durante mais de três séculos de história, sobretudo, com o

processo de exploração mais degradante que é a forma de trabalho industrializado, impondo à

natureza humana um funesto desgaste físico e mental.

Todavia, na “Introdução”, em Para a Crítica da Economia Política, Marx nos mostra

elementos reflexivos que são a base para o seu método de investigação. Diz ele, logo no

começo da subseção “O Método da Economia Política”: “Parece que o correto é começar pelo

real e pelo concreto, que são a pressuposição prévia e efetiva;”8 Segundo Marx, a Economia

5 MARX. Posfácio da 2ª Edição. In: O Capital, v. I, p. 16. 6 Ibid., p. 17. 7 MARX. Prefácio da Edição Francesa de 1872. In: O Capital, v. I, p. 19. 8 MARX, Karl. Introdução. In: Para a crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 14.

28

Política faz isso começando pela população. Mas se tomada essa categoria na sua pura

abstração, sem levar em conta as classes que a compõem e os elementos que repousam nela

como trabalho assalariado, o capital etc. e que estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os

preços etc., isso já seria um caminho equivocado. É preciso que a palavra população não seja

vazia de sentido e, nesse sentido, é preciso determinar os elementos imanentes nessa

categoria, justamente para chegarmos, a partir de uma análise mais precisa e determinada, a

conceitos mais simples, ou seja, do concreto idealizado passaríamos a abstrações cada vez

mais tênues até atingir as determinações mais simples. Teríamos então o método da volta:

“Chegados a esse ponto, teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de

novo com a população, mas desta vez não com uma representação caótica de um todo, porém

com uma rica totalidade de determinações e relações diversas.”9

No entanto, quando se descobre, por meio da análise, que há certas relações gerais

abstratas como elementos determinantes para se compreender o todo, esse é que é o método

cientificamente exato. Para Marx,

O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, a unidade

do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese,

como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo

e, portanto, ponto de partida também da intuição e da representação.10

Se no primeiro momento do método, a representação plena (do real) se transforma em

determinações abstratas (conceitos), no segundo momento, as determinações abstratas levam

o pensamento a reproduzir o concreto. Hegel agiu de modo inverso, ao admitir o real como

produto do pensamento que se sintetiza em si, se aprofunda em si e se move por si mesmo.

Para Hegel, a ideia, o pensamento ou o espírito absoluto, é demiurgo (criador) da história. O

método marxista de investigação consiste em elevar-se do concreto ao abstrato, mas de uma

maneira diferente, ou seja, o pensamento que se apropria do concreto nas suas múltiplas

determinações para reproduzi-lo a posteriori como concreto pensado11

.

Marx mostra, pois, a diferença entre o seu método dialético e o de Hegel, afirmando

que o processo de pensamento em Hegel é criador do real, id est, o real como pura

manifestação externa da ideia, ou melhor expressando, a ideia se transforma no sujeito

autônomo criador do real.12

Para Marx, pelo contrário, o ideal é o material levado para a

9 Ibid., p. 14. 10 Ibid., p. 14. 11 Cf. MARX, Para a crítica da economia política, p.14. Cf. também LENIN, V. I. O materialismo filosófico.

In: As três fontes e as três partes constitutivas do Marxismo. São Paulo: Global Editora, [s.d.]. p. 16-19.

(Coleção Bases, 9). 12 Em Materialismo Filosófico, Lênin trata dessa questão e ressalta a concordância de Engels com essa filosofia

materialista, ao dizer: “A unidade do mundo consiste no seu Ser [...] A unidade real do mundo consiste na sua

29

cabeça do homem e por ela interpretado. Assim, como bem disse Engels: “Querer demonstrar

a realidade de um resultado mental qualquer por meio da identidade entre o que se pensa e o

que existe é, de fato, uma das fantasias febris mais loucas de... (sic) Hegel”13

. Dessa maneira,

Marx caracteriza a dialética hegeliana como misticismo lógico, embora ressalte o valor do

pensamento hegeliano no que tem de revolucionário, afirmando que Hegel foi o primeiro a

apresentar as formas gerais do movimento de modo amplo e consciente. A dialética hegeliana,

segundo Marx, está de cabeça para baixo e, por conseguinte, faz-se necessário pô-la de cabeça

para cima, para descobrir a substância racional dentro do invólucro místico. A dialética

hegeliana mistificada sublima a situação existente da burguesia (e do proletariado), mas, por

outro lado, sua forma racional deixa a burguesia inquieta e apavorada, à medida que

reconhece o princípio da negação, da destruição do existente, sobretudo, porque o devir é a

prova do caráter transitório da história, das suas formas sociais; e assim, na sua essência, a

dialética hegeliana é crítica e revolucionária por suscitar a mudança enquanto processo de

negação do existente, de sua superação.

Na Miséria da Filosofia, Marx se confronta com Proudhon nas sete observações, nas

quais ele faz duras críticas ao modo como este senhor expõe distorcidamente a dialética

hegeliana. O movimento, que está presente na materialidade como forma de transição, de

transformação e de desenvolvimento da matéria, fica reduzido, na reflexão de Proudhon, ao

movimento da razão pura, dos pensamentos abstratos, separada da realidade externa, viva. As

categorias como divisão do trabalho, crédito, dinheiro etc. são aí categorias fixas, imutáveis e

eternas, produtos das ideias e dos pensamentos espontâneos, ou senão, apenas expressões

teóricas ou categorias lógicas, tornando-se, assim, categorias metafísicas, ao se apartar as

análises dos objetos reais, concretos. Nesse sentido “proud-hegeliano”, o movimento é pura

abstração, a saber, um movimento construído pelo e no pensamento, pela ideia abstrata, onde

a coisa ou o real se reduz a uma mera categoria lógica. O movimento, nessa perspectiva

proudhoniana a “la hegeliana”, é a simples oposição entre o bem e o mal, ou seja, basta

eliminar o mal para que o bem supremo vingue e, assim, a proposta proudhoniana de

igualdade seria efetivada. Desta forma, bastaria eliminar as coisas más no capitalismo para

que este se transforme num sistema do bem, onde todos possam desfrutar das “coisas boas”

materialidade, e esta se prova [...] por um longo e laborioso desenvolvimento da filosofia e da ciência da

natureza [...] O movimento é o modo de existência da matéria [...] Mas se em seguida nos perguntamos o que são

o pensamento e a consciência e de onde vêm, descobrimos que são produtos do cérebro humano e que o homem

é ele próprio um produto da natureza, que se desenvolveu no seu meio e com o seu meio [...]” (LENIN, As três

fontes e as três partes constitutivas do marxismo, p. 16.). Cf. também ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 39. 13 ENGELS, Anti-Dühring, p. 38.

30

que ele pode oferecer. Portanto, a dialética proudhoniana é a completa deturpação da dialética

hegeliana, já que nessa dialética proudhouniana a contradição inexiste como elemento

importante do movimento14

. Tudo se reduz na oposição entre o bem e o mal, isto é, na

eliminação deste último.

Entretanto, é nos Manuscritos Econômico-Filosóficos que Marx vai criticar a dialética

hegeliana, ressaltando Feuerbach como primeiro a fazer essa crítica, só que de forma

incompleta. Nesse texto, Marx nos dá algumas linhas de interpretação e apreciação sobre a

dialética hegeliana, como ele mesmo afirma, logo no início do manuscrito. Para Marx, a

moderna crítica alemã (neo-hegelianos) se tornou acrítica face ao método crítico, isto é, não

se confrontou com a dialética de Hegel. Já Feuerbach, segundo Marx, teve como grande

empreendimento a superação da dialética e da filosofia antiga, ou seja: 1) a filosofia

transformou-se, para Feuerbach, numa religião convertida em pensamento e desenvolvida

pelo pensamento; 2) Feuerbach fundamentou o autêntico materialismo e a ciência positiva

quando fez da relação social do homem ao homem como princípio básico de sua teoria; e 3),

por último, ele se opôs à “negação da negação” enquanto princípio que se funda em si mesmo.

Por outras palavras, Feuerbach concebe a “negação da negação” como a contradição da

filosofia consigo mesma, ou seja, uma filosofia que afirma a teologia (transcendência) depois

que a aboliu, afirmando-a a si mesma. Marx anota que, para Feuerbach, a posição ou a

autoconfirmação e autoafirmação, que está implícito na “negação da negação” hegeliana, é

um postulado incerto, oprimido pelo seu contrário, que duvida de si mesmo, logo incompleto,

quer dizer, não demonstrado pela sua própria existência implícita. Tal postulado, indubitável e

baseado em si mesmo, se lhe opõe diretamente.

Para Chasin, Feuerbach não se limitou a desmontar criticamente a filosofia hegeliana,

pois ele “formula com nitidez a esfera sustentada como resolutiva das novas premências

ontológicas: ‘o verdadeiro nexo entre pensamento e ser só é este: o ser é sujeito; o pensar,

predicado. O pensamento provém do ser, mas o ser não provém do pensamento’.”15

Em

outras palavras, o ser só existe a partir de si e por si mesmo, quer dizer, o ser é dado pelo ser,

sendo o seu próprio fundamento. O ser é, nessa perspectiva, sentido, razão, necessidade,

verdade, por fim, tudo em todas as coisas. Assim sendo, pensar e conhecer as coisas e os seres

14 Sobre a diferença entre a lógica formal (lógica estática) e lógica dialética (lógica do movimento e da

contradição), Cf. MANDEL, Ernest. Introdução ao marxismo. Lisboa: Edições Antídoto, 1978. p. 241-252:

Mandel explicita didaticamente as categorias fundamentais da lógica dialética (contradição, oposição, totalidade-

particularidade, quantidade-qualidade, negação etc.) e da lógica formal (lei da identidade, da contradição e do

terceiro excluído). 15 CHASIN. Estatuto ontológico e resolução metodológica. In: op. cit., p. 348.

31

como são, é a tarefa máxima da filosofia, pois a filosofia é conhecimento do que é.16

É por

isso que Marx, segundo Chasin17

, se opõe ao fundamento das operações hegelianas enquanto

o grande defeito da especulação, quando esta toma a ideia como princípio de entificação do

multiverso sensível, pois, o fato não é a realização da ideia, caso contrário, cairíamos num

misticismo lógico, ao desconsiderar as essências específicas das distintas entificações

existentes. A máxima de Hegel “o real é racional” se complica, porque a ideia pura, a ideia

abstrata, a ideia lógica ou a ideia como sujeito não é capaz de reproduzir a peculiaridade

concreta dos objetos reais, e nem o conhecimento como força reprodutora das entidades

efetivas.

Por conseguinte, Marx afirma que o grande mérito de Hegel na sua Fenomenologia,

consiste em conceber a autocriação do homem como processo, a objetivação como perda do

objeto, como alienação e como abolição da alienação, e por isso, a dialética da negatividade é

o princípio motor e criador; e também consiste em ele apreender a natureza do trabalho e

conceber o homem objetivo (real) como resultado do seu próprio trabalho. Desse modo, o

homem como ser genérico, ativo e real, como ser humano possível, só é capaz de se

reapropriar da sua essência objetiva, se ele realizar seus poderes específicos, cuja condição

fundamental é a ação coletiva dos homens na história para efetivar essa promoção ontológica

de seu ser numa modalidade de sociabilidade comunal. Assim, o homem enquanto trabalhador

sucumbido à forma de trabalho alienado, estranhado ou explorado, deve se opor a si mesmo

enquanto trabalhador da reificação social. Se o trabalho, na visão hegeliana, é a essência

confirmativa do homem, o tornar-se do homem para si mesmo no processo da sua

objetivação, então é imprescindível que ele busque abolir essa forma de trabalho capitalista. É

nesse sentido que Marx critica Hegel por conceber o trabalho apenas no seu aspecto positivo e

não negativo, a saber, o trabalho apenas como uma atividade intelectual abstrata.

Dois momentos positivos da dialética hegeliana são considerados por Marx, nos

Manuscritos Econômico-Filosóficos, no interior da condição da alienação: a) a ab-rogação

como movimento objetivo que reabsorve em si a alienação, ou seja, a apropriação do ser

objetivo (o homem) pela superação da sua alienação; em outras palavras, é a partir da

aniquilação do caráter alienado do mundo humano, pela anulação de um modo de existência

estranhado, que o humanismo, na forma de comunismo, abole as condições inumanas de

empobrecimento da natureza humana e, assim, restaura a genuína natureza humana como algo

real; e, dessa maneira, Hegel compreende o significado positivo da negação, isto é, o

16 Cf. CHASIN, op. cit., p. 348. 17 Cf. Ibid., p. 375.

32

humanismo positivo como abolição da propriedade privada, conforme Marx; b) o segundo

momento positivo no interior da alienação é quando Hegel concebe o trabalho como ato de

autocriação do homem, ou seja, o movimento de autocriação, de auto-objetivação na forma de

alienação positiva, constitui a absoluta expressão da vida humana, cuja finalidade é a paz e a

realização da sua natureza humana.

No entanto, Marx percebe o reducionismo de Hegel, à medida que este iguala o

homem à autoconsciência. Daí ser uma abstração vazia a “negação da negação” hegeliana por

ser uma simples negatividade absoluta, justamente por constituir um conteúdo formal,

produzido pela abstração. Para Marx, ao contrário, o verdadeiro não é a pura ideia que

constitui a forma do seu ser-outro. A abstração, quando iluminada pela experiência e

esclarecida a sua verdade, deixa de ser especulativa, para ser reflexo da realidade no

pensamento, mas a partir de uma mediação recíproca entre o ser e o conhecer, em que o real é

transportado para a razão por intermédio da abstração enquanto momento ativo da reflexão.

Daí a especulação hegeliana enquanto razão autossustentada não conseguir ascender à

decifração da mundaneidade imperfeita, não lograr esclarecer essa mundaneidade,

compreendendo sua gênese e necessidade para capturá-la em seu significado próprio, por

meio da determinação de lógicas específicas atualizadoras dos objetos de seu multiverso.

Portanto, a negatividade absoluta encontra seus limites no modo de reprodução real a partir do

ideal enquanto exibidor arbitrário das essências dos objetos reais.

N’A Sagrada Família, em “O Mistério da Construção Especulativa”, Marx já

enunciava em poucas palavras a caracterização do mistério da construção especulativa de um

modo geral. Na verdade, ele apresenta o caráter abstrato do método idealista, quer dizer, do

método dialético-especulativo de Hegel, que cria o mundo real através de categorias abstratas,

ou seja, a partir do conceito irreal ou universal, de uma ideia geral, concebemos os seres

naturais, objetos concretos, com significação mística. O exemplo da fruta ilustra muito bem

esse método especulativo-abstrato. Quando partimos das pêras, maçãs, morangos, amêndoas

reais, temos a imaginação de que a representação abstrata fruta, extraída das frutas reais, é

algo que existe fora de nós, quer dizer, acabamos afirmando que a ideia fruta é a substância da

pêra, da maçã, do morango e da amêndoa. Nesse sentido, o ser pêra, ser maçã etc. não é

essencial enquanto existente real, os quais os sentidos humanos apreciam, mas o essencial é o

ser abstraído por alguém e as frutas reais atribuídas como um ser de representação, isto é, a

fruta. Todas as frutas reais se reduzem, portanto, ao conceito universal fruta. Agora a fruta na

condição de ser intelectivo sobrenatural, como pura abstração do ser natural, não brota do

solo material, mas sim do cérebro humano. A fruta torna-se a expressão, unidade e

33

universalidade de todas as frutas singulares. Suas determinações reais são invenções do

próprio pensamento especulativo. E, assim sendo, esse procedimento metodológico “leva o

homem a tomar o desenvolvimento especulativo como real, e o desenvolvimento real como

especulativo.”18

Então declara Marx que “por esse caminho não se chega a uma riqueza

especial de determinações.”19

O conteúdo real do objeto, da coisa em si, é assim subsumido

no mistério da especulação subjetiva da razão.

Já na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel - Introdução, Marx

apresenta um quadro analítico que enfatiza o caráter puramente subjetivo do homem, ao denunciar

a religião como um produto da sociedade e Deus como um produto da sua imaginação. Ele coloca

o seguinte argumento: “o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o

mundo do homem, o Estado, a sociedade.”20

São a sociedade e o Estado que produzem a religião

como consciência invertida do mundo. Aqui podemos perceber qual é o sujeito produtor da

realidade – o homem social, e seu predicado, a religião, como objeto dessa produção. Nesse caso,

o homem é o próprio demiurgo dessa existência imaginária, e da existência profana como

invólucro daquela. Percebemos então aqui, com as palavras de Marx, o ser concreto tendo a

primazia ontológica face ao ser abstrato, produto de uma consciência coletiva. A autêntica

realidade que o homem deve procurar e buscar – como diz Marx, no segundo parágrafo deste

texto – reside no reflexo da sua prática social; esta sim é o ponto de partida do conhecer humano

sobre a origem das suas produções imaginárias: Deus enquanto ser abstrato e a Religião enquanto

entidade “prática profana” que encapsula o Ser Supremo.

Buscar, portanto, a realidade da essência humana é – segundo Marx – fazer a crítica a

essa razão especulativa, transcendentalista (religiosa), que fundamenta o existir humano a

partir de uma visão imaginária e ilusória que aponta o ser humano como ser posposto por

outro Ser imaginativo enquanto princípio de tudo. E nesse texto/contexto da Contribuição,

quando Marx afirma que a crítica da religião é a forma de libertar o homem da ilusão, do

pensamento especulativo ou abstrato, ou seja, recuperar o homem da escravidão da sua

própria imaginação (que cria um Senhor para si) para reconquistar a razão “não-ilusória”, sua

autonomia humana, é o passo fundamental para resgatar a sua condição de ser genérico

enquanto ser primaz da sua própria condição existencial. Nesse sentido, o ser (homem) é

conditio sine qua non de conhecimento de seu próprio ser enquanto ser prático-histórico, de

18 CHAGAS, Eduardo. O método dialético de Marx. In: JIMENEZ, Susana; OLIVEIRA, Jorge Luís; SANTOS,

Deribaldo (Orgs.) et al. Marxismo, educação e luta de classes. Fortaleza: EdUECE, 2008. p. 50. 19 MARX e ENGELS. A Sagrada Família. São Paulo: Editora Moraes, 1987. p.72. 20 MARX, Karl. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: Manuscritos económico-

filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989. p. 77.

34

sua criação imaginária do Ser Perfeito de imitação e/ou submissão, um ícone celestial para ser

espelho da sua humanização perfeita, eterna e imortal. Em outras palavras, essa reflexão

marxiana sobre a religião nos revela que o “ser homem” é o ponto de partida para conhecer “o

ser não-homem” (Deus) e, assim, compreender sua expressão humano-social; nesse sentido,

para conhecer os elementos que determinam a criação de um Ser Sagrado/Absoluto enquanto

ato imaginativo é preciso ir ao produtor do Ser celestial, isto é, ao próprio homem. Este é o

ponto de partida para se conhecer como se deu o ato especulativo transcendental religioso

enquanto prática social.

E qual seria o legado da Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel –

Introdução sobre a questão da importância do método de Marx para os trabalhadores

enquanto protagonista histórico da negação do nosso presente político, econômico e social?

Marx mesmo responde, embora noutro contexto: seria “estabelecer a verdade desse

mundo”, “desmascarar a auto-alienação humana nas suas formas não sagradas” (já que auto-

alienação sagrada foi desmascarada); tudo isso depois que o mundo, que se sustenta sobre

essas condições, se desvanecer.21

Assim, o princípio da negatividade hegeliana, ao modo

dialético marxista enquanto suprassunção, se reflete nesse contexto, quando ele afirma que é

preciso negar o presente político22

, ou seja, negar uma situação que está empoeirada

historicamente e libertar o homem que está sob o acicate de uma determinada estrutura social

que impossibilita sua humanização, o desenvolvimento pleno de suas capacidades humanas.

Para confirmar essa crítica contra a filosofia especulativa, que se limita à crítica do céu sem

fazer a crítica da terra, Marx afirma que “Na luta contra essa situação, a crítica não é paixão

da cabeça, mas a cabeça da paixão. Não é uma lanceta anatómica, mas uma arma. O seu alvo

é um inimigo que ela procura, não refutar, mas destruir.”23

Não é à toa que Marx reivindica a crítica da terra, ou da terrenalidade que sustenta

essa condição humana, como ponto de partida da investigação, para compreender as

determinidades sociais que fazem o homem ou a sociedade ser assim e não de outra forma. O

objeto investigativo é o homem e sua condição desumana ou sua natureza inumanizada. Se o

ser social, como objeto de conhecimento, deve ser captado nas suas íntimas conexões, essa

captação não pode se dar pela pura atividade sensível-intuitiva, quer dizer, apenas pelas

sensações ou impressões humanas, mas pelo pensamento ativo e crítico. A reprodução do real

pelo pensamento requer que o objeto exterior forneça seus componentes essenciais e/ou os

21 Cf. MARX. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: op. cit., p. 78. 22 Cf. Ibid., p. 79. 23 MARX, op. cit., p. 80.

35

elementos constituidores do seu ser assim, a partir de uma mediação entre teoria e prática, em

que o homem, na condição de ser cognoscente, não seja passivo face ao objeto que ele deseja

conhecer. Entrever essa situação humana aí posta laboral ou teleologicamente é buscar

compreender como ela se desenvolve na totalidade histórica enquanto locus do nascimento,

envelhecimento e morte das formações econômico-sociais. Como diz Marx, “A história é

sólida e atravessa muitos estádios ao conduzir uma formação antiga ao sepulcro.”24

Certamente, é a atividade prática do homem (uma revolução) que o libertará das

cadeias, as quais ele se acorrentou. O método marxiano de conhecimento do real tem como

princípio a radicalidade do conhecimento, pois como Marx mesmo diz, “Ser radical é agarrar

as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem.”25

Segundo Chasin, “Ao

postular a atividade do pensamento de rigor como produção teórica da lógica intrínseca ao

objeto investigado, Marx apenas deu início, com inflexão decisiva e emblemática, é verdade,

à composição de sua plataforma científica.”26

E é dessa maneira que Marx define a tarefa do

sujeito e assinala o lugar da verdade, fazendo a ruptura antitética com a filosofia especulativa

hegeliana. Sujeito e objeto, reivindicados na sua terranalidade, embora distintos, não se

faceiam como simples exterioridade.

Tanto nos Manuscritos de 1844 como n’A Ideologia Alemã, os sujeitos são

determinados como homens ativos e os objetos como atividade sensível. Nos Manuscritos de

1844, na compreensão de Chasin, “Marx adota o princípio determinativo de que ‘o ser é uno

com a coisa que é’ ”27

; ou como ele assegura no Primeiro Manuscrito: “Um ser não objetivo é

um não-ser (Unwesen)”28

; um ser não objetivo é, portanto, um ser não efetivo, não sensível, e

sim, somente pensado e imaginado, um ser da abstração. Ser sensível, ser objetivo, é ser dos

sentidos. N’A Ideologia Alemã, Marx já prenunciava as condições fundamentais para a

efetividade do conhecimento humano em bases reais e não abstratas, a saber:

As premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas; são bases reais que

só podemos abstrair na imaginação, são os indivíduos reais, sua ação e suas

condições materiais de existência, tanto as que eles já encontram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação. Essas bases são pois verificáveis por via

puramente empírica.29

Por isso, Marx indagou por que os filósofos críticos alemães não se perguntaram sobre

a ligação entre a filosofia alemã e a realidade alemã, ou seja, a ligação entre a sua crítica e o

24 MARX. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: op. cit., p.82. 25 Ibid., p.86. 26 CHASIN. Estatuto ontológico e resolução metodológica. In: op. cit., p. 390. 27 Ibid., p. 391. 28 MARX. Crítica da dialéctica e da filosofia de Hegel. In: Manuscritos económico-filosóficos, p. 250. 29 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 10.

36

seu próprio meio material, entre o pensamento e o mundo real. As ideias, segundo Marx, não

são produto do puro pensamento, pois há uma mútua determinação entre ideia e realidade. E o

pensamento é ancorado na realidade. Nessa perspectiva, a produção das ideias, das

representações e da consciência está inelutavelmente ligada à atividade material ou ao

intercâmbio material dos homens.30

Partindo de suas afirmações em A Ideologia Alemã,

quando ele diz que são os homens que produzem suas representações, suas ideias etc., mas os

homens reais, atuantes, e que são condicionados por um determinado desenvolvimento de

suas forças produtivas e das relações sociais de produção, então o conhecimento humano não

pode ser mais do que consequência do seu processo de vida real. Como Marx assevera, “é aí

que termina a especulação, é na vida real que começa portanto a ciência real, positiva, a

análise da atividade prática, do processo, do desenvolvimento prático dos homens. Cessam as

frases ocas sobre a consciência, para que um saber real as substitua.”31

Eis a arquitetônica de

seu pensamento como postura antiespeculativa.

Este breve destacamento teórico nos leva à primeira tese sobre Feuerbach onde Marx

aponta o grande erro deste filósofo, a saber, Feuerbach não concebe o homem como atividade

sensível, enquanto práxis, só o concebe como objeto sensível, ou melhor, não concebe o

homem em sua ligação com a realidade social existente que faz os homens serem como são.

Na sexta tese sobre Feuerbach, Marx só faz confirmar seu aforismo, ao dizer que “a essência

do homem não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado, mas sim o conjunto das suas

relações sociais.”32

É esse ajuste de contas com a filosofia idealista alemã que Marx faz, pois

a materialidade é o que existe objetivamente e, por isso, para ele, o primado é a realidade

sobre a consciência, logo o pensamento não é o critério da verdade. O fundamento do pensar é

a realidade. Assim, a correspondência entre sujeito e objeto se apresenta na segunda tese

sobre Feuerbach: “É na práxis que o homem precisa provar a verdade, isto é, a realidade e a

força, a terrenalidade do seu pensamento.”33

E complementa dizendo que discutir sobre a

realidade ou irrealidade do pensamento é pura escolástica se isolado da práxis. Na quinta tese,

Marx solapa o materialismo antropológico/contemplativo de Feuerbach quando relata que

este, não se conformando com o pensamento abstrato, busca a intuição sensível, porém não

considera a sensibilidade como uma atividade prática humana e sensível, pois, para Marx,

apreender o mundo é uma construção histórico-social. O homem religioso ou abstrato

pertence, portanto, a uma determinada forma social, e a vida social é essencialmente prática

30 Cf. MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 18. 31 Ibid., p. 20. 32 Cf. MARX. Teses sobre Feuerbach. In: A Ideologia Alemã, p. 101. 33 Ibid., p.100.

37

(Conforme as VII e VIII Teses sobre Feuerbach).

Essa tensão objetiva da relação entre sujeito e objeto, como condição de possibilidade

do conhecimento, propõe, na verdade, a dissolução da unilateralidade ou dos limites que

desfiguram as condições de “ser do sujeito” e de “ser o objeto”. A dinâmica dessa tensão do

face a face entre sujeito e objeto – como nos diz Chasin34

– só faz emergir a regulação de suas

trocas de “in-formações” que elimina a arbitrariedade dessa dualidade, isto é, o objeto

existente nos fornece pistas de como ele se apresenta na realidade e o sujeito informa à

subjetividade as determinidades do objeto a partir do seu filtro de apreensão. Essa mediação

evita a unilateralidade ou a tirania do conhecer por via de “mão única”.

Nas palavras de Chasin, “O sujeito se confirma pela exteriorização sensível, na qual

plasma sua subjetividade, e o objeto pulsa na diversificação, tolerando formas subjetivas ao

limite de sua plasticidade, isto é, de sua maleabilidade para ser outro.”35

Reconfigurar o objeto

a partir da subjetividade, enquanto atividade prático-crítica, suscita um serviço de

transgressão, quer dizer, é preciso ter a priori uma prévia ideação sobre o que vai se conhecer

para apreender o real não passivamente; e, nesse sentido, o homem no processo de

conhecimento tem que ser ativo, sem ser impositivo. O objeto ou o real possui sua lógica

intrínseca própria que precisa ser compreendida e apreendida no seu movimento, na sua

totalidade, nas suas íntimas conexões. E a prática já traz embutida em si dois momentos do

pensar: a subjetividade proponente (teleologia) e a subjetividade receptora (capacidade

cognitiva). Como afirma Marx nos Manuscritos Econômico-Filosóficos: “O modo como a

consciência é e como algo para ela existe é o conhecer. O conhecer constitui o seu único acto.

Algo existe, portanto, para consciência, na medida em que ela conhece este algo. O conhecer

é a sua única relação objectiva.”36

E continua Marx: “Sem dúvida, o pensamento e o ser são

distintos, mas formam ao mesmo tempo uma unidade.”37

De outra maneira, Lukács afirma que a grande proeza de Marx é a sua investigação

concreto-ôntica ou ontológica, rechaçando o método hegeliano de expor conexões em bases

de esquemas lógicos, porém, apontando um caminho que se delineia no sentido de concretizar

cada vez mais as formações, as conexões etc. do ser social, cujo ponto de inflexão ele alcança

nos estudos econômicos. E é nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, segundo Lukács, que

as categorias econômicas surgem pela primeira vez como categorias da produção e da

reprodução humana, possibilitando, então, a descrição ontológica do ser social em bases

34 CHASIN, op. cit., p. 398-399. 35 Ibid., p. 398. 36 MARX. Crítica da dialéctica e da filosofia de Hegel. In: Manuscritos económico-filosóficos, p. 252. 37 Idem. Propriedade privada e comunismo. In: Manuscritos económico-filosóficos, p. 196.

38

materialistas. A economia torna-se, dessa forma, o centro da ontologia marxiana na visão

lukacsiana. Ou como diz Lukács citando Marx: “Tal como, em toda a ciência social histórica,

há que nunca perder de vista, no estudo do movimento das categorias econômicas, que as

categorias exprimem formas e condições de existência.”38

Marx já afirmava no primeiro parágrafo da Introdução (Para a Crítica da Economia

Política), no item I – “Produção, Consumo, Distribuição, Troca (Circulação)”, que seu objeto

de estudo é, em primeiro lugar, a produção material.39

E no Prefácio desta obra, ele já

justificava seu caminho de pesquisa: “Tenho diante de mim o conjunto do material sob a

forma de monografias que foram redigidas com longos intervalos, não para serem impressas,

mas para minha compreensão, e cuja elaboração sistemática, segundo o plano dado,

dependerá de circunstâncias exteriores.”40

Em seguida, Marx anota que toda antecipação

perturbaria resultados ainda por provar e, alerta ao leitor – que se dispõe a segui-lo – que ele

“terá que se decidir a ascender do particular para o geral.”41

“Por outro lado,” – continua

Marx – “poderão aparecer aqui algumas indicações sobre o curso dos meus próprios estudos

político-econômicos.”42

A partir destas palavras, podemos inferir que o método de análise de

Marx se distingue dos métodos ditos científicos, à medida que estes já vêm com um traçado

de procedimentos a priori para apreender o objeto de pesquisa. O caminho escolhido por

Marx, para atingir seu objetivo de pesquisa, é o inverso, ou seja, é o objeto de conhecimento

que vai definindo os passos que o pesquisador deve fazer para atingir a sua cognoscibilidade.

Desse modo, concordando com Chasin, o critério da verdade é ontológico, ou melhor,

onto-prático. Contudo, a Segunda Tese sobre Feuerbach define bem o caráter do problema do

conhecimento, isto é, a questão, se o pensamento humano alcança uma verdade concreta,

não é uma questão teórica, mas sim uma questão prática. Noutras palavras, “a determinação

do que é, antecede a admissão e o tratamento de temas gnosio-epistêmicos.”43

Para Chasin, o

tratamento ontológico dos objetos, incluindo aí o sujeito, não é apenas imediato e

independente, mas autoriza e fundamenta o exame da problemática do conhecimento.

Examinar essa problemática requer o critério ontológico e só a partir dele é que é possível

uma adequada investigação.

No entanto, a fundamentação onto-prática do conhecimento nos leva a outra questão

que é a determinação social do pensamento, isto é, a sociabilidade como condição de

possibilidade do conhecimento, pois, como anota Marx nos Manuscritos de 1844, há um nexo

38 MARX, Contribuição à critica da economia política apud LUKÁCS, História e consciência de classe, p.19 39 Cf. MARX. Introdução. In: Para a crítica da economia política, p. 3. 40 MARX. Prefácio. In: Para a crítica da economia política, p. 23. 41

MARX, op. cit., p. 24. 42 MARX, loc. cit. 43 Cf. CHASIN, op. cit., p. 400.

39

fundamental entre a consciência, suas formações ideais e a sociedade, quer dizer, a

consciência geral do homem é somente a figura teórica daquilo cuja figura viva é a própria

comunidade. O homem confirma sua consciência na existência, justamente porque a atividade

ideal é a sua atividade social. Nesse sentido, o pensamento tem um caráter social, porque sua

atualização é atualização do predicado do homem, cujo ser é atividade social. Por outras

palavras, a consciência geral é uma abstração da vida efetiva, logo a existência teórica do

homem é uma existência enquanto ser social.

Em Questões Metodológicas Preliminares, Lukács afirma que “Tão-só a base de um

conhecimento pelo menos imediatamente correto das propriedades reais das coisas e

processos é que a posição teleológica do trabalho pode cumprir sua função transformadora.”44

Podemos concluir a partir daí, numa outra direção reflexiva, que os trabalhadores enquanto

potenciais sujeitos revolucionários só podem se fazer agentes transformadores de sua história

humana, se conseguirem conhecer a realidade e o processo social, aos quais estão submersos,

em suas múltiplas determinações. Isso requer um salto qualitativo, como diz Tumolo, da

consciência imediatista ou sensitiva (baseada na impressão, na sensação ou emoção),

passando, porém, por uma consciência racional-pragmatista (mas ainda fragmentária), para

uma consciência teórico-política (sistemática)45

que dará aos trabalhadores a subjetividade

revolucionária como condição sine qua non de abolição da objetividade social capitalista

antagônica à sua generalidade humana.

Nessa perspectiva, a prioridade ontológica da economia no pensamento de Marx,

como diz Lukács, está pressuposta de uma ontologia materialista da natureza que compreende

em si a historicidade e a processualidade, a contradição dialética, estando já implicitamente

contida no fundamento metodológico da ontologia marxiana. Marx parte da premissa de que a

contradição não é apenas uma passagem de um estágio para outro como em Hegel, mas ela é a

força motriz do próprio processo normal. A contradição se revela como princípio do ser e,

portanto, possível de ser apreendida na sua realidade. É nesse sentido que Marx formula uma

concepção nova de superação das contradições, como afirma Lukács. Se a economia

(capitalista) enquanto base do desenvolvimento do ser social é composta por um feixe de

contradições, então é preciso compreender como elas se dão a partir de uma totalidade

histórico-social, como portadoras inelimináveis de novos elementos mutantes para a

44 LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria

Editora Ciências Humanas Ltda., 1979. p.19. 45 Cf. TUMOLO, Paulo. Educação, consciência de classe e o problema da transição socialista. In: JIMENEZ,

Susana; OLIVEIRA, Jorge Luís; SANTOS, Deribaldo (Orgs.) et al. Op. cit., p.72.

40

configuração de um novo modo de produção do ser social, baseado numa economia comunal.

É nesse sentido que Lukács compreende que

A economia marxiana está penetrada por um espírito científico que jamais renuncia

a essa consciência e visão crítica em sentido ontológico; ao contrário, na verificação

de todo o fato, de toda conexão, emprega-as como metro crítico permanentemente

operante. [...] trata-se aqui, portanto, de uma cientificidade que não perde jamais a

ligação com a atitude ontologicamente espontânea da vida cotidiana; ao contrário, o

que faz é depurá-da (sic) e desenvolvê-la continuamente a nível crítico, elaborando

conscientemente as determinações ontológicas que estão necessariamente na base de

qualquer ciência.46

Por essa linha de reflexão, Lukács quer tornar claro o método de Marx, fazendo uma

dura crítica às falsas ontologias emergidas no campo da filosofia e tentando resgatar uma

cientificidade ontológica e filosófica correta, quer dizer, mostrando que Marx era contra as

construções abstratas do idealismo filosófico que violentavam a realidade. Por outro lado,

Lukács apresenta os limites da ciência contemporânea, cujo objetivo seria limpar as ciências

dos preconceitos neopositivistas que introduzem deformações substanciais nas próprias

ciências. Em outras palavras, Lukács parte de uma questão central e importante para clarificar

o método marxiano; para isso, trata o ser social como um problema ontológico da diferença,

da oposição e da conexão entre fenômeno e essência, assumindo, assim, este problema um

papel decisivo, sobretudo, porque “na vida cotidiana os fenômenos ocultam a essência do seu

próprio ser, ao invés de iluminá-la”47

, como bem demonstra Lukács.

Quando Marx enuncia que “toda ciência seria supérflua se a essência das coisas e sua

forma fenomênica coincidissem diretamente”48

, tal enunciado – para Lukács – seria

extremamente importante para a ontologia do ser social; principalmente, porque a relação

entre fenômeno e essência no ser social, devido a sua indissolúvel ligação com a práxis, revela

traços novos, novas determinações. Para Lukács, essa afirmação filosófica de Marx tem uma

função crítica ontológica de combate a algumas falsas representações, para despertar a

consciência científica, objetivando restaurar no pensamento a realidade autêntica, o existente

em-si. É isso que vai caracterizar a estrutura interna das obras da maturidade de Marx, isto é,

uma estrutura de novo tipo, cuja cientificidade tem em vista a totalidade do ser social, não

abandonando, claro, este nível científico; por outras palavras, os fatos singulares nas suas

inter-relações, na sua reprodução ideal de conexões concretas, só podem ser analisados em

sua totalidade para avaliar a realidade e o significado de cada fenômeno singular que eles

expressam.

46 LUKÁCS, Os princípios ontológicos fundamentais de Marx, p. 24. 47 Ibid., p. 25. 48 MARX, Karl. O Capital, III, 2, Hamburgo, 1904, p. 352 apud LUKÁCS, op. cit., p. 26.

41

Conforme Lukács, Marx separa dois complexos: “o ser social, que existe

independentemente do fato de que seja ou não conhecido corretamente; e o método para

captá-lo no pensamento, de uma maneira adequada possível.”49

Dessa maneira, é dada a

prioridade do ontológico face ao mero conhecimento, ou seja, a objetividade tem um maior

peso do ponto de vista ontológico, justamente por causa da sua estrutura e dinâmica interna,

do seu “ser-precisamente-assim”. “A objetividade é uma propriedade primário-ontológica de

todo ente. O ente originário é sempre uma totalidade dinâmica, uma unidade de complexidade

e processualidade”50

, como nos diz Lukács. Muitos caminhos podem nos levar a totalidade na

natureza, mas por um raciocínio rigoroso. Já no campo social, a totalidade é dada de modo

imediato ou, como diz Marx na Miséria da Filosofia, “toda sociedade constitui uma

totalidade” e “ela é o produto da ação humana”. Desta feita, inferimos que Marx inaugura

uma nova forma de cientificidade geral como de uma ontologia, ou, melhor dizendo, uma

forma de superar no futuro a constituição problemática da cientificidade moderna, mesmo que

esta tenha uma riqueza imensa de fatos descobertos.

Vale ressaltar a importância de Lênin, ao recusar a supremacia filosófica da lógica e

da gnosiologia que se apoia em si mesmas. Ele retoma a concepção originária de Hegel que

propõe a unidade entre a lógica, a gnosiologia e a dialética, porém traduzida em termos

materialistas. A sua gnosiologia, enquanto gnosiologia do reflexo de uma realidade material

que existe independentemente da consciência, é sempre subordinada a uma ontologia

materialista. Lukács anota que “O essencial da crítica leninista consiste em afastar

resolutamente todas as especulações vazias, para voltar à questão sobre a qual deve repousar

toda a teoria do conhecimento, a saber: primado da existência ou primado da consciência.”51

Lênin ressalta, pois, que Marx e Engels viam na dialética hegeliana uma rica, vasta e profunda

doutrina da evolução, do desenvolvimento, ou seja: conforme Engels – nos diz Lênin – a ideia

fundamental é que o mundo não deve ser considerado como um complexo de coisas acabadas,

mas sim como um complexo de processos onde as coisas, aparentemente estáveis, passam por

mudanças ininterruptas de devir e perecer. Sendo assim, a filosofia dialética mostra a

caducidade das coisas e em todas as coisas: seu nascimento, evolução e perecimento, da

ascensão do inferior para o superior; e ela é apenas o reflexo no cérebro pensante, como

afirma Lênin. Desta feita, a dialética para Marx é, então, “a ciência das leis gerais do

49 LUKÁCS. Crítica da Economia Política. In: Os princípios ontológicos fundamentais em Marx, p.35. 50 Cf. Ibid., p. 36. 51 LUKÁCS, Existencialismo ou Marxismo?, p. 213.

42

movimento, tanto do mundo exterior como o do pensamento humano.”52

Na reflexão lukacsiana, se caminharmos do fenômeno para a essência, o conhecimento

segue um movimento da própria existência; se esse caminho do conhecimento é o reflexo

complexo e indireto do movimento e da transformação do ser na consciência humana, então a

teoria do conhecimento materialista – na qual a consciência humana reflete a realidade

objetiva, cuja existência independe da consciência – apresenta-se sob uma luz completamente

nova. Dessa maneira, a dialética é a condição sine qua non para que a realidade objetiva

(enquanto processo produzido pelo movimento dos fenômenos que evoluem para tornar-se

seu contrário) possa ser refletida adequadamente no cérebro. É assim que se suprimem as

questões aparentemente insolúveis da teoria do conhecimento do idealismo. “A essência é

objetividade real” – como nos diz Lukács – e, portanto, tal descoberta elimina o erro de querer

rebaixar o fenômeno ao nível da aparência. Não há mais uma rígida oposição entre fenômeno

e essência, entre o imediato e a “coisa-em-si”, pois a essência está dotada de uma existência

mais profunda do que o fenômeno imediato, que é apenas um de seus elementos, porque a

essência é a síntese, a unidade desses elementos. E para o conhecimento chegar à essência, é

preciso descobrir suas leis imanentes.

É nesse sentido, portanto, que Lukács afirma que seria ingênuo não acreditar que a

gênese dialética da consciência de classe não se aplica ao proletariado. E aí ele cita Lênin de

O que fazer?, quando diz que é impossível o proletariado por si só desenvolver uma

consciência antagônica ao capital, isto é, uma consciência revolucionária comunista, como

resultado de uma compreensão (reflexo dialético) bem mais adequada da totalidade social. E

tal consciência política de classe não pode ser levada ao proletariado, senão do exterior, quer

dizer, do exterior da luta econômica, do exterior das esferas entre operários e patrões. Dessa

forma, para se criar uma organização de revolucionários profissionais, há que desaparecer a

distinção entre operários e intelectuais e entre as várias formas de profissões estancadas,

atomizadas e separadas das demais.53

Em As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo, Lênin tece críticas sobre

a falsa imparcialidade da ciência burguesa (oficial e liberal), quando esta defende a

escravatura assalariada, ao contrário do marxismo que declara guerra a essa sociedade

fundada na exploração do trabalho alheio. Para Lênin, é pueril e ingênuo uma ciência

“imparcial” pedir para os fabricantes serem imparciais em querer diminuir seus lucros para

aumentar os salários dos trabalhadores. Partindo desse pressuposto, Lênin define o

52 LENIN, As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo, p. 20. 53 Cf. LUKÁCS, Existencialismo ou Marxismo?, p. 183-184.

43

materialismo como a filosofia do marxismo, claro, criticando os equívocos do antigo

materialismo (mecanicista, das ciências naturais). Ao desenvolver e aprofundar o

materialismo filosófico, segundo Lênin, Marx fê-lo chegar ao seu fim lógico, estendendo do

conhecimento da natureza ao conhecimento da sociedade humana. É por isso que Lênin

declara que o materialismo histórico de Marx foi a maior conquista do pensamento científico;

em outras palavras, se o conhecimento do homem reflete a natureza que existe

independentemente dele, isto é, uma matéria em pleno desenvolvimento, então o

conhecimento social do homem reflete o regime econômico da sociedade.54

A questão teórica abordada por Lênin sobre “o conhecimento como uma

aproximação” diz respeito à questão da relatividade do conhecimento no materialismo

dialético. Quando Lukács afirma que, para Lênin, “A lei concreta não será jamais senão a

aproximação da totalidade real, sempre móvel, incessantemente mutável em todos os

sentidos infinita, que o pensamento não poderá jamais esgotar de uma maneira perfeita”55

, na

verdade, ele quer dizer que os nossos conhecimentos são apenas aproximações da plenitude

da realidade, logo relativos. São absolutos, quando representam a aproximação efetiva da

realidade objetiva que existe independentemente da nossa consciência. Eis, portanto, a

unidade dialética entre o caráter absoluto e relativo da consciência. Nessa perspectiva, a

concepção de Lênin do conhecimento científico introduz a noção de “aproximação”. Dessa

forma, conforme Lukács,

O método marxista permite perfeitamente determinar se uma crise grave do

capitalismo pode tornar-se fatal, em certas circunstâncias concretas, mas que a

questão de saber se tal ou tal crise comporta uma saída, não poderia ser resolvida

senão pela luta, pela ação prática das classes em presença.56

Daí a importância do método de Marx para o desenvolvimento teórico-prático dos

trabalhadores no processo de sua emancipação.

Não poderíamos deixar de tocar na questão da totalidade quando explicitamos o modo

marxiano de abordar a realidade, pois como nos relata Lukács, uma análise da relação entre o

absoluto e o relativo requer que o conhecimento apreenda e estude seu objeto de todos os

ângulos, sob todos seus aspectos. Mandel aponta essa questão, quando explicita a dialética do

conhecimento: conteúdo e forma, causas e efeitos, geral e particular, relativo e absoluto; para

ele, é preciso compreender que a existência possui uma infinidade de situações transitórias,

em movimento, que é a unidade da continuidade e descontinuidade e, nesse sentido, as coisas

54 Cf. LÊNIN, As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo, p. 73-74. 55 LUKÁCS, op. cit., p. 233. 56 Ibid., p. 236.

44

são relativas ou, melhor dizendo, “é preciso relativizar a reletavidade”57

A categoria da totalidade hic et nunc (nestas circunstâncias) reflete relações reais, ou,

como diz Marx, as condições de produção de toda a sociedade formam um todo, ou melhor

ainda, deve encontrar-se o todo em cada uma das coisas e cada uma das coisas deve ser

encontrada no todo. A categoria totalidade quer aí significar, por um lado, que a realidade

objetiva é um todo coerente, onde seus elementos se relacionam um com outro, e, por outro

lado, que tais relações formam, na realidade objetiva, correlações concretas, conjuntos,

unidades, ligadas entre si de maneiras completamente diversas, mas sempre determinadas.

Determinar o lugar do fenômeno que tomamos como objeto de estudo no interior de uma

totalidade concreta da qual faz parte, é o objetivo do conhecimento dialético marxista.

Podemos, então, perceber que toda essa discussão teórica visa combater o solipsismo,

o racionalismo e o irracionalismo moderno que escamoteavam a realidade objetiva. Lênin,

segundo Lukács, teve um empenho teórico fundamental de pôr a questão do sujeito do

conhecimento, ligado a sua atividade prática como ponto central da sua teoria do

conhecimento, ou seja, fez da atividade prática o critério decisivo do conhecimento e, assim,

coloca as questões mais relevantes da teleologia sob um prisma inteiramente novo. É nessa

perspectiva que somente o materialismo dialético tem condições de explicar como a atividade

essencial do homem – o trabalho produtivo – se transforma, a partir da prática consciente da

conquista da natureza, em formas abstratas do pensamento. Tal abstração não é um produto

do espírito, mas manifestação das ações e das interações reais presentes nos fenômenos

concretos do mundo real.

É por isso que Lukács nos adverte, no final da obra Existencialismo ou Marxismo?,

que ter um conhecimento mais próximo da realidade (inesgotável) suscita o homem completo

que reencontrou sua totalidade. A teoria leniniana, para Lukács, mostra um caminho seguro

para reconquista da totalidade humana, quando demonstra que o conhecimento é inseparável

da prática humana e do trabalho, ratificando, portanto, que a teoria leniniana do conhecimento

(que reconhece a existência objetiva real) é uma brilhante manifestação do humanismo

combativo que engaja os homens na luta, no conhecimento e na conquista do mundo e que

trabalha para fazer nascer o homem novo numa totalidade humana reencontrada.

Ora, se a consciência geral do homem é somente a figura teórica daquilo cuja figura

viva é a própria comunidade, então o homem confirma sua consciência na existência,

justamente porque a atividade ideal é a sua atividade social. O homem, portanto, tem um

57 MANDEL, Introdução ao Marxismo, p. 248.

45

caráter social e a existência teórica do homem é uma existência enquanto social. O

trabalhador como figura ontológica do capitalismo reflete essa forma de consciência social

que o repõe como homo faber no cotidiano da exploração laboral capitalista. Compreender a

sua posição nessa totalidade histórica da exploração capitalista exige do trabalhador a ruptura

com os modos de conhecimentos da realidade, baseados no puro subjetivismo e no puro

objetivismo, ou seja, o rompimento com o teoricismo e empirismo grosseiros. A dialética

então, é uma teoria, um instrumento do conhecimento, mas na sua forma materialista-

marxista, ela é definida, conforme Mandel, como a teoria do conhecimento do proletariado,

submetida a uma prova implacável, a prova prática, da experiência. Isso não reduz de modo

algum o caráter objetivamente científico da dialética enquanto lógica do movimento, das

contradições e da totalidade, pois, como diz Lênin, “A verdade é sempre concreta”, ou Hegel,

“O verdadeiro é a totalidade”.

Nesse sentido, se o método marxista de apreensão da realidade tem um fundamento

teórico-prático imprescindível para a análise histórica dos trabalhadores, então tomá-lo como

instrumento de transformação e revolução social é algo imperativo. Como diz Lukács, “O

método dialéctico de Marx tem por objetivo o conhecimento da sociedade como totalidade”58

ou, ainda,

[...] o que há de fundamentalmente revolucionário na ciência proletária não é apenas o facto de opôr à sociedade burguesa conteúdos revolucionários, mas sim, em

primeiro lugar, a essência revolucionária do próprio método. O reino da categoria

totalidade é o portador do princípio revolucionário da ciência59

A importância do método de Marx como instrumento de análise para a classe

trabalhadora se dá, sobretudo, pela sua capacidade de apreender o real nas suas contradições,

na sua totalidade histórica, pois a contradição, como nos diz Engels no Anti-Dühring, é a

propriedade inerente à materialidade, principalmente, nas formas superiores de movimento da

matéria, em particular, na vida orgânica e na sua evolução; a contradição contém o germe da

negatividade enquanto suprassunção (negação da negação ou superação conservante), e o

movimento (histórico) é uma contradição (uma luta entre contrários), uma sucessão contínua

de contradições presentes nas coisas, nos fenômenos, isto é, uma força efetiva. Se o trabalho

assalariado é a expressão máxima da contradição capitalista, sua figura onto-histórica, o

trabalhador, é o princípio ontológico de negação daquilo que o nega humanamente. Sendo

assim, o método de conhecimento de Marx é condição sine qua non para que o proletariado,

enquanto classe organizada politica e ideologicamente, possa apreender os processos

58 LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 38. 59 Ibid., p. 41.

46

históricos e as tendências evolutivas do capitalismo, buscando superar os antagonismos que se

lhes impõem. Nas palavras de Lukács, “A força e a superioridade da verdadeira consciência

prática de classe reside justamente na capacidade de perceber, por detrás dos sintomas

dissociadores do processo económico, a sua unidade como evolução de conjunto da

sociedade.”60

Eis, portanto, a relevância do método de Marx para apreensão e exposição da

realidade na sua essência e não simplesmente na sua pura aparência.

1.2 O Trabalho como Fundamento da Realidade Social

Partimos do pressuposto de que o trabalho é uma atividade inalienável do homem,

condição de sua perpetuação enquanto espécie humana ou ser genérico, social. “O trabalho,

como criador de valores-de-uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem, –

quaisquer que sejam as formas de sociedade, – é necessidade natural e eterna de efetivar o

intercâmbio material entre o homem e a natureza e, portanto, de manter a vida humana.”61

Esta proposição de Marx em O Capital nos dá a confirmação de que o trabalho é algo

irrevogável hoje na sociedade complexa, com as suas múltiplas e infinitas necessidades, das

quais algumas perecem, outras permanecem e novas aparecem, a partir do desenvolvimento

das forças produtivas, juntamente com a evolução das relações sociais de produção. O próprio

Engels – criticando Adam Smith que concebe o trabalho apenas como dispêndio de força de

trabalho, isto é, como sacrifício do ócio, da liberdade e da felicidade – entende o trabalho

como uma função normal da vida.62

Não é à toa que Marx, já na A Ideologia Alemã63

, afirma

que o trabalho é o único laço que une os indivíduos ainda às forças produtivas e à sua própria

existência, mas o trabalho não é mais a manifestação dos próprios indivíduos na sociedade

capitalista, sua exteriorização ou objetivação consciente e voluntária, e sim uma atividade que

desrealiza o próprio indivíduo, à medida que só mantém sua vida degenerando-a, quer dizer,

limitando a existência humana à sua pura sobrevivência física natural. Nos Manuscritos

Econômico-Filosóficos64

, o trabalho aparece (positivamente) como atividade vital, vida

produtiva do homem, logo é uma atividade criativa e consciente, diferente da do animal que é

a sua própria atividade vital.

Estes são, certamente, os pressupostos teóricos marxianos mais importantes que

reafirmam o trabalho como condição sine qua non de efetivação da vida humana em

60 LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 89. 61 MARX, O Capital, v. I, p. 50. 62 Cf. Ibid., v. I, p.54, nota 16. 63 Cf. MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 82. 64 Cf. MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 164-165.

47

sociedade, ou seja, condição eterna de realização da troca metabólica entre o homem e a

natureza e entre os próprios homens no seu processo (re)produtivo. Nesse sentido, tais

pressuposições são elementos reflexivos inelimináveis para se contrapor aos modismos

teóricos que tentam forjar “um Marx” que nega totalmente o trabalho, em seu sentido

universal, para fundamentar a ideologia da “sociedade sem trabalho” ou do “ócio absoluto”,

isto é, para se opor aos ideólogos que limitam a reprodução social a uma tarefa puramente

tecnológica, baseada num total automatismo do trabalho. Dessa forma, o presente texto

pretende explicitar a concepção marxiana de trabalho em suas obras clássicas, sobretudo, nos

Manuscritos Econômico-Filosóficos e em O Capital, para saber como Marx apresenta o

caráter positivo e negativo do trabalho. Nesta obra juvenil de 1844, essas pistas positivas do

trabalho podem ser obtidas a partir de uma releitura do Manuscrito – “Trabalho Alienado ou

Estranhado” –, fazendo, portanto, uma leitura inversa do “trabalho estranhado”, ou seja, como

seria o “trabalho não-estranhado”; como também na sua obra maior, O Capital, em que ele

apresenta tais caracteres – positivo e negativo – apontando a sua superação numa forma social

superior onde o trabalho se resgata enquanto atividade vital prazerosa e criativa do ser

humano na sociabilidade comunista.

Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx nos fornece “nas entrelinhas” uma

concepção positiva do trabalho a partir da sua exposição negativa do trabalho, ou seja, o trabalho

seria, nesse sentido, o oposto do trabalho estranhado, na forma de objetivação enquanto alienação

positiva humana. Fazendo a crítica do “trabalho alienado” ou “estranhado”, Marx nos dá os

elementos intrínsecos e fundamentais, presentes no seu discurso, contra a forma de alienação da

atividade prática, para uma concepção superior de trabalho.

Todavia, toda a reflexão marxiana nos Manuscritos parte de um fato econômico

contemporâneo, a saber, as condições do trabalho a partir da propriedade privada capitalista. Mas,

de forma negativa, Marx descreve a condição laboral do trabalhador da seguinte maneira:

O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a

sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria

tanto mais barata, quanto o maior número de bens produz. Com a valorização do

mundo das coisas aumenta em proporção directa a desvalorização do mundo dos

homens. O trabalho não produz apenas mercadorias, produz-se também a si mesmo

e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção com que

produz bens.65

Se fôssemos inverter essas asserções, poderíamos dizer que o trabalhador torna-se

tanto mais humanamente rico, quanto mais riqueza produz (racionalmente) para toda a

sociedade, quanto mais a produção aumenta em poder e extensão, para haver uma equitativa

65 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 159.

48

distribuição com todos os trabalhadores sem haver a escassez, porque ninguém poderá mais se

apropriar do trabalho alheio de forma extorquida. Com a não supervalorização do mundo das

coisas, a valorização do mundo dos homens se efetivaria, pois o homem, deixando de ser

mercadoria e/ou coisa, tornar-se-ia um ser genérico, senhor de si mesmo e daquilo que

produz, e não servo da sua atividade vital, do seu trabalho. O trabalho livre das condições da

alienação capitalista, isto é, dessa forma perversa de “apropriação” enquanto alienação, mas

sob uma nova forma de associação produtiva, realizaria o homem como ser construtor-

volitivo da sua vida social. Em outras palavras, o trabalho realizaria o trabalhador, a

objetivação tornar-se-ia ganho e/ou assenhoreamento do objeto e a apropriação seria a própria

recompensa do ato teleológico. McLellan cita um trecho dos Manuscritos Econômico-

Filosóficos que representa para ele uma espécie de contrapartida positiva à descrição do

trabalho alienado, senão vejamos na íntegra:

Suponhamos ter produzido enquanto homens: cada um de nós teria, em sua

produção, afirmado duplamente a si mesmo e ao outro. Eu teria: 1) objetivado, em

minha produção, a minha individualidade e a sua peculiaridade, e teria assim

desfrutado, no curso da atividade, de uma manifestação individual da vida, assim

como, ao contemplar o objeto, teria desfrutado da alegria individual de experimentar

a minha personalidade como objetual, sensivelmente visível, e, portanto, como uma

potência elevada acima de qualquer incerteza; 2) na tua fruição ou utilização do

meu produto, eu teria imediatamente a fruição consistente na consciência de ter

satisfeito com o meu trabalho um carecimento humano e, portanto, de ter

objetualizado a essência humana, e de ter assim proporcionado um objeto adequado a satisfazer o carecimento de um outro ser humano; 3) de ter sido para ti

intermediário entre tu e o gênero e, portanto, de ser entendido e sentido por ti

mesmo como uma integração do teu próprio ser e, como tal uma parte indispensável

de ti mesmo; de saber-me, portanto, confirmado tanto em teu pensamento quanto em

teu amor; 4) de ter colocado imediatamente em minha manifestação individual de

vida a tua manifestação de vida, e, portanto, de ter confirmado e realizado

imediatamente na minha atividade a minha verdadeira essência, a minha essência

comum e humana.66

Contudo, é o fato econômico contemporâneo o ponto de partida da reflexão marxiana.

Marx assinala que o objeto produzido pelo trabalho se lhe opõe como ser estranho, como um

poder independente do trabalhador. Ora, reverter essa situação de servidão ao trabalho

capitalista suscita que a produção seja um ato em que o produtor se reconheça no ato laboral e

no produto laborado, como algo realizado pela própria vontade criativa, consciente e livre.

Assim, o trabalhador se realizaria no trabalho, porque sua atividade seria prazerosa,

sobretudo, porque o objeto que produz lhe pertenceria, já que tudo produzido pela/para a

sociedade é produzido para saciar o próprio indivíduo, logo uma pertença social garantida. O

66 MARX. Karl. Estratos de “Elementos de Economia Política” de James Mill. In: Opere apud MCLELLAN,

David. A concepção materialista da história. In: HOBSBAWM, Eric J. História do Marxismo I. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1983. p. 80.

49

indivíduo seria então um ser social integrado, incluído, associado laborialmente e, portanto,

“comunizado”.

Entretanto, os aspectos positivos do trabalho na reflexão de Marx, a partir dos

Manuscritos, se revelam quando ele coloca o trabalho como o demiurgo da evolução da

história humana, quer dizer, quando o trabalho realiza a segunda natureza humana,

transformando a própria natureza, o homem e tudo que o rodeia. “Homem-Natureza-

Trabalho” forma o tripé dessa ontologia social; sua inter-relação permite que o mundo natural

seja humanizado pela conjugação do cérebro, das mãos, dos nervos etc. (trabalho intelectual

associado ao trabalho manual) na recriação do mundo, onde a tecnologia seria o quarto

componente desta intrínseca relação: Natureza, Homem, Trabalho e Tecnologia (como anota

Ricardo Antunes).67

A objetivação realizada pelo trabalho é vida humana cristalizada nos

objetos produzidos. Neste sentido, o trabalhador poderia produzir sob o domínio da vontade,

da liberdade e da subjetividade, a partir de um ato teleológico, consciente e livre, para

satisfazer suas necessidades. No entanto, essa relação vertical ou hierárquica entre o homem e

a natureza, enquanto aquele dominador e esta dominada, precisa transformar-se numa relação

simétrica, horizontal, na qual a natureza deixe de ser coisa para ser outro ser, e o homem

como mediador ecossocialista desta nova relação. Ou, como mesmo diz Marx, “O trabalhador

nada pode criar sem a natureza, sem o mundo externo sensível. Este é o material onde se

realiza o trabalho, onde ele é activo, a partir do qual e por meio do qual produz as coisas.”68

Se há quatro aspectos negativos sobre as formas de estranhamento que Marx ressalta

no texto “Trabalho Alienado” – alienação do produto do trabalho, estranhamento no próprio

ato de trabalho, a autoalienação (alienação do homem de si mesmo) e a alienação do homem

em relação aos outros homens –, então podemos extrair quatro aspectos positivos do trabalho

nesse mesmo texto. Senão vejamos: numa relação social na qual o trabalho seja a efetividade

de relações sociais produtivas justas, quer dizer, onde não exista a exploração do trabalho

humano, 1) o produto do trabalho humano não pertencerá a uma única pessoa, mas a toda

sociedade; 2) o trabalho não será trabalho forçado, mecânico, desprazeroso e estranhado, e

sim, trabalho livre, criativo e associativo, em que o homem dominará o processo de produção

e não a produção dominará o processo de trabalho humano; 3) o homem tornar-se-á ser

genérico, não animalizado, ou seja, em que o trabalho “não-alienado” restituirá sua condição

de vida enquanto espécie da vida genérica, e não manter sua vida como espécie animal que

67 Cf. ANTUNES, Ricardo L. C. Adeus ao trabalho?: Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo

do trabalho. São Paulo, SP: Cortez, 2010. 213p. 68 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 160.

50

trabalha apenas para manter sua atividade vital, sua existência física. O homem tornar-se-á

então um ser universal e genérico, quer dizer, livre e consciente de si e para si; e, por fim, 4) o

homem não será apartado dos outros homens, no sentido de que o outro é um ser estranho e

hostil, mas um ser “igual”, a saber, suprime-se a oposição entre os homens enquanto homens

antagônicos ou competidores entre si, mas efetivam-se homens colaboradores, cooperativos.

Desta feita, convertendo as palavras de Marx, a atividade prática do homem (o

trabalho), numa sociedade de produtores associados, será fonte de gozo e de prazer; o objeto

produzido será resultado da ação volitiva do seu processo criativo, útil, servil às suas

necessidades, isto é, o “homem criador” será o senhor de seu produto e o “objeto criado” será

servo de seu produtor, propriedade deste; o corpo humano, a natureza, a vida intelectual e a

vida humana não serão mais alienadas pelo processo de trabalho estranhado, porque o homem

restituirá a si sua vida genérica enquanto condição de recomposição de sua individualidade

humana; e a relação entre os homens deixará de ser uma relação entre estranhos e/ou coisas,

entre seus objetos de permuta, para ser uma relação de cooperação (troca de atividades), de

solidariedade, de convivência entre indivíduos socialmente “iguais” na diversidade de suas

singularidades. Desta forma, a “hostilidade”, o “domínio fetichista” e a “estranheza” presentes

nestas formas de relações de produção desaparecerão, se abolirmos os fundamentos que

impedem a emancipação da sociedade, isto é, a propriedade privada e o trabalho estranhado.

Como bem disse Marx,

Da relação do trabalho alienado à propriedade privada deduz-se ainda que a

emancipação da sociedade quanto à propriedade privada, à servidão, toma forma

política da emancipação dos trabalhadores; não no sentido de que somente está

implicada a emancipação dos últimos, mas porque tal emancipação inclui a

emancipação da humanidade enquanto totalidade, uma vez que toda a servidão

humana se encontra envolvida na relação do trabalhador à produção e todos os tipos de servidão se manifestam exclusivamente como modificações ou consequências da

sobredita relação.69

Se para Marx a emancipação da humanidade tem como condição a emancipação dos

trabalhadores da servidão do trabalho estranhado/abstrato, das formas de produção capitalista

das quais este trabalho é o motor de seu desenvolvimento, então urge ao próprio trabalhador

abolir a forma de trabalho assalariado que sustenta a forma de organização privada da

sociedade capitalista. A “positividade” do trabalho, agora, alienado, numa outra dimensão

reflexiva, está no fato de que o trabalhador enquanto escravo deste trabalho é o único sujeito

histórico que poderá abolir essa condição servil, a partir do não reconhecimento do senhor

capitalista como proprietário da sua força de trabalho, de parte do seu tempo de vida e da

69 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 170.

51

riqueza social produzida por ele. Só o “escravo assalariado” pode se rebelar contra o seu

senhor (dono do dinheiro/capital), como diz Hegel, na “Dialética do Senhor e do Servo” na

Fenomenologia do Espírito.

A relação entre a propriedade privada burguesa e a propriedade genuinamente

humana, como ilustra Marx, é uma relação antagônica de cooperação forçada que se desdobra

em múltiplas outras relações, ou, melhor expressando, a relação do trabalhador com seu ato de

trabalho e com o objeto produzido pelo seu trabalho como uma relação estranha, hostil e de

fetiche do objeto; a relação do trabalhador com sua condição (des) humana na qual ele não se

reconhece como um ser genérico, dono de seu trabalho e do produto do seu trabalho, dono de

si mesmo, a saber, a sua autoalienação; a relação estranha e antagônica do trabalhador com o

comprador da sua força de trabalho. Por outro lado, Marx apresenta a relação do “não

trabalhador” (do capitalista) em relação ao trabalhador, ao trabalho e ao produto do trabalho

como uma relação de propriedade absoluta sobre os mesmos.

O grau denunciativo da perversidade da propriedade privada burguesa exposta nesse

Manuscrito de 1844 revela como a aparência do sistema de reprodução capitalista escamoteia

a falsa troca de equivalência entre o salário e a força de trabalho, cuja essência “não

manifesta” é a produção de mais-valia (trabalho não pago). A igualação dessa forma de troca

vela o grau de exploração capitalista efetivada nesta forma de trabalho alienado/explorado.

Entretanto, Marx em O Capital, embora apresente o caráter positivo do trabalho ou a

irremovibilidade dele em qualquer forma social, demonstra como o trabalho concreto/útil, sob

a forma imperceptível de trabalho abstrato70

, engendra mais-valia (absoluta e/ou relativa),

lucro, e daí, valor.

N’O Capital, capítulo 1 “A Mercadoria”, Marx levanta a questão do duplo caráter da

mercadoria como “valor de uso” e “valor de troca” ou “valor”, e também o duplo caráter do

trabalho, isto é, como “trabalho concreto ou útil” e “trabalho abstrato”. Porém, o trabalho,

nessa reflexão, tem a teleologia de ser a atividade social inextinguível que visa a satisfazer as

necessidades humanas, e isso é algo inalienável na história da produção material do homem.

Este, para sobreviver e/ou existir, consome, e só faz isso, porque alguma coisa lhe é útil ou

tem utilidade para si. Como Marx afirma, “O valor-de-uso só se realiza com a utilização ou o

70 Ruy Fausto aborda a questão do trabalho abstrato e do valor em Marx, a partir dos seus críticos como Lefort e,

sobretudo, Castoriadis que entende que Marx oscila na questão da teoria valor-trabalho, ou seja, se o valor-

trabalho já está pressuposto ou posto na fase pré-capitalista ou capitalista. Uma discussão que, no final, Ruy

Fausto conclui como uma leitura débil de Castoriadis sobre o valor e trabalho abstrato em Marx, principalmente,

do capítulo 5 do tomo I de O Capital. Ver a respeito Ruy Fausto, Marx: lógica e política. São Paulo: Brasiliense,

1987, tomo I, p. 89-138.

52

consumo. Os valôres-de-uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a

forma social dela.”71

Em outras palavras, “valores de uso” pressupõem trabalho humano,

troca dos objetos produzidos pelos diferentes trabalhos e, sobretudo, diversas necessidades

humanas que buscam bens para saciação, pois, se não há carência humana por determinados

produtos que satisfaçam as necessidades humanas, tais objetos não têm utilidade social, logo

não serão produzidos.

Entretanto, quando Marx analisa a “mercadoria”, extraindo seu caráter de “valor de

uso”, ele aponta uma outra propriedade que lhe é inerente, ou seja, a de ela ser produto do

trabalho. As mercadorias, ou os produtos do trabalho humano, têm uma substância comum

que é o trabalho humano corporificado. E é aí que Marx vai distinguir o duplo caráter do

trabalho presente na mercadoria, a saber, “trabalho concreto” e “trabalho abstrato”. A

conceituação desses pares categóricos leva Marx a enfatizar como um bem produzido

socialmente que, se antes visava a satisfazer a necessidade social da família, grupos sociais,

estamentos etc., torna-se a posteriori, com o desenvolvimento social, um objeto de troca

mercantil, cuja finalidade é o entesouramento de uma classe e o empobrecimento de outra,

isto é, da burguesia e do proletariado. É essa trama da produção material humana, sob o

domínio e o controle do modo de produção capitalista, que Marx vai desvendar e denunciar

como uma forma de exploração de trabalho humano, escamoteada pela ideologia da

naturalidade do sistema de produção de mercadorias, ou melhor, pelos economistas clássicos

como Adam Smith, David Ricardo, dentre outros.

Se os diferentes trabalhos são trabalhos concretos particulares, porque visam produzir

valores de uso, bens úteis, que satisfaçam as necessidades humanas, então, se abstrairmos o

seu caráter útil, desaparecendo, portanto, as diferentes formas de trabalho concreto, sobra-lhe

apenas ser trabalho humano abstrato que põe valor nas coisas produzidas. Para analisar a

magnitude do valor de um objeto, Marx expõe os elementos constituidores desse valor, isto é,

a quantidade de trabalho corporificado no objeto e o tempo de trabalho necessário para a sua

produção. É preciso deixar claro que quase todo trabalho concreto, na sociedade capitalista, é

trabalho abstrato e é este que confere a grandeza de seu valor.

Um valor de uso ou um bem só possui valor, segundo Marx, se está cristalizado nele

trabalho humano abstrato. E, para medir essa grandeza de valor, é necessário perceber a

quantidade de trabalho, ou o tempo de trabalho nele materializado, quer dizer, a quantidade de

trabalho mede-se pelo tempo de sua duração, e o tempo de trabalho, por frações de tempo, como

71 MARX, O Capital, v. I, p. 42.

53

hora, dia, mês etc. Por outro lado, conforme Marx, o trabalho, como a substância dos valores de

uso, é trabalho humano homogêneo, dispêndio de idêntica força de trabalho. Mesmo que toda

força de trabalho na sociedade seja força de trabalho única, ela se constitui de inúmeras forças de

trabalho individuais. Daí Marx definir a força média de trabalho a partir de um tempo médio de

trabalho socialmente necessário para produzir uma determinada mercadoria.

“Trabalho” e “Tempo” são assim duas categorias-chave inseparáveis na reflexão

marxiana em O Capital, para se compreender como se dá a magnitude do valor, isto é, a partir

da quantificação desse tempo e da qualificação desse trabalho. Diz Marx, “O que determina a

grandeza de valor, portanto, é a quantidade de trabalho socialmente necessário ou o tempo de

trabalho socialmente necessário para a produção de um valor-de-uso.”72

Sabemos que a

produtividade trabalho é determinada por vários fatores tais como a destreza média dos

trabalhadores, o grau de desenvolvimento da ciência e sua aplicação tecnológica, a

organização social do processo de produção, o volume e a eficácia dos meios de produção e,

claro, as condições naturais. Tais condições podem determinar a maior ou menor

produtividade num determinado tempo e o maior ou menor valor de um produto, seja direta

ou inversamente.

Contudo, é fundamental discriminar melhor estas duas categorias – trabalho concreto e

trabalho abstrato – de forma mais sistemática. Marx, na seção 2, “O Duplo Caráter do

Trabalho Materializado na Mercadoria”, afirma que o trabalho concreto é aquele cujo produto

é valor de uso e, nesse sentido, ele associa o trabalho concreto a seu efeito útil. O exemplo do

casaco e do linho pode clarificar essa exposição, pois, sendo ambos os objetos valores de uso

qualitativamente diversos, seus trabalhos concretos/úteis são também qualitativamente

diferentes. Cada mercadoria, com seu valor de uso, é um trabalho útil particular, logo um

trabalho concreto. Assim, o corpo de uma mercadoria é sempre a encarnação de trabalho

humano abstrato, como também de um trabalho útil, concreto, quer dizer, o trabalho concreto

torna-se a expressão do trabalho humano abstrato. Vale salientar que os valores de uso, as

mercadorias, são conjunções de dois fatores: matéria fornecida pela natureza e trabalho. Logo,

a relação metabólica do homem com a natureza e com o trabalho de outros homens é a

condição fundamental da sua existência social, isto é, o trabalho é o fundamento da realidade

social. Portanto, nas palavras de Marx,

Todo trabalho é, de um lado, dispêndio de fôrça humana de trabalho, no sentido

fisiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor das

mercadorias. Todo trabalho, por outro lado, é dispêndio de fôrça humana de

72 MARX, O Capital, v. I, p. 46.

54

trabalho, sob forma especial, para um determinado fim, e, nessa qualidade de

trabalho útil e concreto, produz valôres-de-uso.73 Desse modo, Marx ratifica o trabalho (abstrato) como dispêndio do cérebro, músculos,

nervos, mãos etc., quer dizer, força humana de trabalho que atinge certo desenvolvimento

para ser empregada de múltiplas formas. O trabalho humano é medido então pelo dispêndio

da força de trabalho simples que qualquer homem comum tem em seu organismo, ou seja,

dependendo dos países e/ou estágios de civilização de uma determinada sociedade, o trabalho

médio simples muda de caráter.

Sabemos, no entanto, que as mercadorias são trabalho humano cristalizado e, nesse

sentido, elas se reduzem a uma abstração, a um valor. Todavia, a força humana de trabalho

em ação só cria valor quando se cristaliza na forma de um objeto, pois, caso contrário, não

cria valor. Daí a importância do trabalho abstrato, a “igualização” dos trabalhos, para criar o

valor das mercadorias no sistema capitalista. Reduzir todo trabalho da sociedade a um

trabalho social médio necessário à produção de um determinado produto é imprescindível

para a determinação dos lucros e dos salários no capitalismo. É isso que vai definir o grau de

subsistência do trabalhador e/ou o enriquecimento do capitalista.

Desta forma, a riqueza material de uma sociedade é medida pela quantidade de valores

de uso que ela produz, e, portanto, pela quantidade e qualidade do tipo de trabalho empregado

conjuntamente com o nível de desenvolvimento das forças produtivas, isto é, os instrumentos

de produção (tecnologia) e a organização social do trabalho. Na verdade, é o trabalho médio

socialmente necessário que vai definir o padrão econômico de uma sociedade, porém, isso não

quer dizer que esse padrão seja homogêneo em toda sociedade, sobretudo, numa sociedade de

classes com interesses antagônicos, na qual alguns se beneficiam mais que outros com o

resultado da produção da riqueza social. Diz Marx, por conseguinte, que em todos os estágios

sociais, o produto do trabalho é valor-de-uso, mas somente a partir de um determinado

período do desenvolvimento histórico é que o trabalho, realizado na produção de uma coisa

útil, trabalho despendido, transforma o produto do trabalho numa mercadoria. E, assim, Marx

demonstra o caráter misterioso da mercadoria na seção “O fetichismo da mercadoria”74

.

Fazendo então uma digressão, o caráter misterioso da mercadoria esconde os trabalhos

sociais úteis nela encarnados. Em primeira mão, Marx afirma que a mercadoria parece algo

trivial, algo compreensível, no entanto, vê nela algo de muito estranho, com sutilezas

metafísicas e até argúcias filosóficas. Como valor de uso, a mercadoria não tem nada de

73 MARX, O Capital, v. I, p. 54. 74 Sobre essa discussão do caráter misterioso da mercadoria, ver Ruy Fausto, Marx: lógica e política, tomo I, p.

103 ss.

55

misterioso, pois se destina a satisfazer as necessidades humanas, mas como produto da

atividade humana, enquanto desgaste do cérebro, nervos, músculos, sentidos etc. do homem,

ela é dispêndio de energia humana. Porém, o caráter misterioso da mercadoria provém do

disfarce da igualdade dos trabalhos humanos na forma de igualdade dos produtos dos

trabalhos como valores. Em outras palavras, a medida desses valores se dá a partir da duração

e do dispêndio da força humana de trabalho, tomando a forma de quantidade de valor dos

produtos do trabalho; e, por fim, à medida que as relações entre produtores tomam a forma de

relação social entre os produtos do trabalho. Mas o que caracteriza, de fato, o mistério da

mercadoria, segundo Marx, é o encobrimento das características sociais do próprio trabalho

humano, como se fossem características materiais e propriedades sociais inerentes à própria

mercadoria. O caráter misterioso da mercadoria é, na verdade, o ocultamento das relações

sociais entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total; quer dizer, quando tais

mercadorias refletem uma relação social à margem dos seus produtores, dissimulando o

caráter social de trabalhos nelas cristalizado, pois é o caráter social do trabalho (estranhado

e/ou alienado) que produz a mercadoria, possibilitando o seu fetichismo. Desta feita, é o

conjunto dos trabalhos particulares que forma, em suma, a totalidade do trabalho social

embutido nas mercadorias.

Nessa discussão sobre o fetichismo da mercadoria, Marx sinaliza algumas outras

reflexões relevantes sobre o trabalho social nela materializado. Primeiro, os objetos úteis se

convertem em mercadorias (objetos de troca), por serem produtos dos trabalhos privados, pois

o conjunto destes trabalhos forma a totalidade do trabalho social; segundo, os trabalhos

privados, como componentes do conjunto do trabalho social, se intercambiam a partir da troca

dos produtos de seus trabalhos; terceiro, as relações sociais dos trabalhos particulares

aparecem como relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas, mas não como

relações sociais entre os indivíduos e seus trabalhos; quarto, os trabalhos dos produtores

manifestam duplo caráter social, isto é, de acordo com sua utilidade, buscam satisfazer

determinadas necessidades sociais e, em seguida, a necessidade de seus produtores, se cada

trabalho privado útil puder ser trocado por outro trabalho privado; por último, Marx

complementa essa reflexão, ao dizer que os trabalhos úteis têm o caráter socialmente útil,

quando é necessário à sociedade; e socialmente igual, quando tal igualdade dos diferentes

trabalhos se dá na forma do valor, quer dizer, de valores de trocas.

O trabalho como fundamento da realidade social, portanto, está presente nas várias

reflexões marxianas, inclusive na seção “O fetichismo da mercadoria: o seu segrêdo”. Se é o

tempo de trabalho a medida de valor dos valores de troca, se é a quantidade de trabalho

56

materializado no objeto que determina as proporções deste valor, então é o trabalho social

médio ou socialmente necessário à produção de uma mercadoria qualquer que vai determinar

o valor da troca dos produtos. Por isso, para Marx, a determinação da quantidade do valor

pelo tempo do trabalho é um segredo oculto sob os movimentos visíveis dos valores relativos

das mercadorias. Descobrir este segredo é destruir essa aparência de casualidade que reveste a

determinação do valor das mercadorias produzidas pelo trabalho. Diz Marx, “os trabalhos

particulares realizados independentemente uns dos outros, mas interdependentes, em todos os

sentidos, como parcelas naturalmente integrantes da divisão do trabalho, são, de modo

contínuo, ajustados às proporções requeridas pela sociedade.”75

Dessa maneira, as formas que

transformam os produtos do trabalho em mercadorias, em meios de trocas, como pressupostos

da circulação das mesmas, já possuem as formas naturais da vida social, antes mesmo de os

homens apreenderem seu significado (já que consideram suas formas historicamente

imutáveis). É a forma do mundo das mercadorias ou a forma dinheiro, segundo Marx, que

dissimula o caráter social dos trabalhos privados entre os produtores particulares, em vez de

evidenciar o caráter universal do trabalho como trabalho humano abstrato.

Será o desenvolvimento de uma forma de trabalho superior a essa forma estranhada ou

alienada de trabalho capitalista que vai devolver ao ser social a sua condição humana

genérica. Marx já entrevê essa possibilidade histórica, quando – ao afirmar o desaparecimento

do reflexo religioso do mundo, como conditio sine qua non para haver condições práticas das

atividades cotidianas dos homens como relações racionais claras entre eles e entre eles e a

natureza – diz que

A estrutura do processo vital da sociedade, isto é, do processo da produção material, só pode desprender-se do seu véu nebuloso e místico, no dia em que fôr obra de homens livremente associados, submetida a seu contrôle consciente e planejado. Para isso, a sociedade de uma base material ou de uma série de condições materiais de existência, que, por sua vez, só podem ser resultado natural de um longo e penoso processo de desenvolvimento.

76

Para encerrar essa discussão fetichista dos valores de uso, concluímos que a

mercadoria, na sua aparência material, oculta as características sociais do trabalho, pois este,

na sua forma estranha, é a substância ou fonte da riqueza social; em outras palavras, a

mercadoria dissimula e ao mesmo tempo exprime a maneira social de um determinado

trabalho realizado, isto é, encobre seu caráter de trabalho explorado.

Marx, entrementes, em O Capital, no capítulo V – “Processo de trabalho ou o

processo de produzir valores-de-uso” –, apresenta os componentes fundamentais do processo

75 MARX, O Capital, v. I, p. 83-84. 76 Ibid., p. 88-89.

57

de trabalho que se inter-relacionam para efetivar um pôr teleológico, ou melhor, criar um

objeto que seja pari passu (simultaneamente) valor de uso (objeto de consumo) e valor de

troca (valor). Nessa reflexão, Marx ratifica o processo de trabalho como uma atividade

humana imprescindível em qualquer estrutura social determinada. Para Marx,

Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza,

processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla

seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de

suas fôrças. Põe em movimento as fôrças naturais de seu corpo, braços e pernas,

cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes

forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a,

ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela

adormecidas e submete ao seu domínio o jôgo das fôrças naturais.77

Não se trata, para Marx, das formas instintivas ou animais do trabalho, como na época

do homem primitivo que usava sua força física instintivamente, mas de um trabalho

exclusivamente humano, diferentemente da atividade do animal. N’A ideologia Alemã78

,

Marx já denota esse caráter diferencial, quando afirma que podemos distinguir os homens dos

animais pela consciência, pela religião e por tudo o que se queira, mas o que os distingue

mesmo dos animais é a forma de produzir seus meios de existência, pois, ao fazerem isso,

produzem sua própria vida material. Com outras palavras, Marx diz que

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de

um arquiteto ao construir sua colmeia (sic). Mas o que distingue o pior arquiteto da

melhor abelha é que êle figura na mente sua construção antes de transformá-la em

realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes

idealmente na imaginação do trabalhador. Êle não transforma apenas o material

sôbre o qual opera; êle imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em

mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de

subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito. Além do esfôrço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta através da

atenção durante todo o curso do trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto

menos se sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método de execução de

sua tarefa, que lhe oferece por isso menos possibilidade de fruir da aplicação das

suas próprias fôrças físicas e espirituais.79

Estas duas citações anteriores, nessa seção de O Capital, confirmam o aspecto positivo

do trabalho, quando Marx enfatiza o caráter teleológico e ontológico do trabalho na sociedade

humana, sobretudo, quando ele diferencia a atividade vital do homem da do animal, na qual o

primeiro produz sob o domínio da consciência e da liberdade, e o último, sob o domínio da

pura necessidade instintiva. É impossível aos homens abrirem mão dessa condição laboral

para se perpetuar e/ou se reproduzir como espécie/gênero humano, como ser social

interdependente na complexa sociedade dita civilizatória. Desta feita, diz Marx, portanto, que

77 MARX, O Capital, v. I, p. 202. 78 Cf. MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 10-11. 79 MARX, loc. cit.

58

1) toda atividade adequada a um fim é o próprio trabalho; 2) a matéria a que se aplica o

trabalho é o objeto de trabalho; e 3) os meios de trabalho é o instrumental de trabalho. Estes

são os elementos, a seu ver, que compõem o processo de trabalho.

“Trabalho”, “matéria-prima” e “instrumentos de trabalho” formam o tripé dessa

teleologia humana que busca construir uma ontologia do ser social. Marx começa então a

explicitar esses elementos que compõem o processo laboral que determina a condição onto-

histórica do homem, ou seja, especifica a finalidade de cada um deles no processo da

atividade humana adequada a um fim. Primeiramente, Marx expõe a diferenciação entre

objeto de trabalho e matéria-prima, a saber, a matéria-prima é objeto de trabalho, mas nem

todo objeto de trabalho é matéria-prima; por conseguinte, Marx afirma que o meio de trabalho

é uma coisa ou um complexo de coisas que o trabalhador insere entre ele e o objeto de

trabalho ou matéria-prima, quer dizer, é o processo de mediação teleológica que vai fazer com

que o trabalhador ponha sua atividade em ação, id est, trabalhe; e, por último, revela a

imanência do caráter teleológico e/ou ontológico do trabalho, dizendo que

No processo de trabalho, a atividade do homem opera uma transformação,

subordinada a um determinado fim, no objeto sôbre que atua por meio do

instrumental de trabalho. O processo extingue-se ao concluir-se o produto. O

produto é um valor-de-uso, um material da natureza adaptado às necessidades

humanas através da mudança de forma. O trabalho está incorporado ao objeto sôbre

que atuou. Concretizou-se e a matéria está trabalhada. O que se manifestava em

movimento, do lado do trabalhador, se revela agora qualidade fixa, na forma de ser, do lado do produto. Êle teceu e o produto é um tecido.80

Desse modo, fica evidente que em todo o processo de trabalho, do ponto de vista do

resultado ou do produto, meio e objeto de trabalho são meios de produção e o trabalho é trabalho

produtivo. Sendo assim, o que diferencia as épocas históricas, conforme Marx, não é o que se

produz, mas como e com que meios de trabalho os homens produzem ou, melhor dizendo,

A maneira como os homens produzem seus meios de existência depende, antes de

mais nada, da natureza dos meios de existência encontrados e que eles precisam

produzir. [...] O que eles são coincidem, pois, com sua produção, isto é, tanto com o

que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são

depende, portanto, das condições materiais da sua produção.81

São os meios de trabalho, portanto, que definem o desenvolvimento da força humana

de trabalho, como também indicam as condições, nas quais se realiza o trabalho humano.

Marx82

também reconhece que o grau de desenvolvimento das forças produtivas de uma

nação depende do grau de desenvolvimento alcançado pela divisão social do trabalho; e esta

80 MARX, O Capital, v. I, p. 205. (Grifo nosso). 81 MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 11. 82 Cf. Ibid., p.11-12.

59

divisão determina as relações dos indivíduos entre si no tocante à matéria, aos instrumentos e

produtos do trabalho. Isso mostra como o caráter teleológico e ontológico do trabalho se

realiza na história da humanidade. Por outras palavras, a maneira como os indivíduos

manifestam sua vida revela o que realmente eles são, ou seja, o que eles são coincide com sua

produção material.

No entanto, discutindo sobre os fatores de produção – matéria-prima e instrumentos de

produção –, Marx reflete sobre a relação entre trabalho vivo e trabalho morto, isto é, homem e

máquina. Para ele, uma máquina que não serve ao processo de trabalho é inútil, além, claro,

de ela ser também inutilizável por sofrer a deterioração do tempo pela ação destruidora das

forças naturais. Mas é o trabalho vivo que põe a máquina em movimento, em ação,

arrancando-a da inércia para produzir valores de uso ou valor, pois o trabalho é um processo

de consumo, quer dizer, de consumo individual (consumo de produtos como meio de vida) e

de consumo produtivo (consumo dos meios que põe a força de trabalho em movimento). A

ênfase nesta reflexão marxiana sobre os elementos necessários ao processo de trabalho é a

reafirmação da importância do trabalho como fundamento da existência humana, pois nessa

mesma seção, um pouco mais adiante, ele reforça esse aspecto teleológico e ontológico do

trabalho, dizendo que

O processo de trabalho [...] é atividade dirigida com o fim de criar valôres-de-uso,

de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é condição necessária

do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição natural eterna da

vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes

comum a tôdas as suas formas sociais.83

Podemos inferir então que 1) o trabalho é uma atividade humana “inabolível” da sua

existência histórica, pois é algo indispensável para o processo de perpetuação da humanidade,

ou seja, ele é ontológico mesmo, à medida que “o trabalho se transmuta de ação em ser, de

movimento em produto concreto”84

; 2) que são as necessidades humanas (costumeiras ou

novas) que determinam o processo da produção humana; e 3) que a produção social determina

também tais necessidades. Esse jogo determinativo recíproco, portanto, é algo que se

sobrepõe à própria vontade individual, porque esta fica refém de um fetichismo criado pelo

próprio sistema da produção social.

Vários são os qualificativos que Marx extrai da categoria trabalho no modo de

produção capitalista. Isto ele faz no decorrer de toda a sua exposição do livro primeiro de O

Capital. É, sobretudo, na explicitação da mais valia (absoluta e relativa) como processo de

83 MARX, O Capital, v. I, p. 208. 84 Ibid., v. I, p. 214.

60

exploração do trabalho – que não só produz valores de uso, mas também valores de troca ou

valor, ou seja, transforma capital em mais capital, – que Marx tipifica os trabalhos como:

necessário e excedente, produtivo e improdutivo, abstrato e concreto, simples e complexo;

como também faz a distinção entre trabalho e força de trabalho85

(o grau de sua exploração).

Embora tenhamos referido antes, en passant, às formas de trabalho abstrato, concreto,

produtivo etc., não nos cabe aqui explicitar esses usos terminológicos em Marx, devido aos

limites que esta investigação nos impõe.

Porém, é interessante ressaltar a contradição entre trabalho produtivo e improdutivo86

– que Mészáros explicita – como algo inerente ao antagonismo fundamental entre os

interesses do capital e do trabalho, ou seja, tal contradição surge do caráter de exploração do

próprio processo de trabalho capitalista e da necessidade de se encontrar uma forma de

controle adequada à sua perpetuação, pois o capitalista para valorizar o capital, além de

modernizar seus meios de produção com aquisição de novas máquinas ou instrumentos de

produção, reorganiza o processo do tempo de produção do trabalho para evitar desperdício de

tempo e matéria-prima, contratando uma espécie particular de assalariado (capatazes,

foremen, overlookers contre-maîtres), isto é, fiscais dos trabalhadores que comandam o

processo de produção em nome do capitalista. Seria, portanto, um trabalho de

superintendência feito pelos trabalhadores, como faz o sistema toyotista japonês, pois, como

diz Marx nos Grundrisse, “Riqueza é tempo disponível e nada mais [...]”87

Também seria importante tomar aqui, a partir dos Manuscritos Econômico-

Filosóficos, uma questão conflitante que se efetiva como contradição e luta amarga entre dois

sujeitos antagônicos na sociedade capitalista (o capital e o trabalho), ou seja, expor tout court

a temática marxiana do “Salário do Trabalho”. Marx expõe nesse texto as péssimas condições

de trabalho e salário do trabalhador, o perigo da união dos trabalhadores e sua proibição para

evitar consequências penosas para a união dos capitalistas e, sobretudo, o porquê do salário

baixo como conditio sine qua non para a acumulação capitalista. Entretanto, limitemo-nos à

questão do valor do salário que Marx desmascara como uma falsa troca de equivalência entre

o capital e o trabalho.

85 MARX, O Capital, v. I, p. 187: “Por fôrça de trabalho ou capacidade de trabalho compreendemos o conjunto

das faculdades físicas e mentais, existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as quais êle põe

em ação tôda a vez que produz valôres-de-uso de qualquer espécie.” Sobre esses conceitos de trabalho em Marx,

ver a sucinta reflexão em OLIVEIRA, Jorge Luís de. Trabalho. In: Alienação, Trabalho e Emancipação Humana

em Marx. Fortaleza: Edições UFC, 2007. p. 93-126. 86 Cf. MÉSZÁROS, István. Contradição entre trabalho produtivo e não-produtivo. In: Para além do capital. São

Paulo: Boitempo Editorial, 2002. p. 617. 87 MARX, Grundrisse apud MÉSZÁROS, op. cit., p. 619, nota 15.

61

Assevera Marx que o capitalista toma como valor do trabalho ou preço do trabalho, o

salário, ou seja, a compra de uma jornada de trabalho do operário. Mas o que é o salário?

Vejamos. Marx, em Miséria da Filosofia, já se contrapunha a Proudhon que confundia a

quantidade de trabalho, contido num produto, como retribuição ao valor do trabalho, ou seja,

confundia a medida do tempo de trabalho necessário para a produção de uma mercadoria

como a medida do valor do trabalho. Em outras palavras, para Proudhon, o salário é o custo

de trigo etc., ou preço íntegro de todas as coisas, ou, melhor dizendo, a proporcionalidade dos

elementos que compõem a riqueza. Para Marx, o salário é, ao contrário, o preço do custo de

vida do trabalhador durante o trabalho, id est, o custo mínimo de reprodução da sua existência

enquanto trabalhador (da sua família), como reposição do desgaste físico e mental com o

mínimo de provimentos: alimentação, habitação, criação dos filhos (futuros proletários

potenciais a se explorar) etc.

Anota então Ruy Fausto mutatis mutandis que há uma ilusão na circulação capitalista,

quando se parte da ideia de que o operário encontra o capitalista no mercado e lhe vende a sua

força de trabalho. Na realidade, os dois são meros suportes do movimento do capital, (re)

criados e reunidos neste movimento que denota uma falsa troca de equivalência entre dinheiro

(salário) e força de trabalho (operário).88

O dinheiro que se apresenta na forma de salário é

deveras trabalho extorquido do próprio operário, ou seja, ele mesmo labuta para pagar seu

salário, seus mantimentos de sobrevivência humana enquanto trabalhador. Portanto, “o que o

capitalista dá ao operário (à classe operária) em forma de salário é na realidade uma parte da

riqueza criada pela própria classe operária. [...] A riqueza produzida por uma classe é sugada

continuamente pelos representantes de uma outra classe [...]”89

Citando Balibar,90

Fausto

declara sans phrases (sem rodeios) que a análise da reprodução faz desaparecer a aparência

do contrato livre entre o operário e o capitalista que está no começo da reprodução.

Compreender este processo equivale a dizer que o capital não é apenas apropriação do

trabalho alheio, um poder de compra desse trabalho somente, mas uma forma inapropriada de

se apropriar do trabalho alheio sem troca igual, equivalente, quer dizer, o capital se apropria

88 Sobre a ideologia da troca de equivalentes no capitalismo liberal e no tardo capitalismo em Habermas, Cf.

MENEZES, Ana Maria Dorta de. Habermas: Indicações para uma reflexão sobre a crítica à centralidade do

trabalho. In: Idem (Orgs.) et al. Trabalho, educação, estado e a crítica marxista. Fortaleza: Edições UFC, 2009.

p. 38 et seq. 89 FAUSTO, Marx: lógica e política, tomo I, p. 48. 90 Cf. Ibid., tomo I, p.49. Neste primeiro capítulo, Fausto coloca a questão dos dois sujeitos históricos principais

do capitalismo – o capitalista e o trabalhador – como suportes deste sistema e analisa essa dialética, essa

passagem entre os sujeitos e os predicados, componentes da transição do capitalismo para o socialismo, não

enquanto uma negação abstrata tais como os discursos do entendimento, mas enquanto uma dialética que

entende o predicado como sujeito plenamente ontológico (o homem é socialista), ou seja, o sujeito não mais

negado pelo predicado, mas afirmado por este.

62

do trabalho sob a aparência da troca justa como resultado do livre contrato entre possuidores

de mercadorias e nunca como uma expropriação contínua. Por isso, Fausto adverte – ao

analisar a questão da segunda negação na reprodução – que

[...] não se deve comparar salário e força de trabalho, isto é, uma mercadoria e uma

soma de dinheiro que corresponde ao valor dessa mercadoria, deve-se comparar o

valor em dinheiro que é transferido ao operário com o valor que ele produz. Ora,

uma parte do valor que ele produz e que é apropriado é de qualquer modo

compensado pelo fato de que há uma transferência de uma soma de dinheiro, que

representa o mesmo valor, das mãos do capitalista às mãos do operário. É a mais-

valia que aparece rigorosamente como trabalho extorquido, isto é, apropriado como

todo valor criado, mas não compensado por um desembolso correspondente por

parte do capitalista.91

Para Marx, “A mais baixa e a única necessária tabela de salários é aquela que prevê à

subsistência do trabalhador durante o trabalho e a um suplemento adequado para criar a

família a fim de que a raça dos trabalhadores não se extinga.”92

Adam Smith – diz Marx –

define o salário normal como o mais baixo, o mais compatível com uma existência bestial.

Neste jogo da oferta e procura da força de trabalho, o trabalhador sempre sai perdendo, pois

os preços de trabalho são mais estáveis do que os preços dos meios de subsistência,

inversamente variando muitas vezes. Enquanto os lucros do capital podem ter uma variação

mínima ou média entre os capitalistas, no caso dos trabalhadores essa variação é muito maior,

promovendo a concorrência entre os próprios trabalhadores no mercado de trabalho.

A descida e subida dos salários trazem algumas desvantagens para o trabalhador no

sistema salarial capitalista. Os salários descem por causa da baixa procura de trabalhadores, e

sobem quando aumenta o preço dos alimentos. Em anos baratos, o aumento dos salários

ocorre devido à intensificação da busca por trabalhadores, e caem quando os preços das

provisões diminuem. Dessa forma, preços dos salários e preços dos meios de subsistência se

contrabalançam no jogo da acumulação capitalista. Assim o trabalhador, segundo Marx, não

só luta pelos meios físicos de subsistência, mas luta também para (man)ter o trabalho, luta

pela possibilidade e meios de realizar sua atividade.

Percebemos então, em “Salário do Trabalho” (Manuscritos de 1844), elementos

reflexivos que referendam o trabalho como o fundamento da realidade social: primeiro, à

medida que a riqueza da sociedade diminui, o trabalhador sofre mais, porém, a classe dos

proprietários ganha e acumula mais, podendo viver melhor que a classe trabalhadora que vive

seu momento de declínio; segundo, quando a riqueza da sociedade começa a crescer, a

situação favorece os trabalhadores, porque há justamente a competição entre os capitalistas

91 FAUSTO, Marx: lógica e política, tomo I, p. 191. 92 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 101.

63

pela procura da força de trabalho, ou seja, a demanda por trabalhadores é maior do que a

oferta (neste caso, porém, a subida dos salários implica excesso de trabalho entre os

trabalhadores, pois para ganhar mais, os trabalhadores têm que trabalhar mais, subtrair seu

tempo livre e realizar o trabalho extenuante, quase escravo, isto é, sua liberdade fica alienada

a serviço da avareza do capital); terceiro, quando o país atinge o último grau possível de

riqueza, provavelmente os salários do trabalho serão muito baixos, mas os lucros também,

pois a competição por empregos crescerá absurdamente, provocando a redução dos salários e,

também, a dos trabalhadores.

Tendo em vista essas pressuposições, Marx não hesita em dizer que a miséria social é

o objetivo da economia capitalista. Há, portanto, miséria progressiva do trabalhador numa

situação decrescente da sociedade, miséria complicada numa situação em expansão e miséria

estacionária na situação final. Está aí, nas palavras de Adam Smith – diz Marx –, o tipo de

sociedade baseada na mercantilização do trabalho, cuja maioria não é feliz. Tomando o ponto

de vista de A. Smith, de que todo o produto do trabalho pertence ao trabalhador, porém este

recebe somente uma parte mínima e absolutamente indispensável do produto, Marx denuncia

o “ser-aí” do trabalhador como um ser inumano, enquanto classe escravizada, pois o

trabalhador, impossibilitado de comprar tudo, é obrigado a vender a si mesmo e a sua

humanidade.93

Como consequência, diz Marx citando os economistas, o trabalho é o único

preço imutável das coisas, pois está submetido às flutuações do mercado. Mesmo que a

divisão do trabalho aumente o poder de produção do trabalho e a riqueza da sociedade, o

trabalhador fica empobrecido e se transforma em apêndice da máquina que controla seu ritmo

de trabalho, a partir de um tempo mínimo determinado pela produção (automação).

De tal modo, Marx se apossa desses pontos de vista, justamente para retratar o quadro

ontológico do trabalho na sociabilidade capitalista. Para Marx, “o trabalho em si, não só nas

presentes condições, mas universalmente, na medida em que a sua finalidade se resume ao

aumento da riqueza, é pernicioso e deletério, e que semelhante conclusão se tira do próprio

argumento do economista, se bem que ele não preste atenção.”94

Por isso, para Marx,

dependendo da situação social em que vive o homo faber, qualquer forma de privação que o

ser humano possa ter é devido à condição da sociedade, do trabalho que esta sociedade realiza

para se autorreproduzir. Se a sociedade tem uma situação progressiva, o declínio e o

93 Cf. MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 107. No momento, não vamos abordar a ideologia da perda

da centralidade do trabalho feita por um pensamento sociológico dominante, isto é, os ideólogos da sociedade

sem trabalho que advogam o fim da teoria marxiana do valor ou crise do trabalho abstrato no capitalismo

contemporâneo, cuja validade teórica, para eles (Habermas et al.), só tinha no capitalismo liberal do Séc. XIX

estudado por Marx. Cf. DORTA DE MENEZES, Ana Maria (Orgs.) et al. Op. cit., p.37-48. 94 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 108.

64

empobrecimento do trabalhador é resultado do seu próprio trabalho e da riqueza produzida

por ele, logo a miséria surge como corolário da essência do trabalho moderno. Se a sociedade

vive uma condição de opulência, os trabalhadores vivem uma situação de miséria

estacionária. No entanto, para ir além do nível da economia política, Marx põe duas questões

ético-políticas: 1) Qual o significado da redução da maior parte dos homens ao trabalho

abstrato no desenvolvimento da humanidade?; 2) Que erros cometem os reformadores que

querem elevar os salários para melhorar a vida dos trabalhadores ou mesmo que consideram a

“igualdade” dos salários como o fim da revolução social?

O trabalho para economia política, segundo Marx, é a forma de atividade aquisitiva,

pois ela concebe o trabalhador como simples animal, besta de carga, cujas necessidades se

limitam às necessidades corporais. Uma nação que deseja desenvolver-se espiritualmente com

maior liberdade, não pode ser vítima das suas necessidades materiais, escrava do corpo, pois o

ser humano precisa usufruir da cultura e, para isso, necessita de tempo livre. Nesse sentido, a

máquina, afirma Marx em O Capital, pode conceder tal tempo para o exercício do ócio, com

menos esforço de trabalho a realizar, ou seja, para além do reino da necessidade, “começa o

desenvolvimento das forças humanas com um fim em si mesmo, o reino genuíno da liberdade,

o qual só pode florescer tendo por base o reino da necessidade. E a condição fundamental

desse desenvolvimento humano é a redução da jornada de trabalho.”95

Todavia, não é isso que acontece, pois o que a máquina faz é bestializar o homo faber,

tornando-o peça acessória de seu movimento. Isso elevou bastante os acidentes de trabalho e

até mesmo a mortalidade do trabalhador, como também seu esgotamento físico e psíquico.

Somente numa vida futura, tais forças brutas (as máquinas) poderão ser escravas e servas dos

trabalhadores. A economia política, portanto, só vê o trabalho abstratamente como uma coisa,

uma mercadoria que sobe ou desce seu valor de acordo com a variação da oferta e da procura

de trabalhadores ou do desenvolvimento das forças produtivas. Trabalho é vida. E se não tem

trabalho para trocar por alimento, o ser humano “morre”, diz Marx. Contudo, o trabalho como

fundamento da realidade social, realizado no capitalismo, é apenas motor do fundamento de

uma riqueza fetichista de uma classe social, a burguesa.

Em As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem, Lukács analisa o

caráter ontológico do trabalho no processo da formação social e do próprio indivíduo. Inicia a

reflexão, afirmando que o marxismo raramente foi entendido como uma ontologia na história

da filosofia, porém infere que há um elemento filosoficamente resolutivo em Marx que

95 MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, v. VI, p. 942.

65

consiste no esboço de uma ontologia histórico-materialista para superar teorica e praticamente

o idealismo lógico-ontológico de Hegel. Assim, a ontologia marxiana afasta-se da ontologia

de Hegel, de todo o elemento lógico-dedutivo, como também de todo elemento teleológico no

plano da evolução histórica. O ponto de partida para Marx, diz Lukács, não é dado pelo átomo

(como nos velhos materialistas), nem pelo ser abstrato (como em Hegel), mas pela

materialidade da realidade social.

Para Lukács, todo o existente deve ser objetivo, ser sempre parte de um complexo

concreto, logo a consequência é que o ser em seu conjunto é visto como processo histórico; e

“as categorias” – como formas moventes e movidas – “são formas do existir”, “determinações

da existência”. Isso não quer dizer que Marx subestimava a importância da consciência em

relação à materialidade, pois ele compreendia a consciência humana como produto tardio do

desenvolvimento do ser material. Isso é bastante explicitado em seu livro A Ideologia Alemã,

onde surge o embrião do novo materialismo (marxista). Então, a base ontológica do

pensamento é a realidade, quer dizer, a consciência reflete a realidade, e é sobre essa base que

é possível intervir na realidade para modificá-la e, portanto, a consciência tem um real poder

no plano do ser, ou seja, um poder ontológico efetivo.

