Crônica de um Despertar - Meu Retorno ao Além (psicografia Abel Glaser - espírito Afonso)

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    Abel GlaserCrnica de um Despertar

    Meu retorno ao AlmPelo Esprito Afonso

    PrefcioA vida espiritual a definitiva. Dela todos viemos e para ela tornaremos um dia

    quando, ento, nada de material levaremos. Restar conosco exclusivamenteaquilo que se encontra em nosso Esprito: a bagagem de nossa mente e o acervodo corao, ou seja, o que possumos no aspecto intelecto-moral, nossa nicapropriedade efetiva. Tudo o mais nos dado na trajetria material por emprstimo,do qual prestaremos contas um dia a Deus.

    Nesta obra de Alvorada Nova, -nos apresentado o despertar no alm de Afonso,mostrando inicialmente os momentos de seu desencarne e depois a suaincredulidade em ter morrido materialmente, o sofrimento decorrente desse seuestado de esprito, o abalo das convices que alimentou durante sua vidaterrena, o seu processo de conscientizao com respeito a estar vivendo a

    existncia espiritual, a sua aproximao com reunies medinicas e o seuencaminhamento a um dos Postos de Socorro da Cidade Espiritual. Em seguida,acompanhamos Afonso estagiando na prpria Colnia.

    Em tom ameno e coloquial, Afonso descreve os principais momentos por elevivenciados desde o seu desencarne at o instante de partir para a sua novareencarnao.

    O leitor ter a oportunidade de constatar, no curso da leitura desta obra, vriasposturas mantidas pelos principais personagens, ensejando-lhe reflexo sobre osbons ou maus sentimentos predominantes em cada um e as suas conseqncias.

    Enquanto Afonso, com suas atitudes egostas, demonstrando ceticismo epresuno, perde-se no seu materialismo ao longo da jornada na Crosta, sem omenor cuidado de evitar erros graves como o adultrio, a ambio desenfreada ea vaidade incontrolada, sua esposa Elvira uma mulher dedicada ao lar e famlia e jamais utiliza sua condio econmica privilegiada para a prtica dealgum mal. Os filhos Marco Aurlio e Pedro mantm condutas praticamenteantagnicas. O primognito deixa-se levar pela obsesso, ante seucomportamento desregrado e contrrio moral, inserindo-se num mundo viciado eegosta, tendo por base os maus exemplos dados pelo prprio genitor. O opostoem carter e retido est em Pedro, um jovem idealista e bondoso, que cultiva

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    hbitos simples e a honestidade como uma das metas maiores em sua jornada.Sua f inabalvel o conduz senda crist e permite que ajude seu pai, quandoeste est desencarnado e errante. Diante de Valter, o gerente de vendas da

    empresa de Afonso, o leitor estar vislumbrando a figura do oportunistainescrupuloso, que se aproveita de um instante de fraqueza para conquistar aconfiana de Elvira. Longe desse contexto nocivo esto os filhos de Marco Aurlioe Cntia esta ltima to obsediada quanto o marido , que tm a proteo de

    Mensageiros do Alto e a misso de encaminhar seus pais moral crist.A narrativa fruto das memrias de Afonso e contou, na sua elaborao, com apessoal orientao de Cairbar Schutel. Seres perfectveis que somos, tendo pororigem a animalidade mas por meta