Mas para chegarmos a uma compreensão plausível do trabalho como fundamento da

realidade social, faz-se necessário compreender essa ontologia do ser social desenvolvida por

Lukács, expressado no parágrafo anterior. Anota Lukács “que um ser social só pode surgir e

se desenvolver sobre a base de um ser orgânico e que esse último pode fazer o mesmo apenas

sobre a base do ser inorgânico.”96

As formas simples do ser requerem formas preparatórias de

passagem de um tipo de ser para outro. E é na forma de salto que isso ocorre, ou seja, entre

uma forma simples de ser e o aparecimento real de uma forma de ser mais complexa

qualitativamente nova, embora sua gênese não possa ser deduzida da forma mais simples.

Salto, nesse sentido, quer significar aperfeiçoamento da nova forma de ser.

O trabalho torna-se, a partir daí, a categoria ontológica fundante da realidade social, da

condição do existir humano. Consoante Lukács, um determinado grau de desenvolvimento do

processo de reprodução orgânica é imprescindível para que possa nascer o trabalho como base

dinâmico-estruturante de um novo tipo de ser. Por outro lado, a essência do trabalho não se

resume em os seres vivos competirem biologicamente com seu mundo ambiente para apenas

se reproduzir, pois, ao fabricar seus produtos para saciar-se, o homem se aparta dessa

condição existencial meramente biológica, justamente a partir de uma consciência a priori de

96 LUKÁCS, George. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. In: Temas de Ciências

Humanas. São Paulo: Ed. Ciências Humanas, nº 4, 1978. p. 3.

66

que ele tem de produzir algo. Como diz Marx, o homem projeta idealmente o que ele vai

produzir, a saber: “O produto [...] é o resultado que no início do processo existia ‘já como

representação do trabalhador’, isto é, de modo ideal.”97

Portanto, a consciência tem um papel

decisivo na delimitação materialista entre ser da natureza e ser social. Tanto o complexo da

necessidade como o complexo da liberdade só adquirem verdadeiro sentido, sobretudo no

plano ontológico, quando se atribui um papel ativo da consciência.

O homem é um ser que dá respostas às suas problemáticas existenciais, pois toda

atividade de trabalho é uma resposta à carência humana. Em outras palavras, o homem como

ser que dá respostas, pari passu (simultaneamente) ao desenvolvimento social, generaliza, isto

é, ele transforma em perguntas seus carecimentos e as possibilidades de satisfazê-los. Assim,

resposta e pergunta são produtos imediatos da consciência que orienta a atividade. O homem,

desse modo, funda e enriquece sua própria atividade. Nessa perspectiva ontológica, a

necessidade material enquanto motor do processo de reprodução individual e social põe

efetivamente em movimento o complexo do trabalho. Assim, o trabalho é a condição

fundamental para que haja o desenvolvimento superior da atividade humana, quer dizer,

desenvolvimento dos próprios homens que trabalham. É a partir do trabalho que há a

transformação consciente e ativa do mundo, ou melhor, o trabalho é, de facto, a expressão

nova da peculiaridade do ser social, convertendo-se no modelo de uma nova forma de ser em

seu conjunto.

Na visão lukacsiana, portanto, o trabalho é formado por várias posições teleológicas

que põem para funcionar séries causais. Diferenciando da causalidade, que, nesse sentido,

representa uma lei espontânea em que os movimentos das formas de ser encontram a sua

expressão geral, “a teleologia é um modo de pôr” – posição realizada sempre pela consciência

– que pode movimentar apenas as séries causais. Nenhuma das filosofias anteriores

reconheceu a posição teleológica como uma particularidade do ser social, pois elas se viam

obrigadas a inventar um sujeito transcendente e/ou uma natureza especial, em que as

correlações atuavam de modo teleológico, a fim de atribuir à natureza e à sociedade

tendências de desenvolvimento de tipo teleológico. Numa sociedade, a maior parte das

atividades, cuja totalidade é posta em movimento com origem teleológica, é feita realmente de

conexões causais que não são de caráter teleológico.

Dessa maneira, a práxis social, que tem o trabalho como modelo, possui então caráter

contraditório. Mas, se por um lado, a práxis é uma escolha por alternativas, à medida que todo

97 LUKÁCS. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. In: op. cit., p. 4.

67

ser humano tem que escolher, por outro lado, o ato social aparece como uma decisão entre

alternativas com relação a posições teleológicas futuras. Na verdade, a necessidade social só

se afirma por pressão exercida sobre os indivíduos, objetivando orientar as decisões deles.

Essa condição já foi expressa por Marx quando ele diz que os homens são forçados pelas

circunstâncias a ter uma determinada ação, senão podem se arruinar. Isso está expresso por

Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “os homens não fazem a história como a

querem, mas a partir das circunstâncias com que se deparam”. Neste sentido, Lukács declara

que, desta ineliminável condição humana na sociedade, surgem os problemas reais

(complicados nas situações mais complicadas) do complexo chamado liberdade.

Lukács ressalta, por conseguinte, as categorias de “valor” e “dever-ser” como

categorias ontológico-sociais do homem. Tais categorias não se encontram na natureza

inorgânica ou orgânica, em que, na primeira natureza, as mudanças de um modo de ser para

outro não têm nada a ver com valores; e na segunda, o processo de reprodução é

ontologicamente uma adaptação ao ambiente, onde pode ocorrer fracasso ou êxito. No

trabalho, acontece o inverso, ou seja, “o ser-para-nós” do produto torna-se uma propriedade

objetiva realmente existente que pode desempenhar suas funções sociais, isto é, caso o

produto seja posto e realizado corretamente. Por isso, o produto do trabalho tem um valor

(porém, em caso de fracasso, não o tem), à medida que tal objetivação do real do “ser-para-

nós” faça com que realmente possam nascer os valores. Portanto, o “dever-ser” possui o

conteúdo teleológico que determina o comportamento social do homem, porque tal

comportamento é determinado por finalidades sociais, e não por inclinações puramente

naturais ou espontaneamente humanas.

Entretanto, o que torna o trabalho essencial é que os movimentos e os homens que os

realizam são dirigidos por fins determinados previamente e, neste sentido, todo movimento

está submetido a um “dever-ser”. No processo global do trabalho, o sujeito realiza uma

posição teleológica conscientemente, embora não esteja em condições de perceber todos os

condicionamentos da própria atividade, ou, talvez, todas as suas consequências. Claro que o

ato humano consciente pode se realizar, mesmo que ele não tenha um domínio total das

circunstâncias em que está envolvido. Esta ineliminável situação nos coloca duas importantes

consequências: primeiro, a dialética interna do constante aperfeiçoamento do trabalho, ou

seja, quando o trabalho é realizado, seus resultados são observados e com isso aumenta a faixa

de determinações cognoscíveis, tornando o trabalho mais variado e abarcando campos

maiores de conhecimentos em extensão e intensidade; segundo, o processo de

aperfeiçoamento do trabalho não elimina a incognoscibilidade do conjunto das circunstâncias,

68

pois esse modo de ser do trabalho desperta no homem uma sensação íntima de realidade

transcendente. Assim sendo, o trabalho não é somente o modelo objetivamente ontológico de

toda práxis humana, mas o modelo que serve de exemplo à criação divina da realidade, quer

dizer, onde as coisas surgem como criação de um “ser onisciente” (o homem).

Nessa perspectiva, o trabalho é então concebido como “um ato de pôr consciente” que

pressupõe um conhecimento concreto das finalidades e dos meios determinados. O trabalho

traz como uma de suas características ontológicas o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento.

Quando o trabalho se constitui ontológica e teleologicamente, ele chama à vida produtos

sociais mais elevados. Quando a autonomia das atividades se dá, é por causa da separação

entre o conhecimento e as finalidades e os meios no próprio trabalho concreto. Um exemplo

ilustrativo é quando as ciências se tornam campos autônomos de conhecimento e de

investigação. Ou como diz Lukács,

Quanto mais universais e autônomas se tornam essas ciências, tanto mais universal e

perfeito se torna o trabalho; quanto mais elas crescem, se intensificam etc., tanto

maior se torna a influência dos conhecimentos assim obtidos sobre as finalidades e

os meios de efetivação do trabalho.98

Isso demonstra que tal diferenciação entre os trabalhos e as ciências como seus suportes

resulta no aperfeiçoamento da divisão do trabalho99

, a saber, uma consequência do

desenvolvimento do próprio trabalho.

No entanto, o que percebemos é que essa nova divisão social do trabalho fundamenta

um modo de trabalho que estrutura a sociedade baseada na produção fetichista das

mercadorias, a saber, o trabalho como suporte teleológico de uma determinada ideologia

calcada no interesse antagônico das classes sociais que estruturam o sistema capitalista. Desse

modo, o trabalho se confina numa unilateralidade finalística de executar interesses de uma

única classe social, a que domina politica e economicamente numa sociedade. Daí os conflitos

emergirem das contradições das modalidades de produção mais desenvolvidas como a

capitalista. Isso envolve, de forma profunda, a totalidade da vida social, os sujeitos históricos

que determinam a realidade social. Ao se tornarem conscientes desses conflitos de interesses

classistas, os homens se inserem na luta por uma nova modalidade de sociedade, de ser social.

98 LUKÁCS. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. In: op. cit., p. 9. 99 Sobre a temática da divisão social do trabalho, ver Karl Marx, La division del trabajo y las máquinas. In:

Miseria de la Filosofia, p. 103-117; Manuscritos económico-filosóficos, p. 220-227; A Ideologia Alemã, p. 12-

13, 26-28,34,49,55,56,59,62,92; e Divisão do trabalho e manufatura. In: O Capital, v. I, p. 386-422. Há também

outra discussão interessante, a partir de Benetti e Cartelier, sobre os trabalhos concreto e abstrato, trabalhos

privados, independentes um dos outros, mas dependentes materialmente uns dos outros enquanto membros

particulares da divisão do trabalho, embora cujo contexto reflexivo se situe na crítica da forma do valor. Ver a

respeito Ruy Fausto, valor de uso, trabalho concreto, divisão do trabalho. In: Marx: lógica e política, tomo I, p.

145 et seq.

69

Lukács menciona, assim, a base sócio-ontológica da realidade humana. Sabemos que

todo evento social é resultado de posições teleológicas dos indivíduos que é, em si mesmo, de

caráter puramente causal. No entanto, sabemos que o processo global da sociedade é um

processo também causal, com suas normatividades, embora não seja objetivamente

direcionado para realizar determinadas finalidades. Apesar de alguns homens terem

conseguido realizar seus objetivos, nem sempre os resultados produzidos não são os que eles

previram anteriormente. Essa discordância interior entre as posições teleológicas e os seus

efeitos causais aumenta com o crescimento e complexificação das sociedades e com a intensa

participação dos indivíduos nas sociedades. Isso é naturalmente, conforme Lukács, resultado

da contraditoriedade concreta. Lênin chamava isso de fator subjetivo, ou seja, um fator

modificador e decisivo que resulta da reação humana em relação às tendências de movimento

no processo histórico-social.

A transformação interna e externa do ser social a partir do trabalho faz com que o

homem deixe a condição de ser natural para tornar-se pessoa humana, ou melhor afirmando, o

homem transforma-se de espécie animal em gênero humano, devido a determinado grau

relativo de desenvolvimento. Isso é o resultado das séries causais que aparecem no conjunto

da sociedade. Tal progresso é uma síntese das atividades humanas que se deu com o progresso

econômico objetivo, mesmo que sob forma de conflitos sociais que lhe são inerentes. No

desenvolvimento econômico realizado até hoje, podemos então apresentar três perspectivas

evolutivas: 1) uma tendência de diminuir o tempo de trabalho necessário à reprodução dos

homens; 2) o processo de reprodução tornou-se cada vez mais social (globalizado); e 3) o

desenvolvimento econômico cria ligações qualitativas e quantitativas mais intensas entre as

sociedades singulares (pequenas e autônomas).

Na visão de Lukács, Marx extrai todas as consequências do desenvolvimento histórico

a partir da sua teoria do ser e do devir; e faz a grande descoberta de que através do trabalho os

homens se criam e se autocriam, advertindo, porém, que a história humana até hoje tem sido a

pré-história da humanidade. Para Marx, uma autêntica história só começa com o comunismo

ou com o estágio superior do socialismo. Isso quer significar que as relações sociais humanas

vão ter uma base ontológica laboral superior a esta, ou seja, onde o trabalho humano deixará

de ser mercantil, fetichista, para se tornar uma troca “de” e/ou “entre” atividades. Essa nova

forma do ser social, essa vida comunitária baseada na inter-relação de atividades

intercambiáveis, é a condição sine qua non para o desenvolvimento autêntico das energias

humanas.

A autêntica história da humanidade, portanto, é a do “reino da liberdade” que só pode

70

florescer sob a base do “reino da necessidade” (com uma nova base material de reprodução

humana). É aí que a personalidade humana, sua individualidade sui generis, se consolida

enquanto indivíduo livre, criativo e singular, pois é na coletividade que a verdadeira

individualidade se manifesta plenamente. O desenvolvimento das capacidades ou a

manifestação dos talentos naturais vai se diversificar cada vez mais para poder realizar o devir

genuíno da personalidade humana. E, assim, só quando o trabalho enquanto “pôr teleológico”

consciente e volitivo for completamente dominado pela humanidade, não sendo mais apenas

um meio de vida, mas a primeira carência da vida, quando ele não for mais coercitivo,

estranhado e desprazeroso, é que o homem terá aberto o caminho social da atividade humana

como fim verdadeiramente autônomo, isto é, a realização da própria liberdade da humanidade

autêntica em toda sua plenitude.

1.3 A Política: Consciência de Classe e Luta de Classes em Rumo ao Socialismo

Sabemos que há formulações gerais acerca da política em diversos textos de Marx,

embora de forma fragmentária e pouco sistematizada. Conforme Chagas100

, Marx participou

intensamente da política, mesmo não sendo um militante ativista, e cita os episódios

principais dos quais Marx participou ativamente ou apenas observou atentamente, escrevendo

sobre os mesmos, tais como a Revolta dos Tecelões da Silésia (1844), a Revolução Alemã

(1848) e a Comuna de Paris (1871). A partir desses três episódios históricos, Marx nos legou

uma vasta produção teórica em que analisou, criticou e narrou tais momentos políticos, ou

seja, as Glosas Críticas (sobre a Revolta dos Tecelões), Artigos da Gazeta Renana (sobre a

Revolução Alemã) e A Guerra Civil na França (sobre a Comuna de Paris). Também escreveu

outros textos que trataram da política como forma de emancipação universal da humanidade e

aqui podemos citar Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, A Questão

Judaica, os Manuscritos Econômico-Filosóficos, A Ideologia Alemã, Manifesto do Partido

Comunista, As Lutas de Classes na França, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, A Revolução e

Contra-Revolução, O Capital e a Crítica ao Programa de Gotha que constituem, assim, as

contribuições teóricas mais importantes para se compreender as matrizes e os fundamentos da

reflexão marxiana sobre a política. Na verdade, quatro categorias, pelo menos, fazem parte

desse desenvolvimento teórico-político de Marx que podem ser resumidas em Estado (político

moderno), Sociedade Civil, Emancipação Humana e Socialismo.

100 Cf. CHAGAS, Eduardo Ferreira. A crítica à política em Marx. In: ADRIANA E SILVA SOUSA (Orgs.) et

al. Trabalho, filosofia e educação no espectro da modernidade tardia. Fortaleza: Edições UFC, 2007. p. 67 et

seq.

71

Iniciemos, então, a partir da Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel –

Introdução (1843), onde Marx se coloca contra a tentativa de se aperfeiçoar o Estado e a

política. Nessa exposição, Marx se contrapõe a Hegel que concebe o Estado como instância

universal em que se diluem os interesses particulares da sociedade, mesmos os interesses

antagônicos e conflitantes, ou seja, a família, a sociedade civil, a individualidade e a

particularidade são amalgamadas no interesse universal de todos, a saber, numa entidade

universal chamada Estado. O Estado é aí o sujeito determinante, o princípio fundante, e a

família e a sociedade civil são predicados da ideia universal. Noutras palavras, o Estado é,

para Hegel, a Razão Universal, a Ideia Absoluta, que contempla todos os interesses de classes

sociais; o Estado é o mediador das diferentes vontades sociais. Para Marx, em contraste com

Hegel, o Estado (burguês) é o grande fomentador da separação entre sociedade civil e

sociedade política, quer dizer, ele aliena da sociedade civil o poder de decisão política para si,

só que em benefício da classe que o domina economica e politicamente, isto é, a classe

dominante da sociedade.

Quando Marx afirma nesse texto da Introdução que o homem não é um ser abstrato

que está fora do mundo e diz que “o homem é o mundo do homem, o Estado e a

sociedade”101

, ele assevera que a realidade social é o demiurgo das instituições que controlam

o homem. O mundo é o próprio reflexo político e religioso do homem, isto é, do Estado e da

sociedade, nos quais está inserido como ser social. Fazendo uma análise sobre o torpor da

religião, como produto da sociedade em que o homem constrói uma história e uma felicidade

ilusória, Marx anota que a miséria religiosa é a expressão da miséria real ou protesto contra a

miséria real. A religião substitui, de certa forma, a política como consolo ao sofrimento

humano, pois abolir a felicidade ilusória, patrocinada pela religião, é exigir impreterivelmente

a felicidade real, na qual é construída a partir de uma ação política radical que possa abolir a

condição social que precisa dessas ilusões, sejam elas políticas ou religiosas. Se o homem se

livra dessas ilusões e reconquista a razão, a sua tarefa histórica se realiza, ao estabelecer a

verdade deste mundo que é resgatar o homem da sua perda de si próprio e para si mesmo

enquanto ser genérico, ser universal, ou, melhor dizendo, desmascarar a autoalienação

humana tanto nas suas formas sagradas (religiosas) como não sagradas (econômicas), ou

como mesmo diz Marx: “A crítica do céu transforma-se na crítica da terra, a crítica da

religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política.”102

Em outras

palavras, cabe agora fazer a crítica da política na forma como ela se desenvolve

101 MARX. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: op. cit., p. 77. 102 MARX. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: op. cit., p. 78.

72

historicamente na sociedade moderna, isto é, negar o nosso presente político (Marx fala aqui

da Alemanha de 1843 que ainda não atingiu o ano de 1789 da Revolução Francesa)103

que é

“um facto poeirento no quarto das arrumações histórico das nações modernas.”104

Parafraseando Marx, quando ele diz que é preciso declarar guerra à situação da

Alemanha de sua época, porque está abaixo do nível da história e de toda a crítica, podemos

inferir então que é preciso declarar guerra à situação do capitalismo contemporâneo que pôs a

história do homem ao nível mais perverso e vil de sua condição humana. A situação

socioeconômica em que o ser humano vive hoje, sob as rédeas da perversa estrutura

metabólica do Capital, urge ser negada ou superada por outra situação histórico-social. O

capital é o carrasco do homem (do planeta) como frisa Marx. Por outras palavras,

Na luta contra esta situação, a crítica [anticapitalista] não é paixão da cabeça, mas a

cabeça da paixão. Não é uma lanceta anatómica, mas uma arma. O seu alvo é um

inimigo que ela procura, não refutar, mas destruir. É que o espírito de tal situação já foi refutado. [...] A crítica já não necessita de ulterior elucidação do seu objeto,

porque já o entendeu. A crítica não é fim em si, mas apenas um meio; a indignação é

o seu modo essencial de sentimento, e a denúncia a sua principal tarefa.105

Marx já demonstrava, portanto, que a humanidade precisava se afastar do seu passado,

quer dizer, enterrar uma formação antiga para que outra nova possa nascer; é assim que tem

que ser feito com os poderes políticos que sustentam uma formação histórica caduca. Não foi

à toa que Marx fez a crítica ao presente político alemão. Para ele, no entanto, depois que a

crítica se ocupar da moderna realidade social e política, colocando autenticamente os

problemas humanos, faz-se necessário apreender o objeto a partir do próprio objeto, ou seja,

no caso, apreender a relação da indústria ou do mundo da riqueza em geral com o mundo

político é um dos problemas fundamentais dos tempos modernos. Nesse sentido, fazer

rupturas com as condições políticas é sujeitar à crítica essas condições existentes, a saber,

negar as circunstâncias políticas e jurídicas reais não apenas idealmente como fez a Alemanha

no tempo de Marx, mas criar as condições práticas de efetivação desse Aufhebung histórico.

Como ele mesmo diz, realizar a filosofia é realizá-la na prática, ou melhor, “Em política, os

alemães pensaram o que as outras nações fizeram.”106

Criticando então o status quo do sistema político alemão, como expressão e

consumação do antigo regime ou o espinho na carne do Estado moderno, Marx anota que o

status quo da ciência política alemã é a expressão da própria imperfeição do Estado moderno

103 Cf. MARX, Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: op. cit., p. 79. 104 MARX, op. cit., p. 79 105 Ibid., p. 80. 106 MARX. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: op. cit., p. 85.

73

em si, a degenerescência de sua carne. Daí, podemos extrair das inferências de Marx que a

prática política sem uma teoria, como um reflexo real das condições presentes, não tem força

material, pois a energia prática da política requer a crítica da arma como força espiritual que

se apodere das massas, senão fica impossível derrubar as condições em que o homem surge

como ser humilhado, escravizado, abandonado e desprezível, ou seja, como “pobre cão”,

como ele cita na Introdução. Fazer a emancipação política não é para Marx fazer a

emancipação humana em geral. “Uma revolução radical só pode ser uma revolução de

necessidades reais”107

, como diz Marx. É preciso pôr em debate as deficiências civilizadas do

mundo político moderno que não conseguiu solucionar as deficiências bárbaras do antigo

regime. Nesse caso, é denunciar a insensatez dos sistemas políticos que constroem barreiras

entre o Estado e a sociedade; e, para Marx, demolir tais barreiras gerais da política atual é

conditio sine qua non para realizar o processo de restituição do poder à sociedade.

Marx, na verdade, faz uma crítica cáustica à utopia da política moderna que se

restringe a fazer uma revolução parcial, meramente política, deixando intactos os pilares do

edifício social que sustentam a realidade hostil presente. Para Marx, somente uma classe da

sociedade capitalista pode despertar o entusiasmo político nas massas para edificar a

verdadeira sociedade da liberdade, o proletariado. No entanto, seus interesses têm que ser a

representação de todos os interesses da sociedade. E não basta apenas ter energia e

consciência revolucionárias, pois, para que esta classe possa ter essa posição de classe

libertadora e de direção política, é necessário que ela concentre em si todos os males sociais e

represente o todo da sociedade. Se o proletariado é o representante negativo desta realidade

opressora, sua força material para chegar ao poder político é a classe oprimida, mas

politicamente organizada. A possibilidade positiva da emancipação total da humanidade para

Marx é quando o proletariado se constitui como “classe para si” e anuncia a dissolução da

ordem social existente, declarando, assim, o mistério da sua própria existência que é nada

mais nada menos uma existência calcada na negação da propriedade privada. A teoria crítica é

arma intelectual do proletariado, e o proletariado é arma material da teoria crítica. Como diz

Marx, “nenhum tipo de servidão será abolido, se toda servidão não for destruída.”108

E para

Marx, essa realização não se dará jamais apenas com o tipo de emancipação política que se

restringe a tentar implementar direitos sociais onde o sistema capitalista é o grande entrave

para tal. É somente o movimento revolucionário que possibilitará essa condição humana,

destruindo a base social que sustenta a exploração humana.

107 Ibid., p. 88. 108 MARX. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: op. cit., p. 93.

74

Conforme Mészáros109

, a concepção de política mais antiga de Marx se articulou a

partir de uma tripla negação que coloca em perspectiva as potencialidades e limitações do

modo político de ação, isto é, nas circunstâncias da “miséria alemã”. Com efeito, Marx deu

ênfase na severidade das limitações que a política desenvolvia a partir do Estado político

moderno, ou melhor, dos direitos civis constituídos de jure e não plenamente de fact. Para

Mészáros, a definição negativa de política se estendeu como um tema central de sua obra até o

final de sua vida. Assim sendo, a negação de Marx se direciona para três objetos:

o primeiro objeto de sua crítica foi o subdesenvolvimento alemão e uma

ação política vácua sob os limites de um capitalismo feudal. A Alemanha

estava com seu calendário político atrasado bem antes de 1789;

o segundo objeto concerne à negação da filosofia política de Hegel que

elevou ao nível de ciência as ilusões de realizar uma mudança, mas

permanecendo nos limites da matriz política anacrônica e,

por fim, o terceiro objeto diz respeito às limitações da política francesa,

embora mais avançada do que a alemã, mas era inadequada a uma

transformação social mais radical que pudesse suprimir o antagonismo

social crescente.

Foi nesse contexto histórico alemão que Marx fez uma avaliação crítica das limitações

políticas locais, quer dizer, levou-as a um questionamento radical da natureza e dos limites da

ação política (na modernidade). Por isso, sua tarefa de compreender a “anatomia da sociedade

burguesa”, a partir da análise da crítica da economia política, proporcionou-lhe fazer uma

contrapartida positiva à sua tripla negação, só que num plano material. Também Marx, apesar

de ter criticado Hegel, criticou os políticos radicais e revolucionários que não buscaram o

fundamento do mal na essência do Estado, mas numa determinada forma de Estado.

Nas Glosas Críticas, Marx já alude ao comportamento do Estado moderno político,

afirmando que “O Estado jamais verá no ‘Estado e na organização da sociedade’ a razão das

mazelas sociais, [...].”110

. Para Marx, Estado e sociedade não são duas coisas diferentes do

ponto de vista político. “O Estado é a organização da sociedade.”111

O Estado considera a

existência dos problemas sociais como decorrentes, ou das leis da natureza que independe do

109 Cf. MÉSZÁROS. Os limites da ação política. In: Para além do capital, p. 563. 110 MARX, Karl. Glosas Críticas ao Artigo “‘O rei da Prússia e a reforma social’ de um prussiano”. In: MARX,

Karl e ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 38. 111 Ibid., p. 38.

75

controle das forças humanas (catástrofes naturais), ou da vida privada, ou da ineficácia na

administração. Daí o Estado querer atribuir a causa dos males sociais como consequências de

deficiências acidentais ou intencionais da administração, porque esta é a atividade

organizadora dele. Se o Estado é a máquina maior de ação política na sociedade moderna, esta

ação se realiza na contradição entre vida pública e privada, isto é, na contradição entre os

interesses públicos e particulares. Para sair do ponto de vista político e perceber o Estado a

partir do ponto de vista crítico, Marx infere que

Quanto mais poderoso for o Estado, ou seja, quanto mais político for um país, tanto

menos estará inclinado a buscar no princípio do Estado, ou seja, na atual

organização da sociedade, da qual o Estado é a expressão ativa, autoconsciente e

oficial, a razão das mazelas sociais e a compreender seu princípio universal. O

entendimento político é entendimento político justamente porque pensa dentro dos

limites da política. Quanto mais aguçado, quanto mais ativo ele for, tanto menos capaz será de compreender [as] mazelas sociais. O período clássico do entendimento

político é a Revolução Francesa. Longe de vislumbrar no princípio do Estado a

fonte das deficiências sociais, os heróis da Revolução Francesa veem, antes, nas

deficiências sociais a fonte das irregularidades políticas. Nesta Linha, Robespierre

vê a vasta pobreza e a grande riqueza apenas como um empecilho para a democracia

pura. Em consequência, ele deseja estabelecer uma frugalidade espartana universal.

O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, ou seja, quanto mais

bem-acabado for o entendimento político, tanto mais ele acredita na onipotência da

vontade, tanto mais cego ele é para as limitações naturais e intelectuais da vontade,

tornando-se, portanto, tanto menos capaz de desvendar a fonte das mazelas

sociais.112

Tal citação mostra como Marx desmascara essa ilusão política que o Estado encarna

do entendimento político, ou seja, “política” e “voluntarismo” estão enredados um no outro, e

os paliativos políticos baseados no desejo emana do “substitucionismo”, como diz Mészáros,

inerente à política (moderna) enquanto tal. Basta substituir o governante ou o partido político

no poder de Estado que os males sociais poderão ser resolvidos. Daí surgir, então, o

voluntarismo político que traz em si a ilusão de que apenas a boa vontade política é o motor

da mudança social. Com efeito, a política (de domínio) como é parcial, não consegue realizar

a autêntica universalidade da sociedade, pois ela impõe seus próprios interesses aos

indivíduos sociais, apropriando-se para si própria do poder de arbitrar sobre os interesses

parciais conflitantes em nome de uma universalidade usurpada. Dessa forma, Marx percebeu

a contradição entre o social e o político como algo inconciliável, pois, à medida que a base

social é antagônica, isto é, perpetuada por uma estrutura política, o Estado seria irredimível,

logo descartável. Nas palavras de Marx,

O Estado não pode suprimir a contradição entre a finalidade e a boa vontade da

administração, por um lado, e os seus meios e sua capacidade, por outro, sem

suprimir a si próprio, pois ele está baseado nessa contradição. Ele está baseado na

112 Ibid., p. 40-41.

76

contradição entre a vida pública e a vida privada, na contradição entre os interesses

gerais e os interesses particulares. [...] Sim, frente às consequências decorrentes da

natureza associal dessa vida burguesa, dessa propriedade privada, desse comércio,

dessa indústria, dessa espoliação recíproca dos diversos círculos burgueses, frente a

essas consequências a lei natural da administração é a impotência. Porque, essa

dilaceração, essa sordidez, esse escravismo da sociedade burguesa é o fundamento

natural sobre o qual está baseado o Estado moderno, assim como a sociedade

“burguesa” do escravismo era o fundamento natural sobre o qual estava baseado o

Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são inseparáveis.

[...] Se quisesse eliminar a impotência de sua administração, o Estado moderno teria de eliminar a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, teria de eliminar a si mesmo, porque ele existe tão somente como antítese a ela.113

Percebemos então que Marx enfatiza a necessidade de abolir o Estado para resolver as

contradições sociais da sociedade civil. Isso está articulado à ideia de que o Estado e a política

(liberal burguesa) não são capazes de abolir a si mesmos. Entretanto, essa abolição não pode

se realizar a partir de um puro voluntarismo, ou seja, Marx ressalta que a futilidade dos

esforços voluntaristas não consegue efetivar a abolição por mero decreto político, sobretudo,

porque o Estado é um dos fatores materiais mais poderosos que existe sob o controle da classe

burguesa dominante. Nesse sentido, Marx coloca em foco as limitações inevitáveis da política

(burguesa) que está escrito nas Glosas:

Qual foi a consequência da ordem da Convenção? A consequência foi que passou a

haver uma ordem a mais no mundo e que, um ano depois, a Convenção seria sitiada

por mulheres famintas. A convenção, contudo, era o Suprassumo da energia

política, do poder político e do senso político.114

Mészáros115

indaga que se o Estado é impotente para solucionar os problemas sociais

tangíveis, como poderia o Estado abolir a si próprio para dar um fim as contradições que ele

mesmo produz? Se esta não é a tarefa do Estado, qual força da sociedade está incumbida de

realizar esse objetivo? Para Mészáros, tais questões deveriam ter sido respondidas pelo

movimento socialista. E as respostas encontradas são as mais diferentes como também os são

as estratégias das pessoas engajadas na luta.

Antes, porém, cabe ressaltar que Marx abordou o caráter do Estado na Questão

Judaica, em que os judeus alemães lutavam para efetivar sua emancipação política, quer

dizer, libertar o Estado alemão da influência da religião cristã, para torná-lo laico e, assim,

eles se inserirem na participação política do Estado. Se Bauer quer submeter à crítica apenas o

Estado cristão e não o Estado enquanto tal, ele cai em erro, afirma Marx. A emancipação

política é a própria emancipação da burguesia e não da sociedade de uma forma geral, pois

113 MARX, Karl. Glosas Críticas ao Artigo “‘O rei da Prússia e a reforma social’ de um prussiano”. In: op.cit.,

p. 39-40. (Grifo nosso). 114 Ibid., p. 37. 115 MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 566.

77

somente a emancipação humana é que contempla a todos, a partir da revolução social e não

revolução política apenas. Essa discussão sobre a relação entre emancipação política e

emancipação humana perpassa toda essa reflexão marxiana. A tentativa de fazer com que o

Estado deixe de ter uma atitude teológica, para se comportar politicamente, é apenas uma

crítica ao Estado religioso, logo a crítica em si é somente uma crítica política do Estado. Marx

deixa bem claro que, embora o Estado cesse de ser religioso, sua base humana é religiosa,

quer dizer, a religião continua a existir na vida privada do indivíduo social. Nesse sentido, a

existência da religião não se opõe de maneira nenhuma à perfeição do Estado.

O Estado se “liberta” dos constrangimentos religiosos sem necessitar que também o

homem se liberte deles. Mas isso não significa, para Marx, que ter um Estado livre é condição

sine qua non de se ter um homem livre. O indivíduo “se liberta de um constrangimento

através do Estado, politicamente, ao transcender as suas limitações, em contradição consigo

mesmo, e de maneira abstracta, estreita e parcial.”116

Essa concepção de Estado como

intermediário entre o homem e a liberdade humana é, de certa forma, a priori, uma elevação

política do homem; mas, para Marx, é apenas correto do ponto de vista político (burguês),

pois do ponto de vista revolucionário, o homem tem que agir de modo “não político” para

abolir o estado de coisas em que se encontra a sociedade em geral. O que no máximo o Estado

pode fazer é eliminar, à sua maneira, as distinções estabelecidas por nascimento, posição

social, educação e profissão, quando decreta que são distinções não políticas. Trata-se,

portanto, de apresentar tais distinções como elementos que compõem a vida real da nação,

isto é, de que não é produto da contradição entre o Estado e a sociedade. Nesse sentido, o

Estado enquanto Estado abole politicamente a propriedade privada, quer dizer, o homem

decreta, de maneira política, a abolição da propriedade privada. No entanto, diz Marx, tal

supressão política da propriedade privada, com o surgimento do Estado, é apenas uma

abolição na sua aparência, porque reconhece a universalidade de todos, ou seja, a supressão

não abole unicamente a propriedade privada, mas esta pressupõe a existência do Estado.

Não podemos desconsiderar que o Estado alcançou, sobremaneira, a universalidade do

pensamento, a saber, a universalidade que passa por cima dos elementos particulares.

Contudo, “O Estado político aperfeiçoado é, por natureza, a vida genérica (19) do homem em

oposição à sua vida material. Todos os pressupostos da vida egoísta continuam a existir na

sociedade civil, fora da esfera política, como propriedade da sociedade civil.”117

Para Marx, o

Estado político, em relação à sociedade civil, está em constante oposição, ou seja, há a

116 MARX. A Questão Judaica. In: Manuscritos económico-filosóficos, p. 43. 117 MARX. A Questão Judaica. In: op. cit., p. 45.

78

contradição entre o Estado político e seus pressupostos (a propriedade privada), entre os

elementos espirituais (cultura e religião) e os profanos (direito e economia), entre o interesse

geral e o privado, e, por fim, a cisão entre o Estado político e a sociedade civil. É na base

dessas contradições que estão as necessidades que asseguram a existência da sociedade civil,

garantindo a sua indispensabilidade, quer dizer, a sociedade civil em oposição ao Estado

político sabe da sua necessidade, como o Estado político admite a sua existência como

indispensável à sociedade civil.

Marx salienta em A Questão Judaica que a emancipação política representa, sem

dúvida, um grande progresso, mas frisa que ela não é a forma final da emancipação humana

dentro da ordem mundana até hoje existente, a saber, uma emancipação real, prática. Nessa

perspectiva, Marx afirma que “ninguém deve iludir-se quanto aos limites da emancipação

política. A cisão do homem em pessoa pública e pessoa privada, o deslocamento da religião

do Estado para a sociedade civil, não é uma fase, mas a consumação da emancipação

política.”118

A reflexão marxiana também aborda uma questão relevante sobre os direitos civis

ou os direitos universais do homem. Se se parte do pressuposto político de que o homem para

ser emancipado politicamente tem que obter direitos civis ou direitos do homem, então se faz

necessário a sua efetivação real. Sabemos que a ideia de direitos do homem, segundo Marx, é

uma descoberta do século XVIII, nascida da Revolução Francesa; não é uma ideia inata, mas

uma conquista na luta contra as tradições históricas em que o homem foi educado até aquele

período. Os direitos do homem, na concepção do pensamento burguês, são, em parte, direitos

políticos que só podem ser exercidos se ele for membro da comunidade. Assim sendo, direitos

civis passam a ser uma categoria da liberdade política, como diz Marx. Porém, esses direitos

do homem, do cidadão, na verdade, são, dentro da esfera social burguesa, direitos do homem

egoísta, do homem separado dos outros homens e da comunidade. Os principais direitos do

homem podem ser resumidos na liberdade, igualdade, propriedade privada e segurança, isto é,

direitos baseados nos valores da sociedade burguesa.

Dentro, pois, dessa forma política da sociedade burguesa moderna, afirma Marx que

os direitos do homem não vão além do homem egoísta, do homem enquanto membro da

sociedade civil, ou seja, enquanto indivíduo separado da comunidade, confinado a si próprio,

ao seu interesse privado e ao seu capricho pessoal. Para Marx, então, a consagração burguesa

dos direitos do homem está distante de realizar o homem como um ser genérico e/ou social,

pois a vida do homem, a sociedade, é como algo externo ao indivíduo, como limitador da sua

118 Ibid., p. 47-48.

79

existência social ou independência original. A união humana na sociedade da propriedade

privada burguesa é efetivada apenas pela necessidade natural, pela carência e pelo interesse

privado, cujo objetivo é a preservação da propriedade privada e das pessoas egoístas. Desse

modo, Marx ironiza os liberais, chamando-os de “libertadores políticos”, à medida que estes

reduzem a cidadania e a comunidade política a simples meio de preservar os chamados

direitos do homem, quer dizer, o cidadão é puramente servo do homem egoísta. Marx ainda

denuncia que “a esfera em que o homem age como ser genérico vem degradada para a esfera

onde ele actua como ser parcial; e que, por fim, é o homem bourgeois e não o homem como

citoyen que é considerado como o homem verdadeiro e autêntico.”119

De certo modo, Marx, ao citar os bons termos da Declaração dos Direitos do Homem

como – “O objectivo de toda associação política é a preservação dos direitos naturais e

imprescritíveis do homem” (Declaração de 1791) ou “O governo é instituído a fim de garantir

ao homem o desfrutar dos teus direitos naturais e imprescritíveis” (Declaração de 1793) –,

afirma que a vida política no seu período de entusiasmo juvenil, que atingiu seu clímax pela

força das circunstâncias, declara-se como simples meio, cuja finalidade é a vida da sociedade

civil; porém, na percepção de Marx, sua prática revolucionária se contradiz com a teoria. Um

exemplo é a violação da intimidade das correspondências que acontece, enquanto a segurança

é proclamada como um dos direitos fundamentais do homem; e a restrição à liberdade de

expressão na imprensa quando esta compromete a liberdade política. Dessa forma, afirma

Marx,

[...] o direito humano à liberdade deixa de ser um direito a partir do momento em

que entra em conflito com a vida política, enquanto, na teoria, a vida política é

apenas a garantia dos direitos do homem, dos direitos do homem individual e deve,

portanto, suspender-se logo que entra em contradição como o seu objectivo, os

direitos do homem.120

Nesse sentido, a prática constitui-se como exceção e a teoria como regra, quer dizer, se

alguém quisesse achar a prática revolucionária como correta expressão de tal relação, o

problema continuaria o mesmo, ou seja, para “os libertadores políticos” (ironiza Marx), a

relação entre meio e fim fica invertida: o meio (a vida política) aparece como o fim e o fim (a

vida da sociedade civil) aparece como meio. Isso é, para ele, a ilusão ótica da consciência dos

“libertadores políticos”, id est, os que acham que a libertação se dá por pura via da política

(liberal burguesa) de consagração dos Direitos do Homem na sociedade. Uma revolução

política (no sentido liberal) para Marx muda apenas os sujeitos da classe dominante, a saber,

119 MARX. A Questão Judaica. In: op. cit., p. 58-59. 120 MARX. A Questão Judaica. In: op. cit., p. 59.

80

muda-se apenas a forma de dominação de uma classe por outra, mas não a estrutura de

dominação social que tem como base a propriedade privada dos meios de produção. A

revolução política (burguesa) abole o caráter político da sociedade civil, põe em liberdade o

espírito político e constitui uma esfera de comunidade, mas deixa separado o Estado da

sociedade. Por outras palavras, a emancipação política (burguesa) foi apenas a emancipação

da sociedade civil a respeito da política. Com a queda do feudalismo, quando se constitui o

Estado político, a sociedade civil se dilui em indivíduos independentes, cujas relações são

regulamentadas por leis. Surge então o homem apolítico, produto de uma revolução política

que dissolve a sociedade civil em suas componentes, porém sem revolucionar estas

componentes e sem submetê-las à crítica.

O fato é que, segundo Marx, a revolução política (burguesa) considera a sociedade

civil, o mundo das necessidades, o trabalho, os interesses privados e a lei civil como base de

sua própria existência. Nessa perspectiva, o homem como membro da sociedade civil é

considerado como homem autêntico, cidadão; já o homem político (liberal burguês) é um

homem abstrato, artificial, uma pessoa alegórica, moral, logo um homem egoísta. Para

completar essa reflexão, Marx faz uma citação de Rousseau que formula a abstração do

homem político, senão vejamos:

Quem quer que ouse empreender o estabelecimento das instituições de um povo

deve sentir-se como se fosse capaz de mudar a própria natureza humana, de

transformar cada indivíduo que, no isolamento, é um todo completo mas solitário,

em parte de algo que é maior que ele, do qual ele tira de certa maneira a sua vida e o

seu ser, de mudar a natureza do homem a fim de a fortificar; de substituir uma

existência parcial e moral pela vida física e independente [com a qual todos somos

dotados por natureza]. Numa palavra, a sua tarefa consiste em tirar ao homem as

suas próprias forças e dar-lhe em troca forças alheias que ele só poderá utilizar com

a ajuda de outros homens.121

Para Marx, portanto, toda a emancipação visa restituir o mundo humano e as relações

humanas ao próprio homem, ao contrário da emancipação política (burguesa) que reduz o

homem a um membro da sociedade civil como indivíduo independente e egoísta, e também a

um cidadão, a uma pessoa moral. A plena emancipação humana, na visão de Marx, só se dará

quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato, quando ele, enquanto

homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas relações pessoais, tiver se tornado

um ser genérico e, por fim, quando ele tiver conseguido reconhecer e organizar suas próprias

forças como forças sociais para que essas duas forças nunca mais se separem.122

Na parte 2 de A Questão Judaica – “Bruno Bauer, a capacidade de os atuais judeus e

121 MARX. A Questão Judaica. In: op. cit., p. 62-63, nota 31. 122 Cf. MARX. A Questão Judaica. In: op. cit., p. 63.

81

cristãos se tornarem livres” –, Marx nos mostra a face mercenária da política, quando alude

que os judeus têm o dinheiro como força de influência sobre o poder político. Em outras

palavras, para Marx a emancipação do judeu se dá não só pela aquisição do dinheiro, mas,

sobretudo, porque o dinheiro se tornou um poder mundial. Citando as palavras de Bauer,

Marx diz que “O judeu, que é simplesmente tolerado em Viena, por exemplo, determina a

sorte de todo o império pelo seu poder financeiro.”123

E mais adiante, ao reafirmar que o

judeu teoricamente se encontra privado dos direitos políticos, na prática, exerce um enorme

poder e o usa em grande escala da influência política em assuntos de menor monta. Por isso,

ele conclui dizendo que “A contradição que existe entre o poder político prático do judeu e os

seus direitos políticos é a contradição entre política e o poder do dinheiro em geral. A política

é em princípio superior ao poder do dinheiro, mas na realidade tornou-se seu escravo.”124

Ora,

diz Marx, se a necessidade prática, o egoísmo, é o princípio da sociedade civil, esta se revela

como produtora do Estado político.

Na Introdução de As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850, Engels afirma que

os conflitos políticos são, sobretudo, consequências de fatos econômicos. Certamente, anota

Engels, que uma visão clara do conjunto da história econômica de um determinado período

não pode ser obtida no próprio momento vivido, mas só posteriormente, depois de ter

selecionado todo o material para análise. Segundo Engels, o método materialista deve se

limitar a reduzir os conflitos políticos às luzes dos interesses entre as classes sociais e as

frações das classes existentes, determinados pelo desenvolvimento econômico, e demonstrar

que os diferentes partidos políticos são apenas a expressão política mais ou menos adequada

das referidas classes e frações de classes. A Revolução de Fevereiro de 1848 marcou a

revolução social do proletariado em Paris, colorida pelas lembranças da Revolução de 1789.

Disso resultaram vários levantes vitoriosos em cidades europeias como Milão, Viena, Berlim

até chegar à fronteira russa, deixando abalada a burguesia de todos os países que buscavam se

refugiar nos braços da reação monarco-feudal, recém-destituída da história. Mas foi após

junho de 1848 que se travou a grande batalha entre o proletariado e a burguesia; contudo,

Engels e Marx, depois das derrotas de 1849, não partilhariam mais absolutamente das ilusões

da democracia vulgar, agrupada em torno de governos provisórios em país de infiéis. Daí

Engels reconhecer os erros de avaliação, a ilusão dos pontos de vista construídos naquele

período, ou seja, a história desmentiu tanto Marx quanto Engels sobre as condições de

combate do proletariado, pois o modo de luta de 1848 tornou-se obsoleto.

Conforme Engels, as revoluções se reduziram até a sua época à derrubada do domínio

123 MARX, op. cit., p. 68, nota 7. 124 Ibid., p. 69.

82

de uma determinada classe e a sua substituição por outra. Todas as classes dominantes eram

pequenas minorias em relação à massa dominada do povo. Na verdade, tomava-se o poder de

uma classe dominante minoritária para que a outra classe minoritária se erguesse

hegemonicamente, isto é, esta tomava em suas mãos o poder do Estado, transformando as

instituições públicas de acordo com seus interesses de classe. Como conclui Engels, nesta

Introdução, “a forma comum de todas estas revoluções era serem revoluções de minorias; mas

esta, seja por isso, seja pela atitude passiva e não resistente da maioria, aparentava representar

todo o povo.”125

Para Engels, o que caracterizava todas as revoluções dos tempos modernos

era: a cisão da minoria vitoriosa, a saber, metade ficava satisfeita com os resultados e a outra

metade queria ir adiante, apresentando novas reivindicações (radicais); os vencidos achavam-

se traídos ou lançavam à má sorte a responsabilidade da derrota; as conquistas da primeira

vitória só eram asseguradas pela segunda vitória do partido mais radical; e, por fim, os

radicais, ao alcançar o que era necessário, abandonavam a cena e seus epígonos os seguiam.

O resultado final dessas lutas políticas na França levou Marx e Engels a perceberem

que não havia ainda um amadurecimento do estado de desenvolvimento econômico no

continente europeu que pudesse levar o movimento proletário à supressão da produção

capitalista. Em outras palavras, a história demonstrou-lhes que este desenvolvimento

econômico apoderou-se de todo o continente, concedendo cidadania à grande indústria em

vários países de bases capitalistas que ainda tinham grande capacidade de expansão. Para

Engels, só havia uma única teoria universalmente reconhecida, a de Marx, que formula com

precisão os objetivos finais da luta. Engels afirma, por conseguinte, que só um grande exército

de socialistas internacionais organizados, disciplinados, com uma clarividência e certeza da

luta proletária, é que poderia alcançar esse objetivo, ou seja, a transformação social. E aí

Engels toca na questão da maturidade política do proletariado, porque os fatos de 1848-1850

só demonstraram a imaturidade das aspirações do proletariado. Este necessitaria criar as

condições para que essas aspirações possam amadurecer.

Quando Engels fala do sufrágio universal como um método de luta do proletariado

inteiramente novo, fala com ressalvas, mesmo constando no Manifesto Comunista como

sendo uma das mais importantes conquistas democráticas para as tarefas do proletariado

militante. O sufrágio universal não pode ser encarado como instrumento de emancipação total

da humanidade, pois a burguesia cria leis e/ou instituições que limitam a prática da eleição

como forma de “emancipação” dos trabalhadores. Claro que as eleições, segundo Engels,

125 MARX, Karl. As lutas de classe na França de 1848 a 1850. In: Marx e Engels. Obras escolhidas, São Paulo:

Alfa-Omega, [s.d.], v. 1, p. 97.

83

criam certo temor na burguesia que está em constante vigilância de sua ordem social vigente.

O máximo que o proletariado pode fazer no parlamento é criticar e denunciar a prática política

e econômica de seus adversários de classe. O próprio Engels salienta que os operários

revolucionários latinos já encaravam o sufrágio universal como uma armadilha, como um

instrumento de esbulho.

De certa maneira, o lado positivo do sufrágio universal, segundo Engels, é que ele

permite à classe proletária contar a si própria a cada “três anos” verificando o aumento do

número de votos para sua classe; torna-se, portanto, um meio de propaganda da própria classe,

mostrando sua força política aos partidos adversários, a partir da sua atuação política no

parlamento e frente às massas; e, por fim, dá autoridade aos representantes do proletariado no

parlamento para falar em nome das massas, tendo um contato mais firme com elas também do

lado de fora do parlamento. Entretanto, sabemos que o modo de luta parlamentar é apenas

tático (meio) face à estratégia (fim) da luta maior (socialismo) que é a supressão da ordem

social burguesa. Engels também não descarta a luta civil como condição sine qua non para o

desencadeamento do processo de revolução social; apenas ressalta que as condições precisam

ser favoráveis, a partir de uma determinada situação histórica dada. Por outro lado, ele

assevera que passou o tempo dos golpes de surpresa, das revoluções executadas por pequenas

minorias conscientes à frente das massas inconscientes. Para transformar completamente a

organização da sociedade, diz Engels, é preciso ter a cooperação das massas e, para isso, elas

precisam ter compreendido do que se trata o movimento de luta revolucionário e por que

motivo elas dão o seu sangue e sua vida nessa luta. Nesse sentido, é necessário um trabalho

longo e perseverante de amadurecimento político das massas.

Uma coisa que Engels adverte nesta “Introdução” é que não podemos renunciar de

nenhum modo o direito à revolução, como um direito histórico real, em que se repousam

todos os Estados modernos até hoje existentes. Sem dúvida, o direito à revolução é algo

incontestável e reconhecido pela consciência universal. Mas uma coisa é preciso ser dita:

embora a burguesia tenha feito as suas revoluções históricas para chegar ao poder, ela,

enquanto classe historicamente dominante, não permite que a classe antagônica à sua as faça,

criando ipso facto (para isso) novas leis contra a subversão ou contra a revolução.

As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850 nos sugere pelo menos fazer duas

considerações quanto ao processo da luta de classes no contexto da ordem social capitalista.

Primeiro, aprendemos que essa derrota do proletariado não era a derrota da revolução, mas a

derrota dos tradicionais apêndices pré-revolucionários, ou seja, resultado de “relações sociais

84

que não se haviam aguçado o bastante para tomar forma violentas contradições de classes.”126

Segundo, a história nos ensinou que não é pela “onipotência da vontade política” ou do

“voluntarismo político” que uma minoria consciente faz algo acontecer para valer; é mister

que a classe revolucionária enquanto maioria tenha de fato uma consciência clara dos

objetivos a serem alcançados na luta. Mas podemos também extrair desse texto algo que ainda

hoje é atual, isto é, os gastos públicos do parlamento monárquico-burguês.

Primeiramente, é “impossível submeter a administração do Estado aos interêsses (sic)

da produção nacional sem restabelecer o equilíbrio orçamentário, o equilíbrio entre a despesa

e a receita do Estado.”127

As classes dominantes se utilizam do Estado para incrementar seus

investimentos financeiros, seja através de empréstimos, ou de prestação de serviços; enfim, o

Estado seria o caixa financeiro que as classes ou frações de classes burguesas teriam como

espoliar. Isso Marx admite nessa luta entre as classes quando afirma que “o déficit do Estado

era precisamente o verdadeiro objeto das suas especulações e a fonte principal de seu

enriquecimento.”128

Cada novo empréstimo, cada novo déficit, era resultado da espoliação da

aristocracia financeira sobre o Estado, assumindo estes compromissos com os banqueiros nas

condições mais desfavoráveis. Os cofres públicos eram saqueados a partir de operações

financeiras nas Bolsas de Valores com títulos públicos do Estado. A política parlamentar e

estatal significa uma política de repartição financeira da riqueza produzida pela sociedade.

Mas são os acontecimentos ou as crises econômicas mundiais que podem acelerar a

eclosão do descontentamento geral e fazer com que o desassossego se converta em revolta,

conforme Marx. No entanto, é preciso que a classe proletária esteja organizada e amadurecida

politicamente para levar a cabo sua própria revolução. Já dizia Marx que

Desde que uma classe que concentre os interêsses (sic) revolucionários da sociedade

se levante, encontra imediatamente em sua própria situação o conteúdo e o material para sua atuação revolucionária: abater os inimigos, tomar as medidas impostas

pelas necessidades da luta. As conseqüências dos seus próprios atos empurram para

a frente. Não se entrega a nenhuma investigação teórica sôbre sua própria missão.129

Esse ensinamento, Marx nos lega em As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850,

advertindo, porém, que, naquele momento histórico, a classe operária francesa não teria

chegado a esse ponto, pois era ainda incapaz de levar a frente a sua própria revolução. Marx

anota então que o proletariado de Paris se deixou inebriar pela República Burguesa, pelo

sufrágio universal, pela falsa fraternidade entre a burguesia e o proletariado, quando de fato a

126 MARX. As lutas de classes na França de 1848 a 1850. In: op. cit., p. 111. 127 Ibid., p. 112. 128 MARX, loc. cit. (Grifo do autor). 129 MARX. As lutas de classes na França de 1848 a 1850. In: op. cit., p. 119.

85

burguesia consolidava o Estado como eternizador da dominação do capital sobre a

escravização do trabalho assalariado. Podemos dizer que a mesma ilusão continua, pois parte

do proletariado ainda hoje acredita que a forma social burguesa é um processo natural

histórico, eternizando-se como se fosse a última forma econômico-social a ser atingida pela

humanidade. Daí surgirem as mistificações ideológicas como o “fim da história” e da “luta de

classes”, a “possível conciliação entre capital e trabalho” e a “efetivação dos direitos

universais do homem” numa sociabilidade capitalista etc.

Algo que não pode deixar de ser salientado em Marx é quando ele aborda os

antagonismos e as contradições da sociedade burguesa a partir da sua dominação econômica e

política. Afirma, pois, Marx que “o imposto é o seio materno de que se amamenta o govêrno.

O govêrno são os instrumentos de repressão, os órgãos da autoridade, é o exército, é a polícia,

são os funcionários, os juízes, os ministros, os sacerdotes.”130

Mas o explorador continua a

ser o capital. O pior disso tudo é que o povo fica habituado a obter apenas triunfos legais em

vez de buscar triunfos revolucionários, pois as revoluções são, para Marx, as locomotivas da

história. Na compreensão de Marx, o proletariado tem que se agrupar cada vez mais em torno

do socialismo revolucionário, do comunismo, que é, sem dúvida, a declaração permanente da

revolução, da ditadura de classe do proletariado como ponto necessário de transição para a

abolição das diferenças de classe em geral, isto é, para a supressão de todas as relações de

produção onde repousam tais diferenças, para supressão de todas as relações sociais que

correspondem a estas relações de produção, enfim, para a subversão de todas as ideias que

emanam destas relações sociais.

No final do Prefácio de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Engels cita a grande lei da

marcha da história descoberta por Marx:

[...] a lei segundo a qual todas as lutas históricas, quer se processem no domínio

político, religioso, filosófico ou qualquer outro campo ideológico, são na realidade

apenas a expressão mais ou menos clara das lutas entre classes sociais, e que a

existência e, portanto, também os conflitos entre essas classes são, por seu turno,

condicionados pelo grau de desenvolvimento de sua situação econômica, pelo seu

modo de produção e pelo seu modo de troca, este determinado pelo precedente.131

Essa lei, segundo Engels, tem para a história a mesma importância que a lei da

transformação da energia tem para as ciências naturais, fornecendo, portanto, a chave da

compreensão da história da Segunda República Francesa, resistindo brilhantemente depois de

trinta e três anos. Fica claro, nesta citação, o valor do componente econômico como

130 Ibid., p. 174. (Grifo do autor). 131 MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-

Omega, [s.d.], v.1, p. 202.

86

condicionante e/ou determinante do desenvolvimento das lutas de classe na história humana.

O que podemos extrair como princípio de verdade n’O 18 Brumário é uma anotação

de Marx sobre os fatos históricos, ao dizer que “Hegel observa em uma de suas obras que

todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim

dizer, duas vezes. E esqueceu de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como

farsa.”132

E na história política é assim: “Os homens fazem sua própria história, mas não a

fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente,

ligadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um

pesadelo o cérebro dos vivos.”133

Daí Marx dizer que quando os homens desejam

revolucionar as coisas e a si próprios, quando querem criar algo que jamais existiu, justamente

nos períodos de crise revolucionária, eles buscam auxílio nos espíritos do passado, pegando

de empréstimo os nomes, os gritos de guerra, as roupagens, objetivando apresentar a nova

cena histórica do mundo como disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada.

Na concepção de Marx, a ressurreição dos mortos em tais revoluções, como a

francesa, tinha como fim glorificar as novas lutas (e não de parodiar as passadas), engrandecer

no imaginário a tarefa a ser cumprida e não fugir de sua solução da realidade, ou, melhor

dizendo, encontrar o espírito da revolução e não fazer o seu fantasma caminhar outra vez.

Marx ressalta ainda que as revoluções anteriores lançaram mão das recordações da história

antiga para se iludirem quanto ao próprio conteúdo. Segundo ele, para que a humanidade se

liberte das superstições do passado e consiga alcançar o conteúdo revolucionário da sua

história, é necessário que os mortos enterrem seus mortos. “Se antes a frase ia além do

conteúdo, agora é o conteúdo que vai além da frase”, afirma Marx.

Ao recapitular em linhas gerais as fases que a revolução francesa atravessou entre 24

de fevereiro de 1848 a 2 de dezembro de 1851, Marx conclui que houve uma involução no

processo das lutas de classes, ou seja, começou com o proletariado insurreto de Paris com a

Revolução de Fevereiro, proclamando sua República Social, passando pela República

Democrática da pequena burguesia e a República parlamentar da grande burguesia e

monarquia, e terminando com a restauração do Império com a vitória de Bonaparte III. Se a

primeira Revolução Francesa de 1789 deu-se de forma ascensional, na Revolução de 1848-

1852, aconteceu o inverso: o partido proletário aparece como apêndice do partido pequeno-

burguês democrático que o trai e o abandona; o partido democrata se apoia no partido

republicano burguês no qual este logo se desvencilha do anterior, apoiando-se no partido da

132 MARX, Ibidem, p. 203. 133 MARX, loc. cit.

87

ordem; este se livra do partido republicano burguês e se atira nos ombros das forças armadas,

quando em seguida é traído pelas forças militares. Isso demonstra que cada partido trai o

outro, quer dizer, “Cada partido ataca por trás àquele que procura empurrá-lo para frente e

apóia-se pela frente naquele que o empurra para trás. [...] A revolução move-se, assim, em

linha descendente.”134

Tais acontecimentos revelam para Marx que o sistema de alianças políticas entre as

classes e/ou frações de classe tem vida histórica curta, vulnerável aos interesses políticos e

econômicos específicos de cada classe. A derrota do proletariado francês foi por ter confiado

na pequena burguesia; a desta de ter acreditado na burguesia; e esta por ter se fiado nas

monarquias destituídas. O resultado disso foi a restauração do Império por Luís Bonaparte,

que fortaleceu as forças militares, aperfeiçoou a burocracia do Estado e angariou simpatia dos

pequenos camponeses. Em outras palavras, as diversas frações de classes da sociedade

francesa anularam umas às outras na luta pelo poder legislativo e constitucional, fortalecendo

o poder de uma só pessoa, o Imperador. Para Marx, portanto, a República burguesa

significava o despotismo ilimitado de uma classe sobre as outras, ou seja, uma forma política

da revolução da sociedade burguesa e não sua forma conservadora de vida.

O parlamento como palco das grandes discussões entre as diferentes frações de classe

foi insuficiente e inoperante para realizar os interesses de todas as classes, pois as demandas

políticas de tais classes encontravam pouco espaço para serem atendidas. Normalmente, o

partido da ordem (monarquistas e aristocracia financeira) e o partido da montanha (de extrema

esquerda) disputavam o poder de suas realizações com grandes discussões. O que podemos

depreender disso tudo é que Marx relata a forma política de poder francês como a política do

mais forte, daí ele dizer da vida efêmera da República constitucional ou República

Parlamentar nos momentos de grande crise. Nessa perspectiva, a política na forma

republicana ou monárquica, seja democrática ou despótica, é a política da classe

economicamente hegemônica na sociedade.

Percebemos nesses relatos de Marx que se quebrou o aspecto revolucionário das

reivindicações sociais do proletariado, dando a elas uma feição democrática. Como resultado,

surgiu a social-democracia, a nova Montanha, cujo caráter se resume “no fato de exigir das

instituições democrático-republicanas como meio não de acabar com os dois extremos, capital

e trabalho assalariado, mas de enfraquecer seu antagonismo e transformá-lo em harmonia.”135

A transformação da sociedade se dará por esse conteúdo, quer dizer, pelo processo

134 MARX. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: op. cit., p. 221. 135 Ibid., p. 226.

88

democrático, porém dentro dos limites da pequena burguesia. Evita-se assim a luta de classes,

infectando o proletariado com os princípios sociais democráticos burgueses. A burguesia sabe

que seu regime parlamentar (um regime de desassossego), seu poder político de maneira

geral, pode enfrentar seu veredicto condenatório, o socialismo; sobretudo porque, quando seu

domínio de classe, já organizado completamente, adquire a sua mais pura expressão política,

o antagonismo das outras classes pode se mostrar em sua forma pura.

É sabido que o regime parlamentar vive do debate de ideias como expressão dos

interesses de instituições sociais, seja partido, seja religião etc. A luta dos oradores na tribuna

evoca, por outro lado, a luta dos escribas na imprensa. Isso repercute nos clubes de debates

dos salões e das tabernas, como diz Marx. Os representantes parlamentares apelam

constantemente para a opinião pública como aval para fundamentar e legitimar suas petições.

O regime parlamentar, portanto, deixa à decisão das maiorias, embora as grandes maiorias

fora do Parlamento pouco vejam suas decisões serem efetivadas naquele. Disso tudo,

podemos inferir que todas as revoluções burguesas visaram a aperfeiçoar a máquina

governamental, o poder de Estado, ao invés de destroçá-la e “os partidos que disputavam o

poder encaravam a posse dessa imensa estrutura do Estado como principal espólio do

vencedor.”136

Marx, já quase no final de O 18 Brumário137

, deixa implícito que o governante

se depara com a tarefa contraditória de explicar as contradições de seu governo, quer dizer,

essa confusa conduta política que, ora procura conquistar, ora procura humilhar, primeiro uma

classe, depois outra, constitui um contraste altamente cômico que resulta da prática categórica

e imperiosa de decretos e/ou leis, de atos governamentais.

Como contraponto a essa forma política de governar, na “Introdução” de A Guerra

Civil na França, Engels menciona que a Comuna teve de reconhecer que a classe operaria, ao

chegar ao poder, não poderia continuar a governar com a velha máquina do Estado, pois seria

necessário, para preservar o seu poder recém-conquistado, abandonar a velha máquina

repressiva, sobretudo, porque ela era utilizada contra a sua própria classe. Daí, portanto,

transformar o Estado político em Estado revolucionário, como instrumento de transformação

da realidade econômico-social. No primeiro “Manifesto do Conselho Geral da Associação

Internacional dos Trabalhadores” (AIT) sobre a guerra franco-prussiana, Marx anuncia o

prenúncio de uma nova sociedade frente à velha sociedade, com suas misérias econômicas e

delírios políticos, ou seja, ele afirma que o princípio da política internacional será a paz, mas

cujo governante será o mesmo em todos os países, o trabalho; em outras palavras, o pioneiro

136 Ibid., p. 276. 137 Cf. MARX, Ibidem, p. 283.

89

da nova sociedade é a Associação Internacional dos Trabalhadores. Com essas palavras, Marx

simplesmente declara que a única condição da supressão de todas as classes seria o

proletariado chegar ao poder e se autoabolir como classe, já que ele é a substância (o trabalho)

do capitalismo enquanto força social que produz e reproduz este sistema (mais-valia) e suas

relações humanas.

Se a política da sociedade moderna burguesa se baseava na política de conquistas, da

guerra de uma nação contra outra ou no domínio de uma classe sobre a outra, a política de

uma futura sociedade comunista teria que se basear na construção de uma obra comum que é

a libertação do trabalho da sua condição de trabalho alienado-estranhado, isto é, trabalho

abstrato-assalariado. Parafraseando Marx, no segundo “Manifesto do Conselho Geral” da

AIT, a missão dos trabalhadores não é repetir o passado, mas construir o futuro; e para tal

empreendimento, diz Marx no final que é necessário conclamar a classe trabalhadora à ação:

os trabalhadores não podem esquecer seu dever e permanecerem passivos face às lutas

cotidianas e às guerras no âmbito da sociedade capitalista, pois é preciso que eles sejam os

precursores de novas lutas em cada país, pois a derrota dos trabalhadores dá aos senhores da

espada, da terra e do capital maior fôlego de dominação histórica (Marx se refere aqui, claro,

à guerra civil na França).

A Guerra Civil na França ilustra bem o conflito entre o dever nacional e o interesse de

classe. A atuação política realizada antes era, na verdade, uma revolução às avessas, quer

dizer, uma involução do avanço para o atraso, ou seja, se anteriormente se iniciou uma

Revolução Republicana com a força do proletariado de Paris e da pequena burguesia contra o

absolutismo monárquico republicano (orleanistas e legitimistas) entre 1848-1852, agora o

proletariado de Paris toma as rédeas, embora por pouco tempo, do processo da luta de classes.

O que podemos extrair desse texto, em termos políticos, é a luta de classes na sua versão mais

radical que derruba o Estado republicano monárquico para construir a Comuna, uma nova

forma de organização de poder da sociedade, id est, mais radical, democrática e participativa.

A revolta é consequência da capitulação de Paris, ou melhor, da entrega da França à Prússia.

Desse modo, deu-se início a guerra civil. “Paris armada era o único obstáculo sério que se

erguia no caminho da conspiração contra-revolucionária”138

, afirma Marx.

Por conseguinte, Marx nos revela que, no processo de luta revolucionária, os militares

podem se rebelar contra seus chefes e ficarem ao lado dos trabalhadores, dos revolucionários,

quer dizer, as tropas desencadeiam uma ação militar contrária aos seus hierárquicos, à medida

138 MARX, Karl. A guerra civil na França, In: MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega,

[s.d.], v. 2, p. 72.

90

que percebem que o sentido da luta toma caráter libertador humanista e não de atrocidade.

Desta feita, a revolução de 18 de março de 1871 fez com que as tropas bonapartistas não

atirassem contra a multidão inerme na Praça Pigalle, a saber, em vez de disparar contra

crianças, mulheres e seus homens, dispararam contra o general Lecomte. Essa mudança de

hábitos inveterados adquirida pelos soldados na escola do inimigo, diz Marx139

, não mudam

no mesmo momento para o campo dos trabalhadores. É um processo itinerante a ser realizado

na esfera da luta histórica.

Para Engels, “A Comuna já não é mais, etimologicamente, Estado”140

; representa, de

facto, uma ruptura com a forma de poder social chamada Estado, pois este se caracteriza,

sobretudo, como esfera de luta política onde há traições, conspirações, capitulações e

fracassos. A Comuna como esfinge que atormenta tanto os espíritos burgueses é, como diz

Marx, um novo modo de dirigir os negócios públicos para salvar uma situação histórica

marcada pela dominação externa estrangeira, como também pela dominação política interna

de uma classe monárquica republicana que excluiu a pequena burguesia e o proletariado das

decisões políticas do governo imperial. Os proletários “compreenderam que é seu dever

imperioso e seu destino incontestável tornar-se (sic) donos de seus próprios destinos, tomando

o Poder.”141

Para Marx, os trabalhadores não podem se limitar a se apossar da máquina do

Estado tal como se apresenta para realizar seus fins. Os órgãos onipotentes, como exército,

polícia, burocracia, clero e magistratura, são derivados da monarquia absoluta que serviu a

incipiente sociedade burguesa como arma na luta contra o feudalismo. Nesse sentido, urge

destruir a natureza classista do Estado e torná-lo um instrumento de abolição de todas classes

sociais. Não é à toa que, para Marx,

À medida que os progressos da moderna indústria desenvolviam, ampliavam e

aprofundavam o antagonismo de classe entre o capital e o trabalho, o poder do

Estado foi adquirindo cada vez mais o caráter de poder nacional do capital sobre o trabalho, de força pública organizativa para a escravização social, de máquina do

despotismo de classe. Depois de cada revolução, que assinala um passo adiante na

luta de classes, revela-se com traços cada vez mais nítidos o caráter puramente

repressivo do poder do Estado.142

Já naquele período, portanto, Marx ressaltava de forma bastante contundente, e que

não difere muito dos dias de hoje, que havia uma política imperial que visava contemplar os

interesses de todas as classes. O Império napoleônico, nascido do golpe de Estado por

certidão, tendo o sufrágio universal por sanção e a espada por cetro, se arvorava de se apoiar

139 Cf. MARX. A guerra civil na França. In: op. cit., p. 74. 140 Cf. OLIVEIRA, Jorge Luís de. Alienação, trabalho e emancipação humana em Marx, p. 202. 141 MARX. A guerra civil na França. In: op. cit., p. 78. 142 Ibid., p. 79.

91

nos camponeses, de salvar a classe operária destruindo o parlamento e as classes possuidoras

conservando sua supremacia econômica sobre a classe operária, enfim, de fazer a união de

todas as classes para a quimera da glória nacional. Isso expressa uma forma de governo

possível, já que a burguesia perdia sua capacidade de governar; e, por outro lado, o

proletariado ainda não tinha adquirido tal capacidade. Nesse sentido, Marx denuncia que o

poder estatal, que aparentemente flutuava acima da sociedade, vivia um grande escândalo e

tornava-se o viveiro de todas as suas corrupções. Segundo Marx, a sua podridão foi posta a nu

pelas baionetas da Prússia.

A Comuna tornava-se, assim, a antítese do Império, quer dizer, a “República Social”

(do proletariado) expressava o desejo não apenas de acabar com a forma monárquica da

dominação de classe, mas também de abolir a própria dominação de classe. A Comuna, nesse

sentido, era a forma positiva dessa República. A Comuna era essencialmente um governo da

classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, ou seja, a forma

final descoberta de levar a cabo a emancipação econômica do trabalho. Para Marx, a Comuna

deveria servir de alavanca para solapar os fundamentos econômicos sobre os quais se baseia a

existência das classes e, portanto, a dominação de classe. Desse modo, “Uma vez emancipado

o trabalho, todo homem se converte em trabalhador, e o trabalho produtivo deixa de ser um

atributo de classe.”143

Podemos então inferir que a Comuna144

foi uma nova forma de se fazer política, de

restituir à sociedade o Poder do Estado, de ela ter o controle de gerir seu próprio destino

histórico, quer dizer, de poder administrar os bens públicos sociais sem haver uma

hierarquização estanque, em que a “revogabilidade” e a “alternância” de poder eram os

princípios norteadores de suas ações políticas. A conduta da linha de seu governo era ser um

governo do povo e pelo povo. Daí os insurretos começarem a abolir o trabalho noturno para

os padeiros e a proibição penal da prática corrente entre os patrões de reduzir salários; como

também entregaram todas as oficinas e fábricas fechadas às organizações operárias,

abandonadas pelos patrões ou trabalho suspendido por eles. A lição que podemos tirar desse

fato é que, quando a ordem burguesa está ameaçada pela força do proletariado, a “civilização”

e a “justiça” burguesa aparecem em todo seu esplendor e fervor na forma de atrocidade. Em

143 MARX. A guerra civil na França. In: op. cit., p. 84. Esta citação demonstra claramente que Marx não nega o

trabalho como condição onto-histórica do homem, pelo contrário, reafirma a libertação do trabalho da sua

condição opressiva no capitalismo. 144 Lênin não via na sua época a experiência da democracia socialista da Comuna de Paris como um modelo a ser

imitado pela Revolução Russa, pois ele ressaltava os defeitos e a ingenuidade do comportamento dos

communards. Marx e Engels criticaram também os erros políticos da Comuna, mas elogiaram seus aspectos

libertários, principalmente no que diz respeito aos conselhos dos trabalhadores. Cf. OLIVEIRA, Jorge Luís de.

Op. cit., p. 266-267, nota 167.

92

outras palavras, essa “civilização” e “justiça” mostram sua selvageria e vingança sem lei,

caindo, assim, a sua máscara civilizatória. Em suma, para Marx, a política na forma

monárquica ou burguesa é a mais pura forma de mistificação dos governos, destinada a

retardar a luta de classes; a dominação de classe não pode ser mais disfarçada sob o uniforme

de união nacional ou patriotismo; “todos os governos nacionais são um só contra o

proletariado!”145

Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx nos sinaliza com algumas questões

pertinentes ao processo de transição para o socialismo. Numa carta de Marx a William Bracke

(05/05/1875), ele anota que “Cada passo de movimento real vale mais do que uma dúzia de

programas.”146

No entanto, ele adverte que se não for possível – e as circunstâncias não

permitirem – ir para além do que foi programado, urge então concluir um acordo para ação

contra o inimigo comum. Por isso que, para Marx, quando se redige um programa de

princípios, é preciso expor para todos os marcos que medem o nível do movimento do

proletariado. A política marxiana revolucionária tem como teleologia libertar o trabalho da

sua condição de exploração e, para tal, postula a subversão da ordem burguesa. Se o trabalho

é a fonte de toda riqueza e de cultura como trabalho social, também ele é o causador de toda

pobreza e desamparo ao trabalhador na forma social burguesa, mas o grande propiciador de

riqueza e cultura para os compradores da força de trabalho. Aqui se apresenta a contradição

fundamental da sociedade burguesa em que a política e a economia se engalfinham para

consolidar ou desfazer o tecido social burguês constituído. O governo é então, nesse sentido, o

órgão da sociedade para a manutenção da ordem social. Por detrás dele estão as diferentes

classes de propriedade privada com suas ocultas, ou não, pretensões. A base da sociedade são

as diferentes classes proprietárias, seja as dos meios de produção, seja as da sua própria força

de trabalho, mas que têm como ponto em comum a luta pela sua sobrevivência histórica.

O que convém assinalar na Crítica ao Programa de Gotha é qual luta o proletariado

tem que desenvolver para efetivar seu processo de emancipação total. Primeiramente, fica

evidente, e é imperativo, que a classe trabalhadora tem que se organizar enquanto classe em

seu país, já que este é o campo imediato de suas lutas cotidianas. Entretanto, a luta tem que

tomar dimensão internacional, quer dizer, urge confluir a luta internacional de todos os

trabalhadores do mundo inteiro, pois o caráter de exploração do trabalho é comum em todos

os países onde o capitalismo atingiu um determinado grau de desenvolvimento. Abolir o

145 MARX. A guerra civil na França. Op. cit., p. 99. (Grifo do autor). 146 MARX. Karl. Crítica ao Programa de Gotha. In: MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-

Omega, [s.d.], v. 2, p. 207.

93

sistema de trabalho assalariado é um dos objetivos da luta internacional dos trabalhadores.

No entanto, ao se referir à parte democrática da Crítica ao Programa de Gotha, Marx

aborda a questão do “Estado Livre”, e diz que a missão do operário não é tornar o Estado

livre, mas converter o Estado em órgão subordinado à sociedade. Para que isso aconteça,

Marx indaga sobre a transformação do Estado numa sociedade comunista, ou seja, quais

seriam as suas funções sociais neste tipo de sociedade. Contudo, ele fala num período de

transição entre a sociedade capitalista e a comunista, salientando o papel do Estado nesse

processo que ele denomina de “ditadura do proletariado”, como período político de transição

imprescindível. Por isso que ele critica o Programa de Gotha que se limita apenas às

reivindicações políticas baseadas na ladainha democrática: sufrágio universal, legislação

direta, direito popular, milícia do povo etc. Segundo Marx, tais reivindicações não são mais

que ideias fantásticas, se não são efetivadas.

Criticando, por conseguinte, a República democrática sob Napoleão III, Marx adverte

que tal “democratismo” de Estado não passa de um despotismo militar de arcabouço

burocrático e blindagem policial, guarnecido por formas parlamentares com misturas de

vários ingredientes sociais. A democracia vulgar, diz Marx, vê na República democrática

(nesse democratismo sob baionetas) o reino milenar e não tem a menor ideia de que é nesta

forma última de Estado da sociedade burguesa onde se poderá travar a batalha definitiva da

luta de classes. Nesse sentido, a democracia vulgar está acima dessa “espécie de

democratismo que se move dentro dos limites do autorizado pela polícia e vedado pela

lógica.”147

Podemos também encontrar no Manifesto do Partido Comunista algumas proposições

políticas elaboradas por Marx e Engels sobre a prática revolucionária dos trabalhadores. Nele

condensam-se estratégias e/ou os princípios de luta do proletariado face à sua emancipação.

No “Prefácio à edição alemã de 1872”, Marx e Engels reafirmam os princípios gerais

expostos no Manifesto, mesmo depois de vinte e cinco anos, ressalvando que a aplicação

deles dependerá, sempre e em toda parte, das circunstâncias históricas existentes, porém,

ressaltando que, no segundo capítulo, não se deve mais dar uma importância demasiada às

medidas revolucionárias, pois a Revolução de Fevereiro de 1848 do proletariado de Paris e a

derrota da Comuna de 1871 – que permitiu o proletariado tomar posse do poder político por

dois meses – fizeram com que o programa ficasse envelhecido.

Já no “Prefácio à edição alemã de 1883”, Engels resume o pensamento dominante e

essencial em todo Manifesto, afirmando que

147 MARX. Crítica ao Programa de Gotha. In: op. cit., v.2, p. 222.

94

[...] a produção econômica e a estrutura social que necessariamente decorre dela,

constituem em cada época histórica a base da história política e intelectual dessa

época; que, por conseguinte [...], toda a história tem sido uma história de lutas de classe, de lutas entre as classes exploradas e as classes exploradoras, entre as classes

dominantes e as classes dominadas, nos diferentes estágios do desenvolvimento

social; mas que, atualmente, esta luta atingiu um estado em que a classe explorada e

oprimida (o proletariado) não pode mais libertar-se da classe que a explora e oprime

(a burguesia), sem libertar, ao mesmo tempo e para sempre, da exploração, da

opressão e das lutas de classes, tôda a sociedade – êste pensamento fundamental

pertence única e exclusivamente a Marx.148

Entretanto, no “Prefácio à edição alemã de 1890”, Engels anota que, com a derrota do

movimento operário nos anos 1848-1850 e de 1871, o Manifesto desaparece da cena política,

sobretudo, com a dissolução da Primeira Internacional em 1872 que durou nove anos. Porém,

ele explicita que a classe operária não era a mais de 1864, pois começava a surgir o

capitalismo na sua fase imperialista e/ou monopolista onde a concorrência entre capitalistas

parecia diminuir, mas, por outro lado, a união proletária começava a ter força e expansão em

vários países. Contudo, o que podemos destacar no Manifesto são os princípios que serviram

de guia teórico-prático para todo o proletariado internacional na sua luta contra o capital.

Conforme Marx e Engels, “cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era

acompanhada de progresso político correspondente”149

, ou seja, a burguesia conquistou a sua

soberania política exclusiva no Estado moderno, transformando esta máquina poderosíssima

num comitê para gerir seus negócios comuns. Durante o seu domínio de classe, a burguesia

criou forças produtivas mais numerosas e colossais do que as gerações passadas. Dessa forma,

o proletariado, percebendo a união da burguesia para atingir seus fins políticos, começa a se

unir em torno de uma luta política mais agressiva, obtendo algumas vezes vitórias e outras

vezes derrotas. Esses triunfos efêmeros, como resultados de suas lutas específicas,

possibilitaram, de certo modo, a união cada vez mais ampla do proletariado. Na verdade, as

lutas locais e/ou nacionais tomam o caráter de luta de classes, e toda luta de classes é uma luta

política. Mas por outro lado, para Marx e Engels, “A organização do proletariado em classe e,

portanto, em partido político, é incessantemente destruída pela concorrência que fazem entre

si os próprios operários. Mas renasce sempre, e cada vez mais forte, mais firme, mais

poderosa.”150

Se Marx e Engels tocam na questão política da luta proletária, é no Manifesto que esta

questão se revela mais candente. Quando Marx e Engels fazem uma diferenciação entre

148 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, [s.d.], v. 1, p. 17. 149 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: op. cit., v. 1, p. 23. 150 Ibid., p. 29.

95

“comunistas” e “partidos operários”, os dois compreendem que os comunistas formam um

partido à parte, oposto aos outros partidos operários, quer dizer, os interesses dos comunistas

não são separados dos interesses do proletariado e, portanto, os comunistas não proclamam

princípios particulares que possam modular o movimento operário. Assim sendo, a distinção

dos comunistas só se dá de duas maneiras: 1) nas diferentes lutas nacionais dos proletários, os

comunistas destacam e fazem prevalecer os interesses comuns do proletariado,

independentemente da nacionalidade; 2) os comunistas representam sempre os interesses do

movimento em seu conjunto nas diferentes fases por que passa a luta entre proletários e

burgueses. Portanto, o único objetivo dos comunistas é igual aos dos demais partidos

proletários, ou seja, constituir os proletários como classe para derrubar a supremacia burguesa

e conquistar o poder político. E o mais fundamental, as concepções teóricas dos comunistas

não são baseadas em princípios ou ideias inventados, mas tais concepções são a expressão

geral das condições reais de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se

desenvolve, logo uma luta política, já que para Marx a luta de classes é uma luta política.

O que fica claro politicamente no Manifesto é a necessidade de abolir

revolucionariamente o estado de coisas em que o proletariado fica condenado a uma condição

de vida elementar, cujas necessidades se restringem às necessidades de um animal como

comer, beber e procriar. A luta revolucionária como a luta política do proletariado é o único

caminho para se construir um caminho de libertação humana para toda a sociedade. O

trabalho abstrato na forma de trabalho assalariado precisa urgentemente ser superado

historicamente, pois ele é a condição sine qua non da sociedade capitalista burguesa. Num

patamar de produção superior ao capitalismo, as ideias, os costumes sociais etc. se

transformam, porque a base material sobre a qual essas ideias surgem é revolucionada. A

consciência do homem é produto das mudanças das condições de vida, em suas relações

sociais, em sua existência social. A revolução comunista, como ato político de ruptura radical

com as estruturas sociais capitalistas, também constrói ideias revolucionárias, rompendo com

as ideias tradicionais.

Como afirmam Marx e Engels, “a primeira fase da revolução operária é o advento do

proletariado como classe dominante, a conquista da democracia.”151

Então o proletariado terá

essa supremacia política e a utilizará para expropriar pouco a pouco o capital da burguesia,

centralizando os instrumentos de produção nas mãos do Estado e, assim, poder aumentar o

total das forças produtivas. Expressando isso politicamente, é a violação despótica do direito

de propriedade e da relação de produção burguesa. Entretanto, o objetivo é fazer com que o

151 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: op. cit., v. 1, p. 37.

96

antagonismo de classes desapareça no curso de um novo desenvolvimento histórico, no qual a

produção e o poder público perderão seu caráter político. É aqui que Marx e Engels anotam

que

O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, se constitui forçosamente em classe, se se converte por uma revolução em classe dominante e, como classe dominante, destrói violentamente as antigas relações de produção, destrói juntamente com essas relações de produção, as condições dos antagonismos entre as classes e as classes em geral e, com isso, a própria dominação de classe.152

Fica evidente que o proletariado também desenvolve uma atividade política como uma

antipolítica à política burguesa, tanto que Marx e Engels, ao criticarem o socialismo e

comunismo utópicos, relatam que tais sistemas, sob Saint-Simon, Fourier, Owen etc., não

levam em consideração “o antagonismo das classes, nem percebem no proletariado alguma

iniciativa histórica e movimento político que lhe seja próprio.”153

Até aqui tentamos apresentar algumas reflexões de Marx e Engels a respeito da

política enquanto prática de transformação da realidade social, realizada pelos homens a partir

dos seus interesses de classe, com suas lutas, revoluções etc. Nesse sentido, ficou manifesto

que a política dentro dos limites da legalidade burguesa não tem a possibilidade de resolver as

contradições sociais produzidas pela estrutura econômica capitalista. Marx deixa bem claro que o

limite da política democrática burguesa se dá pela sua incapacidade de abolir os antagonismos de

classe e as contradições sociais, ou seja, de o Estado não poder resolver os dramas sociais

causados pelo capitalismo. Não é pela pura “vontade política”, entendida também como

“onipotência da vontade”, ou pelo “entendimento político”, que se pode solucionar a dicotomia

“Estado” e “sociedade”; nem pela efetivação dos Direitos Humanos sob a coordenação do Estado,

pois não há esteio real que permita isso acontecer. A política, nesse sentido, não restitui o poder

público à sociedade, mas dá “superpoder” ao Estado que expressa o poder de uma classe

economica e politicamente hegemônica num período histórico dado.

Para concluir essa reflexão, tomemos algumas colocações de Mészáros sobre a questão

dos limites da ação política a partir da reflexão marxiana. Diz ele que “política e voluntarismo

estão tão entrelaçados um no outro, e a irrealidade de remédios políticos baseados no desejo

emana do ‘substitucionismo’ inerente à política enquanto tal.”154

Para Marx, segundo

Mészáros, a contradição entre o social e o político seria inconciliável, dado o caráter

antagônico da própria base social, a estrutura econômica capitalista, que é perpetuada pela

estrutura política, pelo Estado, como instituição política irredimível, logo precisaria ser

152 Ibid., v. 1, p. 38. 153 Cf. MARX e ENGELS, op. cit., p. 44. 154 Cf. MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 564.

97

abolido, já que não pode realizar a autêntica universalidade da sociedade. E aí Mészáros155

cita os principais traços da teoria política de Marx:

1. o Estado (e a política em geral, como um domínio separado) deve ser

transcendido a partir de uma transformação radical da sociedade, mas não

pode ser abolido por decreto ou por uma série de medidas político-

administrativas;

2. a revolução não pode ser uma simples revolução política, mas uma revolução

social, evitando ficar aprisionada nos limites do sistema que perpetua a

exploração socioeconômica;

3. revoluções sociais têm como objetivo superar a contradição entre parcialidade

e universalidade, pois as revoluções políticas do passado reproduziram essa

contradição que submete a sociedade à regência da parcialidade política, a

partir de interesses das seções dominantes da sociedade civil;

4. o sujeito histórico da revolução, da emancipação, é o proletariado, porque ele é

forçado, a partir da maturação das contradições antagônicas do capitalismo,

revolucionar a ordem social, e, portanto, impossibilitado de impor uma nova

parcialidade sobre a sociedade;

5. lutas políticas e socioeconômicas formam uma unidade dialética e, por conseguinte,

a negligência da dimensão socioeconômica priva a política de sua realidade;

6. condições objetivas são fundamentais para a implementação de medidas

socialistas, pois, caso contrário, a política dos adversários pode continuar e aí

seria apenas uma conquista prematura do poder pelos trabalhadores;

7. revolução social, para ser bem-sucedida, não pode se limitar apenas às

revoluções políticas locais ou nacionais, ela tem que ser global/universal.

Nessa perspectiva, afirma Mészáros que os elementos dessa teoria formam um todo

orgânico, não podendo ser separados, pois sua importância significativa é resultado das suas

interconexões recíprocas. A dominação do capital sobre o trabalho é de caráter

fundamentalmente econômico, não político. A política apenas fornece “garantias políticas”

para continuar a dominação já materialmente estabelecida e enraizada estruturalmente. Para

Mészáros, não se pode quebrar a dominação do Capital no âmbito da política (burguesa), mas

somente as garantias de sua organização formal. Não é à toa que Marx, segundo Mészáros,

compara “a força pública organizada”, o poder de Estado da sociedade burguesa, a uma

155 Cf. Ibid., p. 566-567.

98

máquina política que perpetua, pela força, a escravidão social dos trabalhadores pelos

capitalistas. É preciso entender a interligação entre Estado, capital e trabalho para a

reprodução sistemática da sociedade capitalista, coisa que os adversários de Marx não

conseguem compreender.

Mészáros ainda cita Hegel, dizendo que seu sistema demonstrou o papel que joga a

política na autorreprodução ampliada do mundo sob o domínio do capital e que também a

sociedade civil do sistema do capital molda e reproduz a formação política à sua própria

imagem. Para se contrapor a esse processo teimoso de perpetuação, Mészáros explicita o

núcleo da concepção política de Marx, afirmando que a política socialista deve se preocupar

em restituir à sociedade os poderes usurpados pelo Estado, pela política do substitucionismo

burocrático, que impede um processo de transição de sua orientação teórica e estratégica, ou

seja, “a política socialista ou segue o caminho aberto por Marx – do substitucionismo à

restituição – ou deixa de ser política socialista e, ao invés de ‘abolir a si própria’ no processo,

transforma-se em autoperpetuação autoritária.”156

156 MÉSZÁROS, op. cit., p. 571.

99

CAPÍTULO 2

MARXISMO E MOVIMENTO SINDICAL

100

2.1 A Concepção Marxista de Sindicato: Marx, Engels, Rosa, Lênin e Trotsky

Antes de explicitar a concepção marxista de sindicato a partir dos teóricos clássicos,

faz-se necessário expor sucintamente como se deu o surgimento das primeiras associações dos

trabalhadores até se transformarem em sindicatos de luta sistemática. Nesse caso, entender

qual deve ser o papel do sindicato no processo da emancipação humana é importante para

definir a sua estratégia de luta específica e também a sua relação com a luta mais universal

que é a luta contra o capitalismo a favor do socialismo enquanto condição histórica

imprescindível para a evolução humana. Se a luta economicista ou reivindicativa sindical por

melhores salários e condições de trabalho (ou pela diminuição da jornada de trabalho) não

pode ser desconsiderada como forma de evitar o enfraquecimento material da classe

trabalhadora, então a luta política pela supressão das condições aviltantes desse sistema social

de trabalho é algo necessário na história para elevar a humanidade à sua condição libertária. A

realidade hostil capitalista nos impele a vislumbrar um futuro de justiça social entre os

homens enquanto utopia a ser perseguida pela humanidade. Descartar essa utopia enquanto

ideologia é paralisar o processo de evolução histórico-social. Nesse sentido, “Movimento

Revolucionário”1 em Marx é o princípio de negatividade dialética (Aufhebung) que empurra a

existência histórico-social para patamares superiores em contraposição às existências

histórico-sociais inferiores.

Feitas tais considerações, podemos então dizer que o sindicato surgiu a partir das

corporações de ofício na Europa medieval. Mas foi com a Revolução Industrial na Inglaterra

no século XVIII, com o advento do vapor e, em seguida, das máquinas, que os trabalhadores

das indústrias têxteis, doentes e desempregados, juntaram-se em sociedades de socorro

mútuos. Durante a Revolução Francesa, as ideias liberais apareceram com toda força para

estimular a aprovação de leis que proibiam a atividade sindical, como a Lei Chapelier

(adotada pela Assembleia Constituinte em 1791) e o Código Penal (redigido no período

imperial de Napoleão) que consideraram ilegais as associações de trabalhadores e de patrões

em nome da liberdade dos direitos do homem, como também consideraram ilegais as greves.

É sabido, no entanto, que a legislação inglesa declara ilegais todas as coalizões até por volta

de 1800, sendo abolida em 1824. Contudo, isso não evitou que as organizações sindicais se

reerguessem clandestinamente no século XIX. Na França e no Reino Unido, por exemplo, os

sindicatos e as associações foram legalizados em 1884, mas só depois de várias lutas travadas

1 MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 32: “Para nós o comunismo nem é um estado a ser criado, nem um

ideal pelo qual a realidade deverá se guiar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado

atual de coisas. As condições desse movimento resultam das premissas atualmente existentes.”

101

pelo movimento operário internacional. Conforme Marx,

Na Inglaterra, as coalizões são autorizadas por um ato do Parlamento e foi o sistema

econômico que forçou o Parlamento a dar a esta autorização uma sanção geral. Em

1825, quando, sob o ministro Huskisson, o Parlamento foi levado a modificar a

legislação, para melhor adequá-la a um estado de coisas resultante da livre

concorrência, ele teve, necessariamente, que abolir todas as leis que interditavam as

coalizões dos operários.2

Na Miséria da Filosofia3, Marx declara que já existia na Inglaterra a Trade Unions

como Associação, criada em 1845, para defender melhorias na legislação fabril e nas

condições de venda da força de trabalho. A Trade Unions (Uniões Sindicais) existiu até o

início dos anos de 1860 por toda a Inglaterra em vários ramos industriais, porém, já não

desempenhava um papel tão importante no movimento sindical. Sua principal função era fixar

os salários para a categoria, ou melhor dizendo, criava uma escala de salários forçando os

capitalistas a sua aceitação. A Trade Unions também auxiliava financeiramente os operários

nas greves, através de “Caixas de Resistência” para aumentar a capacidade de luta da classe

operária. O socialista utópico inglês Robert Owen foi quem presidiu o Primeiro Congresso em

que as Trade Unions de toda Inglaterra se fundiram numa única grande organização sindical:

Grande União Consolidada dos Trabalhadores, criada em 1834.4

Citemos também o Cartismo, enquanto um movimento político, que empolgou os

trabalhadores ingleses entre os anos de 1830-1850, tornando-se a posteriori um grande

partido político que canalizava as lutas dos trabalhadores. O Cartismo denomina-se, assim,

pela sua função de reivindicações básicas contidas na carta do povo5. O movimento cartista

na Inglaterra se caracterizava, sobretudo, pela luta dos trabalhadores para diminuir a jornada

de trabalho de 16 horas para 10 horas, tendo como seus principais líderes Harvey e O’Connor

com quem Marx estabeleceu relações. No entanto, para Badaloni, “a história do movimento

operário no curso do século XIX, além de ter sido uma luta por salário, foi também uma luta

2 MARX, Karl. As greves e as coalizões de operários. In:____. Miséria da Filosofia. São Paulo: Global, 1985. p.

153. (Coleção Bases, 46). Sobre a legislação sanguinária contra os expropriados, a partir do século XV para

rebaixar salários, ver Karl Marx, Acumulação primitiva. In: O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

[s.d], v. II, p. 851 et seq. 3 Cf. MARX, Miséria da Filosofia, p. 157-158. 4 Cf. ANTUNES, Ricardo. O que é sindicalismo. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 17-20. (Coleção Primeiros

Passos, 3). 5 Cf. ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Global Editora, 1986. p.

257: Seis pontos da Carta ao Povo: 1) Sufrágio Universal; 2) Renovação anual do Parlamento; 3) Fixação de

uma remuneração parlamentar a fim de que os candidatos sem recursos possam igualmente exercer mandato; 4)

Eleições secretas para evitar a corrupção e intimidação burguesa; 5) Circunscrições eleitorais iguais a fim de

assegurar representações equitativas; e 6) Abolição da disposição que reserva a elegibilidade apenas aos

proprietários de terras no valor de pelo menos 300 libras esterlinas, de modo que qualquer eleitor seja a partir de

então elegível.

102

pela redução do tempo de trabalho.”6 Engels, num escrito em 4 de junho de 1881 (The Labour

Standard), afirma que “estas organizações poderosas [os sindicatos], até agora, limitaram-se

quase estritamente a sua função de partilha na regulação dos salários e horas de trabalho e de

impor a revogação de leis abertamente hostil aos trabalhadores.”7 Assim, Engels considera

que as funções dos sindicatos são para regulamentar a taxa de salários e garantir ao

trabalhador alguns meios de resistência em sua luta contra o capital.

Desde seu nascimento, os sindicatos mostraram-se fundamentais para o avanço das

lutas dos trabalhadores contra a exploração dos patrões ou, como diz Engels, “estas

associações alimentam o ódio e a exasperação dos operários contra a classe possuidora”8.

Entretanto, sua evolução não se limitou à nação inglesa, pois na França, Alemanha, Estados

Unidos, como em outros países, com o desenvolvimento das atividades industriais na metade

do século XIX, surgiu também um proletariado cada vez mais forte quantitativa e

qualitativamente, ou seja, o movimento sindical se expandiu na Europa e nos Estados Unidos

onde surgiram as grandes greves. O movimento sindical, nesse sentido, também se

transformou num movimento político, porque se, no início, tinha o objetivo de organizar os

trabalhadores para lutar contra os ataques do capital, passou a posteriori a lutar pela sua

emancipação radical, a saber, a lutar para abolir o sistema capitalista, sua existência de

trabalhador assalariado pelo capital. Daí surgirem vários movimentos políticos como o

Cartismo na Inglaterra, as Revoluções de 1848 na França e Alemanha e a célebre Comuna de

Paris de 1871. Nestes eventos de luta política, a participação da classe operária foi crucial e

decisiva.9

Todavia, qual seria o verdadeiro papel do sindicato como instrumento de luta dos

trabalhadores, ou seja, qual seria então a concepção e/ou a função do sindicato no contexto

histórico do capitalismo na luta pelo socialismo?

Responder a esta indagação nos remete a alguns dos principais autores marxistas

clássicos que tocaram na questão, seja de forma mais profunda ou mesmo mais pontual, mas

de importância não desprezível. Marx, Engels, Rosa Luxemburgo, Lênin e Trotsky são os

autores clássicos do marxismo que abordaram este tema de forma mais sistemática. Extrair de

6 BADALONI, Nicola. Marx e a busca da liberdade comunista. In: HOBSBAWM, Eric J. História do Marxismo

I. p. 244. 7 Ver Artigos de Engels no padrão do Trabalho de 1881, The Labor Standard (Sindicatos). Disponível em: <

htpp://marxists.org/archive/marx/works/subject/trade-unions/index.htm>. Acesso em: 11 jan. 2011. 8 ENGELS, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 249. 9 Como não é possível nos limites deste texto abordar toda a história do movimento sindical dos trabalhadores no

mundo, já que o objetivo é explicitar qual é o papel político do sindicato no processo de conscientização dos

trabalhadores em busca do socialismo, ver então Georgs Lefranc, O sindicalismo no mundo. Portugal: Ed.

Europa-América, 1974.

103

seus textos essas reflexões é imprescindível para podermos encontrar o ponto de partida que

nos leve a uma conclusão mais plausível para esta indagação sobre a concepção de e/ou o

papel do sindicato. Parece claro que os movimentos associativos dos trabalhadores vieram

muito antes do que a sua associação política partidária, pelo menos em alguns países

importantes como a Inglaterra, ou seja, as associações e os sindicatos foram o primeiro passo

dado pelos trabalhadores para criar posteriormente seus partidos políticos revolucionários ou

reformistas que pudessem conduzir sua luta sistematica e/ou revolucionariamente, superando

a luta meramente reivindicativa ou economicista, percebendo, assim, os limites da luta

sindical no marco do capitalismo.

Marx e Engels, portanto, foram fundamentais nesse processo de evolução da luta dos

trabalhadores, a partir de suas participações na Primeira Internacional, com o lançamento do

Manifesto do Partido Comunista em 1864. Porém, bem antes, Marx e Engels já observavam o

movimento da luta operária na Inglaterra com o advento do capitalismo industrial. E isso pode

ser percebido de forma mais contundente nos escritos A Situação da Classe Trabalhadora na

Inglaterra (Engels) e a Miséria da Filosofia (Marx).

No primeiro escrito, Engels mostrou que a forma mais elementar da luta de classe

operária marcou uma resistência violenta à introdução de máquinas, ou seja, os primeiros

inventores foram perseguidos e suas máquinas destruídas.10

Esse tipo de revolta era de caráter

isolado e cego, porque o inimigo dos operários não era a máquina, mas os donos que a

usavam para auferir lucros e diminuir o controle dos trabalhadores sobre o processo de

produção; e Marx já fazia essa diferenciação em O Capital, afirmando que “era mister tempo

e experiência para o trabalhador aprender a distinguir a maquinaria de sua aplicação

capitalista e atacar não os meios materiais de produção, mas a forma social em que são

explorados.”11

No segundo escrito, Marx tematiza a questão da elevação dos salários, das

greves e das grandes indústrias, além claro das leis que limitavam ou proibiam o direito de

associação dos trabalhadores. Tais discussões sobre o papel dos sindicatos no movimento

operário deram-se através de vários documentos do Conselho Geral da Primeira Internacional

(International Workingmen’s Association) como “Em Sindicatos e a Internacional” (on Trade

Unions and the International), “Sindicatos Neutros” (Trade Unions Aloof) etc.

Iniciemos primeiramente por Marx. No contexto do século XIX, havia uma

10 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. In: LASKI, Harold J. O Manifesto do

Partido de Marx e Engels. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. p. 101: “[Os trabalhadores] Atacam não os

condicionamentos burgueses da produção, mas os próprios meios de produção; destroem as mercadorias

estrangeiras que lhes fazem concorrência, quebram as máquinas, queimam as fábricas e procuram reconquistar a

posição perdida do artesão da Idade Média.” 11 MARX, O Capital, v. I, p. 490-491.

104

efervescência política forte na Inglaterra e França. As lutas políticas e sindicais dominavam

aquele contexto histórico-social. Diz Marx, em a Miséria da Filosofia12

, que as coalizões

eram mais amplas e melhor organizadas onde existiam indústrias mais desenvolvidas e

modernas e que o grau alcançado em um país pela coalizão era determinado nitidamente pelo

grau que tal país ocupa numa hierarquia do mercado universal. Portanto, os primeiros ensaios

dos trabalhadores para se associarem entre si deram-se sob a forma de coalizões; em outras

palavras, embora a concorrência entre os trabalhadores dividisse seus interesses, o que os

unia, deveras, era a manutenção dos salários, ou seja, havia um interesse comum contra o

patrão que os reunia num mesmo pensamento de resistência, a coalizão.

Para Marx, a coalizão tinha um duplo objetivo: “fazer cessar entre elas a concorrência,

para poder fazer uma concorrência geral ao capitalista.”13

Dessa maneira, se o primeiro

objetivo de resistência é a manutenção do salário, muito mais importante é a manutenção da

associação. Tal luta, diz Marx, é uma verdadeira guerra civil onde podem se reunir e se

desenvolver todos os elementos necessários a uma batalha futura, que ao chegar a este ponto,

a associação adquire um caráter político. É aqui que Marx ressalta a relevância dos

trabalhadores se organizarem em associações, pois como ele mesmo afirma,

As condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do país em

trabalhadores. A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum,

interesses comuns. Esta massa, pois, é já, face ao capital, uma classe, mas ainda não

o é para si mesma. Na luta, de que assinalamos algumas fases, esta massa se reúne,

se constitui em classe para si mesma. Os interesses que defende se tornam interesses

de classe. Mas a luta entre classes é uma luta política.14

Marx termina o texto, “As greves e as coalizões dos operários” 15

, dizendo que o

movimento social não exclui o movimento político, pois todo movimento social é um

movimento político. As revoluções políticas só deixarão de existir como evoluções sociais

quando não existirem mais classes e antagonismos entre classes. Com outras palavras, Marx e

Engels reforçam essa ideia, ao dizerem que

O aprimoramento contínuo e o rápido desenvolvimento das máquinas tornam a

condição de vida do trabalhador cada vez mais precária; os conflitos individuais

entre o trabalhador e o burguês assumem cada vez mais o caráter de conflito entre

classes. A partir daí os trabalhadores começam a formar uniões (sindicatos) contra

os burgueses; atuam em conjunto na defesa dos salários; fundam associações

permanentes que os preparam para esses choques eventuais. Aqui e ali a luta se

transforma em motim.16

12 Cf. MARX. As greves e as coalizões de operários. In: Miséria da Filosofia, p.158. 13 MARX. As greves e as coalizões de operários. In: op. cit., p. 158-159. 14 Ibid., p. 159. (Grifo nosso). 15 Cf. MARX, op. cit., p. 160. 16 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: op. cit., p. 101.

105

Para Marx e Engels, há então um triunfo ocasional dos trabalhadores nessa luta

sindical; mas o verdadeiro resultado da luta não é o êxito imediato e sim a reunião cada vez

mais ampla dos trabalhadores que é facilitada pelo desenvolvimento dos meios de

comunicação criados pela indústria moderna que possibilita o contato dos operários em várias

localidades. Esse encurtamento do contato entre trabalhadores facilita a centralização das

lutas locais. O que pode abalar a organização do proletariado, dizem Marx e Engels no

Manifesto, é a competição entre os próprios trabalhadores. O que deve ser ressaltado, porém,

é que a própria burguesia fornece os elementos da politização do proletariado, isto é, as armas

contra ela própria. Desse modo, reafirmam Marx e Engels17

que o progresso da indústria

substitui o isolamento dos operários por sua união revolucionária, quer dizer, como

consequência da sua associação.

Em alguns textos da Associação Internacional dos Trabalhadores como “Os sindicatos.

Seu passado, presente e futuro”18

(Trades Unions. Their past, present and future), escrito por

Marx em agosto de 1866, há um reforço desta tese marxista de que a desunião dos

trabalhadores é criada e perpetuada pela sua inevitável concorrência entre si, pois o único

poder social dos trabalhadores é o seu número, quer dizer, a força dos números é quebrada por

essa desunião. Se os sindicatos originalmente surgiram das tentativas espontâneas dos

trabalhadores de eliminar e/ou controlar a competição entre eles, ou seja, para estabelecer

contratos que pudessem tirá-los da condição de meros escravos assalariados e, portanto,

criando as condições de salários e jornada de trabalho como uns dos seus objetivos, então a

atividade sindical não é apenas legítima, mas é necessária. Daí a importância para Marx de os

sindicatos se formarem e se combinarem em todos os países, pois os sindicatos são centros de

organização da classe trabalhadora, tais como os municípios medievais e as comunas fizeram

para a classe media. Os sindicatos, segundo Marx, são, na verdade, lutas de guerrilhas entre o

capital e o trabalho, ou seja, são as mais importantes agências de organização para abolir o

sistema de trabalho assalariado (abstrato) e o regime capitalista (seu passado).19

Dessa maneira, os sindicatos se empenham exclusivamente, segundo Marx, nas lutas

locais e imediatas contra o capital, mas eles não compreendem totalmente o seu poder de agir

contra o sistema de salário escravo, a saber, os sindicatos se mantêm distantes do movimento

17 Cf. MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: op. cit., p. 104. 18 Disponível em: < htpp:/www.marxists.org/archive/marx/works/subject/trace-unios/index.htm>. Acesso em: 11

jan. 2011. 19 Cf. também LOSOVSKY, A. Marx e os sindicatos. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 1989, p. 7: “Os

sindicatos são eixo organizador da classe proletária, tal como as municipalidades e as paróquias medievais eram

para a burguesia, ou seja, os sindicatos são indispensáveis às guerrilhas cotidianas entre o capital e o trabalho,

não menos importantes os são como meios de organização da classe proletária para abolir o sistema do trabalho

assalariado.”

106

de luta política e social em geral e parecem não despertar para o sentido da sua grande missão

histórica. Na verdade, Marx sempre salienta neste texto da Associação Internacional dos

Trabalhadores que os sindicatos precisam agir deliberadamente como centros organizadores

da classe operária no interesse de sua completa emancipação e precisam de toda a ajuda do

movimento político e social que tende a esse sentido. Assim sendo, os sindicatos precisam

mobilizar a sociedade enquanto representantes da classe trabalhadora e que seus esforços não

são egoístas, justamente porque tem como objetivo a emancipação de milhões de pessoas.

Conforme Nogueira, “é fato que os sindicatos se limitam à representação de interesses

particulares e ao arranjo pragmático no plano político, e estão diante do desafio da retomada

da atuação social e política, voltada para o mundo do trabalho.”20

Em Salário, Preço e Lucro, Marx nos adverte, no entanto, que mesmo que haja uma

resistência periódica dos trabalhadores de se oporem à redução dos salários e também de

lutarem para conseguir um aumento nos salários, não podemos deixar de perceber que são

fenômenos inseparáveis do sistema do salariado em que o trabalho é equiparado às

mercadorias, logo submetido às leis que regulam o movimento geral dos preços. Na verdade,

para Marx, o valor do trabalho é estabelecido pelo limite mínimo, ou seja, determinado pelo

valor dos meios de subsistência necessários à sua manutenção e reprodução, valor este,

portanto, regulado pela quantidade de trabalho necessário para produzi-los. É por isso que

Marx nos alerta que

a classe operária não deve exagerar a seus próprios olhos no resultado final dessas

lutas diárias. Não deve esquecer de que luta contra os efeitos, mas não contra as

causas desses efeitos; que logra conter o movimento descendente, mas não fazê-lo

mudar de direção, que aplica paliativos, mas não cura a enfermidade. Não deve,

portanto, deixar-se absorver exclusivamente por essas inevitáveis lutas de guerrilhas,

provocadas continuamente pelos abusos incessantes do capital ou pelas flutuações do mercado. A classe operária deve saber que o sistema atual, mesmo com todas as

misérias que lhe impõem, engendra simultaneamente as condições materiais e as

formas sociais necessárias para uma reconstrução econômica da sociedade. Em vez

do lema conservador de “Um salário justo para uma jornada de trabalho justa!”,

deverá inscrever na sua bandeira esta divisa revolucionária “Abolição do sistema de

trabalho assalariado!”21

No final dessa discussão, Marx propõe as seguintes resoluções:

1) Uma alta geral da taxa de salários acarretaria uma baixa da taxa geral de lucro,

mas não afetaria, em linhas gerais, os preços das mercadorias; 2) A tendência geral

da produção capitalista não é para elevar o padrão médio dos salários, mas para

reduzi-los; e 3) Os sindicatos trabalham bem como centro de resistências contra as

usurpações do capital. Falham em alguns casos, por usar pouco inteligentemente a

20 NOGUEIRA, Arnaldo J. F. Mazzei. A liberdade desfigurada: a trajetória do sindicalismo no setor público

brasileiro. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 66. 21 MARX, Karl. Salário, preço e lucro. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 184. (Os Economistas).

107

sua força. Mas são deficientes, de modo geral, por se limitarem a uma luta de

guerrilhas contra os efeitos do sistema existente, em lugar de, ao mesmo tempo, se

esforçarem para mudá-lo, em lugar de empregarem suas forças organizadas como

alavanca para a emancipação final da classe operária, isto é, para abolição definitiva

do sistema de trabalho assalariado.22

Percebemos aí no item 3 da citação que Marx aponta a importância da luta sindical,

seus limites e suas falhas, quer dizer, os sindicatos são organizações de luta imprescindíveis

para que a classe trabalhadora possa resistir às ameaças dos interesses do capital, mas também

assinala que eles tornam-se falhos em determinados casos, por não saberem utilizar seu poder

de força política de forma mais sistemática, estratégica, quer dizer, os sindicatos lutam pelas

causas imediatas, contra os efeitos do capitalismo, mas não conseguem lutar contra as causas

que geram tais efeitos, sobretudo porque tais forças não são organizadas para abolir o capital,

objetivando a emancipação dos trabalhadores da exploração capitalista.

No ínterim dessa discussão marxiana se encontra a questão fundamental do aumento

do “capital constante” e a diminuição do “capital variável”. A maquinaria nova ou a

ampliação da velha, ao ser realizada, faz com que parte do “capital variável” se transforme em

“capital constante”. Em outras palavras, os trabalhadores ficam sem empregos, porque foram

expulsos do mercado de trabalho com a introdução da maquinaria. Nesse sentido, diz Marx

em O Capital, “A procura de trabalho não se identifica com o crescimento do capital, nem a

oferta de trabalho com o crescimento da classe trabalhadora. Não há aí duas forças

independentes, uma influindo sôbre (sic) a outra.”23

Daí Marx afirmar que o capital e seu

defensor protestam quando os trabalhadores empregados e desempregados se organizam

através de sindicatos para destruir e enfraquecer as consequências ruinosas da lei natural da

produção capitalista sobre a classe, isto é, a sacrossanta lei da oferta e da procura.24

Em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, Engels lança os primeiros

elementos de reflexão sobre a péssima condição de vida dos trabalhadores neste país, a partir

de sua experiência em locus, em 1842, aos 22 anos, ao estagiar na fábrica de fiação de seu pai

em Manchester. Engels percebeu as péssimas condições de trabalho dos operários nas

fábricas, seu movimento em associações, enfim, ele apropriou-se de uma vivência social dos

operários que lhe forneceu os elementos empíricos para teorizar sobre o processo de

exploração capitalista, mas, sobretudo, para desenvolver a noção de revolução industrial. Eis

aí com certeza a grande manifestação do pensamento político marxista. Não é à toa que

Engels afirma ab initio que

22 MARX, Salário, preço e lucro, p. 185. 23 MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [s.d]. v. II, p. 742. 24 Cf. MARX, O Capital, v. II, p. 742.

108

[...] os operários ingleses não podem sentir-se felizes numa tal situação; que a

situação não é a mais adequada para que um homem, ou uma classe inteira, tenha

possibilidade de pensar, sentir e viver humanamente. Os operários devem, portanto,

tentar se libertar desta situação que os coloca ao nível dos animais, para criarem para

si próprios uma existência melhor, mais humana, e só o podem fazer entrando em

luta contra os interesses da burguesia enquanto tal, interesses que residem

precisamente na exploração dos operários.25

E Engels denuncia assim a situação operária na Inglaterra, dizendo que o burguês trata

o operário como uma coisa, como sua propriedade, e, segundo Engels26

, esta é uma boa razão

para que o operário se manifeste como inimigo da burguesia. Nesse sentido, ressalta Engels

que o operário só pode valorizar as suas qualidades humanas, opondo-se ao conjunto das suas

condições de vida imposta pelo capitalismo industrial. Indaga então Engels: como fazer

oposição a essa realidade social capitalista? Como se opor a certa “filantropia” burguesa sob a

aparência de uma paz social?

A oposição começou, diz Engels, com uma ação violenta dos trabalhadores contra a

introdução de máquinas, logo no início do movimento industrial. Essa ação se transformou

num grande número de revoltas em várias partes da Inglaterra. Como eram proibidos os

trabalhadores de se associarem, havia associações secretas ou ilegais, como a dos mineiros,

por exemplo, que organizava a greve geral tal como ocorreu na Escócia em 1812 e 1822. Mas

só em 1824 é que o direito à livre associação foi obtido pelos operários, como já tínhamos

dito antes. Tais associações se multiplicaram por toda a Inglaterra. Como foi explicitado

anteriormente, a Trade Unions representava esse tipo de organização que visava a proteger os

trabalhadores contra a exploração dos patrões. Então, seus fins eram fixar salários, negociar

em massa, enquanto força, com os patrões, regulamentar os salários em função do benefício

do patrão, aumentá-lo no momento adequado e mantê-lo ao mesmo nível de cada ramo de

trabalho. Na realidade, tais uniões tinham o propósito de negociar com os capitalistas a

instituição de uma escala de salários que seria cumprida em toda a parte, podendo o operário

se recusar a trabalhar para o patrão que não obedecesse a essa escala. Fora isso, as uniões

tinham também como objetivos: 1) manter sempre ativa a procura de trabalhadores, limitando

o contrato de aprendizes para impedir a redução de salários; 2) lutar contra as ardilosas

reduções salariais que os industriais se utilizavam como estratagema o uso de novas

máquinas; e 3), por fim, ajudar financeiramente os operários por meio de caixa da associação.

O perigo das Associações para o industrial, segundo Engels, está no fato de que elas

podem desencadear uma greve, caso o patrão queira reduzir os salários a níveis cada vez mais

25 ENGELS. Os movimentos operários. In: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 241. 26 Cf. Ibid., p. 242.

109

baixos a fim de aumentar seus lucros. Em outras palavras, isso poderia desencadear uma

greve por parte dos operários que traria ao patrão um prejuízo de um capital inativo com

máquinas paradas e, consequentemente, enferrujadas. Mas há situações em que a ação das

Associações é impotente, pois quando há crises econômicas em que a oferta de trabalho

diminui, elas perdem seu poder de força ou de pressão por aumento ou conservação salarial.

Nesse caso, ficam elas à mercê das circunstâncias adversas do sistema capitalista, esperando

por uma nova fase de prosperidade para poder pleitear melhores condições de salários e

trabalho. É por isso que Engels diz que

A história destas associações é uma longa série de derrotas dos trabalhadores,

interrompida por algumas vitórias esporádicas. É natural que todos esses esforços

não consigam mudar as leis da economia, que o salário seja regido pela relação da

procura e da oferta no mercado de trabalho. É por isso que as associações não podem contra as grandes causas que agem sobre essa relação.27

Isso nos leva a deduzir que, tal como as Associações do tempo de Engels, os

sindicatos de hoje estão no mesmo plano de luta e ação imediatista, quer dizer, repetem as

mesmas estratégias das lutas de guerrilhas do cotidiano capitalista. Pois, enquanto os

trabalhadores não entenderem como age e se “perpetua” a relação entre salário e lucro, a

relação antagônica entre capital e trabalho, a luta sindical fica à deriva das situações históricas

do ciclo de Kondratieff com períodos médios de 22,6 anos, ou seja, das fases cíclicas do

capitalismo: prosperidade, crise e depressão. Desse modo, esse tipo de ação da luta sindical

impede que o trabalhador vise um outro modo de vida social para além do capitalismo.

No entanto, Engels ressalta um aspecto positivo das Associações, a saber, elas são o

protesto concreto do operário (inglês) contra a cupidez da burguesia, impondo, portanto,

limites nessa ganância de classe e denunciando sua onipotência social e política enquanto

classe dominante, embora saiba ele que tais Associações não chegam a quebrar o domínio da

burguesia. Para Engels, “[...] o que dá a estas associações e às greves que elas organizam a

sua verdadeira importância é que elas são a primeira tentativa dos operários para abolir a

concorrência.”28

Nesse sentido, o ponto fraco para a burguesia, conforme Engels, é que as

Associações atacam a concorrência, ou seja, esse nervo vital da ordem social capitalista que

divide os trabalhadores entre si. A supressão da concorrência entre os operários é o objetivo

fundamental para que eles possam estar bem resolvidos para não se deixarem explorar mais

pelos capitalistas, e, nesse sentido, o reino da propriedade privada burguesa chegará ao seu

fim.

27 ENGELS, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 246. 28 Ibid., p. 248

110

Se os trabalhadores não se deixarem ser comprados ou vendidos, se abandonarem a

determinação do valor do trabalho imposto pelo capital, e, portanto, se afirmarem como seres

humanos, isto é, de que eles não são apenas a sua força de trabalho, mas seres de vontade

própria, então será o fim de toda a economia política e as leis que regem os salários, assim nos

relata Engels29

. A necessidade então aboliria não somente a concorrência dos trabalhadores

entre si, mas também a concorrência em geral. Essa compreensão do capitalismo como um

sistema de crises, que apenas afetam sordidamente os trabalhadores, faz com que

necessariamente haja uma luta maior que possa abolir o sistema como um todo e não apenas

uma típica forma de exploração menos injusta.

O que podemos destacar nesse texto de Engels – Os Movimentos Operários – é a

necessidade do operário de se organizar politicamente para barrar leis que são empecilhos à

possibilidade de ele ter uma condição de vida melhor no mundo do trabalho. O Cartismo e,

como corolário, a “Carta do Povo” (People’s Charter) tinham o objetivo de tornar a “Câmara

dos Comuns” mais democrática, quer dizer, ter uma base parlamentar mais democrática que

pudesse tornar a lei mais universal possível. Isso se deve à percepção negativa que o

operariado inglês tinha da lei que lhe funcionava como um chicote preparado pela burguesia.

A lei para o burguês era sagrada, porque não permitia que a sociedade tocasse na ordem social

e econômica estabelecida por ele. A lei se tornava, então, sacrossanta.

Por outro lado, o operariado inglês não poderia ter a consciência plena de sua força

política e social fora dos parâmetros da legislação. Esta regulava a ação social dos

trabalhadores, inclusive as greves que poderiam ser instrumentos de massa contra a

propriedade privada da exploração. O que pode caracterizar o Cartismo é uma palavra de

ordem bastante usada: “O nosso meio é o poder político; a nossa felicidade é a felicidade

social.”30

Mas infelizmente tanto o Cartismo como o Socialismo inglês31

pregam uma

filantropia e um amor universal ainda mais estéril, ou seja, admitem apenas a evolução

psicológica, a evolução do homem abstrato, sem qualquer ligação com o passado, mesmo que

o mundo e o homem repousem sobre este passado. Para Engels, portanto, os socialistas

ingleses e muitos cartistas são demasiado metafísicos, pois pouco fazem.

O que também podemos considerar nessa discussão engelsiana sobre a condição da

classe trabalhadora na Inglaterra é a forma educacional dos movimentos cartistas e socialistas.

29 Cf. ENGELS, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 248. 30 ENGELS, op. cit, p. 264. 31 Vale esclarecer que os cartistas eram mais atrasados, menos evoluídos, mas eram os que representavam

autentica e fisicamente o proletariado. Os socialistas enxergavam mais longe, queriam medidas mais práticas

contra a miséria, mas eram de origem burguesa e, portanto, foram incapazes de se amalgamar com a classe

operária. Ver Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 266.

111

Eles criaram com seus próprios meios um grande número de escolas e salas de leitura para

elevar o nível intelectual do povo. Ou como diz Engels,

Todas as instituições socialistas e quase todas as instituições cartistas possuíam um

estabelecimento deste gênero, e muitas associações profissionais os possuem

igualmente. Dão às crianças uma educação verdadeiramente proletária, isenta de

todas as influências burguesas, e nas salas de leitura encontram-se, exclusivamente

ou quase, jornais ou livros proletários. Estes estabelecimentos representam um grave

perigo para a burguesia que conseguiu subtrair um certo número de Institutos desse

gênero, as Mechanic’s Institutions, à influência do proletariado e transformá-los em

instrumentos destinados a espalhar entre os operários conhecimentos úteis à

burguesia.32

Na verdade, o que se ensinava aos operários nesses institutos subtraídos eram as

ciências da natureza para distraí-los da sua luta contra a burguesia; por outro lado, tal

ensinamento sob a influência burguesa dava os meios para os operários fazerem descobertas

e/ou invenções que traziam dinheiro para os burgueses. Também se ensinava economia

política, cujo ídolo é a livre concorrência, ou seja, ensinava-se ao operário a morrer de fome

com uma calma resignação, tendo assim uma educação dócil, servil relativamente à política e

à religião reinantes, cujo resultado final seria uma obediência tranquila, uma passividade e

uma submissão ao seu destino cruel no capitalismo. Felizmente, a grande massa dos operários

não queria nem ouvir falar destes institutos aburguesados, preferindo as salas de leituras

proletárias e orientando-se para as discussões sobre as relações sociais. Havia numerosas

conferências científicas, estéticas e econômicas patrocinadas nos institutos socialistas que

atraiam os operários, demonstrando que eles gostavam de uma “educação séria”, desde que

não se misturassem com os interesses burgueses.

Neste ponto, nos afirma Engels, o proletariado soube adquirir uma cultura própria,

utilizando-se de obras modernas de filosofia, política e poesia para leitura. O proletariado

tinha, dessa maneira, os olhos voltados para todo o progresso da humanidade e, ipso facto,

estudava com prazer e sucesso. Daí o proletariado constituir uma literatura própria a partir

dessas bases humanistas, compondo brochuras, jornais e panfletos, cujo valor intelectual

ultrapassava, de certa forma, o da burguesia. Para Engels, essas organizações operárias,

proibidas e legalizadas depois, tornaram-se sedes poderosas do Cartismo como meios de

divulgar princípios próprios e concepções particulares em face de toda classe possuidora, pois

é no proletariado que residem a força e a capacidade de desenvolvimento da nação.33

32 ENGELS, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 266-267. 33 Nos bairros de miséria do leste de Londres, houve uma sacudida no desespero paralisante dos trabalhadores,

quer dizer, eles voltaram à vida e tornaram-se o berço de um novo unionismo, id est, uma organização de massa

dos trabalhadores sem qualificação. A diferença dessa organização para a tradicional era a não consideração do

salário como um fato definitivo, estabelecido de uma vez para sempre, pois para as Novas Uniões, a crença na

112

Depois desse apanhado reflexivo de Marx e Engels sobre “sindicatos”, suas

concepções e funções ou tarefas de luta, culminamos esta discussão com a exposição teórica

de Rosa Luxemburgo, Lênin e Trotsky sobre a temática. Eles são, a nosso ver, mais

complementares no desenvolvimento desta discussão por terem vivido os momentos de

efervescência da Segunda Internacional em que o Partido Social Democrata Alemão e Russo

tiveram papéis importantes na organização dos sindicatos operários europeus. Rosa

Luxemburgo já anota primeiramente, em Os sindicatos, as cooperativas e a democracia

política34

, que o socialismo de Bernstein, por exemplo, tinha o objetivo de fazer com que os

operários participassem da riqueza social para transformar os pobres em ricos; para isso, diz

ela, Bernstein propunha realizar tal socialismo de duas formas: com os sindicatos e as

cooperativas, quer dizer, com o auxílio dos sindicatos, pretendia-se suprimir o lucro dos

industriais, e com o auxilio das cooperativas, o lucro.

Comecemos, então, por Rosa Luxemburgo sobre essa discussão da finalidade dos

sindicatos no processo da luta pela emancipação humana. Se tudo se inicia com a postulação

do socialismo para derrubar a sociedade capitalista, nada mais natural do que compreender

essa dinâmica reflexiva em Rosa Luxemburgo sobre o papel dos sindicatos neste processo.

Uma coisa é certa para Rosa Luxemburgo, ou seja, Marx tinha razão, quando viu no modo de

distribuição numa época determinada, apenas uma consequência natural da forma de

produção dessa mesma época. Portanto, se a social-democracia luta pela socialização de toda

economia, ela aspira uma “justa” distribuição de riqueza social, não se limitando a centralizar

a sua luta no âmbito da produção capitalista, mas na abolição da produção mercantil

capitalista; diferentemente de Bernstein que busca limitar a distribuição da riqueza

socialmente produzida no campo da ordem progressiva do capitalismo. Esse quixotequismo

bernsteiniano é criticado por Rosa Luxemburgo por ser uma ação moral da reforma do

mundo.

É no texto Greves de Massas, Partido e Sindicatos que Rosa Luxemburgo fornece,

para o movimento operário, em geral, e para social-democracia, em particular, os

ensinamentos da Revolução Russa, ou melhor dizendo, estuda o problema da greve política,

da greve de massa, vendo em tal greve uma nova arma de luta do proletariado. Citando uma

crítica de Engels a Bakunin sobre a greve geral, Rosa Luxemburgo afirma que este anarquista

entendia a greve geral como uma alavanca para se fazer a revolução social. Bastaria os

perenidade do salário estava abalada. Sobre isso, ver Friedrich Engels, Prefácio à Edição Alemã de 1892. In: A

situação da classe trabalhadora na Inglaterra, p. 376-377. 34 Cf. LUXEMBURGO, Rosa. Os sindicatos, as cooperativas e a democracia política. In:_____. Textos

Escolhidos. São Paulo: Martins Fontes, 1977. p. 90-91.

113

operários de todas as fábricas ou de todos os países pararem por um período de quatro

semanas, para que as classes possuidoras capitulassem ou atacassem os operários. Seria um

“cavalo de batalha” no qual precisaria a classe operária estar muito bem organizada e seus

cofres bastante cheios para financiar esta luta. Para Engels, afirma Rosa Luxemburgo, não

seria necessário que essa organização estivesse desenvolvida e/ou tivesse um fundo de

reservas, precisaria somente que os acontecimentos políticos e as intervenções das classes

dominantes se dessem para se conduzir a essa libertação dos trabalhadores. A greve, nesse

sentido, seria apenas um rodeio para se atingir o objetivo da emancipação humana.

Ademais, para Rosa Luxemburgo, a teoria anarquista da greve geral como meio de

atingir a revolução social, se opondo, portanto, à luta política diária da classe operária, parecia

se encaixar perfeitamente no simples dilema, a saber, ou proletariado não possui ainda

organizações poderosas e cofres cheios para se suceder bem numa greve geral, ou o

proletariado já se encontra poderosamente organizado sem precisar fazer greve geral. Para

Marx e Engels, em oposição ao bakuninismo – diz Rosa Luxemburgo –, é a luta política que é

o instrumento indispensável para a revolução social. Mas o que parecia impossível, a

Revolução Russa submeteu o argumento marxista a uma revisão fundamental, ou seja, pela

primeira vez na história das lutas de classes, a ideia da greve geral se realizou

grandiosamente, inaugurando uma nova época na evolução do movimento operário. Porém,

para Rosa Luxemburgo, isso não anularia o argumento de Marx e Engels sobre a importância

maior da luta política, pois os raciocínios e os métodos que estavam na origem da tática (da

luta política) serviram como novos fatores e condições totalmente novas da luta de classes.

Nesse sentido, diz Rosa Luxemburgo, A Revolução Russa, que constituiu a primeira

demonstração histórica da greve geral, foi tanto a reabilitação do anarquismo, como também

significou a sua própria liquidação histórica.

É preciso salientar que a greve de massas na Rússia não foi realizada como uma forma

de saltar rapidamente para a revolução social, no sentido de evitar a luta política, mas uma

forma de criar as condições da luta política diária para o parlamentarismo, isto é, tornou-se

uma arma eficaz para o proletariado conquistar direitos e condições políticas imprescindíveis

na luta pela emancipação, como demonstraram Marx e Engels no seio da Primeira

Internacional em oposição ao anarquismo que repudiava a ação política. Daí Rosa

Luxemburgo afirmar que a greve de massas, ao contrário do que pensavam os anarquistas,

como uma ação “não política”, surgiu naquele período como a mais poderosa arma da luta

política pela conquista dos direitos políticos dos trabalhadores russos. Para Rosa

Luxemburgo,

114

Uma coisa que a revolução russa nos ensina é, em primeiro lugar, que a greve de

massas não é nem “fabricada” artificialmente, nem “decidida” ou “propagada” à toa,

no ar, mas constitui um fenómeno histórico que se produz num determinado

momento, como consequência das condições sociais, sob o efeito da necessidade

histórica [...].35

A greve de massas, por conseguinte, não é uma forma abstrata da luta, tal como a

revolução. “Greve de massas” e “Revolução” são conceitos que representam a forma externa

da luta de classes, pois não possuem conteúdo ou sentido, senão, numa relação face às

situações políticas muito específicas. Embora a greve de massas também tenha sido um

fenômeno para alargar o horizonte intelectual do proletariado, reavivando sua consciência de

classe para aprofundar suas ideias e aumentar suas energias, ela difere da greve política de

massas por ser uma paragem do trabalho proletário industrial que visa apenas à conclusão de

um acordo político que beneficia as direções dos partidos e dos sindicatos tal como ocorre na

Alemanha, na mais perfeita ordem, baseando-se numa palavra de ordem dada em devido

tempo pelas direções.

O que mais impressionou Rosa Luxemburgo sobre o fenômeno das greves de massas

na Rússia, foi a sua diversidade, isto é, ele refletia todas as fases da luta política e econômica,

todos os estágios e momentos da revolução. De outra maneira, também na greve de massas, a

sua possibilidade de aplicação e os seus efeitos, bem como as suas causas originais,

transformaram-se continuamente, quer dizer, a greve de massas apresentou subitamente à

Revolução Russa novas e amplas perspectivas na altura de um impasse e falha em que se

podia contar com ela toda segurança. A forma como se espalhou pela Rússia demonstrou que

a greve de massas se dividiu numa rede de canais por várias cidades. Greve política e greves

econômicas, greve de massas e greves parciais, greves de demonstração e greve de combate,

greve num determinado setor e greve numa cidade inteira – batalhas travadas por salários e

batalhas nas ruas ou combate de barricadas – tudo isso fica entrelaçado e se funde num único

mar de fenômenos eternamente mutável e em movimento. Nestas linhas, Rosa Luxemburgo

enfatiza a importância da greve, ao dizer que

A greve é a pulsação viva da revolução e, simultaneamente, o seu mais poderoso

motor. Numa palavra, a greve de massas é, tal como nos é apresentada pela

revolução russa, um engenhoso processo inventado para dar mais eficácia à luta

proletária; trata-se da forma tomada pelo movimento da massa proletária, a forma

sob a qual a luta proletária se manifesta na revolução.36

No caso específico da Revolução Russa, a greve de massas, segundo Rosa

Luxemburgo, não é um ato isolado, uma ação específica, mas uma característica de um

35 LUXEMBURGO. Greves de Massas, Partido e Sindicatos. In:____. Textos Escolhidos, p. 114. 36 Ibid., p. 119. (Grifo do autor).

115

período de luta de classes que se deu por vários anos, dezenas de anos, e nesse sentido, é um

conceito que se resume a esse período. A greve de combate, essa ação proletária, não separa o

elemento econômico do elemento político, pois a realidade repudia aquele esquema teórico

que afirma que a greve de massas puramente política derive da greve geral sindical ou de que

ela seria o estágio mais perfeito e elevado. Tanto a greve política quanto a greve econômica

podem vir primeiro como depois no movimento de luta pela emancipação operária. Quando a

luta política se estende, se clarifica e se intensifica, a luta econômica também se expande, se

organiza e se intensifica ao mesmo tempo e no mesmo ritmo. Uma reage sobre a outra. Cada

vitória política transforma-se num novo e poderoso impulso dado à luta econômica, ou seja,

os operários tendem a melhorar e dar mais impulso a sua combatividade. Os militantes ficam

em alerta e os trabalhadores em geral se opõem ao capital. Por fim, Rosa Luxemburgo conclui

qua a luta econômica é o elemento que leva incessantemente uma crise política a outra. A luta

política fecunda também o solo onde se desenvolve a luta econômica, ou seja, “causa” e

“efeito” se permutam constantemente. Luta política e luta econômica const ituem a unidade na

greve de massas. Em suma, não é a greve de massas que origina a revolução, mas é esta que

produz a greve de massas.

Nesse relato de Rosa Luxemburgo, há também um destaque que diz respeito ao

elemento espontâneo37

que se desempenha nas greves, isto é, não porque o proletário russo

não esteja educado, e sim porque as revoluções recusam qualquer tipo de magistério sobre

elas. Dessa forma, para Rosa Luxemburgo, o elemento espontâneo desempenha um

importante papel em todas as greves de massas na Rússia, seja como algo impulsionador, seja

como entrave. Os fatores econômicos, políticos e sociais, gerais e locais, materiais e

psicológicos são impossíveis de ser determinados e deduzidos por qualquer tipo de ação

especial, tal como um problema de aritmética, pois a revolução não é, como diz Rosa

Luxemburgo, um terreno liso no qual podemos nos manobrar como queiramos. Por isso, não

podemos desprezar a tática quando ela é consequente e não hesitante, pois a tática decidida,

ofensiva e desenvolvida suscita nos trabalhadores sentimentos de segurança, de confiança e de

combatividade; já uma tática fraca, assentada numa subestimação do proletariado, exerce nos

trabalhadores uma ação inerte, paralisante, semeando confusão e insegurança. No primeiro

37 “Segundo o leninismo, a verdadeira consciência de classe não se deixa atingir espontaneamente, não é

alcançável de modo gradual pela própria classe e, por conseguinte, só pode ser trazida ‘de fora’ à classe operária,

isto é, pelo partido verdadeiramente conhecedor da história e da sociedade” (BICCA, Luiz. Marxismo e

liberdade. São Paulo: Edições Loyola, 1987. p. 213-214). Lukács, sobremaneira, acusa Rosa Luxemburgo de

superestimar o elemento orgânico na história e a espontaneidade das massas e de considerar a liberdade um valor

em si. A liberdade, nesse sentido, pode ser “contrarrevolucionária”. A liberdade tem que servir a dominação do

proletariado, e não o contrário. Cf. BICCA, op. cit., p. 237, nota 54. Ver também Lukács em História e

consciência de classe, p. 301.

116

caso, há um estalo que pode levá-los à vitória; no segundo, os apelos para uma greve de massa

tornam-se infrutíferos e fadados ao fracasso. E, neste sentido, a Revolução Russa forneceu-

nos elementos bastante eloquentes dessas táticas.

Rosa Luxemburgo, portanto, ao analisar as hesitações dos dirigentes sindicais e

políticos alemães sociais-democratas, que sempre relutam em querer fazer uma greve de

massas na Alemanha, por causa ainda da falta da maturidade política ou do número

insuficiente de operários plenamente organizados, fez com que ela mesma criticasse essa

posição. Em outras palavras, não é possível, para Rosa Luxemburgo, que quinze anos depois,

com a força do sindicato quadruplicada, se coloque ainda em dúvida essa possibilidade da

greve de massa na Alemanha, porque não dá para ter 100 por cento da classe trabalhadora

organizada para desencadear uma luta política de massas, ou melhor expressando,

[...] não é só a organização que fornece tropas de choque; é a própria luta que, numa dimensão muito maior, fornece recrutas para a organização do Partido. Isto se aplica

evidentemente com mais forte razão à acção política directa do que a luta

parlamentar. [...] Toda autêntica luta de classes deve basear-se no apoio e na

colaboração das mais amplas massas; uma estratégia da luta de classes que não

conte com esta colaboração, calculada unicamente em função da fracção do

proletariado já recrutada, facilmente manobrada, estaria de antemão condenada a um

impiedoso fiasco.38

O importante a ressaltar nessa reflexão luxemburguiana é que a greve de massas não é

um produto específico da Rússia, originado no marco do absolutismo czarista, mas uma forma

geral da luta de classes proletária que resulta do período da evolução do capitalismo e das

relações de classes. Uma questão que Rosa Luxemburgo não deixa de responder é: se não há

contradição entre socialismo e a necessidade da luta operária por melhoras imediatas nas suas

condições de vida e pela conquista das liberdades sindicais para categorias de trabalhadores

que não as possuem ainda? Para ela, a história não espera pacientemente que países ou

camadas atrasadas alcancem os mais ou as mais avançados/as para se dar a evolução. Ao

contrário, as explosões ocorrem tanto nos pontos mais atrasados como nos mais avançados e

aceleram a tempestade do período revolucionário que recupera o tempo perdido, corrigindo as

desigualdades e fazendo avançar o progresso social. Assim sendo, Rosa Luxemburgo termina

este texto desenvolvendo as relações entre sindicatos e Partido na Alemanha, porém,

pronunciando-se contra a autonomia e a neutralidade política dos sindicatos, como também

contra a subordinação dos sindicatos à direção política do Partido, contudo, enfatizando a

importância das greves no desenvolvimento da luta de classes.

De outra maneira, em Reforma Social ou Revolução?, Rosa Luxemburgo toma de

38 LUXEMBURGO, Textos escolhidos, p. 126.

117

empréstimo de Bernstein sua reflexão sobre a função do sindicato, escrito na Neue Zeit em

1891. Ou seja, a principal função do sindicato

consiste em permitir aos operários a realização da lei capitalista dos salários, quer

dizer a venda da força de trabalho ao preço conjuntural do mercado. Os sindicatos

servem o proletariado utilizando no seu próprio interesse, a cada instante, essas

conjunturas de mercado. Mas as próprias conjunturas, isto é, por um lado a procura

da força de trabalho determinada pelo estado da produção e, por outro, a oferta da força de trabalho criada pela proletarização da classe operária, enfim, o grau de

produtividade do trabalho, estão situadas fora da esfera de influência dos

sindicatos.39

Tais elementos não podem eliminar a lei dos salários, e sim conservar a exploração

capitalista dentro dos limites “normais” determinados em cada fase da conjuntura, porém

estão distantes de abolir a exploração em si mesma, mesmo que gradativamente. A fragilidade

dos sindicatos em querer exercer uma influência reguladora na produção deve-se aos

obstáculos de se intervir no domínio técnico do processo ou mesmo de fixar as próprias

dimensões da produção. Sabemos que toda transformação técnica se põe contra os interesses

dos operários, pois, de facto, agrava a sua situação imediata, deprecia sua força de trabalho,

ao torná-la mais intensiva, monótona e penosa. Segundo Rosa Luxemburgo, é um fenômeno

recente a tentativa para fixar as dimensões e os preços das mercadorias. Isso vai na contramão

da luta pela emancipação, porque tanto os operários como os empresários estão indo contra o

consumidor, à proporção que usam medidas contra os empresários concorrentes.

Retomando então a questão dos sindicatos, sua atividade está limitada à luta pelo

aumento dos salários e pela redução do tempo de trabalho, ou seja, para Rosa Luxemburgo, o

sindicato busca unicamente ter uma influência reguladora sobre a exploração capitalista, de

acordo com as flutuações do mercado. Conforme Conrad Schmidt – diz Rosa Luxemburgo –

o movimento sindical, em determinadas ocasiões, não consegue aumentar a sua expansão, tal

como supõe a teoria da adaptação do capitalismo; pelo contrário, o sindicato pode ficar,

durante um período de desenvolvimento social, sem nenhuma expansão triunfante, mas com

grandes dificuldades crescentes. Acreditam Bernstein e Schmidt que, no futuro, com reformas

desenvolvidas até o infinito, o sindicalismo possa se expandir. Rosa Luxemburgo, no entanto,

alerta para o fato de que, quando o desenvolvimento da indústria atingir o seu apogeu e o

mercado mundial iniciar uma fase de descendência, a luta sindical ficará difícil. Isso com base

em dois motivos: 1) a partir do momento em que as conjunturas objetivas do mercado tornam-

se desfavoráveis à força de trabalho, isto é, quando a busca por essa força de trabalho torna-se

lenta e a sua oferta aumenta rapidamente; e 2) a partir do momento em que o capital buscará

39 LUXEMBURGO, Rosa. Reforma social ou revolução? São Paulo: Global Editora, 1986. p. 46.

118

compensar as perdas sofridas no mercado mundial, reduzindo parte do produto pertencente

aos operários, a saber, a redução dos salários. Não é à toa que Marx, em O Capital, apresenta

uma fase do movimento sindical como aquela que se restringe a simples defesa dos direitos

adquiridos e com grandes dificuldades, logo a única contrapartida seria o desenvolvimento da

luta de classe política e social. Portanto, para Rosa Luxemburgo, tanto Bernstein quanto

Schmidt se iludem com a expansão do sindicalismo a partir do aprofundamento das reformas

que se chocam com os limites do interesse do capital.

É preciso deixar claro que o exame econômico da luta do salário contra o lucro suscita

uma outra reflexão, ou seja, de que essa luta não se realiza no abstrato, no imaterial, mas num

determinado quadro de leis de salários, impossível de se destruir no capitalismo, mas somente

realizá-la. Para Bernstein, conforme Rosa Luxemburgo, a autêntica intervenção dos sindicatos

tem uma missão muito maior que é a luta pela emancipação da classe operária, porque são os

sindicatos que travam a luta contra a taxa de lucro industrial para transformar em taxa de

salário. Mas ela o critica, dizendo que

[...] os sindicatos não têm nenhum poder real para poderem iniciar uma política

ofensiva económica contra o lucro porque, na verdade, não passam de uma defesa

organizada pela força do trabalho contra os ataques do lucro, expressão da

resistência da classe operária contra a tendência opressiva da economia capitalista.40

As razões que levaram Rosa Luxemburgo a pensar assim são de duas ordens: primeiro,

porque os sindicatos têm apenas a tarefa de se organizar no mercado da força de trabalho, no

entanto, sua organização é ultrapassada pelo processo de proletarização das classes médias,

que são a nova força de trabalho para o mercado de trabalho; segundo, porque, mesmo que os

sindicatos se proponham a melhorar as condições de vida do trabalhador ou aumentar a parte

da riqueza social para ele próprio, isso a posteriori cessa, devido à redução da parte desta

riqueza social, quer dizer, o crescimento da produtividade enquanto um fenômeno natural do

capitalismo faz com que o número de trabalhadores se reduza no mercado de trabalho e assim

aumente o número de miseráveis na sociedade, logo a riqueza social vai para quem tem

dinheiro de obtê-la, o que não é o caso com o aumento do exército industrial de reserva.

Para finalizar esta reflexão, Rosa Luxemburgo compreende que mesmo que se reduza

a proletarização da classe média e que a produtividade deixe de aumentar para reduzir

progressivamente a taxa de lucro em função do aumento da taxa de salário, como queria

Bernstein, esse modo de repartição capitalista ainda não seria suficiente para realizar a

emancipação humana total, já que equivaleria renunciar à luta contra o capitalismo, logo

40 LUXEMBURGO, Reforma social ou revolução?, p. 90. (Grifo do autor).

119

orientar a luta apenas por uma repartição “justa” da produção injusta do capitalismo. O que

seria um desatino “teórico-prático-revolucionário”. A lei capitalista não tende a realizar essa

proposição, pois seu caminho é o inverso, ou seja, a injusta distribuição da riqueza social.

Nesse sentido, conclamamos Lênin para nos orientar nessa reflexão, já que ele, em o

Que Fazer?, abrange três questões fundamentais para o processo revolucionário: o caráter e o

conteúdo da agitação política, as tarefas de organização e o plano para construção de uma

organização de combate para diversos fins. Mas é principalmente com base na obra Sobre os

sindicatos que vamos detalhar a sua reflexão sobre o papel dos sindicatos e das greves no

movimento operário de emancipação do capital.

Primeiramente, em o Que Fazer?, logo no início do texto, Lênin nos chama atenção

para o fato de que o bernsteinismo e os marxistas legais removiam e pervertiam a consciência

socialista, aviltando o marxismo, ao pregar a teoria da atenuação dos antagonismos sociais, ou

seja, “reconduzindo o movimento operário e a luta de classes a um sindicalismo estreito e à

luta ‘realista’ por reformas pequenas e graduais.”41

Para Lênin, isso significaria a negação do

direito ao socialismo e, na prática, a de sua realização, transformando o movimento operário

num apêndice do movimento liberal. A luta econômica ou sindical e a luta política seriam as

bases fundamentais desse processo pré-revolucionário. Entretanto, isso não poderia deixar de

estar acompanhado de uma teoria que oriente programaticamente a prática. Não é por menos

que Lênin afirma que “sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”42

Esta

preocupação leninista deve-se ao fato de Marx43

nos ter alertado de que não podemos fazer

acordos para efetivar objetivos práticos do movimento, na medida em que tais acordos

desemboquem na comercialização de princípios e de concessões teóricas; ao contrário, os

acordos devem ser feitos, mas desde que não ponham em xeque a importância teórica. Claro

que “Cada passo avante, cada progresso real valem mais que uma dúzia de programas”44

. No

entanto, a grande difusão do marxismo não pode ser acompanhada por um abaixamento

teórico dos operários, nos adverte assim Lênin.

O caráter especial que Lênin dá ao papel da teoria no movimento revolucionário é

resultado de uma constatação que ele faz, ao citar os operários alemães como herdeiros da

filosofia alemã. “Sem o sentido teórico dos operários, estes não teriam jamais assimilado esse

socialismo científico, como o fizeram.”45

Por causa da indiferença dos ingleses a toda teoria –

41 LÊNIN, V. I. Que Fazer? São Paulo: Editora Hucitec, 1986. p. 13. 42 Ibid., p. 18. 43

Segundo Lênin, Marx escrevia aos dirigentes do partido. Cf. Ibid., p. 18. 44 Ibid., p. 18. 45 Ibid., p. 20.

120

afirma Lênin –, foi a insuficiência desta a causa do pouco progresso do movimento operário

inglês, apesar de sua excelente organização nos diferentes ofícios. Os operários alemães, ao

contrário, souberam aproveitar as vantagens de sua situação, conduzindo a sua luta em três

direções: a teórica, a política e a econômico-prática (resistência aos capitalistas), ou, melhor

dizendo, com método e coesão nos quais reside a força do movimento alemão.

Por outro lado, o elemento espontâneo é, antes da teoria, a forma embrionária do

consciente, pois os tumultos primitivos e/ou a destruição das máquinas, por exemplo, foram

sintomas que já traduziam um despertar da consciência operária, embora fosse mais uma

manifestação de desespero e de vingança do que de luta. As greves sistemáticas na Rússia já

eram o embrião da luta de classe; e, tomadas em si mesmas, já constituíam uma luta sindical,

embora não social-democrata (“revolucionária”), marcando assim o despertar do antagonismo

entre operários e patrões. Dessa maneira, os operários perdiam sua crença costumeira na

perenidade do regime que os oprimia. A consciência da oposição irredutível e de seus

interesses de classe com a ordem política e social existente estava a se fazer como consciência

social-democrata. O que Lênin quer salientar nessa reflexão é que na Rússia a doutrina teórica

da social-democracia emergiu de forma independente do crescimento espontâneo do

movimento operário, pois foi consequência do desenvolvimento intelectual dos

revolucionários socialistas.

Nesta visão, Lênin demonstra que, na verdade, o movimento operário espontâneo ab

initio é uma subordinação à ideologia burguesa, ou seja, é um sindicalismo burguês do

mínimo esforço que se refugia sob as asas da burguesia. É preciso então sair da infância do

movimento para atingir a sua virilidade, quer dizer, imbuir-se de intolerância face àqueles

que, por meio de seu espontaneísmo, retardam o desenvolvimento da luta anticapitalista.

Lênin atenta para o modo dócil da luta política face à luta econômica, a saber, não podemos

deixar a luta econômica dos operários ficar submissa à luta política burguesa. Como ele

mesmo afirma, “se por política se entende política sindical, isto é, a aspiração geral dos

operários a obter do Estado as medidas suscetíveis de remediar os males inerentes à sua

situação”46

, então fica difícil suprimir tal situação que é a submissão do trabalho ao capital. É

fundamental para Lênin, portanto, empreender ativamente a educação política da classe

operária, ou seja, trabalhar para que ela desenvolva a sua consciência política, pois ela não

pode se limitar à luta econômica ou puramente profissional, isto é, à luta pelas reformas

econômicas.

46 LÊNIN, V. I. Que Fazer? p. 34.

121

Nesse contexto reflexivo, Lênin atribui importância de se conferir à própria luta

econômica um caráter político. Ou como ele mesmo diz, “Conferir ‘à própria luta econômica

um caráter político’ significa, portanto, procurar conseguir as mesmas reivindicações

profissionais, melhorar as condições de trabalho em cada profissão através de ‘medidas

legislativas e administrativas’.”47

Então podemos inferir que a luta econômica é a luta coletiva

dos trabalhadores contra os patrões, ou seja, para vender de forma vantajosa sua força de

trabalho por um melhor preço possível e, assim, melhorar suas condições de trabalho e de

existência. Essa luta é necessariamente uma luta profissional, justamente porque as condições

de trabalho são muito variadas.

Todavia, cabe ressaltar o papel dos teóricos e propagandistas, ou do agitador político,

que tem em Lênin uma relevância fundamental, a saber: explicar a natureza capitalista das

crises, mostrar as necessidades da transformação da sociedade capitalista em uma sociedade

socialista e, numa última palavra, fornecer muitas ideias que possam ser assimiladas em

conjunto por um número restrito de pessoas. Na realidade, a grande preocupação leninista é

que, para elevar a atividade da massa operária, não podemos nos restringir à agitação política

no terreno econômico, pois uma das condições essenciais para ampliar a necessária agitação

política é organizar as revelações políticas em todos os aspectos. Somente tais revelações é

que podem formar a consciência política e suscitar a atividade revolucionária das massas. Daí

Lênin pleitear o papel dos intelectuais como interventores na luta política de caráter

espontâneo enquanto oriunda da luta econômica.

Para Lênin, portanto, “[...] é necessário que os intelectuais nos repitam um pouco

menos do que já sabemos*, e que nos dêem um pouco mais do que ainda ignoramos, daquilo

que nossa experiência ‘econômica’, na fábrica, jamais nos ensinará: os conhecimentos

políticos.”48

Desta feita, a consciência política de classe, diz Lênin, só pode ser trazida ao

operário a partir do exterior, ou seja, do exterior da luta econômica, do exterior das esferas das

relações entre operários e patrões. Esses conhecimentos políticos só podem ser extraídos do

domínio das relações de todas as classes e categorias da população como o Estado e o

governo, isto é, das relações de todas as classes entre si. Para levar aos operários os

conhecimentos políticos, os intelectuais e/ou a vanguarda operária devem ir a todas as classes

da população como se fossem um exército da conscientização.

O culto à espontaneidade e o fato de ignorar o trabalho de organização constituem

então, para Lênin, uma verdadeira doença do movimento. A revolta espontânea não traz

47 LÊNIN, Que Fazer?, p. 49. 48 Ibid., p. 58-59.

122

consequências práticas positivas para os trabalhadores. É aí que Lênin suscita uma luta mais

intransigente para defender e legitimar demandas e ações práticas mais consistentes. Daí ele

criticar a forma de trabalho artesanal que é resultado da falta de preparação prática e da

habilidade no trabalho de organização. Os métodos artesanais são, na verdade, ações que se

dão a partir de uma visão estreita de conjunto do trabalho revolucionário, e impedem a

constituição de uma boa organização de revolucionários que se livrem do “economismo” em

geral. Mutatis mutandis, criar uma organização de revolucionários é imperativo para assegurar

à luta política energia, firmeza e continuidade. Sem organizações políticas locais, fortes e bem

treinadas, sem educar pessoas para formar tais organizações políticas fortes, fadamos ao

fracasso. Por isso, o jornal político é o meio indispensável para se efetivar o trabalho político

de formar dirigentes cotidiana e metodicamente em todos os aspectos da vida política, em

todas as tentativas de protesto e da luta de diferentes classes por diferentes motivos. Por

conseguinte, a faculdade de sonhar do homem adianta o presente e contempla em imaginação

o quadro lógico acabado da obra que se esboça em suas mãos. Como bem diz Lênin, o homem

acredita seriamente em seu sonho, se observa atentamente a vida e compara suas observações

com “os castelos de areia no ar”, ou seja, ele trabalha conscientemente para a realização do

seu sonho.

Em Sobre os sindicatos, Lênin aprofunda um pouco mais essas questões, ou seja, o que

é a consciência de classe, o que ensina a luta ao operariado, o significado das greves, as tarefas

e o papel dos sindicatos, a fusão da luta econômica com a luta política, a relação entre partido

e sindicatos etc. Dessa maneira, Lênin começa a esboçar teoricamente qual seria o papel da

organização sindical no processo de construção da emancipação humana no socialismo. Todas

as organizações dos trabalhadores têm certamente um dever a desempenhar nesse processo

histórico-social de superar o capitalismo. Isso nos faz deduzir que os sindicatos – enquanto

locus onde se dá a primeira educação da classe trabalhadora – são instrumentos pedagógicos

fundamentais nesse processo de luta social contra o antagonismo de classes.

O que podemos então compreender por consciência de classe a partir da reflexão de

Lênin? “Consciência de classe dos operários é a compreensão de que o único meio de

melhorar a sua situação e de conseguir a sua emancipação consiste na luta contra a classe dos

capitalistas e industriais, que foram criados pelas grandes fábricas.”49

Em outras palavras,

devemos entender por consciência de classe a consciência que compreende que há um

interesse comum, idêntico, solidário, de todos os trabalhadores de um país que formam uma

49 LENIN. Sobre os sindicatos. São Paulo: Editorial Livramento, 1979. p. 25.

123

mesma classe; o que os diferencia das demais classes da sociedade. E, por fim, tal consciência

de classe significa, portanto, que os trabalhadores precisam influenciar os assuntos públicos

para atingir seus objetivos. Essa compreensão, segundo Lênin, só se dá quando os operários

começam a empreender uma luta contra os patrões, tornando esta luta mais aguda e com o

maior número de seguidores.

O que ensina então a luta dos operários para o processo dessa conscientização? Pelo

menos três coisas importantes: 1) a luta faz com que os trabalhadores aprendam a distinguir e

pôr a nu todos os atores sociais e cada um dos processos da exploração capitalista, a estudá-

los do ponto de vista da lei, de suas condições de vida e dos interesses da classe capitalista; 2)

por meio da luta os trabalhadores experimentam e medem suas forças, aprendem a se unir e

compreender a necessidade e a importância da união, desenvolvendo o sentimento de unidade

e de solidariedade; e 3) a luta faz desenvolver a consciência política dos trabalhadores, pois

cada conflito no trabalho leva os trabalhadores a se defrontarem com as leis e com os

representantes do poder de Estado, justamente quando eles ouvem pela primeira vez discursos

políticos. Tudo isso, claro, requer organização dos trabalhadores, pois a organização é

necessária à luta ou à greve para que possa ter êxito. E, com certeza, o mais importante é

assinalar para os trabalhadores o verdadeiro objetivo da luta, ou, melhor expressando, explicar

para eles em que se assenta e se baseia a exploração do trabalho pelo capital, logo tornar claro

por que a miséria das massas trabalhadoras se assenta na propriedade privada da terra e nos

instrumentos de trabalho burgueses. Nessa perspectiva, a luta da classe trabalhadora significa

que a luta de classes é uma luta política e que a classe trabalhadora não pode lutar por sua

emancipação se não conquistar influência nos assuntos públicos, na direção do Estado, na

promulgação das leis. Isso leva os trabalhadores inevitavelmente a enfrentar o governo e os

patrões.

Lênin enfatiza, por conseguinte, a importância da luta econômica do proletariado e da

sua necessidade para o processo de aceleração da luta política. Tais lutas já eram reconhecidas

pelo marxismo desde o começo, já na década de 1840, sobretudo, na polêmica de Marx e

Engels com os socialistas utópicos que negavam a importância da luta. Já na Associação

Internacional dos Trabalhadores a importância da luta econômica foi apresentada no Primeiro

Congresso de Genebra em 1866, a saber, a resolução do Congresso assinalava claramente a

importância da luta econômica, porém, fazendo advertências quanto ao exagero e a

subestimação dessa relevância. O que a resolução reconhecia era que os sindicatos operários

eram um fenômeno legítimo e indispensável na existência do capitalismo, como também

como organismos importantes para a organização dos trabalhadores na sua luta diária contra o

124

capital e para a abolição do trabalho assalariado. Apenas advertia que os sindicatos não

deveriam se limitar a sua atenção exclusiva à luta direta contra o capital, nem se distanciar do

movimento político e social em geral da classe trabalhadora.

Contudo, falar de luta econômica ou política no movimento sindical é falar da luta

grevista dos trabalhadores. O que significam as greves nesta luta de classes? No texto Sobre

as Greves, Lênin aponta que o preço do trabalho ou o salário se determina por um contrato

entre o patrão e o operário, salientando que geralmente é o primeiro que impõe o valor da

força de trabalho, ficando o trabalhador impotente nessa barganha. A greve é o meio de

pressão para forçar essa barganha, isto é, impede que os patrões baixem o salário e os força a

aumentar o soldo dos trabalhadores. Neste sentido, para Lênin, “as greves, por emanarem da

própria natureza da sociedade capitalista, significam o começo da luta de classe operária

contra esta estrutura da sociedade.”50

Se os operários despojados agem individualmente contra os capitalistas, ficam

impotentes face à superioridade dos capitalistas. Mas se os operários se unem contra os

patrões, a situação se modifica, porque sua força se demonstra eficaz. Em ambas as situações,

Lênin denomina o operário, ou como escravo ou como homem ou pessoa. E por isso, para ele,

“cada greve lembra aos capitalistas que os verdadeiros donos não são eles, e sim os operários,

que proclamam seus direitos com força crescente. Cada greve lembra aos operários que sua

situação não é desesperada e que não estão sós.”51

Por outro lado, a greve pode acarretar aos

trabalhadores grandes privações como fome na família, perda salarial, detenções etc., mas, de

outra forma, a greve infunde a ideia de socialismo, a ideia da luta de toda classe operária por

sua emancipação do jugo do capital.

Afirma Lênin então que os socialistas chamam as greves de “escola de guerra”, quer

dizer, escola onde os operários aprendem a guerrear contra os seus inimigos de classe, pela

emancipação de todo o povo e de todos os trabalhadores do jugo dos funcionários e do capital.

Com suas palavras, “As greves são um dos meios de luta da classe operária por sua

emancipação, mas não o único, e se os operários não prestam atenção a outros meios de luta,

atrasam o desenvolvimento e os êxitos da classe operária.”52

Para obter tal êxito, são

necessárias as caixas de resistência para sustentar os operários durante o conflito; como

também as greves só saem vitoriosas quando os operários possuem bastante consciência,

sabendo o momento exato de desencadeá-las, de mostrar suas reivindicações e manter contato

50

LENIN, Sobre os sindicatos, p. 42. 51 Ibid., p. 43. 52 Ibid., p. 46.

125

com dirigentes socialistas para receber folhetos e volantes para incitar os grevistas que

acabam convertendo-se em socialistas.

Em relação à luta econômica e à luta política, Lênin explicita que se as denúncias

econômicas são e continuam sendo um recurso importante da luta econômica, produzindo um

efeito no comportamento do operário de autodefesa contra o grau de exploração desenvolvido

pelos capitalistas, também a educação política é fundamental, não só para propagar a ideia de

que a classe operária sofre a exploração capitalista e precisa combater essa espoliação, mas,

sobretudo, para explicar como se dá essa opressão política sob determinadas leis do

desenvolvimento capitalista. Por isso, a tarefa da luta política da classe trabalhadora é

certamente a forma mais desenvolvida, mais ampla e efetiva da luta econômica. Como

comenta Lênin, “a luta econômica é o meio mais amplamente aplicável para incorporar as

massas à luta política ativa.”53

No entanto, ele alerta que é preciso ir para além dessa frase

pomposa, pois é preciso antes de revolucionar os dogmas, revolucionar a vida, senão caímos

na luta pelas reformas puramente econômicas. Sair dessa esfera da luta dentro da ordem

meramente econômica é imperativo para Lênin, ao criticar a política da social-democracia

russa. Fugir dessa órbita reformista é impulsionar a luta para a revolução socialista, para a

liberdade revolucionária. Para Lênin, portanto, “As organizações sindicais não só podem ser

extraordinariamente úteis para desenvolver e fortalecer a luta econômica, como podem

converter-se, também, num auxiliar da maior importância para a agitação política e a

organização revolucionária.”54

Entretanto, Lênin ressalta que não podemos confundir a

organização sindical operária com a organização de revolucionários, embora a primeira possa

se transformar na segunda, pois “a organização dos revolucionários deve englobar antes e

acima de tudo pessoas cuja profissão seja a atividade revolucionária”55

É tão extensa a discussão que Lênin faz sobre a luta operária, seja econômica

(profissional) ou política, que se faz mister concluir esta reflexão. Para Lênin, os intelectuais

burgueses têm clara noção de que é impossível abolir o movimento operário, e, portanto,

buscam intervir nele o mínimo possível, fazendo concessões como a liberdade de greve e de

associação, mas desde que os operários renunciem o espírito de revolta, o “revolucionarismo

estreito” e a luta de classes. É preciso fazer desaparecer nos sindicatos o espírito socialista, ou

seja, tornar o sindicalismo uma luta mais estreita, mais miúda que não vá para além do

espírito da legalidade burguesa. Nesse sentido, Lênin recorda que

53 LENIN, Sobre os sindicatos, p. 80. 54 Ibid., p. 119. 55 Ibid., p. 115.

126

[...] as tarefas dos sindicatos consistem em que eles sejam os artífices de milhões de

seres que aprendam por sua própria experiência a não cometer erros e a repelir os

velhos preconceitos, que aprendam por sua própria experiência a dirigir o Estado e a

produção, é apenas nisto que reside a garantia infalível de que a causa do socialismo

vencerá plenamente excluindo toda a possibilidade de retrocesso.56

Daí Lênin declarar que os sindicatos representaram um progresso gigantesco da classe

operária nos primórdios do desenvolvimento do capitalismo. No entanto, é preciso forjar uma

luta conjunta com o partido operário para a conquista do poder político, cabendo ao partido a

tarefa de educar os sindicatos, se possível dirigi-los, transformando-os em “escola de

comunismo”, uma escola preparatória dos proletários para a realização de sua ditadura

democrática do Estado proletário, compreendida como condição sine qua non de transição

para o socialismo. Sendo assim, Lênin compreende que o papel dos sindicatos é abarcar nas

fileiras da organização a totalidade dos operários industriais, pois eles são uma organização

educadora que atrai e instrui, isto é, é uma escola, uma escola de governo, de administração e

de comunismo. Nos sindicatos, diz Lênin, não há mestres e alunos, mas destacamentos

revolucionários avançados.57

Tomemos, por fim, Trotsky para coroar esta discussão sobre a concepção marxista de

sindicatos. Em Escritos sobre sindicato, Trotsky aborda duas temáticas que dão o tom da sua

reflexão: “comunismo e sindicalismo” e “problemas de estratégia e de tática sindical”. Não

será possível, nos termos que nos propomos aqui, analisar essas questões nas suas

especificidades. O objetivo é extrair dessas reflexões a sua concepção sobre o papel dos

sindicatos no processo da luta emancipatória da classe proletária em rumo ao socialismo.

Numa polêmica com Louzon sobre a expressão – “os sindicatos representam toda a

classe operária” –, Trotsky faz a seguinte crítica: “Não existe nenhum país no qual a

organização sindical abarque toda a classe operária, embora em alguns [países] compreenda

pelo menos um vasto setor.”58

Para Trotsky, essa questão não pode ser reduzida à polaridade

se é o partido ou o sindicato que deve se incorporar ao proletariado, mas sim de ganhar a

confiança do proletariado. Para isso, é fundamental ter táticas corretas, provadas pela

experiência. Afirma Trotsky então que “as tarefas históricas do proletariado estão

determinadas pela sua localização social como classe e pelo seu papel na produção, na

sociedade e no estado.”59

Nesse sentido, Trotsky infere que se o proletariado soubesse da sua

tarefa histórica, não necessitaria nem de sindicatos, nem do partido (comunista), ou seja, a

56 LENIN, Sobre os sindicatos, p. 278. 57 Cf. LENIN, op. cit., p. 289. Sobre a relação dos sindicatos com o Estado operário, ou de sindicatos com o

Partido revolucionário, ver op. cit., p. 271-276, 280-282, 293 e 317. 58 TROTSKI, Leon. Escritos sobre sindicato. São Paulo: Kairós Livraria e Editora, 1978. p. 19. 59 TROTSKI, Escritos sobre sindicato, p. 20.

127

revolução teria nascido com o proletariado. Pelo contrário, o processo histórico é

compreendido pelo proletariado a partir de uma longa e penosa luta (seja sindical ou

partidária) na qual ele apreende as contradições sociais, principalmente com a ajuda (da

vanguarda) da classe operária mais consciente e politizada.

Quando a discussão se direciona para a questão da relação entre partido (comunista) e

sindicatos, Trotsky retoma alguns exemplos da Primeira Internacional. Ele assinala que

quando Marx escreveu que o partido operário sairia dos sindicatos, ele estaria se referindo à

situação específica da Inglaterra que já possuía várias organizações sindicais; ao contrário da

Rússia onde o Partido Comunista criou vários sindicatos e os preparou para a luta massiva de

classe. Essa discussão reflete que sua importância consiste em divulgar, seja através do

partido operário, seja através dos sindicatos, as ideias socialistas. Trotsky, no entanto, alerta

para o fato de não se cair no discurso anarco-sindicalista que despreza a política e o partido

como elementos para se abolir o estádio social capitalista. Portanto, para ele, o proletariado só

compreende essa sua missão histórica através de lutas prolongadas, de duras provas, de muitas

vacilações e de uma ampla experiência. Isto se aplica tanto ao partido (comunista) como aos

sindicatos.

Dessa forma, Trotsky enfoca que o problema dos sindicatos é um dos mais

importantes para o movimento operário, como também para os oponentes capitalistas. A luta

entre comunistas e capitalistas para influenciar a classe operária é árdua e constante. Os

primeiros, buscando denunciar a ilusão do capitalismo como sistema que pode humanizar a

todos; o segundo, reforçando valores individualistas que fomentam a emancipação egoísta.

Nesse sentido, Trotsky elaborou vinte e seis considerações sobre a questão sindical, porém

citemos apenas algumas que vão de encontro com os nossos objetivos: 1) O Partido

Comunista é instrumento indispensável para a ação revolucionária e para a organização de

combate de vanguarda que deve erigir-se em direção da classe operária em todos os campos

de sua luta, inclusive, no campo sindical; 2) quem contrapõe autonomia sindical à direção do

Partido Comunista se contrapõe ao setor proletário atrasado com a vanguarda, à luta por

conquistas imediatas com a luta pela emancipação proletária, ao reformismo com o

comunismo, ao oportunismo com o marxismo revolucionário; 3) não podemos fazer da

autonomia das organizações um fetiche, pois é preciso compreender e elogiar o papel do

dirigente da minoria revolucionária em relação às organizações de massa (que refletem

geralmente contradições, atraso e debilidades); 4) não há sindicatos autossuficientes para

cumprir sua missão, quer dizer, não há em lugar nenhum, sindicatos politicamente

“independentes”, pois os aparelhos sindicais estão direta ou indiretamente ligados aos

128

partidos; e, por fim, 5) não podemos cair no fetiche da unidade das organizações sindicais,

pois a ruptura sempre pode acontecer, e também a unificação se dá não em torno de aparelhos

sindicais, mas sim a partir da maioria da classe operária ao redor de bandeiras e métodos de

luta revolucionários.

Para Trotsky, portanto, o verdadeiro caminho para a unidade revolucionária passa

tanto pelo desenvolvimento, aperfeiçoamento, crescimento e consolidação revolucionária de

uma organização revolucionária, como pelo enfraquecimento de uma organização reformista.

É preciso então desarmar posições gremialistas dentro do movimento sindical. Conforme

Trotsky,

Há épocas em que a tendência revolucionária se vê reduzida a uma pequena minoria dentro do movimento operário. Mas o que essas épocas exigem não é fazer acordos

entre pequenos grupos, tapando-os mutuamente os pecados, mas, ao contrário, uma

luta duplamente impecável por uma perspectiva correta e uma educação dos quadros

no espírito do autêntico marxismo. Somente assim é possível a vitória.60

Trotsky, desse modo, deixa bastante claro que a maioria do proletariado não entende o

perigo do Estado burguês, logo fica atrelado à visão de que no capitalismo há possibilidade de

melhorias de vida. Neste caso, determinados sindicalistas contribuem para a conciliação

passiva dos operários com o Estado capitalista. Por isso, Trotsky enfatiza a importância da

educação de dirigentes dentro da doutrina marxista, evitando, assim, qualquer perigo de

burocratização da luta. Por outro lado, ele enfatiza que é fundamental os revolucionários

participarem de sindicatos reformistas para poder desmascarar os traidores perante as massas,

enfim, para desacreditá-los mediante a experiência dessas massas, isolando-os e/ou liquidando

a confiança de tais dirigentes.

As organizações operárias – sindicatos, cooperativas e sovietes – têm cada uma delas

tarefas próprias e métodos de trabalhos específicos, e são independentes dentro de certos

limites, afirma Trotsky. Diz ele, entretanto, que, para o Partido Comunista, “[...] essas

organizações são, sobretudo, um campo propício para a educação revolucionária de amplos

setores operários e para o recrutamento dos operários mais avançados.”61

O que intriga certos

revolucionários comunistas com relação aos sindicatos é a sua tarefa de somente melhorar a

situação material e cultural do proletariado, tal como era no início do capitalismo. Essa

discussão resvala para uma outra questão, a saber: se a burocracia sindical empaca que tais

organizações se transformem em organizações revolucionárias, não seria o caso, então, de

substituí-las por novas? Para Trotsky, este foi o grande erro do Comintern (Terceira

60 TROTSKI, Escritos sobre sindicato, p. 38-39. 61 Ibid., p. 68.

129

Internacional), isto é, de querer libertar as massas da influência da burocracia sindical para ter

experiências organizativas; não basta apenas lhes oferecer outro lugar onde as massas possam

se dirigir, mas deve-se buscá-las e dirigi-las.

Fica evidente para Trotsky que se alguns sindicatos cumprem um papel reacionário e

progressista, por outro lado, eles são fundamentais para os operários na luta pelas

reivindicações parciais e transitórias. Não é à toa que Trotsky demonstra a ação

revolucionária dos bolcheviques nos sindicatos, isto é, quando os bolcheviques lutam pelos

interesses materiais e direitos democráticos da classe operária; quando eles tornam-se ativos

dentro dos sindicatos para fortalecê-los e, assim, enriquecer o espírito de luta da classe

operária; e quando os bolcheviques lutam contra a tentativa de submeter os sindicatos ao

Estado burguês ou a intervenções policiais. Para Trotsky, “Os sindicatos não são um fim em

si mesmos, são apenas meios que devem ser empregados na marcha em direção à revolução

proletária.”62

Desta feita, não é tão fundamental renovar o aparelho sindical, com novos

líderes que se dispõem a lutar para ficar no lugar dos funcionários rotineiros e carreiristas; se

necessário for, é justo que se criem outras organizações de combate autônomas que

respondam melhor aos objetivos do proletariado contra a sociedade burguesa, pois não podem

as massas operárias ficar sob o controle de camarilhas burocráticas, reacionárias e

conservadoras com disfarces progressistas.

Para finalizar a discussão trotskista, podemos concluir que a organização sindical

educa até certo limite e que, neste sentido, é preciso que os grupos mais avançados, seja

intelectuais ou militantes marxistas, sejam guias teóricos para o processo de sistematização

programática da luta emancipatória do proletariado. Sozinho, o proletariado não tem

condições de compreender a dinâmica da sua exploração ou da espoliação capitalista e,

portanto, necessita sistematizar sua luta contra essa escravidão salarial no capitalismo. Como

diz Trotsky, até as manobras educam a classe operária. Um programa correto estimula e

consolida as massas e forma direções que coloquem corretamente o problema do desemprego

e dos salários. Esclarecer para o proletariado essa contradição imanente no capitalismo entre

lucro versus salário é algo urgente para mudar a rota da luta proletária sindical, ou seja,

superar a luta economicista sindical. Os sindicatos, nesse sentido, têm duas possibilidades:

“Uma é manobrar, retroceder, fechar os olhos e capitular pouco a pouco para que os patrões

não se ‘zanguem’ e para não ‘provocar’ a reação. [...] A outra é compreender o caráter

inexorável da atual crise social e encabeçar a ofensiva das massas.”63

Dessa maneira, Trotsky

62 TROTSKI, Escritos sobre sindicato, p. 91. 63 Ibid., p. 98.

130

ainda nos alerta que “A única forma de salvar as organizações operárias e, inclusive, de

reduzir ao mínimo as perdas é criar a tempo poderosas organizações operárias de autodefesa.

Esta é a principal responsabilidade dos sindicatos se não quiserem perecer infamemente.”64

A

tarefa da burguesia é liquidar com os sindicatos. Mas a nossa tarefa é dar uma virada à

esquerda nos sindicatos para “agudizar” as contradições e acelerar a luta de classes.

2.2 A Crise entre Marxismo e Movimento Sindical

Discutir sobre a crise entre marxismo e movimento sindical nos remete a refletir se o

marxismo, enquanto teoria ou doutrina revolucionária, ou crítica dialética do sistema

capitalista, está invalidada, ou seja, se o corpo teórico do pensamento de Marx está superado

historicamente por causa do fim do “socialismo real” no Leste Europeu e da supremacia do

desenvolvimento científico-tecnológico nas sociedades capitalistas face às socialistas. Ora, se,

por um lado, houve a derrocada do projeto socialista soviético, como foi originalmente

concebido, para se contrapor ao sistema capitalista, por outro lado, a profunda crise estrutural

do sistema do capital está muito longe de ser, em si e por si, solucionada pelos agentes do

mercado e por seus governos de Estado, para suprir as necessidades básicas da sociedade e

combater suas desigualdades. Como afirma Mészáros,

A “crise do marxismo”, sobre a qual nas últimas décadas muito se escreveu, na

verdade, denotava a crise e a quase completa desintegração dos movimentos

políticos que outrora professavam sua lealdade à concepção marxiana de

socialismo. O clamoroso fracasso histórico dos dois movimentos principais – a

socialdemocracia e a tradição bolchevique metamorfoseada em stalinismo –

permitiu uma avalanche de todos os gêneros de propaganda triunfalista para celebrar

a morte da idéia socialista como tal. Os efeitos negativos desta propaganda não

podem ser enfrentados simplesmente com a identificação dos interesses materiais

que escoram as celebrações anti-socialistas, pois o que aconteceu não aconteceu sem

causas históricas de peso.65

A presente discussão visa, pois, tentar fazer um esclarecimento do porque houve um

distanciamento do movimento sindical de esquerda, e até dos partidos políticos de esquerda –

senão um recuo teórico –, das ideias de Marx sobre o sistema capitalista e sua superação para

o socialismo como sistema de transição ao comunismo, ao “Reino da Liberdade”. Para

Mészáros, se não houver

[...] um exame rigoroso das décadas intermediárias do desenvolvimento – orientado

para o referencial teórico estratégico de alternativa socialista tanto quanto para suas

64 TROTSKI, Escritos sobre sindicato p. 98-99. 65 MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 43. (Grifo nosso).

131

exigências organizacionais radicalmente alteradas – o projeto socialista não pode

renovar-se.66

Segundo Mészáros, portanto, não podemos atribuir a uma experiência histórica de

socialismo em um canto do mundo, ou, melhor dizendo, imputar à prática de um modelo de

marxismo o fim da teoria de Marx, a saber, um corpo de ideias marxistas que trata das

contradições e dos antagonismos do sistema capitalista de valorização do valor. Pois, nas

palavras de Mészáros, “Os acontecimentos pós-revolucionários, consolidados sob Stalin,

seguiram a linha da menor resistência em relação às estruturas socioeconômicas herdadas,

permanecendo assim presas dentro dos limites do sistema do capital.”67

Lênin, em O Estado e a revolução, discorrendo sobre o “aviltamento do marxismo

pelos oportunistas”, já dizia que a questão das relações do Estado e da revolução social foi de

pouca preocupação para os teóricos da II Internacional (1889-1914), ou seja, da revolução em

geral. Ao evitar tal questão, alguns desses teóricos – Kautsky e Bernstein – alimentaram o

oportunismo e descaracterizaram o marxismo a ponto de edulcorá-lo completamente. Em

outras palavras, enquanto Marx afirmava que era preciso quebrar o Estado burguês, demoli-lo

e transformá-lo numa organização proletária, Kautsky e Bernstein diziam que bastava aos

proletários chegarem ao poder estatal e controlarem o parlamento, para realizar gradualmente

o socialismo. Na verdade, tanto Kautsky quanto Bernstein, segundo Lênin, não

compreenderam as lições da Comuna nem a doutrina de Marx, quando o primeiro propõe

manter a máquina do Estado burguês, sem destruir sua estrutura de dominação burocrática, e

o segundo se esquiva da ideia de “democracia primitiva”68

, quando a chama de

“democratismo doutrinário”.

Na concepção de Lênin, o que marca o recuo de Kautsky em relação às lições de Marx

é justamente a sua defesa das mais variadas formas de empresas (burocráticas, sindicalistas,

cooperativas, individualistas etc.) e da organização burocrática sob o controle do operário.

Deveras, para Lênin, em nada se distingue uma organização burocrática sobre as estradas de

ferro, por exemplo, de uma empresa da grande indústria mecânica ou de uma fábrica

capitalista, pois em todas elas prescrevem a disciplina rigorosa e a pontualidade no

cumprimento de parte do trabalho. Os delegados, que participarem de uma espécie de

Parlamento fiscalizador da administração burocrática, tornar-se-ão não mais que puros

66 MÉSZÁROS, op.cit., p. 43-44. 67 Ibid., p.50. 68 A “democracia primitiva” é fundamental para o regime socialista, pois diz respeito à participação

independente da massa, não só nos votos e eleições, mas também na administração cotidiana num regime

socialista. Em outras palavras, no regime socialista, toda gente governará e se habituará a que ninguém governe.

Cf. LÊNIN. O Estado e a revolução. São Paulo: HUCITEC, 1987. p. 147.

132

burocratas burgueses. Há em Kautsky, segundo Lênin, tanto uma veneração supersticiosa pelo

Estado como uma crença supersticiosa pela burocracia. Kautsky abandona então – diz Lênin –

o marxismo pelo oportunismo, e Bernstein identifica o marxismo com o proudhonismo.

Começa a partir daí a crise do marxismo na II Internacional, a crise de interpretação errônea

do pensamento de Marx, distorcido tanto por Kautsky quanto por Bernstein; em outras

palavras, há uma leitura equivocada do pensamento marxiano com relação à questão do

Estado e da revolução. Eis então um primeiro momento da crise do marxismo.

No Prefácio de o Conceito marxista de homem, Erich Fromm trata o pensamento de

Marx como uma filosofia, mas uma filosofia que “representa o protesto contra a alienação

do homem, contra sua perda de si mesmo e contra sua transformação em objeto; é um

movimento oposto à sua desumanização e automatização do homem, inerente à evolução do

industrialismo ocidental.”69

Por conseguinte, Fromm admite que, para determinados leitores

infectados com a atitude contemporânea de resignação, a filosofia de Marx parecerá obsoleta,

fora de moda, utópica. No entanto, ele pondera dizendo que não podemos compreender o

verdadeiro sentido do pensamento de Marx sem diferenciá-lo do pseudomarxismo russo e

chinês70

, ou seja, não podemos identificar o marxismo e socialismo com o capitalismo de

Estado soviético71

e o totalitarismo chinês. Contudo, Fromm ressalta que se abstém de

apresentar desacordos com o pensamento de Marx, pois o importante é resgatar a

potencialidade reflexiva do marxismo para criticar e transformar a realidade capitalista.

Noutro texto72

bem contundente, Hobsbawm faz um balanço sobre a influência do

pensamento de Marx na contemporaneidade do século XX, a saber, seu auge e sua crise

depois de 1956, a partir do XX Congresso do PCUS. Para ele, depois de cem anos da morte

de Marx, parece este viver nas ideias dos grandes intelectuais de renome em vários países da

Europa oriental e ocidental. “As idéias de Marx tornaram-se as doutrinas que inspiraram os

movimentos operários e socialistas na Europa.”73

Segundo Hobsbawm, as ideias de Marx se

tornaram a quintessência da doutrina internacional da revolução social no século XX, através

de Lênin, da Revolução Russa. Nenhum pensador laico como Marx alcançou tal posição de

destaque, se comparado aos pensadores religiosos. Hobsbawm deixa claro que as ideias

69 FROMM, Erich. Prefácio. In: Conceito marxista de homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983. p. 7. 70 Cf. FROMM, op. cit., p. 10. 71 Ferenc Fehér, Agnes Heller e György Márkus, da Escola de Budapeste, rejeitam a teoria do capitalismo de

Estado, à medida que tais interpretações reduzem as sociedades de tipo soviético a formas extremas de

capitalismo. Cf. ARNASON, J. P. Perspectivas do marxismo crítico no Leste europeu. In: HOBSBAWM, Eric J.

História do Marxismo XI. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 243. 72 Cf. HOBSBAWM. O marxismo hoje: um balanço aberto. In:_____. História do Marxismo XI. p.13-66. 73 HOBSBAWM. O marxismo hoje: um balanço aberto. In: op. cit., v. XI, p. 13.

133

originais de um pensador estão sempre distantes das doutrinas que as põem em prática, seja de

governos ou regimes constituídos em nome de Marx. Por outras palavras, o conjunto de ideias

sobrevive a quem o elaborou, logo pode deixar de estar confinado ao âmbito do conteúdo e

das intenções originais. Assim como também foi o cristianismo em relação às ideias de Cristo,

citadas pelos evangelistas. O que fica claro para Hobsbawm é que a prática política marxista

não mais se conforma ao modelo de revolução bolchevique, ou seja, ela não se reduz ao

leninismo. Porém, o que autentica as ideias de Marx como forças motrizes revolucionárias é a

sua capacidade de mobilizar politicamente as massas.

Entretanto, Marx sobreviveu a mais de um século do fogo concêntrico dirigido contra

suas ideias, pois o marxismo tem sido constantemente combatido por se identificar com fortes

movimentos políticos no mundo que ameaçavam o status quo, sobretudo depois de 1917, com

a Revolução Russa. O marxismo, na verdade, foi uma crítica revolucionária do status quo, e,

por isso, exerceu uma extraordinária capacidade de atrair intelectuais de alto nível que

desejavam desenvolver ou criticar suas teorias. O marxismo ficou, de certo modo, circunscrito

ao movimento político partidário soviético, de caráter monolítico e monocêntrico, que

impediu o seu desenvolvimento teórico-prático, causando mal-estar nos intelectuais marxistas

ocidentais, sobretudo, porque uma forma ortodoxa de se compreender e divulgar as ideias de

Marx obstacularizou o marxismo a se confrontar e/ou se relacionar melhor com outros

conhecimentos surgidos no século XX. A falta de interação da ortodoxia marxista soviética

com outros movimentos de reflexão sobre a realidade impediu um maior desenvolvimento do

pensamento de Marx nesses países, a partir do contato com outros conhecimentos. Logo, a

Universidade foi o refúgio desses intelectuais, o campo livre para a reflexão fora do âmbito

partidário monolítico, sobretudo, nas Universidades europeias ocidentais.

Por causa da rigidez ortodoxa do marxismo partidário russo ou chinês, muitos

dissidentes dos países socialistas passaram a identificar Marx e o marxismo exclusivamente

com tais regimes totalitários. Como consequência, houve certa rejeição a Marx por muitos

intelectuais dissidentes que abandonaram a perspectiva comunista como sistema de superação

do capitalismo. No entanto, a maioria dos marxistas foi obrigada a voltar à posição que os

socialistas tinham antes de 1917, a saber, concebia o socialismo como solução dos problemas

criados pelo capitalismo, como esperança para um futuro, mas como algo de pouca

efetividade na prática histórica, devido à péssima experiência socialista na União Soviética.

Com a quase ruptura contemporânea entre URSS e China desde 1962, cujas tropas soviéticas

e chinesas se enfrentaram no rio Usuri (1969), as divisões da esquerda foram ainda mais

dramatizadas. A China se considerava como paladino do “terceiro mundo” revolucionário do

134

bloco soviético, pois sua revolução foi realizada por mendigos, ladrões, camponeses e não por

um proletariado industrial organizado, como afirmou Mao Tse-Tung. Depois da China (1949),

a revolução “socialista” na Ásia se encerrava com as guerras do Vietnã (1962-1975), da

Coréia (1950-1953), invasão do Afeganistão pelos russos (1979-1989) e os conflitos na

Mongólia (Estados sob direção marxista).

Deste outro lado do mundo, movimentos de esquerda na América Latina74

,

insurrecionais ou não, terminavam em trágicos fracassos como na América Central: a

revolução sandinista na Nicarágua (1979-1990) e os guerrilheiros da FMLN (Frente

Farabundo Marti de Libertação Nacional) em El Salvador (1980-1984), “exceto” a Revolução

em Cuba (1959); e na América do Sul: no Chile com o governo socialista de Allende (1970-

1973), na Colômbia com as guerrilhas (FARC/FLN), no Peru com movimentos foquistas

(Sendero Luminoso), no Brasil com a Guerrilha do Araguaia (1972) e na Bolívia com o

Guevarismo (1968). No entanto, enquanto durou o período “terceiro-mundista”, o pensamento

marxista foi por ele poderosamente influenciado, pois os marxistas desta área do mundo

dirigiam sua atenção para análise de outras classes como a camponesa, as comunidades

indígenas etc. Pois, justamente uma parcela considerável da teoria marxista e não marxista foi

dedicada à questão agrária e camponesa no início dos anos 1960, ou melhor, a literatura

marxista nesse campo foi muito vasta, devido aos interesses terceiro-mundistas que

forneceram uma contribuição forte ao desenvolvimento de uma antropologia social marxista.

Todavia, foi o movimento radical do final dos anos 1960 que alcançou o marxismo

sob dois ângulos principais: primeiro, multiplicou-se o número de pessoas que produziu, leu e

adquiriu os textos de Marx ou marxistas, como aumentou o volume de debates e teorias

marxistas; segundo, o movimento foi tão imprevisto e inesperado, pelo menos em alguns

países, isto é, tão inédito, que houve a necessidade de rever amplamente muitas coisas que

eram consideradas óbvias para a maior parte dos marxistas, como a Revolução de 1848. Essa

maré radical começou com um movimento de jovens intelectuais, de estudantes, quer dizer,

um movimento dos filhos e das filhas de classe média dos países desenvolvidos e

subdesenvolvidos, como França, Alemanha e Itália, tendo, portanto, um caráter internacional,

sobretudo, com os movimentos de 1968, na Iugoslávia, Hungria, Polônia e Tchecoslováquia,

assim como no Brasil, México e Estados Unidos. Uma nova esquerda surgiu a partir de 1968

que se voltou para além dos confins do marxismo tradicional, pois há o renascimento de

74

Sobre os fracassos das lutas armadas na América Latina com suas várias organizações guerrilheiras, os Golpes

Militares e a Revolução Cubana, cf. PORTANTIERO, Juan Carlos. O marxismo latino-americano. In:

HOBSBAWM, op. cit., v. XI, p. 333-357.

135

tendências anarquistas, maoístas ocidentais, ou travestidas de marxistas, ou, também,

tendências de formas apolíticas ou antipolíticas.

A menção desses fatos históricos nos leva a compreender como o marxismo, que teve

uma efervescência forte nos anos 1960-1970 – mesmo com críticas voltadas para o modelo de

socialismo praticado no Leste Europeu em sua versão stalinista e pós-stalinista –, começou a

entrar em “crise”, a partir do fracasso do socialismo real, simbolizado pela queda do muro de

Berlim em 1989. Sabemos que, com a morte de Stalin em 1953 e com o XX Congresso do

PCUS em 1956, Nikita Krushev abalou o mundo, sobretudo, os partidos de comunistas

tradicionais, denunciando os crimes de Stalin. Foi realmente um grande escândalo político

para os partidos de esquerda no mundo ocidental. Daí, o marxismo começar a ser questionado

como “teoria se fazendo prática”, e muitos intelectuais começaram a rever suas posições

políticas e/ou teóricas. Como afirma Hobsbawm,

[...] entre 1956 e o fim dos anos 60, o descontentamento com a política dos partidos

comunistas, às vezes – como na França – concentrado em suas organizações

estudantis, tinha levado a expulsões ou cisões periódicas, que forneceram um novo

contingente aos potenciais militantes e dirigentes do que viria ser a “nova esquerda.75

Isso repercutiu negativamente em grande parte dos partidos e sindicatos europeus

ocidentais ligados ao marxismo. E aí temos dois tipos de comportamento político-ideológico a

serem ressaltados nesses dissidentes: 1) o da “nova esquerda”, nos países socialistas, que

assumia a forma de um comunismo crítico ou reformista e, assim, corria em paralelo aos

desdobramentos internos da “velha esquerda” ocidental; e 2) o daqueles que rejeitavam a

análise marxista com base na doutrina oficial, logo rechaçavam também o regime soviético

em seu todo e todas as suas realizações, não se predispondo, porém, a serem catalogados

numa esquerda de outro tipo. Portanto, se a Revolução Russa de 1917 foi, de fato, o

acontecimento histórico que enterrou as teses reformistas da II Internacional, baseadas num

socialismo evolucionista, pacífico, desencadeando, assim, a primeira crise do marxismo, pela

falta de uma interpretação fidedigna do pensamento de Marx, ou mesmo sua distorção, o

advento do stalinismo e do pós-stalinismo (com o khrushevismo) e suas consequências foi

outro fato que trouxe certo desencanto para muitos marxistas ocidentais e orientais quanto à

realização do socialismo na sua forma genuína.

Diferentemente, para neutralizar essa decepção político-ideológica com o “socialismo

realmente existente”, o capitalismo também sofria um período de recessão econômica,

configurando sua nova fase. Isso despertou em muitos intelectuais a fazerem uma análise

75 HOBSBAWM. O marxismo hoje: um balanço aberto. In: _____. Op. cit., v. XI, p. 33.

136

marxista sobre a economia capitalista efetiva, ou seja, muitos marxistas (Baran, Sweezy e

Michel Kidron) e não marxistas (John Kenneth Galbraith) ou ex-marxistas se lançaram

rapidamente num exame analítico e sistemático dessa nova fase do capitalismo. Como diz

Hobsbawm,

[...] as tendências renovadas para analisar o capitalismo do pós-guerra como uma

nova fase específica do desenvolvimento capitalista se manifestaram amplamente

com base num alargamento do interesse sempre vivo entre os marxistas pelo terceiro

mundo, através de uma extensão da análise sobre as “multinacionais”, durante muito

tempo consideradas entre os principais fatores de exploração dos países

dependentes.76

A crise geral dos anos 1970 e 1980 fizeram com que os marxistas ficassem

embaraçados, pois, convivendo com uma economia capitalista ocidental controlada,

planificada ou mesmo possuída pelo Estado do bem-estar social, ou seja, numa economia

keynesiana do pós-guerra, eles não tinham soluções plausíveis a oferecer, a não ser retomar o

interesse pelo problema das “ondas longas” do desenvolvimento capitalista, isto é, pelo ciclo

de Kondratieff (prosperidade, crise e depressão). Por outro lado, eles não poderiam se referir

às economias socialistas que estavam em dificuldades de realizar conquistas no

desenvolvimento econômico, invocando-as como um sinal de superioridade face às

economias capitalistas. O período khruscheviano comportava, assim, as contradições internas

das economias socialistas, a saber, os defeitos de planejamento e de gestão, os problemas

econômicos gerais, a corrupção burocrática, a obsolescência tecnológica etc.

Concomitantemente, a derrota da “primavera de Praga” e a emigração forçada de muitos

intelectuais judeus da Polônia no final dos anos 1960 desencadearam uma nova discussão

crítica sobre as economias de planejamento centralizado por parte dos marxistas ocidentais.

Para Hobsbawm,

O efeito imediato dessa crise geral, por isso, foi o de encorajar a análise marxista

concreta da economia capitalista mundial e reavivar as demonstrações de suas

contradições econômicas, embora, ao mesmo tempo, se tenham reforçado as dúvidas

e as incertezas dos marxistas acerca das realizações e das perspectivas econômicas

daquilo que a doutrina oficial na URSS e nos Estados a ela ligados chamou de

“socialismo realmente existente”77

Não podemos deixar de mencionar, no entanto, a importância dos jovens intelectuais e

do marxismo acadêmico como protagonizadores do desenvolvimento do pensamento de Marx

a partir dos anos 1950, isto é, a mudança na base social do marxismo e as transformações do

capitalismo mundial. Na concepção de Hobsbawm, ao contrário do que ocorreu na II e III

Internacionais, o desenvolvimento do marxismo, depois de 1950, se deu através de um estrato

76 HOBSBAWM, op. cit., v. XI, p. 36. 77 Ibid., v. XI, p. 37-38.

137

social cada vez mais importante, a saber, os intelectuais e, sobretudo, jovens. Antes o

marxismo tinha raízes sociais nos movimentos e partidos de trabalhadores manuais, formando

o militante operário autodidata, através de círculos sociais, de cursos didáticos, das bibliotecas

e de institutos ligados ao movimento operário, onde ele recebeu sua formação intelectual. Os

trabalhadores organizados nesses movimentos aceitavam, valorizavam e assimilavam a

doutrina marxista (a ciência proletária) como parte da sua consciência política, como também

a grande maioria dos intelectuais, vinculados a esse movimento, se considerava a serviço da

classe operária, de um movimento de emancipação da humanidade.

Entretanto, a partir do momento em que a classe operária começou a melhorar de vida,

a publicidade comercial manipulou os desejos dos trabalhadores enquanto consumidores e,

principalmente, se privatizou a vida da classe operária, houve então o enfraquecimento da

coesão das comunidades operárias, tão importante para determinar a força dos partidos e dos

movimentos de massa do proletariado. O paradoxo dessa melhoria é que os filhos e filhas da

classe operária começaram a ingressar em ocupações não manuais e, ipso facto, ingressaram

também nas escolas secundárias e superiores, formando-se em novos potenciais quadros de

proletários e dirigentes do movimento operário, capazes de leitura e estudo.

Sendo assim, podemos inferir que os novos sujeitos proletários poderiam ser os

coveiros do capitalismo, pois o número de trabalhadores não manuais crescia em termos de

quantidade, autoconsciência e força. Porém, o desenvolvimento do capitalismo ocidental – e

dos movimentos operários em seu interior – parecia tornar essa perspectiva mais difícil de

acontecer. Se por um lado, os trabalhadores não tinham mais aquela confiança na história dos

movimentos socialistas por causa da crise do regime stalinista, por outro lado, os partidos

marxistas – mesmo que acreditassem na possibilidade de realização do socialismo, como

orientação para se construir uma estratégia política e revolucionária, – estavam desorientados

pela incerteza daquilo que os militantes e dirigentes consideravam como a bússola do curso

histórico. Tal desorientação aumentava com as vicissitudes na URSS e em outros países ditos

socialistas, após 1956, como dissemos anteriormente.

A crise do marxismo, portanto, foi e é resultado de uma crise de confiança na

possibilidade histórica de construção do socialismo nos moldes políticos propugnado por

Marx e Engels, já que o socialismo real foi o oposto daquilo do que pretendiam realizar seus

idealizadores. A iniciativa de se fazer uma revisão radical do marxismo por alguns marxistas

críticos do socialismo real, desde a análise estrutural de Marx e de outros clássicos até a

estratégia e a tática de curto e longo prazo, significava dentro da tradição central do

marxismo, ligada à URSS e ao movimento comunista internacional, o abandono ou mesmo a

138

traição do marxismo. Tal revisão tornou-se a causa da fragmentação da ortodoxia, colocando

em conflito os velhos e os novos marxistas. Contudo, como afirma Hobsbawm78

, subitamente

surgiu o fenômeno de renovação dentro do marxismo com a maciça radicalização de jovens

intelectuais acadêmicos que deram a base social um suporte de teorias marxistas. Assim,

nasceram organizações e partidos marxistas, sobretudo, pequenos, cujos militantes eram

pessoas diplomadas. O desenvolvimento dos sindicatos comprovou isso, à medida que

cresceu o número e o peso de pessoas organizadas entre os empregados do setor público como

na saúde, educação e segurança social, quer dizer, em ocupações nas quais homens e mulheres

conseguiram ter uma educação superior.

Para Hobsbawm, “a radicalização dos jovens intelectuais não produziu somente um

notável aumento do público leitor da literatura marxista e uma presença maior de intelectuais

marxistas: também forneceu um mecanismo para sua reprodução.”79

Não foi à toa que muitos

estudantes, provenientes do radicalismo estudantil de 1968, começaram a usar elementos

marxistas de análise em suas discussões públicas. Isso era endêmico tanto na América Latina

como nos países europeus. Muitos se tornaram professores ou operadores de informação,

afetando as instituições de ensino com o pensamento marxiano. Desse modo, o marxismo

conquistou o posto mais sólido nas instituições ligadas à instrução e ao ensino, sobretudo, nas

universidades. Muitos se tornaram professores e/ou escritores, enquanto outros abandonaram

suas convicções de juventude, quer dizer, não se submeteram às violentas flutuações do

radicalismo estudantil.

Como corolário dessas crises e mudanças históricas, nos países desenvolvidos a

sociedade moderna enquanto tal, criada pela indústria moderna e tecnologia científica, foi

alvo de debate crítico nas universidades por parte dos intelectuais. Assim, muitos intelectuais

se converteram ao marxismo, e houve, portanto, uma expansão extraordinária no número de

instituições de instrução superior e de estudantes que nelas se inscreviam, nos anos 1960, em

todo mundo. Nessas instituições superiores, o pensamento marxista se desenvolveu de forma

inesperada, principalmente porque tal produção de novas reflexões e pesquisas marxistas não

era produto de uma crise econômica capitalista, pois se vivia o auge dos “milagres

econômicos”, mas, ao contrário, foi a insatisfação com a vida social e cultural que fez os

estudantes desenvolverem uma crítica radical à sociedade moderna in totum (em geral).

Nessas circunstâncias, a sociologia marxista floresceu e era a principal disciplina que

atraía os estudantes mais radicais, como também a filosofia que tendeu a penetrar noutras

78 Cf. HOBSBAWM, op. cit., v. XI, p. 42. 79 HOBSBAWM, op. cit., v. XI, p. 42.

139

disciplinas. Os althusserianos consideravam, por exemplo, O Capital como um trabalho de

epistemologia, ou melhor dizendo, a investigação e a análise do mundo real cederam lugar à

consideração geral de suas estruturas e de seus mecanismos. O último Poulantzas se defendia

dos críticos por acusarem-no de não fazer análises concretas, a saber, análise dos fatos

concretos, empíricos e históricos, embora ele reconhecesse que seu trabalho sofria de um

“certo teoricismo”.80

No entanto, é preciso deixar claro que a bibliografia de publicações

filosóficas marxistas cresceu absurdamente depois de 1960, tendo como consequências

debates nacionais e internacionais entre marxistas que atraíram maior atenção de filósofos,

sociólogos, intelectuais e estudantes de um modo geral, muito deles ligados a Lukács, à

Escola de Frankfurt, aos gramscianos, aos seguidores de Della Volpe, Sartre, Althusser, além

de vários discípulos críticos e opositores.

O efeito colateral disso tudo é que a “nova esquerda” intelectual tendia às vezes a

abandonar os trabalhadores enquanto classe não mais revolucionária, tornando-se até mesmo

reacionária, porque se integraram ao capitalismo; abandonavam, portanto, os movimentos e os

partidos operários de massas existentes, denominados de socialistas e comunistas, id est, de

reformistas traidores das aspirações socialistas. No caso dos estudantes mais politizados, estes

não eram tão populares entre as massas e, no mínimo, eram considerados filhos privilegiados

da classe média ou como potenciais dirigentes das classes dominantes. Nas palavras de

Hobsbawm, “A teoria marxista, no ambiente da ‘nova esquerda’, se desenvolveu por isso num

certo isolamento, e seus laços com a prática marxista foram de uma problematicidade

incomum.”81

Na visão de Hobsbawm, o interesse pela teoria abstrata, no âmbito da discussão

marxista e sob a influência do filósofo Louis Althusser, aumentou bastante, porque atraiu

vários intelectuais e estudantes, na perspectiva de investigar questões, como no caso, da teoria

econômica; em outras palavras, rever as bases da teoria marxista era essencial para examinar

criticamente o trabalho de Marx e do marxismo enquanto corpo de pensamento coerente e

homogêneo, principalmente, devido a uma certa distância que havia entre tal teorização e uma

análise concreta do mundo. Por este prisma, a teoria de Marx sobre o valor trabalho é

atualíssima, na medida em que categorias como “trabalho abstrato”, “trabalho concreto”,

“mais valia” (absoluta e relativa), “fetiche da mercadoria” etc. não podem ser desprezadas

pela análise crítica do capitalismo atual, ou seja, são ainda categorias imprescindíveis para se

desvendar o processo de exploração e acumulação do capital. Numa sociedade do trabalho

80 Cf. HOBSBAWM, op. cit., v. XI, p. 45. 81 HOBSBAWM, op. cit., v. XI p. 44.

140

complexo, com mais de 50% ou até 80% de automatização nas indústrias, buscar entender

como o trabalho vivo não pode ser descartado tão facilmente pelo capital do seu processo

produtivo, como realização de sobrevalor, é extrair e compreender a lógica que preside essa

fase da exploração capitalista. O capitalismo é, antes de tudo, uma relação social entre capital

e trabalho, como afirma Marx em O Capital. E tomar este prisma reflexivo é contrapor-se à

ideologia da crise do marxismo como teoria, embora como prática política ainda esteja

vivendo uma crise de ceticismo.

É por esse caminho de inversão crítica que podemos então afirmar que a crise do

marxismo foi tout court (somente) uma crise político-econômica de realização do socialismo

no século XX, a partir de um determinado modelo de transição num país industrialmente

atrasado. E isso está ligado certamente a vários fatores: econômico, político-ideológico e,

principalmente, científico-tecnológico.

Desta feita, a crise do marxismo in nuce (em suma) começou num primeiro momento,

de fato, com a crise da II Internacional, com a crítica das teses reformistas de Kautsky e

Bernstein, dentre outros, pelos teóricos bolcheviques, ou seja, quando a Revolução Russa

colocou em xeque as teses do socialismo gradualista, evolucionista, da realização do

socialismo por meios pacíficos (conquista do Estado burguês e do Parlamento), como se fosse

apenas uma questão de efetivação dos direitos sociais, de colaboração de classes entre a

burguesia e o proletariado, ou melhor, de os representantes do proletariado se fazerem maioria

no legislativo e controlarem o Estado. A Primeira e a Segunda Guerras Mundiais desfizeram

essa falácia político-ideológica, quando mostraram a competição interimperialista pela

repartição geopolítica do planeta, em que determinadas regiões do mundo seriam divididas e

controladas pela dominação político-econômica de certos países imperialistas, tais como os

países aliados (EUA, França e Inglaterra) e os países de cariz nazi-fascista-imperial

(Alemanha, Itália e Japão).

O segundo momento da crise do marxismo, a meu ver, se desdobra em dois: a

ascensão de Stalin ao poder (após a morte de Lênin em 1924) e sua morte em 1953 com a

denúncia a posteriori de seus crimes contra a humanidade por Khruschev, no XX Congresso

do PCUS em 1956. Já bem antes, Trotsky e seus séquitos já denunciavam as distorções do

socialismo sob a direção de Stalin, pois o regime stalinista fazia uma brutal perseguição

política aos dissidentes, com prisões, expurgos, expatriação, exílios em regiões inóspitas

(Sibéria), inclusive até assassinatos e desaparecimentos de muitos deles. Mészáros82

acredita

82 Cf. MÉSZÁROS. A sombra da incontrolabilidade. In:____. Para além do capital, p. 73.

141

que não foi só a falha do “socialismo” sob o poder de Stalin a causa mor do fim do

socialismo, mas também os débeis esforços de desestalinização (com os governos de

Khruschev, Brejnev, Yuri Andropov, Kostantin Tchermenko até Gorbachev) – visando

eliminar alguns efeitos das contradições do sistema soviético, mas, ao mesmo tempo,

preservando seu conteúdo – que desfizeram o desafio histórico iniciado na Revolução de

1917. Na verdade, a falência do “socialismo real” tem a ver também com causas

socioeconômicas e políticas profundamente enraizadas na sociedade soviética. Só os

apologistas do capitalismo pensam o contrário. O que fica claro é que as personificações do

capital – Estado, Capital e Trabalho – não deixaram de existir no sistema soviético enquanto

categorias fundamentais para realização do processo de exploração do trabalho humano, ou,

como diz Mészáros, “componentes inseparavelmente entrelaçados do sistema orgânico do

capital – em suas variedades capitalista e pós-capitalista.”83

Os erros cometidos são extensos,

a saber: a revolução socialista realizada no “elo mais fraco da corrente”, “socialismo num só

país”, burocratização e fetichização do Partido, fim dos conselhos sovietes, extração forçada

de “trabalho excedente” pelo Estado soviético, NEP (Nova Política Econômica), coletivização

forçada da pequena propriedade, stalinização do movimento internacional da classe

trabalhadora, partido único sob controle ferrenho de políticos profissionais, fortalecimento e

agigantamento do Estado burocrático na versão totalitária etc.84

O terceiro momento da crise do marxismo se dá com o colapso do socialismo na

União Soviética e em países satélites da sua órbita de influência econômica, política e militar,

entre 1989-1991. Ao mesmo tempo, o capitalismo ocidental também vivia uma crise de

acumulação/valorização do capital, tentando adiar sua crise final, ao implantar em vários

países o neoliberalismo enquanto política econômica paliativa, objetivando aprimorar os

mecanismos de exploração da força de trabalho, a partir de uma nova “reestruturação”

produtiva, quer dizer, política, econômico-financeira e até mesmo constitucional. São,

portanto, dois movimentos históricos que se redefiniam simultaneamente com o objetivo

único de fortalecer o capital e seus mecanismos de reprodução. Para Mészáros85

, se o

movimento soviético tinha a intenção de criar um novo “sistema orgânico” genuinamente

socialista e sustentável, ou melhor, criar uma totalidade social coerente que quebrasse com o

círculo vicioso da totalidade orgânica autossustentada do capital, colocando em seu lugar um

83 MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 917. 84 Mészáros aborda essa questão de forma mais sistemática e detalhada em Para além do capital, p. 726-786:

“Socialismo em um só país”, “O fracasso da desestalinização e o colapso do ‘socialismo realmente existente’” e

“A tentativa de passar da extração política à economia do trabalho excedente: glasnost e perestroika sem o

povo”. 85 Cf. MÉSZÁROS, op. cit., p. 726.

142

desenvolvimento irreversivelmente aberto, então as sociedades pós-capitalistas soviéticas

fracassaram na tarefa, pois seguiram a “linha da menor resistência”, na medida em que

propuseram o socialismo sem superar radicalmente os pressupostos materiais do sistema

capitalista (Capital-Estado-Trabalho).

Assim sendo, a última tentativa de destravamento do sistema político e econômico

soviético para humanizar o socialismo, sob a direção de Mikhail Gorbachev, foi o ponto final

num sistema corroído pela falta de liberdade social, pela corrupção burocrática nos

organismos e empresas estatais, enfim, pela animosidade ou apatia que tomava conta de toda

a sociedade. Na visão de Mészáros, Gorbachev se pautou por uma visão de “valores humanos

universais” como mantra político copiado dos países capitalistas ocidentais; porém ele e seus

colaboradores “esqueceram” que os “‘valores humanos universais’ simplesmente não

poderiam ser assumidos nas sociedades em que existem antagonismos destrutivos de

classe.”86

; e continua Mészáros dizendo que a perestroika não passou de uma lista de desejos,

embrulhados numa retórica partidária que não traduziam na realidade os objetivos políticos

desejados: a restauração da sociedade de mercado. Nesse sentido, o apelo à moralidade

substituiu imaginariamente o poder das forças materiais e políticas identificáveis que

poderiam garantir a realização dos objetivos desejados. Renovar o socialismo com o mercado

capitalista era mesmo enterrar os últimos resíduos que poderia haver de socialismo na

sociedade soviética.

Não poderíamos também deixar de dizer que a crise do marxismo foi resultado do seu

pluralismo e dos novos revisionismos, sobretudo, após 1956, com alguns desdobramentos

internos, segundo Hobsbawm87

:

primeiro, o pluralismo do marxismo foi reconhecido e sancionado a partir do

desaparecimento de qualquer ortodoxia internacional dominante ou obrigatória,

tal como àquela do Partido Social Democrata Alemão antes de 1914 e a do

comunismo soviético, quando exercia sua hegemonia sobre o marxismo

mundial. Por conseguinte, tornou-se mais difícil considerar as interpretações

heterodoxas como “não marxistas”, como também os que divergiam da

ortodoxia romper os laços com Marx. Para Hobsbawm, o pluralismo é

politicamente resultado da fragmentação do movimento comunista

internacional, das incertezas sobre a estratégia e as perspectivas dos partidos

86 MÉSZÁROS, op. cit., p. 766. 87 Cf. HOBSBAWM, História do Marxismo XI, p. 48 et seq.

143

operários socialistas no resto do mundo, da tendência de outros movimentos e

partidos que buscavam uma mudança radical para usar o distintivo de Marx em

seus lemas ideológicos (adornos) e, por fim, da composição social

transformada da população marxista. Mas a consequência fundamental dessa

pluralidade do marxismo – com ortodoxias rivais (China e URSS), diferentes

interpretações do marxismo pelos partidos marxistas, a combinação do

marxismo com outras ideologias (católica, islâmica ou nacionalista) e com a

extensão do marxismo para além do terreno político (esfera acadêmica e

cultural) – foi o reaparecimento dos teóricos, pois estes não estão estreitamente

ligados a uma organização política particular e muito menos ainda a uma linha

política ou mesmo desempenham uma função política. Daí o surgimento de

várias escolas teóricas (a de Budapeste, a da Práxis, a de Frankfurt, a polonesa,

a dos austro-marxistas etc.) com nomes de prestígios nos debates

internacionais: Althusser, Marcuse, Lukács, Gramsci, Habermas, Merleau-

Ponty, Sweezy, Sraffa, Colletti etc.

Segundo, a linha entre “o que é marxista” e “o que não é marxista” ficou cada

vez mais indiferenciada, justamente porque houve um rápido desenvolvimento

de um público de intelectuais interessado no marxismo, como também sua

penetração no mundo acadêmico. Dessa maneira, o marxismo se tornou um

dos componentes de um universo intelectual, no qual se tentou combinar

qualquer marxismo com outras teorias como o estruturalismo, o

existencialismo, a psicanálise etc.

Terceiro, a disponibilidade de o marxismo reconsiderar não só a tradição

marxista como a teoria do próprio Marx. Aqui temos o debate interno sobre a

teoria economica de Marx. Nos anos de 1960-1970, um maior número de

marxistas (revisionistas) retirava do marxismo a teoria do valor trabalho ou da

queda da taxa de lucro, e rejeitava a proposição de que “não é a consciência

dos homens que determina seu ser, mas é, ao contrário, o seu ser social que

determina sua consciência”, recusando, assim, o ponto de vista da “estrutura” e

“super-estrutura”. Para eles, todos os textos anteriores a 1882, não

suficientemente marxistas, são mais filosoficamente idealistas do que

materialistas. Hobsbawm denomina essas revisões de grosseiras e afirma que

Marx certamente reagiria duramente a tais revisões. Para Hobsbawm, “[...] tais

desafios às idéias de Marx [...] representam a mais profunda fratura até aqui

144

registrada na continuidade da tradição intelectual marxista.”88

Por outro lado,

ele acredita que os desafios indicam o reconhecimento da necessidade de se

atualizar radicalmente o marxismo, permitindo a investigação de possíveis

erros e incongruências no pensamento de Marx, como também a teoria de

Marx oferece uma orientação essencial para compreender e mudar o mundo.

E, por fim, o quarto desdobramento é que, a partir dos anos 1950, os marxistas

concentraram seus esforços no campo das ciências humanas e sociais, além das

questões ligadas às ações políticas. No entanto, foram poucos os que entraram

no campo das ciências naturais e da tecnologia, sob alegação de que o

marxismo não pertence a esse ambiente positivista. Aí se apresenta uma nítida

restrição do campo de ação do marxismo, embora cultores das ciências naturais

e tecnológicas dos falidos Estados socialistas nunca tenham compactuado com

esse ponto de vista abertamente.

Por isso, a crise dentro do marxismo é outro tema que não podemos deixar de

mencionar para compreendermos sua crise de uma forma geral, após o colapso dos países

socialistas no Leste Europeu. Se, depois do período sucessivo dos anos 1950, os analistas

podiam falar mais uma vez da crise do marxismo, em que as velhas certezas – ou versões em

contato com essas certezas – sobre o futuro do capitalismo, das forças sociais e políticas para

realizar a transição para o socialismo, a natureza deste socialismo, então tais velhas certezas

estavam sob o crivo da crítica. Desse modo, a teoria fundamental do marxismo, ou o próprio

pensamento de Marx, ficou submetida a um profundo reexame crítico e a uma série de

reformulações polêmicas ente si.

Isso reflete, de certa forma, uma crise dentro do marxismo, isto é, o questionamento

do marxismo tradicional. Se havia uma identificação dos partidos marxistas vivos ou em

desenvolvimentos com a URSS, como primeiro Estado operário, filho da primeira revolução

operária, que inspirava os militantes do movimento comunista internacional, então hoje esta

identificação ficou abalada, sobretudo, por intelectuais e um público mais amplo. Como

consequência, houve e ainda há tentativas tradicionais de invalidar intelectualmente as teorias

de Marx, embora as atitudes que tentam liquidar Marx são muito raras. Por outro lado, essa

crise interna, pós-1956, foi neutralizada pela necessidade de uma crítica radical da sociedade

burguesa e das formas mais iníquas de desigualdade e de injustiça social que ela produz,

levando muitos homens e mulheres ao marxismo, como, por exemplo, a penetração do

88 HOBSBAWM, op. cit., v. XI, p. 55.

145

marxismo na vida intelectual espanhola nos anos 1960-1970, quando o papel do Partido

Comunista Espanhol dentro da oposição antifranquista organizada foi central.

Afirma Vittorio Strada que se pode falar do marxismo de vários modos, tornando-o

objeto de apologia ou crítica, quer dizer, pode-se analisá-lo, ou com distanciamento pelo

estudioso, ou usá-lo com paixão pelo militante.89

Para ele, muitas vezes, se entende o

marxismo como um “movimento de ideias”, mas é uma expressão inapropriada, porque já

houve outros movimentos de ideias de nosso tempo. O marxismo indica a capacidade do

homem de transformar o mundo, na medida em que organicamente se associa com uma força

histórica como a classe proletária. Strada, então, declara que na história do marxismo existe

uma fratura intrínseca, quer dizer, uma ante e um post: “um antes”, como instrumento de

organização das forças sociais dentro de uma sociedade (burguesa), baseada em princípios

antitéticos, denunciados pelo próprio marxismo; e “um depois”, a Revolução de 1917,

enquanto aplicação prática do marxismo na história, a saber, a data de ruptura do marxismo

em seu desenvolvimento.

Poder-se-ia considerar então o marxismo como uma “máquina ideológica” ou um

“saber científico”? A tese de Sartre, num trecho da Crítica da Razão Dialética, é de que o

marxismo é “uma filosofia insuperável de nosso tempo”, ou seja, o marxismo tem um sentido

e um valor enquanto investigação política e intelectual de nosso tempo. Para ele, o marxismo

como filosofia é insuperável, porque as circunstâncias que o produziram ainda não foram

superadas. Um argumento antimarxista, para Sartre, é apenas uma renovação de uma ideia

pré-marxista. O marxismo é, na verdade, a tentativa mais radical de iluminar o processo

histórico na sua totalidade, isto é, pôr um fim à inconsciência de toda a história anterior.

Sartre não afirma aí a onipotência do marxismo, nem também a sua impotência, mas reafirma

tanto a sua grandeza como a sua “miséria” efetiva, ou seja, como resultado de uma conjuntura

temporária.

No caso do marxismo-leninismo, por exemplo, enquanto um sistema de concepções

revolucionárias da classe operária, dos trabalhadores, que reflete as leis objetivas do

desenvolvimento do mundo e a experiência da luta de classes, ele representa o

desenvolvimento de um programa, de uma estratégia e tática de uma luta revolucionária

contra o capitalismo. O marxismo se apresenta aí como um todo sistemático de

conhecimentos científicos de caráter universal, ligado à ação prática que visa à emancipação

geral dos trabalhadores. O caráter essencial do marxismo é, pois, a sua dinâmica teórica, seu

89 Cf. STRADA, Vittorio. Marxismo e pós-marxismo. In: HOBSBAWM, História do Marxismo XI, p. 101.

146

desenvolvimento prático, a partir da experiência da classe proletária organizada.90

No entanto,

a questão que se coloca é se o “marxismo-leninismo” foi o “marxismo real”, ou, melhor

dizendo, se o marxismo foi superado pela própria crise do “marxismo real” encarnado no

“socialismo real”, contrapondo-se, assim, à tese de Sartre como uma filosofia insuperável de

nosso tempo.

A intenção teórica de associar o marxismo à experiência histórica de um modelo de

transição para o socialismo91

promoveu, de fato, o terceiro momento da crise do marxismo

com o fim do “socialismo real” no Leste Europeu. Daí os partidos comunistas ou socialistas

tradicionais e os sindicatos ligados ao movimento operário de esquerda internacional sofrerem

um duro golpe histórico na sua ideologia de classe. Mesmo sabendo que havia um “marxismo

crítico” ou reformista em alguns países (Polônia, Hungria, Tchecoslováquia e Iugoslávia) em

oposição “marxismo soviético” – que “subordina uma versão empobrecida e distorcida da

teoria marxista clássica da sociedade à doutrina do ‘materialismo dialético’, apresentada como

uma cosmologia sistemática e como um método científico universal”92

, – muitos marxistas

ocidentais e orientais ainda defendiam o socialismo como sistema da emancipação humana

face ao capital.

Foram, portanto, vários os dissidentes93

(comunistas críticos, reformistas ou oponentes

ao comunismo soviético) que colocaram em discussão e suspeição o caráter socialista das

sociedades pós-revolucionárias, mas também fizeram um exame crítico de alguns

pressupostos da ortodoxia soviética. Senão vejamos: 1) a tese de Stalin que invocava a razão

dialética para neutralizar as dissonâncias entre os restos da tradição revolucionária e as

práticas da situação pós-revolucionária, segundo a qual a supressão do Estado só se realizaria

com seu reforço incessante; 2) o conhecimento objetivo e a verdade absoluta, ancorados à

teoria do reflexo, ou melhor, à redução da consciência como cópia da realidade exterior; 3) a

90 Cf. STRADA, op. cit., p. 110-111. 91 Para César Benjamin, o que vimos no final do século XX não foi o fim da possibilidade do socialismo, mas o

esgotamento de um modelo de transição pensado na década de 1920 em uma sociedade atrasada; portanto, para

ele é fundamental, a partir da atualidade, reabrir a questão dos fundamentos teóricos das decisões tomadas

naquela época. Cf. BENJAMIN, César. A necessária retomada do tema da transição. In: Idem (Org.). Marx e o

socialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2003. p. 147. 92 ARNASON, Johann P. Perspectivas e problemas do marxismo crítico no Leste europeu. In: HOBSBAWM,

História do marxismo XI, p. 166. 93 Na URSS, desde Bukharin que tentou fazer a reforma do socialismo a partir de um projeto cultural enraizado

na sociedade complexa, Beria que quis suprimir os expurgos estalinistas até Khrushev que se propôs a

desestalinizar o regime; na Polônia com Leszek Kolakowski que se orienta para a crítica cultural e Wlodzimierz

Brus que queria a democratização política e o controle social efetivo sobre o governo; Na Iugoslávia com a

Escola da Práxis – Mihailo Markovic ligado à visão marxiana de extinção do Estado; Na Tchecoslováquia com

Karel Kosik que combatia a redução da práxis ao trabalho; e na Hungria com o governo Imry Nagy (1953-1955),

Escola de Budapeste com András Hegedüs, G. Bence e J. Kis, Agnes Heller com a teoria dos carecimentos que

evita a armadilha de se cair numa concepção de homem excessivamente socializante e historicizante, dentre

outros.

147

definição das forças sociais como massas que precisam de uma direção e comando seria a

própria diluição da teoria de classes através da noção vaga de “massas trabalhadoras”; 4) a

interpretação do trabalho e a luta de classes como direta ou indiretamente subordinadas às leis

das forças produtivas; 5) a noção de autorrealização ilimitada, ligada ao conceito de práxis

enquanto atividade social consciente e orientada para um fim, criando uma hierarquia de

objetivações que privilegia os aspectos institucionais em detrimento dos aspectos

transinstitucionais; 6) a perpetuação da forma antagônica do progresso que não conseguia ir

além de uma ruptura superficial com o capitalismo; 7) a dominação burocrática em que

Estado e Partido eram um só, apartado da sociedade, ou seja, os burocratas do Partido

Comunista eram a nova classe dominante que construía uma forma não capitalista de

sociedade moderna, transformando a teoria revolucionária numa ideologia de mascaramento;

8) a regulação consciente da produção social equiparada com a planificação no sentido

soviético que promovia a desmotivação para o exercício do trabalho e produção para

satisfação das necessidades básicas do homem; 9) o autogoverno substituindo a autogestão

operária da produção; 10) a burocracia como expressão da cisão entre ser individual e ser

social do homem, ou, melhor dizendo, a expropriação política da classe operária; e 11) a

tensão entre o determinismo e voluntarismo como traço permanente do marxismo soviético.

Tais pressuposições, na forma de imperativos políticos do Estado-partido, impediram

o desenvolvimento da teoria marxista e da sua prática na forma de socialismo (Estado-

comuna), na medida em que o sujeito revolucionário não era mais o proletariado, mas um

grupo de políticos profissionais partidários, burocratas do Partido Comunista, que se auto-

intitulou “guia” do processo histórico. O Partido era, sem dúvida, o sujeito coletivo-

revolucionário na visão leninista, mas, de fact, foi a elite do Partido que se transformou nesse

demiurgo da história do socialismo, deixando sua base acantonada enquanto ator coadjuvante

desse processo histórico. Nas palavras de Maurice Godelier,

O marxismo tornou-se, nos países socialistas, uma filosofia de Estado, um modo de

pensar obrigatório, não apenas para analisar o real, mas também para ocupar uma

posição na sociedade, para fazer carreira. O marxismo, chegando a tal ponto,

começou a degenerar; e, de instrumento de análise crítica, capaz de servir a causas

revolucionárias, tornou-se um modo conformista de argumentar, que evita

cuidadosamente abordar a questão de sua impotência em explicar a realidade. Entre

o pensamento de Marx e nós, elevou-se uma barreira criada por um século de

desenvolvimentos imprevistos, entre os quais devemos incluir também o nascimento de vários marxismos, como o de Mao Zedong, o de Kim Il Sung ou de Brejnev, que

se afastaram cada vez mais de Marx, reinterpretando-o como podem, em função de

realidades concretas que devem abordar.94

94 GODELIER, Maurice. O marxismo e as ciências do homem. In: HOBSBAWM, op. cit., v. XI, p. 387.

148

No entanto, para Göran Therborn, os anos 1960 representam um momento de ruptura

para o pensamento marxista, consumando-se e consolidando-se, a partir da metade dos anos

1970. Na sua compreensão, o desenvolvimento do “marxismo ocidental”, com seus teóricos

da “revolução contra o capital”, se deu com o retorno às origens, ou seja, à filosofia, com as

obras de Lukács, de Korsch, da Escola de Frankfurt, Sartre, Althusser, Gramsci, Della Volpe;

mas, na verdade, o “marxismo ocidental” não foi um recuo aos problemas que o jovem Marx

abordava, mas foi um indício da crise da filosofia burguesa na Europa Central e Latina.

Portanto, Therborn acredita que

O colapso do estalinismo abriu caminho para o progresso do pensamento e da

elaboração de idéias, enquanto os movimentos estudantis de massa, que se

desenvolveram nas universidades de todo o mundo capitalista, ofereceram um

espaço acadêmico e uma infra-estrutura institucional para o novo tipo de

marxismo.95

Nessa mesma linha de raciocínio, Perry Anderson

96 afirma que o marxismo ocidental

se caracteriza, sobretudo, pelas suas preocupações filosóficas e estéticas, porém,

despreocupando-se com a prática, à medida que se desvinculou do movimento operário,

confinando-se, portanto, na academia. Para ele, o elo entre o marxismo contemporâneo e a

velha tradição de Marx e do bolchevismo é o “marxismo ocidental” que geograficamente

inclui não só os países latinos europeus – França e Itália –, mas também os países anglo-

saxões.

Dessa maneira, a teoria marxista, depois das preocupações filosóficas – diz Therborn –

voltava a ser teoria social, quer dizer, teoria sobre a sociedade contemporânea e sobre a

política de nosso tempo. Em outras palavras, a análise marxista passou a ser, antes de mais

nada, uma análise sociopolítica, ou melhor, uma ciência social. O novo marxismo surge,

então, da sua preocupação mais social e tem como objeto principal de investigação a teoria

das classes sociais – um projeto inacabado de Marx na última parte de O Capital.

Pelo menos dois problemas o marxismo parece ainda não ter solucionado: o primeiro

refere-se à necessidade de se delinear os modelos de relações de classes existentes,

identificando os processos que os criam e os mantêm em vida; o segundo concerne ao

compromisso político da análise científica marxista para contribuir na luta pela abolição da

exploração e do domínio do capital, fornecendo os conhecimentos necessários para essa

95 THERBORN, G. A análise de classe no mundo atual: o marxismo como ciência social. In: HOBSBAWM,

História do marxismo XI, p. 390. 96 Cf. COGGIOLA, Oswaldo. A vigência do Marxismo. In: Idem (Org.). Marxismo hoje. 1ª ed. São Paulo:

Xamã, 1996. p. 121.

149

luta.97

Esses problemas derivam, com efeito, de três razões: 1) da ambiguidade do conceito de

classe tratado por Marx; 2) da complexidade das relações sociais nas sociedades capitalistas;

3) da fragmentação do debate marxista internacional, como resultado do “marxismo

ocidental” e das fraturas por ele operadas no marxismo internacional em tantas escolas

filosóficas.

Entretanto, a contradição fundamental do marxismo, segundo Sergio Couri, consiste,

por um lado, na socialização dos meios de produção e, por outro, no controle estatal dos

meios de produção. Isso resultou numa total dessintonia entre as propriedades privadas e as

aspirações do proletariado e aquelas da burocracia que exerceu a ditadura do proletariado em

seu nome, controlando os meios de produção. Nesse sentido, há um divórcio entre doutrina e

práxis, ou seja, “[...] os detratores do marxismo procuram fazer valer o fato de este,

reconhecendo-se ou não sua cientificidade na análise crítica do capitalismo, ser utópico em

relação ao homem e à nova sociedade que projetou.”98

O marxismo tornou-se, assim, um instrumento de poder, perdendo, pois, sua pureza

doutrinária, quer dizer, passou a sustentar os interesses de grupos dentro do Estado e o dele

próprio em face de outros Estados. Nas sociedades “marxistas”, a falta de liberdade e ação

política, de consciência, de imprensa, de circulação de ideias e de alguém se dispor física e

intelectualmente de sua própria pessoa eram conditio sine qua non desse tipo de poder

autoritário, ou seja, a sociedade soviética, mesmo assumindo o caráter de uma sociedade

“nova”, não capitalística e não socialística, como diz Salvadori99

, possuía um caráter

hierárquico e não igualitário, próprio do capitalismo, pois era uma sociedade, na qual o poder

imprimiu um caráter fechado, estático, que visava à conservação e não à inovação.

Não é à toa que Althusser afirma que “O marxismo não se desembaraçará das

tragédias de sua história condenando-as ou lastimando-as: isso seria apenas moral, e uma

renúncia teórica e política.”100

Conforme o autor, é vital para o marxismo reconhecer e

assumir essas tragédias, colocando-as na ordem do dia e indo até às suas raízes, quer dizer,

será preciso forjar os meios teóricos necessários para compreendê-las. Essa seria a única

maneira de resgatar o marxismo das ideologias burguesas que querem invalidar as ideias de

97 Cf. THERBORN, op. cit., p. 416. 98 COURI, Sergio. O marxismo em crise. In:____. Capitalismo Marxismo: ensaios sobre a evolução do

capitalismo e do marxismo. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. p. 112-113. 99 Cf. SALVADORI, M. L. Eurocomunismo e socialismo soviético. Turim: Giulio Einaudi Editore s.p.s., 1978,

p. 114 apud COURI, op. cit., p. 118. 100 ALTHUSSER, Louis. O Marxismo Hoje. Kriterion – Revista de Filosofia, Belo Horizonte, MG, v. XXIX, n.

78, p. 47-61, jan. a jun. 1987. p. 60. Deve ficar claro que não estamos concordando in totum com as críticas de

Althusser ao pensamento marxista, sobretudo, na sua divisão em dois Marx: o jovem e o maduro, como se

fossem dois momentos reflexivos separados e não dialeticamente interligados.

150

Marx. Para Althusser, portanto, a crise do marxismo não é só de caráter político, quando se

fez prática na URSS, mas também de caráter teórico, como, por exemplo, supor que uma

teoria marxista “completa” poderia governar a História, isto é, uma teoria ficar submetida à

luta de classes. Nas palavras de Althusser, “Ser materialista, hoje, é inicialmente reconhecer

que, se nós podemos esboçar um primeiro e frágil balanço do pensamento de Marx, de suas

lacunas, de suas contradições e de suas ilusões, é porque a situação nos impõe isso, e o

permite;”101

Em contraposição, Claudio Katz assevera que o marxismo – como todas as grandes

concepções do mundo – é de caráter inteiramente universal e, portanto, não pode ser avaliado

com visões provincialistas, pois

Os princípios dialéticos que sustenta, a interpretação materialista da história e a sociedade que propõe, as leis do capitalismo que estuda e os antagonismos de classe

que desmascara, não podem ser encaixotados no estreito raio de tal ou qual país ou

tradição política.102

Nesse sentido, fica difícil abandonar e/ou ignorar o marxismo como força teórica que

se impõe ou se propõe na e para realidade, porque sua base teórica está alicerçada na

realidade, pois é “na práxis que o homem precisa provar a verdade”, como mesmo afirma

Marx, sobre seu método de análise (de investigação e exposição), na II Tese sobre Feuerbach,

diferenciando do idealismo alemão e/ou do empirismo das ciências positivas. O marxismo,

como diz Claudio Katz, surgiu com o amadurecimento do capitalismo que internacionalizou

as forças produtivas e se desenvolveu com o aparecimento do proletariado. Na visão de Katz,

o grande problema foi a ideia de querer nacionalizar o marxismo como “marxismo latino-

americano”, “marxismo polonês”, “marxismo russo”, “marxismo alemão”, “marxismo

italiano” etc., consequência da tese staliniana dos anos 1930, ou seja, do “socialismo num país

só”. Tanto Marx quanto Lênin sustentam que a ação proletária tem que ser internacional para

abolir a exploração capitalista. O desafio é justamente livrar os trabalhadores de cada país de

seus laços nacionalistas e elevar seu nível de consciência à compreensão de que seus

interesses são comuns em relação com o resto do mundo.

Bem, a partir dessa explanação sobre as possíveis causas históricas e/ou teóricas, que

levou o marxismo viver suas crises, seja a crise das Internacionais, seja a crise dos regimes

socialistas no Leste Europeu, é que podemos perceber o quanto foi sintomática a repercussão

disso no movimento sindical. Primeiro, porque os movimentos sindicais de esquerda no

mundo eram de origem socialista/comunista (anarquista/marxista) ou mesmo social-

101 ALTHUSSER, op. cit., p. 60. 102 KATZ, Claudio. O pós-marxismo: uma crítica. In: COGGIOLA, op. cit., p. 68.

151

democrata e trabalhista; segundo, porque as lideranças sindicais tinham vínculos, na sua

maioria, com os partidos políticos de esquerda, isto é, ou eram filiados ou eram simpatizantes

a esses partidos. E essa relação entre partido e sindicato vem de longa história, desde antes

mesmo das Internacionais, já com o movimento cartista na Inglaterra. Naquela época, Marx

já enunciava uma tese, na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel -

Introdução (1843-1844), segundo a qual “a teoria se torna força material quando se apodera

das massas”, e tal processo só é possível, na medida em que tal teoria corresponda às

necessidades reais dos homens. Assim como o pensamento tende à ação, a realidade deve

tender para o pensamento, já dizia Marx.

Com as I e II Internacionais, houve então a grande difusão do marxismo nos partidos

políticos europeus, assim como nas associações e nos sindicatos dos trabalhadores. Antes, o

movimento dos trabalhadores era influenciado pelas teorias dos socialistas utópicos franceses,

pelos comunistas idealistas alemães e pelo movimento cartista na Inglaterra. Como bem diz

Franco Andreucci, o marxismo, ao se encontrar com o movimento operário, já tinha passado

por vários filtros, ou seja, os aparelhos dos partidos não eram neutros e “refletiam a psicologia

coletiva de amplos setores operários e acabavam por buscar o marxismo apenas instrumentos

de propaganda diretamente utilizáveis na luta política imediata.”103

Mas, por outro lado, o

movimento operário encontrava no marxismo os instrumentos para uma aguda crítica à ordem

capitalista, ou, melhor dizendo, achava a prova do porquê no sistema capitalista os

trabalhadores serão sempre explorados e que a única alternativa para sua libertação será o

socialismo. Dessa maneira, o marxismo mostrava aos operários da indústria a importância de

sua classe e a tarefa histórica que lhes cabia no presente e no futuro.104

Pois como dissemos antes, o encontro do marxismo com o movimento operário, quer

dizer, a difusão das ideias de Marx e Engels, começou na Primeira Internacional, com o

Manifesto do Partido Comunista, na A.I.T. Mas, o marxismo nasceu mesmo nas revistas do

partido dirigidas por Kautsky e Bernstein, das trocas de cartas entre Bebel e Engels, da

ampliação dos conhecimentos e das traduções dos textos de Marx, das polêmicas contra

outras escolas socialistas. Kautsky, Bernstein, Bebel e Liebknecht, com características

diversas e de maneiras diferentes, foram decisivos para vulgarização do marxismo, justamente

porque eles foram influenciados por Engels. Há nessa relação mais de 1200 correspondências

dos anos de formação do marxismo e, talvez, haja mais cartas escritas na forma de conselhos,

103 ANDREUCCI, Franco. A difusão e a vulgarização do marxismo. In: HOBSBAWM, Eric J. (Org.). História

do marxismo II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 22. 104 Cf. ROSENBERG. Democracia e socialismo apud ANDREUCCI, op. cit., p. 22, nota 10.

152

sugestões, esclarecimentos, com o único objetivo de apresentar uma imagem unitária do

marxismo. No entanto, a afirmação e difusão do marxismo estavam, de certo modo, sob o

controle de Engels.105

Assim sendo, nos últimos vintes anos do século XIX, o marxismo se

encontrou com as exigências práticas do movimento operário, seja de caráter fatalista,

mecanicista, evolucionista, determinista, nos partidos políticos ou associações sindicais. O

fato é que nasceu a tríade do marxismo: concepção materialista da história, teoria do valor e

luta de classes.

No entanto, algumas questões, mutatis mutandis, se colocam hoje: por que os

movimentos operários, em geral, abandonaram bruscamente a teoria marxista como guia

prático para a sua atuação social contra a exploração do capital? Existe outra teoria

revolucionária anticapitalista capaz de responder às questões práticas colocadas pelas

contradições do sistema capitalista? Ou as direções sindicais, ou mesmo partidárias, não

tinham uma visão profunda, sistemática, das ideias de Marx e Engels, juntamente com seus

seguidores, para desenvolver uma reação radical à ofensiva neoliberal capitalista?

Oscar Negt responde in nuce (de forma concisa) tais questões, afirmando que Marx e

Engels não tinham ilusões quanto à lentidão, aos riscos de ruptura e involução no processo de

autoeducação do proletariado como sujeito material da revolução política e social. Eles

sabiam das ameaças contra o processo de constituição política do proletariado, tais como a

concorrência entre os trabalhadores, a cisão da classe operária em frações (formação de uma

aristocracia operária) e, sobretudo, a influência ideológica do inimigo de classe sobre os

trabalhadores.106

Para Negt107

, a capacidade de ação revolucionária da classe operária está

completamente prejudicada por esses fatores, incluindo o aburguesamento da mentalidade do

proletariado, exercida pela escola, exército e outras instituições das classes dominantes (meios

de comunicação de massa etc.).

Com relação à primeira questão, Vito Letízia nos fornece uma reflexão plausível para

este distanciamento e/ou abandono dos movimentos operários em relação à teoria marxista, a

saber, por causa da derrocada do “socialismo real”. Afirma ele então que

Após a queda do muro de Berlim multiplicam-se as teorias que defendem “um novo papel” para os sindicatos: o sindicalismo “moderno” deveria ser mais “construtivo” e propor soluções “viáveis” nas negociações trabalhistas; deveria considerar os patrões sob um ângulo mais “positivo” e aprender a reivindicar pensando também na empresa.108

105 Cf. ANDREUCCI, op. cit., p. 31. 106 Cf. NEGT, Oscar. O marxismo e a teoria da revolução do último Engels. In: HOBSBAWM, Eric J. História do marxismo II, p. 185. 107 Cf. Ibid., p. 134. 108 LETÍZIA, Vito. Marx, os marxistas e a relação sindicato-partido-socialismo: seu passado e seu futuro. In:

NÓVOA, Jorge (Org.). Incontornável Marx. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Editora UNESP, 2007. p. 117.

153

Para Letízia, portanto, forjou-se um consenso, via mídia burguesa, de que a história

provou a falsidade da teoria de Marx sobre o antagonismo de interesses entre empregados e

patrões. Noutras palavras, com o fracasso do socialismo soviético, foi propagado pelos

neoliberais o grande “equívoco histórico” do marxismo. Nesse sentido, todas as correntes de

direita iniciaram um processo de defesa da unidade de interesses entre trabalhadores e patrões,

no quadro dos objetivos da “nação”, ou seja, os neoliberais desenvolveram uma teoria de

colaboração sistemática e obrigatória entre todos os envolvidos na produção. Do outro lado,

os menos radicais, que se declararam contra as ideias direitistas, reconheceram a necessidade

de se ter a “complementaridade” de trabalhadores e patrões na função produtiva. Um exemplo

dessa posição foi a de Schumpeter que afirmou serem normais as relações de aliança e

colaboração entre trabalhadores e empresários, discordando, assim, de Marx.109

É claro que o marxismo não nega uma certa colaboração entre o capital e trabalho, id

est, se um trabalhador “concorda” com um salário x e se dispõe a trabalhar por determinado

tempo y, por um valor a ser pago, está aí organizada uma relação de “aliança de colaboração”

ou “relação de complementaridade”. Mas isso não quer dizer que haja uma relação harmônica

e pacífica entre os pactuantes, pelo contrário, há um recalque de conflito (neutralizado) que

poderá emergir a posteriori. Como sabemos, o capitalismo se move incessantemente pela

necessidade de realizar lucro, e isso requer que o “tempo de trabalho necessário” seja cada

vez mais reduzido em favor do “tempo de trabalho excedente”, a saber, o custo do valor do

produto realizado no “tempo de trabalho necessário” tem que ser suficiente para realizar o

mesmo produto no “tempo de trabalho excedente” sem custo nenhum, produzindo a partir do

sobretrabalho, mais produtos excedentes, mais-valia.

Retomando então a questão do porquê do afastamento do movimento operário do

marxismo, no caso específico, o movimento sindical, podemos inferir que, na verdade, houve

uma incompreensão das teorias de Marx tanto por parte de alguns intelectuais quanto dos

muitos “não-intelectuais”, ou mesmo nunca houve uma divulgação sistemática do pensamento

marxiano para os trabalhadores de forma autêntica, clara e integral, já que a vulgarização do

marxismo, no sentido raso, impediu os trabalhadores de entenderem até mesmo as

contradições que poderiam ocorrer com o marxismo posto em prática na forma de socialismo,

como também as contradições do capitalismo. Como afirma Letízia,

[...] é preciso ter cuidado: o essencial do marxismo não é entender que, mais cedo ou

mais tarde, os assalariados expropriarão os capitalistas e criarão outro tipo de sociedade. E, principalmente, não é o marxismo achar que os assalariados tenham o

109 Cf. LETÍZIA, op. cit., p. 118.

154

dever de lutar pela expropriação dos capitalistas. O essencial entender que, enquanto

perdurar a relação de produção básica do capitalismo (o assalariamento), haverá um

processo de transformações constantes nessa relação. Os conflitos entre assalariados

e capitalistas constituem a principal força motriz dessas transformações.110

Conforme Marx, o papel dos sindicatos como instrumentos de educação da classe

operária e a sua atividade para estabelecer a ligação entre os movimentos econômicos e

políticos são os dois elementos básicos da prática marxista do movimento sindical. Para

Letízia111

, Marx dava grande ênfase à ligação indissolúvel entre os movimentos sindical e

partidário dos assalariados, constituindo-se, portanto, esse princípio um dos elementos mais

importantes do sindicalismo revolucionário. Claro que no período da decadência da II

Internacional, a partir do aguçamento das contradições internas do movimento operário, essa

relação “partido-sindicato” sofreu dificuldades novas. Com o advento da III Internacional, e

sua ligação com a ISV (Internacional Sindical Vermelha), mesmo baseada no princípio

marxista, a relação “partido-sindicato” também se tornou contraditória, ou seja, não obstante a

luta pela unidade do movimento sindical classista, a contradição surgiu justamente com o

desenvolvimento gradativo do comportamento autoritário do partido comunista russo em

relação aos sindicatos e, também, aos demais partidos da III Internacional.

Por conseguinte, o acúmulo de experiências históricas frustrantes, a quebra de

autonomia dos sindicatos revolucionários em relação aos partidos comunistas e o malogro do

“socialismo real” foram elementos histórico-práticos suficientes para uma fuga de muitos

seguidores do marxismo. Para Letízia, a pergunta que se impõe é: “Ainda é válido lutar por

um sindicalismo ‘classista’?”112

Argumenta ele que há uma discussão se a classe operária de

que Marx falava ainda existe hoje, ou seja, aquela de operários mecânicos, repetidores de uma

única tarefa, os operários manufatureiros ou industriais. É evidente que as formas de

organização do trabalho e de produção das mercadorias mudaram. Hoje há um mundo

moderno dividido entre proprietários dos meios de produção e ofertantes de mão de obra. No

entanto, segundo Letízia, “o marxismo pode até aguçar o conflito entre as classes ao organizar

os trabalhadores em defesa de sua vidinha normal. Mas não a partir de uma oposição de idéias

para atrapalhar a vidinha normal e com isso criar o conflito.”113

E, por fim, o que se percebe,

na visão de Letízia, é que houve o desmoronamento dos “-ismos” do movimento operário,

colocando a luta sindical na defesa das conquistas dos trabalhadores em termos mais práticos.

Não há mais ideologias para defender tais conquistas, logo a “desideologização” implicou no

110 LETÍZIA, op. cit., p. 120. 111 Cf. LETÍZIA, op. cit., p. 128. 112 Ibid., p. 151. 113 LETÍZIA, op. cit., p. 152.

155

abandono da ideologia ligada ao “socialismo real”, mas também implicou na rejeição da

ideologia da modernidade capitalista.

E no que diz respeito à América Latina, afirma Marta Harnecker que há uma crise

teórica de origem tripla: 1) a incapacidade histórica dos intelectuais de esquerda latino-

americanos de elaborar um pensamento próprio, partindo da realidade do próprio continente

ou país, submetidos, então, aos parâmetros europeus; 2) a incapacidade da esquerda de

realizar um estudo rigoroso sobre as experiências socialistas, isto é, sobre a causa de seus

êxitos e derrotas e; 3) por fim, a falta de um estudo crítico e rigoroso do capitalismo dos fins

do século XX, tal como Marx o fez no século XIX sobre o capitalismo da revolução

industrial. Na concepção de Harnecker, portanto,

A crise do socialismo soviético não significa – como muitos ideólogos burgueses se

têm esforçado por apregoar –, que devamos pôr necessariamente em causa as

contribuições científicas de Marx. Infelizmente, alguns setores da esquerda têm sido

excessivamente permeáveis à propaganda antimarxista do neoliberalismo, que responsabiliza indevidamente a teoria de Marx pelo que aconteceu nos países

socialistas soviéticos; no entanto, ninguém deitaria a culpa na receita culinária pelo

pudim que se queimou ao ser posto no forno demasiado quente.114

Certamente uma das principais acusações ao pensamento crítico de Marx hoje, feita

pelos antimarxistas ou ex-marxistas, é o de “determinismo histórico”, ou seja, como se

houvesse leis históricas predeterminadas que se impõem sobre os ombros dos sujeitos sociais.

Para Hinkelammert, Marx não é determinista – no sentido clássico em que se emprega esse

termo –, mas ele compara as análises de Marx com a “teoria do caos”. Se não podemos

explicar as turbulências de uma maneira determinista, também não podemos explicar a

história do mesmo modo. Há, sim, pontos de variabilidade das turbulências, como, por

exemplo, Marx o faz ao explicar a teoria dos preços. As leis históricas que se impõem nas

costas dos trabalhadores são, para Marx, tendências históricas compulsivas, forças

compulsivas que se realizam na história a partir de ações intencionais, mesmo que produzindo

efeitos “não-intencionais”. Um exemplo clássico que pode corroborar essa argumentação é a

intencionalidade de se efetivar o socialismo revolucionário num canto do mundo, mas que

resultou em resultados não intencionalmente desejados.115

De qualquer modo, a crise do marxismo ou a derrota do “socialismo” que tanto as

114 HARNECKER, Marta. Tornar possível o impossível: a esquerda no limiar do século XXI. São Paulo: Paz e

Terra, 2000. p. 321. 115 Para Harnecker, há em Marx um novo tipo de determinismo, diferente do das ciências naturais clássicas como

o determinismo mecanicista de Newton ou evolucionista de Darwin, a saber, o determinismo marxista que

permitiu compreender como funcionava o regime capitalista da sua época e para onde se encaminhava. Negar,

segundo Harnecker, o determinismo marxista é negar toda a estrutura teórica de O Capital. Cf. HARNECKER,

op. cit., p. 323-327.

156

classes dominantes não param de divulgar com certo triunfo nos seus meios de comunicação

de massa é, na verdade, nas palavras de José Aricó, a crise da ciência histórica inaugurada por

Marx, cuja responsabilidade os teóricos deixaram de desenvolver, sobretudo, para responder

às novas exigências que a realidade nos coloca. Parece que a esquerda (sindical ou partidária)

vive uma crise de identidade ideológica, uma crise programática, uma crise de quadros

teóricos. Não consegue conceber um projeto transformador que possa assumir os dados da

nova realidade mundial, pois possui um excesso de diagnóstico, mas não tem a terapêutica. O

discurso da política como a arte do possível, a realpolitik, passou a dominar setores da

esquerda latina americana, do Brasil, ou seja, tais setores consideram a impossibilidade de se

mudar as coisas, devido à desfavorável correlação de forças hoje predominante, e, portanto,

adaptam-se oportunamente à situação vigente, eximindo-se de construir uma alternativa ao

capitalismo realmente existente.

E, assim, tomando essa linha de reflexão “resignativa”, o movimento sindical optou

por agir com certa “prudência” histórica, ou melhor, escolheu a atuação da linha de menor

resistência. Sem dúvida, o poder sindical esmaeceu com o fim do “socialismo real”, sem uma

referência utópica e/ou ideológica de luta, como também face ao desenvolvimento neoliberal

que, segundo Teixeira116

, começou a ser arquitetado em 1984, por um grupo de pesquisadores

do Massachusetts Institute of Technology (MIT), para desenvolver um trabalho de pesquisa

de reestruturação do processo de decisão estratégica da indústria automobilística. O objetivo

era tornar a produção americana mais enxuta, com novos métodos e técnicas de produção para

aumentar a produtividade e fazer concorrência com os japoneses.

O fato é que existe um ceticismo em relação à política e aos políticos, consoante

Harnecker. E eu acrescentaria: como também há uma perda de credibilidade em relação às

lideranças ou aos representantes do movimento sindical. Parafraseando Harnecker117

, esta

crise da atual institucionalidade, seja dos partidos ou sindicatos de esquerda, se dá tanto pela

perda das suas capacidades de atrair e mobilizar pessoas, sobretudo o jovens, quanto pela

própria disfuncionalidade de suas estruturas, hábitos, tradições e maneiras de se fazer política

(sindical). Não há uma renovação na linguagem sindical que chame atenção dos associados

face às questões de caráter mais político; reproduz-se sempre a mesma ladainha economicista

e jurídica que restringe o processo de compreensão dos trabalhadores às lutas imediatas do

cotidiano, não mostrando os limites dessa luta na ordem capitalista, sonegando, assim, uma

compreensão maior da totalidade histórica hostil na qual eles estão inseridos.

116 Cf. TEIXEIRA, Francisco e FREDERICO, Celso. Marx no século XXI. São Paulo: Cortez, 2008. p. 118-130. 117 Cf. HARNECKER, op. cit., p. 345.

157

Essa situação tem certamente a ver com o processo de “desideologização” ou

desmarxianização da luta operária. Como diz Frederico,

O fim da experiência do “socialismo real” gerou uma intensa luta ideológica contra o

marxismo. Um coro fúnebre cantou a morte das idéias de Marx num tom cético celebrando o relativismo e a impossibilidade de se conhecer racionalmente a

realidade. O marxismo foi acusado, em diferentes registros, de ser uma teoria

holística especulativa e reducionista, incapacitada para entender a modernidade e o

surgimento de novos atores sociais; enfim, um subproduto do evolucionismo

determinista (darwinista ou hegeliano).118

Com a derrota do seu inimigo histórico – o socialismo real –, o capitalismo pôde

também suprimir muitas concessões que o Estado de bem-estar social já havia feito à classe

proletária. Como afirma Frederico, “Liberto do Gesso que impedia seus movimentos, o

capital,”119

beneficiando-se da informática, telemática, avança sobre vários países e impõe em

tempo real, a partir de uma máquina virtual, a sua lógica impessoal e abstrata. Compreender

esse jogo perverso do desenvolvimento do capital é o que a classe trabalhadora, na sua grande

maioria, não consegue, justamente porque lhe é sonegada a teoria marxista de compreensão

do movimento do capital, isto é, de ter uma formação classista. A lógica do capital não é um

fenômeno restrito à economia somente, mas determina um modo de vida individual e egoísta

que se dissemina por todos os poros da sociedade.

Resumindo então, de acordo com essas abordagens, a influência do pensamento

marxiano sobre o proletariado organizado se deu num primeiro momento de euforia, a partir

da criação da Associação Internacional dos Trabalhadores, quando Marx, no Congresso de

Bruxelas, atacou as tendências anarquistas, do socialismo utópico etc., inaugurando o

socialismo científico. Mas somente com a II Internacional é que o pensamento de Marx –

como doutrina política ou método de análise histórico – se difundiu em vários países, até

mesmo para além-mar do continente europeu. Bernstein, Kautsky, Engels, Liebknecht, Bebel,

Rosa, Lênin, Trotsky, dentre outros, desenvolveram o pensamento de Marx, seja de forma

revisionista ou revolucionária. Contudo, com a vitória do socialismo na Rússia, o marxismo

se difundiu mais ainda, sobretudo, com as publicações das obras juvenis de Marx como A

Ideologia Alemã, Manuscritos de Paris, Grundrisse, de correspondências etc., e adentrou à

Academia nos anos 1930, criando escolas teóricas divergentes etc. Infelizmente, com o fim do

“socialismo real”, o marxismo sofreu um duro golpe histórico, tanto do ponto de vista

ideológico quanto político, cuja consequência maior foi o descrédito na doutrina marxista

como guia teórico de ação prática revolucionária dos trabalhadores.

118 FREDERICO, O marxismo depois de Marx. In: TEIXEIRA e FREDERICO, op. cit., p. 187. 119 Ibid., p. 188.

158

Desse modo, a crise final do “socialismo real” ampliou mais ainda o distanciamento

entre o marxismo e o movimento sindical, pois, se houve uma crise de caráter teórico e/ou

metodológico, ou seja, uma crise de compreensão e interpretação das obras de Marx, em que

havia divergências e confrontos teóricos no final do século XIX, e durante o século XX, a

crise de caráter político-prática foi desastrosa, na medida em que se aplicou o princípio da

Identidade “A é igual a A” nas reflexões “marxistas”, antimarxistas e pós-marxistas sobre tal

acontecimento, ou seja, o “socialismo real” foi a efetivação real do pensamento de Marx ou “o

marxismo se fez realidade” na URSS.

À guisa de conclusão desta seção, podemos inferir que houve, na verdade, uma

precipitação na avaliação critico-reflexiva desse momento histórico, quer dizer, do fim do

socialismo soviético, tanto pela maioria dos partidos políticos de esquerda, sobretudo,

europeus, quanto pelo movimento sindical “socialista” de um modo geral, nas figuras de seus

dirigentes ou representantes de peso. Isso se refletiu na prática com ponderações nas lutas

reivindicativas salariais, e também como um freio teórico na luta pelo socialismo

(abandonando, assim, a “radicalidade” do discurso e da luta política), sob o argumento de que

a conjuntura do “pós-socialismo” tinha colocado a esquerda mundial no limbo da história ou

de mãos atadas e cabeças ceticamente confusas. A propaganda midiática da burguesia

internacional, em suas diferentes frações, cantarolou aos quatro cantos do planeta a vitória do

capitalismo como o regime social superior e o fim da história da humanidade. Aquilo mesmo

que decretou Francis Fukuyama, no seu livro O Fim da História e o Último Homem, ou seja,

o fim dos processos históricos caracterizados como processos de mudanças e o triunfo da

democracia liberal ocidental sobre todos os demais sistemas e ideologias concorrentes. Mas o

pior de tudo foi o despreparo teórico de muitos dirigentes políticos e sindicais, para refutar

com firmeza crítica essa tese neoliberal (capitalista), sem ter nenhuma capacidade de

persuasão contrária, no sentido de desenvolver uma contraofensiva teórico-prática face aos

inimigos históricos de classe. Eis, portanto, o novo desafio político a se realizar.

2.3 A Ofensiva (Neo)liberal e o Refluxo do Movimento Sindical

A ideologia liberal e/ou neoliberal como pensamento político e econômico se propõe

e/ou se impõe como garantia de realização das necessidades materiais e espirituais do homem,

isto é, como doutrina político-econômica resgatada para ser o remédio da crise estrutural do

capitalismo no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, logo, como paliativo da crise de

valorização do valor (do capital) no modelo de produção fordista. O liberalismo e/ou o

159

neoliberalismo como doutrina, que prega a liberdade do homem a partir da individualidade

egoísta, “inerente à natureza humana”, tem diversas faces históricas. Por exemplo, no final do

século XVII e início do século XVIII surge o liberalismo econômico como doutrina orgânica

composta de princípios fundamentais, isto é,

Ele parte do pressuposto de que a liberdade econômica é o motor da prosperidade,

que a propriedade privada tem existência por lei natural, que o papel do Estado é

intitular a posse dos homens, [que] as regulamentações são insensatas porque

impedem o proprietário de determinar o destino das posses.120

No século XVII, segundo Holanda, a França transforma-se no baluarte do pensamento

liberal, cujos protagonistas fundantes foram os fisiocratas. Para estes, a causa dos problemas

econômicos e sociais era a falta de conhecimento dos dirigentes políticos das leis naturais, ou

seja, por não compreenderem essas leis, os dirigentes políticos não podiam organizar a

produção e, assim, promoviam a desordem e a insegurança. Os fisiocratas acreditavam que a

riqueza da nação era a agricultura, logo os produtores rurais precisavam ser livres para agir de

acordo com seus próprios interesses e, decerto, a harmonia social e a prosperidade se

realizariam para toda a nação. Nasce então a filosofia do individualismo que se torna a base

para o liberalismo clássico.121

No entanto, segundo Merquior, “[...] a luta formativa do liberalismo foi a

reivindicação de direitos – religiosos, políticos e econômicos – e a tentativa de controlar o

poder político.”122

Tais direitos estão fundamentados na concepção do Direito Natural que

fundamenta os pressupostos filosóficos e políticos do liberalismo. Portanto, a concepção do

direito natural moderno está relacionada à fundação do Estado moderno. Foram Hobbes

(1588-1679) e Locke (1632-1704) que desenvolveram a via de racionalidade política (liberal)

inglesa, id est, a contratualista, na qual os indivíduos se acordam entre si para dar legitimidade

ao Estado como interlocutor dos vários interesses sociais. É por isso que, na visão dos

contratualistas, é preciso negar o estado de natureza e efetivar o Estado civil para que não haja

a “guerra de todos contra todos” (Hobbes).

De fato, o triunfo do liberalismo clássico ocorre no século XIX, sobretudo, na

Inglaterra, firmando-se como uma corrente de pensamento teórica e prática de cunho

filosófico, político e econômico:

do ponto de vista filosófico, o liberalismo se fundamenta na

120 HOLANDA, Francisco Uribam Xavier de. Do liberalismo ao neoliberalismo: o itinerário de uma cosmovisão

impenitente. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. p. 18. 121 Cf. HUNT, E. K. História do pensamento econômico apud HOLANDA, op. cit., p. 19. 122 MERQUIOR, Guilherme. O Liberalismo antigo e moderno apud HOLANDA, op. cit., p. 21.

160

concepção de liberdade, compreendida como ausência de coerção

sobre os indivíduos, não impedindo que as suas satisfações

pessoais, seus gostos e a sua livre busca de objetivos sejam

realizadas. Essas concepções podem ser encontradas em Hobbes

(contra o impedimento das realizações pessoais), Locke (o homem

livre das restrições e da violência de terceiros) e Stuart Mill (a ação

do homem limitada pela lei). Não convém, aqui, explicitar tais

proposições pormenorizadamente. Portanto, a liberdade no

pensamento liberal clássico tem suas origens na concepção do

homem individualista;

do ponto vista político, a instituição do poder político, para o

liberalismo clássico, se caracteriza pela passagem do estado de

natureza para o Estado civil (ou sociedade civil), ou seja, o

liberalismo se caracteriza a partir de uma gama de poderes políticos

organizados e pela apologia da pluralidade de opiniões e partidos

políticos. Para isso, o liberalismo estabeleceu as regras do jogo

(constituição) e da competição pacífica pela conquista do poder,

baseado num determinado mecanismo de escolha, que é o sufrágio

universal e

do ponto vista econômico, o liberalismo tem como base fundante o

direito da propriedade privada (individual) sobre os bens de

produção e consumo. Para a concepção liberal, o mercado é o

conjunto de relações sociais onde se realizam as trocas de

mercadorias, ou seja, um sistema econômico em que as

mercadorias produzidas e seus preços praticados estão sob a

determinação da oferta e da procura, e não a partir de um

planejamento.

Contudo, o itinerário do liberalismo foi uma tarefa difícil de realizar, pois teve que se

defrontar com doutrinas que limitavam seu individualismo em favor de instituições como a

Igreja ou o Estado. Por exemplo, Sismondi e Buret ficaram horrorizados com os resultados

sociais do laissez-faire, propondo a criação de um Estado estritamente dedicado aos

deserdados; como Comte que rejeitou a ideia liberal, defendendo um Estado com função de

regular a vida social; ou Coleridge e Disraeli que desenvolveram a ideia de um Estado

161

monetário que pudesse controlar os resultados da desigualdade; além deles, Keynes, que

propusera o Estado do bem-estar social.123

Mas foram os socialistas que se opuseram

radicalmente ao liberalismo enquanto ideologia burguesa que mascara as relações de

dominação de classe, compreendendo o Estado como um comitê de gerenciamento dos

interesses particulares da burguesia, como afirma Marx no Manifesto.

Se os séculos XVIII e XIX foram férteis para a prática econômica (e política) do

liberalismo clássico com o capitalismo concorrencial, o século XX foi, então, a época da

concentração de grandes lucros por parte de monopólios que se associaram ao capital

financeiro, gerando a fase imperialista do capitalismo, como afirma Lênin na sua obra

Imperialismo, fase superior do capitalismo.

Na primeira metade do século XX, ocorreram as duas grandes guerras mundiais, com

a crise do capitalismo, isto é, com a disputa imperialista pela divisão das zonas de influência

política e econômica no mundo. Período também em que o movimento operário se organizava

com maior força política, confrontando-se, desde o último quartel do século XIX, com as

forças políticas burguesas, seja de caráter monarquista, social-democrata, fascista ou nazista,

tendo com a social-democracia um confronto de menor intensidade e, de certo modo, até um

pacto de cooperação. Na verdade, a crise do liberalismo e o triunfo das políticas de

intervenção estatal – keynesiana e socialista – não foram motivos suficientes para inibir a

produção teórica liberal e nem o desenvolvimento de uma militância política a seu favor. Pelo

contrário, nos meios acadêmicos e institutos de pesquisas privados, o pensamento liberal

continuou se desenvolvendo, sobretudo, na Escola austríaca124

, fundada por Von Mises (1881-

1973), como porta-voz do pensamento neoliberal, além de seus predecessores como Carl

Marger e Eugen Von Böhm-Bawerk. A tese é: “o liberalismo não fracassou, foi apenas

abandonado sem que tenha sido posto totalmente em prática”. E sua teoria é a da utilidade

marginal do valor subjetivo que liga todos os fenômenos econômicos (simples ou complexos)

às ações dos indivíduos, cujas ações executadas são resultados de valores pessoais

subjetivos.125

Na visão dos neoliberais, não há igualdade pura na realidade; porém, os liberais do

século XVIII, influenciados pelas ideias da lei natural e do iluminismo, reivindicavam para

todos a igualdade nos direitos políticos e civis, já que partiam do pressuposto de que todos os

123 Cf. HOLANDA, op. cit., p. 37. 124 Também já existia um grupo de simpatizantes neoliberais na Universidade de Chicago que daria origem a chamada Escola de Chicago de Herry Simmos, Jacob Viener, Aaron e Milton Friedman. Mais aprofundamentos e informações, ver Francisco César Pinto da Fonseca, Imprensa e projeto liberal na transição política dos anos 80, 1994. (Texto apresentado no XVIII Encontro Anual da ANPOCS). Cf. HOLANDA, op. cit., p. 51, nota 14. 125 Cf. HOLANDA, op. cit., p.41, nota 11.

162

homens são iguais por natureza. Os neoliberais, ao contrário, acham que isso não tem

fundamento, porque não há igualdade de todos os membros da raça humana, visto que cada

ser humano é um indivíduo diferente, único e irrepetível. Para Von Mises, o capitalismo

presenteou ao mundo o melhor padrão de vida, com tecnologias avançadas e uma produção de

mercadorias em massa. Já Hayek acredita que o capitalismo torna efetivo o individualismo

liberal, reconhece as preferências e opiniões pessoais e constata que só o esforço espontâneo

dos indivíduos, livre das interferências do Estado, pode produzir uma ordem de atividades

econômicas como consequência de seu desenvolvimento individual. E para finalizar essa

discussão ideológica, a diferença entre o pensamento liberal clássico e o neoliberalismo,

conforme Franz Hinkelammert, é que o primeiro se traduz pela defesa da sociedade burguesa

contra as sociedades pré-capitalistas (sociedade feudal dos séculos XV e XVII), enquanto o

segundo defende a sociedade burguesa contra as formas socialistas existentes, inclusive de

governos social-democratas, ou seja, o neoliberalismo se insurge contra toda forma de

intervencionismo estatal e “político” na economia. Para Roberto Campos, por exemplo, “a

conjunção do liberalismo político com o liberalismo econômico é o que pode se chamar de

capitalismo democrático.”126

Feitos tais esclarecimentos de cariz político e ideológico do (neo)liberalismo, podemos

fazer agora a relação conflituosa entre neoliberalismo e movimento sindical, quer dizer, a

imposição político-ideológica neoliberal como práxis econômica no mundo do trabalho. Na

verdade, o neoliberalismo – como uma reformulação mais sofisticada do liberalismo clássico,

sempre preservando sua essência ideológica – se impôs nas duas últimas décadas do século

XX como tábua de salvação para a crise estrutural do capitalismo que se deu no começo dos

anos 1970 com a crise do modelo de produção fordista, causador da baixa taxa de

lucratividade no setor produtivo, a partir das conquistas legais pelo mundo do trabalho, ou

seja, uma proteção social maior para os trabalhadores na forma de lei. Foram vários fatores –

os políticos, econômicos e sociais – que levaram essa inserção neoliberal aos países

desenvolvidos e subdesenvolvidos, mas não de forma total e/ou absoluta na sua efetivação,

sobretudo, em países europeus como a Alemanha e França, onde havia uma legislação forte

de proteção dos direitos trabalhistas.

Na verdade, o neoliberalismo realizou sua primeira experiência político-econômica no

Chile, com o golpe militar de 1973, sob o comando do General Pinochet, estendendo, em

seguida, com a eleição de Margaret Thatcher na Inglaterra, em 1979, e de Ronald Reagan nos

126 Cf. CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. Sobre ainda o neoliberalismo,

ver também Mészáros. Prefácio à edição brasileira. In: _____. Para além do capital, p. 26.

163

Estados Unidos, em 1980. A crise do modelo de produção taylorista-fordista (com baixo

índice de produtividade em relação ao modelo de produção toyotista japonês) e a forte ligação

dos sindicatos europeus com os governos social-democratas, trabalhistas e socialistas fizeram

com que os capitalistas inovassem os meios tecnológicos de produção e os mecanismos de

organização e gestão do trabalho, para se libertar das pressões sindicais e do controle dos

trabalhadores sobre a produção. É o que podemos chamar de reestruturação produtiva

enquanto movimento “que rege a organização dos sistemas produtivos e as relações entre as

classes sociais nele envolvidas, que condicionam, por sua vez, as formas mais amplas de

institucionalização societal, de expressão das contradições inerentes à organização da

produção”127

Os neoliberais, portanto, desejavam atingir três objetivos políticos para a resolução

dos problemas de estagnação da acumulação e expansão capitalista: competitividade

internacional, orçamentos de “bem-estar” controlados e flexibilidade do mercado de trabalho.

Segundo David Coates,

O poder dos sindicatos e os direitos dos trabalhadores estão no centro de seus

interesses porque, para muitos políticos conservadores, comentaristas e acadêmicos,

a força do movimento dos trabalhadores é um impedimento fundamental para a

realização [dos três objetivos]. 128

Na verdade, o que os capitalistas desejavam (e desejam) é introduzir a ortodoxia

neoliberal sobre os sindicatos que legitime uma redução qualitativa dos direitos e

recompensas do trabalhador, à medida que reduz os salários, faz contratos temporários de

trabalho, introduzindo, assim, a desregulamentação e controle gerencial intensificado do

processo de trabalho. A ofensiva neoliberal tem como objetivo resgatar o processo de

incremento da taxa de lucratividade, diminuída com a crise do modelo de produção fordista

que trouxe como consequência uma maior proteção legal nas relações de trabalho com o

capital.

Não é uma novidade esse processo de reestruturação capitalista, pois é sabido que as

duas grandes Guerras Mundiais e a Revolução de Outubro também atualizaram a crise e a

necessidade desta reestruturação. O americanismo (taylorismo e fordismo) foi fundamental

para quebrar a resistência das organizações sindicais classistas, impondo uma nova

subjetividade ao mundo do trabalho. O objetivo era subordinar o trabalho ao controle do

127 PAGOTTO, Maria Amélia Ferracciú. Mito e realidade na automação bancária. Dissertação (Mestrado

em Sociologia), IFCH – Unicamp, 1996, p. 20, apud DIAS, Edmundo Fernandes et al. Introdução. In: A

ofensiva neoliberal, reestruturação produtiva e luta de classes. Brasília: Sindicato dos Eletricitários de

Brasília, 1996. p. 1.

128 COATES, David. Força de trabalho e competitividade Internacional: uma crítica às ortodoxias reinantes. In:

ARAÚJO, Ângela (Org.). Do corporativismo ao neoliberalismo. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 133.

164

capital com novas experiências de gestão do processo de trabalho, isto é, eliminar os tempos

mortos na produção, as famosas porosidades do sistema produtivo e com isso, eliminar a

capacidade operária de resistir e de lutar por sua autonomia classista. Isso se deu também na

União Soviética com o advento do stalinismo, no qual o novo homem socialista acabou

tornando-se um homem de ferro, um “gorila amestrado”. Era o encanto dos dois sistemas

(capitalista e socialista) pelo fetiche da técnica e da ciência como forças produtivas

fundamentais. Não foi à toa também que os governos nazi-fascistas adotaram a técnica e a

ciência como formas de dominação e/ou controle social.

Mas tomando os anos 1970-1990, a palavra de ordem da burguesia neoliberal era a de

eliminar os direitos sociais trabalhistas e suprimir o saber e a subjetividade do trabalhador, ou

seja, tudo isso efetivado pelo fetiche da técnica, a terceira revolução tecnológica. Em outras

palavras, as organizações dos trabalhadores – sindicais e políticas – passaram a aceitar o

fetiche da tecnologia e a ideia de modernidade capitalista. E aqui a flexibilização capitalista

tem como ancoragem fundamental a flexibilização das práticas e dos discursos das classes

subalternas, quer dizer, o antagonismo de classes é visto como elemento destruidor da

sociedade. O que mais é salientado é o fim da sociedade do trabalho e, portanto, o fim da

classe trabalhadora, quer dizer, os defensores do fim da sociedade do trabalho veem na

ciência e tecnologia uma possibilidade superior de resolução das contradições sociais.

Algumas perspectivas analíticas vão nessa direção ideológica do progresso técnico,

isto é, na crença do desenvolvimento das forças produtivas como forma de encerrar as

potencialidades últimas de resolução das crises e impasses históricos gerados pelo movimento

da estrutura do capital. Temos aí desde a tematização filosófica de Habermas à

problematização sociológica em Gorz, Offe, Kurz entre outros. A centralidade do trabalho

parece perder sua importância como fator de integração social para os ideólogos da sociedade

sem trabalho, logo a teoria da luta de classes perde sua validade analítico-estratégica. Nesse

sentido, cai-se num determinismo tecnológico como principal força de produção na realização

da valorização do valor, excluindo o trabalho abstrato como elemento principal deste

processo valorativo do capital. Em outras palavras, o progresso técnico, nessa perspectiva

economicista129

, torna-se o motor da história, pois o desenvolvimento autônomo das forças

produtivas é entendido como fator de determinação do movimento histórico alheio ao

processo da luta de classes.

129

O que caracteriza a análise economicista é que ela fissura o universo social em mundo econômico e mundo

jurídico-político, atribuindo ao primeiro a faculdade de determinação histórica, mecânica, prefixada e alheia, em

última instância, ao processo das lutas ideológico-político-econômicas das classes na sua realidade contraditória.

165

Ressaltemos aqui, pelo menos, duas dessas perspectivas que parecem seguir tais

passos teóricos: “o fatalismo tecnológico de Gorz” e “a crise do trabalho abstrato em Kurz”.

Ambos problematizam a abolição do trabalho como resultado da crise da sociedade do

trabalho, ou seja, a eliminação tendencial do trabalho humano como fonte última de toda

riqueza social.

André Gorz parte do pressuposto de que há um impacto do processo acelerado da

automatização de serviços e atividades produtivas no mundo do trabalho, causando

desemprego em massa, quer dizer, a automatização abole os trabalhadores e, ao mesmo

tempo, compradores potenciais. Por conta disso, a Revolução Microeletrônica tanto provoca o

decréscimo do valor do capital fixo por unidade de produto, como inaugura o decréscimo da

massa total do capital fixo posto em ação para produzir um volume rapidamente crescente de

mercadorias.130

Nesse sentido, para Gorz, há uma subversão do tempo de trabalho como

medida de valor de troca, da mesma forma que se subverte o valor de troca como medida do

valor de uso, isto é, há a superação do valor, da centralidade do trabalho e da luta de classes;

enfim, elimina-se a lógica do capital. Sendo assim, esse processo de generalização das

potencialidades da automatização das atividades produtivas e de serviços, sobretudo nos

países imperialistas, “‘aboliria’ a mais-valia na razão direta em que impossibilita a

valorização do capital (é a hipótese do ‘capitalismo morto-vivo’ de Gorz), remetendo-nos a

um só tempo, para além do capitalismo e do socialismo.”131

Daí a sua utopia da “sociedade

do tempo livre”, onde haverá a liberação do tempo, com o fim do trabalho, superando o

capitalismo sem precisar de uma revolução política. Essa apreciação unidimensional do

imperativo tecnológico de Gorz – a partir da aceitação inexorável da divisão capitalista do

trabalho – esvazia o poder da esfera do trabalho, suprimindo a apreciação de uma dimensão

política da tecnologia, quer dizer, de sua produção e execução.

Já Robert Kurz tem uma apreciação mais fatalista da crise da sociedade do trabalho a

partir de um ponto de vista totalizante. Para Kurz, o trabalho que está em crise é o trabalho

abstrato, isto é, do trabalho que produz valor de troca. Dessa forma, também teríamos como

consequência a crise contemporânea enquanto crise da valorização do capital. Para Kurz, há

uma tendência para a supressão do trabalho, e não só para o fim do trabalho abstrato que é

determinado historicamente pelo modo de produção capitalista. Ele compreende que o

trabalho perde sua centralidade nas formações sociais contemporâneas, devido ao

130 Cf. GORZ, André. Les Achemins du Paradiso apud BRAGA, Ruy. Da ideologia do progresso técnico à crise

da sociedade do trabalho. In: DIAS, Edmundo Dias et al., op. cit., p. 62. 131 BRAGA, Ruy. In: op. cit., p. 62.

166

desenvolvimento científico-tecnológico que se transformou na força produtiva direta. Em

outras palavras, por causa da automatização, o capital supera o uso da força de trabalho e,

portanto, perde sua capacidade de explorar, à medida que o progresso técnico-científico

expulsa as massas da produção imediata e do mercado, inviabilizando, assim, a integralização

do ciclo de acumulação e, portanto, inaugurando a crise ou o colapso histórico da

modernidade. A raiz da crise é, para Kurz, a abolição do trabalho; logo está superada a análise

classista e, para ele, portanto, é preciso construir uma nova racionalidade que seja capaz de

tornar a crítica social mais radical e aguda.

E então como ficam os trabalhadores nesse cenário de crise estrutural do capital

(Mészáros) em que a perspectiva de melhorias para a classe trabalhadora parece se diluir nas

contradições do sistema? Ou seja, que alternativas propõe o movimento sindical para sair

desse engodo político-ideológico (histórico) em que se meteu, ao abandonar a perspectiva da

luta classista que vislumbra a superação do capitalismo? Por que a classe trabalhadora, depois

dos pós-guerras, e durante a guerra fria, acreditou nos dois sistemas – capitalista e socialista –

como promotores de uma rica vida material e espiritual para a sociedade? No caso dos

trabalhadores das sociedades capitalistas, por que eles não se contrapuseram à ofensiva

neoliberal, permanecendo apenas na defensiva dos direitos trabalhistas conquistados e de seus

empregos? Estariam os trabalhadores esvaziados da ideologia e utopia classista que poderiam

impulsioná-los a uma prática sindical menos economicista e mais política, no sentido de lutar,

não contra a exploração do capital, mas pela sua abolição? Em outras palavras, a

subjetividade ou consciência dos trabalhadores estava (ou ainda está) permeada pela ideologia

de um capitalismo humanizante ou de um socialismo evolucionista da Segunda Internacional

para não se contrapor ao neoliberalismo?

Como afirma Lukács, para que haja a consciência de classe “para si” (sistematizada-

politizada), é necessária a teoria como guia prático da ação política; ou como diz Lênin, não

dá para deixar a classe trabalhadora abandonada ao seu espontaneísmo de luta artesanal, a

teoria tem que vir de fora, com ajuda dos intelectuais; ou, como bem disse Marx, é preciso

que a luta econômica se transforme numa luta política para realizar a emancipação humana.

Podemos inferir então que há uma relação dialética entre o avanço da reestruturação

produtiva com seu projeto neoliberal e a crise das estratégias de luta de classe, ou seja, ambas

se retroalimentam.132

Segundo Mattoso e Pastore, a crise do sindicalismo decorre dessas

transformações (acumulação flexível, reestruturação produtiva, globalização, flexibilização da

132 Cf. MARCELINO, Paula Regina Pereira. A logística da precarização. São Paulo: Expressão Popular, 2002.

167

organização e do mercado de trabalho, redução drástica da força de trabalho industrial e a

explosão do trabalho em serviços), afirmando que seus indicadores se apresentam como a

queda no número de greves, na taxa de sindicalização ou da densidade sindical

(dessindicalização) e na cobertura dos contratos coletivos firmados pelos sindicatos.133

No

caso do Brasil, conforme Boito Jr., o neoliberalismo se assenta em quatro eixos: 1) abertura

comercial com a redução das tarifas alfandegárias e remoção de obstáculos legais à

importação; 2) privatização da produção de mercadorias e serviços estatais; 3)

mercantilização da educação, saúde e previdência social e 4) a desregulamentação do mercado

de trabalho (contrato de trabalho por tempo indeterminado, trabalho por tempo parcial,

flexibilização do limite legal da jornada de trabalho, demissão temporária e desindexação dos

salários)134

. Isso quer dizer que o neoliberalismo se efetiva de forma específica nos diferentes

países, como nos países social-democratas europeus, onde se preservou certa proteção social.

Esse pacote político e econômico neoliberal veio como um tsunami ideológico,

engolindo os trabalhadores, no sentido de eliminar todo e qualquer projeto alternativo e de

resistência para garantir as condições necessárias de uma nova etapa de acumulação. Na

verdade, o objetivo é refazer o novo processo de subordinação dos trabalhadores ao capital e

garantir, assim, a reprodução das relações entre as classes em novas bases de exploração. Para

isso, os neoliberais se utilizam do Estado (burguês) para veicular sua ideologia de classe e

fundamentar sua hegemonia político-econômica. Garante-se, desse modo, a subordinação dos

trabalhadores ao capital, seja pela via do transformismo social (domesticação do conflito),

seja pela exclusão política e ideológica pura e simples. Há aí uma estratégia de desorganizar

os trabalhadores enquanto classe, reinserindo-os numa posição subalterna, desmantelando

seus instrumentos de luta e formas de organização. Fenômenos como a “dessindicalização”,

domesticação dos partidos de esquerda, a crise de legitimidade do projeto e a ideia de

socialismo parecem confirmar essas proposições.

Por conseguinte, Giovani Alves afirma que a fragmentação do circuito de valorização

do capital causada pela terceirização faz com que o suporte material do trabalhador coletivo

das lutas operárias fique fragmentado135

, a saber, mundialização financeira e produtiva

(transferência de dinheiro para mercados financeiros especulativos e de unidades produtivas

133 Cf. MATTOSO, Jorge Eduardo Levi. A desordem do trabalho. São Paulo: Scritta, 1995; PASTORE, José.

Flexibilização dos mercados de trabalho e contratação coletiva. São Paulo: LTR Editora Ltda., 1995. In:

NOGUEIRA, Arnaldo J. F. Mazzei. A liberdade desfigurada: a trajetória do sindicalismo no setor público

brasileiro. 134 Cf. BOITO JR., Armando. Neoliberalismo e corporativismo de Estado no Brasil. In: ARAÚJO, Ângela

(Org.). Op. cit., p. 61. 135 Cf. ALVES, Giovani. O novo e precário mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo.

São Paulo: Boitempo, 2000.

168

para países periféricos com mão de obra barata). Essa desarticulação favorece a pulverização

desse trabalhador coletivo e se coloca como obstáculo à construção da consciência de classe.

A fragmentação dos interesses dos trabalhadores tem um campo de fatores maior do que

apenas resultado da inserção de novas tecnologias no mundo do trabalho. Para Rodrigues,

[...] a fragmentação não vem apenas de mutações tecnológicas, mas de um conjunto

de alterações na área produtiva e no mercado de trabalho que aumentam as

diferenciações no interior das classes trabalhadoras, dificultam a unificação de suas

demandas e, consequentemente, diminuem sua coesão e solidariedade e fazem com

que os sindicatos encontrem muita dificuldade para exercer o seu papel tradicional

de representação.136

Tais fatores de debilitamento da solidariedade dos trabalhadores podem ser resumidos

assim: 1) dispersão da produção, redução da dimensão das unidades de fabricação e o

aumento da produção em pequenas empresas; 2) maior mobilidade do capital internacional; 3)

tendência em direção a acordos por empresas e locais de fabricação; 4) flexibilização das

empresas, das normas e dos regulamentos que regiam tarefas, hierarquias e carreiras dos

empregados; 5) maior heterogeneidade da força de trabalho com o aparecimento de novas

profissões, da maior presença da mulher e dos imigrantes no mundo do trabalho.

Conforme Hyman, quatro processos principais estão vinculados ao conceito de

fragmentação: a) o desvio do coletivismo para o individualismo que se reflete nas baixas taxas

de sindicalização, na menor receptividade dos empregados por políticas e normas

determinadas coletivamente; b) a polarização dentro da classe trabalhadora (sindicalizados e

não sindicalizados ou os de dentro e os de fora); c) crescente particularismo das identidades e

projetos de empresas, das ocupações e do setor econômico e industrial; d) fragmentação

dentro do sindicalismo (conflitos intrassindicais e intersindicais ou debilitamento da

autoridade das lideranças nacionais, confederações e centrais).137

Levi Mattoso considera que a debilidade do movimento sindical está ligada aos efeitos

da Terceira Revolução Industrial sobre o mundo do trabalho, ou seja, o capitalismo precisou

se reestruturar no plano político, econômico e cultural, fazendo uma verdadeira transformação

na ordem econômica mundial, das formas organizadas e das estruturas que sustentaram o

capitalismo do pós-guerra. O Estado de bem-estar social se debilitou, ou seja, a capacidade de

decisão e solução dos problemas sociais capitalistas pelo Estado provedor ficou enfraquecida,

justamente por causa da intensa desregulamentação do capitalismo que criou uma desordem

econômica e social, enfraquecendo a sociedade civil a partir da subtração de seus direitos

136 RODRIGUES, Leôncio Martins. Destino do sindicalismo. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 177. 137 Cf. RODRIGUES, L. M. Loc. cit.

169

sociais. A ação do Estado burguês capitalista centrou-se, sobretudo, na desregulamentação do

mercado de trabalho e na redução dos custos de trabalho, tendo como consequência a

internacionalização produtiva e financeira, principalmente, a primeira que causou a

fragmentação no mundo do trabalho, quando optou por países onde havia mão de obra de

baixo custo, aumentando o desemprego nos países centrais, logo intensificando a

fragmentação e a concorrência entre os próprios trabalhadores nestes países, que o

sindicalismo tradicional do século XIX tanto combatia, isto é, a concorrência entre os próprios

trabalhadores como a principal tarefa das lutas operárias (Marx e Engels).

Não só a fragmentação e/ou pulverização dos trabalhadores foram os únicos fatores de

enfraquecimento do movimento sindical, mas também o fator da dessindicalização que

começa a ocorrer a partir da década de 1970, em vários países europeus, Canadá, Estados

Unidos e Japão. Isso foi consequência da crise do modelo de produção fordista que trouxe

como resultado a queda na produtividade e na taxa de lucratividade. Leôncio Martins

Rodrigues explicitou o processo de dessindicalização em o Destino do Sindicalismo, fazendo

algumas observações interessantes e mesmo paradoxais. Senão vejamos:

os sindicatos, em vários países, estão numa situação difícil, ou seja, há uma

queda do número e da proporção de trabalhadores filiados e um declínio das

taxas de greve; portanto, dois fenômenos que apontam para o enfraquecimento

do sindicalismo como instituição e do poder sindical como ator político.

Nos países desenvolvidos nos anos 1980, o fenômeno da dessindicalização e o

futuro incerto da instituição sindical é algo consensual entre a maioria dos

pesquisadores. Entre 1980 e 1988, a sindicalização caiu de 35% para 28% no

conjunto de determinados países:138

na Europa a taxa de sindicalização

declinou de 44% para 38%; Canadá e EUA, de 26% para 18%; Austrália, Japão

e Nova Zelândia, de 35% para 30%. No caso da Grécia, Portugal e Espanha,

onde a liberdade de sindicalização chegou tardiamente, devido às ditaduras até

começo dos anos 1970, houve, ao contrário, um aumento na sindicalização em

14 milhões de novos filiados nos sindicatos.

A proporção de aposentados e desempregados no número total de trabalhadores

sindicalizados aumentou bastante, como no caso italiano, em 40%; com

exceção do Canadá, em todos os países desenvolvidos o número de

138 Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Irlanda, Itália, Holanda, Noruega, Suécia, Suíça, Reino

Unido, Austrália, Japão e Nova Zelândia. Cf. RODRIGUES, L. M., op. cit., p. 23.

170

trabalhadores inativos sindicalizados é superior a 10%, com tendência de

crescimento, já que há um crescente desemprego atingindo os trabalhadores em

atividade, logo a dessindicalização. Na média, em vários países europeus

considerados anteriormente, houve um aumento na proporção de

desempregados, aposentados (e estudantes) de 10,4% para 17,3%.

No entanto, é preciso advertir que as quedas nas taxas de sindicalização

ocorreram em países bastante diferentes, com suas específicas relações de

trabalho, legislações, sistemas políticos e organizações sindicais. Por exemplo,

nos países nórdicos (Suécia, Finlândia, Noruega e Dinamarca) que tinham (e

ainda tem) taxas elevadas e estáveis de sindicalização entre 70% e até mais de

80%.

O conjunto de mudanças políticas, econômicas, comerciais, tecnológicas e

culturais ou a chamada globalização atingiu duramente o sindicalismo, isto é, a

sua capacidade de confronto, de barganha e de paralisação, a partir da redução

de filiados nos sindicatos, devido, sobretudo, ao desemprego estrutural. Mas

vale ressaltar que não há uma correlação absoluta entre o grau de adesão dos

trabalhadores ao sindicato e os índices de greve, pois a história do sindicalismo

e das interações entre sindicalização, de um lado, e o nível e intensidade de

conflito, de outro, mostram muitas vezes que altos índices de sindicalização

estão ligados a índices baixos de ocorrência de greves. Podemos citar a Suécia,

Alemanha, Noruega e Áustria, cujos governos social-democratas

contemplaram demandas dos trabalhadores. Há variáveis que não podemos

determinar, de forma absoluta, se há uma correlação entre elas, a saber, taxa de

sindicalização, poder sindical, legislação e número de paralisações, ou seja, não

é o grande número de filiados que pode determinar o maior número de greves,

mas a consciência desses sindicalizados, sua situação legal e política na qual

estão inseridos. São vários fatores, portanto, que podem influenciar esse

processo de luta e de conflito sindical, isto é, a luta entre capital e trabalho, seja

nas figuras do Estado ou do capitalista.

Altas taxas de sindicalização não significam o aumento da força do

sindicalismo, pois a relação entre “poder sindical” e “taxas de sindicalização”

pode nos levar a uma conclusão simplória de que basta ter um aumento no

número de sindicalizados que seu poder de barganha se fortalece. Mas isso

pode ter efeitos contrários ou contraditórios: burocratização do movimento

171

sindical, lutas puramente internas pela conquista do aparelho sindical,

enfraquecimento das lideranças mais vanguardistas e fortalecimento das mais

moderadas ou atrasadas, cisões internas no sindicato etc. Assim sendo, “A

força do sindicalismo parece estar desvinculada, ou relativamente

desvinculada, da proporção e do número de trabalhadores inscritos.”139

Mas,

por outro lado, sindicatos fracos em número de filiados não têm poder de

mobilização dos trabalhadores e confronto com os patrões. Desse modo, infere-

se que o poder sindical não é resultado do aumento das taxas de sindicalização,

mas do nível de consciência política e econômica que os trabalhadores têm da

sua realidade.

Para finalizar, podemos citar então duas causas da dessindicalização: as causas

estruturais e conjunturais. Na primeira,

[...] estariam as mudanças tecnológicas e nos modos de fabricação, as

transformações no mercado de trabalho e na estratificação social, custos e

facilidades de transportes, alterações na disponibilidade de matérias-primas,

facilidades na comunicação, novas tendências de consumo; alterações na estrutura

etária dos consumidores etc.140

E na segunda, estariam modificações no campo do jogo político-partidário, das

leis trabalhistas, dos modelos das relações de trabalho, das estruturas sindicais,

das modalidades de negociação e das relações entre sindicatos, empresas e

governos.141

Mas, para Leôncio Martins Rodrigues, tal classificação estrutural

e conjuntural se complica, se levarmos em conta a questão do desemprego que

é uma classificação mais socioeconômica, como também as novas tecnologias

e a reorganização da produção.

Contudo, segundo Leôncio Martins Rodrigues142

, alguns autores apresentam diferentes

fatores da dessindicalização com pelo menos três explicações: a conjuntural, a estrutural e a

política: 1) Kane e Marsden trabalham com hipóteses ambientais (mudanças estruturais e

econômicas, globalização, heterogeneidade da mão de obra, novas tecnologias, mudanças

legais e políticas) e institucionais (estratégias empresariais que implicam em mudanças de

atividades, de produtos, de localização e de política de venda e na capacidade de influenciar

sindicatos; como também novas políticas de relações humanas para os empregados,

139 RODRIGUES, L. M., Destino do sindicalismo, p. 123. 140 Ibid., p. 164. 141 Cf. RODRIGUES, L. M., op. cit., p. 164. 142 Ver Leôncio Martins Rodrigues, Os fatores da dessindicalização. In: op. cit., p.162-163.

172

objetivando tornar desnecessário o recurso aos sindicatos); 2) Green, ao focalizar os

sindicatos britânicos, apresenta como hipóteses: mudanças externas que atuam nos sindicatos,

alteração no quadro legal das relações industriais e mudanças na composição do emprego; 3)

Metcalf considera fatores macroeconômicos como composição do emprego, legislação

governamental, reações dos empregadores face às organizações sindicais e a conduta dos

sindicatos; e, por fim, 4) Visser que coloca como fatores do declínio sindical, o desemprego, a

mecanização da agricultura, reestruturação produtiva e organizativa do setor industrial, apoio

ou hostilidade do governo para com os sindicatos, desenvolvimento do setor público,

problemas de desregulamentação do mercado de trabalho e das leis de proteção social etc.

Para Leôncio Martins Rodrigues, se as principais causas do declínio do sindicalismo

ou da dessindicalização estão relacionadas às alterações feitas na economia, na tecnologia, no

mercado de trabalho, na estrutura social, na passagem de uma sociedade industrial para outra

de serviços, enfim, relacionadas a fatores sociais e econômicos estruturais, então os

prognósticos sobre o futuro do sindicalismo parecem ser negativos, justamente devido à

difícil situação por que passa o atual sindicalismo, que tem questões profundas ainda não

resolvidas; e, por isso, o movimento sindical parece ficar impotente para reagir à ofensiva

neoliberal capitalista com políticas capazes de levá-lo de volta aos anos dourados (1950-1970)

de sua forte atuação. No entanto, Leôncio Martins Rodrigues pondera, dizendo que não

podemos cair em análises pessimistas que estão calcadas em cima de variáveis estruturais que

tendem a colocar o sindicalismo na situação de declínio institucional e não na situação de

crise. Sair dessas explicações hipotéticas estruturais e conjunturais evita-se cair numa visão

arbitrária. Para ele, seria melhor dividir os fatores que estão minando o sindicalismo em dois

grandes blocos: os de natureza socioeconômica (fenômenos estruturais de longa duração e

menos sujeitos à reversão) e os de natureza político-institucional (de mais curta duração e

mais sujeitos à intervenção dos atores do campo do trabalho: governo, empresários e

sindicatos). Um terceiro bloco seria o que inclui mudanças culturais e valorativas, pois, como

elas operam na área do sindicalismo, à medida que passam pelo jogo político e afetam as

relações de forças e alianças entre grupos de interesse, tal bloco faz parte então do rol dos

fatores institucionais e políticos.

No rol dos fatores políticos que prejudicaram o sindicalismo de esquerda no mundo,

inclui-se o colapso dos regimes comunistas da Europa Oriental na década de 1980. Não é fácil

estimar quanto o fim dos regimes socialistas do Leste Europeu teria influído no recuo do

sindicalismo de esquerda e, sobretudo, na queda das taxas de sindicalização. Uma hipótese,

segundo nos revela Leôncio Martins Rodrigues, é que “a derrocada da URSS e dos regimes da

173

Europa Oriental favoreceu a ascensão ao poder de governos adversários do poder sindical e

do sindicalismo em geral, mesmo quando os sindicatos não se identificavam com os regimes

comunistas.”143

Assim sendo, um novo contexto político se configurou a partir desses

acontecimentos, sobretudo, o contexto da Europa do Norte onde os partidos social-democratas

foram prejudicados em benefício dos partidos de direita tradicional ou de novos partidos de

centro e liberais, ou de uma nova direita; como também o contexto da Europa do Sul onde os

partidos de direita foram fortalecidos e onde houve uma reinversão de forças entre comunistas

e socialistas, tendo o primeiro maiores perdas. Na verdade, houve um processo ideológico e

propagandístico pesado, por parte da burguesia internacional, de deslegitimação das

concepções socialistas e, consequentemente, um deslocamento das preferências eleitorais para

o neoliberalismo. Daí o enfraquecimento das concepções holísticas, das mais radicais, como o

comunismo, às mais moderadas, como a social-democracia e o trabalhismo.

A discussão, portanto, mostra que a ofensiva neoliberal se deu por vários atalhos

sociais no campo da estrutura e da superestrutura da sociedade, onde se tecem as relações

sociais na forma de acordos políticos, jurídicos, econômicos e, até mesmo, culturais. Sabotar a

luta dos trabalhadores com uma propaganda anticomunista e “pró-liberal-capitalista” foi o

marco das forças conservadoras capitalistas sob vestes neoliberais. A falta de uma

compreensão dialética do processo histórico da derrocada do socialismo real e da crise

estrutural do capitalismo, desde 1970, pelos trabalhadores, a ausência de uma consciência

marxista do proletariado que ajudasse a compreender essas contradições históricas e a sua

incapacidade estratégica de reagir à ofensiva neoliberal foram, quiçá, as causas de refluxo do

movimento sindical no mundo.

Por outro lado, sabemos que o movimento sindical teve uma forte influência política

sobre os governos trabalhistas e social-democratas nos últimos 30 anos do pós-guerra,

sobretudo, nos países do norte da Europa. Sua fraca influência política hoje pode estar

relacionada ao processo de dessindicalização e à crise do processo de produção fordista ou ao

processo de reestruturação do capitalismo, mas, sobretudo, ao processo de “desideologização”

e “despolitização” dos trabalhadores, ou seja, a ausência de uma “consciência de classe para

si” do proletariado que incorporou o reformismo burguês.

Podemos dividir, assim, o sindicalismo em duas faces: como movimento social e como

instituição. O sindicalismo como movimento social mobiliza os trabalhadores politicamente,

143

RODRIGUES, L. M. Op. cit., p. 234. Cf. também MÉSZÁROS. Prefácio à edição brasileira. In: Para além

do capital, p. 23: Vale ressaltar que Stalin reduziu os sindicatos a correias de transmissão da propaganda oficial e

isentava a base da classe operária qualquer possibilidade de controle da forma política pós-capitalista.

174

ou seja, considera-os como uma “classe”, uma totalidade, em que os elementos de coesão

superam os de diferenciação. Nesse sentido, o sindicalismo como movimento social é a força

básica da transformação social que se desloca para o confronto, quer dizer, mobiliza os

trabalhadores para exercer pressão sobre o patronato e a classe política, construindo sua

consciência de classe e, assim, ampliando suas possibilidades de luta contra o capital. Já o

sindicalismo como instituição se desloca para as estruturas, para o aparelho sindical, isto é,

para o melhoramento de seu funcionamento na sociedade e no sistema político. Seria um

sindicalismo mais para a negociação do que para o confronto, mesmo que esses dois aspectos

não sejam desvinculados. Daí surge a burocracia como forma de controle de funcionários,

recursos financeiros, direitos e deveres, causas judiciais etc. Mas ponderando a reflexão, o

sindicalismo não subsiste como movimento político puro, pois é preciso ter a dimensão

institucional para garantir conquistas cotidianas para os trabalhadores face ao capital. O poder

sindical se expressa, de fato, pela força das greves, pois é por meio delas que o sindicalismo

garante sua forma como movimento social, e também como instituição que pressiona o outro

lado, a partir de ações judiciais. Dois pilares complementares.

Depois desta exposição sobre a ideologia e a prática política e econômica do

neoliberalismo como antídoto do capitalismo para a sua crise estrutural de acumulação e

algumas de suas consequências para o mundo do trabalho, focando os principais países

europeus, vejamos então, em linhas gerais, como essa ofensiva liberal ou neoliberal se deu no

Brasil a partir dos anos 1990 com os governos de Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e

Fernando Henrique Cardoso, e a reação do movimento sindical face a esse projeto

imperialista.

Sabemos antes de tudo que, no final dos anos 1970, o Brasil vivia uma grande

efervescência política com a crise da Ditadura Militar, sob o comando do general Figueiredo.

O governo militar foi forçado pelas circunstâncias a aprovar a lei da Anistia (ampla, geral e

irrestrita) em 1979, que trouxe de volta ao Brasil vários políticos exilados, como também

anistiou torturadores e assassinos militares ou paramilitares. Já havia eleição bipartidária para

o legislativo na câmara federal e no senado com a ARENA e MDB. Em 1982, restabeleceu-se

a eleição para governadores na qual o PMDB ganhou importantes estados da federação como

maior partido opositor da ditadura militar, e, a partir de 1985, eleições para prefeitos/as das

capitais. O sindicalismo do ABC paulista foi um dos principais focos de resistência ao regime

de exceção com suas greves de massas nos anos 1978-1979, sob o comando do líder sindical

Luís Inácio Lula da Silva. As greves eram de caráter combativo e de classe e tinham como

objetivo se contrapor à legislação sindical, às políticas salariais, ao corporativismo sindicalista

175

de Estado, ao peleguismo sindical, ao modelo de desenvolvimento econômico etc. Na

verdade, o novo sindicalismo, surgido no final dos anos 1970, se pautava primeiramente pela

lógica do confronto, por meio das greves, para depois ir para a lógica da negociação. Era um

sindicalismo antipatronal e de oposição ao regime militar, cuja tarefa primordial visava

organizar a base dos trabalhadores nas fábricas.

Por conseguinte, conforme Boito Jr., o neoliberalismo chegou tardiamente ao Brasil,

devido à política desenvolvimentista de caráter estatizante, herdada dos governos populistas

de 1930-1964, a saber, da era Vargas até Juscelino e Jango, que ainda tinha uma forte

influência sobre a população, por causa dos direitos protetivos legais conquistados nesse

período. Na verdade, o modelo político econômico desenvolvimentista partia do pressuposto

de que o Estado é o grande fomentador do desenvolvimento econômico do país. Isso se

refletia em todos os setores da sociedade, desde as indústrias pesadas estatais, como

siderurgias, petroquímicas, empresas de fertilizantes, até setores de serviços públicos, como

bancos estatais, telecomunicações, companhias de energia e de água e esgoto, educação e

saúde públicas, tudo por conta da responsabilidade do Estado. De outra maneira, Sebastião

Cruz – diz Boito Jr. – apresenta três fatores importantes que dificultaram a implantação de

uma política neoliberal no Brasil na segunda metade dos anos 1980: 1) uma grande frente de

oposição política ao regime militar em sua crise final e a eleição de Tancredo e Sarney para

Presidente da República; 2) o insucesso do Plano Cruzado no combate à hiperinflação e a

fissura que o plano produziu entre a burguesia industrial e os economistas

desenvolvimentistas; e 3) o impacto político e ideológico que a pressão do governo Reagan

fez pela abertura do mercado brasileiro aos produtos estrangeiros, contrariando a burguesia

industrial brasileira. Boito Jr. ainda acrescenta um quarto fator que foi a polarização da

eleição presidencial entre Collor e Lula em 1989, elegendo o primeiro como candidato para

implementar o neoliberalismo no Brasil.144

Contudo, “o maior obstáculo econômico à

transição neoliberal no Brasil foi o sucesso que o desenvolvimentismo obtivera na promoção

do crescimento e diversificação do parque industrial brasileiro.”145

Daí Boito Jr. afirmar que o

neoliberalismo é “tardio” no Brasil frente aos demais países da América Latina como

Argentina, Chile, Bolívia, Uruguai e México.

Entretanto, o neoliberalismo no Brasil se efetivou na prática, a partir das políticas de

144 Cf. BOITO JR., Armando. Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. São Paulo: Xamã Editora, 1999. p.

119. Cf. também SANTOS, Anselmo Luis dos; POCHMANN, Marcio. Custo do trabalho, políticas neoliberais e

competitividade internacional. In: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Barbosa de; MATOSO, Jorge Eduardo Levi et al.

Crise e trabalho no Brasil: modernidade ou volta ao passado? São Paulo: Scritta, 1996. p. 208-209. 145 BOITO JR., op. cit., p. 115.

176

privatização das empresas estatais e/ou públicas, da abertura descontrolada do mercado

brasileiro aos produtos estrangeiros e da desregulamentação financeira e do mercado de

trabalho, começando no governo Collor de Melo (1990-1992), mais timidamente no governo

Itamar (1993-1994) e mais avançadamente no governo de FHC (1995-2002).146

Tais medidas

acarretaram a desnacionalização, a desindustrialização e a concentração de renda e da

propriedade de terras. A desnacionalização se deu com a venda ou a fusão de empresas

brasileiras ao capital e/ou às empresas estrangeiras. Para termos uma ideia, “Em 1997, o

Sindipeças estimou que, das 3.200 indústrias de autopeças que existiam em 1991, restavam

apenas 930, devido à onda de vendas, fusões e falências no setor.”147

A desnacionalização

pôde fundir-se, em certos casos, à desindustrialização, ou seja, a desindustrialização estava

também associada ao fechamento das indústrias nacionais, devido à concorrência desleal com

produtos estrangeiros mais baratos, por causa do protecionismo nacional e/ou incentivo fiscal

de governos de outros países em relação a seus produtos exportadores. No Brasil, as indústrias

não tinham se modernizado ou reestruturado suas unidades de produção; porém, a

desindustrialização atingiu mais os setores de calçados, têxtil, vestuários, de brinquedos,

dentre outros, do que a indústria automobilística (montadoras), indústria de autopeças, a

indústria eletroeletrônica e de informática etc.148

Por conseguinte, o que marcou a onda neoliberal no Brasil foram as privatizações das

empresas estatais, principalmente durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, cujas

empresas estatais mais lucrativas foram vendidas a preço vil, como a Vale do Rio Doce. Para

Boito Jr., a política de privatização no Brasil favoreceu apenas ao imperialismo e a uma

fração da burguesia brasileira (capital monopolista), e marginalizou o pequeno e médio

capital. Nesse sentido, grandes empresas do setor bancário, industrial e da construção civil

aumentaram seus patrimônios com a política neoliberal de privatização. Esses grupos

arremataram a preço vil empresas lucrativas dos setores siderúrgicos, petroquímicos, de

fertilizantes e de mineração; e pior, com moedas podres149

e empréstimos favorecidos pelo

146 SANTOS e POCHMANN, op. cit., p. 210: “Como parte integrante da estratégia da política liberalizante, que

visa entre outras coisas, reduzir o custo do trabalho, retirar encargos sociais, flexibilizar e desregulamentar o

mercado de trabalho brasileiro, as alternativas apresentadas para a manutenção das linhas gerais do plano, frente

aos problemas colocados pela abertura comercial, claramente caminharam para a idéia de redução do Custo

Brasil.” Para Pochmann e Santos, a desregulamentação do mercado de trabalho e a retirada do marco legal dos

direitos social e trabalhista, contribuiria possivelmente para a diminuição do poder sindical. Cf. Ibidem., p. 211-

212. Vale ressaltar que Itamar assumiu a Presidência da República em 29 de dezembro de 1992. 147 Ibid., p. 48, nota 44. 148

Sobre essa questão em por menor, ver Armando Boito Jr., Desindustrialização, desnacionalização e

concentração. In: BOITO JR., op. cit., p. 41-48. 149 Aqui podemos designar como moedas podres as Obrigações do Fundo Nacional de Desenvolvimento, Títulos

177

BNDES. Segundo Boito Jr., “O preço do patrimônio das empresas privatizadas, segundo

números do governo, foi de 4,66 bilhões de dólares durante o governo Collor, 7,21 bilhões no

governo Itamar e saltou o montante de 21,15 bilhões nos primeiros dois anos e meio de

governo FHC.”150

Vale ressaltar que o capital estrangeiro entrou na privatização das empresas

de energia elétrica (Light no Rio), da Rede Ferroviária Federal, da Companhia Vale do Rio

Doce, Cosipa, CSN, Açominas, Usiminas, Acesita entre outras. Isso foi uma forma de

transformar o capital especulativo em capital produtivo como lastro do primeiro, à medida

que determinados setores produtivos, como o automotivo, estavam saturados, justamente

porque o número de consumidores no mundo para determinados produtos duráveis estava

limitado.

A Força Sindical151

, criada no início do governo Collor, apoiou decisivamente a

política neoliberal de privatização e de desregulamentação do mercado de trabalho como

banco de horas, terceirização da mão de obra e de unidades de produção, trabalho em tempo

parcial com redução salarial, câmara setorial (inclusive a CUT) etc. No governo neoliberal de

FHC, trabalhadores filiados à Força Sindical tiveram o privilégio de participar da compra de

empresas estatais, tais como a Açominas em que os funcionários receberam 20% das ações

ordinárias e 10% das ações preferenciais sem desembolsar um centavo, ou seja, as ações

seriam pagas, na proposta do sindicato ligado a esta Central Sindical, em quatro anos com

dividendos auferidos neste período. No caso da Usiminas, uma parte das ações foi doada aos

funcionários, além da empresa ter concedido um aumento salarial de até 5% aos funcionários

que quisessem adquirir ações ordinárias, cuja amortização do financiamento das ações para

ser coberta, teve aval do BNDES e Banco de Desenvolvimento de Minas. Podemos inferir,

portanto, que houve, nesse sentido, uma certa cooptação de parte dos trabalhadores para ficar

favorável à privatização. A diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, por

exemplo, aplicou um questionário para 20 mil operários metalúrgicos de sua base, cujo

resultado foi amplamente favorável à privatização e à reforma administrativa: 63% eram a

favor da privatização da Petrobras, 64% da Telesp e 68% eram favoráveis à privatização do

Banespa; além disso, 65% dos entrevistados apoiavam o fim da estabilidade do funcionalismo

púbico.152

da Dívida Externa, as debêntures, e dívidas da Siderbrás entre outras. Altos burocratas das estatais também se

tornaram sócios, criando clubes de investimentos com dinheiro dos trabalhadores. 150 BOITO JR., op. cit., p. 52. 151

Segundo Boito Jr., a Força Sindical e o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo receberam milhões de

dólares do governo Collor para edificar seu aparelho sindical. Cf. Boito Jr., op. cit., p. 185. 152 Cf. BOITO JR. Folha de São Paulo, 19 de março de 1995. In: op. cit., p. 194, nota 273.

178

Para Boito Jr., a eleição de Collor-Itamar e de FHC refletiram, de certa maneira, a

“adesão” de parte do povo brasileiro ao projeto antiestatista, isto é, neoliberal, já que a

maioria dos brasileiros sofria com a ineficiência do Estado cartorial, clientelista, sobretudo,

nas políticas públicas como saúde, educação, habitação e saneamento. E o slogan da

campanha presidencial de Collor de Mello, “o caçador de marajás”, colocava parte da

população contra os trabalhadores do serviço público, e, claro, com o apoio da grande mídia.

Acreditamos, porém, que parte da população, na verdade, não tinha sequer uma ideia clara do

projeto neoliberal. Com efeito, a visão dos brasileiros parecia ser opaca em face dessas

questões políticas e ideológicas, pois a maioria da população tinha certamente uma visão

política muito superficial, confusa, dos acontecimentos. O fato de Collor ter sido eleito foi

muito mais por medo da maioria dos eleitores ao “projeto social” de um governo Lula,

propagado pela grande imprensa burguesa, do que uma clara consciência do mesmo, já que o

muro de Berlim tinha acabado de cair com a crise do socialismo real. E em relação à eleição

de FHC, o povo, na verdade, elegeu foi o Plano Real que estancou o processo crônico

inflacionário que o Brasil vivia desde o final do regime militar com o general Figueiredo,

deteriorando os salários dos mais pobres. Entretanto, a princípio não foi fácil fazer uma

desmistificação do Plano Real para o povo, já que se passava a ideia falsa de que a moeda

nova era forte, equivalente ao dólar: uma arquitetura propagandística neoliberal construída em

torno da mística do real como moeda forte (sobrevalorização artificial).

No entanto, a resistência do movimento sindical e popular à ofensiva neoliberal,

mascarada com a fantasia do controle da inflação e de recuperação do poder de compra do

trabalhador, foi a da “linha de menor resistência”. No caso do movimento sindical, uma parte

dos trabalhadores apoiava a política neoliberal (Força Sindical), outra parte era contra, mas

era “um contra” com algumas ponderações. E a CUT aí se inclui, isto é, sua tendência

majoritária, a “Articulação Sindical”, ligada ideologicamente à central sindical francesa,

CFDT, próxima do Partido Socialista desde 1970, mas de origem católica. Conforme Boito

Jr., a CFDT, desde o Congresso de Brest em 1979 e de Metz em 1982, aprovou uma linha de

pensamento de que o sindicalismo não poderia apenas denunciar o patronato, mas reconhecer

a legitimidade do empresariado e apresentar novas propostas às empresas. Nesse sentido, a

CFDT passou a fazer a crítica à noção de “luta de classes”, às ações centralizadas (greves

gerais e passeatas de protestos) e ao stalinismo (autoritário jacobino); optou, portanto, por

uma concepção propositiva e conciliadora que pudesse valorizar as reivindicações realistas, a

179

negociação fria, a livre contratação na base e o fortalecimento da sociedade civil.153

Na verdade, para Boito Jr., “[...] as relações políticas, ideológicas e financeiras da

corrente Articulação Sindical com a social-democracia européia e com essa igreja [católica]

pesaram na guinada para o centro empreendida pelo sindicalismo cutista.”154

E para confirmar

ainda essa guinada da CUT para o centro, saindo de um sindicalismo combativo para um

sindicalismo propositivo, mais favorável à política neoliberal, a Central no V Concut de 1994

extinguiu as CUTs Regionais, ou seja, as estruturas horizontais onde correntes de esquerda

tinham grande influência e concorriam com a estrutura confederativa da CUT. Antes, no

Concut de 1991, com a crise terminal da Federação Sindical Mundial (FSM), internacional

sindical ligada ao bloco soviético, foi aprovado o início do processo de filiação à

Confederação Internacional de Organizações Sindicais Livres (CIOSL) de linha social-

democrata. Para a corrente Articulação Sindical, o movimento sindical e os partidos de

esquerda socialistas e comunistas estavam numa situação conjuntural difícil, com a crise do

socialismo real e do marxismo, pois a ofensiva neoliberal veio com toda força impor seu

projeto social – político e econômico – para substituir o projeto estatista do bloco soviético e

do Estado do bem-estar social europeu. Em outras palavras, “o movimento socialista e as

correntes à esquerda da CUT entraram em crise ideológica e perderam a iniciativa.”155

Nem o

estatismo keynesiano nem o estatismo soviético conseguiram atender mais as necessidades de

toda a sociedade que desejava ser mais humanista e civilizada, ou seja, nem o reformismo

socialdemocrata nem o “revolucionarismo” stalinista soviético conseguiram atender

plenamente as demandas sociais mais básicas.

No sindicalismo brasileiro, portanto, havia pelo menos duas posições aparentemente

oponentes, a saber, a posição da Força Sindical, favorável ao projeto dos governos neoliberais

de Collor, Itamar e FHC, e a posição da CUT, contrária ao neoliberalismo, porém ainda

defendendo genericamente um modelo de socialismo brasileiro, mesmo sem um conteúdo

teórico-prático claro. Mas ambas centrais parecem ter tido em algumas ocasiões consensos em

algumas propostas como a das câmaras setoriais e do contrato coletivo de trabalho (este

jamais concretizado), abandonado a posteriori pela CUT. É sabido que as dificuldades do

movimento sindical e sua tendência à moderação foram fenômenos de amplitude

internacional. Na maioria dos países europeus e latino-americanos, com a virada da década de

1980, o movimento sindical começava a sofrer uma fase de estagnação, a saber, queda nos

153

Cf. BOITO JR., Política neoliberal e sindicalismo no Brasil, p. 215. 154 BOITO JR., op. cit., p. 217. 155 Ibid., p. 218.

180

índices de sindicalização, diminuição da atividade grevista e fortalecimento de orientações

mais moderadas.156

Muitas explicações surgiram para responder o porquê do refluxo do movimento

sindical de esquerda no Brasil a partir dos anos 1990, especialmente o movimento sindical

cutista que nasceu em contraposição ao sindicalismo pelego da CGT do Joaquinzão no final

dos anos 1970, com as CONCLATs (1981-1983) e as cisões no espectro da esquerda

brasileira. A pergunta que se impõe é: “por que a CUT mudou?”. Duas respostas entraram em

voga: a primeira é de enfoque voluntarista, ou seja, a mudança se deu devido à ideologia e às

decisões majoritárias da CUT – Articulação Sindical – que optou pela estratégia sindical

propositiva; a segunda é de enfoque objetivista, que considerou as condições objetivas para tal

mudança na CUT, a saber, reestruturação produtiva, crise do modelo fordista de produção,

fim do socialismo etc. Na primeira variante voluntarista, encontram-se os intelectuais ligados

às organizações de esquerda do movimento operário e sindical que fazem oposição à

Articulação Sindical; na segunda, estão os intelectuais ligados a esta corrente e que são

numerosos na esquerda universitária. Se a primeira variante voluntarista acredita que é

possível voltar à estratégia sindical dos anos 1980, a segunda, ao contrário, opta pelo

sindicalismo propositivo, participativo, como estratégia possível na conjuntura neoliberal-

capitalista.

Podemos considerar como representante da primeira variante, conforme Boito Jr., o

livro CUT ontem e hoje, de Vito Giannotti e Sebastião Neto. Para eles, a CUT optou por essa

estratégia propositiva sindical por decorrência da ideologia e da ação da Articulação Sindical,

ou seja, influenciada pela social-democracia europeia, esta corrente fez de tudo para se tornar

hegemônica na CUT, inclusive mudando o estatuto a seu favor e fraudando o credenciamento

dos delegados e a apuração dos votos no Concut de 1991. São esses aspectos valorizados nas

suas análises, isto é, uma mudança por dentro da CUT para uma posição mais à direita. No

entanto, segundo Boito Jr., não podemos limitar essa questão apenas à vida própria interna da

Central, sem perceber outros enfoques externos que são as mudanças estruturais por que

passou e passa o mundo do trabalho e a conjuntura internacional. Os dois autores, na verdade,

na visão de Boito Jr., desejam restaurar a concepção de estratégia sindical dos anos de 1980,

porém, esquecem que a luta da CUT dos anos 1980 era mais uma luta contra a política de

desenvolvimento do que contra o próprio capitalismo.157

156

Ver René Mouriaux, Lê syndicalisme dans le monde. Paris: PUF, 1993. 157 Boito Jr. analisa essa questão de forma mais detalhada, a saber: o comprometimento da esquerda brasileira

(incluída aí a esquerda comunista) com diversos aspectos antipopulares da política desenvolvimentista, a

181

Já o livro Sindicalismo e política, a trajetória da CUT, de Iram Jácome Rodrigues,

representa a variante objetivista. Para ele, a CUT evoluiu positivamente, justamente porque as

condições objetivas obrigaram-na a ter uma postura mais pragmática do que ideológica. E sua

explicação baseia-se em várias mudanças: a democratização do regime político brasileiro, a

institucionalização da Central (que, para ele, é o caminho natural das organizações dos

trabalhadores em sociedades democráticas), o desemprego e o aguçamento da concorrência

entre as empresas. Estes seriam os fatores, para Iram Jácome Rodrigues, que levaram a CUT a

um sindicalismo propositivo e menos combativo e classista. Se para ele o novo sindicalismo

dos anos 1980 era uma luta dos trabalhadores pela democracia, logo nada mais natural do que

a CUT, como fruto dessa luta, ter tomado o caminho mais moderado nos anos 1990, embora

no começo o novo sindicalismo tenha relutado em assumir palavras de ordem democráticas.

Outros teóricos que apontaram as causas da moderação, ou melhor, da fragmentação

do proletariado na era neoliberal foram Alain Bihr em Da grande noite à alternativa – o

movimento operário europeu em crise, e Ricardo Antunes em Adeus ao trabalho e Os

sentidos do trabalho em que, no primeiro livro, Antunes difundiu as teses de Alain Bihr e no

segundo, as teses da crise estrutural do capital de István Mészáros. Alan Bihr em seu livro faz

uma defesa militante do anarco-sindicalismo, apresenta o processo de fragmentação do

proletariado (dividido em trabalhadores estáveis e precários) e descreve os novos métodos de

trabalho nas empresas, concluindo que o enfraquecimento do proletariado, por causa de sua

fragmentação, provocou o enfraquecimento do sentimento de pertencimento de classe no

conjunto dos proletários. Já Ricardo Antunes levanta as questões de Mészáros sobre a

impossibilidade de controle social do sistema metabólico do capital que subordina o trabalho,

a natureza, ou melhor, a sociedade como um todo, ao seu processo de reprodução e expansão

de valorização do valor de troca (capital) em detrimento do valor de uso. Segundo Antunes,

[...] a crítica de Mészáros aos instrumentos políticos de mediação existentes é

também enfática: os sindicatos e partidos, tanto nas suas experiências de tipo

socialdemocrático, quanto na variante dos partidos comunistas tradicionais, de feição stalinista ou neo-stalinista, fracassaram no intento de controlar e de superar o

capital. [...] Os indivíduos sociais, como produtores associados, somente poderão

superar o capital e seu sistema de sociometabolismo desafiando radicalmente a

divisão estrutural e hierárquica do trabalho e sua dependência ao capital em todas as

suas determinações.158

Segundo Bihr, a crise do capitalismo dos anos 1970-1980 acabou estabelecendo, por

mudança da estratégia sindical da CUT, a não adesão da CUT ao neoliberalismo e à sua política de privatização,

a defensiva do movimento sindical brasileiro etc. Cf. BOITO JR. Neoliberalismo e corporativismo de Estado no

Brasil. In: ARAÚJO, Ângela (Org.). Op. cit., p. 59-87. 158 ANTUNES, Ricardo. Apresentação. In: MÉSZÁROS, op.cit., p.19.

182

tabela, a crise do movimento sindical de esquerda. Em outras palavras, para ele, as

organizações sindicais e políticas de esquerda – que desempenharam despreocupadamente seu

papel de força supletiva do capital durante o período taylorista-fordista dos anos dourados do

capitalismo – conseguiram arrancar dos capitalistas e de seus governos algumas importantes

benesses sociais para os trabalhadores; porém, tais organizações hoje se encontram um tanto

enfraquecidas e experimentam uma grave crise de representatividade, marcada pela

diminuição do interesse da classe trabalhadora por elas, pois a queda dos efetivos, a fraqueza

do militantismo e a incapacidade de mobilizar os trabalhadores agravaram-se com o decorrer

do tempo. Na verdade,

[...] essa crise de representatividade das organizações do movimento operário [sindicatos e partidos] depende de um certo número de transformações mais gerais

que afetaram a sociedade em seu conjunto sob a influência crescente das relações

capitalistas: dissolução de identidades coletivas, ascensão do individualismo, perda

generalizada de direção, etc.159

Também se somam a isso a ausência de estratégia revolucionária e o declínio

irreversível de todas as referências ideológicas tradicionais do movimento operário, pois todos

os modelos sociopolíticos, com os quais o movimento operário se identificou no curso de sua

história, foram esquecidos, rejeitados ou caducados pelo reformismo social-democrata. Por

essa situação, o movimento operário ficou encurralado pelas transformações do capitalismo,

sobretudo, no que respeita ao mundo do trabalho.

A crise do poder sindical no mundo está associada, a nosso ver, a uma crise de

identidade ideológica, ou melhor dizendo, o processo de “desideologização” e/ou

“despolitização” das lutas institucionais ou políticas do movimento dos trabalhadores se

consolida cada vez mais, no sentido de abandonar a perspectiva de abolir a sociedade

capitalista para se construir a sociedade socialista. Dessa forma, a utopia proletária é tratada

como pura fantasia política, puro idealismo de revolucionários fanáticos. Para Maciel e Faria,

por exemplo,

Uma das facetas da crise de contra-hegemonia que o movimento social atravessa no

Brasil é a profunda despolitização e desideologização de seus militantes. A

intensificação desses fenômenos tem gerado desacumulação teórico-política e aberto

brechas para o avanço de concepções de caráter social-democratizante e até neoliberal, no interior do movimento dos trabalhadores. A perspectiva classista e

crítica à ordem burguesa, que vincula a luta dos trabalhadores à transformação social

e ao socialismo tem sido violentamente atacada.160

Nesse sentido, parece haver um militantismo alienante, na medida em que prega para

159 BIHR, Alain. Da grande noite à alternativa: o movimento operário europeu em crise. São Paulo: Boitempo,

1998. p. 12. 160 MACIEL, David e FARIA, Paulo. Crise do capital, dominação burguesa e alternativas dos trabalhadores.

In: DIAS, Edmundo Fernandes et al. Op. cit., p. 112.

183

os trabalhadores de que “não há alternativa para além do capitalismo na história da

humanidade”. Desse modo, as direções sindicais não fazem o esclarecimento científico sobre

a impossibilidade de se dar aumento salarial “justo” (pseudoequivalência de troca entre

capital e trabalho que Marx explicita em O Capital) no quadro histórico da lógica de

acumulação capitalista, ou seja, não explicam o antagonismo da relação entre salário e lucro

que impedem a troca “igual” entre trabalho e capital, em que a condição sine qua non do

incremento de um depende do rebaixamento do outro. Tais direções não o fazem, ou por

ignorância, ou por medo das consequências de um conflito inimaginável. Como bem diz Bihr,

Sem dúvida, patronatos e governos, em certo sentido, só podem se felicitar pelo

enfraquecimento global das organizações sindicais, no curso desses últimos anos,

que lhes permitiu proceder às inflexões da relação salarial necessárias ao

restabelecimento de condições de valorização do capital mais satisfatórias.161

Mas Bihr ressalta que tal enfraquecimento pode representar uma ameaça potencial

para os governos e patrões, pois sindicatos fracos ou a ausência de qualquer dirigente podem

promover explosões sociais incontroláveis, já que, do contrário, com sindicatos fortes que

enquadram os trabalhadores e com direções controladas pelas benesses capitalistas, governos

e patrões evitam um severo conflito de classes e garantem uma certa “paz social”. Não é à toa

que “A transnacionalização do capital e suas implicações institucionais representam um

[outro] fator suplementar de desestabilização do movimento operário herdado do período

fordista.”162

A experiência histórica de governos social-democratas demonstrou que qualquer tipo

de política realizada com a conquista e o exercício do poder de Estado, esbarra na

impossibilidade de se fazer uma ruptura histórica com o capitalismo de forma gradual

(socialismo evolucionista da Segunda Internacional). Os interesses de frações cada vez mais

amplas da classe dominante e os interesses nacionais são separados pela transnacionalização

do capital. Em outras palavras, o desenvolvimento transnacional do capital torna todas as

estratégias de lutas realizadas, dentro do Estado-nação, pelo movimento operário ocidental

sob governo social-democrata, inoperantes. Isso é resultado do edifício ideológico das

organizações do movimento operário ocidental que está preso a um fetichismo de Estado

(mito da onipotência gerencial estatal) e a um nacionalismo (identificação dos interesses do

proletariado com os interesses nacionais).

Se o movimento sindical se “socialdemocratizou”, isto é resultado do pacto realizado

na era fordista entre o capital e o proletariado, pois estava em moda a questão: “reforma ou

161 BIHR, op. cit., p. 233 162 Ibid., p. 117.

184

revolução?”. Com implantação do modelo taylorista-fordista de produção163

, baseado na

produção em série, em massa, de mercadorias, isto é, produção homogeneizada e

verticalizada, realizada em unidades compartimentadas e/ou separadas no mesmo local e sob

esteiras, com tempos reduzidos de produção por unidade, ficou mais acessível e barato para os

trabalhadores obterem os produtos industrializados. Isso fez com que a taxa de lucratividade e

de produtividade aumentassem, tal como aumentou o poder real de compra dos trabalhadores,

a partir dos movimentos grevistas reivindicativos, eleições de governos trabalhistas ou social-

democratas em vários países, e por causa, também, do medo da influência socialista soviética

sobre os trabalhadores do ocidente. Essa conjuntura favoreceu o campo da luta proletária para

melhorar suas condições de vida com melhores salários.

Contudo, estaria o movimento operário, com a crise dos governos social-democratas

(o fim do socialismo real), com a crise do modelo de organização fordista do trabalho e da

produção e com a crise de representatividade das lideranças, realizando um novo

compromisso ou pacto social com o capital? Ou seja, estariam os trabalhadores construindo

um modelo neossocial-democrata do movimento sindical?

Um novo compromisso entre capital e proletariado pode estar se dando no plano da

relação salarial, da manutenção dos empregos etc., pois tudo agora é flexibilização para os

capitalistas neoliberais: flexibilização do sistema financeiro, do mercado de capitais, da

abertura comercial para produtos importados, do mercado de trabalho com jornadas mais

flexíveis (part time, just time), da legislação trabalhista (direitos sociais) etc. Segundo

Ramalho e Santana,

Toda literatura sociológica reconhece que a “flexibilização da produção” trouxe

grandes problemas para os sindicatos. Alguns autores chegam a perguntar se, com a

reestruturação produtiva, a evolução dos modelos organizacionais e o

questionamento dos modos tradicionais de representação e de delegação, o

sindicalismo não teria perdido definitivamente a “sua marca” (Linhardt, 1996) ou

estaria condenado ao desaparecimento (Rodrigues, 1999).164

Contudo, os dois autores acreditam que o debate realizado por esse tipo de análise da

crise sindical apresenta divergências quanto ao modo de interpretar as mudanças na

instituição sindical, ou seja, se para alguns esse processo de transformação sinaliza um

declínio inexorável do sindicato, para outros, a crise não é de instituição de representatividade

e sim de um tipo de sindicato atingido pelas transformações na produção. Sabemos que os

163 Cf. ANTUNES, Ricardo. Os limites do taylorismo/fordismo e do compromisso social-democrático. In: Os

sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, Editorial, 2005. p.

36-37. 164 SANTANA e RAMALHO. Trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. In: SANTANA, Marco Aurélio

e RAMALHO, José Ricardo (Orgs.). Além da fábrica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 24.

185

sindicatos sempre desenvolveram uma estreita relação político-ideológica com movimentos

revolucionários, pensados como elementos fundamentais nos processos de transformação

social. Entretanto, os sindicatos não deixam de ser formas de representação de assalariados,

sobretudo, como organismos de representação de interesses setoriais, frequentemente locais e

coletivos. E isso leva, de certa maneira, a uma forma fragmentária da luta, caso não se tenha

um horizonte maior de uma luta mais universal ou unificada para os trabalhadores, a luta pela

sua emancipação de classe.

É por isso que, para Soares, o movimento sindical vive hoje sua maior crise aguda, à

medida que perde filiados com a crise do desemprego estrutural, sobretudo, no setor

industrial, mas também principalmente

[...] porque o velho sindicalismo se burocratizou, se “institucionalizou”, passando de

uma postura de conflito aberto com o capital, de enfrentamento e de luta de classes,

ao defensivismo de novo tipo, para uma postura marcadamente neocorporativista,

colaboracionista, e “concertacionista”.165

Porém, a tese da inevitabilidade da reestruturação produtiva, das inovações

tecnológicas e organizacionais e da terceirização, defendida no meio acadêmico e sindical, dá

suporte teórico à concepção que defende a política de “concertação social”, isto é, da

negociação pura e simples, em detrimento do conflito de classes, da retomada da luta de

classes. Por causa dessa concepção – diz Soares –, o sindicalismo combinou uma nova tática

que aliava firmeza e flexibilidade.

No caso brasileiro, embora os textos produzidos pelas assessorias sindicais, divulgados

por entidades de trabalhadores ligadas à CUT, indicassem nenhuma postura conformista ou de

submissão em relação às transformações ocorridas na indústria brasileira, sobretudo, no que

diz respeito à terceirização, como também nem mesmo uma postura radical que rejeitasse o

debate e a negociação, percebe-se que houve toda uma disponibilidade dos dirigentes em

querer interferir e influenciar no desenvolvimento da indústria, como também em discutir a

respeito da produção, da modernização, das inovações tecnológicas ou das formas de gestão

empresarial, como a terceirização. Noutras palavras, os textos reconheceram a necessidade de

negociação, e isto se traduz, portanto, numa colaboração entre classes (patrão e empregado),

típico do sindicalismo reformista europeu. Como bem coloca José de Lima Soares,

Os acordos com as montadoras, envolvendo o processo de reestruturação produtiva, a terceirização, a participação nos lucros das empresas, a flexibilização da jornada

de trabalho, a política das Câmaras Setoriais, o “tripartismo”; envolvendo patrões,

governo e trabalhadores, os ziguezagues do presidente da Central, Vicente Paulo da

165 SOARES, José de Lima. Para onde vai o mundo do trabalho? Crise e perspectivas do movimento sindical.

In: DIAS, Edmundo Fernandes et al. Op. cit., p.152.

186

Silva [...], frente à Reforma da Previdência, são fatos que demonstram, claramente,

que o sindicalismo cutista está bastante “desintonizado” com a base. [...] as Câmaras

Setoriais, a flexibilização da jornada etc., são a expressão maior de uma política

marcada pelo neocorporativismo, que prima pela viabilização de conquistas

trabalhistas que beneficiam apenas o setor mais organizado do movimento sindical,

melhor remunerado, mais qualificado, em detrimento da maioria dos trabalhadores.

Essa não é uma política de unidade dos trabalhadores, mas de segmentação, de

fragmentação da classe trabalhadora, inconcebível, para uma central sindical que

incorpora em seu “projeto” bandeiras de luta, como a unidade e a solidariedade de

todos os trabalhadores no mundo, a luta pelo fim da exploração e por uma sociedade

socialista, igualitária, etc.166

De forma parecida foi o que aconteceu na Inglaterra, nos governos de Margaret

Thatcher e Tony Blair, com a implementação da sistemática Kaizen na Nissan (ramo

automobilístico) e na Ikeda Hoover (fornecedora da Nissan), ou seja, o envolvimento direto

dos trabalhadores em grupos (team work ou equipes de trabalho) com o desenvolvimento de

projetos da empresa para melhorar diversas etapas do processo de trabalho. Em troca, os

trabalhadores tiveram tanto melhorias nas suas experiências de trabalho quanto na mudança

do local de serviço de ônibus. Mas, na verdade, o Kaizen permitiu à administração apropriar-

se dos conhecimentos dos trabalhadores, o tal do savoir faire (saber fazer). Seria, portanto, a

colaboração de classe, quer dizer, o típico sindicalismo de empresa mais radical, contrapondo-

se ao shop stewards (representantes sindicais de base que atuavam nas empresas) que foram

enfraquecidos, à medida que os próprios trabalhadores (dez no máximo) do chão de fábrica e

dos escritórios negociavam diretamente com o Conselho da Empresa. Segundo Antunes,

citando a pesquisa de Carol Stephenson, o peso do desemprego e do contexto econômico

depressivo no Reino Unido foram os fatores que propiciaram o envolvimento dos

trabalhadores com o projeto da empresa, como também o distanciamento deles em relação aos

sindicatos. Nesse sentido, realizou-se o consentimento operário e, como consequência, houve

o refluxo da atuação sindical.167

Já no discurso sobre a globalidade, Casanova nos alerta que, num clima ideológico em

que se enfraquecem as propostas de soberania nacional e se fortalecem as propostas de

globalidade, isto é, os direitos dos povos ficam obscurecidos face aos direitos dos indivíduos,

as “lutas de libertação” e as “lutas de classes” aparecem como fenômenos terminados, como

conceitos obsoletos. “Em vez de ‘libertação’ propõe-se a ‘inserção’ ou a ‘integração’, e, em

166 SOARES, Para onde vai o mundo do trabalho? Crise e perspectivas do movimento sindical. In: DIAS,

Edmundo Fernandes et al. Op. cit., p. 156-157. 167 Cf. ANTUNES, Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho, p. 82.

187

vez da luta social, a ‘solidariedade’ humanitária ou empresarial.”168

Numa direção semelhante vai Immanuel Wallerstein, ao dizer que o programa liberal

fez algumas concessões aos trabalhadores para evitar conflitos que ferissem a ordem

burguesa: primeiro, concedeu o sufrágio progressivamente no mundo, cuja lógica era o voto

como satisfação do desejo de participação, quer dizer, criando nos pobres um senso de

pertencimento à sociedade; segundo, tentou aumentar a renda real das classes trabalhadoras

por meio do bem-estar estatal, cujo objetivo era fazer com que os pobres ficassem contentes

por terem saído da indigência, pois seria menos custoso fazer transferências de mais-valia

para as classes baixas do que arcar com o custo de insurreições, desde que esses custos do

bem-estar dos países desenvolvidos fossem pagos pelo Terceiro Mundo, via endividamento

financeiro de seus governos; e, terceiro, criou uma identidade transnacional branco-europeia,

visando substituir as lutas de classes pelas lutas nacionais e globais sociais, fazendo com que

as “classes perigosas” (potencialmente revolucionárias) ficassem ao lado das elites. Para

Wallerstein, portanto, “Com a estagnação mundial, a derrota dos guevarismos e o recuo dos

intelectuais latino-americanos, os poderosos não mais precisavam das ditaduras militares, não

muito mais em todo caso, para frear os entusiasmos esquerdistas.”169

Pois, esse mecanismo da

força militar foi substituído pelo mecanismo de convencimento ideológico.

Para alimentar essa discussão complexa e ainda inconclusa, uma pergunta se coloca

aos pesquisadores: para onde estão indo o mundo do trabalho e, conjuntamente, o movimento

sindical, ou melhor, a sociedade em geral?

Certamente, esta questão não tem uma resposta pronta, absoluta e final. Precisamos,

primeiramente, recuperar o pensamento crítico de Marx sobre a sociedade capitalista,

abandonado por grande parte dos movimentos de esquerda no mundo, para compreender as

contradições deste sistema de reprodução sociometabólico do capital, ou, como bem diz

Mészáros, saber como o movimento anticapitalista – socialista, comunista e até mesmo

(neo)anarquista – se desenvolveu no decorrer dos dois últimos séculos XIX e XX, detectando

seus erros e acertos para não repeti-los e, por fim, saber que consciência tinham ou têm os

trabalhadores a respeito da sua condição histórica de explorados pelo capital ou se tinham ou

têm ciência de como o capitalismo vem se reinventando nos seus processos cíclicos de crise

de valorização do valor.

168 CASANOVA, Pablo González. Globalidade, neoliberalismo e democracia. In: GENTILI, Pablo (Org.).

Globalização excludente: desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial. Petrópolis: Vozes, 1999.

p. 46. 169 WALLERSTEIN, Immanuel. A reestruturação capitalista e o sistema-mundo. In: GENTILI, Pablo (Org.).

Op. cit., p. 227.

188

Entretanto, partindo do pensamento marxiano (em a Miséria da Filosofia) de que “a

classe operária deverá substituir a velha sociedade civil por uma associação que há de excluir

as classes e seus antagonismos, e o poder político propriamente dito deixará de existir”170

como expressão oficial do antagonismo da sociedade civil, o movimento operário precisa

deixar de ser setorial e parcial, sobretudo, de ter uma articulação puramente defensiva, pois o

aprofundamento da postura defensiva representou um paradoxo histórico, à medida que o

movimento sindical passou a ser o interlocutor do capital, deixando de ser objetivamente seu

adversário estrutural. A postura defensiva representou, portanto, ostensiva ou tacitamente, a

aceitação da ordem política e econômica do capitalismo como a estrutura necessária e pré-

requisito das reivindicações.171

Para Mészáros, “As limitações setoriais e defensivas do

movimento operário, tal como as conhecemos, não podem ser superadas por meio da

centralização política e sindical deste movimento.”172

Tal falha histórica é, para Mészáros,

ainda mais acentuada pela globalização transnacional do capital, para a qual o movimento

operário não tem resposta, obedecendo, assim, a uma “linha de resistência mínima” e caindo

no canto da sereia do (neo)keynesianismo. Daí a impotência do movimento sindical face à

legitimação política do capital, ou seja, o seu acomodamento ao neoliberalismo.

A nosso ver, reconfigurar analiticamente a história da produção social capitalista, a partir

de uma análise histórica, ontológica e dialética das condições sociais que resultam deste modo de

se (re)produzir socialmente, é algo imprescindível para nos recolocarmos melhor no campo da

luta anticapitalista. O capital tem um poder econômico-político-ideológico (tecnológico)

gigantesco de se impor como último sistema social que a humanidade construiu, impedindo que o

olhar humano vá para além da sua circunscrição histórica. Em outras palavras, por meio de suas

instituições sociais, como o Estado, a escola, as instituições políticas, econômicas, jurídicas e

policiais etc., o capitalismo se consolida enquanto sistema hegemônico e antagônico ao trabalho,

como sujeito social absoluto. Por mais que se tente construir uma relação pacífica com os

trabalhadores e desempregados, ao criar mecanismo de atenuação da miséria e pobreza social, o

capitalismo se choca com suas contradições sistêmicas (desemprego), quer dizer, com os conflitos

sociais e/ou os antagonismos de classe produzidos por ele mesmo. Na verdade, o capitalismo não

consegue abolir a pobreza e curar suas feridas sociais e naturais pela via institucional do Estado

ou mercado, por causa da sua incontrolável voracidade de aumentar lucro e intensificar mais ainda

a superexploração do trabalho.

170 MARX. Miséria da Filosofia apud MÉSZÁROS, Prefácio à edição brasileira. In: Para além do capital, p. 22. 171 MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 24. 172 Ibid., p. 26-27.

189

Para complementar esta reflexão, vale salientar uma discussão polêmica entre Lukács

e Habermas, colocada por alguns autores, sobre “a centralidade do trabalho” que se dá no

campo da teoria. Se para Lukács, o trabalho é a protoforma (forma originária) da práxis

social, como fundamento ontológico das relações sociais, na medida em que se desenvolve

uma relação metabólica entre o homem, a tecnologia e a natureza, para Habermas, é na esfera

comunicacional ou da intersubjetividade, quer dizer, da linguagem e da cultura (o mundo da

vida) que se dá o fundamento da práxis social. Na verdade, se para Lukács, o trabalho

constitui-se na categoria central e fundante, protoforma do ser social, que possibilita a síntese

entre teleologia e causalidade, dando origem ao ser social, ou seja, “sistema econômico” e

“mundo vivido” (cultura, vivências sociais) formam uma totalidade, para Habermas, ao

contrário, “mundo vivido” e “sistema” são dissociados, já que o mundo vivido (linguagem e

cultura) é pressuposto do sistema econômico-social. A esfera da ação comunicativa

habermasiana é o elemento fundante e estruturante do processo de sociabilização do homem.

E aí Habermas tenta desconstruir a teoria do valor em Marx, ao descartar o trabalho vivo

como a força produtiva mais importante da reprodução social, colocando no seu lugar a

ciência e tecnologia (novo fetichismo). Há, portanto, a rejeição de Habermas à teoria da

alienação, do valor e da centralidade do trabalho em Marx, este último como elemento

fundante do ser social. Pois, para ele, há uma incapacidade marxiana de se compreender o

capitalismo tardio, já que o welfare state, o keynesianismo econômico, pacificou os conflitos

sociais, pois a razão comunicacional, a autonomização da intersubjetividade, possibilitou a

construção de um diálogo social entre classes antagônicas rumo à emancipação, quer dizer,

caberá a esfera da linguagem e da razão comunicativa um sentido emancipatório.173

Ricardo Antunes, porém, desconstrói esta tese habermasiana, afirmando que o welfare

state e o keynesianismo começaram a erodir com a crise do modelo de produção taylorista-

fordista (crise da acumulação produtiva, de valorização do valor), isto é, com o processo de

reestruturação do capital nas décadas de 1980-1990. Tais soluções capitalistas de

minimização da exploração do capital sobre o trabalho caíram por terra, e a tal pacificação

dos conflitos sociais nunca existiu, mesmo depois do pós-guerra 1945. Desde o maior

movimento dos trabalhadores e estudantes em maio de 1968, tivemos também, nas décadas de

1970, 1980 e 1990, várias manifestações grevistas e políticas contra as ofensivas capitalistas.

Senão vejamos: 1) Na Inglaterra no governo Thatcher, as greves dos mineiros que durou

173 Cf. ANTUNES, Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho, p.160-161 et seq. Nos

limites deste trabalho é impossível desdobrar mais essa discussão. Cf. também TEIXEIRA, Francisco. Fim da utopia

da sociedade do trabalho. In: TEIXEIRA e FREDERICO, Marx no século XXI, p. 50-66.

190

quase um ano ou a greve dos portuários de Liverpool que durou 2 anos 3 meses e 29 dias,

além de paralisações da Vauxhall Motors (subsidiária da General Motors); 2) na França, em

novembro-dezembro de 1995, houve a maior greve dos funcionários públicos; 3) na Coreia do

Sul, a greve dos metalúrgicos em 1997, com 2 milhões de operários paralisados; 4) nos EUA,

a greve dos trabalhadores da United Parcel Service, serviços de correio (1997) e da General

Motors (1998), além das rebeliões em Los Angeles (1992); 5) na Alemanha, greves contra

cortes nos direitos sociais; 6) na Espanha, várias paralisações nacionais contra medidas de

inspiração restritiva do governo Felipe Gonzalez; 7) no Canadá, nos anos 1990, greves dos

trabalhadores da General Motors e servidores públicos; 8) por fim, a revolta de Chiapas no

México, e no Brasil, as greves parciais de trabalhadores do setor público e privado e a

resistência do MST às políticas neoliberais. Esses acontecimentos desfazem a tese da

pacificação dos conflitos sociais de Habermas, via diálogo intersubjetivo ou práxis

comunicacional, e reafirma com mais força a tese marxiana dos conflitos de classe numa

sociedade da exploração do trabalho alheio pelo capital.

Contudo, o movimento sindical de esquerda vive um recuo no seu processo de luta

cotidiana174

de menor resistência nas duas últimas décadas (1990-2000), isto é, de menor

intensidade de confronto com o capital e de uma maior negociação e parceria com o

patronato. A euforia neoliberal também sucumbiu com a crise financeira de 2008-2009, a

saber, crise do setor imobiliário americano, do crédito, da falta de liquidez e de regulação,

espalhando-se para outros países europeus.175

Na verdade, o neoliberalismo começou a dar

sinais de fragilidade no começo dos anos 1990 com a crise mexicana (dezembro de 1994 e

janeiro de 1995), a partir das consequências da abertura comercial e financeira e, portanto, dos

déficits comerciais crescentes, financiados por aportes de capitais voláteis e especulativos que

tinham antes, como objetivo, fazer a estabilização econômica com base na âncora cambial

(política monetarista). Segundo Gómez, na crise mexicana,

174 “Luta cotidiana”, no sentido do qual fala Marx, na Miséria da Filosofia, é a luta de guerrilha entre o capital e

trabalho pela defesa do salário e redução da jornada de trabalho. Cf. Las huelgas y las coaliciones de los obreros.

In:____. MARX, Karl. Miseria de la Filosofia. [s.l.]: Editorial Progresso, 1985. p. 140-141. 175 Cf. COSTA, Edmilson. A crise mundial do capitalismo e a perspectiva dos trabalhadores. Disponível em:

<http://resistir.info/crise/a_crise_do_capitalismo.htlm:>. Acesso em: 06 mar. 2011. Para este autor, esta crise é

uma crise do conjunto do capitalismo, ou seja, o sistema todo está doente e seus fundamentos estão sendo questionados pela crise mundial. Na verdade, é uma crise da superacumulação de capitais e a impossibilidade de

valorizá-los na esfera da produção. Os Estados dos países desenvolvidos socializaram esta crise com os

trabalhadores, pois injetaram até o momento mais de US$ 7 trilhões na economia para salvar especuladores.

Costa, portanto, afirma que o processo de desregulamentação nos EUA transformou seu sistema financeiro e

suas finanças internacionais num cassino das operações especulativas jamais vistas na história do capitalismo,

dado o tamanho do deslocamento entre a esfera produtiva e a órbita da circulação monetária. Enquanto o PIB

mundial está em torno de US$ 55 trilhões, o valor escritural (notional) das operações financeiras especulativas

estava em torno de US$ 683,7 trilhões. A magnitude destes números mostra a intensidade da crise e da

incapacidade do setor produtivo, que produz mais-valia, de remunerar a especulação.

191

[...] o governo dos Estados Unidos e as instituições monetárias internacionais

adiantaram nada menos que 52 bilhões de dólares – o maior empréstimo já

concedido na história do capitalismo [na época] – para evitar que a bancarrota do

estado mexicano desencadeasse uma crise financeira mundial.176

Para Chenais177

, o caráter imperfeito da crise mexicana foi dado pela fraqueza dos

mecanismos vitais para injetar liquidez financeira no sistema internacional, ou seja,

incapacidade de transformar títulos da dívida do Estado em dinheiro através dos meios

financeiros, mas, sobretudo, pela fraqueza dos mecanismos de socialização dos prejuízos.

Richard Farnetti já afirma que o fundo de investimento americano-canadense – o Friedberg

Commodity Fund, dirigido por Steve Hanke, – foi, sozinho, responsável por mais de 50% das

transações com o peso mexicano, precipitando, portanto, a crise da dívida, com todas as

consequências devastadoras que conhecemos como a fuga dos capitais especulativos.

Segundo Farnetti, os fundos de pensão e investimentos são os principais responsáveis pela

crise cambial no mundo; e o FMI fez uma estimativa de que 55% das transações nos

mercados de câmbio são realizadas por investidores norte-americanos e 14,5% por fundos

britânicos.178

Nesse sentido, de um modo geral, para Chenais, “o processo de mundialização

financeira implicou o enfraquecimento dos sistemas bancários da maioria dos países, em

função, tanto das formas que tal mundialização assumiu, quanto da transição para o regime de

finanças de mercado.”179

Também a crise financeira na Ásia, no verão de 1997, foi outro sinal de

enfraquecimento do neoliberalismo na prática, começando pela Tailândia com o colapso

financeiro de Thai Baht, quando o governo tailandês tornou o câmbio flutuante ao desatrelar o

baht do dólar, justamente para impedir a fuga de capitais. O baht tailandês teve uma queda de

50% frente ao valor que tinham seis meses antes, assim como a rupia indonésia. Depois, a

crise se espalhou pelo sudeste asiático, Hong Kong, Taiwan, Malásia, Filipinas, Coreia do

Sul, Cingapura e Japão, afundando cotações monetárias, desvalorizando mercado de ações e

precipitando a dívida pública, tornando-se, assim, a primeira crise de mercados globalizados.

Conforme Chenais180

, o ponto de partida da crise asiática foi a incapacidade desses países de

manter suas moedas atreladas ao dólar, por causa da deterioração, cada vez mais séria e veloz,

de suas balanças comerciais. Na hipótese de Chenais, a crise, que teve origem com o crash

176 GÓMEZ, José Maria. Globalização da política, mitos, realidades e dilemas. In: GENTILI, op. cit., p. 154. 177 Cf. CHENAIS, François. Mundialização financeira e vulnerabilidade sistêmica. In: CHENAIS, F. (Org.). A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998. p. 265. 178 Cf. FARNETTI, Richard. O papel dos fundos de pensão e de investimentos coletivos anglo-saxônicos no desenvolvimento das finanças globalizadas. In: CHENAIS, op. cit., p. 200-202. 179 Cf. CHENAIS, Mundialização financeira e vulnerabilidade sistêmica. In:_____. Op. cit., p. 264. 180 Cf. Ibid., p. 300.

192

tailandês, não é nem “asiática”, nem meramente “financeira”, mas possui um potencial de

propagação em escala mundial.

Do outro lado, tivemos a crise argentina que foi marcada pelo descontrole dos gastos

(desequilíbrio fiscal), pela explosão da dívida pública e pela paridade artificial do câmbio

entre o peso e o dólar (duas moedas paralelas usadas no seu mercado interno), pelo elevado

desemprego, pela crise da Rússia em 1998 e desvalorização da moeda real no Brasil em 1999.

De fato, a Argentina passou por uma recessão de quatro anos, com onze planos econômicos

consecutivos desde o governo De La Rua. Sua dívida era na época de US$ 147 bilhões sob a

responsabilidade do ministro Domingos Cavallo no governo de Carlos Menen (1989-1999),

cuja dívida era em 90% atrelada ao dólar. Tudo isso resultou no “corralito” (bloqueio dos

depósitos bancários pelo governo), devido aos excessivos saques que estavam ocorrendo nos

bancos pelos depositantes, e no pedido de moratória ao FMI etc.181

Todo esse contexto de implantação do neoliberalismo e também suas crises financeiras

bancárias fizeram com que o movimento sindical ficasse acuado na sua linha combativa e de

classe. Vários autores analisaram esse refluxo e/ou essa cooptação de parte dos movimentos

de esquerda, seja sindical ou político. Senão vejamos alguns:

Noam Chomsky, num artigo intitulado “Democracia e mercados na nova

ordem mundial”, coloca que a crise social e econômica é atribuída a

inexoráveis forças dos mercados e atribui a isso diversos fatores, sobretudo, a

automação e ao comércio internacional. Para ele, o fator automação tem como

objetivo muito mais de ter o poder sobre o controle da produção do que efetivar

o lucro ou a eficiência, quer dizer, a automação “foi projetada para

desprofissionalizar os trabalhadores e subordiná-los ao management”182

, como

forma de dominação e controle.

Pablo González Casanova afirma que as lutas de libertação e de classes estão

sendo substituídas pelas lutas dos direitos individuais, ou melhor, em vez da

libertação, propõe-se a “inserção” ou a “integração”. O empobrecimento da

população e o enfraquecimento dos trabalhadores, juntamente com o objetivo

de dominar o antigo movimento operário e de eliminar as conquistas

181 Sobre a crise e recuperação da economia argentina ver Vinícius Betsur Alvarenga Fernandes. Argentina:

Crise e Recuperação. Disponível em: <http://www.pucminas.br/imagedb/conjuntura/>. Acesso em: 06 mar.

2011. 182 Cf. CHOMSKY, Noam. Democracia e mercados na nova ordem mundial. In: GENTILI, Globalização

excludente: desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial, p. 28.

193

trabalhistas ou rurais, provocaram a ampliação de políticas repressivas; além

disso, o fantasma do desemprego e da exclusão assustava os trabalhadores e

parte da classe média para exercer qualquer tipo de combatividade.183

Immanuel Wallerstein afirma que o Estado liberal conseguiu domar as classes

perigosas no centro, ou seja, os proletários urbanos mais organizados,

sindicalizados e politizados. As lutas de classes foram substituídas pelas lutas

nacionais e globais e, dessa forma, as classes perigosas ficariam ao lado das

elites. Muitos esquerdistas de ontem viraram, segundo ele, os arautos do

mercado ou procuraram outras trilhas alternativas. Mas o maior êxito da

estratégia liberal mundial se deu a partir do momento em que os movimentos

da velha esquerda do século XIX chegaram ao poder estatal, ou seja,

comunistas na União Soviética, movimentos de libertação nacional na África e

na Ásia, social-democracia na Europa Ocidental, populista na América Latina,

porém, uma euforia enfraquecedora, à medida que eles ingressaram na máquina

do sistema histórico capitalista. Tais movimentos deixaram de ser

antissistêmicos e passaram a ser pilares do sistema capitalista sem deixar de

gargarejar uma linguagem esquerdista.184

Para Wallerstein, a derrota do

leninismo foi uma catástrofe para os poderosos, porque foi a derrota do

reformismo, isto é, “o que foi derrubado em 1989 foi exatamente a ideologia

liberal.”185

Alain Bihr assinala que o movimento operário está desnorteado com a crise

estrutural do capitalismo. Um movimento que, imbuído pela ideologia do

fetichismo de Estado e pelo reformismo social-democrata, não consegue

encontrar uma saída para sua crise, devido à negativa das classes dominantes

de renovar o compromisso social keynesiano, isto é, os benefícios e direitos

sociais adquiridos pelo proletariado no período fordista de produção. As

centrais – CFDT francesa, a CGIL italiana, a DGB alemã –, sabendo da

impossibilidade de renovar os termos do antigo compromisso social sem

modificá-los, lutam para obter novos benefícios em termos de redução do

tempo de trabalho, de participação democrática na vida da empresa, formação

profissional, direitos de supervisão sindical das orientações micro e

183 Cf. CASANOVA, Pablo González. Globalidade, neoliberalismo e democracia. In. GENTILI, op. cit., p. 58. 184 Cf. WALLERSTEIN, Immanuel. A reestruturação capitalista e o sistema-mundo. In: GENTILI, op. cit., p.

232, 236. 185 Cf. Ibid., p. 242.

194

macroeconômicas etc. Conforme Bihr, o movimento operário está solapado

pelas transformações ocorridas nos processos de produção e consumo que

resvalam para o mesmo efeito global: a fragmentação do proletariado

(qualificados, semiqualificados e desqualificados) que gera a atomização da

luta sindical mais geral. Na verdade, o desenvolvimento do desemprego e da

instabilidade dá origem a um sentimento de insegurança entre o proletariado,

agravando a concorrência entre si, aquilo que Marx, na Miséria da Filosofia,

mais combatia para a unificação do movimento proletário. É o fenômeno da

desmassificação e pulverização dos trabalhadores. Para Bihr, as organizações e

as práticas sindicais têm uma péssima reputação hoje por parte da burguesia e

dos próprios trabalhadores. A crise é de eficácia (na defesa dos próprios

interesses imediatos dos trabalhadores), de representatividade (diminuição do

poder de influência, incapacidade de mobilizar, queda no número de adeptos) e

de legitimidade (cooptação de determinados dirigentes sindicais pelo staff

administrativo burguês).186

Para Boito Jr., a classe operária sempre foi fragmentada devido ao seu grau de

qualificação, nível salarial, condições de trabalho e tamanho e poder

econômico das empresas em que trabalham diferentes setores da classe

operária, ao seu próprio corporativismo das lutas; enfim, o mito do operariado

homogêneo foi produzido pela pura observação superficial. Além disso, para

ele, o fato mais importante para se entender o refluxo e a moderação do

movimento sindical é a ofensiva neoliberal, como um fenômeno internacional,

vinculado a fatores econômicos e políticos. A diminuição da atividade grevista

está diretamente ligada a esse fato, sobretudo, ao desemprego estrutural187

,

logo a um processo de dessindicalização em massa. O que ainda salvou o

movimento sindical foram as paralisações do funcionalismo público contra as

reformas do Estado neoliberal, sobretudo, no Brasil e na França. Portanto, a

predisposição para a luta e atividade sindical caiu bastante e, nesse sentido, a

luta se restringiu a manter os direitos sociais já conquistados.

Edmundo Fernandes Dias afirma que sindicatos e partidos de esquerda se

186 Cf. BIHR, op. cit., p. 78, 79, 81, 82, 99, 100, 232 e 233. 187 Cf. Também RAMALHO e SANTANA, Trabalhadores, Sindicatos e a Nova Questão Social. In: Idem

(Orgs.). Além da fábrica, p. 26: “O desemprego tornou-se um poderoso fator de desmobilização sindical.

Embora os sindicatos venham tentando representar os interesses dos desempregados, o fato de estarem

enfraquecidos no relacionamento com as empresas acaba por torná-los completamente voltados para a defesa do

interesse daqueles que ainda têm um emprego.”

195

associaram (nem todos) ao capitalismo na busca de uma estabilidade para

garantir a “parceria antagônica”, abandonando qualquer pretensão

revolucionária, para exercer um sindicalismo de resultados. Perdeu-se,

portanto, segundo Dias, a dimensão da luta de classes como força e horizonte a

ser seguido. O movimento sindical se refluiu para o campo econômico-

corporativo, abandonando, por vez, a perspectiva do momento ético-político, id

est, revolucionário. Já para David Maciel e Paulo Faria, com a criação das

novas condições econômicas, políticas e ideológicas para uma nova etapa de

acumulação, uma nova forma de subordinação dos trabalhadores ao capital se

efetivou, ou seja, os trabalhadores foram desorganizados enquanto classe e

reinseridos numa posição subalterna. Para isso, foi necessário atomizá-los,

evitando sua unidade de classe e independência política e ideológica,

cooptando-os para o projeto de modernidade proposto pelo capital. Em outras

palavras, a despolitização e desideologização das lutas dos trabalhadores foram

formas de se domesticar o conflito social. Daí, segundo Maciel e Faria, o pós-

modernismo veio funcionar como ideologia da desreferencialização do real

(desvinculando a realidade do seu processo de produção) e da

dessubstancialização do sujeito (a perda do sujeito como agente social inserido

nas relações concretas).188

Por fim, para José Ricardo Ramalho e Marco Aurélio Santana, o sindicato

como instituição vive numa “pane”: “Pane de discurso, pane de ideal, pane de

teoria, sobretudo.”189

E continua: “Termos como ‘classe operária’,

‘proletariado’, ‘luta de classes’, que faziam sentido há dez anos, não são mais

do que uma língua escutada apenas por iniciados e cúmplices que as têm como

relíquia.”190

Já para Marco Aurélio Antonio de Oliveira, na segunda metade da

década de 1990, um dos fatores desse refluxo sindical está ligado à

pulverização das negociações coletivas, reiterada pela própria pulverização da

organização sindical, que se traduz na sua disseminação por empresas. Isso

resultou no particularismo de interesses dos trabalhadores, pois a desindexação

salarial, descentralização da negociação coletiva, aumento brutal do

desemprego e desestruturação do parque produtivo nacional puseram em xeque

188 Cf. DIAS, op. cit., p. 7-54, 79-120. 189 RAMALHO e SANTANA (Orgs.). Op. cit., p. 26. 190 RAMALHO e SANTANA (Orgs.). Loc. cit.

196

a representatividade, o poder de barganha e as estratégias das entidades

sindicais entre os diferentes segmentos de trabalhadores.191

Acreditamos, no entanto, que o movimento sindical como um todo ainda não está

falido como instituição de luta a favor da emancipação do trabalho em face do capital, isto é, a

favor da emancipação humana. Tomando emprestada a reflexão de alguns destes autores

como Huw Beynon, em seu artigo “O sindicalismo tem futuro no século XXI?”, quando ele

cita Marx e Engels do Manifesto Comunista – “Trabalhadores do mundo inteiro, uni-vos!”,

mesmo sabendo que apenas 1/8 dos trabalhadores do mundo está organizado, podemos fazer

algumas inferências: é preciso ter um sindicalismo solidário, com um horizonte de luta mais

universal, ou seja, buscar a solidariedade como meta, a partir de uma reivindicação mais

coletiva das demandas; faz-se necessário, portanto, buscar uma nova lógica, um novo

vocabulário de motivos, para haver a solidariedade entre os trabalhadores, a saber, o típico

sindicalismo comunitário, mais dinâmico, aberto às novas demandas, de escopo institucional e

informado por uma política socialista renovada; efetivar também o sindicalismo democrático,

como a melhor maneira de mobilizar os trabalhadores, quer dizer, o sindicalismo militante e

político que saiba a hora de recuar ou de enfrentar uma ofensiva capitalista; um sindicalismo

que possa agir com certa independência dos partidos, mas em colaboração com eles quando se

visa à luta universal; um sindicalismo que se associe a outros movimentos sociais com o

objetivo de ampliar sua base de atuação política em defesa dos direitos sociais; um

sindicalismo transnacional que faça uso do boicote de poder e consumo, das redes de

advocacia transnacional; que exerça poder de pressão pelos direitos humanos; e organize os

trabalhadores por locais de trabalho.

Sabemos que os sindicatos podem ter outro papel importante de atuação, conforme

Adalberto Moreira Cardoso, que é os de serem centros para construir e promover visões de

mundo, identidades sociais e ações políticas. Para ele, porém, a despolitização da economia

limita o campo da atuação sindical à salvaguarda das posições de mercados de seus

representados, quando os trabalhadores têm uma sensação de insegurança socioeconômica, e

isso reduz muito o potencial expressivo, identitário ou político de ação dos sindicatos.192

No

entanto, conforme Bihr, é preciso reconstruir os sindicatos e desenvolver uma prática sindical

como uma estratégia de contrapoder que permita aos trabalhadores reconquistar um poder

sobre suas condições sociais de existência.

191 Cf. OLIVEIRA, Marco Antonio de. Tendências recentes das negociações coletivas no Brasil. In: SANTANA

e RAMALHO (Orgs.). Op. cit., p. 290, 294. 192 CARDOSO, Adalberto Moreira. Os sindicatos e a segurança socioeconômica no Brasil. In: SANTANA e

RAMALHO (Orgs.). Op. cit., p. 265-266.

197

Nesse sentido, nas palavras de Bihr, é preciso se reconciliar com os princípios do

sindicalismo revolucionário, adaptando-os às condições atuais da luta de classes, a saber:

buscar a autonomia do sindicalismo em relação ao patronato e também ao Estado, partidos e

mediações políticas em geral, mas pondo ênfase na ação direta dos trabalhadores como único

modo de luta para garantir sua emancipação com o tempo; efetivar uma relação não dirigista

e não burocrática na organização sindical face às massas dos trabalhadores, ou seja, defender

o princípio da democracia direta no quadro da estrutura sindical federalista, apostando na

grande autonomia das organizações de base; articular ação reivindicativa imediata e a luta

revolucionária no seio do próprio sindicalismo sem recorrer às mediações externas; privilegiar

as ações e as estruturas interprofissionais e profissionais (corporativas), isto é, superar a

divisão dos status das categorias; e estimular a vontade de intervenção tanto dentro como fora

do trabalho, objetivando se encarregar das lutas referentes ao conjunto de elementos e

aspectos do proletariado. É por isso que Bihr propõe que “as organizações sindicais devem

manter uma relação não-dirigista com as massas, trabalhando para o desenvolvimento de suas

capacidades de auto-organização e de auto-reflexão.”193

Assim sendo, podemos afirmar que a formação política dada nos sindicatos tem este

importante papel teórico-educativo, no sentido de fornecer as ferramentas reflexivas e de

análises da conjuntura histórica, desenhada no processo contraditório da crise do capitalismo.

Como diz Boito Jr., se, por um lado, as correntes de esquerda sindicais (no Brasil) negam o

neoliberalismo como um corpo coerente de política econômica e social, mesmo evitando, na

maioria das vezes, sem denunciar radicalmente o capitalismo como sistema destrutivo da

humanidade e da natureza, por outro, restringem o universo de análise e da discussão política

àquilo que se passa no interior do mundo do trabalho, e pior, no mundo do trabalho dos países

desenvolvidos, ou seja, afirmam que é necessária uma estratégia para ultrapassar a ordem do

capital, mas não esclarecem o conteúdo prático dessa orientação quando aplicada ao

sindicalismo,194

justamente porque a maioria das lideranças não possui, a nosso ver, uma

visão teórica clara e, diria, científica, ou a consciência teórica, de que fala Paulo Tumolo,

como a consciência mais avançada, para verbalizar e esclarecer as contradições e

impedimentos do sistema capitalista, visando a atender as demandas imediatas dos

trabalhadores.

193 BIHR, op. cit., p, 236. 194 Cf. BOITO JR., Política neoliberal e sindicalismo no Brasil, p. 231-232.

198

CAPÍTULO 3

O MARXISMO NA FORMAÇÃO HUMANA COMO

INSTRUMENTO DE REVOLUÇÃO PARA E PELO

SOCIALISMO-COMUNISMO

199

3.1 Concepção de Formação Humana em Marx

Primeiramente, o conceito de formação humana, desde a Antiguidade, passando pela

Idade Média e Moderna, até chegar a Contemporaneidade, passou por várias ressignificações,

inclusive com uma nova ressignificação a partir do materialismo histórico-dialético. Senão

vejamos: na Grécia Antiga, a formação humana visava engendrar o homem ético-político,

espiritualmente desenvolvido para a vida política (Paideia); na Idade Medieval, o objetivo era

formar o homem ético-religioso, lapidando e refinando o espírito humano, a partir das

Sagradas Escrituras; na Modernidade, a formação era pari passu (ao mesmo tempo) de

caráter humanista e científico (Renascimento, Iluminismo e Cientificismo), isto é, de caráter

civilizador, ligado à ideia de progresso da ciência e de evolução da humanidade; e, na

Contemporaneidade, busca-se uma formação “integral” que visa formar o indivíduo para a

vida e o pleno desenvolvimento de sua personalidade.1 Em outras palavras, com o advento do

capitalismo, sob a hegemonia da burguesia, o objetivo da formação humana é disciplinar o

homem e treinar suas habilidades para o trabalho, ou melhor dizendo, fazer com que o

indivíduo enfrente as dificuldades do cotidiano social. Como bem diz Suchodolski,

Na luta contra o feudalismo, a burguesia destruiu os laços tradicionais da ordem

social feudal e formulou princípios educativos que se apoiavam no direito da natureza e da razão. O programa de ensino baseava-se na formação e educação da

consciência. O ensino burguês opunha ao ensino feudal, que adaptava o carácter e o

conteúdo dos esforços educativos ao ser social, ao “nível” do aluno, a concepção de

que o grau de educação que o indivíduo alcançava podia e devia ser determinado

pelo seu próprio progresso social. [...] E a “educação da consciência” começou a

referir-se cada vez menos à forma real da existência do homem para se converter em

algo “autônomo”, “espiritualizado” e ao mesmo tempo mais infrutuoso para a vida e

para a sociedade. Assim, o princípio da “educação da consciência” foi um princípio

progressista, revolucionário, como método de transformação da vida na luta da

burguesia contra o feudalismo, mas, no posterior desenvolvimento histórico, na

época do triunfo da burguesia, converteu-se, de modo cada vez mais acentuado, num princípio utópico e reaccionário.2

Certamente, quando o capitalismo começa a se desenvolver historicamente, os

fundamentos de uma concepção radical da formação humana são lançados, ou seja, uma

formação para o trabalho que se divide em trabalho manual e trabalho intelectual, pois

enquanto uns elaboram as formas de se produzir materialmente os bens necessários para o

1 Cf. OLINDA, Ercília M. B. O conceito de formação integral no projeto formativo moderno – aprendendo com

a experiência cearense. In: OLINDA, Ercília Maria Braga (Org.) et al. Formação humana: liberdade e

historicidade. Fortaleza: Editora UFC, 2002. p. 118 et seq. (Coleção Diálogos Intempestivos, nº 16). Cf. também

TONET, Ivo. Educação e formação humana. In: JIMENEZ, Susana; OLIVEIRA, Jorge Luís de; SANTOS,

Deribaldo (Orgs.). Marxismo, educação e luta de classes: teses e conferências do II Encontro Regional Trabalho,

Educação e Formação Humana, p. 83 et seq. 2 SUCHODOLSKI, Bogdan. Teoria marxista da educação. Lisboa: Estampa Editorial, 1976. v. III, p. 49.

200

consumo social, outros executam a atividade de produção desses bens à sociedade, muitas

vezes supérfluos, artificiais ou mesmo desnecessários. Noutras palavras, enquanto uns

definem, elaboram e dirigem o processo de produção, outros executam essa produção, isto é,

enquanto uns são planejadores, outros são executores. O pensar e o fazer têm aí sua unidade

quebrada no processo da produção capitalista; ou como diz Marx, há uma separação entre

trabalho manual e trabalho intelectual nesse processo. Desta feita, segundo Marx,

Estabelece [então] uma divisão, igualmente radical, entre os tipos de atividade e os

tipos de aprendizagem, prolongando-se em uma divisão social e técnica que interfere

no desenvolvimento do indivíduo e constitui o ponto chave dessa trama em que se

produz a exploração dos trabalhadores.3

Tal reflexão, portanto, nos leva a ter uma sucinta visão histórica de como o processo

educativo humano se desenvolveu para formar o ser humano que somos hoje e, assim, ir para

além de uma educação domesticadora, classista, que nos restringe simplesmente a ser um

homo faber ou homo labor4, construtor de uma sociedade baseada na reprodução fetichista e

ampliada do capital, sem levar em conta a formação do ser humano em todas as suas

dimensões humanas e/ou naturais: a formação integral (omnilateral).

Dessa maneira, a formação para o trabalho, com o fim de acumular riqueza, foi um

salto radical na concepção de formação humana, pois se articularam (e se articulam) espírito e

matéria, subjetividade e objetividade, interioridade e exterioridade do ser social. Se na

sociedade primitiva era um processo em que todos tinham acesso ao patrimônio material e

espiritual da comunidade, na sociedade classista a formação humana tornou-se diferenciada,

tanto para as classes dominantes quanto para as classes dominadas, ou seja, uma formação

dualista: uma para dirigentes e outra para dirigidos.5 Como diz Marx, na VI Tese sobre

Feuerbach, “o homem é o conjunto das suas relações sociais”, ou seja, o homem é um ser

historicamente social; e este é o ponto de partida do materialismo marxista: a sociedade

humana. Se quisermos compreender o tipo de formação humana que o marxismo propõe, é

preciso apreender em Marx a sua concepção de homem, ou melhor, o tipo de homem que é

preciso formar para revolucionar a história com suas estruturas sociais.

Feitas tais considerações, passemos então a expor a concepção de formação humana

em Marx. Algumas de suas obras, seja as de juventude ou intermediárias, seja as da

maturidade, estão entremeadas de comentários sobre a sua concepção de homem e de

3 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos sobre educação e ensino. São Paulo: Editora Moraes Ltda., 1992. p.

3. (Grifo nosso). 4 Sobre a diferença entre o conceito de labor e work, cf. CALVET, Thereza. A categoria de trabalho (Labor) em

Hannah Arendt. In: Ensaio 14. São Paulo: Editora Ensaio, 1985. p. 131-168. 5 Cf. GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.

201

formação humana a partir da educação. Educação aqui não só no sentido escolar formal, mas

uma educação realizada na luta do proletariado pela sua emancipação da alienação do capital.

Podemos encontrar algumas pistas teóricas, no Manifesto do Partido Comunista, nos

Manuscritos Econômico-Filosóficos, em A Ideologia Alemã, em O Capital e também na

Crítica ao Programa de Gotha. Toda essa reflexão visa justamente formar o homem para ser

instrumento de transformação social, para abolir as estruturas e superestruturas institucionais

da sociedade capitalista e construir um modelo de sociedade socialista num período de

transição para o comunismo. Daí a complexidade do conceito de formação ou educação

humana no pensamento de Marx e do materialismo histórico como um todo.

No Manifesto Comunista6, Marx e Engels fazem uma menção sobre educação, dizendo

que é preciso substituir a educação doméstica pela educação social, e acrescenta Laski: “a

educação burguesa significa subordinação aos fins da classe dominante.”7 No entanto, Marx e

Engels afirmam que a educação do burguês é também social e determinada pelas condições

sociais em que educam seus filhos, pela intervenção direta ou indireta da sociedade e por

meio da escola. O que eles desejam é transformar este tipo de educação, arrancando-a da

influência da classe dominante. Portanto, Marx e Engels consideram repugnantes as

declamações burguesas sobre educação e família, devido à ação da indústria moderna,

sobretudo, porque esta destrói os laços familiares dos trabalhadores, quando transformam as

suas crianças e mulheres em meros artigos de comércio e instrumentos de trabalho. No

entanto, Marx e Engels ressaltam algumas medidas – mesmo que pareçam insuficientes do

ponto de vista econômico, mas importantes para fazer as novas modificações na ordem

capitalista e, assim, transformar radicalmente o modo de produção –, e dentre elas temos o

ponto dez do Manifesto, a saber, a Educação gratuita para todas as crianças, em escolas

públicas, em combinação com a abolição do trabalho infantil.8

É mister enfatizar que o Manifesto é um programa de princípios e ações para orientar a

luta dos trabalhadores, quer dizer, não deixa de ser um programa de ação prática de formação

política da classe trabalhadora. Daí Laski afirmar, entre outras coisas, que o objetivo do

Manifesto “é insistir na solidariedade internacional, ser a vanguarda em cada país, com seu

profundo conhecimento teórico do movimento da história, cooperando na conquista do poder

pelos trabalhadores.”9 Daí o lema de Engels no Prefácio à Edição Alemã de 1890 no

6 Cf. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. In: LASKI, Harold J. O manifesto

comunista de Marx e Engels. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. p. 109. 7 LASKI, O manifesto comunista de Marx e Engels, p. 32. 8 Cf. Ibid., p. 113. 9 LASKI, op. cit., p. 31.

202

Manifesto Comunista: “Proletários de todos os países, uni-vos!”10

Isso denota que o Manifesto

é, desde já, um programa de formação ou educação do homem revolucionário, cujo objetivo é

[...] tornar a classe trabalhadora consciente da sua grande missão histórica, fazendo-a

compreender o caráter profundo da urgência de que os próprios Marx e Engels

estavam possuídos. Sua crítica rude pretende desmascarar os fundamentos da ordem

vigente, cuja dissimulação é uma das maneiras da civilização capitalista esconder dos trabalhadores seus verdadeiros propósitos, tornando-os seus escravos.11

Ora, como diz Laski, se a originalidade do Manifesto não reside na doutrina que

anuncia, mas na maneira de como ele se fundamenta no grande acervo literário, nem sempre

socialista, expressando de modo claro as várias doutrinas que estão no cerne do marxismo

clássico, então, sua originalidade está, sobretudo, na maneira pela qual essas doutrinas se

combinam num conjunto lógico.12

Portanto, podemos inferir que o Manifesto é um programa

formativo da educação revolucionária do proletariado que tem como finalidade preparar

teoricamente os trabalhadores para a sua luta emancipatória do domínio dos capitalistas,

enquanto classe exploradora da sua força de trabalho e da negação da sua vida humana.

Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx tem como preocupação a alienação do

homem nas suas várias formas: alienação do objeto de seu trabalho, alienação da sua atividade

de trabalho, a sua autoalienação (perda de si mesmo) e a sua alienação em relação aos outros

homens. Segundo Erich Fromm13

, Marx tinha como meta a construção de uma condição

histórica revolucionária que pudesse realizar a liberdade, a dignidade e atividade prazerosa (o

trabalho) do homem em todas suas dimensões. Marx descobriu que o ser humano é

determinado pelo seu modo de vida e que, se ele quer mudar a si mesmo, tem que

revolucionar as circunstâncias que mantêm este modo de viver. Para isso, é preciso abolir as

estruturas socioeconômicas que promovem a cupidez humana que aliena o homem da sua

condição genérica. Se o objetivo é construir historicamente uma comunidade social, onde os

homens possam desenvolver suas capacidades e/ou talentos naturais de forma livre e em

harmonia com os outros, nada mais ético do que construir a luta social que vise abolir a

estrutura econômica do capital.

Em várias partes dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx traduz a realidade

estranhada e embrutecida do homo faber nas condições sociais de produção capitalista. Na

condição de trabalhador estranhado, o homem perde sua condição de ser genérico, perde a si

mesmo enquanto humano, ou seja, o capitalista se apropria de maneira sórdida da sua vida

10 MARX e ENGELS, Manifesto do Partido Comunista, in LASKI, op. cit., p. 87. 11 LASKI, op. cit., p. 27. 12 Cf. LASKI, op. cit., p. 28. 13 Cf. FROMM, Erich. Prefácio. In: MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 13.

203

humana, do seu tempo de vida, da sua capacidade de trabalho. Uma vida que é reduzida a um

valor salarial que nada mais é do que o pagamento do seu sacrifício humano no seu tempo de

vida finito para realizar um trabalho escravo, no qual a liberdade se encontra totalmente

alienada e a serviço da cobiça capitalista.14

Neste sentido, o homem formado na sociedade

capitalista, além de ter um trabalho extenuante e morte prematura, é o homem completamente

dependente do trabalho unilateral, mecânico, ou seja, ele fica reduzido física e espiritualmente

à condição de uma máquina, transformando-se de ser humano em simples atividade abstrata.

Portanto, o homem fica obrigado “a vender-se a si mesmo e a sua humanidade”15

para

aumentar os lucros do capital. O objetivo da economia de interesses privados é, sem dúvida,

criar a miséria social, o sofrimento da maioria infeliz para fazer a máquina capitalista de moer

carne humana funcionar. Nas palavras de Marx, “O trabalho é vida e se a vida não for todos

os dias permutada por alimento depressa sofre danos e morre. Para que a vida do homem seja

uma mercadoria, deve então admitir-se a escravatura.”16

A descrição que Marx faz do homem na sociabilidade capitalista é de denúncia da

perversidade na sua forma econômica de produzir riqueza social. O capitalismo forma o

homem-mercadoria, mas a mais miserável mercadoria que se pode comprar. Como mesmo ele

afirma,

O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria

tanto mais barata, quanto maior for o número de bens que produz. Com a

valorização do mundo das coisas aumenta em proporção directa a desvalorização do

mundo dos homens.17

A partir destas proposições é que Marx faz o combate teórico, crítico, ao tipo de formação

econômico-social que oprime o homem na sua condição humana, isto é, o homem se esgota a

si mesmo, tanto mais objetos ele produz, tornando o mundo das coisas mais poderoso. Se o

capitalismo busca formar o homem alienado, estranhado, a luta emancipatória operária

socialista tem que desconstruir essa situação de perversão humana, quer dizer, denunciar a

natureza do trabalho capitalista sob a forma de alienação-estranhamento, aquilo que a

economia política procura esconder: a imediata relação de exploração entre o trabalhador e a

produção capitalista.

A intenção de Marx é resgatar o homem como ser genérico enquanto ser universal e

livre. O que constitui o caráter genérico do homem é a sua atividade vital, livre e consciente,

14 Cf. MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 104. 15

MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 107. 16 Ibid., p. 116. 17 Ibid., p. 159.

204

isto é, a vida produtiva como único meio necessário para manter sua existência física. Por isso

Marx diferencia o homem do animal quando este produz sob o domínio da necessidade física

imediata, enquanto o homem pode produzir verdadeiramente, em outra situação social, na

liberdade de tal necessidade. Para isso, é preciso entender a base física na qual a sua vida

genérica se dá, isto é, as relações sociais de produção capitalista. Tais relações configuram ou

formam o trabalhador alienado, a saber, a relação da propriedade privada com o trabalho

alienado, a relação entre as propriedades privadas, a relação entre o trabalhador e a produção

etc. e até mesmo a relação entre as forças de trabalho. Se alienação do trabalho para Marx

significa servidão humana, então o trabalhador ou o trabalho é servo do salário que nada mais

nada menos é o preço da sua reprodução enquanto trabalhador. Mas qual homem Marx

vislumbra formar? O homem livre, ativo, criativo, dono de seu tempo de vida, de seu corpo,

ou seja, o homem que é senhor de si mesmo em que uma nova modalidade de apropriação da

riqueza produzida por ele seja capaz de realizar plenamente todas suas potencialidades

humanas, isto é, sua inteligência, sua capacidade física, seu modo de ser humanamente aberto

às possibilidades ontológicas.

Para Marx, só no comunismo essa realização genérica do homem é possível, porque é

uma sociabilidade que permite a igualdade social das pessoas. Lutar para realizar a

personalidade do homem, sua individualidade não egoísta, é o objetivo final da construção de

uma sociedade comunal evoluída técnica e cientificamente. Como Marx mesmo diz, nos

Manuscritos Econômico-Filosóficos, o comunismo é a reintegração ou o retorno do homem a

si mesmo18

, ou, melhor dizendo, é a real apropriação da essência humana pelo e para o

homem ou retorno do homem a si mesmo como ser social, verdadeiramente humano, pleno e

consciente. Então a concepção de formação humana em Marx é a de um homem que se

humaniza a partir de seu desenvolvimento físico e intelectual, solucionando o conflito entre

essência e existência, objetivação e autoafirmação, liberdade e necessidade, enfim, entre

indivíduo e espécie. De acordo com Marx, “Assim, a objectivação da essência humana, tanto

do ponto de vista teórico como prático, é necessária para humanizar os sentidos do homem e

criar a sensibilidade humana correspondente a toda riqueza do ser humano e natural.”19

Dessa maneira, Marx aponta o caminho a ser percorrido quando afirma que a pobreza

do homem, na perspectiva do socialismo, tem um significado humano e, portanto, social. Ou

seja, a pobreza leva o homem a sentir como necessidade a maior riqueza que são os outros

homens. Diz Marx que “Um ser só é independente quando dono de si mesmo, e só é dono de

18 Cf. MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 192. 19 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 200.

205

si próprio quando a si mesmo deve a existência.”20

Na medida em que o ser humano vive pelo

favor de outro, ele é um ser dependente, ao qual lhe deve a manutenção de sua vida. Assim,

para Marx, o comunismo, como fase de negação da negação para o subsequente

desenvolvimento histórico, é o fator real e necessário da emancipação e reabilitação do

homem.

Segundo Marx, só um novo modo de produção e um novo objeto da produção é que

podem realizar a riqueza das necessidades humanas, isto é, efetivam-se, de fato, os novos

poderes e enriquecimento humanos. Ao contrário do socialismo e/ou comunismo, na

sociedade da propriedade privada burguesa dos meios de produção, acontece o inverso, a

saber, criam-se novas necessidades humanas na forma de sacrifício, de nova dependência,

levando a um falso prazer ou desprazer que o leva à ruína. O combate crítico ao homem

alienado revela nas reflexões de Marx que a sociedade precisa abolir o inumano no homem,

porque o sistema da propriedade privada capitalista despreza a humanidade, sentencia vidas

humanas a serem sem sentido humano. Por isso, nas palavras de Marx, se os sentimentos e as

paixões humanas são características ontológicas do seu ser (natureza) e só se afirmam quando

seu objeto se torna um objeto sensível, então os seus diversos modos de afirmação constituem

a característica da sua existência, da sua vida. Daí dizer Marx que a propriedade privada,

liberta da alienação, produz objetos essenciais para o homem como objetos de prazer e de

atividade.21

Em A Ideologia Alemã, Marx parte do princípio de que o homem é um homem social

a partir de suas ideias. Ideias que, construídas socialmente na história humana, se expressam

em linguagens e práticas sociais. Se o homem é um ser teórico e prático, então ele é um ser de

práxis social. Mas Marx declara que a base dessas ideias que permeiam a subjetividade

humana é corolário da realidade econômico-social na qual vive o homem. São, portanto, os

modos materiais de produção existencial que produzem os modos de pensar a vida, o mundo.

Toda formação de ideias a partir da realidade prática forma o homem. Tais ideias têm

ancoragem nas relações concretas. No entanto, a concepção de formação humana nessa

reflexão é baseada nas condições materiais de produção. Nessa perspectiva, o trabalho é a

categoria ontológica que forma o homem em sociedade. O homem é, de certo modo, a sua

atividade laboral, seja ela prazerosa ou não. Senão vejamos as palavras de Marx:

A maneira como os homens produzem seus meios de existência depende, antes de

mais nada, da natureza dos meios de existência já encontrados e que eles precisam

20 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 203. 21 Cf. MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 229.

206

reproduzir. Não se deve considerar esse modo de produção sob esse único ponto de

vista, ou seja, enquanto reprodução da existência física dos indivíduos. Ao contrário,

ele representa, já, um modo determinado da atividade desses indivíduos, uma

maneira determinada de manifestar sua vida, um modo de vida determinado. A

maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que eles são.

O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles

produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende,

portanto, das condições da sua produção.22

Esta é outra perspectiva da formação humana em Marx, ou seja, o homem é formado a

partir da sua produção material de existência e o fator econômico é determinante nessa

formação humana que, no caso do capitalismo, é a própria deformação do homem. Marx

distingue então o homem dos animais não só por causa da religião, linguagem, consciência

etc., mas, principalmente, porque eles produzem seus meios de existência, os instrumentos de

trabalho, a partir da sua organização corporal, ou seja, o homem produz teleologicamente,

antecipa na mente, o que vai produzir, sendo algo não instintivo como o animal que produz

sob o domínio da necessidade corporal e não o da liberdade. Assim sendo, se os indivíduos

são determinados pela sua atividade produtiva segundo um determinado modo de relações

sociais e políticas determinadas, então o homem se forma humana ou desumanamente a partir

dessa estrutura e superestrutura social determinada. Daí a base do comportamento humano, a

saber, “A produção das idéias, das representações e da consciência está, a princípio, direta e

intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens; ela é a linguagem

da vida real.”23

Para Marx, são os homens que produzem suas representações, suas ideias, a si

mesmo, mas os homens reais, atuantes que são condicionados por um determinado

desenvolvimento de suas forças produtivas e das relações que correspondem a elas.

Conforme Marx, não é a consciência que determina a existência, a sua vida, mas sim a

existência, a vida, que determina a consciência, formando o seu ser (e estar) aí no mundo. O

que forma o homem primeiramente, toda a sua existência, diz Marx em A Ideologia Alemã, é

a produção dos meios que lhe permite satisfazer as suas necessidades. O homem é, antes de

tudo, um ser de necessidades. São essas necessidades satisfeitas que dão o primeiro passo para

o homem se desenvolver humanamente, formar-se humano, ser genérico. Isso é considerado

por Marx como primeiro ato histórico. Por isso que para Marx a história tem base materialista.

E é na relação social com os outros homens que surge a sua dependência material e uma

consciência coletiva da vida. É o que Marx vai denominar de ideologia, uma consciência

social unida por determinados valores construídos historicamente. “A consciência é portanto,

22 MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 11. 23 Ibid., p. 18.

207

de início, um produto social e o será enquanto existirem homens.”24

Isto revela, sem dúvida,

como o homem se forma social e individualmente a partir de um ponto de vista materialista

(marxiano). Desta feita, a formação humana em Marx, é resultado da maneira como os

homens produzem a sua realidade (sua história) e a si mesmo, ou seja, produção para a

realização de suas necessidades primordiais, logo de sua existência humano-social.

Por conseguinte, se, para Marx, “as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os

homens fazem as circunstâncias”25

; então a formação humana é também consequência da

relação interativa entre o ser social e suas circunstâncias, seja de conservação ou de revolução

delas. Porém,

Se as circunstâncias em que este indivíduo evoluiu só lhe permitem um desenvolvimento unilateral, de uma qualidade em detrimento das outras, se estas

circunstâncias apenas lhe fornecem os elementos materiais e o tempo propícios ao

desenvolvimento desta única qualidade, este indivíduo só conseguirá alcançar um

desenvolvimento unilateral e mutilado. E não há práticas morais que possam mudar

este estado de coisas.26

Daí Marx considerar o homem como motor histórico da evolução, revolução ou da

nova evolução social, formador de uma nova situação histórica e de um novo ser social, na

qual os potenciais humanos desabrocham em muitas qualidades; como também ele considerar

a natureza como formadora do homem, isto é, o homem naturalizado, assim como também o

homem transforma a natureza em sua segunda natureza, ou seja, a natureza humanizada. Esse

salto ontológico da formação humana se dá numa relação dialética em que o princípio da

negatividade enquanto superação é a lei presente em toda a materialidade existente: lei da

contradição, lei dos contrários, lei da negação da negação.

Toda essa discussão da formação humana vai desembocar na questão da educação

revolucionária do trabalhador para mudar o tipo de formação humana presente nas formações

sociais classistas desde o fim do comunismo primitivo (das sociedades primitivas). Se a

formação ou a educação dada aos indivíduos sociais é de caráter classista, segregacionista, ou

mesmo unilateral, é preciso então, segundo Marx, demolir as estruturas sociais que dividem a

sociedade em pessoas “bem formadas” e “pessoas mal formadas” ou mesmo “nem formadas”.

E, nesse sentido, é preciso averiguar o papel do ensino escolar ou da educação para a divisão

social hierárquica e classista do trabalho para dar um passo inicial em rumo à construção da

emancipação universal dessa violação desumana.

Gramsci e Suchodolski podem nos dar uma contribuição reflexiva de como Marx e

24

MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 25. 25 Ibid., p. 36. 26 MARX e ENGELS, Textos sobre educação e ensino, p. 28.

208

Engels pensaram o processo educativo na formação dos trabalhadores, convertendo-os em

revolucionários. Destacamos Gramsci, porque foi quem deu ênfase ao papel da formação

política na constituição da massa revolucionária, pois como afirmam Oliveira e Felismino,

“Pare ele [Gramsci], o trabalho de formação política, além de contribuir para o engajamento

consciente e crítico dos militantes, deveria auxiliar a classe operária a superar uma visão

meramente econômico-corporativista.”27

Já Suchodolski extraiu dos textos de Marx e Engels

as suas concepções sobre ensino e educação, ressaltando que os dois viram o mundo de seu

tempo e o papel do homem nesse contexto histórico, como também tiveram uma visão sobre a

possibilidade de libertação e, para isso, Marx e Engels analisaram o sistema educativo na

sociedade burguesa, a partir dos fundamentos da estrutura capitalista, para depreender que é

preciso preparar o trabalhador para as tarefas históricas da revolução comunista.

3.2 A Formação Educativa como Instrumento de Revolução

Partíamos anteriormente de como o homem se forma na sociedade a partir de Marx e

Engels, ou melhor, como sua consciência e seu comportamento social são moldados a partir

da realidade objetiva em que vive cotidianamente. E de acordo com Suchodolski,

Marx sublinha que os “produtos da consciência”, em geral, são a “linguagem da vida

real”, porque estão determinados pela actividade material e pelas relações materiais

do homem [...] O homem não é aquilo que ele próprio julga ser. Também não é

como julgam os outros homens. Todas estas imagens da consciência podem ser

ilusórias. O homem é principalmente como aparece na sua vida concreta e real, social e produtiva, isto é, na sua vida diária, que decorre sob determinadas relações

de produção material. Nos homens existentes e concretos surgem os “produtos da

consciência”, a religião, a arte, a filosofia, a moral, a história, as leis, etc., que são a

expressão exacta ou desfigurada da sua vida.28

De tal modo que a vida real é resultado do desenvolvimento histórico humano que transforma,

produz, enriquece, muda e desenvolve a “essência” da humanidade, ou, melhor dizendo, a

existência da humanidade que sempre será fruto vivo da atividade humana na história. E o

trabalho, como atividade ontológica e teleológica, faz surgir o novo homem quando transmuta

a sua forma de objetivação das coisas, de relação com a natureza e de transformação do

mundo. O trabalho objetivado é a expressão do homem na sua essência, ou seja, o homem

realiza aquilo que ele antecipa na consciência, como fruto da vontade e/ou da necessidade que

ele cria ou surge diante dele. A preocupação de Marx é como o homem vai agir, a partir do

27 OLIVEIRA, Thiago Chagas e FELISMINO, Sandra Cordeiro. Formação política e consciência de classe no

jovem Gramsci (1916-1920). In: MENEZES, Ana Maria Dorta; LIMA, Claudia Gonçalves; LIMA, Kátia Regina

et al. (Orgs.). Trabalho, educação, estado e a crítica marxista. Fortaleza: Edições UFC, 2009. p. 62. 28 SUCHODOLSKI, Teoria marxista da educação, v. III, p. 43-44.

209

momento em que ele descobre as determinidades históricas, de caráter político, econômico e

social, que o desumanizam no dia a dia da sua existência social.

Detectado como se dá o processo de dominação do homem pelo homem, as estruturas

que garantem essa forma de servidão ou escravização humana, então que ações insurgentes

poderiam ser realizadas para abolir esse estado coisas que perverte a natureza humana? Uma

resposta simples é dada: formar o homem, mas formar o homem revolucionário, promotor das

grandes transformações radicais na história. Para isso, a educação revolucionária é o ponto de

partida, seja ela dada em locus específico ou em situações de movimento, quer dizer, se nos

sindicatos, nas associações, nas escolas, nos partidos políticos ou nas manifestações de rua;

enfim, como tornar a teoria revolucionária consciente e ativa na história. Como nos alerta

Lênin, sem teoria revolucionária não há consciência revolucionária, sem consciência

revolucionária não há ação revolucionária e sem ação revolucionária não há revolução (nova

evolução social).

Certamente esse é o maior desafio da classe revolucionária chamada proletariado,

conforme Marx. Sujeito histórico fundamental para a superação da fase capitalista de

produção. Mas se há uma formação humana nos moldes da cultura burguesa, como desfazer

esse modelo burguês de (de)formação humana e construir um outro que forme o homem livre,

ativo, criativo e omnilateral? A partir de Marx e Engels, Gramsci e Suchodolski aprofundam

esta questão da formação humana no campo educacional, justamente para formar o sujeito

revolucionário, emancipador. Senão vejamos:

a) Gramsci começa a discussão da educação e/ou formação intelectual dos

trabalhadores, afirmando que todo homem é filósofo, é intelectual, na medida em que pensa

sua vida e sua realidade. Entretanto, essa visão gramsciniana de que o homem possui o

intelecto e a ação para se objetivar na vida não é suficiente para compreender como essa vida

que está aí dada é uma vida infeliz para ele enquanto sujeito explorado no trabalho. Por isso

Gramsci pergunta: se “Os intelectuais constituem um grupo social autônomo e independente,

ou cada grupo possui sua própria categoria especializada de intelectuais?”29

Para Gramsci, a

questão é complexa devido a muitas maneiras de como as diversas categorias de intelectuais

se formaram no processo histórico, a saber,

Cada grupo social “essencial”, contudo, surgindo na história a partir da estrutura

econômica anterior e como expressão do desenvolvimento desta estrutura, encontrou

– pelo menos na história que se desenrolou até aos nossos dias – categorias

intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma

29 GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

p. 3.

210

continuidade histórica que não fora interrompida nem mesmo pelas mais

complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas.30

No entanto, Gramsci faz uma ressalva, afirmando que “Todos os homens são

intelectuais, poder-se-ia dizer então: mas nem todos os homens desempenham na sociedade a

função de intelectuais.”31

Essa distinção entre intelectuais e não intelectuais significa apenas

que, na realidade, cada função social da categoria profissional tem um peso intelectual

específico, isto é, se no esforço muscular-nervoso ou se na elaboração intelectual mesma. Em

toda atividade humana, diz Gramsci, não se pode excluir a atividade intelectual, ou melhor

dizendo, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Noutras palavras, ele diz que

todo homem, além da sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual, seja ela filosófica,

artística etc., porque todo homem participa de uma concepção de mundo, possui uma conduta

moral consciente e, nesse sentido, pode contribuir para manter ou mudar a concepção de

mundo, para promover novas maneiras de se pensar.

Sabemos com Gramsci que a escola é o locus para formar intelectuais de diversos

níveis. Entretanto, há o dualismo escolar: a escola clássico-humanista que visa a desenvolver

em cada pessoa a cultura geral diferenciada, a saber, a escola que forma o indivíduo para

poder pensar e saber se orientar na vida; e a escola técnico-profissional, destinada às classes

instrumentais que servem como mão de obra manual. É a tal divisão do trabalho (em Marx)

em trabalho manual e trabalho intelectual na sociedade burguesa. Dessa maneira, há uma

divisão social hierárquica do trabalho em que as classes dominantes têm acesso ao ensino

científico-humanista e as classes dominadas, ao ensino técnico-profissional. Para Gramsci, a

escola torna-se assim uma reprodutora da divisão social de classes e, por isso, é preciso que

ela se transforme numa escola unitária, tendo cultura geral, ensino politécnico e exercícios

físicos.

Fazendo uma pequena digressão, segundo Schlesener32

, Gramsci compreendia

claramente que o Estado tinha essa função “educadora”, atuando como movimento para se

criar uma nova civilização, um novo tipo de homem e de “cidadão”. Portanto, como

efetivador de um projeto político e econômico, o Estado tinha este objetivo educativo de

adequar as pessoas às formas de produção social de uma época ou de uma sociedade, ou seja,

de formar o homem para um tipo de organização social. Contudo, se o Estado exerce a função

de implementar o projeto político e econômico de uma classe hegemônica na sociedade e

30 GRAMSCI, op.cit., p. 5. 31 Ibid., p. 7. 32 Cf. SCHLESENER, Anita Helena. Estado, intelectuais e atividade educativa em alguns escritos de Gramsci.

In: MENEZES, Ana Maria Dorta et al. (Orgs.). Op. cit., p. 49.

211

possui seus intelectuais para legitimar este projeto de poder, então nada mais natural e

legítimo que os trabalhadores formem também seus próprios intelectuais para se contrapor a

este tipo de projeto dominante. Por isso, é necessário para os trabalhadores compreender a

estrutura do Estado burguês, quer dizer, “todo o complexo de atividades práticas e teóricas

com que a classe dirigente justifica e não só mantém o seu domínio mas consegue obter o consenso

ativo dos governados.”33

Assim sendo, o caráter dualista da escola burguesa reserva aos proletários apenas o

ensino técnico-profissional, e aos burgueses e auxiliares, uma formação integral, digamos

assim, mais intelectual e científica, que lhes possibilite autonomia e liberdade individual, ou

melhor, a capacidade de comando do poder social. O que resta aos trabalhadores, portanto, – e

não há outra saída – é construir o seu processo de emancipação humana que, em outras

palavras, significa criar as condições básicas para que os trabalhadores tornem-se dirigentes

ou mesmo controladores de seus dirigentes de classe, quer dizer, controle nas decisões e

fiscalizações na implementação delas. Dessa maneira, a escola para os trabalhadores tem que

ser unitária, combinar conhecimento humanístico com conhecimento técnico-científico,

justamente para que eles possam desenvolver suas várias capacidades humanas, contribuindo

para a formação de sua individualidade sui generis, assim como para a sua participação na

política.

Mas conforme Oliveira e Felismino34

, o conceito de formação política em Gramsci

parte do pressuposto de que é preciso dar uma ênfase à subjetividade na elaboração histórica,

ou seja, o processo revolucionário não se limita às dimensões econômicas e políticas, mas se

entrelaça à realização de trabalhos pedagógicos que possam consolidar a consciência de classe

dos trabalhadores. Para Gramsci, os trabalhadores se formam no e pelo trabalho e têm uma

necessidade de elaborar uma consciência de classe fortalecida pela preparação cultural. Nesse

sentido, Gramsci tem a clareza da imprescindibilidade de desenvolver uma teoria

revolucionária capaz de se contrapor aos contrarrevolucionários produzidos pelo capitalismo.

Desse modo, o trabalho educativo-cultural, na visão de Gramsci, eleva o nível de consciência

crítico-política das massas e tem como consequência, o reconhecimento de seu devir histórico

e das suas tarefas a serem realizadas para alcançar os objetivos revolucionários. É na luta

contra o capital que se realiza a formação política proletária, mas também se faz necessário ter

ações pedagógicas junto às massas para que essa luta torne-se mais consciente e não sujeita a

33

GRAMSCI, Quaderni del Cárcere, Torino: Einaudi, 1978, Q. 15 (II), par. 10, p.1765 apud SCHLESENER,

Anita Helena. Op. cit., p. 50. 34 Cf. OLIVEIRA e FELISMINO, op. cit., p. 62.

212

uma mera prática espontaneísta. Na verdade, de acordo com Oliveira e Felismino,

A originalidade da reflexão gramsciana reside em mostrar que, ao fazer com que todas as dimensões da vida se tornassem revolucionárias (substituição de

pensamentos, hábitos, valores e atitudes), a Revolução não foi apenas um evento

econômico-político, mas, também cultural. [...] o conceito de formação política é

concebido, basicamente, a partir de dois ângulos inter-relacionados. Tendo como

referência histórica a Revolução Francesa e a Revolução Russa, Gramsci mostra que

os indivíduos iniciam sua formação política quando, ao lutarem contra as

condições de alienação em que estão inseridos, passam a se reconhecer como

sujeitos pertencentes a uma das duas forças hegemônicas. Destarte, essa

expressão evidencia a filiação de Gramsci ao pensamento marxista original, exposto

por Marx e Engels, em O Manifesto Comunista, segundo a qual os trabalhadores se

formam politicamente quando lutam contra as condições de alienação em que estão inseridos, bem como quando se reconhecem como membros integrantes de

uma mesma classe, isto é, com necessidades, intentos e aspirações comuns.35

Se sabemos que a formação política do proletariado ocorre na e pela prática

revolucionária, então, conforme Gramsci, não podemos também descartar as atividades

educativo-culturais para esta formação, pois elas também se dão no âmbito do partido

revolucionário em mediação com outros organismos de mediação do mundo do trabalho, tais

como institutos de cultura proletária, escolas de partidos e de sindicatos, associações, clubes,

imprensa operária etc. Por outras palavras, Gramsci salienta que os trabalhos educativo-

culturais fortalecem a luta revolucionária, elevam a consciência política de classe e afirmam a

identidade de classe dos trabalhadores. Desta feita, o conceito de formação política é também

definido como uma ação pedagógica dos partidos, sindicatos, conselhos, associações,

movimento sociais etc. que tem o objetivo de desenvolver a consciência crítico-revolucionária

dos trabalhadores, favorecendo-lhes a compreensão das determinações estruturais do capital

que os explora. Por isso, a insistência de Gramsci na formação de intelectuais dentro do

proletariado para que possam organizar conjuntamente políticas de ação.

Nestes termos, Gramsci recupera a ideia marxiana de que o homem, ao transformar a

sua realidade, se transforma, se forma e se educa. Pare ele, o projeto pedagógico de elevação

do nível intelectual das massas, vinculado ao projeto revolucionário de abolição da sociedade

classista, contempla a análise marxista de que não é a consciência que determina a existência,

mas é a existência que determina a consciência. Não é á toa que Gramsci declara que

[...] a filosofia da praxis não busca manter os “simplórios” na sua filosofia primitiva

do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida

superior. Se ela afirma a exigência de contato entre os intelectuais e os simplórios

não é para limitar a atividade científica e para manter uma unidade no nível inferior

das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral, que torne

35 OLIVEIRA e FELISMINO, op. cit., p. 65. (Grifo nosso).

213

politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas pequenos

grupos intelectuais.36

Assim, podemos depreender que a formação política como processo educativo dos

trabalhadores, também dentro do movimento sindical, é imprescindível para formar o

intelectual de novo tipo que seja o sujeito mediador entre a teoria revolucionária e o senso

comum ou prática revolucionária. Para Gramsci, “trabalhar na criação de elites intelectuais de

novo tipo, que surjam diretamente da massa e que permaneçam em contato com ela para

tornarem-se os seus sustentáculos”37

, é algo elementar no processo de construção de um

ambiente revolucionário anticapitalista. Ora, se lutamos para mudar o modo de pensar dos

indivíduos concretos – que pode oferecer um significado intrínseco às suas ações –, então tal

mudança impede que os mesmos sejam suportes de sedimentação da estrutura produtiva

capitalista. Desse modo, o grande desafio, nas palavras de Gramsci, é criar uma nova

concepção de mundo, uma “filosofia da práxis”, que instrumentalize os indivíduos para sua

emancipação política e social. Em seus Escritos Políticos, afirma Gramsci que

A cultura é uma coisa bem diversa. É a organização, disciplina do próprio eu

interior, é tomada de posse da própria personalidade, é conquista de consciência

superior pela qual se consegue compreender o próprio valor histórico, a própria

função da vida, os próprios direitos e os próprios deveres.38

Isso significa que não só os elementos político e econômico são os definidores da

construção da consciência emancipatória-revolucionária, superior. A importância da cultura,

da formação integral educativa dos trabalhadores, dá uma consolidação a essa consciência

política revolucionária. E isso constrói a personalidade dos indivíduos que os fazem diferentes

uns dos outros, embora as similaridades estejam presentes.

Quando Gramsci elabora a questão “o que é o homem?”, ele quer compreender a

categoria do indivíduo. E se, para ele, todos nós somos filósofos ou intelectuais, à medida que

compartilhamos, produzimos e difundimos, sob determinadas circunstâncias históricas, uma

concepção qualquer, então nada mais natural que nossa ação esteja vinculada intrinsecamente

a essas concepções de mundo. Nesse sentido, para Gramsci, o homem é um processo

histórico, consequência de suas ações. “É neste ponto que o conceito do homem deve ser

reformado. Em suma, deve-se conceber o homem como uma série de relações ativas (um

36 GRAMSCI, Concepção dialética da história, p. 20. Para burlar a censura, Gramsci usava a expressão

“filosofia da praxis” no lugar de materialismo histórico ou marxismo. Cf. GRAMSCI. Pequeno Glossário. In:

Concepção dialética da história, p. IX. 37 GRAMSCI, Quaderni del Cárcere. Torino: Einaudi, 1980. p. 1392 apud OLIVEIRA e FELISMINO, op. cit.,

p. 67. 38 GRAMSCI, Escritos políticos. Lisboa: Seara Nova, 1977, v. 1, p. 83 apud RUIZ, Erasmo Miessa. Marxismo,

indivíduo e personalidade: Perspectivas em Antonio Gramsci. In: MENEZES, Ana Maria Dorta et al. (Orgs.).

Op. cit., p. 79.

214

processo), no qual, se a individualidade tem a máxima importância, não é todavia o único

elemento a ser considerado.”39

Nicola Badaloni explicita essa questão da importância da formação intelectual entre os

trabalhadores, a partir de Gramsci, afirmando que “A substituição de uma classe por outra no

exercício do poder tem, como pressuposto e efeito, uma enorme ampliação das capacidades

intelectuais e morais de seus membros.”40

Para Badaloni, a maior preocupação de Gramsci

consiste em voltar a dar sua vitalidade originária ao pensamento dos clássicos do marxismo,

mas, por outro lado, Badaloni afirma que a questão dos intelectuais se articula com a questão

do Estado na visão de Gramsci. Ou seja, se os intelectuais tradicionais são também

funcionários do Estado para defender a hegemonia de um grupo dominante no poder, porém,

num contexto de revolução, tais intelectuais poderiam sofrer uma transformação para ser

suporte de uma nova hegemonia em construção, e não apenas serem conquistados tais como

eles os são. Sem dúvida que Gramsci tem a clara compreensão do ponto fundamental do

marxismo, a saber, “se os homens assumem consciência da realidade de forma ideológica, o

problema consiste em passar de uma consciência limitada do conflito para uma consciência

consciente [dele].”41

Portanto, para Badaloni, Gramsci compreende que “a classe operária –

com seus intelectuais orgânicos – representa a única solução possível para formar um novo

tipo de produtor que mantenha o compromisso [...], de desenvolver conhecimentos e

capacidades técnicas.”42

Por conseguinte, Badaloni afirma que Gramsci pensa num período histórico que

liberte a classe operária da influência do subjetivismo distributivista do capitalismo, ou seja,

um subjetivismo que reserva à classe operária apenas a capacidade reivindicativa e de luta,

apontando para a espontaneidade e imediaticidade.43

Dessa forma, o marxismo renasce em

Gramsci como filosofia da práxis. E para Gramsci, a filosofia da práxis é o “historicismo

absoluto”44

, a mundanização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo

absoluto na história. Por isso que, para Gramsci, o movimento da consciência se faz numa

dupla linha possível, ou seja, “passagem do saber ao compreender, ao sentir, e vice-versa, do

39 GRAMSCI, Concepção dialética da história, p. 39. Cf. também Ibid., p. 38: “[...] o que o homem pode se

tornar, isto é, se o homem pode controlar seu próprio destino, se ele pode ‘se fazer’, se ele pode criar sua própria vida. Digamos, portanto, que o homem é um processo, precisamente o processo de seus atos.” 40 BADALONI, Nicola. Gramsci: a filosofia da práxis como previsão. In: HOBSBAWM, Eric J. História do

marxismo X. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 13. 41 Ibid., p. 59, nota 97. 42 Ibid., p. 66. 43 Cf. Ibid., p. 68. 44 Gramsci define o historicismo como “absoluto” a partir do imanentismo hegeliano, quer dizer, só é

historicismo absoluto com a filosofia da práxis. Cf. BADALONI, op. cit., p. 86. Cf. também GRAMSCI,

Concepção dialética da história, p. 127; 189.

215

sentir, ao compreender, ao saber.”45

De tal modo que o povo sente, mas nem sempre

compreende ou sabe; o intelectual sabe, mas nem sempre compreende e sente. Assim, para

que as ideias fiquem fixas, faz-se necessário reconciliar os dois extremos: intelectuais e povo-

nação. O projeto gramsciano, portanto, tem um significado político importante, isto é, fazer

com que as massas saiam da passividade, como também ligar o trabalho dos intelectuais à

vida mais íntima das próprias massas e da sociedade. Aquilo que Marx diz na Contribuição à

Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, ou seja, “a teoria se torna uma força material assim

que se apodera das massas”46

, como ressaltamos anteriormente no capítulo segundo.

Desta feita, a formação de uma consciência unitária do proletariado, diante da

hegemonia capitalista, tem em Gramsci um tratamento especial nas suas reflexões, no sentido

de que a formação intelectual do trabalhador pode servir como instrumento de resistência aos

imperativos da exploração capitalista. Isso denota o selo do pensamento de Gramsci, quando

há uma preocupação dele em querer elevar o nível cultural dos trabalhadores, isto é, educar

para formar politica e revolucionariamente o sujeito histórico do movimento socialista. Pois,

de acordo com Bezerra,

É preponderante enfatizar a idéia de que essa consciência, assim como assinala

Gramsci (2004), não acontece sob a égide dos espontaneísmo (sic), como um

movimento natural e “evolutivo” da humanidade. Pelo contrário, o processo que

desencadeia essa atitude reflexiva, de acordo com Marx (1998), é resultado da

aquisição de uma consciência revolucionária, assimilada na prática cotidiana das

lutas de classe, diante da qual o indivíduo rompe com a superficial “consciência de si mesmo” e parte para um estádio crítico e comprometido com a transformação da

realidade que lhe é imposta.47

Esse contato do trabalhador com uma cultura geral e ampla é fundamental, para que

ele possa se capacitar de forma teórica-intelectual enquanto crítico da sociedade capitalista

que explora sua força de trabalho. Os trabalhadores precisam reconhecer seus próprios valores

num

[...] continuado trabalho de crítica, de penetração cultural, de impressão de idéias em

agregados de homens que eram inicialmente refratários e que só pensavam em resolver por si mesmos problemas econômicos e políticos sem vínculos de

solidariedade com os que se encontravam na mesma situação.48

Se anteriormente afirmamos, conjuntamente com Lênin, Trotsky e Losovsky, que os

sindicatos são escolas de socialismo ou comunismo, locus onde se dá a primeira educação de

classe, eixo organizador da classe trabalhadora etc., então podemos dizer que a formação

45 BADALONI, op. cit., p. 80, nota 139. Cf. também GRAMSCI, Concepção dialética da história, p. 138-139. 46 Cf. MARX, Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel - Introdução. In: op. cit., p. 86. 47 BEZERRA, Tânia Serra Azul Machado. Cultura e elevação intelectual dos trabalhadores: os gráficos em

discussão. In: SILVA E SOUZA, Adriana et al. (Orgs.). Trabalho, filosofia e educação no espectro da

modernidade tardia. Fortaleza: Edições UFC, 2007. p. 203. 48 GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. v. I, p. 59.

216

política sindical se aproxima muito do que Gramsci denomina “círculos de cultura”, formado

por trabalhadores que elaboram questões pertinentes aos seus interesses de classe, cujo

objetivo é formar uma consciência crítica e revolucionária de sua situação social. “Círculos de

Cultura”, na concepção gramsciana, quer dizer um tipo de trabalho intelectual coletivo, no

qual indivíduos, com várias especificidades intelectuais, buscam compartilhar entre si

questões, certezas, dúvidas e críticas construtivas, objetivando se tornar um grupo de

intelectuais homogêneo. Nesse caso, o sindicato tal como o partido pode ser sim um viveiro

de criação de intelectuais (militantes) dispostos a elevar o nível de consciência crítica e

revolucionária dos trabalhadores para serem móbeis políticos na luta contra a exploração do

capital sobre o trabalho. Política e Cultura Geral são elementos-chave para essa formação

educativa revolucionária. Não podemos crer, como afirma Lênin, que a teoria revolucionária

venha do espontaneísmo da luta proletária, mas ela tem sim que vir de fora, numa parceria

firme com os intelectuais orgânicos, cuja relação entre ensino e aprendizagem se

intercambiam, isto é, socializar os conhecimentos e fortalecer a classe proletária numa via de

mão dupla em termos culturais.

Para finalizar essa discussão, podemos sintetizar que Gramsci contemporiza afirmando

que a educação integral tem que levar em consideração a formação do homem omnilateral,

uma educação unitária que combine uma formação cultural geral e humanista com uma

formação politécnica e profissional. Superar esse dualismo escolar burguês, que divide a

sociedade entre dirigentes e dirigidos, dominadores e dominados, é o objetivo a ser alcançado

numa educação socialista. Neste sentido, ele propõe uma solução para o desenvolvimento da

formação humana omnilateral, ou seja, a

[...] escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre

equanimemente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho

intelectual. Deste tipo de escola única, através de repetidas experiências de

orientação profissional, passar-se-á a uma das escolas especializadas ou ao trabalho

produtivo.49

Assim sendo, concordamos com Pires de que “o legado teórico de Gramsci nada mais é do

que um instrumento reflexivo que incentiva a elaborar um projeto revolucionário a partir da

educação e cultura”50

, pois, para Gramsci, a cultura é um instrumento de emancipação da

classe operária que potencializa a sua capacidade intelectual e ação histórica na transformação

da realidade social.

49 GRAMSCI, Os intelectuais e a organização da cultura, p. 118. 50 Cf. PIRES, Márcia Gardênia Lustosa. A educação na sociabilidade do capital: (im)possibilidades para a classe

trabalhadora. In: SILVA E SOUSA, Adriana et al. (Orgs.). Op. cit., p. 145.

217

b) Numa direção semelhante, Suchodolski analisa os problemas fundamentais da

educação e seus fundamentos nas obras de Marx e Engels, mesmo que ambos tenham tocado

nessas questões de forma bastante fragmentária, sucinta. Como ele mesmo diz, “A actuação e

ensino de Marx e Engels estavam, é certo, estreitamente ligados à situação histórica

determinada e à luta política concreta para a libertação da classe operária [...]”51

O objetivo de

Suchodolski é expor os elementos básicos da teoria da educação materialista e os princípios

da crítica das concepções idealistas que travam a luta no interior do sistema capitalista. Para

Suchodolski, Marx e Engels têm um conteúdo pedagógico rico, embutido em suas análises

sobre a sociedade burguesa e o capital-trabalho como seu fundamento ontológico. Educar o

trabalhador para o seu papel histórico de superação do capitalismo para uma sociedade

comunista é uma das questões elaboradas por Marx e Engels durante todos os seus percursos

reflexivos, ou seja, entender “cientificamente” como se desenvolve uma sociedade a partir das

formações econômicas e políticas e/ou das suas relações sociais de produção (material e

intelectual) em choque com as forças produtivas, e, a partir daí, formar o indivíduo

revolucionário (emancipador) como motor dessa transformação histórica.

Colocado nestes termos, vamos pinçar algumas reflexões essenciais de Suchodolski

sobre a importância da educação política, filosófica e revolucionária do proletariado a partir

da sua compreensão sobre o caráter pedagógico das obras de Marx e Engels.

Suchodolski inicia sua reflexão sobre a tarefa de adaptar a geração de jovens às

relações sociais vigentes. Tal era o trabalho da educação tradicional, sobretudo no feudalismo,

que não preparava o homem para criar novas relações sociais, mas para conservar as que já

estavam historicamente determinadas. De igual forma também o é no capitalismo, ou seja,

“adaptar a jovem geração às condições de vida vigentes na sociedade capitalista de classes.”52

Contudo, ele desconstrói a ideia de educação como fator de melhoria das relações humanas, a

partir de métodos educativos eficazes, isto é, desfaz a crença de que os homens podem criar

uma nova ordem social, com melhores condições de vida para todos, por meio da educação

dentro da ordem capitalista em conflito com as desumanas relações materiais entre os

indivíduos. Daí ele dizer que “Marx ensina como os homens podem criar novas relações

materiais entre as pessoas pela sua acção revolucionária, mesmo apesar de serem eles próprios

um produto das velhas relações.”53

Mas não é somente a formação educativa que cria o novo homem ou a nova ordem

51

SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 12. 52 Ibid., p. 15. 53 Ibid., p. 17.

218

social, pois esta também cria uma nova forma educacional. Para Marx, afirma Suchodolski, é

preciso se opor à absurda idolatria deste mundo, isto é, à idolatria ao dinheiro, ao capital.

Desmascarar o mundo burguês e cooperar com a revolução deste mundo, ou melhor, criar

uma nova evolução social do mundo, é a tarefa do pensamento e da ação humana para

recuperar a dignidade perdida na alienação social. Uma nova ordem só surge quando se

destrói a velha ordem em senilidade. E, de acordo com Marx, não podemos cair no utopismo

histórico de que o futuro depende só da vontade humana de alguns. Não. É preciso ter

conhecimento do processo histórico objetivo para que essa vontade “em si” se torne vontade

coletiva. Essa vontade coletiva tem que se fazer ação política para que as transformações, as

leis da dialética histórica, se efetivem na prática. Então, sendo assim, sem teoria política, não

há formação política e sem formação política não haverá ação político-revolucionária. Daí a

educação como instrumento revolucionário ter um papel fundamental na formação do

indivíduo coletivo. Por isso, faz-se mister que as instituições que agregam trabalhadores

sejam locus de formação educativo-revolucionária. Não basta ter a consciência moral deste

mundo ou ter a consciência em si para transformar a realidade social, só a atividade social, ou

melhor dizendo, só a política revolucionária é que pode revolucionar a estrutura e

superestrutura da sociedade.

O ponto de partida da educação na visão de Marx, segundo Suchodolski, é a relação

entre a filosofia e o proletariado que luta pela sua libertação. Nesse caso, a filosofia possui um

sentido tão vasto que implica todos os problemas da educação. Se a tarefa da filosofia implica

libertar o homem das ilusões, mostrando-lhe as raízes sociais da mesma e incentivando-o a

uma ação para transformar o mundo, então, como diz Marx, é preciso unir essa arma

espiritual (filosofia) com a arma material (proletariado), quer dizer, a junção de conhecimento

e ação, duas armas se potencializando e se fazendo ação. Como afirma Suchodolski, “Partindo

deste ponto de vista, a educação está indissoluvelmente ligada à transformação social que se

consegue sob a direcção do proletariado.”54

Portanto, é este ponto que orienta a educação para

formar o homem que busca lutar pelo progresso social e humanismo socialista.

Quando Marx afirma que as raízes da alienação humana devem ser procuradas no

mundo material que o homem cria, fica evidente que urge ao homem reverter essa situação de

negação (alienação) humana a partir de uma ação prática revolucionária, ou seja, tem-se que

formar o homem revolucionário a partir de práticas educativas políticas anticapitalistas, anti-

burguesas. Não é por acaso que Engels dá ênfase a formação política e a formação pessoal como

54 SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 27.

219

armas e fontes de energia para a transformação social, quando captou determinadas leis objetivas

do processo histórico, sobretudo, do processo de desenvolvimento das relações econômicas.55

Na

verdade, Engels se deu conta disso em Manchester, quando percebeu que os fatos econômicos do

mundo moderno constituem um poder histórico decisivo; como também tais fatos formam a base

do surgimento das atuais contradições de classe e estas formam a base dos partidos políticos, das

lutas entre partidos, como de toda a história política, quer dizer, em que tais contradições se

desenvolveram sob a base das indústrias como na Inglaterra.56

Segundo Suchodolski, as obras juvenis de Engels também são importantes, porque

mostram a função da escola e da cultura. Engels, de fato, desmascara os fundamentos

classistas do sistema escolar que se bifurca em uma escola para o povo e outra para os filhos

da classe dominante, como também mostra a influência dos interesses de classe na educação.

Com efeito, os ideais educativos de Engels, ou melhor, os ideais da educação futura,

significam a luta contra as relações dominantes e contra a ideologia dominante, difundidas no

próprio sistema escolar. São, portanto, questões concretas extraídas da situação social da

escola, cujos objetivos e soluções devem mobilizar a juventude para ação. Senão vejamos:

Engels destaca que de 2500 filhos de operários em idade escolar, 1200 deixaram de

ir à escola porque trabalhavam em dificílimas condições em fábricas que não

admitiam pessoas adultas. Sublinha o carácter pietista da Escola. O pietismo serve,

no entanto – tal como Engels demonstra –, especialmente para a exploração dos

trabalhadores, já que apoia os baixos salários e mostra uma fictícia preocupação pela

moralidade do operário. Engels indica, além disso, que a burguesia valoriza tal educação ideológica e desvaloriza em troca o patrimônio da educação; na realidade,

não respeita nem a ciência nem a arte. [...] A escola servia como pano de fundo às

relações sociais, dissimulando a exploração burguesa com palavras bonitas. Engels

desmascarou também a “cultura” das cabeças dominantes, que na realidade mais não

é que diálogos vazios sobre dinheiro e carreiras hípicas.57

Fica evidente que a formação humana burguesa na escola tem o objetivo reproduzir a

sociedade classista, difundir sua ideologia de classe e formar o homo faber e o homo sapiens

para a ampliação do capital.

Para Suchodolski, A Sagrada Família tem muita importância para entendermos os

fundamentos do materialismo histórico, pois, ao contrário do que diz Bauer, de que as ideias

são independentes da realidade, Marx e Engels afirmam que as ideias provêm dos interesses

históricos de classes. Por isso, eles fundamentam o papel histórico do proletariado, quando

delineiam a questão básica da relação entre a consciência do indivíduo e a situação histórica

de classe e suas tarefas. Na realidade, o objetivo e atuação histórica do proletariado estão

55 Cf. SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 35. 56 Cf. SUCHODOLSKI, loc. cit. 57 SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 31-32. Conforme Suchodolski, essa foi uma descrição do sistema de ensino

de Barmen e Elberferd a partir das Cartas Wuppertal, publicada em 1839 no Telegraph für Deustchland.

220

expressos nas suas próprias condições de vida e na organização da sociedade burguesa,

ficando sugerida, então, a noção do papel educativo emancipatório do trabalhador. A teoria

materialista ensina que o homem é educado pelo ambiente, quer dizer, se é o homem que

forma seus conhecimentos, suas sensações etc., a partir do mundo dos sentidos e da

experiência, então trata-se agora de ele apenas organizar esse mundo empírico de tal modo

que o homem se experimente a si mesmo enquanto homem. Em outras palavras, “Se o homem

é formado pelas circunstâncias, será necessário formar as circunstâncias humanamente”58

Tais

análises apresentam uma dependência entre o homem e o seu meio e a atividade humana que

exige a transformação deste meio. Eis o problema da educação, ou seja, fazer com que os

homens não sejam totalmente determinados por circunstâncias biofísiológicas ou pelo meio

ambiente, mas conceber o homem como um processo histórico que possui tarefas históricas a

fazer e que essas mesmas tarefas desenvolvam o novo homem historicamente.

Diz-nos Suchodolski que Marx e Engels desenvolveram em suas obras uma concepção

de educação do homem que leva em consideração os elementos sociais e ativos voltados para

o futuro. Por exemplo, concepções implícitas em A Sagrada Família (como a análise do

processo de transformação histórica das formas de propriedade, o caráter de classe do Estado

e do poder, as perspectivas da revolução proletária e a necessidade de uma luta política contra

o Estado burguês) levaram-nos à redação de A Ideologia Alemã, na qual é feita, dentre outras

coisas, uma crítica radical às concepções ideológicas burguesas e a concepção materialista da

história.

Também o caráter pedagógico do pensamento de Marx e Engels em A Ideologia

Alemã é da maior importância para a formação da consciência política de classe do

proletariado, na medida em que revela o caráter da ideologia como um conjunto de

concepções que simula a realidade, isto é, uma mescla de concepções, em cuja quimera está a

origem de classe histórica, desempenhando, assim, um papel a serviço dos interesses de uma

determinada classe. A ideologia para Marx e Engels se reduz a uma concepção tergiversada

da história dos homens, pois ela fica reduzida a uma total abstração.

O fenômeno da ideologia para Marx e Engels tem sua origem no desenvolvimento

histórico, logo é mister desmascarar a ideologia que compreende as ilusões e mistificações de

classe numa sociedade classista. Para eles, não se pode educar o novo homem apenas com a

transformação da consciência humana, mas principalmente com a transformação das

58

MARX e ENGELS, La Sagrada Família, E. Grijalbo, México, 1962, p. 197 apud SUCHODOLSKI, op. cit., v.

I, p. 44. Cf. também, MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 36: “[...] por conseguinte, as circunstâncias

fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias.”

221

circunstâncias sociais que formam essa consciência. A moral, a religião, a metafísica e outras

ideologias são produtos das relações de produção concretas. Ou como eles mesmos dizem,

São os homens que produzem suas representações, suas idéias etc., mas os homens

reais, atuantes, tais como são condicionados por um determinado desenvolvimento

de suas forças produtivas e das relações que a elas correspondem, inclusive as mais

amplas formas que estas podem tomar. A consciência nunca pode ser mais que seu ser consciente; e o ser dos homens é o seu processo de vida real.59

Essas reflexões teóricas, concebidas a partir da e na realidade, são, nada mais nada

menos, do que extratos pedagógicos marxistas para a educação política dos trabalhadores.

Explicitar conceitos como “divisão do trabalho” e “relações sociais de produção” ou “relações

de classe”, é, a nosso ver, imprescindível para a formação educativa revolucionária dos

trabalhadores. Apropriar-se dessas reflexões, desses princípios teóricos ou políticos, de modo

crítico e em confronto com a realidade presente, é dotar a classe proletária de uma consciência

crítico-revolucionária e de uma ação programática para mudar a ordem social capitalista. Sem

uma compreensão científica profunda do seu momento histórico, do desenvolvimento das

suas relações sociais de produção com suas forças produtivas, a classe proletária fica refém da

ideologia burguesa de sociedade, da sua visão de mundo. Isso apenas mostra que a educação

torna-se um instrumento de fortalecimento do poder de classes na sociedade. Superar a

ideologia classista significa superar os princípios da política educativa da sociedade classista

e, portanto, tornar a educação como arma contra a opressão, ou, melhor dizendo, como

instrumento moral e intelectual da jovem geração da classe oprimida para que ela possa

organizar enquanto base um movimento socialista atual para o futuro da nova sociedade.

Sem rodeios, tais elementos teóricos ampliam o horizonte de percepção histórica dos

trabalhadores enquanto sujeitos potencialmente revolucionários. Por isso Suchodolski

reafirma que

[...] a educação não pode entender-se como “reforma da consciência” independente.

Deve estar ligada à transformação das reais condições de vida que constitui a base de alteração da consciência. Os educadores não estão naturalmente capacitados para

efectuar esta obra sozinhos, devem unir-se ao movimento revolucionário da classe

que transforma realmente a vida e cria as bases para uma nova consciência. A esta

acção da classe revolucionária para a transformação das condições de vida une-se a

transformação da consciência. [...] A tarefa do educador consiste em ajudar os

indivíduos a superar o velho na sua consciência e construir o novo mundo adequado

à ciência e às necessidades das urgentes tarefas sociais.60

Libertar a classe oprimida trabalhadora da tutela ideológica burguesa é uma

necessidade histórica que precisa ser realizada. Com efeito, a libertação da ideologia

59 MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 19. 60 SUCHODOLSKI, op. cit. v. I, p. 60-61.

222

burguesa, a mudança de pensamento para um modo materialista e revolucionário ligado à

prática revolucionária dos trabalhadores, como diz Suchodolski, significa a rejeição das

ilusões de uma educação que visa apenas a reformar a consciência com meios puramente

espirituais. Nesse sentido, fornecer os elementos teóricos da concepção materialista da

história à classe potencialmente revolucionária, isto é, os estudos históricos e econômicos de

Marx e Engels, é dar as armas intelectuais que tanto o trabalhador precisa para se acoplar a

sua própria condição humana enquanto arma material da revolução. O marxismo e o

trabalhador são as armas intelectuais e materiais da revolução socialista. A meta agora é como

fundir essas duas armas, ou seja, como fazer essa simbiose política desaguar na revolução

socialista em rumo à sociedade anticapitalista, comunista.

Conforme Suchodolski61

, já houve nos centros do movimento operário, sob a direção

de cartistas e socialistas, diversas instituições culturais e educativas, onde se dava uma

autêntica educação proletária para as crianças, sem as influências da burguesia, isto é, com

salas de leituras e seus respectivos jornais e livros proletários. Mas a burguesia esperta se viu

obrigada a fazer concessões dando ensino público gratuito, quer dizer, transformou algumas

instituições similares em órgão de difusão da ciência que lhe apoia. Nessas instituições

aburguesadas eram ensinadas ciências naturais entre outras coisas, justamente para tirar os

filhos dos trabalhadores da influência do ensino proletário.

Ora, essas concepções teóricas de Marx e Engels, que mostram ao trabalhador as

condições subjetivas e objetivas de se fazer a transição do capitalismo para o socialismo, não

deixam de ser uma concepção de educação e de ensino político completamente nova. Porém,

Marx e Engels advertem que (como pensam os socialistas utópicos) não basta ter a educação,

pois ela precisa estar estreitamente ligada à prática revolucionária, isto é, emancipatória,

transformadora. No entanto, para isso, é preciso preparar ideologicamente o trabalhador.

Segundo Suchodolski, “Para muitos as tarefas fundamentais da educação consistem em

educar o coração e a virtude; para Marx e Engels tem a maior importância o desenvolvimento

da consciência e o despertar pela revolução.”62

Na realidade, Marx e Engels rejeitavam as

teorias idealistas e utópicas do poder ilimitado da educação, porque sabiam que a educação

por si só não faz revolução das estruturas sociais. O que eles enfatizam é que a atividade

educativa, sobretudo o ensino operário, é importantíssima para organizar a luta revolucionária

e construir o processo evolutivo histórico. Por isso que, para ambos, o materialismo histórico

é de fundamental importância para o trabalhador saber que o mundo se desenvolve segundo

61 Cf. SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 66. 62 SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 69-70.

223

leis objetivas pela ação das massas populares e, sobretudo, pela ação revolucionária.

De acordo com Suchodolski, esta concepção concreta histórica da essência da

educação foi realizada por Marx e Engels durante toda a sua atividade prática político-

organizativa, pois, para eles, a educação ou a formação humana é uma atividade dependente

de determinadas etapas do desenvolvimento social, as relações materiais existentes. Uma

criança “em si” não se forma sozinha a partir de sua pura essência, mas uma criança se forma

a partir de uma determinada classe, ou melhor, se forma a partir de determinadas relações

sociais. Marx e Engels acreditam na formação política fundamentada no conhecimento

científico da realidade que cria a outra condição para se desembocar na ação revolucionária.

Nessa perspectiva, diz Suchodolski, “A educação do proletariado pode servir somente para a

preparação das tarefas revolucionárias, ou seja, ser a educação da consciência revolucionária

numa determinada situação concreta.”63

Para ele, portanto, a educação adquire assim uma

orientação política, quer dizer, deve participar na formação da classe revolucionária.

Por conseguinte, Suchodolski nos revela algumas outras questões em Marx e Engels a

respeito da educação revolucionária no Manifesto do Partido Comunista. Um programa que

não se esqueceu da questão educacional ao ser elaborado pelos dois. Engels propõe a

educação total para as crianças, desde os primeiros cuidados maternos, em instituições

nacionais à custa da nação e sublinha a necessidade de relacionar educação e trabalho; mas

não se esquece de analisar o papel da educação na sociedade capitalista e na futura sociedade

socialista, declara Suchodolski.64

Para Engels, portanto, não há na sociedade de classes

antagônicas condições para que o homem desenvolva plenamente suas capacidades físicas e

intelectuais, pois a classe que domina politica e economicamente uma sociedade se apropriou

das forças produtivas, dos bens materiais de produção. Mas esta senha histórica é que vai

possibilitar o desenvolvimento humano total, ou seja, com o desenvolvimento das forças

produtivas e a supressão da propriedade privada burguesa dos meios de produção, poder-se-á

construir uma sociedade produtiva que satisfaça a todos nas suas necessidades básicas, a

sociedade comunal. Isto porque o desenvolvimento das forças produtivas exige sempre

homens com formação multifacetada, ao contrário da sociedade capitalista em que a formação

sempre parece ser unilateral.

Consoante Engels, uma indústria dirigida conjunta e planificadamente por toda

sociedade, requer homens completos, com aptidões desenvolvidas que sejam capazes de

captar todo o sistema de produção. Esta necessidade fará surgir uma nova educação que

63 SUCHODOLSKI, op. cit., v I, p. 76. 64 Ibid., p. 77.

224

formará novos homens na sociedade pós-capitalista. Justamente porque a educação vai

permitir aos jovens participarem de todo complexo do sistema produtivo. É isso, na visão de

Engels, que poderá assegurar o desenvolvimento pleno das capacidades do homem numa

sociedade pós-capitalista. Para Suchodolski, tais pensamentos fazem tanto parte do Manifesto

Comunista quanto dos trabalhos de Marx e Engels sobre a educação ou formação humana. A

tese do Manifesto no primeiro capítulo é de que a educação até o presente capitalismo

constituiu um fenômeno de caráter classista, pois como eles mesmos dizem no programa: “a

história de toda a sociedade existente até hoje tem sido a história das lutas de classes”65

.

Portanto, na perspectiva do Manifesto a educação surge como uma atividade ligada à luta de

classes do trabalhador, pois somente uma educação verdadeira, isto é, integral, na qual o

desenvolvimento intelectual esteja vinculado ao desenvolvimento das habilidades manuais, é

que pode criar as premissas de um desenvolvimento social completo.

O que Suchodolski ressalta é que a educação dos homens é um importante processo de

sua autoprodução que se dá no seu trabalho social produtivo, mas isto não ocorre de forma

linear; ao contrário, se dá pelas lutas e contradições sociais que surgem no decorrer do

movimento histórico. Como diz Marx, as forças produtivas entram em contradição com as

relações de produção vigentes, quer dizer, com as relações de propriedade até então. E as

formas de desenvolvimento das forças produtivas se transformam em cadeias, isto é, ao se

transformar a base econômica, transforma-se também toda a superestrutura, e aí uma época de

revolução se impõe às relações conservadoras com a sua ideologia a partir das revoluções das

forças produtivas e da classe oprimida. Dentro dessa situação, a educação serve como meio de

luta; e nas mãos da classe dominante ela torna-se uma arma poderosíssima para conservar seu

domínio e impedir a sua queda histórica, à medida que consegue manter a psique humana

livre das influências que surgem com as transformações das forças produtivas; e nas mãos da

classe dominada, a educação torna-se um instrumento de libertação da tutela ideológica da

burguesia.

Dessa maneira, Marx e Engels sempre prestavam atenção às questões do ensino e

sempre partiam de questões científicas e políticas, pois para eles os princípios do ensino

político e científico são uma arma para a classe operária.66

Engels, por exemplo, denunciou a

forma superficial e tendenciosa do ensino escolar na sociedade burguesa em A Situação da

Classe Trabalhadora na Inglaterra, ao dizer que “É possível ver o que fazem a burguesia e o

65 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: LASKI, op. cit., p. 93. 66 Cf. SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 103.

225

Estado para a educação e o ensino da classe trabalhadora”67

, quando a burguesia sonega até

mesmo o ensino moral aos operários que ela teve em sua própria defesa e interesse; como

também Engels fazia crítica à antiquada concepção de natureza ensinada em todas as escolas

em sua obra Dialética da Natureza. Para Suchodolski, Marx e Engels tinham plena

consciência da necessidade do ensino sob a orientação da classe operária e isso se comprova

nas instruções dadas aos delegados do Congresso da I Internacional em Genebra (1866). Eles

examinavam, portanto, os princípios da luta para a educação da classe operária, isto é, para a

determinação de um programa educativo e o esclarecimento do seu papel social.68

Um

programa de ensino para eles tinha que se apoiar no progresso da ciência, tendo em vista os

conhecimentos politécnicos, no qual trabalho produtivo, educação e ginástica fossem

combinados para realizar indivíduos plenamente desenvolvidos.

Já na Crítica ao Programa de Gotha, Marx afirma que “a combinação do trabalho

produtivo com o ensino, desde uma tenra idade, é um dos mais poderosos meios de

transformação social.”69

Nesta obra Marx anota que não deve haver a proibição geral do

trabalho infantil, no entanto, teria que haver uma regulamentação severa da jornada de

trabalho segundo as diferentes idades, como também aplicar medidas preventivas para a

proteção das crianças. De qualquer forma, Marx considera abominável, sob o reino do capital,

a tendência da Indústria moderna fazer cooperar crianças e adolescentes de ambos os sexos na

grande obra da produção social como um processo legítimo e saudável; logo a sociedade não

deve permitir que pais e patrões empreguem crianças e adolescentes no trabalho, a não ser que

se combine trabalho produtivo com a educação.70

Todavia, segundo Suchodolski,

A participação das crianças e jovens no trabalho produtivo e o ensino politécnico

ligado a este deviam contribuir, segundo esta concepção, conjuntamente com a

acção das forças revolucionárias para destruir a sociedade capitalista que degrada os

operários à condição de autómatos com a utilização da tecnologia. 71

Ainda na Crítica ao Programa de Gotha, Marx não admite que a Educação popular

fique a cargo do Estado (burguês), ou, melhor expressando, todos devem ter uma assistência

escolar obrigatória e gratuita, no entanto, designar o Estado como educador do povo é ter uma

fé servil na seita lassalliana do Estado ou ter a superstição democrática do Estado (classista)

que reproduz a desigualdade social por meio da escola. Isso tudo, segundo Marx, não passa de

uma fanfarronice democrática. E ao se referir ao Império Prussiano-Alemão, ele ainda diz que

67 MARX e ENGELS, Textos sobre educação e ensino, p. 80. 68 Cf. SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 103. 69 MARX. Crítica ao Programa de Gotha. In: MARX e ENGELS, Obras escolhidas, v.2, p. 224. 70 Cf. MARX e ENGELS, Textos sobre educação e ensino, p. 59-60. 71 SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 106.

226

“[...] é o Estado quem necessita de receber do povo uma educação muito severa.”72

Marx

também já dizia no Manifesto Comunista que é preciso tirar a educação da influência da

classe dominante, como também transformar o tipo de intervenção da sociedade sobre a

educação.73

Como ele mesmo afirma na Crítica ao Programa de Gotha, “[...] o que deve ser

feito é subtrair a escola de toda influência por parte do governo e da igreja.”74

Em outras

palavras, o Estado (burguês) não deve ser designado para educar o povo, ao contrário, é

preciso instrumentalizar o ensino e a educação, objetivando preparar o trabalhador para a luta

contra a burguesia, acompanhando-o também nos momentos da difícil luta, no período da

revolução, na tomada do poder pelo povo e, dessa maneira, poder então alcançar as melhores

condições para seu desenvolvimento posterior. Para Marx, este é o papel e a responsabilidade

política da ciência e do ensino, apresentado nas suas análises sobre o fracasso e a vitória da

Comuna de Paris. Portanto, conforme Suchodolski, as exigências educativas de Marx afetam a

vida real e a consciência, isto é, a vida real e a consciência que estão sob a base da alienação

capitalista como a grande tragédia humana do trabalhador.75

Na Terceira Tese sobre Feuerbach, Marx anota claramente que o ensino humano é

imperfeito e que este ensino precisa de educação. Ao perceber que a atividade educativa não

pode ser compreendida como fonte independente da realidade social, mas como um trabalho

vinculado à totalidade das ações humanas que transformam a vida, Marx afirma:

A doutrina materialista que pretende que os homens sejam produtos das

circunstâncias e da educação, e que, conseqüentemente, homens transformados

sejam produtos de outras circunstâncias e de uma educação modificada, esquece que são precisamente os homens que transformam as circunstâncias e que o próprio

educador precisa ser educado.76

Colocado nestes termos então, no que diz respeito à educação da consciência,

Suchodolski afirma, por conseguinte, que Marx tinha clareza de que o princípio da

consciência foi um princípio progressista e revolucionário como método de transformação da

vida na luta da burguesia contra o feudalismo, a saber, o programa de ensino se baseava na

formação e educação da consciência e isso implicava que o grau de educação do indivíduo era

alcançado pelo seu próprio progresso, sem levar em conta que este desenvolvimento da

consciência também estava atrelado às relações concretas da vida do indivíduo. Marx

72 MARX. Crítica ao Programa de Gotha. In: op. cit., p. 223. 73 Cf. MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: LASKI, op. cit., p. 109. Cf. também

SUCHODOLSKI, Teoria marxista da educação, v. I, p. 106-107; e MARX e ENGELS, Textos sobre educação e

ensino, p. 91-92. 74 MARX e ENGELS, Textos sobre educação e ensino, p. 91. 75 Cf. SUCHODOLSKI, op. cit., v. I, p. 207. 76 MARX e ENGELS. Teses sobre Feuerbach. In: A Ideologia Alemã, p. 100. Cf. também MARX e ENGELS,

Textos sobre educação e ensino, p. 27.

227

combatia este tipo de intelectualismo que separava consciência da vida real, como se fosse

produto de um autodesenvolvimento educacional. Para ele, não se tratava de reformar a

consciência para mudar a realidade, mas, ao contrário, de mudar a realidade para transformar

a consciência. Desse modo, Marx refuta as teses da autonomia da consciência e de seu papel

independente de formar o homem, pensamento comum entre os iluministas e mesmo em

Feuerbach.

Esta concepção individualista de que a formação da consciência é a formação de todo

homem verdadeiro cai por terra, na medida em que Marx transfere a discussão para o plano da

atividade social concreta. As fontes da consciência se encontram mesmo no plano da

atividade social, cujo conteúdo só muda com o processo histórico desta atividade. Daí Marx

demolir toda a pedagogia da consciência, quando diz que o ensino só pode ser verdadeiro se

transformar as condições sociais que mantêm o homem ainda num estado de alienação e/ou de

servidão. O ensino só é eficaz com a derrubada da ordem, das condições de vida que

produzem as ilusões sociais, sejam elas políticas, econômicas e/ou religiosas.

Ao criticar a pedagogia da consciência e a pedagogia do ambiente, a saber, os que

pensam que o homem é mero resultado de uma consciência construída intelectualmente ou de

uma consciência sob a pura influência do ambiente, Marx indica que o homem não se forma

exclusivamente por nenhuma delas, nem mesmo pela combinação de ambos os fatores: o

intelectual e o ambiental. Porém, de acordo com Suchodolski,

O elemento decisivo no processo de formação do homem é actividade

socioprodutiva do homem que transforma o seu ambiente. Este processo decorre

historicamente e nas diversas etapas de desenvolvimento – em cada uma segundo as

relações, as forças produtivas e a estrutura social – adopta diversas formas.77

Tudo isso tem a ver com a formação da personalidade do homem. E para Marx a

questão da personalidade não é apenas um problema do futuro, mas um problema atual,

porque se encontra estreitamente ligado ao movimento operário revolucionário. Um indivíduo

que pertence a uma determinada classe social está vinculado ao cumprimento de determinadas

condições que dependem de causalidades, sobretudo, porque tais condições dizem respeito à

sua vida pessoal. Mas quando se formam indivíduos revolucionários, rompe-se com essas

atuais condições de existência impostas por tais causalidades. Neste sentido, a questão da

personalidade encontra-se unida à atividade revolucionária, ou seja, para Marx, podemos

fazer com que o ensino deixe de ser apenas uma adequação do homem às influencias

determinadas pelas relações sociais alienantes ou apenas prepare o homem para o futuro do

77 SUCHODOLSKI, op. cit., v. III, p. 62.

228

capitalismo, para converter-se na participação da prática ativa, na prática revolucionária. Só

na prática revolucionária, na concepção de Marx, é que podem se unir a transformação das

relações atuais e a transformação dos homens mediante a educação. Portanto, a prática

revolucionária é um ato coletivo que se fundamenta nas necessidades objetivas, cujo

aparecimento consciente das leis de desenvolvimento se une à energia e à vontade de

participação ativa na configuração de um novo desenvolvimento social, o socialista. Por

outras palavras,

A educação da individualidade, escreve Marx, não precisa hoje nem da formação de

uma boa vontade nem de uma reforma do espírito para compreender que o homem é

egoísta, mas requer algo diferente. Requer a integração do indivíduo na sua classe,

na qual se prepara para a luta pela nova sociedade; exige que o indivíduo seja capaz

de reconhecer as leis que predominam na realidade social e actuar em conformidade

com elas.78

Marx e Engels buscam assim superar a educação humanístico-utópica e conceber o

problema do homem, da sua educação e consciência, a partir das categorias de uma análise

científica do desenvolvimento social e da prática revolucionária. A filosofia de Marx e Engels

desmascara os ideais educativos burgueses como interesses da política de classe que, na

verdade, encobre um falso humanismo. O que configura o homem mesmo é a sua atividade

social e esta, sob a rubrica do capital, o configura como um ser alienado e mutilado

humanamente. Para Marx e Engels, estão enganados os que acham que a educação como

formação da personalidade se baseia em bens culturais eternos ou aqueles que atribuem à

educação o caráter de formação do desenvolvimento natural, espontâneo e autônomo do “Eu”

interior ou aqueles que sujeitam a educação do indivíduo às exigências das circunstâncias.

Então cabe destacar, conforme Suchodolski, que “a teoria marxista do materialismo

histórico e dialético, que se opõe à tradição da concepção idealista do homem, sublinha

especialmente o papel da revolução como factor que cria novas relações sociais e os novos

homens.”79

Desta forma, se a teoria de Marx mostra que o trabalho educativo sob relações

sociais classistas necessita de tarefas completamente novas, então conclui-se que a única saída

da alternativa entre o oportunismo e a utopia educativa burguesa é contrair um pacto com a

prática revolucionária.

78 SUCHODOLSKI, op. cit., v. III, p. 126. 79 Ibid., v. III, p. 175.

229

3.3 Formação Educativa para e pelo Socialismo-Comunismo

Se a grande tarefa educativa revolucionária no capitalismo para e pelo socialismo é

romper com um tipo de educação dualista e classista que promove a desigualdade e/ou a

“exclusão” social e separa o trabalho manual do intelectual, no socialismo ela deverá ter outro

norte que é a de “igualar” as condições intelectuais e técnicas de todas as pessoas, visando

construir o novo homem social, isto é, o homem omnilateral e comunal. Toda a análise

marxista da situação do homem no capitalismo se pauta in nuce (em suma) pela crescente

alienação política e econômica que impede o desenvolvimento humano dos trabalhadores, ou

melhor, destrói a relação do trabalhador com o próprio trabalho e a sociedade, deformando,

dessa maneira, a sua consciência, o seu ser social. Para que esse desenvolvimento pleno do

homem ocorra é preciso quebrar as cadeias que prendem o homem ao jogo político-

econômico perverso do capitalismo. E, nesse sentido, o destino da educação como atividade

formativa do homem depende da transformação social que elimine de vez o sistema capitalista

da história da humanidade. Dito isto, concordando com Suchodolski, “Nesta base, dar-se-á na

sociedade socialista uma aproximação entre as condições e necessidades da vida social e as

tarefas e possibilidades da actividade educativa.”80

Entretanto, uma questão se coloca: qual seria o papel da formação educativo-

revolucionária marxista para e pela construção do socialismo-comunismo? Responder a esta

indagação requer antes uma análise sobre o que é o socialismo como fase de transição para o

comunismo, para o reino da liberdade.

3.3.1 O socialismo

Compreender o conceito marxista de socialismo tem a ver, principalmente, com o fim

do trabalho estranhado, da propriedade privada burguesa e do fetiche das relações humanas

com as mercadorias (reificação). Marx faz essa análise a partir dos Manuscritos Econômico-

Filosóficos, onde analisa a concepção de propriedade privada, trabalho alienado e

comunismo. Segundo ele, é a propriedade privada “a fonte de alienação real do homem como

um ser perdido de si próprio e para si mesmo, sem uma essência plenamente desenvolvida na

sua potencialidade.”81

A relação da propriedade privada com o trabalho é uma relação

baseada na exploração, na alienação da força de trabalho, cujo custo se reduz ao preço do

trabalho num determinado tempo, apenas para manter a subsistência físico-corporal do

80 SUCHODOLSKI, Bogdan. Teoria marxista da educação. Lisboa: Editorial Estampa, 1976, v. II, p. 9. 81 OLIVEIRA, Jorge Luís de. Alienação, Trabalho e Emancipação Humana em Marx, p. 58.

230

trabalhador, denominado então de “salário, que é uma falsa troca de equivalência entre

valores: capital variável e trabalho. Como mesmo afirma Marx,

[...] a manifestação da força de trabalho, o trabalho mesmo, é a atividade vital

própria do operário, sua maneira específica de manifestar a vida. E é essa atividade

vital que ele vende a um terceiro para conseguir os necessários meios de

subsistência. Quer dizer isto que a atividade vital não é mais do que um meio para

poder existir [...] Portanto, o capital pressupõe o trabalho assalariado e o trabalho

assalariado, pressupõe o capital. Ambos se condicionam mutuamente.82

A propriedade privada burguesa, para Marx, é uma forma iníqua de apropriação, ou

seja, um modo inautêntico de ter e possuir as coisas ou o trabalho de alguém, porque baseada

na espoliação do trabalho alheio. Ao contrário, a propriedade genuinamente autêntica83

se

caracteriza pela existência e disponibilidade de todos os objetos para o homem, quer dizer,

objetos essenciais tanto para o gozo como para a sua atividade. Nesse sentido, Marx entende

que a propriedade como categoria apreendedora do mundo objetivo só é legítima quando

houver a relação universal e livre do homem.84

Na concepção marxiana, isso só pode

acontecer, quando for abolido o tipo de propriedade privada burguesa substituída a posteriori

pela propriedade comunal. Foi o que Marx fez em A Ideologia Alemã, ao analisar como se

deu o processo histórico de desenvolvimento da propriedade privada até chegar a sua forma

mais evoluída, ou seja, a forma de Capital. Portanto, “A perspectiva da sociedade rompendo a

coisificação rumo à objetivação é a perspectiva da sociedade enquanto sujeito da

objetivação.”85

Por outro lado, Marx vê o aspecto positivo da evolução da propriedade privada no

capitalismo, ou seja, ela cria as condições antagônicas reais – subjetivas e objetivas – para o

seu posterior desaparecimento enquanto propriedade de negação do humano no homem. Marx

considera que o desenvolvimento avançado da propriedade privada capitalista acelera o

conflito/confronto entre o capital e o trabalho, quer dizer, essa relação antagônica de

cooperação forçada se rompe, desdobrando-se numa fase de insurreição até chegar à

revolução. O casamento forçado entre o capital e o trabalho é desfeito. Não é à toa que Marx

anota que

O comunismo é a abolição positiva da propriedade privada enquanto auto-alienação

humana e, deste modo, a real apropriação da essência humana pelo e para o

homem. É, portanto, o retorno do homem a si mesmo como ser social, quer dizer, verdadeiramente humano, retorno esse pleno, consciente, que assimila toda a riqueza

82 MARX, Karl. Trabalho assalariado e capital. São Paulo: Global Editora, 1987. p. 22; 34. 83 Há uma tematização sobre duas formas reais de propriedade privada, i.é., a propriedade alienada e a “autêntica

propriedade humana”. Ver a respeito, Herbert Marcuse, Materialismo histórico e existência. Rio de Janeiro:

Tempo Brasileiro, 1968. p. 134-135. 84 Cf. OLIVEIRA, Jorge Luís. Op. cit., p.63-64. 85 MARCUSE, Materialismo histórico e existência, p. 137.

231

do desenvolvimento anterior. O comunismo enquanto naturalismo integralmente

evoluído = humanismo, enquanto humanismo plenamente desenvolvido =

naturalismo, constitui a resolução autêntica do antagonismo entre o homem e a

natureza, entre o homem e o homem. É a verdadeira solução do conflito entre a

existência e a essência, entre a objectivação e a auto-afirmação, entre a liberdade e a

necessidade, entre o indivíduo e a espécie. É a decifração do enigma da História e

está consciente de ele próprio ser essa solução.86

Nessa citação podemos perceber a relevância que Marx dá à questão da consciência

proletária sobre esse devir histórico, isto é, de que o comunismo é a solução desse

antagonismo histórico até hoje constituído, desde a origem da propriedade privada enquanto

forma de privação da maioria dos homens da riqueza socialmente produzida. Daí podermos

inferir que a formação educativa para e pelo socialismo é algo imprescindível numa

determinada fase de pré-realização do socialismo. Se a propriedade privada capitalista é a

expressão alienada da vida humana, então – como diz Marx – “A abolição positiva da

propriedade privada, tal como apropriação da vida humana, constitui portanto a abolição

positiva de toda a alienação, o regresso do homem a partir da religião, da família, do Estado,

etc. à sua existência humana, isto é, social.”87

Para Marx, portanto, é fundamental que o

proletariado apreenda o movimento da totalidade histórica e tenha consciência da gênese real

do comunismo como também da sua consciência pensante.

Abolir a propriedade privada para Marx significa a emancipação total de todos os

sentidos e qualidades humanas. E se o homem é a totalidade, a totalidade ideal, a existência

subjetiva da sociedade enquanto pensada e sentida, se “pensamento” e “ser”, embora distintos,

formam uma unidade e se “todos os sentidos físicos e intelectuais do homem foram

substituídos pela simples alienação de todos os sentidos, pelo sentido do ter [...]”88

, então a

abolição positiva da propriedade significa a apropriação sensível da essência e da vida

humana do homem objetivo e das criações humanas, pelo e para o homem, isto é, uma

apropriação não apenas no sentido do ter; mas com a eliminação propriedade privada o

homem se apropria do seu ser omnilateral de modo omnicompreensivo, como homem total,

pois só com a emancipação humana, todos os sentidos e qualidades do homem se tornam

humanas. E para isso é necessário uma relação social mais humanizada chamada socialismo.

O homem – diz Marx – se afirma no mundo objetivo e no pensamento através de todos os

sentidos, e sua riqueza e sensibilidade só se darão, quando a riqueza for objetivamente

desenvolvida, pois a partir daí se cultiva e se cria a riqueza da sensibilidade subjetiva humana.

86 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 192-193. A citação visa ressaltar o aspecto positivo da

propriedade privada burguesa que produz a condição de sua própria negação. 87 Ibid., p. 193. 88 Ibid., p. 197.

232

Os sentidos humanos serão capazes de usufruir a mais bela arte, satisfazendo, portanto, as

necessidades espirituais do homem.

Erich Fromm, em Conceito marxista de homem, faz uma ligação entre o conceito

marxista de socialismo e o conceito marxista de homem, quando diz que a meta do socialismo

é o homem, mas o homem rico, plenamente realizado na sua dimensão humana natural. Isso

requer que as condições sociais que produzem a existência humana sejam revolucionadas,

pois se o homem é resultado das suas relações sociais de produção, são estas que precisam ser

modificadas em conjunto com suas forças produtivas. Conforme Fromm, em O Capital, Marx

expressou claramente o alvo do socialismo,

De fato, o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por

necessidade e por utilidade exteriormente imposta; por natureza, situa-se além da

esfera da produção material propriamente dita. O selvagem tem de lutar com a

natureza para satisfazer as necessidades, para manter e reproduzir a vida, e o mesmo

tem de fazer o civilizado, sejam quais forem a forma de sociedade e o modo de produção. Acresce-se, desenvolvendo-se, o reino do imprescindível [com sua

evolução, o reino da necessidade se expande, porque suas precisões crescem]. É que

aumentam as necessidades, mas, ao mesmo tempo, ampliam-se as forças produtivas

para satisfazê-las. A liberdade nesse domínio só pode consistir nisto: o homem

social, os produtores associados regulam racionalmente o intercâmbio material com

a natureza, controlam-no coletivamente, sem deixar que ele seja a força cega que os

domina; efetuam-no com o menor dispêndio de energias e nas condições mais

adequadas e mais condignas com a natureza humana. Mas, esse esforço situar-se-á

sempre no reino da necessidade. Além dele começa o desenvolvimento das forças

humanas como um fim em si mesmo, o reino genuíno da liberdade, o qual só pode

florescer tendo por base o reino da necessidade. E a condição fundamental desse desenvolvimento humano é a redução da jornada de trabalho.89

Nesta passagem, encontram-se todos os elementos essenciais do socialismo, segundo

Fromm, ou seja: a produção é associativa em substituição à produção competitiva; a produção

passa a ser racionalmente planejada e executada, como também sua distribuição controlada,

conforme a necessidade de cada produtor; o trabalho deixa de ser alienado, estranhado, pois

teremos o homem ativo, criativo e produtivo; e, por fim, o tempo livre do homem será

ampliado com o desenvolvimento das forças produtivas que o liberará para o

desenvolvimento das suas forças humanas, das suas potencialidades criativas, desenvolvendo,

assim, seus talentos naturais.

Ao contrário desse objetivo do tempo livre para o desenvolvimento pleno do homem,

Castoriadis90

explicita que a redução da jornada de trabalho é consequência do

desenvolvimento tecnológico das forças produtivas e de um processo de produção direcionado

para satisfazer as necessidades humanas. A tecnologia no capitalismo, segundo ele, visa a

89 MARX, O Capital, v. I, p. 942. 90 Cf. CASTORIADIS, Cornelius. Técnica. In: As encruzilhadas do labirinto 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1987. p. 261.

233

suprimir o papel do trabalhador na produção. O capitalista escolherá, na medida do possível, o

procedimento que lhe dê maior independência no processo de produção em relação aos

trabalhadores, isto é, ele prefere depender das máquinas do que dos homens. O limite desta

tendência é a automatização integral da produção, porém utópico, pois, para atingir esse

objetivo é preciso automatizar o processo de consumo; no entanto, a redução da jornada de

trabalho promovida pelo avanço tecnológico no capitalismo se restringe então para a minoria

“privilegiada” de trabalhadores, que trabalha para consumir, enquanto a maioria é excluída do

processo de exploração do capital e, assim, do consumo da produção da riqueza. Por outro

lado, Mészáros afirma que

A produção ou é conscientemente controlada pelos produtores associados a serviço

de suas necessidades, ou os controla impondo a eles seus próprios imperativos

estruturais como premissas da prática social das quais não se pode escapar. Portanto,

apenas a auto-realização por meio da riqueza de produção (e não pela produção da

riqueza alienante e reificada), como a finalidade da atividade-vital dos indivíduos sociais, pode oferecer uma alternativa viável à cega espontaneidade auto-reprodutiva

do capital e suas conseqüências destrutivas. Isto significa a produção e a realização

de todas as potencialidades criativas humanas, assim como a reprodução continuada

das condições intelectuais e materiais de intercâmbio social.91

Assim sendo, a configuração da sociabilidade no socialismo trabalha com a ideia de

uma nova humanização a partir da “comunização” dos indivíduos. O homem é produtor de si

mesmo, da realidade que o cerca, quer dizer, o homem é movimento na história, mas não

movimento mecânico, e sim movimento como impulso, entusiasmo, vitalidade criadora e

energia; a paixão humana é a faculdade essencial para homem alcançar o seu fim em si

mesmo que é o homem autêntico, livre e sui generis. Desta feita, o socialismo como sistema

antagônico ao capitalismo é uma necessidade histórica para que um novo movimento de

desenvolvimento de um modo de produção social se dê. Isso favorece ao homem desenvolver

suas forças essenciais, à medida que permite mais tempo livre com a redução do tempo de

“trabalho necessário” (e a supressão do “trabalho excedente”) à sua sobrevivência material,

para poder ter seu ócio criativo. Não foi à toa que Marx disse que

[...] na sociedade comunista, em que cada um não tem uma esfera de atividade

exclusiva, mas pode se aperfeiçoar no ramo que lhe agradar, a sociedade

regulamenta a produção geral, o que cria para mim a possibilidade de hoje fazer uma

coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar na parte da tarde, cuidar do gado ao

anoitecer, fazer uma crítica após as refeições, a meu bel prazer, sem nunca me tornar

caçador, pescador ou crítico.92

Para isso, é preciso superar a divisão capitalista do trabalho, ou seja, acabar com o

91 MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 613. 92 MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 28-29.

234

trabalho unilateral, no qual os interesses do indivíduo isolado, da família isolada ou o

interesse de todos os indivíduos que mantêm relações entre si estão em contradição. Na

verdade, cada um tem uma atividade exclusiva e determinada, imposta pelo modo de

produção capitalista, em que o indivíduo ou é caçador, ou é pescador ou é crítico não podendo

desta forma realizar outras atividades que lhe agradem, pois a força objetiva do capital o

impede de exercer atividades diversas que possam contribuir para o seu desenvolvimento

humano.

O socialismo, como perspectiva de construção da fase comunista, além de ter como

tarefa atender as necessidades mais fundamentais do homem, tem como meta efetivar a

essência do homem, superando o estágio de alienação econômico-social, quer dizer, abolir a

autoalienação do homem numa sociedade reificada por relações estranhas de produção. Se no

capitalismo, o homem é um ser carente, deficiente, um existente construído em torno de um

“não”, um “não ter”, então é preciso criar as condições subjetivas e objetivas da revolução que

são os passos fundamentais para a construção do socialismo. O descontentamento com a vida

real, baseado na carência material e espiritual, na falta de algo, na exclusão da maioria do

banquete científico e tecnológico e no crescente desemprego crônico, faz com que o impulso

de insatisfação torne-se um elemento sensível e propulsor de um movimento que seja a

antítese dessa vida real.

Segundo Lênin, só se constrói o Estado proletário, socialista, se se destruir o Estado

burguês. Este Estado é o grande Leviatã (monstro mitológico grego) que mantém os interesses

da classe dominante intactos ou preservados. Baseado nas reflexões de Marx e Engels, Lênin

trata logo de desmistificar essa concepção de Estado universal, neutro. O Estado é uma

instituição política e jurídica de dominação de uma classe sobre outra, afirma Lênin. E como

diz o próprio Engels,

Sendo o Estado uma instituição meramente transitória, que é utilizada na luta, na

revolução, para submeter os adversários pela violência, é um absurdo falar de Estado

popular livre: enquanto o proletariado ainda necessitar do Estado, não o necessitará

no interesse da liberdade, mas para submeter os seus adversários, e tão logo que for

possível falar-se de liberdade, o Estado tal com tal deixará de existir. Por isso, nós

proporíamos que fosse dita sempre, em vez da palavra Estado, a palavra “comunidade [...]93

O próprio Marx anota que há uma etapa de transição revolucionária entre a sociedade

capitalista e a comunista, a saber, um período de transição política com a tomada de poder

pela nova classe revolucionária, o trabalhador. Essa fase ele a denomina de “ditadura do

93 ENGELS, Friedrich. Cartas de Engels a Augusto Bebel. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras

escolhidas, v. 2, p. 229-230. (Grifo do autor).

235

proletariado” que significa a hegemonia do proletariado no poder de Estado, como

instrumento de coerção à reação contrarrevolucionária da classe destituída. No Manifesto

Comunista, Marx e Engels afirmam que “[...] a primeira etapa da revolução operária é erguer

o proletariado à posição de classe dominante, à conquista da democracia.”94

E anotam que o

proletariado usará de todo seu poder para tirar aos poucos o capital da burguesia, ou seja,

centralizando os meios de produção nas mãos do Estado, pois, como nova classe dominante, o

proletariado organizado aumentará o mais rápido possível o total das forças produtivas.95

Portanto, afirma Marx, “Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista medeia o

período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período corresponde

também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura

revolucionária do proletariado.”96

Na concepção de Lênin, portanto, o socialismo seria a primeira fase de realização do

comunismo, isto é, a sociedade comunista inferior originada da sociedade capitalista. Nessa

primeira fase – o socialismo ou comunismo inferior – os meios de produção capitalista são

expropriados e se tornam propriedades coletivas. A partir daí, cada indivíduo da nova fase

executará uma parte do trabalho socialmente necessário, produzindo determinados produtos

para os “armazéns públicos” e também recebendo um certificado que lhe dará o direito de

receber uma determinada quantidade de produtos à satisfação de suas necessidades. Nessa

condição, diz Lênin, funda-se o “reino da aparente igualdade”. Por outro lado, nessa primeira

fase não se pode abolir totalmente o “direito burguês”, mas só parcialmente, pois este

assegura a propriedade privada individual que não tem caráter mais de classe. O “direito

burguês”, nesse caso, tem como função regular a distribuição dos produtos e do trabalho entre

as pessoas no socialismo, afirma Lênin. Ou como ele mesmo assevera: “‘Quem não trabalha,

não come’, esse princípio socialista já está realizado; ‘para uma soma igual de trabalho, soma

igual de produtos’, este outro princípio socialista está igualmente realizado. Mas isto ainda

não é o comunismo e ainda não abole o ‘direito burguês’”.97

Em suma, o “direito burguês”

ainda prevalecerá para orientar o novo modo de trabalho humano em bases socialistas e, por

outro lado, a morte do Estado só dar-se-á quando não houver mais capitalistas, classes sociais

antagônicas, quando se sucumbe o processo de dominação de uma classe sobre outra. Assim,

o que vai caracterizar particularmente o regime pós-capitalista não é a abolição da

propriedade geral, mas a abolição da propriedade burguesa, como diz Marx no Manifesto.

94 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: LASKI, op. cit., p. 112. 95 Cf. Ibid., p. 112. 96 MARX. Crítica ao Programa de Gotha. In: Obras escolhidas, v. 2, p. 221. (Grifo do autor). 97 LÊNIN, O Estado e a revolução, p.116-117.

236

“Muda-se apenas o caráter social da propriedade, que perde sua vinculação de classe.”98

3.3.2 O comunismo

Poderíamos dizer que o comunismo seria a realização da genuína liberdade humana, o

mais elevado estágio social que a humanidade alcançaria para desenvolver suas

potencialidades humanas, pois teoricamente seria uma sociedade baseada na comunhão dos

bens materiais e intelectuais. O trabalho tornar-se-ia então a atividade humana mais sublime

dentre todas as atividades, a garantia da realização humana no homem. O trabalho sob o

imperativo da plena liberdade seria a mais verdadeira e autêntica atividade de realização da

essência do homem. Há, nesse sentido, uma reconciliação entre o homem e a natureza, entre o

homem e os outros homens, o homem consigo mesmo, ou melhor, uma recuperação da

unidade entre essência e existência, trabalho manual e trabalho intelectual; isso, claro, num

novo patamar de produção e distribuição da riqueza social comunalmente realizada.

No comunismo, o intercâmbio humano não se limitaria apenas ao mero processo de

troca de mercadorias entre produtores e consumidores, mas também a troca entre as atividades

individuais, regida pelo princípio universal comunista: De cada um conforme suas

capacidades a cada um segundo suas necessidades. Dessa maneira, resgata-se o princípio da

qualidade, fundamental para a contabilidade dos produtores associados, ou seja, seria um

meio de conferir significado não mais fetichizado à quantidade. Na Crítica ao Programa de

Gotha, Marx deixa claro que

Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a

subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, o

contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não

for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o

desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as

forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a

sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua

capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades.99

Dessa forma, a produção e a distribuição seriam reguladas a partir das reais

necessidades dos indivíduos, e não mais de necessidades artificiais, supérfluas, levando em

consideração os limites dos recursos naturais do planeta, do esforço humano e a preservação

do meio ambiente. Haveria então um novo esquema de interação em substituição ao esquema

objetal de produção, ou seja, uma nova forma antiautoritária de cooperação seria introduzida

98 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: LASKI, op. cit., p. 107. 99 MARX. Crítica ao Programa de Gotha. In: op. cit., p. 214-215. (Grifo nosso).

237

nas unidades produtivas como uma nova relação entre cooperação técnica e cooperação

interativa, substituindo o capitalista por uma autodireção coletiva dos trabalhadores, de tal

modo que a organização da produção, na base da divisão do trabalho, seria normalizada pelas

condições de possibilidade da autodireção coletiva.100

A concepção de comunismo aparece em várias obras de Marx, seja nos Manuscritos

Econômico-Filosóficos,seja na A Ideologia Alemã, seja no Manifesto do Partido Comunista e

até mesmo na Crítica ao Programa de Gotha.

Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx tenta diferenciar o verdadeiro

comunismo do comunismo utópico, grosseiro, de natureza democrática e despótica, mas numa

linha, digamos, mais antropológica, de resgate do homem perdido na alienação de si mesmo,

do produto do seu trabalho, da sua atividade de trabalho e em relação aos outros homens, a

saber, alienação no sentido de perda do homem da sua humanidade e de pura servidão ao

outro. A concepção comunista que Marx sempre ressalta nesta obra é a do resgate do homem

como ser genérico, perdido em si mesmo e para si próprio ou sua autoalienação, ou seja, a

recuperação do ser social do homem, da sua essência separada da sua existência. Marx

também nos sugere como esse processo de abolição da alienação capitalista pode ocorrer a

partir da lei da dialética implícita na formação econômica capitalista, isto é, a contradição do

sistema.

Paradoxalmente a propriedade privada burguesa cria as condições objetivas e

subjetivas de sua própria negação, isto é, o trabalho como antítese à sua condição de ser aí no

mundo, e a sua própria lógica de valorização do valor que coloca a propriedade privada, na

forma de capital, num labirinto sem saída da sua limitação de ampliação enquanto

possibilidade de autovalorização. Marx ressalta também que o comunismo possibilita a

reapropriação do homem de sua vida genérica, do seu ser enquanto ser de sentidos humanos

que captam outros sentidos e dão sentidos à vida. Por outras palavras, é a única maneira de o

homem recuperar todos os sentidos físicos e intelectuais que fazem dele um “ser-ter”, isto é,

ser é ter e ter é ser, uma unidade dialética que forma o humano no homem. E, por fim, como

ele mesmo enfatiza nesta obra,

O comunismo constitui a fase da negação da negação e é, por conseguinte, para o

subsequente desenvolvimento histórico, factor real, necessário, da emancipação e

reabilitação do homem. O comunismo é a forma necessária e o princípio dinâmico

do futuro imediato, mas o comunismo não constitui em si mesmo o objectivo da evolução humana – a forma da sociedade humana.101

100 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993. p. 283. 101 MARX, Manuscritos económico-filosóficos, p. 205. (Grifo nosso).

238

Na obra A Ideologia Alemã, marco epistemológico do nascimento do novo

materialismo (o materialismo dialético e histórico como superação radical da filosofia de

Hegel e da crítica ao materialismo antropológico de Feuerbach), Marx pensa o comunismo em

bases materiais da história, quando desenvolve teoricamente categorias como “relações

sociais de produção”, “forças produtivas”, “ideologia”, “divisão social do trabalho”, “Estado”,

“classe dominante” “proletariado”, “classe social”, “propriedade” etc.

Na verdade, toda classe quer realizar sua hegemonia, conquistando o poder do Estado

e, assim, apresentar seu interesse particular como interesse de todos. O proletariado enquanto

classe que aspira ao poder é uma exceção, porque ele quer abolir todas as formas de

dominação e exploração. Esta classe revolucionária quer abolir todas as classes, e até mesmo

a si própria enquanto classe proletária, como também libertar a sociedade da tutela do Estado.

Esta é a tese da teoria política do marxismo acerca da hegemonia do proletariado, do seu

papel de direção da classe oprimida e explorada contra a hegemonia burguesa.102

O comunismo significa então a abolição do trabalho, mas do trabalho forçado que

impõe ao ser humano uma divisão obrigatória do trabalho. Por outro lado, o homem da

sociedade comunista será o homem total que poderá transitar ao seu bel-prazer de uma tarefa

a outra, conforme sua vontade. Mas para isso, o proletariado tem que existir num plano

histórico-mundial, quer dizer, o comunismo só se efetiva realmente no plano histórico-

mundial. Conforme Marx, o comunismo não é um estado a ser implantado ou um ideal em

que a realidade lhe seja subordinada, mas um movimento real que objetiva superar o

capitalismo com suas contradições e antagonismos sociais. A diferença da revolução

comunista em relação às outras revoluções é que

Em todas as revoluções anteriores, o modo de atividade permanecia inalterado e se

tratava apenas de uma outra distribuição dessa atividade, de uma nova divisão do

trabalho entre outras pessoas; a revolução comunista, ao contrário, é dirigida contra o modo de atividade anterior, ela suprime o trabalho e extingue a dominação de

todas as classes abolindo as próprias classes, porque ela é efetuada pela classe que

não é mais considerada como uma classe na sociedade, que não é mais reconhecida

como tal, e que já é a expressão da dissolução de todas as classes, de todas as

nacionalidades, etc. , no quadro da sociedade atual.103

No entanto, isso não acontece a partir de uma vontade puramente subjetiva ou a partir

de uma vontade politicamente romântica e ingênua da história humana. Nessa perspectiva, o

capitalismo precisa se universalizar mundialmente entre países também de economias

102 Cf. GORENDER, Jacob. Introdução. In: MARX e ENGELS. A Ideologia Alemã, p. XXXIII. 103 MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 85-86. Não é à toa que Mészáros afirma que “A consciência

comunista foi definida em A Ideologia Alemã como uma consciência da necessidade de uma revolução

fundamental.” (MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 1048).

239

assimétricas, subdesenvolvidas, justamente para aumentar a expansão das forças produtivas

que promovem o intercâmbio do mercado mundial. Este é o critério da universalidade

introduzido em A Ideologia Alemã, jamais menosprezado por Marx e Engels. Mas vale

ressaltar que o comunismo não se realiza somente pela transformação radical da estrutura e

superestrutura social, mas principalmente pela formação de uma consciência comunista

(internacional). Como diz Lukács em História e consciência de classe,

[...] o portador deste processo de consciência é o proletariado. Na medida em que a

sua consciência surge como conseqüência imanente da dialéctica histórica, ele

próprio aparece como dialéctico. Por outras palavras, esta consciência é apenas a expressão da necessidade histórica.104

Além do mais, a consciência, oriunda do movimento prático revolucionário proletário,

apreende também os fundamentos econômicos que determinam o processo de alienação do

trabalho social, logo, do indivíduo singular.

Entretanto, quando Marx e Engels pressupõem o comunismo como a forma de

propriedade coletiva evoluída, a partir do desenvolvimento das forças produtivas que

produzem o excedente para a sociedade não correr o risco da escassez como no comunismo

primitivo, eles também analisam as formas anteriores de propriedade privada como

pressuposto histórico-dialético para a efetivação daquela. No Mundo Antigo e na Idade

Média, a primeira forma de propriedade era a tribal, condicionada entre os romanos pela

guerra e os germanos pela pecuária. Dizem Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, que a

propriedade tribal aparece como propriedade de Estado, cujo direito a ela pelo indivíduo era

apenas de possessio que se limita a uma propriedade fundiária; a propriedade privada mesmo

surge entre os povos antigos, como entre os modernos, como propriedade mobiliária. Da

posição de propriedade tribal, ela passa a evoluir para diferentes estágios: propriedade

fundiária feudal, propriedade mobiliária corporativa, capital manufatureiro até chegar ao

capital moderno realizado pela grande indústria e concorrência universal, tornando-se

propriedade privada em estado puro, despojada de todo aspecto coletivo e estatal. É a tal da

emancipação da propriedade privada em relação à comunidade. Daí surgir o direito privado

104 LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 198. Vale salientar que Lukács, no Posfácio de 1967 deste

livro, faz sua autocrítica afirmando que História e consciência de classe se dirige contra os fundamentos da

ontologia do marxismo, ou seja, o trabalho e o desenvolvimento do homem no trabalho. Por outro lado, ele

admite que a concepção de práxis revolucionária correspondia ao utopismo messiânico do comunismo de

esquerda e não a verdadeira doutrina de Marx; logo delimitava a consciência autêntica do proletariado,

conferindo-lhe uma objetividade prática incontestável. Assim como super-hegelianiza o sujeito-objeto idêntico

na história humana real na categoria proletariado, o partido, isto é, como portador de um imperativo moral. Mas

destaca no livro o aspecto positivo, ao dar a categoria da “totalidade” o lugar metodológico central que sempre

ocupara na obra de Marx. Cf. LUKÁCS, op. cit., p. 356 et seq.

240

com o fim da comunidade natural.105

No entanto, se o comunismo é uma nova forma justa e equitativa de apropriação e

distribuição das coisas produzidas pelo homem, então o comunismo é deveras trabalho

socialmente compartilhado, ou trocas de atividades entre os vários indivíduos sociais sem ser

troca na forma dinheiro. Desse modo, afirmam Marx e Engels que “Por isso mesmo, a

apropriação de uma totalidade de instrumentos de produção já é o desenvolvimento de uma

totalidade de faculdades nos próprios indivíduos. Essa apropriação é, além disso,

condicionada pelos indivíduos que se apropriam.”106

Portanto, a organização do comunismo é

mesmo econômica, a saber, a criação de uma nova base material de produção que permite

engendrar as condições de existências para associar e unir as pessoas.

Desta feita, na visão de Marx e Engels, os conflitos históricos têm sua gênese na

contradição entre as forças produtivas e o modo de trocas; e esta contradição provocou várias

vezes na história humana o aparecimento de revoluções, só que nunca comprometendo a

propriedade privada e a divisão social do trabalho. Conforme Marx e Engels, “os indivíduos

de onde partiam as revoluções criavam ilusões sobre a sua própria atividade, segundo o grau

de cultura e seu estágio de desenvolvimento histórico.”107

De tal modo que, para Marx e

Engels, é na comunidade de indivíduos proletários que torna-se possível eles exercerem o

controle das forças materiais e abolirem a divisão hierárquica do trabalho, quer dizer, é só na

comunidade que a liberdade individual do ser humano é possível, como também é possível

obter meios para desenvolver suas capacidades humanas em todos os sentidos. Marx e Engels

acreditam, portanto, que “Na comunidade real os indivíduos adquirem sua liberdade

simultaneamente com sua associação, graças a essa associação e nela.108

” Se a associação dos

indivíduos até o momento não era uma associação voluntária, mas uma união necessária,

fundada em determinadas condições injustas, então no comunismo – com o fim da sociedade

classista, da autoalienação humana, da divisão injusta do trabalho e do poder do Estado

coercitivo – a associação dos indivíduos promoverá a verdadeira realização da individualidade

humana, na qual a igualdade de condições sociais permitirá o desenvolvimento das faculdades

humanas, de suas essências e a realização da liberdade plena.

No Manifesto Comunista, o termo “comunismo” é uma palavra que já se contrapunha

ao “socialismo”, pois naquele ano de 1847 o socialismo tinha uma acepção vinculada aos

socialistas utópicos, tais como os fourieristas na França e os owenistas na Inglaterra. “[...] o

105 MARX e ENGELS, A Ideologia Alemã, p. 73-75. 106 Ibid., p. 82-83. 107 Ibid., p. 92. 108 Ibid., p. 93.

241

socialismo significava um movimento burguês, e o comunismo, um movimento da classe

trabalhadora.”109

, ou seja, se no continente europeu o socialismo era muito bem considerado,

o comunismo, ao contrário, já era menos aceito. O socialismo utópico visava a revoluções de

cunho mais político sem destruir totalmente a base das estruturas da sociedade capitalista,

enquanto o comunismo objetivava construir radicalmente a nova sociedade de produtores

associados sob novas estruturas e superestruturas sociais. O comunismo no Manifesto é, pois,

o movimento libertário dos trabalhadores em face de todo tipo de opressão e exploração das

estruturas sociais burguesas, a saber, a força dos trabalhadores em movimento que se aglutina

e se expande para se confrontar com a força do capital.

O que caracteriza o comunismo não é somente a derrubada da dominação burguesa e a

conquista do poder político ou a abolição das relações de propriedade, mas a abolição da

propriedade burguesa. Se no capitalismo a propriedade privada é constituída a partir da

exploração do trabalho excedente, alienado-estranhado, realizando o processo de acumulação

de capital, no comunismo o trabalho acumulado torna-se meio de ampliação, enriquecimento

e promoção de existência dos trabalhadores. Sendo assim, o comunismo é a sociedade onde o

ser humano torna-se independente e exercita sua verdadeira individualidade, embora essa

associação comunal se faça numa interdependência laboral dos indivíduos, mas agora sob o

imperativo da liberdade e da criatividade, em que “capacidade” e “necessidade” humanas se

relacionam de forma justa e equilibrada, realizando o lema comunista de cada um conforme a

sua capacidade a cada um segundo a sua necessidade. De acordo com Marx e Engels,

Desde o momento em que o trabalho não pode mais ser convertido em capital, em

dinheiro, em renda da terra, num poder capaz de ser monopolizado, isto é, desde o

momento em que a propriedade individual não pode ser mais transformada em

propriedade burguesa, em capital, dizeis que a individualidade [burguesa] está

suprimida.110

O comunismo abole, desse modo, o tráfico, as relações capitalistas de produção e de

troca e a própria burguesia enquanto classe hegemônica. Para Marx e Engels, o comunismo

não impede ninguém de se apropriar dos produtos da sociedade, mas sim de se apropriar do

trabalho alheio por meio da mercantilização da força de trabalho. Daí ser o comunismo o total

desaparecimento da produção capitalista tal como também o desaparecimento da cultura de

classe burguesa, isto é, uma cultura de opressão, de subjugação de uma classe por outra, uma

cultura feita sob o adestramento ideológico da classe no poder, enfim, uma cultura também da

exploração do trabalho feminino e infanto juvenil. Vale ressaltar que o capitalismo contém o

109 ENGELS. Prefácio à Edição Alemã de 1890. In: LASKI, op. cit., p. 87. 110 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: LASKI, op. cit., p. 108.

242

germe da nova sociedade comunista. As contradições imanentes ao sistema, quer dizer, suas

crises, seus limites de expansão e acumulação de capital, queda nos lucros, desemprego

crônico etc., são fatores antagônicos ao proletariado que pode reagir contra o sistema que ou o

explora ou o exclui. O proletário se torna assim uma força demolidora, a partir do momento

em que sua insatisfação e revolta se encapsulam de uma consciência revolucionária para ação.

Por outras palavras, quando o proletariado se apropria da teoria revolucionária e esta se torna

força de costume, é a própria revolução que acontece. Como nos diz Lukács,

O que a consciência do proletário “reflete” é, pois, o elemento positivo e novo que

brota da contradição dialéctica da evolução capitalista. Não é, portanto, algo que o

proletariado invente ou “crie” a partir do nada, pelo contrário, é a conseqüência do

processo de evolução na sua totalidade; este elemento novo só deixa porém de ser

uma possibilidade abstracta para se tornar uma realidade concreta quando o

proletariado eleva a sua consciência e a torna práctica.111

A revolução comunista é, portanto, a ruptura mais radical com as relações capitalistas,

acarretando o rompimento mais radical com suas ideias norteadoras de evolução social. Tal

ruptura é o concreto clamor social dos oprimidos revoltados em busca de um novo modo de

existência social mais humanizado. Dependendo também das condições políticas e

econômicas, as medidas para o rompimento de classe com a ordem burguesa podem se dar de

formas específicas em cada lugar, ou melhor, em cada país. E para finalizar, o comunismo

para Marx “é uma associação [humana] na qual o livre desenvolvimento de cada um é a

condição do livre desenvolvimento de todos.”112

111 LUKÁCS, História e consciência de classe, p.227. 112 MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. In: LASKI, op. cit., p. 113. Tonet aponta três

condições para revolucionar a sociedade: uma teoria revolucionária, um sujeito revolucionário e uma situação

revolucionária. São condições que nem sempre estão presentes ao mesmo tempo; mas para que haja revolução é

preciso que tais condições se encontrem e se articulem. Cf. TONET, Ivo. Sobre o socialismo, p. 14-16.

Disponível em: <http://www.ivotonet.xpg.com.br/arquivos/sobre_o_socialismo.pdf>. Acesso em: 24 maio 2012.

243

CAPÍTULO 4

MARXISMO E FORMAÇÃO SINDICAL CUT

244

4.1 Marxismo e Formação Sindical CUT – Introdução

Abordar a temática sobre a relação entre formação sindical CUT e marxismo é hoje

quase uma impossibilidade analítica de se fazer, pois partimos do pressuposto de que há

tempos o movimento sindical cutista abandonou essa perspectiva marxista de compreensão da

realidade capitalista (se é que tinha alguma), quando optou por fazer um sindicalismo

negociativo, propositivo, corporativo, de colaboração de classes, ou seja, um sindicalismo não

mais de confronto entre classes, mas de cooperação com o capital e o Estado burguês em

determinados momentos da luta. Essa é certamente a grande crise do movimento sindical

contemporâneo, ou seja, uma crise de identidade ideológica ou de “desideologização” da luta,

da ausência de uma utopia antagônica (comunismo) ao capitalismo, de abandono da luta de

classes, sobretudo, depois da queda do socialismo real no Leste europeu. Em outras palavras,

segundo Giovanni Alves, a crise do sindicalismo se apresenta não apenas como um processo

da diminuição de trabalhadores sindicalizados causado pelo desemprego crescente, mas

principalmente pela incapacidade estratégica do sindicalismo em adotar posturas de confronto

diante da ofensiva do capital na produção, pois os sindicatos ficaram presos a uma lógica

reativo-reivindicativa da luta, a qual ele chamou de “defensivismo de novo tipo”, de viés

neocorporativo1. Com suas palavras:

Na verdade, o novo complexo de reestruturação produtiva, com suas determinações

estruturais, tais como a integração do país à mundialização do capital pela abertura

da economia, atingem, de modo abrupto, a subjetividade da classe, impulsionando

mais ainda a crise das estratégias sindicais (e políticas) de cariz classista e

contribuindo para o desenvolvimento de uma crise do sindicalismo no Brasil

caracterizado, principalmente, pelo predomínio de um defensivismo de novo tipo, de

cariz neocorporativo.2

No Brasil, o rumo do movimento sindical foi um tanto diferente em relação aos países

europeus ocidentais, como também no Canadá e Estados Unidos, a saber, vivendo um período

longo de 21 anos de Ditadura Militar (1964-1985), sob uma difícil situação econômica no

final do Regime, com hiperinflação, recessão e redução dos salários, o sindicalismo brasileiro

renasce com força no final dos anos 1970 sob a marca da combatividade, da luta de confronto

com a classe patronal, das greves de massa em São Bernardo do Campo e Osasco, ou melhor,

1 Cf. ALVES, Giovanni. A nova ofensiva do capital, crise do sindicalismo e as perspectivas do trabalho – O Brasil nos

anos 90. In: TEIXEIRA, Francisco José e OLIVEIRA, Manfredo de (Orgs.). Neoliberalismo e reestruturação

produtiva: as novas determinações do mundo do trabalho. Fortaleza: Cortez-UECE, 1996. p. 109-161. 2 ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São

Paulo: Boitempo Editorial, 2005. p. 185. Alves ressalta que algumas análises dão mais ênfase às determinações

político-ideológicas em detrimento da análise estrutural do processo de produção capitalista no Brasil, das

transformações produtivas no complexo capitalista, de cariz tecnológico-organizacional (Cf. ALVES, 2005, p. 299).

245

no ABC paulista.3 Embora a crise do modo de produção fordista nos países europeus

desenvolvidos, Estados Unidos e Canadá tenha se efetivado de forma mais aguda e rápida, no

Brasil ela demorou um pouco a se concretizar, pois tínhamos uma economia “fechada” aos

mercados internacionais e o neoliberalismo foi adiado a entrar no país num primeiro pós-

governo militar (Nova República/com o presidente Sarney), mesmo já tendo iniciado no

Chile, Argentina e Uruguai, pois a conjuntura política interna brasileira obstaculizava a

implantação do neoliberalismo, devido aos movimentos sociais ainda em efervescência; além,

claro, do forte nacionalismo dos governos militares.

Sabemos, entretanto, que a cultura do debate marxista foi muito mais presente e

intensa na época da II Internacional (1889-1914), na qual sindicatos anarquistas, socialistas e

comunistas travaram discussões calorosas sobre o fim do capitalismo e o devir do socialismo.

Toda discussão e embates políticos com suas polêmicas gravitavam na órbita teórica das

estratégias e táticas dos partidos comunistas, socialistas e social-democratas, como também na

dos sindicatos de caráter anarquista, marxista etc., ou seja, de como preparar a classe

proletária para a tomada do poder com a crise final do capitalismo e para a construção do

socialismo. Nesse sentido, havia várias perspectivas teóricas e práticas como a do marxismo

ortodoxo, heterodoxo, reformista, revolucionário etc., ou seja, de que o socialismo poderia

acontecer com o assalto do poder da burguesia imperialista pelo proletariado revolucionário

ou apenas por um processo evolutivo (darwinista) por meio de reformas graduais do Estado

burguês, das contradições e crises econômicas do sistema capitalista, ou melhor dizendo, da

conquista total do Estado e do parlamento burguês pelo proletariado.

Analisar a maneira como a classe trabalhadora organizada vem se preparando teorica e

praticamente para enfrentar esse desafio histórico é que nos propomos aqui, claro, dentro de

certos limites, porque a extensão do assunto é enorme, e numa parte desta pesquisa fica difícil

abordar em toda sua profundidade e extensão. Por isso, delimitamos a questão historiando um

pouco como eram realizadas as formações políticas dos trabalhadores pelo sindicalismo

brasileiro. Um breve relato disso já é um ponto de partida inicial para vermos hoje a diferença

da qualidade da formação política realizada pelos sindicatos, no caso aqui, os sindicatos de

esquerda no Brasil, tendo como referência a Central Única dos Trabalhadores (CUT) que é

atualmente a maior Central Sindical no campo da “esquerda” nas Américas.4 Na verdade, uma

3 Cf. RODRIGUES, Iram Jácome (Org.). O novo sindicalismo: vinte anos depois. Petrópolis: Vozes, 1999. 4 A CUT é hoje a maior Central Sindical da América Latina e a quinta do mundo, com 3.364 entidades filiadas

(registradas em 2012 no Mte) com 7.464.846 sócios, representando 22.034.145 trabalhadores. Disponível

em:< http: //www.redebrasilatual.com.br/temas/trabalho/2011/02/cut-chega-a-2-mil-sindicatos-registrados-no-

ministerio-do trabalho-mas-desconfia-de-criterios >. Acesso em: 14 nov. 2011.

246

formação política a partir da teoria marxiana nos sindicatos filiados à CUT é quase uma

improbabilidade factível de existir, pois seus programas de formação política eram ou são

baseados mais em contar a história do movimento sindical, em estratégias e lutas políticas a se

definirem, ou melhor, mais ligados à formação de lideranças e de gestores sindicais etc.,

tendo, no máximo, feito uso da obra marxiana, O Manifesto do Partido Comunista. A nosso

ver, a carência de pessoas especializadas em marxismo tenha sido também obstáculo para que

a formação política nos sindicatos de esquerda no Brasil se desse a partir das teorias de Marx

e Engels e de seus intérpretes.

Fazendo uma digressão, Massimo Salvadori, ao analisar o pensamento kautskyano

para resgatar a sua importância, diz que, para Kautsky, o marxismo é um “instrumento

cognoscitivo da história social e direção do movimento prático no rumo do socialismo.”5 Em

outras palavras, o marxismo era concebido por Kautsky, tanto um conhecimento que

descobriu as leis de um processo civilizatório que levava à igualdade social, como uma

ciência autônoma da sociedade humana e dos seus modos de desenvolvimento. Nesse sentido,

a concepção materialista da história, para Kautsky, tem como objetivo apreender as leis que

regulam o desenvolvimento histórico, permitindo que o homem organize a maneira mais

eficaz de realizar sua práxis, isto é, as leis sociais que só podem ser encontradas a partir do

estudo da sociedade. Sendo assim, “O estudo da história é necessário para fornecer ao

proletariado uma memória do passado, de seu próprio ponto de vista;”6 mas, segundo

Salvadori, outra meta importantíssima de Kautsky era mostrar como a memória histórica

forma a consciência política do proletariado que evita a ação arbitrária no jogo do embate

entre classes. Portanto, o objetivo de Kautsky era popularizar o saber, quer dizer, iluminar o

operário para que ele pudesse estar de acordo com a ciência, e na Neue Zeit (Revista social-

democrata) Kautsky já fazia esse papel de divulgar o marxismo como teoria global da

sociedade, como afirma Salvadori7.

Tomamos então como objeto de análise a CUT, isto é, o seu projeto nacional de

formação política para suas instituições filiadas, desde 1984 até o presente. Entender como se

deu essa mudança radical de uma Central Sindical que, a princípio, formava politica e

ideologicamente seus filiados para uma Central que hoje prioriza a formação profissional de

seus associados – financiada por órgãos do Estado em sintonia com a perspectiva educativa

neoliberal – é o que nos propomos aqui. Porém, faremos antes um breve histórico da

5 SALVADORI, Massimo L. Kautsky entre ortodoxia e revisionismo. In: HOBSBAWM, Eric J. História do

marxismo II, p. 307. 6 Ibid., p. 309. 7 Cf. SALVADORI, op. cit., p. 303.

247

formação político-sindical no Brasil entre o final do século XIX e início do século XX, a

partir da influência dos imigrantes de perfil anarquista, socialista e comunista, ou seja, suas

lutas, sua formação educativo-sindical nas escolas criadas pelas próprias associações e

sindicatos etc. Em seguida, faremos um resumo histórico de como foi criada a CUT e sua

formação político-sindical, a partir da crise do Regime Militar e fim do sindicalismo pelego.

Por fim, exporemos esse processo de transição de uma CUT combativa e classista, cuja

formação sindical era consequência dessa postura política, para uma CUT colaboracionista

e/ou concertacionista com o Estado burguês e o grande capital, refletindo essa posição

político-ideológica, a posteriori, em seus cursos de formação sindical.

4.2 A Política de Formação Sindical no Brasil no Início do Século XX

Antes de abordar a questão da Política Nacional de Formação da CUT (Pnf), é necessário

fazer um breve histórico sobre as primeiras experiências do movimento operário brasileiro no

campo da educação profissional no começo do século XX. Segundo Manfredi, entre 1902 e 1920,

as propostas educativas dos grupos anarco-sindicalistas proliferavam no interior do movimento

sindical brasileiro. O projeto educativo dos libertários, ou dos anarquistas, pautava-se pela

perspectiva de uma formação para a emancipação político-ideológica e cultural da classe

trabalhadora e, portanto, combinava

[...] a educação para a ação sindical (ou seja, formação político-sindical – através da

imprensa operária, dos congressos, dos centros de estudo) com a educação escolar

destinada à criança (escolas modernas) e aos adultos (universidade popular), num projeto

global, classista, autônomo e independente do Estado. Além disso, essas práticas

educativas articulavam-se com outras atividades culturais massivas e populares, que

eram promovidas pelos libertários nos bairros onde os operários residiam.8

Contudo, no início dos anos 1920, conforme Manfredi, algumas entidades sindicais se

preocupavam em oferecer cursos de formação mais sistemática de caráter profissional. Por

exemplo, em 1923, a União dos Alfaiates do Rio de Janeiro deu um curso de corte e desenho

aos profissionais da área de alfaiataria e, neste mesmo ano, a Associação dos Funcionários de

Bancos do Estado de São Paulo promoveu cursos práticos de línguas e contabilidade,

realizando a posteriori o primeiro curso de contabilidade brasileiro em 19299; também em

São Paulo, a União dos Gráficos indicava no seu estatuto a criação de um Centro Técnico e

Instrutivo das Artes Gráficas para a qualificação profissional; já no Rio de Janeiro, em 1930, a

8 MANFREDI apud TUMOLO, Paulo Sérgio. Da contestação à conformação: a formação sindical da CUT e a

reestruturação capitalista. Campinas-SP: Editora UNICAMP, 2002. p. 137-138. 9 Cf. MANFREDI, Silvia Maria. Educação profissional no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002. p. 92.

248

União dos Trabalhadores Gráficos ministrou um curso de novas técnicas que abordava

estudos de cálculo sobre as velocidades de impressão das novas máquinas de imprensa. Para

Manfredi, essa preocupação das entidades sindicais em requalificar seus associados nas mais

diversas categorias profissionais estava relacionada às transformações nas bases técnicas e

organizacionais do sistema de produção, havendo assim o envolvimento do movimento

sindical com a formação profissional dos trabalhadores. Portanto, de acordo com Manfredi,

“[...] a apropriação e a manutenção do saber técnico, constituem uma das ‘bandeiras

históricas’ do movimento operário brasileiro, contra a crescente desqualificação e a

expropriação do saber a que o capital os têm submetido [...].”10

No caso específico do Ceará, a preocupação com a instrução pública e profissional dos

trabalhadores, através das escolas, já se mostrava presente nos grandes jornais sindicais e

partidários da época e até mesmo em revistas como o Trabalhador Graphico, o Ceará

Socialista, A Centelha, O Cearense, a Revista Phenix, dentre outros. Como afirma Oliveira do

Rio, em sua Tese de Doutorado, a questão educacional era um tema bastante candente ao

longo da história dos trabalhadores que tomavam para si a tarefa de formar escolarmente os

filiados de seus sindicatos ou associações, cujo objetivo era fazer com que eles tivessem

acesso ao conhecimento universal, quer dizer, científico, técnico e humanista. Para Oliveira

do Rio, na Primeira República já haviam ocorrido várias iniciativas do Movimento Operário

Cearense em promover a educação dos trabalhadores, mesmo com diferentes matizes político-

ideológicos de diversas instituições de resistência ou beneficentes, sobretudo àquelas ligadas à

Igreja Católica.11

Nesse sentido, as práticas formativas realizadas pelo movimento operário cearense não

eram homogêneas no que diz respeito ao horizonte político, pois os pontos de vista políticos

eram conflitantes. Segundo Oliveira do Rio, havia no período três concepções diferentes em

voga sobre a educação para os trabalhadores no Ceará: 1) uma educação voltada para a

ascensão social a partir dos valores burgueses (sociedades beneficentes); 2) a educação como

instrumento para a abolição das classes sociais, visando o socialismo (práticas formativas

socialistas, anarquistas e comunistas); e 3) a educação pactuada entre Estado e Igreja, com

seus projetos oficiais, tornando-se a educação um instrumento de controle social (grupos de

orientação católica). No entanto, algumas dessas práticas, diz Oliveira do Rio, ou se fundiram

10 MANFREDI, op. cit., p. 244. 11 Cf. OLIVEIRA DO RIO, Cristiane Porfírio de. O movimento operário e a educação dos trabalhadores na

Primeira República: a defesa do conhecimento contra as trevas da ignorância. 2009. 273 f. Tese (Doutorado em

Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza,

2009. p. 225-226.

249

ou se distanciaram, dependendo das condições objetivas nas quais estavam inseridos os

trabalhadores cearenses.12

São, portanto, vários os movimentos libertários que se preocupavam com a formação

político-educativa dos trabalhadores no Ceará. Por exemplo, em 7 de janeiro de 1906 foi

fundada a Escola Pinto Machado em homenagem ao presidente da União Operária de

Engenho de Dentro no Rio de Janeiro com a qual o Centro Artístico Cearense mantinha

relações desde o 1º Congresso Operário Brasileiro (1906); outra é a Escola Elisa Scheid,

criada em maio de 1906, que homenageava a presidente do Partido Operário Independente,

isto é, uma escola voltada para o público feminino com aulas noturnas. Havia também a Liga

Cearense contra o Analfabetismo, cujo lema era “Sem instrução não há liberdade, e sem

liberdade não há civilização.”13

Por outro lado, o papel da imprensa libertária no Ceará foi de fundamental importância

para o processo de formação política, crítica e libertária dos trabalhadores tais como os jornais

sindicais O Regenerador (1908), Voz do Graphico (1920-1922) e O Combate (1891-1892 e

1896-1921). O Regenerador era um jornal sindical de caráter anarquista, nascido do processo

de criação do Clube Socialista Máximo Gorki que apontava para a difusão do pensamento

socialista, emitindo manifestos, notas, boletins e panfletos e expressando, assim, uma

militância social da corrente socialista libertária do Ceará. A Voz do Graphico era um jornal

da Associação Graphica do Ceará que propagava panfletos, manifestos, traduções,

reproduções de obras seminais, como também estimulava a criação de bibliotecas básicas do

pensamento socialista e promovia vendas de livros e periódicos.14

O Combate era o órgão de

divulgação do Partido Operário cearense que fazia oposição ao governo Luiz Antônio Ferraz

(1889-1891), cuja circulação, a princípio, foi de mais ou menos um ano (1891-1892),

voltando a circular em janeiro de 1896. Para Adelaide Gonçalves, que estudou a imprensa

socialista no Ceará,

Os jornais O Regenerador (1908), Voz do Graphico (1920-1922) e O Combate

(1921) revelam no seu discurso valores e afinidades próximos do anarquismo e da

estratégia sindicalista revolucionária que caracterizou a prática anarquista entre o

operariado brasileiro até os anos 30 deste século [XX]. São eles os representantes no

Ceará de uma imprensa que expressa uma visão de socialismo libertário constituída

a partir do pensamento de Proudhon, Bakunin e Kropotkin, como também pelas

idéias sindicalistas revolucionárias de Emille Pouget e Fernand Pelloutier.”15

12 Cf. OLIVEIRA DO RIO, Tese, p. 227. 13 OLIVEIRA DO RIO, Tese, p. 230-231. 14

Cf. Ibid., p. 233-235. 15 GONÇALVES, Adelaide. Imprensa dos trabalhadores no Ceará: histórias e memórias. In: SOUZA, Simone

(Coord.). História do Ceará. 4. ed. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2004. p. 285.

250

Todavia, conforme Oliveira Rio, as entidades operárias de resistência, contrapondo-se

ao assistencialismo das entidades beneficentes e mutualistas como a católica e a maçônica,

tinham uma concepção ampliada de educação, principalmente aquelas de perfil anarquista,

identificando o sindicato com a escola. O horizonte anarquista em relação à educação é o “de

instruir para redimir”, ou seja, buscava convocar a classe trabalhadora à organização e à luta

classista, pois acreditava que defender o conhecimento contra as trevas da ignorância era

libertar os operários das consciências embrutecidas. Assim pensava, por exemplo, a União dos

Ferroviários Cearenses que fundou uma escola noturna para a educação de seus associados e

também a de seus filhos, tendo por base a Escola Moderna (racionalista) do educador

espanhol Francisco Ferrer. É importante salientar que a necessidade de instrução não era

apenas para alfabetizar e promover a ascensão social dos trabalhadores, mas, sobretudo,

possibilitá-los a compreender a sociabilidade em que estavam inseridos, objetivando construir

projetos de emancipação. Cabe ressaltar também que os movimentos anarquistas e anarco-

sindicalistas divulgaram as ideias de Francisco Ferrer no Brasil que se materializaram em

escolas populares, cujos princípios norteadores eram a liberdade, o livre pensamento, a

solidariedade e a coeducação. A educação infantil aí se apoiava numa base científica e

racional, eliminando qualquer forma de misticismo ou coisas sobrenaturais.

Mas como diz Edgard Carone, “[...] o operário é antes de mais nada um autodidata: ele

aprende ouvindo seu companheiro discursar ou escutando-o ler. Daí a importância de

publicações operárias como jornais, panfletos e livros, ou do teatro e do sarau.”16

Ghiraldelli

Jr., um estudioso das propostas educacionais do movimento operário, assevera que os

militantes socialistas já viam obstáculos para o processo de divulgação das ideias de justiça,

igualdade e distribuição das riquezas, e relembra que Lênin já fazia esse alerta em 1921, ou

seja, “de como fazer política sem o pré-requisito da alfabetização”, que já era um entrave para

vender os jornais socialistas, divulgar panfletos e organizar os sindicatos com pessoas

alfabetizadas.17

Por isso, haver uma luta constante, na Primeira República, dos socialistas

brasileiros pela criação e manutenção de escolas públicas, pois eles se viam obrigados a

elaborar uma estratégia para formar as massas de trabalhadores. Por outro lado, os próprios

socialistas, seja de partidos ou sindicatos, passaram a fundar suas próprias escolas operárias e

16 CARONE, Edgard. Movimento operário no Brasil (1887-1944). São Paulo: Difel, 1979. p. 12-13. 17 Cf. GHIRALDELLI JR., Paulo. Educação e movimento operário no Brasil. São Paulo: Cortez Editora/

Autores Associados, 1987. p. 88. Vale dizer que este autor rompeu com o marxismo, aderindo ao

neopragmatismo, ou melhor, cursou novo mestrado (1995) e novo doutorado (1998) na USP, sob a orientação da

professora Olgária Matos, tratando de temas voltados ao pragmatismo. Hoje é membro fundador e atual diretor

do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA/Brasil) e coordena um Grupo de Trabalho Pragmatismo

(GT Pragmatismo), da Associação Nacional Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). Cf. OLIVEIRA DO RIO,

Tese, p. 136, nota 99.

251

bibliotecas populares, por meio de recursos públicos ou com verbas dos próprios sindicatos.18

Percebe-se, então, desde a Primeira República, a preocupação do Movimento Operário com a

formação política e profissional do trabalhador a partir de três principais reivindicações: a luta

pelo ensino gratuito, ensino laico e a necessidade do ensino técnico-profissional. Como

conclui Oliveira Rio, os socialistas se dividiam por conceber dois tipos de educação, a saber,

os que defendiam a educação formal das escolas públicas com conteúdos científicos

tradicionais e os que apostavam na educação informal de caráter politizante dada pelos

sindicatos.19

Havia, portanto, no começo da Primeira República (1889-1930) uma preocupação dos

sindicatos e partidos operários de construir uma pedagogia socialista para formar

politicamente o trabalhador. Tanto que construíram escolas operárias com ensino laico, como

também fizeram bibliotecas populares. Isso pode ser comprovado no jornal gaúcho Echo

Operário (1897-1899), jornal Ceará Socialista (1919), como também nas resoluções do

primeiro Congresso Operário Brasileiro (1906) e documentos da primeira Conferência

Operária de São Paulo (1908) em que menciona a criação da Universidade Operária. Por

exemplo, no segundo Congresso Operário Brasileiro (1913), já se fazia menção contra a

educação ministrada pela burguesia, e aconselhava os sindicatos e as classes trabalhadoras em

geral a tomarem como princípios o método racional e científico, opondo-se, assim, ao ensino

místico e autoritário. Em outras palavras, este Congresso queria que as entidades

trabalhadoras criassem e divulgassem as escolas racionalistas, ateneus, cursos

profissionalizantes de educação técnica e artística, revistas e jornais, como também as

conferências e preleções, organizando, por conseguinte, certames e excursões de propaganda

instrutiva e editando livros e folhetos.20

Assim, também foi ratificada no terceiro Congresso

Operário Brasileiro (1920) a questão da formação dos trabalhadores, para abrir escolas

capazes de tornar o trabalhador um homem de consciência livre e independente dos

preconceitos presentes na educação burguesa capitalista; e para tal realização, defendiam a

redução das horas de trabalho para facilitar a instrução e a educação do trabalhador, como se

encontra na Moção dos Operários ao Comitê das Forças Revolucionárias, redigido em 1924.21

Por conseguinte, a grande preocupação dos operários brasileiros, já nos anos 1920, era

desenvolver uma intensiva propaganda contra todos os vícios e maus hábitos que

prejudicavam moral e civicamente os trabalhadores e, para isso, era imprescindível que eles

18 Cf. GHIRALDELLI JR., op. cit., p. 166. 19 Cf. OLIVEIRA DO RIO, Tese, p. 167. (Grifo nosso). 20 Cf. Ibid., p.171. 21 Cf. Ibid., loc.cit.

252

tivessem uma permanente instrução em todos os meios, objetivando elevar o seu nível de

conhecimentos intelectuais, profissionais e sociais. O analfabetismo era o grande atraso para

os trabalhadores, pois tinha raízes seculares e profundas na formação e desenvolvimento da

personalidade dos trabalhadores, inclusive impedindo que eles percebessem as ideologias ou

mentiras patronais, eclesiásticas, governamentais e divinas. Isso, para os militantes libertários

(anarquistas), representava o quadro de miséria espiritual dos trabalhadores. Daí eles

encetarem o movimento de criação de escolas livres que alfabetizassem e despertassem o

raciocínio dos alunos.22

Desta feita, o projeto educativo dos libertários anarquistas e/ou

anarco-sindicalistas23

não era o de ascensão social dos trabalhadores, mas o de ser

instrumento de atuação social para a sua emancipação. O objetivo é, na verdade, bem

marxista, ou seja, libertar os trabalhadores das ilusões burguesas, religiosas e governamentais.

De tal maneira, tanto os libertários anarquistas quanto os socialistas repudiavam o

ensino religioso e só divergiam quanto à questão do ensino como obrigação do Estado, o

ensino público e gratuito, porque os libertários anarquistas enxergavam o Estado como aliado

da Igreja, ambos sustentáculos da classe burguesa. O fato é que os libertários anarquistas, ao

recolherem as velhas bandeiras de defesa da escola pública e gratuita, realizaram várias

experiências educacionais como os Centros de Estudos Sociais, a Universidade Popular e as

Escolas Modernas.

Os Centros se proliferaram em todo o país, sobretudo, nas cidades de São Paulo e Rio

de Janeiro. Eram pequenas associações de libertários para discutir ideias anarquistas, ou

melhor expressando, os membros do Centro se educavam a partir das teorias libertárias com a

obtenção de livros e periódicos de editoras europeias. Tais Centros eram como viveiros de

militantes que elaboravam jornais e revistas com editorial vinculado ao Movimento Operário.

A Universidade Popular de Ensino Livre, fundada em 1904 no Rio de Janeiro, não era ligada

exclusivamente ao Movimento Operário, mas também era vinculada aos literatos e

intelectuais anarquistas em sua maioria, claro, com apoio de alguns socialistas. Os objetivos

da Universidade Popular eram: fundar um ensino superior metódico para o povo, organizar

conferências sobre todos os temas de interesse dos trabalhadores, criar um museu social e uma

biblioteca, fazer representações de arte social, saraus, festas libertárias e publicar um boletim

22 Cf. OLIVEIRA DO RIO, Tese, p. 172. Cf. também GHIRALDELLI JR., op. cit., p.101-103. 23 Conforme Sena, a superação das experiências assistenciais ocorreu com o aparecimento dos sindicatos com

ideias anarquistas. Em outras palavras, o proletariado aparece como “classe para si”, isto é, tem sua primeira

consciência de classe, a partir do anarco-sindicalismo. O anarco-sindicalismo é uma das principais correntes do

anarquismo surgida na história do movimento operário, e no Brasil foi tendência majoritária do movimento

sindical centro-sul. Cf. SENA, José Acrísio. Sindicalismo e educação da classe trabalhadora: a disputa política

e o debate das idéias na Central Única dos Trabalhadores (CUT). 2004,110 f. Dissertação. (Mestrado em

Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2004, p. 26.

253

informativo para os trabalhadores. Infelizmente a Universidade durou pouco tempo, fechando

seis meses após a sua criação, cuja causa possível, segundo Ghiraldelli Jr., foi a distância

entre a erudição dos mestres e a vida cultural do proletariado, sendo muitos doutores da

Universidade alheios ao Movimento Operário.24

Por fim, as mais diversas escolas. A comunidade italiana de Bom Retiro/SP

reinaugurava a Escola Libertária Germinal (1907); e a partir daí várias “escolas livres”

surgiram como empreendimentos educacionais, resultantes da ação de grêmios e círculos

operários libertários. Em Porto Alegre, por exemplo, foi criado o Grêmio Instrutivo Eliseu

Réclus que tinha como fim único a educação operária. Entre os anos de 1907 e 1911 os

anarquistas investiram na construção de escolas nos bairros industriais da capital gaúcha. Em

Campinas/SP foi criado um importante centro operário pela Liga Operária local, a Escola

Social, que tinha como finalidade alfabetizar e preparar o aluno para o trabalho, o que não

significava prepará-lo para o mercado. Com relação à Escola Moderna, baseada na criação da

Escola Moderna de Barcelona pelo espanhol Francisco Ferrer, criou-se uma comissão Pró-

Escola Moderna no Rio de Janeiro, com a finalidade de arrecadar fundos e enviá-los para São

Paulo, cujo objetivo era fortalecer o núcleo paulista para que a primeira escola não se

dedicasse apenas ao ensino das crianças, mas também formasse professores e editasse livros

para o ensino racionalista. Desta feita, o método de ensino nas Escolas Modernas

(racionalistas) combinava exercícios em sala de aula com excursões educativas; mas também

propunha a liberar as crianças do progressivo ensino baseado no misticismo e na bajulação

política da escola religiosa e do governo, quer dizer, o objetivo era desenvolver a inteligência

para formar o caráter apoiado numa concepção moral sobre a lei de solidariedade. Assim

foram praticados os possíveis germes da pedagogia socialista com os libertários anarquistas e

socialistas.

No que diz respeito à postura dos comunistas no Brasil face à formação educacional

dos trabalhadores nos dois primeiros anos de fundação do Partido Comunista Brasileiro

(PCB), houve a propagação da renovação pedagógica que se implementava na Rússia desde

1918, isto é, não se considerou as condições da educação brasileira e, portanto, se impôs a

divulgação das realizações culturais e pedagógicas da Revolução Bolchevique. Na revista

Movimento Comunista já se mencionava o ensino na Rússia sob o governo de Lênin

publicando o artigo “Universidade dos Povos do Oriente”, a primeira Universidade

Comunista com mais de 700 estudantes de todos os pontos do Oriente, estando lá estudantes

24 Cf. GHIRALDELLI JR., op. cit., p. 121-122.

254

de 57 línguas diferentes. Mutatis mutandis, os comunistas no Brasil encamparam a bandeira

pela expansão do ensino escolar e foram sensíveis às reformas pedagógico-didáticas. Mas as

ideias e concepções pedagógico-didáticas eram derivadas do modelo da escola desenvolvido

pela Revolução russa e estavam apresentadas nas publicações teóricas do PCB. Vale dizer

que o PCB rompeu com uma concepção de formação profissional assistencialista, enquanto

uma rede de ensino destinada aos pobres e passou a defender a introdução da “escola única”

para que houvesse a formação intelectual e politécnica tal como se apresentava o modelo de

ensino soviético. Na verdade, para os comunistas a educação político-partidária era mais

importante do que a instrução popular de caráter mais universal; contudo, para seus objetivos

políticos, o importante era a educação do militante para torná-lo revolucionário comunista.25

Na revista Movimento Comunista, o militante Rodolfo Coutinho delineou a concepção

de educação que acabaria por nortear a ação do PCB. Em poucas palavras: uma educação feita

com os próprios recursos dos comunistas, sendo então o ponto central da política

revolucionária, ou seja, ou se faz educação ou não se fará revolução; era preciso, portanto,

acabar com a mentalidade que os trabalhadores tinham tal qual a de seus pais e avós e, para

isso, era necessário abrir em cada bairro operário uma escola para ensinar a ler e escrever,

pois sem consciência, dizia ele, não poderia haver dever revolucionário.26

Já Astrogildo

Pereira, em 1922, pleiteava a educação, ou seja, o estudo do marxismo-leninismo como

fundamental para a constituição do partido comunista; e Otávio Brandão, um dos militantes

do PCB nos anos 1920, publicou um folheto “Educação”, no qual combatia o ensino religioso

(católico e protestante), como também o ensino laico que tinha como único objetivo formar o

funcionário público que ele considerava uma “nabiça humana”, isto é, “um ser humano pouco

desenvolvido”. Para Brandão, a educação teria que começar imediatamente, mas só seria

completa após a revolução. No entanto, para Ghiraldelli Jr., “[...] toda essa parafernália de

princípios ‘necessários’ à educação do comunista pouco ou nada tinham a ver com o

marxismo ou o leninismo”27

, embora haja registros de vários cursos sobre marxismo-

leninismo, realizados pelo PCB nos anos 1920, mesmo estando na ilegalidade onde o partido

distribuiu 25 mil exemplares de distintos materiais políticos, ou melhor,“[...] foi nesse período

de intenso trabalho que o Partido organizou um ‘curso de teoria marxista’ com 30 semanas de

duração, 240 aulas para 1.440 alunos [...].”28

Para concluir esse período, Ghiraldelli Jr. afirma que socialistas, libertários e

25 Cf. OLIVEIRA DO RIO, Tese, p. 192. 26 Cf. GHIRALDELLI JR., op. cit., p. 153. 27 GHIRALDELLI JR., op. cit., p. 155. 28 Ibid., p. 156.

255

comunistas buscaram soluções diferentes entre si para os grandes problemas pedagógicos,

claro, diferentemente das orientações das elites dominantes. Os socialistas davam ênfase ao

ensino técnico profissional e à instrução primária básica para adultos e crianças, a saber, a

educação popular. Os libertários de perfil anarquista davam o mesmo direcionamento, só que

enriquecendo com as teorias de Francisco Ferrer, dentre outros. Contudo, fica claro que, na

prática, o controle do Movimento Operário pelos libertários significou o arrefecimento da luta

pela extensão da escola pública e gratuita. Mas é fato que a concretização desses ideais no

Brasil, com experiências pioneiras de determinadas escolas, foram fundamentais para o

amadurecimento do Movimento Operário. E, por fim, os comunistas foram frontalmente

contra a plataforma política educacional dos liberalistas nesse período; no entanto, o PCB

deixou abafadas as discussões das teorias pedagógicas, dando margem, assim, para que as

teorias escolanovistas tivessem assento como uma imposição das elites de um novo padrão de

modernidade pedagógica.

Nos anos 1960-1970, o sindicalismo brasileiro fora muito influenciado pela pedagogia

libertária, sobretudo, pelo método de educação de Paulo Freire. A Igreja Católica nos anos de

chumbo da Ditadura Militar teve um papel atuante no sindicalismo brasileiro com a pastoral

operária29

, praticada sobretudo no estado de São Paulo, a partir da influência do Concílio

Vaticano II, realizado pelo papa João XXIII, da Teologia da Libertação na América Latina

com as Comunidades Eclesiais de Base e também da Segunda e Terceira Conferência Geral

do Episcopado Latino-Americana (CELAM), realizadas em Medellín na Colômbia (1969) e

Puebla no México (1979). Daí o Novo Sindicalismo do ABC paulista ter recebido a influência

desse movimento teológico libertário que incluía, além do cristianismo libertador, a teoria

marxiana da sociedade burguesa. Porém, nos estreitos limites desta tese, fica apenas uma

menção en passant sobre essa conjuntura de caráter educativo e libertador do movimento

sindical brasileiro. Segundo Tumolo,

Até o golpe burguês-militar de 1964 outras instituições buscaram promover

experiências de formação dos trabalhadores. É o caso, entre outros, de alguns setores

“mais progressistas” da Igreja Católica, como por exemplo, a Juventude Operária

Católica (JOC) e da União Nacional dos Estudantes (UNE), particularmente através

de seus Centros de Cultura Popular (CCP).30

29 Sobre essa questão, Manfredi afirma que a CPT, Comissão Pastoral da Terra, CPO, Comissão Pastoral

Operária, CIMI, Comissão Indigenista Missionária e CDDH, Comissão de Defesa dos Direitos Humanos são os

organismos ligados à Igreja Católica que faziam trabalhos de assessoria e formação aos movimentos sociais do

campo e da cidade. Cf. MANFREDI, Sílvia Maria. A Política Nacional de Formação da CUT. In: Avaliação

externa da política nacional de formação da CUT. São Paulo: Xamã, 1997. p. 36-37. 30 TUMOLO, Da contestação à conformação: a formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista, p. 138.

Podemos incluir também nesta lista a Federação Nacional dos Trabalhadores (FNT), oriunda em 1960, embora

ligada ao setor conservador da Igreja Católica.

256

Com o advento do golpe militar de 1964, houve uma brutal repressão ao sindicalismo

brasileiro, com perseguição aos dirigentes sindicais de esquerda, sendo presos ou destituídos

de suas direções etc., como também suas outras formas de organizações. Mesmo assim, os

trabalhadores conseguiram, aqui e acolá, resistir, até mesmo de forma clandestina, à repressão

e preservar algumas daquelas formas de organização e até criar outras. Diz Manfredi que

“Neste contexto, as práticas educativas existentes eram constituídas de reuniões, cursos

clandestinos, em boa parte, desenvolvidos por centros de educação popular ligados à Igreja

Católica.”31

Segundo Tumolo, Emir Sader identifica três agências com distintas matrizes

discursivas nesses movimentos da década de 1970: 1) a Igreja Católica com a matriz

discursiva da teologia da libertação; 2) os grupos de esquerda com sua matriz marxista; e 3) a

estrutura sindical com sua matriz sindicalista.32

Assim nasceu o novo sindicalismo a partir da

constituição dessas matrizes numa espécie de amálgama, formando o embrião sindical da

CUT, ou melhor dizendo, matrizes que estavam presentes na formação sindical da CUT.

4.3 O Surgimento e a Trajetória da CUT: um Breve Histórico

São vários os autores que pesquisaram, analisaram e expuseram de como se deu a

criação da CUT, a partir das greves de massa ocorridas no final dos anos 1970 no estado de

São Paulo. O sindicalismo quase não existia como movimento de luta durante o período da

ditadura militar, havendo algumas paralisações setorizadas, em algumas fábricas como a da

Arno, nos anos de 1968-196933

. Segundo Boito Jr., o sindicalismo desempenhou na história

do Brasil um papel importantíssimo nesse período, afirmando-se como movimento

reivindicativo e político, sobretudo como um movimento contra a ditadura militar e a favor da

redemocratização, contribuindo a posteriori para a ampliação dos direitos sociais na

Constituinte de 1986-1988;34

em outras palavras, surgiu assim o novo sindicalismo35

31 MANFREDI, A Política Nacional de Formação da CUT, op. cit., p. 36. Ainda sobre esse ponto temático, cf.

também PAULA, Francisca Clara de. Educação sindical: uma reflexão a partir da prática educativa da escola

Quilombo dos Palmares – EQUIP. 1995. 115 p. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-

Graduação em Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 1995, p. 32-33. 32 Cf. TUMOLO, op. cit., p. 138. Sobre a influência da Igreja (CEBS) no movimento sindical brasileiro, cf.

também SENA, Dissertação, p. 39-44. 33 Cf. RODRIGUES, Iram Jácome. Sindicalismo e política: a trajetória da CUT. São Paulo: Scritta, 1997. p. 50-

53. Cabe ressaltar que em 1969 a lei de Segurança Nacional foi alterada para imputar crimes como o de

incitamento de greve no serviço público. Era a reação da Ditadura aos movimentos dos metalúrgicos de

Contagem em Minas Gerais e Osasco em São Paulo. Cf. SINDSEP. Formação de Lideranças: práticas em

construção no SINDSEP. Quixadá: [s.n.], 2005. p. 63. 34 Cf. BOITO JR., Armando. O sindicalismo brasileiro frente à política neoliberal. In:____. Política neoliberal e

sindicalismo no Brasil. São Paulo: Xamã Editora, 1999. p. 126-127. 35 A expressão “novo sindicalismo” foi usada pela primeira vez para denominar a fase do movimento operário

britânico nas décadas de 1880 e 1890. No Brasil a expressão é utilizada para enfatizar o período do movimento

257

brasileiro, oriundo do ABC paulista, como principal força responsável pela criação do Partido

dos Trabalhadores (PT) que se tornou governo federal, estadual e municipal desde 1985 até

hoje, assumindo também cargos parlamentares nas três esferas do poder legislativo.

Tudo começou com a primeira Conferência Nacional da Classe Trabalhadora

(CONCLAT)36

, realizada em 1981 na Praia Grande (SP), cuja reunião já foi precedida de

outros Encontros Estaduais de Trabalhadores (ENCLATs) que visavam eleger delegados e

apresentar documentos para essa Conferência. Nessa primeira CONCLAT foi decidido formar

uma Comissão Nacional Pró-CUT que objetivava dar andamento às resoluções aprovadas na

Conferência e preparar a realização de um Congresso Nacional da Classe Trabalhadora em

1982. Havia duas tendências principais que disputavam a hegemonia sindical nesse período:

1) o Bloco Combativo ou de Oposição, mais à esquerda, tendo o Sindicato dos Metalúrgicos

de São Bernardo, agregado a ele também as tendências militantes das oposições sindicais

(ligado à Igreja Católica) e da esquerda radical de orientação trotskista ou leninista; 2) a outra

tendência era mais moderada e se denominava de Bloco da Reforma que reunia pessoas da

tendência da Unidade Sindical, principalmente, dos dois partidos comunistas PCB e PC do B

e também do MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro).

No entanto, diante das profundas divergências no interior da Direção da Comissão

Nacional Pró-CUT, a realização do Congresso que se realizaria em 1982 foi adiada. A

divergência mais importante era a questão da deflagração de uma greve geral a fim de forçar o

governo militar a atender a uma série de reivindicações a ser apresentada ao Presidente da

República. Porém, os sindicalistas do Bloco da Reforma ou da Unidade Sindical eram contra

a greve geral e a convocação do CONCLAT para se criar a CUT; acreditavam que não havia

condições para se realizar os dois eventos, por temerem os riscos de agravamento das tensões

sociais que poderiam obstaculizar a continuidade da abertura política, sobretudo, num ano

eleitoral de 1982, em que se começaria a eleger os primeiros governos estaduais pelo povo

num regime ainda de exceção. Este Bloco “comunista” queria apenas limitar a ação sindical à

luta pela redemocratização do país. Do outro lado, estavam os sindicalistas que desejavam

promover mudanças sociais profundas que construíssem o caminho para o socialismo. O

Bloco que iria formar a CUT decidiu convocar o I CONCLAT (1º Congresso), em agosto de

1983, e assim decidiu pela criação da Central Única dos Trabalhadores. A CUT, portanto,

tinha que ser uma Central independente dos patrões, do governo, dos partidos políticos e dos

grevista do ABC paulista em maio de 1978 até o final da década de 1980. Cf. SENA, Dissertação, p. 52, nota 10. 36

Cf. RODRIGUES, Leôncio Martins. CUT: os militantes e a ideologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 5.

A sigla CONCLAT foi usada em diferentes eventos para designar conferência, congresso e coordenação da

classe trabalhadora. Cf. SENA, Dissertação, p. 48, nota 9.

258

credos religiosos. O estatuto provisório da nova Central, criado no I CONCLAT, continha três

pontos relevantes: a autonomia e liberdade sindical, a organização por ramo de atividade

produtiva e a organização por local de trabalho. Tais pontos definiam a demarcação entre

Bloco de Oposição e o Reformista, ou seja, não partilhavam conjuntamente das mesmas

posições com relação à estrutura sindical.

No I CONCUT (1º Congresso Nacional da CUT), em agosto de 1984, aprovou-se

definitivamente o estatuto da Central em substituição ao provisório do I CONCLAT (1º

Congresso). O plano de lutas aprovado neste I CONCUT era confuso e contraditório, segundo

Martins Rodrigues37

, pois, para alguns, tal plano estaria para além das reais capacidades de

luta da CUT, já que a direção não poderia realizar milagres. O plano consistia em: revogar a

Lei de Segurança Nacional, romper com o FMI, suspendendo o pagamento imediato da dívida

externa, fim do arrocho salarial, reajuste imediato dos salários para todos os trabalhadores,

salário-desemprego, estabilidade no emprego, redução da jornada de trabalho para 40 horas

semanais sem redução de salários, reforma agrária sob controle dos trabalhadores, fim das

intervenções nos sindicatos, anistia dos diretores cassados etc. Na verdade, grande parte

dessas reivindicações eram mais bandeiras de agitação e propaganda do que realmente um

plano de lutas para ser concretizado. Num período de muita efervescência política, o

Congresso ressaltou a importância da campanha das “Diretas-já” como um grande protesto

democrático e popular jamais visto na história do país, na qual milhões de brasileiros foram às

ruas exigir o fim do regime militar e de toda opressão e exploração, mas, conforme Jácome

Rodrigues38

, alguns participantes criticaram alguns integrantes da direção da Central por não

terem compreendido a importância histórica da luta pela democracia e o fim da ditadura

militar para poder conquistar certas reivindicações essenciais. Todavia, para Jácome

Rodrigues39

, os planos de lutas aprovados nos congressos sindicais e particularmente nos

CONCUTs ficavam ao sabor da conjuntura política, apontando as mesmas questões já

discutidas em eventos anteriores.

O que vai caracterizar esse I CONCUT, uma Central ainda em fase de construção, é

que a classe média mais intelectualizada se impõe com forte presença para confrontos

ideológicos que exigiam muito das suas armas intelectuais. Embora houvesse a presença de

lideranças de origem operária, mais pragmática, isto é, voltada para os problemas práticos da

administração sindical e reivindicações modestas e convencionais, membros das oposições

37

Cf. RODRIGUES, Leôncio Martins. Op. cit., p. 8. 38 Cf. RODRIGUES, Iram Jácome. Op. cit., p. 104. 39 Cf. Ibid., p. 104-105.

259

sindicais e pessoas vindas das organizações políticas clandestinas (estudantes, ex-estudantes e

intelectuais) pretendiam fazer da CUT um instrumento de luta pelo socialismo, enquanto os

mais pragmáticos viam-na como um organismo de coordenação das lutas sindicais. Para Sena,

o plano de lutas deste Congresso era de caráter mais propagandístico, cujas propostas, de cariz

democrático e reformista, tinham matiz anticapitalista, além de apontar para a criação de uma

nova estrutura sindical em contraposição à velha.40

Esses dados são importantes, para

entendermos hoje o porquê da incapacidade de compreensão de determinadas lideranças

sindicais, quando aceitaram facilmente o fim do socialismo como horizonte político a ser

vislumbrado pelos trabalhadores com a queda do regime soviético.41

O II CONCUT, realizado no Rio de Janeiro em 1986, aprovou uma Campanha

Nacional de Lutas: 1) questão salarial; 2) questão do emprego; 3) questão da organização

sindical; 4) questão agrária e; 5) questão da dívida externa. Enfim, as mesmas bandeiras

defendidas no I CONCUT, incluindo algo novo, isto é, o congelamento dos preços e o

abastecimento e a aprovação da Convenção 87 da OIT (Organização Internacional do

Trabalho) que trata da liberdade e autonomia sindical. Foi também contra qualquer

privatização das empresas estatais. Mesmo que tenha sido aprovada uma resolução a favor do

socialismo como objetivo final da luta dos trabalhadores, a luta pela conquista do poder

político, mas “A palavra ‘socialista’ não fora pronunciada.”42

Conforme Martins Rodrigues,

Levadas a sério as resoluções aprovadas no congresso do Rio, a ação quotidiana da

CUT deveria ser pautada pelo objetivo de acirrar o conflito de classes e de preparar

os trabalhadores para a luta final contra o capitalismo. Conseqüentemente, as chamadas reivindicações imediatas deveriam ser entendidas instrumentalmente,

como formas de mobilização e “conscientização” das classes trabalhadoras.43

O II CONCUT, portanto, tinha uma orientação mais à esquerda da Central, mesmo

tendo a tendência Articulação conseguido vencer os concorrentes ao eleger a Chapa 1 de Jair

Meneguelli, com 59,2% dos votos, com direito de indicar nove membros efetivos para a

Executiva Nacional. O grupo encabeçado pela Chapa 2, de esquerda (Partido Revolucionário

Comunista, Reconstrução do PCB, prestistas, Comando Operário Socialista, Luta Sindical,

Movimento dos Trabalhadores Socialistas e Causa Operária) obteve 26,6% dos votos. A

Chapa 3 (Movimento Comunista Revolucionário, Convergência Socialista e outros pequenos

grupos de esquerda) obteve 10,9%. Isso é o começo para percebermos hoje como se foi

40 Cf. SENA, Dissertação, p. 58-59. 41 Cf. RODRIGUES, Leôncio Martins. Op. cit., p. 11. 42 RODRIGUES, Leôncio Martins. Op. cit., p. 12. Cf. também SENA, Dissertação, p. 63: No entanto, foi nesse

Congresso que as correntes mais à esquerda aprovaram a resolução da luta pelo socialismo como objetivo final

da luta dos trabalhadores, com a ressalva de que a Central cumpriria um papel diferente dos partidos políticos. 43 Ibid., p. 13.

260

construindo na CUT uma guinada mais à direita, ao reformismo capitalista, com o

desenvolvimento da hegemonia da Articulação Sindical em Congressos posteriores.

O III CONCUT teve a maior delegação em relação aos dois congressos anteriores,

chegando a reunir 6.218 delegados de todas as unidades da Federação. Mas isso não implica

afirmar um crescimento proporcional em termos de delegados por base em relação a

delegados por diretoria, ou seja, se no primeiro congresso o número de delegados por base era

de 65,9% contra 34,1% de delegados diretores e no segundo houve um aumento de 70,4% de

delegados de base contra 29,6% de diretores, no terceiro, ao contrário, a proporção entre

delegados vindo da base sindical em relação aos delegados da diretoria sindical cai para

50,9% contra 49,1%. Segundo Martins Rodrigues, isso denota uma CUT mais

institucionalizada e burocratizada, ou com suas palavras:

Desse ângulo, a CUT torna-se mais “institucional” (ou “burocrática”, como talvez

preferissem dizer as facções de oposição à tendência Articulação). Por outro lado, a

elevação da proporção das entidades de delegados do funcionalismo público e do

setor de serviços expressa o progresso da CUT entre as categorias profissionais de

assalariados de escritório e de classe média, que constituem precisamente os

segmentos onde a sindicalização vem ganhando impulso nos últimos anos [...].44

Esses elementos factuais nos levam a perceber como se deu o processo de

institucionalização e burocratização do movimento sindical CUT. O III CONCUT pautou-se,

sobretudo, por disputas internas acirradas, com acaloradas discussões entre as facções

políticas e ideológicas. Pontos controversos estavam em debate e o pano de fundo era sobre a

natureza da CUT, ou seja, se a Central se pautaria por uma ação mais trabalhista ou de

natureza mais política do que sindical. Nesse III CONCUT, a Articulação tinha a maioria dos

delegados e conseguiu reduzir a influência das oposições mais à esquerda, cujo resultado foi a

alteração no estatuto, para diminuir a influência do setor mais à esquerda nos futuros

congressos cutistas, quer dizer, somente os delegados da entidades filiadas à Central poderiam

participar dos próximos congressos, como também os delegados eleitos deveriam ser

proporcionais ao número de votos que conseguiram no último escrutínio das eleições para a

diretoria do sindicato. Para Martins Rodrigues, essas mudanças no estatuto da CUT tinham o

objetivo mesmo de reduzir a influência das oposições nos Congressos posteriores, sobretudo,

de enfraquecer a esquerda e as oposições sindicais, ou melhor, enfraquecer a participação das

bases e aumentar o poder das direções dos sindicatos.45

44 RODRIGUES, Leôncio Martins. Op. cit., p. 19. Cf. também SENA, Dissertação, p 72: onde Sena, ex-diretor

da CUT-CE, afirma que “Tais mudanças concentravam mais poderes nas mãos de uma casta burocrática da

Executiva Nacional CUT.” 45 Cf. RODRIGUES, Leôncio Martins. Op. cit., p. 21-23.

261

Para a Articulação, o sindicalismo de classe e de massa é um instrumento de luta dos

trabalhadores contra a exploração dos patrões, como também um instrumento de luta por

melhores salários e condições de trabalho que se desenvolve no sistema capitalista. O objetivo

seria mesmo atrair e mobilizar os trabalhadores e dar à organização dos trabalhadores o

caráter de organização representativa de toda a classe proletária em oposição à classe

burguesa. Nesse sentido, para a Articulação, o sindicalismo não deveria assumir um programa

ou uma estratégia para a luta socialista, muito menos adotar uma linha ideológica. Para Jair

Meneghelli, a CUT não poderia se caracterizar como socialista, mas embora os seus dirigentes

pudessem sê-lo. Já neste período, mesmo que a Articulação rejeitasse a social-democracia e

defendesse o socialismo como meta histórica dos trabalhadores, as tendências de oposição

dentro da CUT como a “CUT pela base” e a “Convergência Socialista” já previam que a

tendência “Articulação” priorizava o campo da ação institucional, debilitando as ações de

massa e contribuindo para o esvaziamento da greve geral. Isso tudo acabou por fortalecer o

sindicalismo oficial e o corporativismo de Estado.

Com a implosão dos regimes dos países socialistas no Leste Europeu e a crise

“terminal” das ideologias socialistas, para Martins Rodrigues, ficava mais inviável soluções

de tipo socialista e pouco convincentes as palavras de ordem anticapitalistas.46

Conforme

Sena, as mudanças no rumo da CUT estavam em sintonia com a tese de seu setor majoritário

– Articulação Sindical – que combatia o sindicalismo reformista e conciliador da CGT

(hegemonizada pelo PCB, PC do B e pelegos históricos) e as posições “vanguardistas” da

esquerda no interior da CUT e dos sindicatos. No entanto, vejamos a tese da Articulação

Sindical para entender a postura político-sindical da CUT hoje que destoa deste princípio

antirreformista:

Há propostas políticas que subestimam a importância estratégica das lutas

reivindicatórias, as conquistas econômicas concretas das lutas sindicais para

impulsionar o projeto histórico da classe trabalhadora. O equívoco está em

considerar que a CUT, ao negociar com os patrões ou o governo para obter um

acordo de trabalho, pratica uma forma disfarçada de reformismo. A luta dos

trabalhadores por salários e melhores condições de trabalho se desenvolve hoje no

interior do sistema capitalista e faz parte da própria natureza do sindicato. [...]

Quando o sindicato perde este objetivo de alcançar reivindicações imediatas, as

bases não costumam acompanhar o voluntarismo político, os discursos

inflamados de porta de fábrica ou a combatividade dos boletins (Tese nº 10, da

Articulação Sindical, 1988: 54) 47

Isso confirma, de certo modo, a tendência social-democrata da corrente Articulação Sindical,

quando esta opta por posturas mais negociativas e conciliatórias, rejeitando o sindicalismo de

46 Cf. RODRIGUES, Leôncio Martins. Op. cit., p. 27. 47 Cf. Tese da Articulação Sindical, nº 10 apud SENA, Dissertação, p. 71. (Grifo nosso).

262

confronto ou combativo anticapitalista. A luta deveria despertar essa vontade ausente no

proletariado de ir para além da luta imediata; e isso só poderia acontecer com a construção da

consciência de “classe para si”, a consciência revolucionária, mas esta prática político-sindical

não se faz. Sem esta consciência, como diz Lênin, não há ação revolucionária, ou melhor, não

há teoria revolucionária que poderia engendrar esta consciência revolucionária e, por

consequência, a vontade revolucionária da luta pela emancipação humana.

O IV CONCUT, realizado em setembro de 1991, em São Paulo, manteve as palavras

de ordem dos anos 1980, como também a maioria das resoluções dos congressos anteriores,

mas introduziu algo novo nas suas resoluções, ou seja, apresentou propostas para as políticas

de abrangência nacional para disputar a hegemonia na sociedade. Em outras palavras, a CUT

elaborou propostas políticas setoriais para a energia, agricultura, habitação, previdência, saúde

e educação. Para Jácome Rodrigues,

Um dos aspectos mais marcantes deste encontro foi a luta interna pelo controle do

poder na Central. Esta luta política ficou mascarada por questões “administrativas”:

problemas de estatutos; redução em uns casos e, em outros, aumento do número de

delegados ao Congresso; a questão da chamada proporcionalidade “qualificada”.

Havia, de um lado, a superestimação de algumas delegações e, de outro, a aplicação

de um “redutor” para os estados de Minas e Bahia, onde a oposição era maioria.48

As profundas divergências fizeram o IV CONCUT se dividir em dois blocos fundamentais: de

um lado, a tendência Articulação em aliança com a Nova Esquerda, a Vertente Socialista e a

Unidade Sindical e, de outro, várias tendências capitaneadas pela CUT pela Base, Corrente

Sindical Classista, Convergência Socialista, Força Socialista e outros pequenos grupos que se

denominavam de “Antártica” que significava “anti-Articulação”.

O IV CONCUT, portanto, ocorreu numa conjuntura extremamente difícil para o

sindicalismo brasileiro, sobretudo com a eleição de Fernando Collor de Mello para Presidente

da República e a derrota do Lula, além da queda dos blocos socialistas soviéticos entre 1989-

1991, na qual neste último ano, a URSS se desfez e virou somente Rússia. O sindicalismo

ficou, assim, numa posição defensiva face à ofensiva neoliberal, logo se tornando um

48 RODRIGUES, Iram Jácome. Sindicalismo e Política: a trajetória da CUT, p. 181-182. E esta situação ainda

continua, pois a corrente “Articulação de Esquerda”, em seu texto base para o XI CONCUT em 2012, diz:

“Avaliamos criticamente sua condução [da CUT] pelo setor majoritário. Seja pela insistência na falta de democracia interna, que se traduz numa falta de debates público e político nas instâncias, seja pela orientação

política ideológica da direção majoritária da CUT que, paulatinamente, vem adotando a concepção clássica da

social democracia europeia, que aqui se expressa na defesa do nacional-desenvolvimentismo, que se traduz no

compromisso entre as classes sociais tendo como objetivo o crescimento econômico.” (Caderno texto base da

Direção Nacional da CUT para o 11º CONCUT: Liberdade e Autonomia Sindical, democratizar as relações de

trabalho para garantir e ampliar direitos/CUT. São Paulo: Central Única dos Trabalhadores, 2012. p. 62.). Além

disso, a corrente menciona a absurda cláusula de barreira dos 20% que impede as forças minoritárias se

representarem na direção executiva nacional da CUT, a não ser que participem de chapas mais amplas (Cf. Ibid.,

p. 64).

263

sindicalismo de caráter propositivo ou negociativo com o governo e empresários. Mas o que

demarcou também esse Congresso foram os aspectos de estruturação da CUT e seu processo

acelerado de institucionalização que resultou no distanciamento entre direção e base e daí uma

profunda crise interna na Central se instaurou. Outro fato foi a baixa participação da base

sindical e um aumento da participação das direções sindicais neste Congresso, ou seja, 83%

dos delegados congressistas já eram de diretores sindicais e apenas 17% de delegados

oriundos da base sindical, quando em 1988, a base possuía uma participação um pouco maior

de 50,8% contra 49,2 de diretores sindicais.49

Contudo, conforme Boito Jr., “A CUT abandonou a luta política e a agitação de idéias

contra o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro e não assumiu a luta e a denúncia

sistemática contra a política neoliberal no seu conjunto.”50

Na análise de Boito Jr., mesmo que

a conjuntura fosse desfavorável ao movimento sindical, ao impor um recuo, isso não obrigava

a CUT a deserdar desta matéria, ou seja, a propaganda contra o modelo econômico poderia ter

continuado, mesmo num momento de luta meramente defensiva. Para ele, abandonou-se

mesmo a perspectiva do confronto com o modelo econômico e com o conjunto da política

neoliberal, sobretudo, quando foi firmada a participação cutista ativa na definição da política

governamental, participando de fóruns tripartites que reúnem empresários, sindicalistas e

representantes do governo em âmbito nacional ou setorial.51

Para Boito Jr., isso é o típico

sindicalismo propositivo que pretende elaborar propostas tanto para os governos neoliberais e

empresas quanto para os trabalhadores, um sindicalismo de tipo conciliador. Esta estratégia

desestimulou e desvalorizou a mobilização e a luta das massas, ou a luta de classes. Em outras

palavras, a luta grevista foi desvalorizada e até mesmo estigmatizada, sendo um instrumento

desgastado. Mesmo assim duas greves gerais foram realizadas nos anos de 1991 e 1993

(sendo esta a última), mas com a participação muito menor dos trabalhadores face à última

grande greve geral, em março de 1989, em que houve a adesão de mais de 20 milhões de

trabalhadores de vários setores produtivos e de serviços, sobretudo de funcionários públicos,

49 Cf. RODRIGUES, Iram Jácome. Op. cit., p. 185. 50 BOITO JR., Política neoliberal e sindicalismo no Brasil, p. 143. 51 Numa entrevista à revista eletrônica BRASIL DE FATO (9/04/2012), Boito Jr. afirma que vê elementos

positivos do neodesenvolvimentismo praticados pelos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff, embora ressalte os negativos, ao inferiorizá-lo em relação ao desenvolvimentismo do período de 1930-1980. Ele acredita que o

apoio de direções sindicais a esse neodesenvolvimentismo é contra o neoliberalismo ortodoxo e não uma

cooptação do movimento pelas forças conservadoras ou mesmo o abandono do socialismo. Hoje ele defende esse

comportamento de adesão parcial dos movimentos sociais, porque atende de modo marginal e restrito os

interesses das classes populares; porém, tal estratégia não abre mão das bandeiras populares. Assim, Boito Jr.

defende a participação crítica dos movimentos sociais a esse neodesenvolvimentismo, porque trouxe, de certo

forma, algumas melhorias para os trabalhadores e mais pobres, mas que pressione o governo pelas reformas

estruturais. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/content/”-economia-capitalista-está-em-crise-e-

contradições-tendem-se-aguçar”>. Acesso em: 10 abr. 2012.

264

professores, metalúrgicos, trabalhadores do transporte coletivo, siderurgia etc.

Sena confirma tais inferências anteriores, dizendo que a CUT apontava que o centro

dos debates para os anos 1990 era “o enfrentamento da crise econômica com a retomada da

política de desenvolvimento” e “a defesa da cidadania em substituição ao referencial

socialista”; por conseguinte, ele reafirma o processo de burocratização da Central e a

concentração de poder nas mãos de um núcleo minoritário (Articulação Sindical). Para Sena,

portanto, “a nova concepção da Central aprovada e presente no seu Estatuto era básica para o

estabelecimento de um sindicalismo de ‘negócios’, adaptado ao sistema capitalista, sem

ideologia de classe e como um instrumento de mediação dos conflitos entre trabalhadores e

patrões.”52

Entretanto, os principais temas do IV CONCUT poderiam ser resumidos em duas

teses diferentes: se a CUT se tornaria uma Central de caráter mais negociativo, isto é, apenas

de contratação? Ou se a CUT deveria combinar negociação com enfrentamento, de confronto

com o projeto global da burguesia? Em outras palavras, a questão era definida assim: como

fazer sindicalismo numa conjuntura adversa aos sindicatos com o advento do neoliberalismo

no Brasil? Apostar nas reuniões do Entendimento Nacional com o governo e patrões?

Apostar na crise da ingovernabilidade (tese defendida pela CUT pela Base)? Ou defender a

política de superação da crise com a retomada do crescimento para distribuir renda (tese da

Articulação)? Esses foram os principais problemas a serem enfrentados pelo IV CONCUT.

Aqui podemos ter bem uma ideia de como a CUT se comportou no decorrer da década de

1990 a partir desse Congresso, ou seja, mais propositiva, embora continuasse crítica ao

Projeto Neoliberal e ao Plano Real, mas sempre na lógica de concertação e conciliação com o

sistema, quer dizer, uma limitada colaboração e crença no aperfeiçoamento do governo como

condição para o melhoramento de vida dos trabalhadores, a saber, a luta dentro da lógica

neoliberal do Estado burguês.

52 SENA, Dissertação, p. 75. E Sena ainda afirma que “A CUT trocou de roupa. Despiu-se da esperança de

constituir-se numa poderosa ferramenta na luta pelo sepultamento do capitalismo e de todas as misérias em que

está jogado o povo brasileiro, para ser a porta-voz e negociadora de uma nova política de desenvolvimento

econômico. Nisso é que consiste o sindicalismo de proposição com a adoção de uma política de capitulação e

conciliação de classes implementada pela Articulação Sindical, num biombo da propaganda prática das teses da

social democracia.” (Ibid., p. 75). Em relação ao quesito capitulação e conciliação de classes, no texto base para

o XI CONCUT em 2012, a corrente “CUT Independente e de Luta” faz uma severa crítica aos sindicatos filiados

à CUT que endossaram a diminuição de impostos e a desoneração da contribuição da folha para a Previdência

dos trabalhadores, fazendo “parcerias” com as entidades patronais como a Confederação Nacional da Indústria

(CNI), Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e Associação Brasileira de Máquinas e

Equipamentos (ABIMAQ), (Cf. Caderno Texto Base do XI CONCUT 2012, p. 65). Assim como também afirma

a corrente CUT Socialista e Democrática (CSD) no Caderno que “Não cabe na estratégia da CUT a construção

de alianças, mesmo que pontuais, com setores orgânicos do bloco liberal-conservador. Nenhuma das estratégias

da CUT necessita de unidade com setores do empresariado nacional.” (Ibid., p. 59).

265

Sem nos alongarmos mais sobre os posteriores Congressos da CUT que perfilaram sua

história enquanto Central Sindical de Esquerda, o que podemos resumir é que o dilema da

CUT era “confrontar” ou “negociar” numa conjuntura adversa aos trabalhadores. A

conjuntura estava toda pautada na expansão do neoliberalismo no mundo, na reestruturação

produtiva industrial e até mesmo na de serviços (setor bancário automatizado), nos mercados

financeiros globalizados, na abertura dos mercados nacionais (em parte), na

desregulamentação das leis trabalhistas, no desemprego estrutural em massa nas indústrias,

principalmente, na do setor automobilístico etc. a CUT parece que optou pela primeira, logo

de início, com a participação na câmara setorial no setor automotivo, a tal da negociação

tripartite, e depois abandonada.53

Para Boito Jr., com a eleição de Collor de Mello, a CUT, através da corrente

Articulação Sindical, abandonou o sindicalismo dos anos 1980, ou seja, a postura “de se

opor” e “ser do contra” e, portanto, passou a apresentar “alternativas concretas” para todos os

problemas da política nacional. Ora, questiona Boito Jr., “[...] se a mudança na conjuntura

impunha um recuo do sindicalismo, com a adoção de uma linha de ação defensiva, ela não

impunha a adoção de um ‘sindicalismo propositivo’, que a Articulação acabou por

implantar.”54

Nesse sentido, segundo Boito Jr., a CUT abandonou mesmo a perspectiva de

confronto, firmando-se como uma Central propositiva, isto é, comportou-se como uma

entidade de participação ativa na definição da política governamental e, portanto, enveredou

por um viés de “participacionsimo ativo”.55

Mas o que nos interessa é conhecer a proposta educacional da CUT no cenário da crise

sindical. Em 1995, a CUT defendeu a estruturação do ensino com a participação entre ensino

privado ou confessional com ensino público na formação escolar dos brasileiros. A mesma

proposta de educação contida no programa do Partido dos Trabalhadores na eleição de 1994.

No documento da CUT, ela estabelece seu diagnóstico e os objetivos de sua campanha

nacional em defesa da educação, mas não defende o ensino público e gratuito como solução

para a educação brasileira, pois estabelece que a rede privada de ensino deve continuar a

53 Sobre a prática sindical da CUT, baseada numa pesquisa quantitativa realizada no IV CONCUT, no que diz

respeito ao número de sindicatos por base (rural ou urbana), número de gestões da linha cutista, alteração dos

estatutos sob a nova direção etc. Ver Iram Jácome Rodrigues, A prática sindical da CUT, in Sindicalismo e

política: a trajetória da CUT, p. 215-230. 54 BOITO JR., Política neoliberal e sindicalismo no Brasil, p. 142. 55 Para Sena, “Essas mudanças ocorridas no mundo do trabalho foram acompanhadas pela direção nacional da

CUT, que, julgando obsoletas bandeiras e princípios que nortearam sua ação, os abandonam. A CUT da

‘baderna’ [...] transformou-se na CUT do diálogo, da proposição, das agendas com o capital. A estratégia da

Central tomou rumos diferentes, uma nova agenda política se colocou para a CUT, como a luta pela cidadania e

a democratização do Estado.” (SENA. Resumo. In: Dissertação, p. 4).

266

integrar o sistema nacional de educação, em outras palavras, segundo Boito Jr., a CUT aceita

os objetivos da política neoliberal para o ensino. De todo modo, Boito Jr. pondera, mas

também questiona, a saber,

Se é verdade que a correlação de forças não permite, numa conjuntura defensiva,

lutar pela estatização das escolas particulares, o sindicalismo não está impedido, por

causa disto, de denunciar a rede privada e propor objetivos intermediários na luta

pela universalização do ensino público.56

Todavia, na impossibilidade de analisar todos os CONCUTs nos limites desta tese,

vamos mencionar pelo menos os dois seguintes Congressos cutistas que foram o grande

divisor de águas entre uma CUT combativa e de classe dos anos 1980 e uma CUT propositiva

e negociadora dos anos 1990 até hoje. O V CONCUT em 1994, cuja gestão se iniciou com

Vicente Paula da Silva, retratou a fase de aproximação da CUT com o neoliberalismo (embora

lutando contra as privatizações das estatais), como também acenou em suas resoluções

congressistas fazer programas de formação profissional, infelizmente nos moldes da política

educacional oficial, com recursos do FAT e do BNDES57

. Tal proposta se reafirmou nas 7ª e

9ª Plenárias Nacionais (1995-1997), quando a direção nacional da CUT assumiu essa

responsabilidade, sendo antes uma atribuição apenas do Estado e das organizações patronais

do Sistema “S” (Escolas Técnicas Federais, SESI, SESC, SENAI, SENAC etc.), iniciando

então sua primeira ação/estratégia, via Política Nacional de Formação (PNF), em 1998. Já o

VI CONCUT em 1997 se posicionava contra a Reforma da Previdência e também contra as

privatizações, isto é, numa oscilação diretiva, ora para o centro ora para a esquerda,

dependendo das circunstâncias e assim por diante; também decidiu sair de uma “CUT do não

(do contra)”, para uma “CUT do sim” (propositiva), na medida em que elaborou propostas de

políticas setoriais para energia, agricultura, habitação, previdência, saúde e educação.

Desta feita, iremos então analisar o porquê da opção da CUT pelos cursos

profissionalizantes em detrimento dos cursos de formação política, sobretudo, cursos que

enfatizam a questão dos direitos humanos, da cidadania e da empregabilidade no capitalismo,

ou seja, buscar a formação integral do homem, mas a partir de uma prática educativa que visa

atender aos interesses neoliberais (do capital em crise).

56 BOITO JR., op. cit., p. 162. 57 Conforme XVII Encontro da Política Nacional de Formação – ENAFOR – CUT (22 a 25 de novembro de

2011), “Na primeira década da PNF, quase que a totalidade dos recursos que bancavam a formação sindical,

vinham (sic) da cooperação internacional. Depois, já na segunda metade dos anos 90, passamos a depender dos

projetos financiados com recursos do FAT. ”Disponível em:<http://cut.org.br/secretarias-

nacionais/45/formacao/documentos>. Acesso em: 5 abr. 2012.

267

4.4 A Política Nacional de Formação da CUT: da Formação da Consciência Política à

Formação Profissional Cidadã

Comecemos então pelo começo da política de formação da CUT. Conforme Tumolo, o

sindicalismo cutista pode ser vislumbrado por três fases na sua trajetória. A primeira fase vai

de 1978 a 1983, ou até aproximadamente 1988, cuja marca é uma ação sindical combativa e

de confronto, pois nesse período houve as grandes greves de massas (1978-1979) e as greves

gerais (1983-1986-1987)58

, esta última ocorrendo com 10 milhões de paredistas; a segunda

fase que vai de 1988 a 1991 pode ser classificada como uma fase de transição, sobretudo, a

partir do III CONCUT em que as forças políticas internas da Central se redefinem mais

claramente, tendo a tendência Articulação Sindical a hegemonia administrativa e político-

ideológica da Central; e por último, o IV CONCUT de 1991 até o presente, no qual a CUT

opta por um sindicalismo propositivo e negociador. Portanto, para Tumolo,

Trata-se de uma mudança política substancial, de um sindicalismo combativo e de

confronto de cunho classista e com uma perspectiva socialista, para uma ação

sindical pautada pelo trinômio proposição/negociação/participação dentro da ordem

capitalista que, gradativamente, perde o caráter classista em troca do horizonte da “cidadania”.59

Afirma Tumolo que o grande divisor de águas da CUT, sobretudo no que diz respeito

à atividade grevista, é o ano de 1989, no qual se realizou a última greve geral de peso dos

trabalhadores no Brasil com mais de 20 milhões de paredistas em diferentes ramos da

atividade produtiva – como foi dito antes –, período em que a atividade grevista da lógica do

confronto se dava antes da lógica da negociação. Dessa maneira, a partir dos anos 1990, o que

prevaleceu na Central primeiramente foi a lógica da negociação, da participação e da

colaboração entre trabalhadores, governo e patrões em detrimento da lógica do confronto.

Esse é o pressuposto que vai nortear todas as ações sindicais a posteriori da CUT, pois não é

uma relação causal ou mecânica de mudança de postura, mas um processo eivado de

mediações políticas, conjunturais, que configuraram um cenário conservador

neocorporativista da atividade sindical cutista. Tumolo, tomando de empréstimo a análise de

Vito Giannotti e Sebastião Lopes Neto, afirma que

[...] a virada da década de 80 para a de 90 significou também uma virada nos rumos

da Central Única dos Trabalhadores e, se é verdade que o terceiro congresso

simbolizou o “início” desse processo, segundo os mesmos autores, o IV CONCUT

foi a expressão político-institucional da consolidação de tal inflexão.60

58 Na década de 1980 ocorreram 3.915 greves em que pararam as atividades 31 milhões de trabalhadores, com muitas lutas e confrontos com a ordem estabelecida. Cf. SENA. Resumo. In: Dissertação, p. 4. 59 TUMOLO, op. cit., p. 17; 129. 60 Ibid., p. 121. Cf. também GIANNOTTI, Vito e LOPES NETO, Sebastião. CUT ontem e hoje. São Paulo: Vozes, 1991.

268

Noutras palavras, Giannotti e Lopes Neto afirmam que se a CUT nos anos 1980 foi a

Central do não e que, com as mudanças no mundo do trabalho e na conjuntura política e

histórica internacional, com a queda do bloco soviético, a Central passou a implantar a fase do

sim, ou seja, saiu da prática meramente “reativo-reinvindicativa” na qual os trabalhadores

“reagiam” sempre atrás do prejuízo, ficando na defensiva, nos anos 1990 ela seguiu, então, o

rumo da proposição, com o objetivo de fazer políticas de negociação, participando, por

exemplo, das reuniões do Entendimento Nacional com os governos e patrões. Não é à toa que

a CUT se filia à Confederação Internacional das Organizações Sindicais Livres (CIOSL)61

de

caráter social-democrata e pró-capitalista. Na verdade, a tendência majoritária da CUT – a

Articulação Sindical – consagrou sua estratégia política na Central, apontando a negociação

dentro da ordem capitalista, ou seja, numa perspectiva social-democratizante.

Para Giannotti e Lopes Neto, isso reflete a incapacidade da CUT de dar respostas

antagônicas ao projeto neoliberal, ou de se contrapor ofensivamente ao neoliberalismo,

rendendo-se, portanto, à perspectiva social-democratizante das centrais sindicais europeias

tais como a CGIL italianas, a CFDT francesa, FNV holandesa e a DGB alemã, ou seja, a CUT

passou de um sindicalismo classista de confronto, de perspectiva estratégica socialista, para

um sindicalismo de parceria entre o capital e o trabalho, de perspectiva social-democrata.

Dizem os dois autores, portanto, que a CUT tornou-se um sindicalismo vislumbrado pela

palavra “tripartite”, de “concertação social”, falando a linguagem da CIOSL.62

Assim sendo, sob a imposição da ofensiva neoliberal, com a modernização tecnológica

e das novas formas de gestão e organização do trabalho, quer dizer, com o consequente

desemprego estrutural, causado pelas mudanças tecnológicas no modo de produção capitalista

(reestruturação produtiva), ou melhor, com a crise estrutural do capital63

, o sindicalismo

brasileiro se encurrala e adota uma postura de mero defensivismo no sentido negativo, ou

seja, de defesa do emprego a qualquer preço, mesmo com perdas de conquistas históricas, a

partir da desregulamentação das leis trabalhistas, da flexibilização da jornada de trabalho

como o banco de horas, horas extras e férias coletivas, da terceirização, da redução salarial

etc. Todo esse impacto científico-tecnológico e/ou político-ideológico vai repercutir nas ações

61 A CIOSL representa 65 milhões de trabalhadores e não permite a filiação de sindicatos de interesses classistas

e defensores o socialismo. Portanto, a CIOSL é uma central sindical nitidamente à direita e colaboradora do

projeto neoliberal. Dessa maneira, a CUT reforça sua política sindical propositiva numa perspectiva

internacional. Cf. SENA, Dissertação, p. 66, nota 14; 75. 62 Cf. GIANNOTTI e LOPES NETO, CUT, ontem e hoje apud TUMOLO, op. cit., p. 121-122. 63 Cf. MÉSZÁROS. A crise estrutural do sistema do capital. In: Para além do capital, p. 605-980. Diz Mészáros

que as três grandes formas de desenvolvimento do século XX não cumpriram suas promessas, a saber, a

acumulação e expansão monopolista do capital privado, a “modernização do Terceiro Mundo” e a “economia

planejada” do tipo soviético.

269

sindicais da esquerda brasileira e, em especial, nas disputas ideológicas no interior da CUT,

tendo como uma das polêmicas a inserção da CUT nos programas de formação profissional e

até mesmo escolar, gerando certificação de 1º e 2º graus sem um mínimo de preparação dos

recursos humanos para tal empreitada, reproduzindo, de certa forma, a precariedade do ensino

escolar público do Estado republicano burguês.

Segundo Porfírio do Rio, a CUT abandona o seu percurso de combatividade e o

horizonte socialista para empunhar a bandeira mistificadora do pacto social e da sociedade

democrática; e diz que a crise da esquerda mundial é refletida por essa guinada à moderação

da luta ofensiva sindicalista, porque justamente não há uma consistente formação política e

ideológica desveladora da sociedade classista, marcada pela exploração do capital sobre o

trabalho.64

Conforme Porfírio do Rio, “parte da esquerda passa a conceber a democracia como

‘um fim em si mesmo’, ou quando muito, como transição conseqüente para o socialismo.”65

Na verdade, como bem diz Boito Jr., a CUT não tinha por base uma fundamentação

marxista da luta sindical, embora tivesse uma visão de classe e compreendesse o movimento

sindical como parte de um conflito mais amplo. O discurso sobre o socialismo era muito

genérico, de pura simpatia pelos princípios socialistas, pois a CUT não definia o conteúdo

desse socialismo nem mesmo a forma de como se chegar a ele. Era preciso, segundo a

Central, reinventar o socialismo no Brasil e, de qualquer forma, ainda não estava dada na

ordem do dia a transição para o socialismo. De acordo com Boito Jr., “As lutas práticas

assumidas pela central naquela década [...] configuravam um programa de transformações

democrático-popular, e não um programa socialista.”66

Afirma Oliveira do Rio que o advento tardio do neoliberalismo no Brasil, com o

governo Collor no começo da década de 1990, trouxe consequências difíceis para a esquerda.

E dois fatos marcaram esta situação: (1) a explosão da crise estrutural do capital com suas

políticas nefastas de monetarização da economia e (2) a social-democratização das esquerdas

nos anos 1970, cujos militantes marxistas, leninistas e trotskistas faziam a crítica ao

socialismo real, como também viveram a difícil experiência na ditadura militar.67

Isso

resultou no abandono de uma teoria e prática anticapitalista, privilegiando a luta democrática

64 Cf. PORFÍRIO DO RIO, Cristiane. O trabalho sob o domínio do capital em crise: que fazer? O sindicalismo

sobre o signo da barbárie. In: RABELO, Jackline et al. (Orgs.). Trabalho, educação e a crítica marxista.

Fortaleza: Editora UFC, 2006. p. 89. 65 PORFÍRIO DO RIO, op. cit., p. 93-94. 66 BOITO JR., Política neoliberal e sindicalismo no Brasil, p. 138-139. 67

Cf. OLIVEIRA DO RIO, Cristiane Porfírio de. A política nacional de formação da CUT: análise crítica dos

princípios e estratégias da Escola Nordeste, 2003. 130 f. (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação

em Educação Brasileira, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2003, p. 59.

270

dentro da ordem do capital.68

Com a derrota da esquerda na campanha presidencial de 1989

(Lula), a CUT e seu braço partidário, o PT, abriram uma nova etapa de negociação entre o

capital e o trabalho, visando meramente o futuro pleito eleitoral, a saber, ambos mudaram sua

forma de relacionar com o mundo institucional.

Essa análise prévia é importante para podermos refletir sobre o porquê da mudança na

política de formação sindical da CUT, pois a ação institucional da central tem a ver com a

conjuntura histórica nacional e internacional, colocada pelas grandes transformações políticas,

econômicas e sociais. O fato é que essa mudança de perspectiva de atuação político-sindical

cutista vai resvalar numa mudança interna e externa da sua própria prática sindical, incluindo

aí, a sua política nacional de formação. Podemos afirmar, conjuntamente com Tumolo, que as

profundas transformações econômicas no final do século XX, objetivando estabelecer a nova

ordem mundial da acumulação capitalista e o processo de reestruturação produtiva na

economia brasileira, foram os elementos políticos (externos) mais importantes nessa mudança

de postura político-sindical da CUT. Também podemos acrescentar a estes, outros elementos

sui generis como a derrocada dos países socialistas sob direção da URSS, os fracassos das

experiências revolucionárias na América Central – El Salvador e Nicarágua – e, sobretudo, a

derrota do projeto democrático-popular das esquerdas nas urnas em 1989.

Já os elementos internos que mudaram o comportamento da CUT são mais

específicos. E aí podemos destacar: o processo de burocratização que sacrifica a democracia

interna da Central; a presença ainda de aspectos fundamentais da estrutura sindical oficial de

Estado; a política de relação internacional com entidades de perfil social-liberal ou social-

democrata como a CIOSL, CGIL, CFDT e DGB (que financiou a construção da Escola Sul

em Florianópolis); a participação no entendimento nacional, nas câmaras setoriais e hoje nas

mesas de negociações entre governo e servidores públicos; e, por fim, as disputas da CUT

com outras e novas centrais sindicais pela adesão dos diferentes sindicatos, pois antes havia a

disputa com a Força Sindical e CGT, e agora com a Intersindical, Central Sindical Classista e

CONLUTAS.69

Para corroborar essas afirmações, vejamos o que diz um ex-diretor da CUT-CE:

Paulatinamente, presenciamos o fato de que toda a máquina sindical erguida durante

as últimas décadas esbarrava no (sic) seus próprios limites, na despolitização, no

corporativismo e na burocratização dos sindicatos e da CUT. Aliado a isso, acentua-

se, de forma hegemônica na CUT, o desenvolvimento de políticas de colaboração

com o capital, como câmaras setoriais, pactos sociais e entendimento nacionais – denominado de “sindicalismo propositivo”.70

68

Cf. PORFÍRIO DO RIO, op. cit., p. 96. 69 Cf. TUMOLO, op. cit., p. 130-131. 70 SENA, Dissertação, p. 89.

271

Tais elementos apresentados podem explicar a mudança na trajetória política da CUT

que reformulou suas estratégias e táticas a partir das condições objetivas que foram

determinantes nesse processo, como bem afirma Tumolo. Entretanto, cabe inferir que a

análise dos fatos, a partir da sua pura fenomenalidade empírica e/ou histórica, é um risco,

porque a história é contingente, e que o homem pode inverter a direção dos fatos ou o rumo de

suas ações, ou seja, ele como agente ativo do processo histórico é capaz de mudar a direção de

seu destino. Se a resposta da CUT à ofensa neoliberal se limitou a solucionar apenas os

impasses do presente, sem vislumbrar uma estratégia política de futuro para o socialismo, fica

evidente que a Central optou por conviver com o capitalismo, procurando alternativas dentro

dele, na crença de que é possível reformá-lo estruturalmente numa perspectiva mais

humanista de sua condição. Fica claro, portanto, que, para a CUT, é possível obter benefícios

para os trabalhadores por meio das negociações, dos pactos sociais, sem vislumbrar mais o

socialismo como melhor sistema para a humanidade se desenvolver verdadeiramente e/ou

superar as contradições sociais. Como diz o ex-diretor da CUT-CE, Acrísio Sena,

Na esteira dessas mudanças, assiste-se à redução do poder das lutas de

enfrentamento dos sindicatos com o capital, o reforço das lutas corporativas e

economicistas e a falta de propostas de confronto com o capital. Essa realidade, de

certa forma, obstaculiza o desenvolvimento da consciência de classe e reduz o papel que cumprem os sindicatos na atualidade como espaços de coesão de classe e

formação política.71

Feitas tais considerações, podemos então analisar, em linhas gerais, o processo de

formação política da CUT que, de certa forma, influenciou e repercutiu em seus sindicatos,

federações e confederações. Contudo, algumas questões se colocam: essas mudanças

objetivas internas e externas na trajetória da CUT atingiram a sua formação sindical

radicalmente, ou é apenas uma estratégia conjuntural? Há uma relação entre a nova ordem

mundial e a nova formação sindical cutista? Ou melhor, qual é a relação entre a mudança de

estratégia da CUT e a limitação da formação sindical à questão meramente profissional,

direcional, excluindo, assim, a formação mais ideológica e política?

Pois bem, partindo do pressuposto de que a CUT, a maior referência do movimento

sindical brasileiro e latino-americano, de caráter combativo, abandona a perspectiva classista da

formação político-sindical, substituindo-a pela qualificação profissional, a partir de um horizonte

menor de exercício da cidadania burguesa, então podemos inferir que nesse momento se

estabelece um sindicalismo dócil aos interesses do grande capital, entrando em sintonia com a

estratégia propositiva e negociativa. Num documento intitulado “Desafios e perspectivas para o

71 SENA, Dissertação, p. 80. Acrísio Sena, do Partido dos Trabalhadores (PT), é hoje Presidente da Câmara de Vereadores da cidade de Fortaleza, escolhido pela prefeita Luizianne Lins do mesmo partido.

272

projeto de formação sindical cutista”, podemos perceber essa posição da Central:

[...] o enfrentamento efetivo destas questões passa pela formulação de uma

estratégia sindical que favoreça uma linha de atuação afirmativa e propositiva, tanto no âmbito das relações capital e trabalho, como no das relações entre Estado e

sociedade civil. A afirmação da democracia como valor fundamental e elemento

constitutivo da sociedade do futuro, consubstanciada na modernização das relações

de trabalho e no reconhecimento explícito, pela via da negociação ou do conflito,

das diferenças e contradições presentes na sociedade, deve ser um elemento central

dessa estratégia.72

Porém, antes de ocorrer esse social-democratismo cutista, Tumolo nos historia que a

formação sindical da CUT se inicia mesmo, no período entre 1984-1986, cujo objetivo era a

transformação social. Embora não haja documentos oficiais na sede da CUT em São Paulo sobre

a formação sindical do período que vai de 1983 a 1987, mas, na revista oficial da Secretaria

Nacional de Formação – Forma & Conteúdo –, há um texto intitulado “Histórico da política

nacional de formação da CUT”, no qual faz um breve relato da gestão 1984-1986 que mostra

algumas atividades de formação realizadas naquele período. Logo, segundo Tumolo, percebe-se

que a formação sindical e política nacional de formação se iniciam em 1984, e não como dizem os

documentos oficiais atuais. O que podemos extrair desse relato de Tumolo é que a Secretária

Nacional de Formação (SNF), criada em 1984, começa um processo de discussão de uma política

de formação, baseada nos princípios do estatuto da CUT, ou seja, uma CUT classista, de luta de

massa, anticapitalista, como instrumento na luta pela destruição do capitalismo e criação de uma

sociedade socialista, uma CUT democrática, pela base etc. A SNF tinha algumas atribuições no

processo de organização da CUT, senão vejamos:

desenvolver atividades de formação da CUT como cursos, palestras,

seminários e encontros de formação;

acompanhar, avaliar, sistematizar e socializar as experiências das CUTs

estaduais e regionais;

fazer um levantamento das experiências de luta e organização da classe

trabalhadora; e

elaborar e editar material de formação, publicações, audiovisuais e filmes etc.

O objetivo inicial dessa estruturação da SNF/CUT era oferecer aos militantes uma

formação básica que discutisse questões mais de fundo, como o modo de produção capitalista,

a história do movimento operário e sindical, a luta de classes, a questão do socialismo etc.

72 CUT, 1994 apud TUMOLO, op. cit., p. 184-185. Cf. também, sobre a ideologia da democracia e cidadania,

TONET, Ivo. Educação, cidadania e emancipação humana. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005. p. 79-124.

273

Fazendo uma pequena digressão: ora, se nosso objetivo é fazer uma relação entre

marxismo e formação sindical, nada mais natural do que descobrir se as análises marxianas

sobre o modo de produção capitalista e o socialismo estavam presentes como temáticas nos

cursos de formação política da CUT, nos seus sindicatos filiados. As primeiras pistas nos

apontam que não tão profundamente, ou muito superficialmente, pois pessoas especializadas

nas teorias de Marx, com certeza, eram bastante escassas, sobretudo dentro da Central.

Sabemos que Marx nos oferece elementos teóricos que desfazem todo o ideário ilusório de

que o capitalismo é um sistema aperfeiçoável, dominável, do ponto de vista social, tendo o

Estado como um mediador do conflito entre o capital e o trabalho.

No entanto, antes da SNF/CUT iniciar um curso mais sistemático, houve toda uma

preparação, por exemplo, de como fazer um Encontro Nacional (1986) com as CUTs

estaduais e regionais, e também com assessores, para discutir uma Política Nacional de

Formação (PNF). Em outras palavras, foram traçados os pressupostos e objetivos dos cursos,

definidos o caráter do tipo de formação, as condições, o papel das SEFs (Secretarias Estaduais

de Formação) e da SNF. Segundo Tumolo, os programas de formação sindical tiveram dois

nascedouros: o primeiro se originou na própria prática, quer dizer, a partir das demandas

postas pelo movimento sindical cutista, em especial, pelas oposições sindicais; noutras

palavras, o objetivo era oferecer as condições necessárias para lutar contra os pelegos

sindicais, isto é, conquistar os sindicatos a partir da preparação, organização e formação dos

militantes. Nesse sentido, deu-se um curso de “Plano de Ação e Administração Sindical”.

Entretanto, a CUT tinha a consciência de que a formação não poderia ficar refém e à mercê

das demandas conjunturais do movimento, logo era preciso partir para formar militantes que

soubessem discutir questões ideológicas de fundo como o modo de produção capitalista e a

questão do socialismo. O segundo nascedouro é a formação na perspectiva classista,

anticapitalista e socialista.

Desta feita, o primeiro curso tinha como proposta a temática “Do sindicato que temos

ao sindicato que queremos” que depois passou a ser denominado de “Questões de

sindicalismo”, curso dividido em dois blocos: No primeiro bloco discutiu-se “a sociedade

capitalista” (teoria do valor-trabalho, mais-valia, exploração, classes sociais em luta); o

segundo concernia à temática sobre “o sindicato como instrumento de organização e luta dos

trabalhadores frente às classes dominantes”. Percebemos que, no primeiro bloco, temos a

temática da economia política que trata da estrutura do sistema capitalista, ou melhor, das

categorias primordiais de ação do sistema etc., logo de caráter marxista.

Os outros dois cursos de maior duração foram dados a posteriori, a saber, “História do

274

movimento operário-sindical no Brasil” e “Noções básicas de economia política” como

desdobramento do curso “Questões de sindicalismo”. Segundo Tumolo (2002), “Noções

básicas de economia política” é um curso que abordou de forma mais profunda e extensa a

temática referente à primeira parte de “Questões de sindicalismo”, ou seja, a discussão sobre a

sociedade capitalista e as classes sociais em luta; da mesma forma, “História do movimento

operário-sindical no Brasil” que tinha como tema “o sindicato como instrumento de

organização e luta dos trabalhadores frente às classes dominantes”. E dessa maneira foi-se

delineando um programa de formação política com seminários ou cursos relâmpagos, de cariz

mais ou menos instrumental, a partir das demandas conjunturais do movimento sindical

cutista. Houve também cursos de aprofundamento sobre a questão da “luta de classes”.

Afirma, pois, Tumolo que a perspectiva classista e anticapitalista marcava, nesse período,

distintivamente todos esses cursos, mesmo os que lidavam com temáticas conjunturais.

Em relação ao conteúdo, esses cursos de aprofundamento não precisavam bem os

conceitos como “mais-valia”, “luta de classes” etc., ou mesmo não explicitavam

dialeticamente a divisão histórica do modo de produção humana no comunismo primitivo,

escravismo, feudalismo, capitalismo e a possibilidade do socialismo. Era, na verdade, um

conteúdo referenciado em manuais e feito na base do diálogo, pois não se utilizava a lousa

para meter a matéria na cabeça dos frequentadores. Havia, portanto, uma forma primitiva de

buscar estratégias educativas, sobretudo, porque era necessário adequar o conteúdo complexo

à linguagem corrente dos formandos. Um fato a se registrar é que consta nos documentos

oficiais da CUT, de que a formação sindical e a política nacional só são iniciadas em 1987,

quando, na verdade, desde 1984-1986, como foi dito, já havia cursos ou atividades de

formação sob o comando de Ana Lúcia da Silva (primeira secretária de formação da CUT à

época). De fato, segundo Tumolo, há uma interpretação que quer se impor como verdade

factual, afirmando que a formação sindical cutista só começa a partir de 1987, mas o objetivo

é fazer esquecer aquele tipo de formação classista e anticapitalista que era dado aos

sindicalizados, isto é, uma política nacional de formação que estava de acordo com os

princípios estatutários da CUT, ou seja, uma entidade classista, de luta, de massas e

anticapitalista. Sem dúvida, a formação nos primórdios da formação sindical cutista tinha essa

perspectiva da luta de classes e estava tentando ser implementada.73

Por conseguinte, a formação sindical cutista toma a posteriori uma nova configuração

na gestão de 1986-1994, quando Jorge Lorenzetti assume a SNF por oito anos, ficando até o

73 Cf. TUMOLO, op. cit., p.160-162.

275

V CONCUT. Para este secretário, foi preciso fazer um roteiro pequeno e seminários regionais

e estaduais, como também foi necessário perceber quais eram as demandas e expectativas dos

sindicatos, das CUTs estaduais com relação à formação. Houve assim um plano de trabalho

da SNF para 1987 que definiu metas prioritárias e princípios para uma Política Nacional de

Formação, uma estratégia de implantação da PNF-CUT. Com base então na visão de Tumolo,

citemos aqui pelo menos dois dos dez princípios elencados no referido plano de 1987: 1) o de

número dois que tem como eixo central “a concepção classista da sociedade e a defesa dos

interesses imediatos e históricos da classe trabalhadora”; e 2) o de número quatro que traz no

seu bojo “a reflexão sobre a história da luta de classes no mundo”. Portanto, conforme o

documento Plano de Trabalho da Secretaria Nacional de Formação da CUT 1987, na página

2, “o conhecimento e o estudo do capitalismo e do socialismo devem ser preocupação

permanente da formação da CUT.”74

Sendo assim, para viabilizar tais princípios, três eixos

foram definidos: economia política básica, sindicalismo e planejamento e administração

sindical, sendo o primeiro eixo o principal e mais determinante, do ponto de vista

revolucionário marxista. Contudo, afirma Tumolo, o único eixo que foi desenvolvido foi o do

sindicalismo, ficando os outros dois postergados por falta de fôlego da SNF-CUT.

A partir de 1988, a SNF-CUT abandona estes eixos permanentes e conjunturais e cria

cinco eixos prioritários de formação: “1) Concepção e prática sindical da CUT; 2)

Planejamento e administração sindical cutista; 3) Economia política básica75

; 4) Apoio ao

desenvolvimento das lutas prioritárias da CUT; e 5) Desenvolvimento de uma linha

metodológica de formação da CUT.”76

O estranho é que todo o documento visa oferecer

propostas de atividades de formação a partir dos cinco eixos prioritários; no entanto, o eixo

“Economia política básica” não foi proposto em nenhum curso ou seminário, pois o que se

propôs foi constituir um grupo de trabalho, em âmbito nacional, sob a coordenação da SNF,

para discutir e preparar um programa nacional de formação para este eixo. E mais: com a

preparação para o III CONCUT, a equipe responsável para desenvolver os eixos dois e três

não conseguiu fazer, porque o tempo de preparação e organização deste Congresso a impediu,

ficando, portanto, tais eixos prejudicados. Afirma Tumolo,

O resultado disso é claramente perceptível no ano seguinte. O plano de Trabalho da

Secretaria Nacional de Formação da CUT 1989, sem fazer qualquer análise ou

74 Cf. TUMOLO, op. cit., p. 165. 75 Tal eixo engloba a compreensão e domínio dos elementos fundamentais da sociedade capitalista em que

vivemos e as bases do socialismo. Atualmente o programa Organização e Representação Sindical de Base

(ORSB) tem como um dos módulos complementares, o “socialismo”. Ver documento em PDF, “Síntese dos

principais debates e encaminhamentos do XVII Encontro da PNF-CUT” (2011), p. 12. Disponível em:

<http://cut.org.br/secretarias-nacionais/45/formacao/documentos>. Acesso em: 5 abr 2012. 76 CUT, Plano de Trabalho da Secretaria Nacional de Formação da CUT 1988, p. 2 apud TUMOLO, op. cit., p. 166.

276

apresentar alguma justificativa, reduz os cinco eixos prioritários para quatro,

retirando justamente o eixo “Economia política básica” e remetendo a discussão

sobre noções de economia política para o eixo “Concepção, prática e estrutura

sindical da CUT” [CPES] (Cf. CUT, 1989 b, p. 4).77

Para Tumolo, o eixo “Economia política básica”, algo determinante em relação ao

conjunto de programas de formação, do ponto de vista político e metodológico, é tirado de

cena e, portanto, nunca foi realizado de forma satisfatória. Seu conteúdo é deslocado para o

eixo “Concepção prática e estrutura sindical da CUT” (CPES), tornando-se eixo basilar da

formação cutista. Este eixo como ampliação da sua denominação anterior – “Concepção e

prática sindical” (CPS) – engloba questões como “a história da luta dos trabalhadores no

Brasil e no mundo”, “a análise classista da sociedade”, “análise de conjuntura”, “estrutura

sindical”, “concepção e práticas sindicais”, “papel do sindicato/Central Sindical na luta de

classes” e “Relação entre sindicato e partido”. Para alcançar os objetivos deste eixo, dois

cursos foram criados em dois níveis para capacitar lideranças do movimento sindical com os

seguintes pontos programáticos:

Nível I

Classes sociais e método de análise

Instrumental de análise de conjuntura

História do movimento operário no Brasil

História do movimento operário internacional

Estrutura sindical

Estado e ideologia

Relação sindicato e partido

Nível II

Estrutura de classes no Brasil

Estudo de caso para análise de conjuntura

Política de alianças

Estrutura sindical

Concepção e prática do movimento sindical.

Em 1990, segundo Tumolo, há uma alteração na situação desses níveis, pois há três

documentos diferentes que tratam do mesmo objeto: 1) Plano de Trabalho da Secretaria

77 TUMOLO, op.cit., p. 166-167.

277

Nacional de Formação da CUT-1990; 2) Avaliação das Atividades da SNF para 1989 – Plano

de Trabalho da SNF para 1990; e 3) Plano de Trabalho da SNF 1990. Senão vejamos:

Nível I

Levantamento da prática sindical

Discussão sobre as diferentes experiências sindicais da CUT

Concepções do movimento sindical

Concepção sindical da CUT (3º CONCUT)

Estrutura sindical

História e mudanças na constituição

Estrutura sindical da CUT

Desafios para implantação da proposta da CUT

Nível II

Levantamento das experiências das formas de luta e organização dos

trabalhadores brasileiros

Instrumental de análise de conjuntura

Noções sobre estratégia e tática do movimento sindical

Estrutura sindical da CUT

Discussão sobre formas de luta e organização na proposta do contrato coletivo

de trabalho articulado

Desafios da implantação da proposta da CUT.78

Tumolo anota que há uma mudança em relação ao primeiro documento e anos

anteriores, ou seja, houve uma modificação no enfoque global do curso, retirando temáticas

relevantes para o desenvolvimento da consciência classista, ou seja, aquelas referentes às

classes sociais, ao Estado e à ideologia, à história do movimento operário no Brasil e no

mundo e, sobretudo, à economia política que trata das categorias inerentes ao sistema do

capital. Ficaram assim suprimidos alguns temas que faziam parte do conteúdo do curso de

CPES, e principalmente o que havia restado de “economia política básica” que ainda estava

presente neste curso. Então, diz Tumolo, desaparece até mesmo o que era mera proposta do

conjunto de programas de formação algo sem nunca ter sido realizado nos anos posteriores a

1987. Isso parece denotar tanto uma mudança de rumo no curso de CPES como uma alteração

78 Cf. TUMOLO, op. cit., p. 167-169.

278

e redefinição dos princípios originais da formação sindical cutista, já que ao se eliminar esses

conteúdos revolucionários e classistas, os princípios cutistas de antes não se materializarão na

prática.79

Para comprovar essa mudança de rota, o documento “Avaliação 1990 – Plano de

Trabalho 1991” afirma que foram feitos seis cursos de CPES-Nível I em 1990 com as

seguintes temáticas: 1) O que é concepção sindical; 2) Problemas na concepção e prática

cutistas; 3) História das concepções sindicais no Brasil; 4) Concepção, prática e estrutura

sindical da CUT (CPES): sindicalismo classista, democrático e de massas; Federação x

Departamento; Autonomia x Estrutura oficial; e Unidade x Unicidade; e 5) História de criação

da CUT.80

Em 1991, foi sugerido o mesmo curso de Concepção, estrutura e prática sindical –

CEPS (modificação da CPES), só que para membros da direção nacional, direções estaduais e

regionais, dirigentes e lideranças de sindicatos e oposições reconhecidas.

Afirma Tumolo que em 1991 os eixos prioritários se transformam em programas de

formação, sendo o programa CEPS, com nova roupagem, o carro-chefe de uma grade maior

de outros programas: 1) Concepção, Estrutura e Prática Sindical da CUT; 2) Negociação e

Contratação Coletiva; 3) Planejamento e Administração Sindical Cutista; 4) Processo de

Trabalho e Organização Sindical de Base; 5) Comunicação e Expressão; 6) Formação para a

Direção Nacional da CUT; 7) Formação sobre a Questão Rural; 8) Formação sobre a Questão

da Mulher Trabalhadora; 9) Recursos Humanos, Pedagógicos e Metodologia no Trabalho de

Formação Cutista; 10) Apoio à Estruturação das Secretarias Estaduais de Formação da CUT e

às Escolas; e 11) Cooperação e Intercâmbio Nacional e Internacional. Houve pequenas

modificações nos anos posteriores, quando em 1994 chegou-se a um Plano de Trabalho

composto por dez programas, tornando-se, portanto, a espinha dorsal que vai constituir toda a

formação sindical cutista, com o desafio capital de realizá-los e elaborar currículos mínimos

na esfera nacional para cada um deles. Senão vejamos:

1. Concepção, Estrutura e Prática Sindical da CUT (CEPS)

2. Negociação Coletiva (NC)

3. Planejamento e Administração Sindical Cutista (PASC)

4. Processo de Trabalho e Organização no Local de Trabalho (PT/OLT)

5. Formação de Direções (FD)

6. Relações Sociais entre Homens e Mulheres (RSHM)

7. Formação para Trabalhadores Rurais (FTR)

79 Cf. TUMOLO, op. cit., p. 169-170. 80 Cf. Ibid., p. 170.

279

8. Formação de Formadores (FF)

9. Cooperação e Intercâmbio Nacional e Internacional (CINI)

10. Memória e Documentação (MD)

Claro que para pôr em prática esses programas81

foi necessário construir estruturas e

fóruns de organização e gestão com as seguintes instâncias: Secretaria Nacional de Formação

(SNF); Secretarias Estaduais de Formação (SEFs); Secretarias Regionais de Formação

(SRFs); Departamento/Federações e Confederações; Sindicatos; Escolas de Formação. É

sabido que os rumos da PNF-CUT eram definidos pelos seus Congressos e Plenárias

Nacionais, Direção Nacional e pela Executiva Nacional, em ordem decrescente de

importância. No entanto, foram criados fóruns específicos para isso como Encontros

Nacionais de Formação (ENAFOR); Coletivo Nacional de Formação (CONAFOR); e

Coordenações Nacionais de Programas.

Mas é preciso ressaltar que são as escolas de formação orgânicas e conveniadas as

instâncias privilegiadas da formação cutista, mesmo que as estruturas e os fóruns sejam os

responsáveis pela organização e gestação dessa formação sindical. As escolas conveniadas,

apesar de terem sido criadas pelo movimento sindical cutista, tinham certa autonomia

administrativa e jurídica em relação à CUT; já as escolas orgânicas foram criadas com total

organicidade à CUT (formativa, administrativa, jurídica e financeira). O total de escolas eram

sete em 1994, sendo uma ainda em processo de discussão. Se no primeiro período da

formação sindical “1984-1986”, a formação era feita no próprio interior da CUT, a partir de

1986-1987 e anos seguintes, toda a formação passou a ser realizada pelas escolas orgânicas e

conveniadas. Vejamos então as escolas: Escola Sindical Sul (Florianópolis), Instituto Cajamar

(São Paulo), Escola Sindical São Paulo (São Paulo), Escola Sindical 7 de Outubro (Belo

Horizonte), Escola Centro Oeste de Formação Sindical (Brasília), Escola Quilombo dos

Palmares (Recife), Coletivo Nordeste de Formação (Recife), Escola Sindical do Norte

(Belém) e Escola Sindical Norte II (Porto Velho; esta última em discussão). O Instituto

81 Na Rede de Formação da CUT, os programas de formação estão hoje redesenhados em cinco: Organização e

Representação Sindical de Base (ORSB), Desenvolvimento de Políticas Públicas e Ação Regional (DPPAR),

Negociação e Contratação Coletiva (NCC), Política e Sindicalismo Internacionais (PSI) e Formação de

Formadores (FF). O objetivo da PNF “é contribuir para que uma ampla maioria das direções e lideranças

sindicais tenham compreensão e consciência sobre a necessidade de mudanças profundas tanto no que toca o

debate sobre desenvolvimento econômico e social e seus impactos nas relações de trabalho, quanto sobre a

urgência de radicalizarmos na luta em defesa da liberdade e autonomia sindical. Ou seja, fazer com o que os

trabalhadores/as que se identificam com o Projeto Sindical da CUT transcendam da ‘classe em si’ à condição de

‘classe para si’ como enfatizou Julio Turra do debate sobre estratégia da CUT.” Disponível em:

<http://cut.org.br/secretarias-nacionais/45/formacao/documentos>. Acesso em: 5 abr. 2012.

280

Cajamar e a Escola Sindical 7 de Outubro eram escolas conveniadas, sendo esta última

transformada depois em escola orgânica.82

Bem, apresentadas então a estrutura e os fóruns da formação sindical cutista,

retomemos o ponto de discussão que é o significado da mudança na formação sindical cutista,

ou seja, a sua guinada para uma formação instrumental, menos “ideologizada” do ponto de

vista classista, e mais cidadã, em que os princípios da justiça social, cidadania e da

democracia serão os elementos norteadores de seus cursos de formação.

Segundo Manfredi, a partir dos documentos consultados, o projeto formativo cutista

está subordinado ao projeto político-sindical da Central, quer dizer, a formação é definida

como democrática, pluralista e unitária; em outras palavras, a formação deve ser, portanto, um

espaço que estimule a reflexão e o debate das mais diferentes correntes83

no interior da

Central. Além disso, a formação cutista tem como objetivo de ser um instrumento de reflexão

crítica, de libertação e de construção da integralidade do trabalhador como ser humano, ou

seja, contribui para que os trabalhadores tenham uma visão crítica do mundo e das relações

sociais. Conforme Manfredi, para CUT, a formação trabalha com a ideia de que, para

construir um mundo melhor e para que a liberdade aconteça, o trabalhador tem que ser sujeito

da história, capaz de pensar sua realidade criticamente, ou melhor dizendo, ter propostas para

a sua transformação e saber agir coletivamente a partir da convicção e da consistência em seus

propósitos político-ideológicos.84

Com base nesses princípios, a SNF-CUT tentou construir uma concepção de

educação sindical que se aproxima da “pedagogia transformadora buscando uma

alternativa à educação dominante, autoritária, elitista, excludente, contribuindo para

o desenvolvimento de uma nova prática educacional, gestada e assumida pelos

82 No bojo do processo de reestruturação da formação sindical cutista e por diversos motivos, várias escolas de

formação, que mesmo funcionando em condições precárias, deixaram de funcionar como a Escola Norte I e II, a

Escola Centro Oeste. A Escola Nordeste continuou funcionando precariamente e a Escola de São Paulo passou

por uma crise no final de 1996. A Escola Sete de Outubro e a Escola Sul mantiveram uma estrutura ativa e uma

atividade regular. O Instituto Cajamar deixou de existir. Cf. TUMOLO, op. cit., p. 191; 229. Nota 55-56.

Todavia, conforme o site da CUT, funcionam hoje a Escola Norte I – Amazônia (Belém), Escola Norte II –

Chico Mendes (Porto Velho), Escola Centro-Oeste (Goiânia), Escola Nordeste (Recife), Escola São Paulo (São

Paulo), 7 de Outubro (Belo Horizonte), Escola Sul (Florianópolis) e Escola Turismo e Hotelaria – Canto da Ilha

(Florianópolis). Disponível em:<http: http://www.cut.org.br/estrutura/58/escolas-sindicais>. Acesso: 5 abr. 2012. 83 Atualmente, a CUT conta com as seguintes correntes internas: ArtSind (Articulação Sindical), CSD (CUT

Socialista e Democrática, ligada à Democracia Socialista), AE (Articulação de Esquerda Sindical), CUT

Independente e de Luta, EPS (Esquerda Popular Socialista-Sindical), ES (Esquerda Marxista, uma dissidência do

OT), TM (Tendência Marxista), OT (O Trabalho), DR (Democracia Radical) e GI (Grupo dos Independentes que

gravitam perifericamente). As correntes que deixaram a CUT: CSC (Corrente Sindical Classista, ligada ao PC do

B, fundando a Central dos Trabalhadores/as do Brasil, a CTB), CUT pela Base que fundou a CONLUTAS,

ligada ao PSTU e alguns militantes do CSD e DS, que saíram do PT e fundaram o PSOL, estão representados

pela INTERSINDICAL. 84 Cf. MANFREDI. A política nacional de formação da CUT. In: op. cit., p. 40-41.

281

trabalhadores – ligada às múltiplas dimensões da vida cotidiana” e tendo como meta

um projeto de construção de uma sociedade mais igualitária e democrática.85

Para Manfredi, do ponto de vista metodológico, os formadores e as instâncias buscam

construir uma proposta coerente que leve em conta as diferentes necessidades e múltiplas

dimensões do trabalhador enquanto ser humano, cujo objetivo é fazer com que ele se torne um

ser integral. Daí a proposta da formação valorizar a integridade, a solidariedade e a luta pela

igualdade de direitos. Para isso, a questão da operacionalização é estratégica, denominada de

“metodologia da práxis”, ou seja, partindo do pressuposto de que o trabalhador já possui um

conhecimento acumulado, então é preciso fazer com que este conhecimento interaja com o

saber sistematizado, não subordinando um ao outro. Portanto, a proposta metodológica da

formação é envolver os educandos nas discussões, problematizando a realidade e priorizando

a pesquisa e o estudo coletivo em todos os momentos de criação do conhecimento. O

importante nisso tudo, segundo a CUT, é o exercício do pensar e a atitude crítica, curiosa e

criativa em face do objeto a ser estudado. Manfredi anota que para a CUT,

Não se trata, portanto, de entregar ou transmitir aos trabalhadores a explicação mais

rigorosa dos fatos como algo acabado e estático. Trata-se de reproduzir, no processo

educativo, o espírito inerente à luta dos trabalhadores de que todos os direitos

conseguidos são uma conquista e de que o saber também deve ser uma conquista individual e coletiva.86

Na avaliação de Manfredi, se o período entre 1985 e 1987 foi a fase de gestação do

projeto formativo e implantação das estruturas e da Política Nacional de Formação da CUT

(PNF-CUT), de 1987 a 1993 foi a fase de execução do projeto, em que foram ministrados 160

cursos e 198 seminários temáticos, somando 358 atividades formativas, com a participação de

11.589 pessoas. Na tabela de cursos realizados pela PNF-CUT (1987-1993), podemos

perceber que os cursos mais realizados foram: 1º Concepção/Prática Sindical com 43 cursos;

2º Formação de Formadores com 21; 3º Formação de dirigentes-nacionais/estaduais com 20;

4º Formação de Monitores com 18; 5º Planejamento Sindical com 16.87

Sem dúvida, o curso

mais interessante para a formação da consciência crítica e classista em relação ao capitalismo

é “Economia e Sindicalismo”, com apenas 3 cursos realizados. Percebe-se assim que a CUT

estava mais preocupada em formar uma classe burocrática, dirigente e gestora da estrutura

sindical de que necessitava, do que formar pessoas com uma consciência revolucionária e

anticapitalista que pudessem agir para além dos limites institucionais.

85 MANFREDI, op. cit., p. 41. 86

SGRECCIA, Alex e outros. Escola Sindical 7 de Outubro: Concepção político-pedagógica. In: Forma &

Conteúdo. Secretaria Nacional de Formação, nº 3, dezembro de 1990, p. 31 apud MANFREDI, op. cit., p. 42. 87 Ver Sílvia Maria Manfredi, A política nacional de formação da CUT, in: op. cit., p. 45.

282

Contudo, os temas priorizados pelos sindicatos cutistas urbanos e rurais, em cada

programa de atividades, eram antes bastante específicos. No caso do programa “Formação

econômica, social e política geral”, destinado aos dirigentes e militantes de sindicatos urbanos

(1) e rurais (2), havia os seguintes temas: (1) Socialismo, conjuntura econômica e política

nacional, sistemas econômicos, economia política e privatização/estatização; (2) Avanço do

capitalismo no campo, conjuntura nacional, relação entre partidos/sindicatos e socialismo no

Cone Sul. Observamos que até 1993, as temáticas do socialismo e da economia política ainda

eram relevantes para sindicatos cutistas, embora dadas de forma imprecisa teoricamente.

Para Tumolo, a formação sindical cutista vai mudando à medida que também vai se

modificando a sua estratégia política, ou seja, vai perdendo paulatinamente sua perspectiva

classista e anticapitalista e, portanto, a partir de 1987, já vai adquirindo gradativamente esta

formação um caráter instrumental. Em outras palavras, o objetivo era a preparação da

militância para atender às demandas da conjuntura e do cotidiano sindical, ou seja,

[...] uma formação que lida com os aspectos conjunturais, do que de uma formação

de base que propiciasse uma apreensão da realidade social em sua dinamicidade

contraditória, tendo como eixo central a luta antagônica entre as classes sociais

fundamentais, ou seja, uma formação que tratasse dos elementos estruturais em seu

movimento de múltiplas contradições.88

Argumenta Tumolo que, apesar de haver uma preocupação nos primeiros anos do período, ou

seja, de que todos os programas de formação fossem pautados por esta formação de base, de

acordo com os princípios cutistas, essa expectativa foi se desvanecendo. Para Tumolo, o

exemplo mais visível é a não realização do curso de Economia política básica na sua

programação para 1987/1988. O seu conteúdo foi transferido para o curso de CEPS, sendo

este o principal programa da CUT, quer dizer, o mais consolidado e importante de todos eles.

Mas ao mesmo tempo em que esse conteúdo mais classista e anticapitalista fora incorporado,

com o tempo também fora suprimido juntamente com os temas de maior relevância, tornando-

se a CEPS uma feição próxima a uma concepção instrumental. Afirma ainda Tumolo que

88 TUMOLO, Da Contestação à conformação: a formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista, p. 181-

182. Na pesquisa sobre os cursos de formação da Escola Quilombo dos Palmares (Equip), Paula percebe com

base nas tabelas que entre 1988-1993 é dado prioridade apenas à formação de “dirigentes-educadores” e às

reflexões do cotidiano sindical, não sobrando nenhum espaço para o debate sobre as categorias do pensamento

marxiano no quadro de ofertas. Também conclui que não se faz uma relação entre o saber do educando com o saber teórico, pois o princípio metodológico é a construção coletiva do conhecimento, isto é, a história de vida de

cada um. Houve então uma subestimação das categorias marxistas pelos educadores. Logo, a tendência dos

cursos de educadores se inscreveu numa linha de reflexão subjetivista, de pensar o ato educativo mais numa via

psicológica do que sociológica, sobretudo, porque o ponto de partida são as experiências individuais. A

metodologia é, nesse caso, participativa, ou seja, o conteúdo é construído nos grupos de trabalhos a partir de suas

vivências imediatas. Na verdade, a Equip identifica o marxismo com teoria, ou melhor, como um conjunto de

conceitos dogmáticos; e assim postula um tipo de formação limitada a formar dirigentes, uma formação

“sindicalesca” sem a teoria como suporte do conhecimento; aquilo que Vanilda Paiva denomina, segundo Paula,

de “populismo pedagógico”. Cf. PAULA, Dissertação, p. 65-109.

283

somente em 1993, depois da realização do III e IV CONCUTs (1988 e 1991), com a

consolidação da terceira fase da CUT que se caracteriza por um sindicalismo propositivo e

conciliador, o Plano Nacional de Formação de 1993, ao comemorar os dez anos da Central,

faz um balanço sobre sua prática sindical e começa a pautar sua estratégia política sindical a

partir da ideologia da democracia e cidadania dentro da ordem do capital.

É a partir deste momento que o tema da cidadania na democracia liberal burguesa

parece serpentear o discurso e a prática sindical cutista como caixa de ressonância da “nova

ideologia” do Partido dos Trabalhadores (PT). Segundo a avaliação cutista, os anos 1980

foram de práticas reativas e reivindicativas do movimento sindical; mas os anos 1990 colocam

uma nova tomada de posição para a Central, ou seja, a CUT adota uma linha de atuação

afirmativa e propositiva, tanto no campo das relações entre o capital e o trabalho, como no das

relações entre Estado e sociedade civil, como já foi dito anteriormente. A democracia passa

assim a ser um valor fundamental, isto é, passa a ser um elemento imprescindível da

sociedade do futuro.89

Dessa forma, consolida-se um processo de mudanças profundas na

formação sindical cutista, balizado pelo trinômio proposição/negociação/participação,

perdendo o caráter classista em troca do horizonte da cidadania.90

A partir de 1994, no final do mandato de Jorge Lorenzetti e durante a gestão de

Mônica Valente, é que se começou a questionar a estruturação da formação sindical baseada

nos programas de formação. Durante este período de transição que vai do 7º Enafor (1993) até

o 9º Enafor (1994)91

, os programas de formação passaram a ser denominados de Núcleos

Temáticos. Com objetivo de viabilizar a nova estratégia de formação, tais núcleos se

propuseram a ser espaços de estudo, pesquisa, reflexão, elaboração e sistematização de

conteúdos. Os núcleos se organizam a partir de eixos temático-problemáticos relacionados

com o projeto CUT e sua PNF. Na verdade, diz Tumolo,

[...] os núcleos temáticos, principais alicerces da nova estratégia de formação, não têm a finalidade de executar atividades de formação. [...] os núcleos temáticos são, fundamentalmente espaços de estudo, elaboração, pesquisa e sistematização do conhecimento e não de execução de atividades formativas.92

Assim os núcleos, a partir da 10ª Reunião do CONAFOR (Coletivo Nacional de

89 Cf. Documento da CUT: Plano Nacional de Formação 1994. In: TUMOLO, op. cit., p.184-185. 90 Sobre essa questão da cidadania e sua crítica marxista, ver Ivo Tonet, Educação, cidadania e emancipação

humana, p. 79-124. 91 Enquanto o 7º e 9º Enafor’s foram realizados em dezembro de seus respectivos anos, o 8º Enafor se

realizou em agosto de 1994, num encontro extraordinário. 92 CUT, Plano Nacional de Formação 1995. In: TUMOLO, op. cit., p.188. Vale ressaltar que os pilares do

projeto sindical CUT são: liberdade e autonomia sindical, luta por melhores condições de vida e trabalho, rumo à

transformação da sociedade brasileira em direção à democracia e ao socialismo. Cf. Caderno Texto Base da

Direção Nacional para o 11º CONCUT, p. 46.

284

Formação), foram criados com os respectivos eixos temáticos: 1) Gestão sindical; 2)

Educação do trabalhador; 3) Transformações no mundo do trabalho; 4) Organização sindical

cutista e Organização no local de trabalho (Olt); 5) Sistema democrático cutista e negociação

coletiva; 6) Integração econômica mundial e Mercosul; 7) Sindicato, Estado e Sociedade; e 8)

Relações sociais de gênero. Percebe-se então que as atividades formativas visam responder

aos problemas concretos imediatos, ou seja, pondo questões ou desafios suscitados no próprio

exercício cotidiano da prática sindical cutista. Eles mesmos afirmam isso em seus documentos

do Plano Nacional de Formação de 1996.

É impossível, no entanto, elencar aqui todas as grades de atividades que foram

programadas a partir dos Planos Nacionais de Formação elaborados a partir de 1995. Por

exemplo, as atividades propostas em 1996 para a região Sudeste não consta um curso

específico, mais teórico-político, de caráter marxista. A maioria dos cursos tem a ver com a

questão da formação de formadores, gestão sindical, educação do trabalhador, emprego,

formação profissional, reestruturação produtiva, unificação dos sindicatos, planejamento

estratégico, reforma administrativa, sociologia do trabalho e educação, negociação coletiva

etc.

Todavia, como dissemos anteriormente, a partir da 7ª Plenária Nacional em 1995 a

CUT decidiu implementar a política de formação profissional na estrutura da Central. Mas a

discussão era de longa data, quando, em 1992, se estruturou uma Comissão de Educação com

a participação de várias Entidades Nacionais de Trabalhadores em Educação como a ANDES-

SN (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior), CNTE

(Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação), CONTEE (Confederação Nacional

dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino), FASUBRA (Federação dos Sindicatos

dos Trabalhadores das Universidades Públicas Brasileiras). O objetivo era aprofundar

discussões e reflexões sobre o eixo temático “Educação e Trabalho” com ênfase na formação

profissional de nível médio. O argumento principal para optar em fazer educação profissional

para os trabalhadores referia-se, na época, à questão do desemprego estrutural, decorrente da

modernização tecnológica, em que mais de 8 milhões de trabalhadores estavam sem emprego,

além de milhões marginalizados no setor informal. A intenção era fazer o trabalhador voltar

ao emprego de forma mais digna. Segundo Tumolo93

, a CUT vincula a questão do

desemprego ao problema da não formação profissional dos trabalhadores, ou melhor, à sua

não requalificação profissional, acreditando, nessa ótica, que a solução do desemprego é uma

93 Cf. TUMOLO, op. cit., p. 195.

285

questão de despreparo técnico do trabalhador para mexer com as novas tecnologias. Por outro

lado, a CUT acredita que participar da política de formação profissional é disputar junto com

as entidades patronais – SENAI, SESC, SESI, SENAC etc. – os recursos financeiros estatais.

Mas foi no 12º Enafor (Encontro Nacional de Formação), em 1997, realizado na

Escola Sul da CUT em Florianópolis, que a questão da formação profissional foi o tema mais

polêmico e candente nas discussões. Um conjunto de questionamentos foi elencado pelos

participantes, gerando controvérsias no interior da CUT, senão vejamos alguns:

primeiro, a tese da ligação entre qualificação e requalificação da força de

trabalho (por via escolar ou extra-escolar) e emprego que apontava a

qualificação e a requalificação como alternativas de geração de emprego e

renda. Isto, do ponto de vista marxista, é uma falácia, já que em países

desenvolvidos, com alto nível de educação e qualificação profissional, há um

crescente desemprego decorrente do alto nível tecnológico da produção que

requer menos trabalhadores para manuseio dos instrumentos produtivos, das

máquinas.

segundo, a CUT do “campo da esquerda” sempre defendeu a escola pública,

gratuita e de qualidade. Mas, ao assumir a tarefa da formação profissional, ela

esvazia a luta pela escola pública de qualidade no que tange a formação

integral (conhecimentos gerais e técnicos), ou seja, reforça o ideário neoliberal

que defende um Estado mínimo de políticas públicas, passando a

responsabilidade para a sociedade civil. Além, claro, de os próprios sindicatos

não terem pessoas qualificadas para realizar o ensino integral com certificação

de 1º ou 2º graus. Seria o mesmo que reproduzir o ensino precário das escolas

públicas em suas entidades;

terceiro, a discussão se voltava para uma nova prática assistencialista, algo que

era a marca do sindicalismo oficial de Estado, quer dizer, reproduzindo nos

sindicatos cutistas o velho assistencialismo dos sindicatos pelegos; e

quarto, a crise financeira nos sindicatos cutistas na segunda metade dos anos

1990 levantou o debate de que a realização da formação profissional, com

recursos do governo, seria uma tábua de salvação para muitos sindicatos.

Talvez isso explicasse a procura de muitos sindicatos, que até então nunca

tinham realizado formação com seus militantes, buscarem realizar a formação.

286

Independentemente de essas discussões terem ocorrido no 12º Enafor, a CUT já havia

firmado convênios de projetos de formação profissional com os órgãos governamentais que

começariam a se realizar a partir de 1998. No entanto, isso já havia ocorrido na Confederação

Nacional dos Metalúrgicos (CNM) na primeira metade da década de 1990 com o Projeto

Integrar que associa formação profissional com certificação de 1º grau. Com recursos do

Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), o objetivo era habilitar mil formadores para

formação profissional e 2 mil conselheiros das comissões estaduais e municipais de emprego

e trabalho. Portanto, em meados de 1998, a CUT publica uma brochura do projeto Formação

Integral, cujo título é “Trabalho e educação num mundo em mudanças”, isto é, um Caderno

de apoio às atividades de Formação do Programa Nacional de Formação de Formadores e

capacitação de conselheiros, em convênio com MTB (Mistério do Trabalho), SEFOR

(Secretaria de Formação e Desenvolvimento Profissional) e CODEFAT (Conselho

Deliberativo do FAT). O conteúdo do Caderno é de quatro blocos: bloco 1 - As

transformações do capitalismo no final do século XX; bloco 2 – Emprego/desemprego e

alternativa de geração de renda; bloco 3 – Alternativas de desenvolvimento; e bloco 4 –

Educação e trabalho.

Em relação ao conteúdo do bloco 1 – As transformações do capitalismo no final do

século XX – temos quatro textos com os seguintes temas: “globalização”, “neoliberalismo”,

“reestruturação produtiva” etc. Neles – diz Tumolo – Pochmann e Mattoso começam com

uma breve retrospectiva dos modelos de desenvolvimentos implementados no Brasil a partir

da ditadura militar, apresentando suas principais características, seus limites e problemas. No

que diz respeito à “desestruturação neoliberal” e a “modernização conservadora”, os dois

autores mostram as mudanças que ocorreram nas condições e na dinâmica adotada pelos

trabalhadores e suas organizações sindicais. Para Tumolo, os autores apenas fazem uma

análise de conjuntura sem efetivar um estudo mais profundo sobre a realidade contemporânea

em sua totalidade social, tal como o escrito de Hebert de Souza – “A grande transformação

socioeconômica do capitalismo no final do século XX” –, na qual apenas desenvolve uma

análise jornalístico-informativa das principais transformações socioeconômicas que vêm

acontecendo no final do século XX.

Da mesma maneira é o bloco 2 – Emprego e desemprego e a alternativa de geração de

renda –, ou seja, tratado de forma conjuntural sem nenhuma exposição de análise que

questione a relação assalariada de produção. Para Tumolo, os textos de Krein, Pochmann e

Mattoso, embora analisem a questão do trabalho na conjuntura neoliberal, com suas

transformações no mundo da produção e do trabalho, não abordam a questão do emprego no

287

bojo da relação capitalista de produção, mas somente a partir do “fenômeno histórico da

subutilização do trabalho”.94

O mais estranho é que o caderno de formação do bloco 2 propõe

a reorganização da sociedade a partir de iniciativas localizadas de combate ao desemprego,

ou seja, com a criação de redes de produção autônoma, em que a lógica da solidariedade fosse

a marca da relação entre produção e troca de mercadorias. Na mesma lógica de pensamento

vai o texto de Paul Singer, “A economia solidária na luta contra o desemprego e na

competição sistêmica”, em que ele acredita que a economia solidária possa ser uma

alternativa ao modo capitalista de produção, a partir da cooperação de unidades produtivas,

ligadas por laços de solidariedade, propiciando ao homem escolher e experimentar formas

alternativas de organizar sua vida econômica e social. Essas propostas de combate ao

desemprego e de construção da economia solidária, para CUT, devem estar associadas a um

projeto novo de desenvolvimento para o país.95

O bloco 3 – Alternativas de desenvolvimento – apresentam três textos, cujas temáticas

são: “Estado, globalização e projeto nacional” (M. A. Garcia); “Fundamentos de um projeto

novo para o Brasil” (C. Benjamin); e “Propostas da CUT”. Tomando o texto de Garcia,

Tumolo afirma que a questão da inexistência de uma reforma social e a concentração de renda

são as diretrizes de sua reflexão sobre a elaboração de um novo projeto nacional que implica a

inclusão social, o Estado nacional e o caráter democrático deste projeto nacional. Na mesma

direção, a CUT apresenta quatro propostas para construir uma sociedade cidadã, ou seja, um

modelo alternativo de sociedade baseado na democracia e justiça social: desenvolvimento

rural, política de segurança alimentar, política cidadã e reforma do Estado.

Por fim, o bloco 4 – Educação e Trabalho – discute a relação entre educação e trabalho

com base em dois textos: um de Dermeval Saviani, “O trabalho como princípio educativo

frente às novas tecnologias”, e outro de Claudio Salvadori Dedecca, “Educação e trabalho no

Brasil”. O texto de Saviani faz um histórico da relação entre educação e trabalho desde a

Antiguidade até a sociedade contemporânea; e, ao tratar do Brasil, Saviani alimenta a

esperança de que a incorporação de novas tecnologias pelas empresas possibilite a urgência de

94 TUMOLO, op. cit., p. 203. 95 Conforme Colbari, o movimento sindical cutista tem a perspectiva de associar aprendizado técnico e o aprendizado político com os cursos de qualificação e requalificação profissional, ou seja, objetivando influir

instrumental e simbolicamente na formação do trabalhador, livrando-o do puro treinamento técnico ou do

assistencialismo do modelo do sindicalismo de outrora. Em outras palavras, apropriar-se dos recursos dos

trabalhadores (FAT) para dar uma ressignificação política a esses cursos, maximizando a capacidade de

raciocínio e compreensão do indivíduo sobre a sociedade para que ele possa tomar decisões e assumir

responsabilidades com a elevação do seu nível cultural. Educar, portanto, para a cidadania ativa. Sobre esta

polêmica dos cursos de profissionalização, empregabilidade e economia solidária, ver Antonia Colbari,

Qualificação profissional e empregabilidade: Novos desafios ao sindicalismo no Espírito Santos. In:

RODRIGUES, Iram Jácome (Org.). O novo sindicalismo: vinte anos depois, p. 173 et seq.

288

realizar a universalização da escola básica, ou melhor, de construir um sistema educacional

unificado, pois, para Saviani, sem esse sistema o parque produtivo nacional não se moderniza.

Já o texto de Dedecca trata da relação entre educação e mercado de trabalho, avaliando que

esta relação nos países desenvolvidos, mesmo com nível educacional elevado, não garante

desemprego menor; no entanto, no Brasil, Dedecca faz uma ressalva, argumentando que o

Estado, ao garantir a universalização básica e de boa qualidade da educação, ou seja, ao

melhorar o perfil educacional de nossa população, pode favorecer a economia com uma mão

de obra qualificada, estimulando a produtividade e a competividade e, assim, podendo

resolver os gargalos do desenvolvimento.96

Exposta então essa sucinta explanação dos textos do Caderno de apoio às atividades

do Programa Nacional de Formação, segundo Tumolo, os textos que compõem o primeiro

bloco mostram e fazem uma crítica apenas aos elementos de manifestação da realidade

presente, não discutindo de forma mais aprofundada o capitalismo contemporâneo a partir de

uma análise da totalidade social que leve em consideração a dinâmica do atual

desenvolvimento capitalista com seus antagonismos de classe e as suas contradições inerentes

à sua estrutura. Não é à toa que os textos cutistas são referências bibliográficas que apenas

servem de sustentação às suas medidas estratégicas e táticas no que dizem respeito à sua nova

tomada de posição político-ideológica face à realidade neoliberal, ou melhor dizendo, da sua

escolha política a la socialdemocrata. Desse modo, os textos do bloco 1, escolhidos para o

Caderno, não discutem ou criticam o sistema capitalista, mas apenas um determinado modelo

de desenvolvimento.

Já o terceiro bloco objetivava apresentar um projeto nacional com um Estado

soberano, baseado na democracia e no desenvolvimento econômico que propiciasse a criação

e a distribuição da riqueza equitativamente, a saber, uma sociedade cidadã baseada na

democracia e justiça social. No entanto, essa proposta é carente de uma análise concreta da

realidade a partir de um referencial teórico-metodológico materialista-dialético. Seria, a nosso

ver, o retorno ao neokeynesianismo em que o Estado é a instância eficaz de solução do

antagonismo entre o capital e o trabalho. É o retorno a um pré-capitalismo concorrencial, ao

modelo do socialismo utópico, retirando da história seu elemento de “violência”97

enquanto

motor das grandes transformações sociais, no caso, a Revolução Social. Como diz Tumolo,

[...] o teor da análise e das propostas, inclusive a de constituição de uma “economia

solidária”, nos remete aos projetos e experiências do socialismo utópico. Mesmo

96 Cf. TUMOLO, op. cit., p. 206-207. 97 Sobre a teoria de violência, ver Engels, Anti-Dühring. São Paulo: Paz e Terra, 1990. p. 145-161.

289

reconhecendo a imprescindível contribuição oferecida por esta corrente política, até

porque eles próprios foram herdeiros dela.98

Para Tumolo, portanto, há nos textos dos autores utilizados no Caderno, que

subsidiam a formação sindical e profissional cutista, como referência teórico-política da CUT,

uma superficialidade e inconsistência de leitura da realidade, como também a inviabilidade e

ilusão de seus projetos estratégicos, pois tal leitura e tais projetos denotam uma determinada

posição teórico-política de caráter mais social-democrata do que socialista. Assim sendo, não

é possível detectar uma crítica radical ao sistema capitalista, uma estratégia da luta de classes

de caráter internacionalista, nem mesmo a necessidade de se fazer uma ruptura revolucionária

para se construir as bases históricas de transição para uma sociedade socialista. Os textos vão

mais na direção de criticar o modelo de desenvolvimento econômico capitalista e apresentar

um projeto nacional soberano, baseado na democracia e justiça social, do que compreender e

desnudar para os trabalhadores a impossibilidade de realização das suas demandas de classe

na (des)ordem do capital. De tal modo que tanto a formação sindical quanto a formação

profissional se balizam na construção de uma sociedade cidadã, caracterizando-se, assim,

numa formação puramente instrumental desde os anos 1990. Enfim, segundo Tumolo, mesmo

que os dirigentes e assessores da CUT digam que não querem tomar o lugar do Estado,

quando implementam projetos de formação profissional no interior da CUT, na prática eles

estão fazendo isso, mesmo que utilizem esse espaço para transmitir ideias progressistas para

os alunos.

Para Oliveira do Rio, há uma contradição na postura política da CUT, pois, ao mesmo

tempo em que, no seu Estatuto, a Central se pauta pelo compromisso e defesa dos interesses

imediatos e históricos dos trabalhadores, pela luta por melhores condições de vida e pelo

engajamento no processo da transformação da sociedade brasileira em rumo à construção do

socialismo, na prática ela se volta fundamentalmente para a formação profissional e

construção da cidadania que são contrários a tais princípios estatutários antes recitados.99

Na

verdade, a CUT se rende aos fatos conjunturais históricos da modernização conservadora do

capitalismo, baseados na reestruturação produtiva, na nova forma de exploração do trabalho

com injustas formas de gestão do trabalho e da produção, na desregulamentação das leis

trabalhistas e na globalização financeira dos mercados de ações.

Com efeito, a CUT, ao se envolver diretamente com a qualificação profissional, a

partir dos termos do documento Projeto Nacional de Qualificação Profissional CUT/Brasil,

98 TUMOLO, op. cit., p. 209. 99 Cf. OLIVEIRA DO RIO, Dissertação, p. 68-69.

290

reforça a ideologia dominante da “empregabilidade”, ou melhor, não “percebe” o movimento

concreto real do capital, que é a crise do capitalismo em movimento, cujo desemprego

estrutural é a sua consequência maior. No entanto, na “Apresentação” do livro Educação

integral dos trabalhadores: práticas em construção, o Secretário Nacional de Formação da

CUT, Altemir Tortelli, explica que

O projeto Nacional de Qualificação Profissional CUT/Brasil, desenvolvido no

âmbito do Planfor/MTE e do qual o Programa Integração é parte, procurou fazer

com que suas ações refletissem o esforço conjunto das diversas instâncias da CUT

no sentido de contribuir na formulação de um projeto pedagógico para a educação

profissional que tenha como perspectiva a Educação Integral dos Trabalhadores.100

Nesse sentido, segundo Tortelli, a CUT visa construir uma proposta de educação

integral para os trabalhadores que supere a dicotomia entre educação profissional e ensino

propedêutico, ou seja, busca combater o tipo de educação que fragmenta o conhecimento que

tende a instrumentalizar o homem para atender as demandas do mercado.101

Por isso que,

desde 1996, programas nacionais e regionais de Educação Profissional vêm sendo

implementados pela CUT, cujo objetivo é contribuir com metodologias para a Educação

Integral dos Trabalhadores, entendendo que, conforme a resolução do 5º CONCUT,

A formação profissional é, numa concepção cutista, parte de um projeto educativo

global e emancipador. Portanto, deve ser entendida como o exercício de uma

concepção radical de cidadania. A CUT recusa a concepção de formação

profissional como simples adestramento ou treinamento ou como mera garantia de promoção de competitividade dos sistemas produtivos.102

Para a CUT, realizar o processo de formação integral, por meio de Programas

desenvolvidos no Projeto Nacional de Qualificação Profissional (PNQP) CUT-Brasil, com

recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), é ampliar sua capacidade de intervir de

forma propositiva na formulação, gestão e controle das políticas públicas tais como os

Sistemas Públicos de Emprego e de Educação, ou seja, com o objetivo de disputar a

hegemonia. Conforme a CUT, a Educação Integral dos trabalhadores está intimamente ligada

à PNF/CUT e, portanto, compreende a articulação entre Formação Política e Sindical,

Educação Básica e Profissional. A CUT admite em suas resoluções que os Programas de

Educação Integral sejam de responsabilidade do poder público, financiado com dinheiro

público, mas que tenham gestão democrática com a participação ativa dos trabalhadores nas

definições políticas e pedagógicas, assim como na gestão financeira, ou seja, reafirma a

100 BARBARA, Maristela Miranda et al. (Orgs.). Educação integral dos trabalhadores: práticas em construção.

São Paulo: CUT, 2003. p. 13. 101 Ibid., p. 14. 102 Cf. 5º Congresso Nacional da CUT. Resoluções, 1995, p. 52 apud BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 19.

291

necessidade de prover a educação para toda a população, mas colocando os trabalhadores

como protagonistas na construção de políticas públicas.103

Por outro lado, fica claro, segundo Oliveira do Rio, que a CUT em seus documentos

centra-se numa suposta oposição entre a “sociedade civil” e o “governo” e não mais entre

“capitalistas” e os “trabalhadores”. Há aí uma mudança de linguagem, de discurso, que reflete

o impacto da ideologia neoliberal no seu interior. Isso se traduz numa ocultação da CUT sobre

a existência dos interesses antagônicos de classe na sociedade capitalista. Ou como diz Boito

Jr., “Os trabalhadores não têm mais inimigos, e a CUT pode, agora, aspirar e representar a

‘sociedade’. A visão neoliberal da sociedade e da relação desta com o Estado tem dominado,

apesar de oscilações e contradições, no discurso da CUT.”104

Na concepção de Oliveira do

Rio, há sim uma guinada de estratégia, quer dizer, de aborto do projeto socialista, quando o

discurso da CUT entra em sintonia com os novos discursos da pós-modernidade, ou seja,

desloca a questão do conflito de classes sociais para a relação de conflito entre governo versus

sociedade civil. Há, portanto, uma “luta de classe transformada”, quer dizer, para Oliveira do

Rio, o objetivo é o controle dos fundos públicos para implementar políticas públicas para toda

a sociedade, logo uma estratégia política vinculada ao tipo de sindicalismo propositivo

neoliberal.105

Entretanto, no seu livro sobre a análise da Formação Profissional e sua relação com a

educação básica, a CUT tem como proposta metodológica “a construção do conhecimento a

partir da socialização dos diversos saberes e da realização de um trabalho integrado entre

educadores, incorporando os acúmulos advindos das diversas experiências formativas trazidas

por cada sujeito educador.”106

Na concepção da PNF/CUT, para promover a educação integral

é preciso “pensar e construir uma nova relação com o conhecimento, uma nova relação entre

educador e educando, um novo sentido ao espaço educativo.”107

Nesse sentido, a PNF/CUT

entende que “[...] o homem é sujeito de sua história, é produtor de conhecimento, de cultura,

de riqueza; é transformador da natureza por meio do Trabalho, resgatando assim, o seu

sentido ontológico.”108

A CUT, dessa maneira, propõe a centralidade do Trabalho na

construção curricular, isto é, compreende a categoria “Trabalho” como “processo de

transformação da natureza”, “processo de transformação da espécie humana” e como

103 Cf. BARBARA et al. (Orgs), op. cit., p. 19-20. 104 BOITO JR. Armando. Hegemonia Neoliberal e Sindicalismo no Brasil. In: Crítica Marxista. São Paulo, [s.e],

1996, n. 3, p. 93. 105 Cf. OLIVEIRA DO RIO, Dissertação, p. 71. 106 BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 23. Ver também Francisca Clara de Paula, nota 88 deste capítulo. 107 Ibid., p. 28. 108 Ibid., p. 29.

292

“processo histórico que se reveste de um caráter específico na formação social capitalista”.109

O que deve ser ressaltado, porém, é que a PNF/CUT leva em consideração os sujeitos

envolvidos no processo ensino-aprendizagem, privilegiando o educando como centro de

atuação político-pedagógica. Mas ela enfatiza a necessidade de se ter uma ação pedagógica

que dialogue intensamente com os conhecimentos acumulados que os educandos possuem,

pois a diversidade está presente em cada sala de aula, e aí é preciso constituir os laços comuns

que os unem no projeto formativo. A socialização das experiências nesse projeto de educação

profissional/integral CUT tem como objetivo formar o homem omnilateral, completo, pois a

educação deve ultrapassar a dimensão do agir unicamente determinado pela necessidade de

subsistência, quer dizer, como única referência a produção material. Para isso, a CUT luta

“por uma escola única de cultura geral e humanista que possibilite o desenvolvimento da

capacidade de compreender a realidade como unidade do mundo e do homem em ação, em

permanente transformação.”110

Vejamos então como se apresentam as áreas temáticas, oferecidas pelo Projeto

Nacional de Qualificação Profissional CUT-Brasil no âmbito do Planfor/MTE: 1) Sujeito,

Natureza & Desenvolvimento; 2) Conhecimento & Tecnologia; 3) Comunicação, Cultura &

Sociedade e; 4) Gestão & Alternativas de Trabalho & Renda.

(1) A área “Sujeito, Natureza & Desenvolvimento” tem como objetivo estratégico

fazer com que os educandos se apropriem do conceito de Sujeito nas suas dimensões

individual e coletiva; e discutir o homem como parte da Natureza e o Trabalho como

atividade pela qual o homem transforma a natureza e se constrói como sujeito cultural, social

e histórico. Em outras palavras, a área tem o objetivo de desencadear reflexões sobre o

desdobramento de suas ações na construção de uma nova perspectiva de desenvolvimento.111

Nesta área de conhecimento, o PNQP/CUT-Brasil pactua de uma análise marxiana ao afirmar

que a

História, aqui, é entendida como processo de produção e reprodução da vida em

sociedade, campo de oposições, conflitos e antagonismos entre classes, plano de

objetivação, pelo trabalho, das possibilidades de conservação ou transformação das

relações sociais, já que o trabalho é indispensável à existência humana,

considerando que, em quaisquer que sejam as formas de organização da sociedade, o

trabalho é a necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o

homem e a natureza, e, portanto, de manter a vida humana.112

109 Cf. BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 29. O interessante é que nessa discussão, a avaliação da PNF/CUT

toma como enfoque a questão da mercadologização da força de trabalho, a extração do valor desta, a raiz das

formas de alienação e exploração e subordinação do Trabalho ao Capital. 110 BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 47. 111 Cf. Ibid., p. 51. 112 Ibid., p. 51.

293

E continua a afirmar que é possível

[...] atuar sobre as condições objetivas com vistas a transformá-las segundo as

possibilidades que nelas estão escritas, compreendendo cada fenômeno do cotidiano como movimento de uma realidade em permanente processo de construção,

negando, assim, a concepção de uma natureza humana pronta, imutável.113

De certa forma, o PNQP/CUT-Brasil parte de uma concepção “marxiana” da realidade

nesta Área onde o Programa Integração trabalha. No debate sobre a Natureza &

Desenvolvimento, há um texto extraído do livro de Marx The People’s Paper, de 1856, que

fala sobre as máquinas dotadas de um poder maravilhoso de abreviar e tornar o trabalho

menos demorado que poderiam levar o homem a se libertar bastante do tempo de trabalho

necessário e ter um período de tempo mais livre para se dedicar a outras atividades. Por outro

lado, o texto ressalta que as máquinas nas mãos de proprietários privados fazem os homens se

tornarem escravos da sua própria intensificação de produção, embrutecendo suas vidas. Na

temática, Sujeito Histórico, o curso cita um texto de Gramsci “Que é o homem?” do livro

Concepção dialética da história114

que trata do homem como controlador do seu próprio

destino, como um ser que se cria ou se refaz na própria vida; além de citar a natureza humana

como “um conjunto das relações sociais”, extraída, certamente, da Sexta Tese sobre

Feuerbach de Marx. O objetivo com este texto seria promover uma reflexão sobre a

possibilidade humana de transformar a realidade, em contraposição à ideia fatalista e

naturalizadora das relações sociais e das condições objetivas existentes. Percebe-se que há

uma dimensão reflexiva de caráter marxista nos textos apresentados e nas reflexões sobre os

mesmos. Segundo a reflexão da CUT sobre “a Formação Profissional e sua relação com a

educação a partir da ótica dos trabalhadores”, a abordagem dos textos quer mostrar que “a

realidade é sempre mais rica de conhecimento do que temos dela” e que “é preciso elaborar

sínteses para entender melhor esta realidade”, ou seja, “uma visão de conjunto que permita

descobrir a estrutura significativa da realidade”.115

(2) A área “Conhecimento & Tecnologia” privilegiou as relações entre os temas:

“trabalho e técnica”, “sociedade e tecnologia”, “saberes e ciência”, “cultura e tecnologia”,

“desenvolvimento social e tecnologia”. O objetivo é promover uma reflexão sobre as

consequências desse processo na vida das pessoas, no trabalho e no mundo. O eixo da

abordagem nesta área é a noção de movimento, isto é, movimentos cíclicos ou naturais,

movimentos históricos e o movimento que constitui o homem como um ser social na sua

113 BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 51-52. 114 Cf. GRAMSCI, Concepção dialética da história, p. 38-44. 115 Cf. BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 75.

294

relação trabalho e natureza. Nesse sentido, o percurso formativo tem como centralidade de

abordagem o trabalho. Aqui se percebe um pouco a discussão do trabalho em Marx a partir da

sua relação com a natureza e com os próprios homens ou como processo de transformação da

realidade e das transformações sociais.116

Também faz a crítica ao eixo das políticas ditadas

pelos organismos internacionais, implementadas pelos governos que defendem a ideia de o

mercado ser a razão de todas as coisas. Pelo menos em tese, a CUT é contrária ao modelo de

educação que dispensa a formação humanista para se centrar na sua instrumentalização para o

mercado de trabalho; logo a CUT defende a educação integral como uma unidade entre escola

e vida. Assim, para CUT, “Forma-se para pensar, para estudar, para governar ou controlar

quem governa e, também, para trabalhar. Não há separação entre pensar e agir, porque quando

o pensar é privado de realidade e o agir de sentido, ambos ficam sem significado.”117

(3) A área de “Comunicação, Cultura & Sociedade” tem o objetivo de discutir as

relações entre Trabalho, Cultura e Sociedade, enfatizando a perspectiva histórica sobre o

tema, quer dizer, problematizando as questões contemporâneas como, por exemplo, “a

influência dos meios de comunicação na construção e legitimação do pensamento

hegemônico”, como também “a materialização desse pensamento no que diz respeito à

educação e qualificação profissional a partir do discurso da empregabilidade e das

competências”. Essa posição retórica da CUT entra em choque com que Paulo Tumolo

analisou a PNF-CUT, mas este autor faz uma ressalva, dizendo que seu estudo foi até o

período de 1998; esta percepção cutista já é a do século XXI, depois de 2002.118

Portanto,

nesta área a metodologia buscou fazer uma reflexão sobre a formação ser um processo

relacional entre o indivíduo, a natureza e a cultura, isto é, o processo de construção da

subjetividade humana. Nessa direção, a área temática retoma a questão das “relações sociais”,

uma categoria marxista, para situar o homem dentro da sua própria história, da sua realidade

social, a partir de uma análise de Gramsci sobre “o que é o homem”. Segundo Barbara, na

perspectiva gramsciana,

[...] é das relações sociais que precisamos partir para compreender o quê, como e por

que os homens agem e pensam de determinada maneira. Trata-se de compreender a

própria origem das relações sociais, de encará-las como processos históricos. Ou

seja, em diferentes momentos históricos a produção da existência e, por decorrência,

do conhecimento, processou-se de diferentes formas e meios, sempre com base nas

condições objetivas de cada contexto.119

116 Cf. BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 77. 117 BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 79. 118 Cf. a página 289 deste capítulo sobre a posição crítica de Tumolo. Cf. também TUMOLO, op. cit., p. 233,

nota 84, onde ele faz a ressalva de que encerrou o estudo dele acerca da formação cutista em 1998. 119 Ibid., p. 99.

295

Todavia, vale dizer que o PNQP/CUT trabalha metodologicamente com figuras de obras de

artes, poemas de vários escritores como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles,

Mário Quintana etc., como também com a linguagem.

(4) Por fim, a área de “Gestão & Alternativa de Trabalho e Renda” tem o objetivo de

promover uma discussão sobre a distinção entre desenvolvimento social e crescimento

econômico. Por isso, a reflexão sobre o papel do Estado nas políticas públicas e na

organização do trabalho foi a proposta da área, cujo objetivo era saber se o Estado exerceu o

seu papel de agente indutor e regulador do crescimento econômico e do desenvolvimento

social. Além disso, também foi proposta uma análise crítica das formas de empreendimentos

solidários existentes, suas possibilidades e limites. Aqui, a CUT percebeu que a alternativa

dos pequenos negócios particulares ou de cooperativas se mostrou como iniciativas inviáveis

economicamente, justamente porque não há políticas de incentivo por meio do Estado. E,

portanto, a CUT faz a ressalva, alegando que isso é consequência da falta de políticas públicas

que ofereçam formação, assessorias, apoio jurídico, apoio à comercialização e um tratamento

fiscal diferenciado para os pequenos empreendedores. Desse modo, para a CUT, não é o

sistema anárquico do Capital que impede os agentes econômicos solidários de “se darem

bem”. Fica claro então que a CUT continua com a perspectiva utópica de que, dentro da

(des)ordem do capital, os trabalhadores podem “se dar bem”, e coloca a economia solidária

como agenda.

Parece haver, portanto, uma contradição entre discurso e prática na CUT, porque, se

por um lado, o PNQP/CUT trabalha com categorias marxistas como “relações sociais”,

“conflitos de classes”, “hegemonia da classe dominante”, “poder do trabalhador”, por outro,

ela faz o jogo do capital, ao trabalhar com categorias pós-modernas como “cidadania”,

“inclusão social”, “empregabilidade” “desenvolvimento sustentável”, “economia solidária”

etc. O problema do capitalismo para a CUT parece ser o de não haver nele a “solidariedade

social”, um típico discurso moral do “dever ser” kantiano, ou seja, a CUT não se coloca mais

na perspectiva da luta pelo socialismo, mas parece propor uma luta de caráter moral120

de

combate ao individualismo capitalista, ao mercado de trabalho competitivo, acreditando que

as alternativas coletivas solidárias poderão ser os embriões do nascimento de uma nova

relação social de produção. A CUT fala na “importância da organização dos trabalhadores”,

porém, apenas no sentido de exercer um poder de influência nas decisões do governo

120

Isto só confirma a tese de Vanilda Paiva do populismo pedagógico, cujo saber emana do povo, e aponta para

uma visão moralista da sociedade capitalista que só critica os valores “desumanos” e não a lógica de exploração

do capitalismo. Cf. PAULA, Dissertação, p. 103.

296

capitalista para melhorar suas condições de vida, e não de organizar a classe trabalhadora para

o combate anticapitalista, através da luta de classes, visando superar a ordem do capital.121

Nas resoluções do VII CONCUT (2000), a estratégia inovadora da CUT já era de

combate ao desemprego e à exclusão social a partir da construção de um projeto de economia

solidária tais como cooperativas populares autênticas e de autogestão ou empresas de

autogestão, para distribuir renda e geração de novas oportunidades de trabalho, sob princípios

da democracia e da autogestão.122

No texto A Intervenção da CUT nas políticas Públicas de

Geração de Trabalho, Emprego, Renda e Educação dos Trabalhadores123

, é apresentado o

objetivo da educação profissional: “formar tecnicamente e politicamente os trabalhadores”.

Para a CUT, a sua proposta político-pedagógica tem um sentido emancipador e libertador, isto

é, um sentido de resgate da autoestima e da identidade do trabalhador. Na verdade, a CUT tem

claro que a criação de experiências alternativas, por meio de seus programas, não deve

substituir o papel do Estado, mas, ao mesmo tempo, ela entende que é preciso construir

referências de políticas públicas que fortaleçam o seu papel na condução de um modelo de

desenvolvimento fundado nos conceitos de solidariedade e sustentabilidade. De outro modo,

sobre essa participação da avaliação externa do PNQP/CUT, a Central declara que

Assim, assumindo o caráter de complementaridade das ações públicas estatais e não-

estatais, os programas de educação profissional desenvolvidos pela CUT buscam

fortalecer uma nova institucionalização da educação profissional. Nesse sentido, a

participação da CUT no Planfor e na educação dos trabalhadores é vista por seus

dirigentes na ótica de fortalecer mecanismos sociais de participação, seja na relação

direta entre capital e trabalho, seja na definição e controle social das políticas

públicas. Vale registrar que essa compreensão alargada do sentido das ações

públicas, bem como da viabilidade de estabelecer parcerias com governos de corte

conservador, é motivo ainda de algumas polêmicas no interior da CUT.124

Neste sentido, vale a pena elencar os princípios que nortearam a Política Nacional de

Formação (PNF) da CUT aprovados em suas instâncias (Congressos, Plenárias etc.), enquanto

a orientação mais geral para o conjunto de suas ações de formação:

formação classista e de massas;

resoluções da Central são a referência;

democrática, pluralista e unitária;

unificada e descentralizada;

121 Cf. BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p.137-138. 122 Cf. Resoluções do 7º Concut, 2000, p. 31 apud BARBARA et al. (Orgs.), op. cit., p. 155. 123 Cf. SAUL, Ana Maria et al. (Orgs.). A intervenção da CUT nas políticas públicas de geração de trabalho,

emprego, renda e educação dos trabalhadores: avaliação, resultados e ampliação de perspectivas. São Paulo:

CUT: Unitrabalho, 2003. p. 141-142. 124 SAUL et al. (Orgs.), op. cit., p. 143.

297

metodologia coerente com o projeto CUT;

trabalhar com a integralidade do ser humano;

instrumento de reflexão crítica e de libertação;

contra as discriminações;

dimensões ideológica, política e técnica;

formação é processo;

permanente, planejada e sistematizada;

indelegável;

parceria com entidades de apoio.125

Desta maneira, na avaliação externa do PNQP/CUT, a concepção cutista de formação

profissional é parte de um projeto educativo global e emancipador, ou melhor, um exercício

de uma concepção radical de cidadania, recusando a concepção de formação profissional

como simples adestramento ou treinamento do trabalhador ou como mera promoção da

competitividade dos sistemas produtivos. A CUT compreende que a formação profissional

deve estar diretamente sob o controle do Estado, mas com a intervenção dos trabalhadores

nesse processo e sua participação na definição, na gestão, no acompanhamento e na avaliação

das políticas e dos programas de formação profissional, isto é, por meio de suas instâncias

organizativas.126

Bem, se o objetivo da CUT, a partir de sua Formação Integral, é radicalizar a

cidadania do trabalhador no seu processo de autoconstrução socioindividual, para Ivo Tonet,

quando se faz a crítica da cidadania, a partir da perspectiva marxiana, não é com o fim de

desqualificar e denunciar a cidadania como algo apenas vinculado aos interesses da burguesia

ou algo nefasto para a classe trabalhadora, mas para examinar a lógica do processo social, isto

é, suas contradições, tendências, aspectos positivos e negativos, possibilidades e limitações

que dificultam o processo de autoconstrução humana. Ao fazer toda uma historiação da

formação humana desde a Antiguidade com os gregos, passando pela Idade Média até chegar

à Modernidade com a formação cidadã, sobretudo a partir da reflexão de Marx, Ivo Tonet

infere que, embora a cidadania implique a participação numa comunidade política em que o

indivíduo social goza de certos direitos sociais, a esquerda democrática ainda sustenta a

continuidade da cidadania para além do capitalismo, porque ela resulta das lutas da classe

125

SAUL et al. (Orgs.), op. cit., p. 143. 126 Cf. CUT-Brasil. 5º CONCUT – Congresso Nacional da Central Única dos Trabalhadores, Resoluções. 19 a

22 de maio, São Paulo, SP, 1994.

298

trabalhadora. No entanto, para Tonet, essa visão esquece que a cidadania tem sua origem no

ato fundante da sociabilidade capitalista. Foi na passagem do feudalismo para o capitalismo

que a cidadania surgiu como direito a ser efetivado a partir da Revolução Burguesa.

Para Tonet, é a origem histórico-ontológica da cidadania que interessa, ou seja, “a sua

natureza essencial como produto de um determinado solo social.”127

Nesse sentido, a

cidadania se encontra no ato fundante da sociabilidade capitalista que é o ato de

mercantilização da força de trabalho como um valor de troca, logo num solo de fundação da

negação do ser do homem enquanto homem genérico, em que a sua alienação obstaculiza a

sua plena realização humana como ser livre e “total”. Infere Marx, em várias passagens de

suas obras, que é impossível o capitalismo realizar a liberdade e igualdade humana, formar o

homem pleno, porque os mecanismos capitalistas de exploração impedem essa autoconstrução

humana. O indivíduo não é proprietário de sua força de trabalho, do objeto produzido pelo seu

trabalho, e por isso, não possui as qualidades de um cidadão, ou seja, uma pessoa livre,

autônoma, proprietária e igual. O Estado burguês, mesmo sob controle dos trabalhadores, não

tem o poder de anular a desigualdade social capitalista, de fundar uma cidadania plena para

todos, só para alguns privilegiados do sistema, pois a esfera pública, pela sua própria natureza

classista, é limitada para aperfeiçoar a sociedade matrizada na alienação econômica. Em

outras palavras, o Estado político burguês é incapaz de abolir a desigualdade de classes

sociais, produto da divisão social do trabalho capitalista.

Embora o marxismo admita o caráter progressista da emancipação política em que se

encontra o lema da cidadania, ele acredita que seja possível superar este tipo de emancipação

a partir de uma forma mais avançada de emancipação que é a emancipação humana. Dessa

maneira, Tonet compreende que ser cidadão ou ser membro da comunidade política, como

único e melhor espaço da autoconstrução humana, é aceitar as regras do jogo do ordenamento

alienante social do capitalismo. Por isso, para Tonet, “[...] é uma brutal ilusão querer colocar a

educação a serviço da formação dos cidadãos, especialmente nos países pobres.”128

A

cidadania nos países ricos não acabou com a desigualdade social por mais aperfeiçoada que

seja; no entanto, imagine então nos países pobres. Para Tonet, portanto,

[...] educar para a cidadania é formar para uma dupla ilusão: primeira, porque é

impossível atingir a plenitude da cidadania (visto que o fosso entre ricos e pobres aumenta em vez de diminuir); segunda, porque mesmo que isto fosse possível, não

levaria à formação de pessoas efetivamente livres, efetivamente sujeitos da história,

dada a natureza própria da cidadania.129

127 TONET, Educação, cidadania e emancipação humana, p.113. 128 Ibid., p. 123. 129 Ibid., loc.cit.

299

Desta feita, Tonet compreende que não podemos discutir a cidadania como horizonte

maior da humanidade no limite da emancipação política, pois o horizonte maior é formar o

homem genérico, pleno e total na amplitude da emancipação humana, como nos afirma Marx

nos Manuscritos de 1844. Ressalva Tonet, porém, que a luta pela cidadania tem sua

importância para a luta pelas objetivações democráticas-cidadãs, para atenuar o sofrimento da

classe trabalhadora na sociabilidade capitalista. O que não pode é esta luta imediatista se

tornar o fim último da luta dos trabalhadores, esquecendo-se de uma luta maior que é a luta

pela superação do capitalismo e construção do socialismo. Portanto, Tonet deixa claro, a

partir da reflexão marxiana (n’A Questão Judaica), que a emancipação política é apenas a

emancipação política da burguesia, e que a verdadeira emancipação da classe trabalhadora e

da humanidade é a emancipação humana (de todas as formas de alienação) que Max entende

como comunismo: uma sociedade livre, igual e fraterna. Ou, como mesmo Tonet afirma,

Quando fizemos a crítica da emancipação política, nossa análise se deteve sobre

uma dimensão de existência atual, quer dizer, sobre algo que já é resultado – embora

em curso – do processo histórico. Quando analisamos a emancipação humana,

referimo-nos a um fenômeno que tem raízes na realidade atual, mas cuja existência é apenas uma possibilidade. Nosso objetivo, então, era demarcar claramente a

diferença entre ambas e a superioridade da segunda sobre a primeira.130

É isso que a Política Nacional de Formação da CUT está fazendo, ou seja, ela

incorpora em sua formação sindical a formação profissional e cidadã, acreditando que seja

possível desenvolver uma educação mais ou menos integral do trabalhador em seus cursos de

formação e, a partir daí, extrair uma metodologia pedagógica das práticas educativas entre

educadores e educando, tendo como princípio a participação. Vejamos o que a CUT diz na

sua publicação “Formação Cidadã: uma ação educativa somando iniciativas”131

:

[...] as ações formativas da CUT sempre buscaram fortalecer a organização dos

trabalhadores com o objetivo de se construir um outro projeto de sociedade, que

supere as desigualdades sociais existentes e contribuir para a democratização do Estado, com a participação efetiva dos trabalhadores na garantia de políticas

públicas, compatíveis com as necessidades e interesses da classe trabalhadora. E é

nessa perspectiva da inclusão social e emancipação dos trabalhadores que a CUT se

propôs a desenvolver esse programa a fim de contribuir para o envolvimento dos

trabalhadores participantes nos Programas Sociais: Bolsa Trabalho e Começar de

Novo, na construção coletiva de alternativas para a superação de sua situação de

vulnerabilidade social, buscando junto ao poder público municipal a ampliação das

políticas públicas sociais como forma de enfrentar, com a participação ativa da

sociedade, os enormes desafios decorrentes do aumento do desemprego, da violência

urbana, entre outros.132

130 TONET, op. cit., p. 199. 131 BARBARA, Maristela Miranda e MIYASHIRO, Rosana (Orgs.). Formação cidadã: uma ação educativa

somando iniciativas. São Paulo: CUT, 2003. 140 P. 132 BARBARA e MIYASHIRO, op. cit., p. 7-8.

300

A CUT parte, assim, do pressuposto de que é possível construir um outro projeto de

sociedade, mas não afirma que tipo de sociedade ela quer construir, ou seja, se é a sociedade

socialista ou não. Ainda acredita que é possível fazer a inclusão social no capitalismo a partir

de uma atividade econômica solidária paralela à atividade econômica capitalista, como

precondição de se formar os primeiros embriões de uma sociedade comunitária, cidadã.

Assim sendo, a CUT trabalha nesse processo educativo com as questões do cotidiano

capitalista eivado de desemprego, violência, preconceitos, drogas etc., objetivando buscar

soluções alternativas que aliviem o sofrimento dos excluídos do mercado de trabalho

capitalista e dos direitos sociais, a partir da geração de renda e ocupação. Entretanto, vale

salientar que a CUT também faz a crítica à educação como forma de educar para a

“empregabilidade”, pois no texto “O trabalho na formação do homem”, de Maristela Miranda

Barbara, há uma diferença na conceituação entre trabalho e emprego de caráter, digamos,

mais marxista, que é do bloco “Questão social e desemprego”, do módulo básico “Formação

cidadã”. Ou, como ela mesma diz:

[...] qualquer atividade humana, qualquer criação humana, é trabalho. Porém, na

sociedade em que vivemos, o trabalho muitas vezes é reduzido ao emprego, ou seja:

quem não tem emprego, não trabalha. Procuramos desmistificar esse aspecto,

mostrando que todos somos trabalhadores, empregados ou não.133

No entanto, fica claro que o texto não trabalha a questão do trabalho na perspectiva marxista

do “estranhamento” e/ou da “alienação”, ou melhor, do “trabalho abstrato” como categoria-

chave do processo de exploração capitalista, como forma de deformação do homem. O

trabalho é concebido na sua idealidade como “uma questão de escolha livre, quer dizer, o

direito de poder escolher onde, como, para quem trabalhar”134

(esta é uma afirmação de um

educando).

Sem nos estendermos muito, vamos terminar com o “Bloco Cidadania: direitos e

deveres”135

, no qual a CUT reafirma o compromisso de reconhecer os direitos e deveres do

cidadão. Nele, a CUT reformula o conceito de cidadania como uma relação entre as pessoas

no espaço público (de todos), ou melhor dizendo, a cidadania não pode ser entendida apenas

como exercício do espaço comunitário, mas também como exercício do espaço público, onde

os sujeitos usufruam dos serviços públicos.136

Para CUT, portanto, não se separa a noção de

133 BARBARA e MIYASHIRO, op. cit., p. 61. 134 Ibid., p. 67. 135 O programa Bolsa trabalho e começar de novo foi realizado pela ADS/CUT em convênio com a prefeitura de São Paulo, com apoio técnico da UNESCO e da FAO, cujo módulo básico “Formação Cidadã” há seis blocos temáticos organizados: 1. Integração; 2. Questão social: Emprego e trabalho; 3. Cidadania: direitos e deveres; 4. Meio ambiente e qualidade de vida; 5. Formas alternativas de geração de renda e ocupação; e 6. Projeto comunitário. A carga horária foi de 160 horas. 136 Cf. BARBARA e MIYASHIRO, op. cit., p. 70.

301

cidadania da noção de direito, ou seja, “os cidadãos deixam de ser sujeitos de direito (todo

cidadão tem direito ao serviço público de saúde) e passam a ser usuários de serviços públicos

(é preciso “correr atrás”).”137

Entretanto, no bloco “Formas alternativas de geração de renda e

ocupação”, no texto “Ação e solidariedade”, que trata de um diálogo sobre solidariedade e

participação, percebemos que há uma estratégia de discussão, na qual se debate a questão da

lógica do mercado, baseado na competição e valores individualistas, colocando em foco a

recuperação da luta da classe trabalhadora, a partir dos interesses dos trabalhadores, a saber:

Foi fundamental refletirmos sobre as contradições ocultas sob os discursos da solidariedade. Analisou-se, também, a diferença entre o mero assistencialismo e as

práticas sociais solidárias, pautadas em uma perspectiva de classe. Assim, a

apropriação da realidade, a partir de uma visão crítica, pôde contribuir para o

desvelamento das reais forças que determinam os diferentes modos de

produção e reprodução da vida. 138

Mas por outro lado, quando o bloco “Formas alternativas de geração de renda e

ocupação” coloca como objetivo geral “refletir sobre as formas alternativas e solidárias de

enfrentamento da pobreza”139

, a partir das várias formas de empreendimentos

socioeconômicos solidários, como o cooperativismo e a autogestão, dá-se a impressão de que

fica marginal a discussão crítica (dialética) sobre as contradições do capitalismo que é gerador

permanente de desemprego e exclusão social, ou seja, parece que o programa fica mais

preocupado em encontrar soluções paliativas dentro da ordem do capital para aliviar o

sofrimento dos pobres trabalhadores do que fazer a crítica radical ao sistema capitalista e

desfazer as ilusões desses paliativos no campo da emancipação política que tem como núcleo

a questão dos direitos do cidadão. De fato, tais programas de formação só fazem contribuir

para que o capital elimine qualquer indício de crítica e rebeldia contra o sistema. Em vez de

lutar para construir uma sociabilidade antagônica ao capitalismo, a luta se desloca para que o

Estado capitalista efetive os direitos sociais para todos os “excluídos”. Senão vejamos o

resultado da avaliação do programa:

Nesse programa, fruto da parceria de diversos sujeitos sociais, a participação dos

educandos na solução dos seus próprios problemas gerou uma melhor compreensão

a respeito da realidade. Os educandos buscaram a superação dos problemas a partir

de uma prática coletiva e participativa. A qualidade da participação foi melhorando à

medida que os educandos aprenderam a contornar conflitos, buscando pontos de

interesses convergentes. Aprenderam a tolerar divergências e a respeitar a opinião alheia.140

137 BARBARA e MIYASHIRO, op. cit., p. 70. 138 Ibid., p. 95. (Grifo nosso). 139 Cf. BARBARA e MIYASHIRO, op. cit., p. 89. 140 BARBARA e MIYASHIRO, op. cit., p. 121. Paula considera que há uma apologia da prática pela prática, ao

analisar as práticas educativas da CUT/EQUIP, ou seja, tais práticas negam a importância da teoria (sobretudo a

302

Isso é que o capitalismo objetiva, ou seja, a tolerância à sua forma de sociabilidade,

fazendo com que as próprias vítimas do sistema encontrem soluções para suas vidas

marginais, tirando a culpa do sistema pelo vosso sofrimento. Em outras palavras, fica claro

que o problema deixa de ser da “crise estrutural” do sistema, como advoga Mészáros,

passando a ser uma crise de inadequação da mão de obra proletária aos novos instrumentos de

produção revolucionados pela ciência e tecnologia. Vejamos então a conclusão da CUT:

As ações estratégicas da CUT têm como objetivo combater a pobreza e a exclusão

social. Nesse sentido, a parceria estabelecida entre a Prefeitura Municipal de São

Paulo foi de fundamental importância, pois significou desenvolver um programa a

partir da implantação de políticas públicas de inclusão e possibilitou a intervenção

concreta da CUT junto à população que sempre foi atingida pelo modelo de

desenvolvimento historicamente adotado no Brasil. Um modelo que exclui uma

parcela considerável da população do acesso aos bens e serviços produzidos pela sociedade. Uma das tarefas históricas da Rede Nacional de Formação da CUT é

desenvolver uma metodologia coerente com os princípios que deram origem à

Central, capaz de incentivar o desvelamento da realidade. Uma metodologia que

gere instrumentos de crítica à atual forma de organização social; que permita

desvendar o processo histórico, compreendendo-o como resultado e como condição

da prática humana.141

A partir desse discurso, podemos inferir que, para a CUT, o problema não é o

capitalismo em si, mas o modelo de desenvolvimento de um determinado modo capitalista de

produção e distribuição. Em outras palavras, fica evidente a visão da terceira via, da social-

democracia, de que é possível contornar as falhas do sistema capitalista e assim possibilitar a

inclusão dos marginalizados no seu mercado de trabalho e consumo. Seria um

neokeynesianismo, isto é, de que o Estado do bem-estar social pode ser resgatado para

controlar a selvageria do capital. Como diz Oliveira do Rio, “A CUT deixa para trás o seu

passado de luta e resistência com base numa concepção combativa, passando a uma postura

‘propositiva’, participacionista, apostando na falseadora idéia da sociedade democrática e, por

assim dizer, na possibilidade de humanização do capital.”142

Para Oliveira do Rio, ainda que a

CUT critique e questione a sua concepção e estratégia de formação, ela continua a executar a

política de formação profissional do Ministério do Trabalho, mesmo que no seu discurso

inovador haja a defesa na luta por uma nova política educacional profissional.143

Nesta mesma perspectiva, ao analisar os diversos textos compilados que a CUT usa no

Caderno, Tumolo constata, como mencionamos antes, que os textos

marxista) como suporte do processo formativo e o papel do educador nesse processo. Para ela, as reflexões

teóricas são fundamentais no processo formativo participativo, pois o conhecimento sistemático não pode advir

do conhecimento espontaneísta do educando. Por outro lado, não é possível também cair no outro extremo que

faziam os partidos comunistas, a saber, que historicamente concebiam a construção do conhecimento como

puramente objetivista e/ou professoral. Cf. PAULA, Dissertação, p. 109. 141 BARBARA e MIYASHIRO, op. cit., p. 125. 142 OLIVEIRA DO RIO, Dissertação, p. 70. 143 Cf. OLIVEIRA DO RIO, op. cit., p. 72.

303

tecem uma crítica apenas aos elementos de manifestação da realidade presente e,

dessa forma, não discutem o capitalismo contemporâneo balizados por uma análise

da totalidade social, que leve em conta os elementos estruturantes e as contradições

que regem a dinâmica de desenvolvimento capitalista, em seu atual estágio de

acumulação.144

Não é por mera coincidência, segundo Tumolo, que a CUT se utiliza de referências

bibliográficas que não se baseiam num aporte materialista-dialético, pois se trata de uma

opção teórico-metodológica a partir de uma escolha política, ou seja, a social-democrata. Não

é à toa que autores que defendem a formação cidadã como Paulo Freire, Moacir Gadotti,

Gaudêncio Frigotto (prefaciador do livro da CUT Educação Integral dos Trabalhadores:

práticas em construção) etc. inspirem a concepção de cidadania da CUT.

Retomemos então a reflexão de Tonet, quando ele expõe criticamente as teses de

muitos autores, como Marilena Chaui, Carlos Nelson Coutinho, Claude Lefort, José Carlos

Libâneo, Paolo Nosella, Cornelius Castoriadis entre outros, que defendem a cidadania e a

democracia como algo imprescindível até mesmo no socialismo. Para alguns deles, a ideia de

cidadania e democracia não são valores meramente burgueses, particulares de uma época, mas

valores universais, pois acreditam que, tanto numa fase de transição quanto no socialismo

realizado plenamente, vão ocorrer situações que só a democracia política será capaz de resolver.

Em outras palavras, para esses autores da esquerda democrática, a cidadania e a democracia só

podem se realizar completamente com a erradicação do capital, e assim a construção da cidadania

seria a autêntica liberdade humana. Percebemos nesse discurso que há uma tentativa de incorporar

no socialismo esta característica da democracia liberal. Mas Tonet afirma que, para Marx, a

cidadania faz parte do que ele chama de emancipação política, porque justamente esse tipo de

emancipação é a emancipação da burguesia. Além do mais, Marx tanto no Manifesto Comunista

quanto nas Glosas Críticas faz uma crítica negativa da política enquanto uma forma de poder de

organização de uma classe para oprimir outra. É preciso salientar que Marx não se refere ao poder

político na sua totalidade, mas ao núcleo essencial deste poder, porque o poder não é apenas uma

defesa dos interesses das classes dominantes.

Com efeito, conforme Tonet, “Um dos pressupostos fundamentais das concepções

liberais e da esquerda democrática acerca da cidadania é de que não há uma dependência

essencial da dimensão política em relação à economia.”145

Em contraposição à essa visão, o

pressuposto marxiano diz que há sim uma dependência entre a política e a economia, do ponto

de vista ontológico. Ou como diz ainda Tonet: “[...] na ótica marxiana, a compreensão da

entificação da cidadania moderna é inseparável, não apenas em termos cronológicos, mas em

144 TUMOLO, Da contestação à conformação: a formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista, p. 207. 145 TONET, Educação, cidadania e emancipação humana, p. 96.

304

termos ontológicos, da entificação da sociabilidade capitalista.”146

Por isso que, para Tonet,

uma prática educativa emancipadora deve estar articulada com as lutas desenvolvidas pelas

classes subalternas, sobretudo com as lutas daqueles que ocupam postos decisivos na estrutura

produtiva. Daí ele afirmar que cabe ao trabalho, e não à educação, o papel fundamental de

transformação da sociedade, pois o carro-chefe da transformação revolucionária é a classe

trabalhadora. A educação tem o papel de fazer com que o indivíduo se aproprie do

conhecimento enquanto patrimônio comum da humanidade, e para isso tem que haver uma

luta constante para atingir esse objetivo.

Se há, por um lado, a convicção teórica da esquerda moderna de que a sociedade

democrático-cidadã está marcada por imperfeições e contradições, devido às desigualdades

sociais, ou seja, de que é possível superar essas desigualdades, à medida que há a conquista,

ampliação e melhoria dos direitos e das instituições sociais que os implementam,

engendrando, assim, a plena liberdade humana, por outro lado, temos uma posição contrária que

entende que a articulação entre a cidadania e a educação desconsidera a objetividade ontológica

do antagonismo entre o capital e o trabalho e se limita à forma de emancipação política da

burguesia, ou melhor expressando, a cidadania foi incorporada pela maioria dos educadores e

intelectuais como simples sinônimo de liberdade, mas, de fato, a cidadania se revela como uma

categoria essencialmente constitutiva da ordem do capital. Para Marx, quem é livre na ordem

capitalista é o próprio capital e não o homem. E nesse sentido, para Tonet, a atividade educativa

que deseja formar pessoas críticas e livres deve estar norteada pela concepção marxista de

emancipação humana e não pela concepção liberal burguesa de cidadania.

Para complementar esta discussão, a 13ª Plenária da CUT, realizada nos dias 30 de

junho a 1º de julho de 2011, apresentou um texto base da Direção Nacional, com o tema

“Liberdade e Autonomia: por uma nova estrutura sindical”. Podemos reafirmar que é a

mesma concepção político-ideológica da CUT de Congressos e Plenárias anteriores com

algumas pequenas modificações e adendos. Mostremos então, em linhas gerais, algumas das

resoluções tomadas para o próximo Congresso da CUT.

Tomemos o Eixo 1 para a reflexão – “Disputar os rumos do país, na sociedade e no

movimento sindical” – em que três pontos são definidos: 1) a luta pela liberdade e autonomia

sindical; 2) a luta por um Estado democratizado e um novo padrão de desenvolvimento; e 3)

mobilização e alianças sociais no Brasil e no mundo. O que podemos perceber nessa reflexão

é que a CUT, ainda pautada pelo seu X CONCUT (2009), cobra uma agenda de superação da

146 TONET, Educação, cidadania e emancipação humana, p. 96.

305

crise, ao reivindicar um modelo de desenvolvimento com base na participação popular, nas

decisões políticas, com sustentabilidade econômica, social e ambiental, distribuição de renda

e valorização do trabalho, ou seja, tudo o que o capitalismo, seja de matiz neoliberal ou

neokeynesiano, não pode efetivar.

No que diz respeito à crise de 2008, o texto descreve a crise econômica muito

jornalisticamente, mas não a denomina como crise do capitalismo, relatando apenas a

desigualdade social, desemprego, recessão, dívida pública etc. E ainda adere a campanha

mundial da OIT (Organização Internacional do Trabalho) em defesa do “Trabalho Decente”,

isto é, a partir do conteúdo de defesa dos direitos trabalhistas, tudo para que o Pacto Global do

Emprego, proposto pela OIT, seja implementado. Relata também a estatística do desemprego,

das desigualdades sociais, a partir de uma pura descrição analítica dos fatos, sem aprofundar

teoricamente as causas reais, ou melhor, o movimento contraditório inerente ao capitalismo.

Compreende a questão do aumento salarial como se fosse um ato de vontade política dos

governos, sem compreender que a própria sistemática do capitalismo não favorece a troca de

um salário justo por um trabalho justo ou a tal “equivalência de troca”, desmistificada por

Marx em O Capital. É, portanto, uma mera visão proudhoniana da igualização dos salários ao

trabalho numa sociabilidade de capitalistas universais. Senão vejamos uma das colocações:

A CUT repudia a campanha de criminalização dos aumentos salariais movida por

setores da mídia, do empresariado e do próprio governo, que têm expressado em

reiteradas declarações para que o movimento sindical seja mais moderado durante as

campanhas salariais do segundo semestre.147

Percebe-se aí a total ausência de uma análise marxiana da crise econômica capitalista

internacional, da condição do trabalho capitalista como trabalho inautêntico e deformador da

humanidade do homem, enfim, uma reflexão puramente fenomênica ou empirista da crise

econômico-social. Para a CUT, por exemplo, basta reduzir as taxas de juros que é possível fazer o

país crescer com maiores investimentos em infraestrutura e políticas públicas para reduzir as

desigualdades sociais. Nessa perspectiva analítica, a CUT defende um modelo de

desenvolvimento sustentável, com a valorização do trabalho e distribuição da renda, ampliando os

investimentos nas políticas sociais, na economia solidária, nas micro e pequenas empresas e no

desenvolvimento regional e territorial.148

Fica confusa essa postura da CUT, porque, defender

“mais e melhores empregos” e apostar na nova proposta da OIT do “Trabalho Decente”, é ignorar

todo o legado teórico anticapitalista marxista construído com e para os trabalhadores que desvela

147 OLIVEIRA, Waldemar de. 13ª Plenária da CUT: Liberdade e autonomia por uma nova estrutura sindical

(texto base). São Paulo: CUT, 2011. p. 13. 148 Cf. OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT, p. 14.

306

essa farsa de um capitalismo “humanizável”. Por outro lado, reafirma o texto básico da 13ª

plenária da CUT a resolução de seu 10º Congresso Nacional:

Afirmamos no 10º CONCUT (2009) que “a crise atual permite que questionemos

com mais intensidade os pilares da dominação capitalista. Sua superação deve

resultar da construção de um modelo alternativo, democrático e popular com

horizontes transitórios para a sociedade socialista. É nesse sentido que se

localizam os projetos de Estado e de desenvolvimento defendido por nós, que são antagônicos aos atuais hegemonizados pelo capital.” 149

Realmente, tal visão, como Marx diz nas Glosas Críticas, é pautar a política no estreito

horizonte burguês, ou seja, ter a ilusão de que o entendimento político, sob a onipotência da

vontade política, é por si só capaz de modificar as estruturas perversas da sociedade sem uma

revolução. O socialismo no texto base da CUT é mais um discurso ornamental, um conceito

“genérico”, como diz Boito Jr., para dar cores de um sindicalismo de esquerda, do que ser

mesmo um horizonte programático socialista a se efetivar; dessa maneira, a Central tem uma

prática sindical mais voltada para a política social-democrata que balize o capitalismo, do que

uma prática política voltada para construir um programa de transição para o socialismo.

O Eixo 1 reafirma a estratégia aprovada pelo X CONCUT que “garantiu ao

sindicalismo cutista a permanência da sua ofensividade, mesmo no período em que a crise

econômica mundial atingia o Brasil.”150

Como também reafirma a defesa dos empregos e dos

salários, e paralelamente faz pressão para o financiamento de políticas públicas sociais. Isto –

conforme o texto – marcou a ação sindical cutista desde o início da conjuntura da crise

econômica de 2008. Ora, até agora o movimento sindical cutista continua sendo pautado por

um sindicalismo defensivo, propositivo, de pura negociação, cujo enfrentamento é de um

sindicalismo dócil em relação aos patrões e ao governo. Na verdade, o movimento sindical

cutista não tem força ideológica, teórica, para enfrentar a ideologia do capitalismo neoliberal,

porque a classe trabalhadora, na sua grande maioria, desconhece realmente como funciona a

estrutura do movimento do capital e a ideologia que a legitima, justamente porque não há uma

leitura marxiana dos fatos, ou melhor, não há formação política marxista dada aos

trabalhadores sobre essa questão nuclear do sistema. A reflexão é puramente empirista,

fenomênica, jornalística, do cotidiano, ou seja, a CUT não usa categorias marxistas para

compreender a crise do capitalismo. A CUT pauta toda sua luta pela ratificação das

Convenções da OIT, órgão ligado a ONU que reflete, de certo modo, os interesses dos países

capitalistas e/ou imperialistas.

No ponto “Luta pela liberdade e autonomia sindical”, a CUT discursa sobre uma

149 OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT, p. 16. (Grifo nosso). 150 OLIVEIRA, loc. cit.

307

agenda complexa que a coloca num papel estratégico de articulação com os movimentos

sociais, cujos objetivos, por exemplo, é fortalecer sua identidade com a base sindical nos

princípios da liberdade e autonomia sindical, construir uma opinião pública democrática (por

meio da mídia e alianças sociais) etc. E finaliza afirmando que

Ao longo de nossos 28 anos, jamais abdicamos da bandeira do socialismo. Nossa

estratégia acertada de contribuir no processo de “acúmulos de forças” fez do campo

democrático popular o maior protagonista na luta por outro modelo de

desenvolvimento para o país e consolidou a CUT como a maior Central Sindical da

América Latina.151

Entretanto, o discurso cutista fica cada vez mais genérico e o horizonte socialista apenas como

uma ideia reguladora, uma utopia distante, pois acumular forças sem um trabalho teórico

profundo nas suas categorias de trabalhadores inviabiliza qualquer estratégia para seguir o

caminho de construção para o socialismo, a partir do momento em que a CUT advoga um

modelo de desenvolvimento nos marcos do capitalismo. Isso denota, sem dúvida, uma

confusão teórica de ideias da CUT sobre o que seja o socialismo, já que não compreende bem

a questão da centralidade do trabalho neste processo e muito menos a crise estrutural do

capital como um caminho sem volta.

Quando num outro ponto do Eixo 1 – “O trabalho decente na estratégia da CUT”152

a Central define e conceitua essa visão do trabalho da OIT, aí é que ela se perde teoricamente,

do ponto de vista marxista, pois acredita que “O Trabalho Decente, [...], tem por objetivo a

reversão da precarização e deteriorização dos instrumentos de proteção e inclusão social.”153

Para a CUT, o “Trabalho Decente” é aquele que respeita a aplicação das Convenções

fundamentais da OIT. A CUT mesmo diz que o conceito de “Trabalho Decente” foi

introduzido na OIT em 1999, por iniciativa do diretor geral da Organização, Juan Somavia, e

foi objeto de consenso entre um grupo formado por empregadores/as, trabalhadores/as e

governos que fazem parte da OIT. Mas ela ressalva que a verdadeira emancipação dos

trabalhadores, ou seja, a existência de um trabalho não explorado e nem opressor, só se dará

com o socialismo, logo, para a CUT, a estratégia é avançar e defender direitos sindicais e

trabalhistas a partir das Convenções da OIT que os protegem.

Percebe-se então dois discursos na linguagem da CUT, quer dizer, um paradoxo entre

teoria e prática, uma práxis contraditória no sentido de oposição, isto é, a prática em oposição

ao discurso teórico estratégico. Se toda a luta dos trabalhadores agora for pautada pelas

convenções da OIT, onde ficará então a luta pautada pelo legado marxista? Marx compreende

151 OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT , p. 18. (Grifo nosso). 152 Cf. OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT, p. 18. 153 OLIVEIRA, loc. cit.

308

que a luta sindical é uma luta imediatista, uma guerrilha cotidiana, como também uma luta

que fere a espinha dorsal do capitalismo, quando subtrai parte da mais-valia para aumentar

ganhos reais de salário dos trabalhadores. Porém, Marx entende que a luta sindical tem um

outro papel, ou seja, a de ser uma luta revolucionária que mostre aos trabalhadores os limites

da sua luta cotidiana, salientando que só no socialismo a liberdade humana é plenamente

possível. Só que, embora a CUT proponha retorica e genericamente o socialismo como utopia

a se realizar num futuro distante, ela não explica teoricamente a possibilidade de efetivação

dessa nova forma de desenvolvimento social para a classe trabalhadora, como também tem

dificuldade de explicitar o porquê da derrocada daquele “modelo de transição” para o

socialismo na antiga URSS, ficando os trabalhadores reféns da versão ideológica imperialista

de que o comunismo jamais dará certo, porque fracassou na prática histórica.

Em relação ao Plano Nacional de Educação, o texto base da 13ª Plenária da CUT toma

como fundamento “A ampliação dos investimentos na educação pública e a implantação de

um Sistema Nacional Articulado como condições sine qua non para um processo de

desenvolvimento sustentável e de inclusão social fundamental no fortalecimento da cidadania

ativa.”154

A CUT ratifica novamente a concepção de educação emancipatória, integral e

integradora que valorize todas as áreas de conhecimento e supere visões reducionistas da

educação instrumental como mercadoria. Da mesma maneira, a CUT defende o Pronatec

(Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego) que tem o objetivo de

expandir, interiorizar e democratizar a oferta de cursos técnicos e profissionais de nível médio

para estudantes que frequentam o curso regular, como também cursos de formação inicial e

continuada para beneficiários dos programas de inclusão produtiva como o “Bolsa Família”,

assim como para trabalhadores atendidos pelo Seguro Desemprego. Para a CUT, o Pronatec

deve ser um instrumento eficaz de combate à miséria e à pobreza e também de promoção da

cidadania ativa.155

Dentro dessa perspectiva, a CUT acredita que é possível fazer a abolição

da pobreza e miséria dentro da ordem capitalista, porque todos esses programas visam, de

certa forma, a especializar mão de obra de que necessita o mercado capitalista, e também

controlar um pouco a demanda por trabalho, ocupando as pessoas com cursos de qualificação

e requalificação mais extensos.

No tema “Reforma Política”, a CUT ressalta um lema do X CONCUT, a saber, “A

transformação social deve ter participação ativa da classe trabalhadora”156

. A Central entende

154

OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT, p. 23. 155 Cf. OLIVEIRA, op. cit., p. 25. 156 Ibid., p. 27.

309

que a Reforma Política tem que fortalecer a participação popular e o controle social sobre o

Estado e partidos políticos. Deste modo, a CUT se concebe como sindicalismo combativo

para impulsionar o sistema político brasileiro a uma democracia mais participativa, ou seja, a

CUT acredita que o capitalismo vai permitir que haja uma radicalização da democracia com

controle popular sobre o Capital, quando, na verdade, é o Capital que tem controle sobre a

sociedade, determinando o modo social de ser das pessoas.

Mas o que nos chama atenção no texto base da 13ª Plenária Nacional, é que a CUT

apresenta vários fatores que causam o enfraquecimento sindical, provocado por disputas

internas e/ou dentro das próprias correntes políticas existentes na Central, ou seja, disputa

pelo aparelho sindical, influência político-partidária ou de gabinetes de parlamentares nas

eleições sindicais, falta de renovação nas direções sindicais, falta de compromisso político

com aqueles que deram a vida para a organização do sindicato, falta de um diálogo

permanente levando a disputas pessoais e não a uma concepção sindical, falta de formação

político-ideológica e do entendimento do papel do dirigente sindical, do sindicato, partido

político e do governo, falta de compromisso com a ética, a solidariedade e o respeito ao

companheiro.157

Para a CUT, tudo isso coloca em risco a sua hegemonia e unidade. No

entanto, não fica claro, mas obtuso, quando a Central discorre sobre o Projeto Político da

Entidade, definido nas suas instâncias de decisão, por meio das resoluções dos Congressos,

das Plenárias, das Reuniões da Direção Nacional e da Executiva Nacional, na medida em que

defende um modelo de desenvolvimento sustentável, mas novamente não diz se esse modelo é

capitalista ou socialista. Como bem afirma uma das suas correntes internas – a Articulação de

Esquerda –, o texto guia da 13ª Plenária, aprovado pela Direção Nacional peca pela ausência

de uma perspectiva socialista, pois

Não há uma articulação do processo de acúmulo de forças que direitos e conquistam

(sic) [conquistas] poderiam promover com uma estratégia de transformação social.

A única referência ao socialismo é apontá-lo como “horizonte transitório”. Sabemos que o horizonte é aquilo que quanto mais chegamos perto mais ele se afasta. Os

limites estratégicos do texto se limitam ao melhorismo.158

De igual modo, as outras correntes sindicais também pregam a defesa do socialismo.

Por exemplo, “a CUT socialista e Democrática” (CSD) afirma em seu texto de contribuição

que é preciso retomar o internacionalismo socialista como alternativa ao capitalismo, mas que

precisa ter também base nos países centrais; acredita, por outro lado, que a possibilidade da

revolução democrática no Brasil, com a chegada do PT ao governo central, tem como

157 Cf. OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT, p. 49-50. 158 OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT: Textos de contribuições ao debate, p. 71. (Grifo nosso).

310

horizonte vincular-se com o socialismo por meio da construção da soberania popular com

plebiscitos, referendos, orçamento participativo etc. Enfim, o que fica evidente nesse discurso

é que o programa de revolução democrática pode levar ao socialismo e não a radicalização da

luta de classes como advoga o marxismo; em outras palavras, o passaporte para o socialismo

começa com uma radicalização da democracia popular. Já a “CUT independente e de luta”

(ligado à corrente O Trabalho, OT) critica o uso das concepções de “Trabalho Decente” e

“diálogo social”, pois elas promovem a chamada “governança democrática da globalização”,

ou seja, tais concepções atrelam os sindicatos às políticas governamentais e às instâncias

multilaterais como o FMI. A corrente OT tem consciência da impossibilidade de se conciliar

interesses entre capital e trabalho e cita o artigo 2º do Estatuto da CUT que afirma “o

compromisso com a defesa dos interesses imediatos e históricos da classe trabalhadora, a luta

por melhores condições de vida e trabalho e o engajamento no processo de transformação da

sociedade brasileira em direção à democracia e o (sic) socialismo.”159

E, por fim, a

“Tendência Marxista” (TM), com um texto enxuto e pontual, que só menciona a questão do

socialismo na sua última frase: “[...] cada dia mais temos que ir às ruas, dando continuidade à

luta por uma sociedade mais justa e socialista.”160

Fica difícil de entender, portanto, como a CUT defende as resoluções das Convenções

da OIT, sem haver um mínimo de questionamento do ponto de vista marxista, quer dizer,

defende a ideia do “Trabalho Decente” num sistema que por si só já promove a indecência do

trabalho humano, inclusive desmistificado este trabalho (assalariado/alienado) por Marx em

várias de suas obras. Por outro lado, a CUT parece colocar a questão do socialismo como um

horizonte apenas a ser contemplado, abdicando-se de criar cursos de formação política que

tratem de forma mais aprofundada a questão do socialismo no “pós-socialismo real”. São

dúvidas teóricas e históricas que se impõem a quem pensa a realidade do capitalismo dialetica

e/ou ontologicamente, a saber, a partir do princípio da totalidade, da contradição.

Questões foram colocadas anteriormente, no começo do capítulo, a saber: qual seria o

papel da formação educativa revolucionária marxista para e pela construção do socialismo? A

classe trabalhadora vem se preparando teorica e praticamente pra enfrentar esse desafio

histórico? As mudanças objetivas internas e externas na trajetória da CUT atingiram a sua

formação sindical radicalmente no sentido de abandono da perspectiva socialista, ou é só uma

estratégia de caráter conjuntural? Há uma relação entre a nova ordem mundial e a nova

formação cutista? Qual é a relação entre a mudança de estratégia da CUT e a limitação da

159 OLIVEIRA, 13ª Plenária da CUT: Textos de contribuições ao debate, p. 77. 160 Ibid., p. 85.

311

formação sindical à questão meramente cidadã-profissional ou de formação de quadros

burocratas, excluindo, assim, a formação político-ideológica de caráter mais revolucionário?

Algumas respostas já foram, em parte, ensaiadas teoricamente por alguns autores que

expusemos aqui. Claro que a história nos impõe limites de ação, porque tudo depende da

relação conjuntural entre subjetividade e objetividade na totalidade. Como diz Tonet, Marx

não descarta nem a objetividade nem a subjetividade, ou melhor, não cai na unilateralidade da

centralidade da objetividade greco-medieval, de que a existência possui uma essência una e

imutável, logo uma objetividade a-histórica, nem na centralidade da subjetividade moderna

sob o domínio absoluto da razão, da ideia, do sujeito, que entende a realidade como um

construto mental. Para Marx, é preciso tomar o mundo, a sua realidade, a partir da sua

totalidade, relacionando as partes que a constituem, ou seja, nem ficar preso aos “auto-

movimentos da razão”, nem à pura manifestação do objeto. O giro marxiano, como diz

Chasin, é voltar-se para os “auto-movimentos” do mundo real. É preciso acabar com o

hermafroditismo da especulação, deixando que a realidade fale pela cabeça da filosofia, pois a

realidade é que deixa o pensamento significá-la ontologicamente.161

Essa perspectiva

metodológica de conhecimento da realidade inexiste, a nosso ver, no movimento sindical

cutista, nem gnosiológica nem ontológica.

Hoje é perceptível, através dos discursos e documentos, que a maioria das lideranças

sindicais de esquerda não tem uma formação ideológica no campo do marxismo, logo não

possui os elementos teóricos fundamentais para entender o movimento do capital com suas

contradições e crises. A formação educativa sindical não tem preparado quadros teóricos

anticapitalistas, ou melhor, marxistas, que possam ser caixas de ressonância do ideário

socialista para a classe trabalhadora. O papel da formação educativa sindical limitou-se a

formar o cidadão para o regime capitalista, e não o revolucionário para contestá-lo. Isso por si

só já responde, em parte, as duas primeiras questões acima. Saber até que ponto as mudanças

objetivas ocorridas dentro da CUT (nos estatutos, nas concepções, resoluções e de certo

abandono do horizonte socialista na formação política) são consequências das mudanças

econômicas adversas ou apenas uma estratégia conjuntural da Central é uma resposta não

muito fácil de se dar, pois o que fica claro é que a determinação da conjuntura histórica,

adversa aos trabalhadores, determinou o comportamento sindical cutista a uma mudança mais

de conciliação de classes ou de concertação (colaboração) do que de confrontação. É notório

o despreparo teórico de muitas lideranças sindicais para compreender o fenômeno histórico do

161 Cf. CHASIN, J. Marx: da razão do mundo ao mundo sem razão. In:____. (Org.) Marx hoje. Cadernos

Ensaio, n. 1. São Paulo: Ensaio, 1987. p. 45. (Série Grande Formato).

312

capital, quando ouvimos seus discursos, ao fazer análises de conjuntura, ou seja, uma total

falta de visão teórica marxiana da crise do capitalismo contemporâneo.

Para nos ajudar nessa análise, Mészáros nos fornece uma reflexão sobre o fracasso das

esquerdas, dizendo que desde o início da história do movimento sindical a parcialidade e a

setorialidade eram algo presentes nas associações parciais e nos vários sindicatos. Diz ele

ainda que “[...] a parcialidade inevitavelmente afetou todos os aspectos do movimento

socialista, inclusive sua dimensão política.”162

Isso tanto é verdade, diz Mészáros, que depois

de um século e meio, a parcialidade ainda é um problema a ser resolvido pelo movimento

sindical. Se o movimento operário ainda não deixou de ser setorial e parcial não foi porque ele

adotava subjetivamente uma estratégia errada, mas porque as determinações objetivas na

ordem do capital não foram superadas como, por exemplo, a “pluralidade do trabalho”. O

trabalhador ainda não pôde se tornar totalmente antagonista ao capital, pois ainda continua

numa posição de certa servilidade ao sistema. Isso decorre das tentativas, mesmo de pessoas

que se dizem de esquerda, de propagar a mística do “capitalismo do povo”163

, como bem

anota Mészáros. Com suas palavras, diz Mészáros:

O caráter fragmentado e parcial do movimento operário combinou-se com sua

articulação defensiva. O sindicalismo inicial – do qual mais tarde surgiram os

partidos políticos – representava uma centralização da setorialidade de tendência

autoritária e através dela a transferência do poder de decisão das “associações” locais para os centros do sindicalismo e em seguida para os partidos políticos.

Assim, já no seu início, todo movimento sindical foi inevitavelmente setorial e

defensivo.164 Para Mészáros, portanto, a lógica interna do desenvolvimento do movimento sindical

já trazia essa condição da centralidade setorial e, por tabela, o seu “entrincheiramento

defensivo”, abandonando, dessa maneira, os ataques esporádicos aos seus antagonistas

sociais, os capitalistas. Nesse sentido, houve e há um paradoxo, a saber, o trabalho se tornou o

interlocutor do capital, mas sem deixar pari passu (ao mesmo tempo) de ser seu antagonista.

Isso trouxe vantagens e desvantagens para os trabalhadores: vantagens nas questões de extrair

algumas benesses do capital; e desvantagens, como a acomodação da luta que visa o

socialismo como condição da sua emancipação total da exploração capitalista.

162 MÉSZÁROS, István. O século XXI: socialismo ou barbárie?. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. p. 89.

Para Mészáros, a grande dificuldade teórica de Marx é que ele não pode reconhecer a fragmentação e a

estratificação do trabalho, justamente por complicar a sua concepção política transicional, ou seja, é preciso

unificar os interesses parciais dos trabalhadores em interesse comum para ter como pressuposto o trabalho

unificado. E Mészáros ainda acrescenta outra dificuldade que é a de Marx trabalhar com o imperativo categórico

de o proletariado como classe universal destruir todas as relações em que o homem é um ser escravizado etc., no

entanto, Marx insiste que o problema não é este ou aquele proletário ou todo o proletariado, mas seu ser objetivo

que está obrigado historicamente a fazer. Cf. MÉSZÁROS, Para além do capital, p. 1054-1055. 163 Cf. MÉSZÁROS, O século XXI: socialismo ou barbárie?., p. 90. 164 MÉSZÁROS, op. cit., p. 90.

313

Retomando então as questões colocadas antes, o movimento sindical cutista hoje vive

o paradoxo de ser ou não ser socialista, ser não somente na retórica, mas desenvolver uma

prática que efetive as condições de sua realização. Para isso, é preciso ter mais claro qual é o

verdadeiro papel do sindicato como parte do processo da emancipação humana no socialismo,

logo qual é o papel da formação político-sindical nesse sentido. É visível que a classe

trabalhadora não vem se preparando para se tornar um militante socialista, pelo contrário, está

se tornando um militante cidadão (mercenário), já que trabalha somente para ter mais dinheiro

no seu salário, sem vislumbrar a utopia socialista que supere essa condição de servidão ao

capital. Dessa maneira, a consciência teórica socialista-marxista está longe de ser construída

com os tipos de cursos dado na formação sindical cutista. Não fica claro se é uma estratégia

política da CUT ter essa postura de conciliação conjuntural com a classe patronal ou se é

cooptação mesma da Central pelo Capital. Por outro lado, fica evidente que há uma relação

entre a nova ordem mundial e a formação sindical cutista, à medida que esta formação reforça

o modelo de educação dos órgãos internacionais a serviço do grande capital, quando a CUT

implementa cursos financiados por entidades governamentais, direta ou indiretamente ligadas

a tais órgãos do sistema financeiro internacional. E, finalmente, a mudança de estratégia da

CUT em relação à questão da formação, isto é, formar profissionais e dar ensino integral, tem

a ver com a questão do financiamento que os órgãos públicos dão para qualificar os

trabalhadores. Embora haja um grau de liberdade nesses cursos de formar o cidadão crítico,

exigente de direitos sociais, por outro lado, não se forma o cidadão antagônico ao capital

como ser revolucionário. Sem teoria, sem consciência e sem ação revolucionárias, não haverá

revolução social, superação do capitalismo. E aí fica o trabalhador preso constantemente a

uma concepção política de convergência com o capital, sem ter a perspectiva da retomada da

luta revolucionária.

314

CONCLUSÃO

315

A Tese parte do pressuposto de que o marxismo, como teoria revolucionária na

formação educativa sindical, seria o Aufhebung1 da luta cotidiana dos trabalhadores, enquanto

movimento dialético entre dois polos da práxis – teoria e prática – no curso do resgate do

humano no homem, numa totalidade das relações sociais alienadas de produção fetichista.

Transcender e/ou abolir essa situação de alienação, fazer este Aufhebung do estranhamento

humano é, como nos diz Mészáros2, superar o anacronismo social destrutivo da auto-

objetivação como autoalienação em um estágio posterior de desenvolvimento histórico da

humanidade. Na verdade, é uma necessidade ontológica inadiável para a humanidade. Nos

Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, Marx afirma que a atividade humana, ou

melhor, que a verdadeira humanidade precisa ser resgatada das formas de reificação e/ou

alienação social capitalista.

A alienação como Übergreifendes Moment (Momento Predominante) desse complexo

social capitalista, efetivado na atividade produtiva, tem que tomar a forma de alienação

positiva enquanto objetivação da vontade, dos desejos e da consciência humana, pois a

alienação, no sentido negativo, caracteriza-se pela extensão universal da “vendabilidade” em

que tudo é transformado em mercadoria, pela conversão das pessoas em coisas (reificação das

relações humanas) e pela fragmentação do corpo social em “indivíduos isolados” que apenas

buscam seus objetivos particularistas em “servidão à necessidade egoísta”, quer dizer, fazendo

do egoísmo uma virtude de culto da privacidade, pois, como diz Marx, na tradução de

Mészáros, “a venda é a prática da alienação”.3

Com estas proposições, Marx afirma peremptoriamente que a estrutura social

capitalista precisa ser superada pela classe revolucionária, pois dentro dela o trabalho

estranhado, ou melhor, o trabalhador alienado e o indivíduo social reificado perdem sua

condição humana, genérica, enquanto ser onto-histórico de múltiplas possibilidades de

efetivação da sua verdadeira individualidade, dos nobres sentidos humanos; e a natureza perde

a sua capacidade de se regenerar, portanto, esgotando-se pelo uso predatório do capital. Nesse

sentido, não há liberdade plena numa estrutura social baseada em relações fetichistas de

servidão humana, sob o acicate do capital ou a falsa troca de equivalência entre valores, isto é,

entre salário e força de trabalho (capital e trabalho).

Esta condição sine qua non do capitalismo nos levou a analisar a forma específica de

1 Aufhebung em alemão significa ao mesmo tempo “transcendência”, “supressão”, “preservação” e “superação” (ou substituição) pela elevação a um nível superior. Cf. MÉSZÁROS, István. Introdução. In: A teoria da

alienação em Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. p.18. 2 Cf. Ibid., p. 107-108. 3 MARX, Karl. On jewish question apud MÉSZÁROS, István. Op. cit., p. 39, nota 27.

316

superação histórica do sistema de produção alienante, a partir da luta do trabalho contra o

capital. De fato observamos, em nossos estudos, que vários foram os movimentos

anticapitalistas que surgiram, a partir do século XIX até hoje, para construir essa luta por uma

sociedade baseada na igualdade e distribuição equitativa da riqueza social. Desde os

movimentos “utópicos” comunistas, socialistas e anarquistas até o socialismo ao modus

operandi “marxista-leninista”, com a Revolução Russa em 1917, a luta contra “a exploração

do homem pelo homem” se faz obstinadamente na história. Poderíamos até dividir esses

movimentos de emancipação humana como ante festum e post festum do marxismo. Nesse

período, foram criadas várias associações sindicais, partidos políticos revolucionários e outros

tipos de movimentos políticos apartidários como o dos anarquistas etc. que tinham o objetivo

de construir um mundo mais justo e humano, enfim, de realizar a justiça social sem partido e

Estado. As utopias, os sonhos políticos, a esperança e os desejos coletivos foram se

efetivando em parte ou por partes, como pedras que historicamente se interpõem uma sobre a

outra, para edificar a sociedade comunalmente mais evoluída.

Sabemos que o século XX foi marcado pela efervescência dos movimentos libertários

colocados em prática, quer dizer, pela tentativa de realizar historicamente os princípios

revolucionários do socialismo científico, como também de pôr fim a colonização de vários

países. Contudo, a história tem suas armadilhas políticas, econômicas e culturais que pegam

de surpresa a humanidade. E nem tudo o que se deseja, acontece na realidade, pois a história

humana nem sempre dá azo para realização das utopias ou projetos políticos, pois ela cria

obstáculos subjetivos e objetivos que impedem a efetivação desses sonhos ou intenções

humanas; justamente porque nem tudo depende da “onipotência da vontade política” ou da

vontade arbitrária, como nos alerta Marx nas Glosas Críticas. Como ele mesmo diz no

Dezoito Brumário, “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem,

não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado”4, sobretudo, porque esse jogo dos elementos

“determinante” e “determinado” se faz mutuamente em que um acaba influenciando o outro,

isto é, o homem faz a história e a história faz o homem.

Desta feita, entendemos, a partir dos estudos realizados, de que há um movimento

dentro de um movimento maior, a Emancipação Humana, que é o movimento sindical. Este

faz parte da luta contra o capitalismo, contra a exploração do trabalho pelo capital; pois a

associação sindical dos trabalhadores é também conditio sine qua non para se construir a

4 Cf. Nota de referência 133 na p. 86 da Tese.

317

consciência anticapitalista em busca da sociedade socialista/comunista. Tal consciência se dá

primeiramente na luta prática do dia a dia, enquanto consciência pró-reativa da exploração do

capital sobre o trabalho, da luta cotidiana por melhores condições de trabalho e salário, ou

seja, uma luta de caráter economicista. Mutatis mutandis, a luta econômica pode se

transformar numa luta política, no sentido de que não adianta mais lutar por melhores

condições de vida para os trabalhadores, nos marcos da sociedade capitalista em degeneração

e crise crônica. Quando a luta toma o rumo de supressão da ordem burguesa, é aí que a

revolução das estruturas e superestruturas sociais poderá acontecer. Nessa perspectiva,

apresenta-se como requisito essencial que a classe trabalhadora, com suas organizações

sindicais ou partidárias, dê um salto qualitativo na sua luta e consciência de classe, ou seja,

saia da condição de “classe em si” para “classe para si”. Essa condição ontológico-política é

fundamental para que se dê o processo de humanização no homem.

A partir daí nos deparamos, ao longo dessa investigação, com uma série de questões

complexas: Como fazer essa metamorfose subjetiva-objetiva, teorica e praticamente, com os

trabalhadores? Quais passos devem ser dados para efetivação dessa subjetividade e

objetividade revolucionária pelos trabalhadores? Quais os meios ou instrumentos eficazes

para a construção desse movimento histórico libertário? São questões que sempre o

movimento proletário se colocou no decorrer de mais ou menos dois séculos de luta contra a

opressão capitalista, num jogo de ensaio e erro histórico. Do ponto de vista teórico-prático,

sem as armas da crítica, numa perspectiva onto-marxista, a classe trabalhadora será impedida

de desenvolver concretamente as condições de uma verdadeira superação (Aufhebung) da

sociedade fetichista da alienação capitalista para instaurar um novo momento histórico, tendo

como Übergreifendes Moment, não mais alienação enquanto negação do humano no homem,

mas a realização social da autêntica individualidade humana. Nessa direção, recorremos à

máxima de Lênin como pressuposto da nossa investigação, a saber: “sem teoria revolucionária

não há consciência revolucionária”, sem consciência revolucionária não há ação

revolucionária e sem ação revolucionária não há revolução ou nova evolução social.

Nesse sentido, a problemática central que buscamos desenvolver nesta pesquisa é que

meios o movimento sindical brasileiro, particularmente, vivenciado no período histórico do

século XX até os dias atuais, se utilizou e se utiliza, ou não, para tornar o marxismo uma arma

teórico-crítica, um método de apreensão da sociabilidade capitalista e uma ideologia orgânica

da classe trabalhadora contra o capital. O único meio só poderia ser a formação, ou melhor, a

formação da “consciência de classe” por meio da educação sindical, através de cursos de

formação política, congressos, encontros, greves etc. Desse modo, podemos fazer algumas

318

inferências a partir das leituras realizadas, como também da prática político-sindical

vivenciada por mim durante anos.

De início, é impossível desenvolver uma luta anticapitalista, antifetichista e anti-

alienante, se não levarmos em conta o legado teórico desenvolvido por Marx e Engels e seus

séquitos, para orientar a ação prática dos trabalhadores. É o pensamento a favor da luta pela

emancipação dos trabalhadores do domínio do capital. Conforme o jovem Lukács, a doutrina

e o método de Marx nos fornecem um método sui generis para se conhecer a sociedade e a

história, id est, o presente. Logo, a tarefa fundamental das lideranças sindicais é fazer com que

os trabalhadores tenham (cons)ciência da teoria e do método de Marx para lhes auxiliar na

captura das leis dos fenômenos capitalistas de um determinado período histórico, para

descobrir a lei da transformação e do desenvolvimento da história e, portanto, entender como

se poderia dar a transição de uma determinada forma de produção para outra ou de uma

ordem de relações sociais para outra. É importante compreender que a teoria marxiana

contribui para o entendimento da vida econômica, apreendendo as leis especiais que regem o

nascimento, a existência, o desenvolvimento e o fim de um organismo social. Assim sendo,

coerente com a perspectiva onto-histórica marxista, apropriar-se do método de exposição e de

pesquisa de Marx é conditio sine qua non para o trabalhador decifrar os antagonismos da

realidade capitalista em suas múltiplas determinações, analisar suas formas de

desenvolvimentos, perquirindo a conexão íntima entre elas, enfim compreender o movimento

real do sistema do capital.

Estabelecer, portanto, a verdade deste mundo, denunciar a autoalienação humana e

libertar o ser humano do acicate do capital é simplesmente negar o presente político, como

afirma Marx, na Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. O que deve ser

resgatado das formas de alienação/servidão capitalista é a atividade prática do homem (o

trabalho). No entanto, é preciso que os trabalhadores tomem consciência da sua condição de

homo labor no capitalismo, das formas de alienação que os tornam seres estranhos entre si e

estranhados com a própria atividade laboral. É mister, então, restaurar no pensamento a

realidade autêntica, o existente em si, quer dizer, os trabalhadores tomarem consciência das

formas de expropriação de seu trabalho mascarada pela forma salário. Para isso, o

proletariado precisa desenvolver uma consciência antagônica ao capital, compreendendo o

sentido exato do seu “ser aí existente” enquanto atividade prática destrutiva; em outras

palavras, buscar desmascarar essa forma de trabalho no modo capitalista de produção e/ou

negar essa condição determinada do trabalho abstrato, assalariado, constitui-se na

possibilidade histórica dos trabalhadores saírem dos limites da luta reivindicativa,

319

economicista-salarial e puramente pró-reativa à ofensiva do capital. Daí a necessidade de os

trabalhadores compreenderem esse caráter ontológico-teleológico do trabalho na sociedade

capitalista, ou seja, o trabalho alienado, estranhado, abstrato, e entenderem o trabalho como

fundamento da vida social, da realização humana.

Se Marx nos revela o caráter ontológico do capitalismo como “auto-alienação

humana”, a partir do fato econômico contemporâneo, apresentando os aspectos negativos da

forma do trabalho assalariado, então por que os cursos de formação sindical não desvelam o

caráter alienante deste trabalho a partir da teoria marxiana, perspectivando uma nova forma

ontológica de trabalho? Ou melhor: por que os sindicatos não têm essa clareza teórica da

complexidade do trabalho abstrato enquanto condição ontológico-teleológica da exploração

humana e ainda lutam por esta forma de trabalho capitalista?

Conforme as nossas investigações, a partir dos livros e textos analisados, podemos

inferir que os sindicatos de esquerda no Brasil, especificamente aqueles vinculados à CUT,

trabalham com a concepção de humanização do trabalho no capitalismo, com a tese da

“conquista dos direitos humanos”, tão criticada por Marx em A Questão Judaica. Para

corroborar esta proposição, a CUT hoje compartilha com a tese da OIT da concepção de

“trabalho decente”, como garantia da dignidade dos trabalhadores, criando uma nova ilusão

na luta sindical, quando na verdade, deveria desmistificar esse tipo de ideologia social liberal

nos marcos da ditadura do capital.

Negar ou postergar a discussão do antagonismo social e da luta de classes, trabalhar a

ideia de conciliação de classes, fortalecendo o sistema de negociação entre trabalho e capital,

é, a nosso ver, mais uma mística político-sindical de adiamento da reflexão ou construção

subjetiva-objetiva, antagônica ao capital, para que a classe trabalhadora, estando ciente da sua

situação histórica de classe, possa escolher a forma de luta que deseja protagonizar. Numa

direção contrária, os cursos sindicais de formação política querem aperfeiçoar a forma de luta

cotidiana contra a intensidade da exploração do capital, e não contra o capital em si, enquanto

estrutura de negação do ser social. Parece, como nos diz Suchodolski, que “a educação da

consciência se refere cada vez menos à forma real da existência humana para se converter em

algo autônomo e espiritualizado”5; e eu diria, moralizado.

A autêntica luta é deveras aquela que visa à recomposição da individualidade do ser

humano, abolindo os fundamentos do capital que têm como elemento principal de sua

existência, o trabalho assalariado.

5 SUCHODOLSKI, Teoria marxista da educação, v. III, p. 49.

320

Romper, portanto, com a cooperação forçada entre capital e trabalho é conditio sine

qua non para começar a inversão dos papéis nessa tensão histórica entre classes com

interesses antagônicos e irreconciliáveis. Para o capital é fundamental reduzir todo o trabalho

da sociedade a um trabalho social médio necessário à proporção de um determinado produto,

algo imprescindível para a determinação dos lucros e salários. Logo, a restrição da luta da

classe trabalhadora por melhores condições de trabalho e salário no capitalismo, sem

perspectivar a superação do sistema, é mais uma forma de promover o proudhonisno ou o

socialismo dos utópicos franceses, de que é possível construir uma sociedade “justa” com a

manutenção da divisão de classes, da divisão social do trabalho, cujo objetivo seria buscar a

“igualização” dos salários na troca entre desiguais, ou seja, realizar o capitalismo do povo.

Nas reflexões de Marx, o trabalho é o fundamento da realidade social que aperfeiçoou

o modo de ser humano na história, ao diferenciar o homem dos animais. E que só a forma de

trabalho “não estranhado” pode devolver ao homem a sua condição genuinamente humana.

Como diz Lukács, o trabalho é a protoforma do ser social, a condição teleológica e ontológica

do homem, pois o ato de trabalho tem uma finalidade e se transmuta de ação em ser, de

movimento em produto concreto. Mas o trabalho continua refém do fetichismo capitalista e o

salário como preço da força de trabalho se contrabalança nesse jogo da acumulação

capitalista, ou seja, quando as forças produtivas se desenvolvem e a tecnologia elimina postos

de trabalhos, produzindo mais em menor tempo, então os custos de subsistência caem,

fazendo cair também o preço do trabalho. Por isso que Marx não hesita em dizer que a miséria

social é o objetivo da economia capitalista.

Segundo Marx, citando Adam Smith, “o tipo de sociedade fundada na mercantilização

do trabalho tem [cada vez mais] uma maioria infeliz”. Quando a CUT na sua cartilha –

Trabalho decente na estratégia da CUT (2011, no ponto 30 da página 30)6 – diz que é preciso

“Fortalecer as políticas de qualificação e certificação profissionais através da implantação de

um sistema nacionalmente articulado que integre as dimensões da qualificação profissional,

educação dos níveis de escolarização e formação para a vida”, ela compactua com a visão

capitalista de “sociedade” e “trabalho”, destoando, assim, do pensamento marxista que visa a

formar o homem revolucionário a partir de uma educação revolucionária, conforme o

Manifesto.

Noutras palavras, a CUT, em seus documentos (teses, proposições e resoluções

congressuais, plenárias nacionais e encontros nacionais e regionais de formação), demonstra

6 Disponível em: < http://www.cut.org.br/publicações/3/cartilha>. Acesso em: 27 mar. 2012.

321

secundarizar o pensamento marxiano que desvela as armadilhas dos direitos sociais

burgueses, ou melhor expressando, o trabalho de formação política da CUT não propicia a

classe trabalhadora “a superar a visão econômico-corporativista”, como nos propõe Gramsci.

O próprio Marx já alertava para esse tipo de armadilha ideológica (dos direitos humanos),

quando afirma que o trabalho é o preço imutável das coisas, justamente porque está submetido

às flutuações do mercado, quer dizer, mesmo que a divisão do trabalho aumente o poder de

produção do trabalho e a riqueza da sociedade, o trabalhador continua empobrecido e ainda se

transforma num apêndice da máquina, numa reserva de mão de obra a ser contratada ou não,

de acordo com as necessidades do capital, isto é, a partir da sua capacidade de expansão e

acumulação, ou não.

O quadro onto-histórico do trabalho capitalista ilustra que a finalidade da atividade

prática do homem se resume em aumentar riqueza para uma minoria detentora do capital.

Algo deletério ao trabalhador e à sociedade. A miséria social surge assim como resultado da

essência do trabalho moderno, como diz Marx. E o movimento sindical, em geral, não se

coloca questões éticas e políticas, ou melhor, questões reais, como o fez Marx, de ir para além

da economia burguesa, ou seja, não indaga sobre o significado da redução da maior parte da

sociedade ao trabalho abstrato e alienado no desenvolvimento da humanidade; como também

não critica os erros que cometem os reformadores que querem elevar os salários para

melhorar a vida dos trabalhadores ou mesmo consideram a igualdade ou aumento real dos

salários como o fim da revolução social.

Na verdade, depreendemos que o movimento sindical não o faz, porque há uma certa

“ignorância”, desprezo e descompromisso com a teoria de Marx, isto é, não tem mais essa

perspectiva marxista do socialismo em contraposição ao capitalismo. Se a economia burguesa,

como diz Marx, só vê o trabalho abstratamente como uma mercadoria comprável e que seu

valor se dá de acordo com a variação da oferta e da procura ou com o desenvolvimento das

forças produtivas, então os trabalhadores só podem romper com essa ideologia mercantilista

do trabalho, se eles tiverem a consciência crítica e antagônica desta forma de alienação do

trabalho que visa apenas a (re)produzir a riqueza fetichista para a classe burguesa, ou seja, se

eles se apropriarem dos elementos teóricos marxistas que desmascaram a ideologia burguesa

do trabalho para criar as condições de rompimento com esse formato social. Daí a importante

tarefa da formação política sindical com base no marxismo. Algo que os sindicatos de

esquerda, predominantemente, ignoram fazer na atualidade.

Como nos diz Lukács, se o trabalho alienado capitalista funda a vida alienada dos

trabalhadores, então é preciso abolir as estruturais sociais que determinam essas condições de

322

trabalho. Se para Lukács, a atividade de trabalho é uma resposta à carência humana, então as

necessidades humanas só poderão ser saciadas plenamente se o trabalho enquanto atividade

humana deixar de ser abstrato, estranhado, reificado. Isso só ocorre se houver uma grande

revolução social que destrua as estruturas perversas de mediação do capital.

Lamentavelmente, poucas são as lideranças sindicais que têm uma visão marxista da

sociabilidade capitalista. O pragmatismo da luta cotidiana as obriga a pensar a “realidade

melhor para si” dentro da visão “burocrática” do poder sindical. O prisma revolucionário fica

reduzido a um horizonte longínquo, quase a uma utopia fantasiosa que nunca acontecerá de

fato. Serviria apenas como horizonte de contemplação, logo, restringindo a luta a melhores

condições de trabalho e salário, mas dentro da concessão possível do capital.

Por isso, a importância da luta econômica se converter a posteriori numa luta política

revolucionária como nos alertam Marx e Lênin: a busca pela supremacia da luta política.

Nesse sentido, em vez de os trabalhadores cooperarem com a situação capitalista, poderiam

declarar guerra a esta situação de dominação classista. E Marx convoca a crítica como arma

para fazer a ruptura com as condições políticas existentes, ou seja, negar as circunstâncias

políticas e jurídicas do capital para efetivar o Aufhebung histórico das deficiências civilizadas

do mundo moderno, restituindo o poder de Estado à sociedade. Todavia, o entusiasmo

revolucionário feneceu no movimento sindical como um todo, quer dizer, abandonou-se a

perspectiva marxista de dissolução da ordem capitalista sob a base da exploração humana e da

natureza. O movimento sindical optou, deveras, pela “emancipação política” em detrimento

da “emancipação humana”, fortalecendo as ilusões da matriz política anacrônica do

“melhorismo” para os trabalhadores no capitalismo. Parafraseando Mészáros, é o mesmo que

ter uma ação política vácua nos limites do capitalismo contemporâneo.

Nas Glosas Críticas, Marx chama atenção para essa miopia política de não enxergar

no Estado burguês a razão das mazelas sociais, mas estas como consequências da má

administração do Estado. O mito da “onipotência da vontade política” predomina hoje no

pensamento pragmático sindical, justamente por não perceber as limitações intelectuais e

práticas desta “vontade”, nem desvendar a fonte das mazelas sociais. Não é à toa que a

questão do aumento salarial, na visão sindicalesca, é apenas uma questão de decisão política.

Todavia, Marx nos alerta sobre a contradição entre a finalidade e a boa vontade da

administração que o Estado não pode suprimir. Entretanto, o “movimento sindical”, em geral,

continua a acreditar no Estado como entidade universal, aperfeiçoável e laico, que pode

solucionar o conflito entre o capital e o trabalho. Um exemplo real é a negociação sindical

tripartite entre Empresários-Governo-Trabalhadores que buscam acordar os interesses

323

antagônicos entre capital e trabalho. No entanto, Marx nos ensina que é preciso agir de modo

“não político” para abolir o estado de coisas em que se encontra a sociedade. Mesmo que a

emancipação política represente um progresso, ela não é a forma final da emancipação

humana, pois os direitos humanos são direitos baseados nos valores da sociedade burguesa. E,

segundo Marx, consagrar os direitos universais do homem está longe de efetivar o homem

como ser genérico; ao contrário, tais direitos não vão além do direito do homem egoísta

enquanto indivíduo separado da comunidade.

Analisando então o perfil formativo da CUT, as temáticas exploradas nos seus cursos

de formação, dentre outras coisas, observamos que a mesma vem reafirmando essa ideologia

burguesa da cidadania, dos direitos humanos, impossíveis de se realizar na ordem social

capitalista. E se formos usar a terminologia crítico-reflexiva de Marx nas Glosas Críticas

sobre essa questão, os cutistas hoje poderiam ser denominados de “liberais burgueses” ou

“libertadores políticos”, na medida em que defendem a cidadania e a comunidade política

como modo de preservar os direitos do homem; no entanto, o cidadão continua sendo servo

do homem egoísta (burguês). Por isso, os sindicalistas pragmáticos podem ser considerados

hoje de “libertadores políticos” que Marx denunciava, ou seja, eles acreditam que a libertação

dar-se-á pela via da política (liberal burguesa) da consagração dos direitos humanos ou das

convenções da OIT para humanizar o trabalho indecente no capitalismo. Querem acabar com

a perversidade do capital, sem minar a estrutura social dessa dominação iníqua. Combater

esse cidadão abstrato, cujos direitos só existem na forma de lei, é efetivar uma luta para além

da política de cooperação entre classes antagônicas. A política é, em princípio, superior ao

dinheiro, mas na realidade tornou-se seu escravo. Tal como a formação política sindical que

ficou “dependente”, de certo modo, dos financiamentos estatais para a formação profissional.

No que se refere ao sufrágio universal, por exemplo, Engels já via com certo temor

esse evento político burguês de cooptar os trabalhadores, pois a eleição democrático-burguesa

não é instrumento da emancipação total da humanidade, sobretudo, porque a burguesia cria

leis ou mecanismos político-jurídicos que limitam a prática da eleição como forma de

emancipação dos trabalhadores. O sufrágio universal não deixa de ser uma armadilha ou um

instrumento de esbulho da burguesia liberal. Por isso que não podemos renunciar o direito à

revolução como algo incontestável e reconhecido universalmente. As massas precisam

amadurecer neste sentido, ou seja, compreender do que trata esse movimento da emancipação

humana para ter consciência dos motivos de dar seu sangue, suor e vida nessa luta. Ficar

conformado em ter triunfos legais e não buscar mais os triunfos revolucionários, é parar a

locomotiva da história, ou seja, a Revolução. Limitar a ação política à sua forma monárquica

324

ou burguesa é a maneira de se mistificar os governos, cujo objetivo é inibir e retardar a luta de

classes. Nessas circunstâncias, a luta sindical precisa ter o papel educativo, formativo, de

elevar o nível de consciência política dos trabalhadores para decifrar o enigma histórico do

processo de dominação classista do capital. Se o trabalhador não assume a consciência da

realidade ideologicamente, então ele fica limitado apenas a uma consciência do conflito,

como diz Gramsci. Portanto, não basta ter a consciência moral deste mundo, é preciso, pois,

ter a consciência revolucionária para transformar a realidade social.

Quando Marx critica o Programa de Gotha, que se limita às reivindicações políticas da

ladainha burguesa do sufrágio universal, da legislação direta, do direito popular etc., é porque

tais reivindicações não passam de ideias fantásticas de um democratismo de Estado que não

deixa de ser um despotismo militar de cariz burocrático e de blindagem policial. E é isso que

o movimento sindical cutista hoje proclama em suas resoluções, isto é, alguns dos objetivos

políticos da burguesia. Então podemos inferir que as principais reflexões da teoria marxiana

estão longe de ser abraçadas pelos trabalhadores, isto é, não há este conhecimento teórico por

parte deles de que a dominação do capital sobre o trabalho é de caráter fundamentalmente

econômico e não político. Os trabalhadores, em geral, não conhecem a conexão entre Estado,

Capital e Trabalho como força pública organizada que perpetua sua escravidão social a uma

alienação perversa de degradação genérica do ser humano. Por isso, é mister sair da política

do substitucionismo para restituir à sociedade os poderes usurpados pelo Estado.

Isso, sem dúvida, é resultado do tipo de concepção de sindicato que os trabalhadores e

suas lideranças sindicais têm. Marx, Engels, Rosa, Lênin, Trotsky dentre outros deixaram um

legado teórico importantíssimo sobre o papel e a função do sindicato na luta contra o

capitalismo e a favor do socialismo. Elencamos algumas dessas concepções nesta pesquisa

que hoje não estão em voga na luta sindical, no caso específico, a cutista. A palavra-chave

para o êxito da luta dos trabalhadores é União, conforme Marx, na Miséria da Filosofia; Marx

também se preocupava com a fragmentação dos trabalhadores por causa da competição entre

si. Para Marx, os sindicatos são lutas de guerrilhas entre o capital e o trabalho, agências de

organização para abolir o salariato e o regime capitalista; no entanto, naquela época ele já

percebia que os sindicatos mantinham-se longe das lutas políticas e sociais, isto é, não tinham

a percepção da sua missão histórica, como centros organizadores para a emancipação humana.

O mesmo acontece hoje, a falta de uma visão política radicalmente concebida sobre o

papel do sindicato, que se reduziu à luta por aumentos salariais e melhores condições de

trabalho. Corroborando então com Marx, os trabalhadores lutam apenas contra os efeitos e

não contra as causas dos efeitos da exploração capitalista. Não é por acaso que, em Salário,

325

preço e lucro, Marx percebe a falha dos sindicatos quando usam pouco inteligentemente a sua

força, pois se limitam a uma luta corporativa contra a ofensiva capitalista, sendo deficientes

por não compreenderem que poderiam transformar os sindicatos em alavancas para a

emancipação final da classe trabalhadora para abolir o capitalismo. Confinam-se os

sindicatos, segundo Marx, à luta meramente econômica, tal como acontece hoje. Isso nos leva

a deduzir que a luta sindical fica à deriva das crises econômicas capitalistas, pois, se presa

antes ao ciclo de Kondratieff, hoje está refém da crise estrutural-sistêmica; ou, como diz

Mészáros, uma luta submetida a repiques de recessão crescentes com intervalos cada vez mais

curtos, tendendo a um continuum em depressão. Não podemos achar, portanto, que uma

reforma moral vá emancipar o mundo da perversidade econômico-social do capital, como diz

Rosa Luxemburgo. Neste caso, pegando o conceito luxemburguiano de “greve política” e

aplicando hoje à forma de greve que o sindicalismo realiza, temos uma greve que apenas visa

à conclusão de acordos políticos que beneficiam mais as direções dos sindicatos,

diferentemente das greves de massas que alargam o horizonte intelectual dos trabalhadores

para reavivar suas ideias e aumentar suas energias.

Não é à toa que Lênin criticava o bernsteinismo e os marxistas legais por pregarem a

teoria da atenuação dos antagonismos sociais, limitando a luta dos trabalhadores a reformas

pequenas e graduais, ou seja, transformando o movimento operário em apêndice do

movimento liberal; e hoje o movimento sindical, especialmente o cutista, age como

coadjuvante indireto do capitalismo, a saber, fazendo acordos para efetivar objetivos práticos

do movimento que desembocam na comercialização de princípios e concepções teóricas,

pondo em xeque a importância da teoria (marxista) e mesmo do socialismo. E o sindicalismo

cutista hoje reproduz essa mesma prática bernsteiniana, legalista, de atenuar o conflito de

classes, ou seja, faz justamente o rebaixamento teórico dos trabalhadores que tanto Lênin

criticava. Em outras palavras, o movimento sindical dos trabalhadores se subjuga, de certa

maneira, à ideologia burguesa e realiza “um sindicalismo do mínimo esforço” que “se refugia

sob as asas da burguesia”. Tal descaso com a teoria marxiana retarda e enfraquece a luta

contra o capitalismo e não cria uma consciência e atitude anticapitalista. Hoje isso não é

muito diferente.

Daí inferirmos que é imprescindível a educação política marxista no movimento

sindical para elevar o nível de consciência do trabalhador, explicando a natureza das crises do

capitalismo, mostrando as necessidades da transformação social, enfim, fornecendo as

“ideias-bases” do marxismo para um maior conjunto de pessoas. Os capitalistas querem o

contrário, ou seja, fazer desaparecer nos sindicatos o espírito socialista e limitar a luta à

326

legalidade burguesa, tal qual como fazem muitos sindicalistas, a partir de um novo pacto de

cooperação. Todavia, Trotsky coroa essa discussão, ressaltando o marxismo como um

antídoto à burocratização da luta, pois é preciso educar os trabalhadores no espírito do

autêntico marxismo. Trotsky tinha clareza de que a educação sindical educa até certo limite,

pois é fundamental que os intelectuais e militantes marxistas tornem-se guias teóricos para

sistematizar a luta proletária de forma programática; sobretudo, porque a burocracia sindical

pode empacar a transformação das organizações sindicais em organizações revolucionárias.

Quando formamos indivíduos revolucionários, nos diz Suchodolski, rompemos com as

condições que dependem das causalidades do capitalismo, caso contrário, os indivíduos se

tornam colaboradores do capital.

Contudo, não é fácil resgatar o marxismo como teoria revolucionária da classe

trabalhadora, que ainda tem uma visão distorcida dos fatos históricos sobre o desastre do

socialismo soviético, propagandeada pela mídia burguesa internacional. Sabemos que o

marxismo passou por várias crises após o falecimento de Marx. Certamente, a maior delas foi

a precipitada conclusão da morte das ideias de Marx com o fim do socialismo real no Leste

Europeu. Com efeito, isso levou o movimento sindical de esquerda a um distanciamento do

marxismo e, concomitantemente, do socialismo, embora já houvesse antes uma crítica àquele

modelo de comunismo. A consequência prática foi o desprezo do movimento sindical, em

geral, pelo marxismo nos cursos de formação política. Mas como diz Mészáros, não podemos

atribuir a uma experiência histórica de socialismo num canto do mundo o fracasso do

marxismo, ou melhor, imputar à prática de um modelo de transição socialista a invalidade da

teoria de Marx ou inviabilidade do socialismo. Na verdade, a implosão do “socialismo real”

tem a ver com as causas econômicas, políticas e sociais enraizadas na sociedade soviét ica,

pois as personificações do capital – Estado, Capital e Trabalho – continuaram a existir no seu

sistema de produção, como componentes entrelaçados do sistema orgânico do capital,

extraindo politicamente o excedente de trabalho.

No entanto, o “marxismo autêntico” é de caráter universal e fica difícil abandoná-lo

quando os princípios dialéticos que sustenta, a interpretação materialista da história e a

sociedade que propõe, as leis do capitalismo que estuda e os antagonismo sociais que

desmascara, segundo Claudio Katz, não podem ser encaixotados na história por causa do raio

estreito que ele foi posto em prática em tal ou qual país.

Vimos que Marx e Engels não se iludiam em relação à lentidão, aos riscos de ruptura e

à involução do processo de autoeducação dos trabalhadores, pois a influência ideológica

burguesa sobre a mentalidade dos trabalhadores era e é uma constante. Talvez, se o

327

movimento sindical tivesse se aprofundado mais em compreender o movimento do capital,

suas contradições, crises etc., do que apenas se limitar à luta econômica, a forma de luta

política contra o capital poderia ter sido melhor desenvolvida. Como diz Letízia, com a queda

do muro de Berlim, várias teorias sobre o papel do sindicato se multiplicaram, tais como o

sindicalismo moderno que propõe um sindicalismo mais construtivo, com soluções

exequíveis, de cooperação com as empresas. Isso significa, em outras palavras, que está

havendo um processo de “desideologização” ou de “despolitização” do movimento sindical,

restringindo a luta à mera defesa das conquistas dos trabalhadores. Seria então um novo pacto

neocorporativo, desde a crise do modelo de produção fordista, entre o capital e o trabalho?

Sem dúvida, o fim do socialismo real, a crise estrutural do capitalismo e a violenta

ofensiva neoliberal pegaram de surpresa o movimento sindical que estava acostumado à

cooperação fordista, sobretudo, no Brasil, ou seja, tais eventos fizeram com que houvesse um

refluxo na luta ideológica do sindicalismo brasileiro de esquerda. Alguns especialistas em

movimento sindical apontam causas diferenciadas para esse recuo histórico do movimento

sindical combativo e classista para uma posição “defensivista”. Com a crise do modo de

produção fordista, na Europa e nos Estados Unidos, a reestruturação produtiva neoliberal

surgiu para acabar com a estagnação da acumulação e expansão do capitalismo, a partir de

três objetivos: competitividade internacional, redução do Estado ao mínimo de atuação social

e flexibilidade do mercado de trabalho. Destacamos, porém, que há uma relação dialética

entre o avanço da reestruturação produtiva neoliberal e a crise das estratégias da luta de

classes, uma retroalimentando a outra, como afirma Paula Regina.

No entanto, citamos as principais causas para a crise ou o enfraquecimento do poder

sindical tais como: a acumulação flexível, reestruturação produtiva, globalização (financeira),

flexibilização da organização e do mercado de trabalho, redução drástica da força de trabalho

industrial, explosão do trabalho em serviços, terceirização do circuito de valorização do

capital (causando a pulverização e fragmentação do trabalhador coletivo), dispersão da

produção, debilitamento da solidariedade dos trabalhadores, desemprego estrutural,

dessindicalização, burocratização do movimento sindical, enfraquecimento das lideranças

mais vanguardistas, fortalecimento das lideranças mais modernas e atrasadas, derrocada do

socialismo, o enfraquecimento de pertencimento de classe, crise de lideranças e

representatividade, “despolitização” e “desideologização” da luta, militantismo alienante,

colaboração de classes (concertação social), neocorporativismo, luta de caráter “propositivo-

negociativo”, lutas setorizadas e parciais, a social-democratização sindical, esvaziamento

teórico da luta, declínio das greves etc. Portanto, alguns especialistas explicam a crise ou o

328

enfraquecimento do poder sindical a partir das transformações tecnológicas e organizações do

mundo do trabalho, ou melhor, a partir de explicações conjunturais, estruturais e políticas,

sobretudo, explicações macroeconômicas, institucionais e até mesmo culturais e valorativas.

Contudo, a causa da crise do movimento sindical é também, a nosso ver, em última

instância, de caráter teórico-metodológico, pois a ausência de uma consciência revolucionária

(teórico-prática) do trabalhador no campo do marxismo seja um dos principais fatores do

declínio, da rendição e do acomodamento do movimento sindical ao neoliberalismo. Não que

a teoria por si só seja a condição fundamental para a transformação radical da sociedade, mas

constitui uma mediação imprescindível para o desenvolvimento da luta anticapitalista,

principalmente, para a construção da consciência e ação revolucionárias face ao capital. É

impossível desenvolver uma ofensiva contra o capital se não compreendermos a teleologia de

seu movimento na história, a sua raiz ontológica na formação social dos homens, os

elementos fundamentais de sua crise, o desenvolvimento de suas contradições, a

irrealizabilidade da sua justiça social, a voracidade de sua expansão e acumulação em

detrimento da natureza e do próprio homem, enfim, se não entendermos os nexos categóricos

onto-históricos que permitem seu movimento incessante de destruição do planeta. É preciso

superar a ação puramente reativa, emocional, reivindicativa, politicista do sindicalismo

moderno dentro dos marcos do capital. Portanto, a condição histórica urge ser modificada, a

partir de uma ação mais sistemática e menos espontaneísta; e construir uma rota de ação

antagônica ao sistema, um programa anticapitalista, requer que haja uma consciência clara de

seu funcionamento, de seus objetivos maléficos e efeitos sociais perversos.

Mesmo que a tese das consequências da reestruturação produtiva, das inovações

tecnológicas e organizacionais no trabalho e da fragmentação dos trabalhadores tenha valor

teórico para justificar a crise do sindicalismo combativo, a nosso ver, o desprezo teórico, isto

é, a ausência de uma consciência revolucionária a partir do marxismo autêntico, foi crucial

para impedir um confronto acirrado entre o trabalho e o capital, pelo menos, um confronto

ideológico enquanto equilíbrio de forças. Ao contrário, o movimento sindical passou a ser , de

certo modo, interlocutor do capital, abandonando a sua função de adversário estrutural; optou,

segundo Mészáros, pela linha da menor resistência, aceitando quase que passivamente as

imposições do neoliberalismo. A acuação do movimento sindical em face dessa globalização

financeira do capital, a partir do neoliberalismo, só demonstrou que o movimento sindical não

eliminou a precariedade teórica dos trabalhadores sobre a teleologia do movimento do capital.

A luta pela emancipação da classe trabalhadora do capital foi substituída pela luta dos direitos

humanos, individuais, democráticos, pela luta do exercício da cidadania no Estado burguês,

329

conforme as teses do pós-modernismo. O movimento sindical deixou de ser um movimento

antissistêmico para ser pilar do sistema do capitalista, deixando de ser antagônico. Parece que

houve uma rendição ideológica por parte do movimento sindical à ideologia do capitalismo

humanizado ou capitalismo do povo, isto é, da terceira via, a uma ressocialdemocratização da

política ou um remake de um neokeynesianismo pós-moderno.

Isso nos permite dizer que a dimensão da luta de classe, particularmente na Central

sindical cutista, vem sendo abandonada enquanto perspectiva histórica. O socialismo e o

marxismo sofreram um verdadeiro apagão teórico-prático nas lutas sindicais, nos cursos de

formação política, pois o que mais se discute hoje no movimento sindical, seja nas instâncias

de base, seja nos sindicatos, federações, confederações e centrais, é o salário justo no

“capitalismo menos injusto”, as eleições para formar a burocracia sindical, a forma de

negociação pacífica e rápida com o patronato e as lutas internas pelo poder sindical e sua

burocracia administrativa. Um sindicalismo totalmente burocratizado, esvaziado de

sentimento e pensamento revolucionário, isto é, sem ideologia revolucionária, ateórico e

acrítico ao capital. As estratégias de contrapoder e de visar uma sociedade para além do

capital, sucumbiram diante das lutas puramente reivindicativas e burocratizadas. O dirigismo

e o burocratismo sindical abafaram os princípios do sindicalismo revolucionário.

Observando os congressos da CUT, suas resoluções e ações sindicais, percebemos que

o movimento sindical atuou conforme a conveniência conjuntural do capital ou consoante o

seu processo de acumulação. A luta sindical combativa estacionou no tempo; ficou truncada

pela sua incapacidade teórica de compreender o momento histórico predominante, justamente,

porque não havia a teoria ou o método marxista de compreensão dessa realidade por parte da

maioria das lideranças sindicais. Se, por um lado, o poder sindical se expressa pela força das

greves, isto é, se é por meio delas que o sindicalismo se determina como movimento social,

como instituição de defesa dos trabalhadores, por outro lado, é pela força da sua consciência

política e ideológica anticapitalista que o movimento sindical se torna uma ameaça.

Quando historiamos que, no Brasil, os primeiros sindicatos ou associações de

trabalhadores tinham a preocupação de construir uma pedagogia socialista para formar

politicamente os trabalhadores e que não visavam apenas à ascensão social deles, mas a

transformá-los em militantes revolucionários para sua emancipação total, ou seja, que a

educação política dos trabalhadores teria que ser formada sem a influência da educação

burguesa, é para contrastar com que vemos hoje, a saber, um sindicalismo que tacitamente se

escusa de construir um programa ou uma estratégia revolucionária para a luta contra o capital,

visando o socialismo. Em outras palavras, prioriza-se o campo da luta institucional em

330

detrimento das ações de massa, fortalecendo o sindicalismo oficial e corporativo de Estado.

Na verdade, há o abandono da luta política e da agitação de ideias contra o capitalismo, para

ajustar o movimento sindical a um modelo sindical de cooperação com o sistema do capital.

As greves gerais foram quase descartadas no Brasil e no mundo, com alguns ensaios atuais, de

caráter esporádico e rápido em alguns países europeus, como na França, Espanha, Itália e

Grécia. No caso do movimento sindical cutista, percebemos isso a partir do III e IV

CONCUTs e da derrota de Luís Inácio Lula da Silva à Presidência da República, em 1989. A

guinada à direita do movimento sindical cutista deu-se com a hegemonia da Corrente

Articulação Sindical; e esta começou a desenhar outra estratégia política e sindical para a

CUT, a partir dos Congressos, Plenárias e Encontros posteriores.

O neoliberalismo foi a pá de cal para formar o alicerce de uma nova estruturação

político-ideológica e institucional na CUT, em correlação com os objetivos do Partido dos

Trabalhadores (PT). Moderou-se a luta ofensiva sindical, saindo de um sindicalismo

combativo-classista para um sindicalismo propositivo-negociativo, privilegiando, portanto, a

luta “democrático-cidadã” na ordem do capital. A Articulação Sindical cutista trabalha com a

tese de que se o sindicato perder o objetivo da negociação, as bases não acompanharão o

voluntarismo político vanguardista, distanciando-se, assim, ideologicamente das concepções

marxistas de sindicato. Isso denota a falta de uma concepção marxista da luta sindical e

política, de uma visão marxiana da crise estrutural do capitalismo no conjunto da história.

Não foi à toa que houve uma fase de “aproximação” da CUT com algumas propostas

neoliberais, tais como a das câmaras setoriais, quer dizer, um novo pacto social entre capital e

trabalho, tendo como interlocutor o Estado burguês. Isso confirma a incapacidade da CUT de

responder antagonicamente à ofensiva do neoliberalismo. Concordando com Boito Jr., a CUT

não tinha uma base teórica marxista de fundamentação da luta sindical, mesmo tendo uma

visão de classe e compreendendo o movimento sindical como parte de um conflito maior.

Se tomarmos como referências os cursos cutistas de formação política, percebemos

que o marxismo ou as teorias de Marx sobre o movimento e a crise do capital passou ao largo.

Isto é demonstrado na pesquisa de Paula na EQUIP, em que não havia na tabela de cursos,

espaço para o marxismo. Mesmo pleiteando em suas resoluções o socialismo como horizonte

a ser vislumbrado, a CUT limitou-se a fazer formação política muito mais para formar

dirigentes e militantes sindicais que atuassem no campo da negociação e da administração

burocrática da estrutura sindical do que no campo da luta político-ideológica contra o capital.

Embora em alguns cursos, categorias marxistas tenham sido colocadas, como o curso de

“economia política básica” – que implica na compreensão e dominação dos elementos

331

fundamentais da sociedade capitalista –, este curso jamais chegou a ser dado de forma

satisfatória como afirma Tumolo, desaparecendo até mesmo como mera proposta do conjunto

de programas da formação. Os textos de vários cursos, portanto, se voltavam mais para

discutir as práticas cotidianas, sem o suporte teórico do conhecimento marxista.

As escolas de formação orgânicas e conveniadas foram fundamentais para a formação

de militantes e formadores de formadores da CUT. No entanto, algumas delas funcionam

precariamente e outras até foram fechadas. Isso demonstra uma crise no campo institucional

ideológico cutista, isto é, de a CUT ser ou não ser mais socialista. A formação de base foi

substituída por uma formação instrumental que visa apenas preparar a militância para atender

as demandas da conjuntura e do cotidiano sindical. Daí uma ênfase maior na formação

profissional em detrimento de uma formação política, sobretudo, no campo do marxismo. Isto

porque a CUT trabalha com a ideologia de que o problema do desemprego estrutural no

capitalismo é um problema de qualificação e requalificação dos trabalhadores e não como

uma questão da crise sistêmica do capital. Em outras palavras, a CUT se fundamenta na ideia

de que é preciso radicalizar a democracia popular para construirmos a fase de transição para o

socialismo, baseada na visão de sociedade cidadã, um modelo alternativo que se baseia na

democracia e justiça social, com desenvolvimento rural, política de segurança alimentar e

cidadã e reforma do Estado.

Dessa maneira, o sindicalismo CUT, que se propõe ser de esquerda, está distante do

referencial teórico-metodológico materialista-dialético. Os textos de sua formação vão na

direção de criticar o modelo de desenvolvimento econômico capitalista, construir a cidadania,

fortalecer a democracia e a participação cidadã nas decisões do Estado, ou seja, de buscar

construir uma rede econômica e política solidária no rumo da empregabilidade e da renda para

os trabalhadores, sem perceber que está desenvolvendo uma luta meramente moral de

combate ao individualismo capitalista, ao mercado de trabalho competitivo, sem perspectivar

uma luta emancipatória plena do trabalhador. A tese da esquerda moderna é a de que é

possível aperfeiçoar a sociedade democrático-cidadã, quando se supera as desigualdades com

a ampliação e melhoria dos direitos sociais e das instituições capitalistas que os implementam.

Por isso, como diz Paula em sua dissertação, nos cursos da EQUIP se faz apenas a crítica

moral do capitalismo, abandonando a teoria macro, sem criticar a lógica da exploração, a

saber, o abandonando o legado crítico marxiano e tendo como ponto de partida para a

construção do conhecimento somente as experiências individuais, a partir da metodologia

participativa, em que não se faz uma relação entre o saber do educando com o saber teórico.

Em outras palavras, a formação torna-se sindicalesca, formando apenas dirigentes e não

332

trabalhadores de base. Uma linha metodológica que prioriza a prática pela prática para

transformar a realidade, negando, assim, a importância da teoria marxista.

Se a prática sindical cutista, seja no campo da formação, seja no campo da implementação

das lutas, está diretamente correlacionada com os princípios políticos das suas resoluções

congressuais, então no âmbito da formação política, sua prática reflete a concepção política que

ela tem de sindicalismo e de sociedade. A CUT se pauta, dessa maneira, mais por uma visão de

um antagonismo entre “sociedade civil” e “governo” do que entre “capitalistas” e “trabalhadores”,

como infere Oliveira do Rio em sua dissertação, desconsiderando, portanto, a objetividade

ontológica do antagonismo entre o “capital” e “trabalho” como diz Tonet (2005)7.

Assim sendo, a partir dos resultados teóricos, enfatizados nesta pesquisa, a tese ilustra

que desde os primórdios do sindicalismo no Brasil, nunca houve, de verdade, por parte da

maioria dos dirigentes sindicais, um maior aprofundamento no conhecimento das teorias de

Marx, sobretudo, em relação às categorias que constituem a articulação interna da sociedade

burguesa com suas contradições, evoluções e crises e sobre as quais se baseiam as classes

fundamentais, como assevera Marx nos Grundrisse. E pior. As bases sindicais nunca tiveram

acesso a esse legado teórico de Marx de forma mais sistemática por meio de cursos contínuos

que pudessem nortear o seu comportamento político-sindical de enfrentamento ideológico e

político com os capitalistas. As lutas sempre se pautaram por movimentos conjunturais

históricos, sazonais, setoriais, às vezes espontaneístas, às vezes programáticos, de caráter

economicista, mas sem uma direção clara de minar constantemente o capitalismo em seus

momentos de crise ou pelo menos a sua ideologia. Os cursos de formação sindical, mesmo na

fase da Primeira República 1889-1930 (41 anos), com a influência de anarquistas, anarco-

sindicalistas, socialistas e comunistas, nunca formaram uma base sindical que dominasse o

conteúdo marxista in totum para compreender a lógica do capital ou que vulgarizassem tal

conteúdo para a classe trabalhadora. Mesmo com o advento do sindicalismo oficial de Estado

na era Vargas, os sindicalistas comunistas ficaram atrelados ao marxismo leninista, estalinista,

trotskista ou maoísta, restringindo a luta tout court à tática e propaganda do socialismo russo,

ou formando militantes para ação e propaganda comunista do Comintern (Terceira

Internacional). Já o Novo Sindicalismo limitou-se, com o tempo, a resgatar o projeto

democrático popular, com alguns lampejos ideológicos sobre o socialismo, mas cujo resultado

foi a radicalização deste projeto no esteio mesmo do capitalismo, ao chegar ao Poder com o

Partido dos Trabalhadores (PT).

7 Cf. TONET, Ivo. Educação, cidadania e emancipação humana.

333

A partir dessas proposições, a tese nos indica que, grosso modo, não houve de fato a

construção da consciência revolucionária ou anticapitalista nas bases sindicais – através de

cursos de formação política – a partir da teoria marxiana do capitalismo em sua totalidade,

isto é, da sua gênese ao assombro do colapso contemporâneo, impedindo-os, portanto, de

entenderem o desenvolvimento do sistema metabólico do capital, as suas várias formas de

evolução, a conexão íntima de suas relações de produção, distribuição, circulação e consumo

da riqueza produzida, ou, melhor dizendo, de conhecerem a estrutura, a dinâmica e as

contradições da economia capitalista; como também impossibilitando os trabalhadores de não

terem um senso revolucionário da sua condição ontológica humana na ordem social

capitalista, isto é, sendo acríticos em relação à forma de trabalho da qual são alienados ou

reificados e mesmo excluídos. A sonegação do autêntico marxismo nos cursos de formação

política pode ter sido um dos principais fatores da precarização política e ideológica da luta

dos trabalhadores, de uma militância teoricamente fraca ou ateórica marxianamente, enquanto

classe antagônica ao capital, distanciando-se do projeto social classista, pois o marxismo

contribui, em grande medida, para libertar o trabalhador da sua consciência empírica e

imediatista, formando assim o sujeito contestador da ordem do capital e não um sujeito

cooperador. Pois, como bem diz Mészáros, o espírito do marxismo é devolver justamente o

poder político aos indivíduos sociais.

Por fim, se houve um processo de ascendência do movimento sindical quanto à sua

forma de organização, estruturação e institucionalização desde os primórdios até hoje, o

mesmo não se pode dizer que houve uma ascendência no desenvolvimento de uma

consciência anticapitalista, revolucionária e socialista pari passu ou a posteriori, sobretudo,

nas bases do movimento sindical. O Espírito da luta sindical continua subordinado ao

desenvolvimento contraditório do capital. E se a exploração do capitalismo é pressuposto para

a união da classe trabalhadora, então o marxismo como teoria revolucionária é pressuposto

para se desenvolver a consciência antagônica dessa união contra o capital. Face ao exposto,

podemos concluir, afirmando que houve um rebaixamento teórico crítico ao capitalismo por

parte do movimento sindical, em especial, o da Central sindical cutista, justamente por esta,

em última instância, desdenhar a teoria marxiana enquanto força crítica e ideológica ainda de

contrapoder ao capitalismo; logo a causa do enfraquecimento do poder sindical não se deve

somente às questões conjunturais e político-ideológicas ou estruturais do capitalismo, mas

também à debilidade teórica sindical no campo do autêntico e revolucionário marxismo, ou

seja, a partir do entendimento da realidade antagônica produzida pelo desenvolvimento onto-

histórico do capital, das suas relações sociais de produção.

334

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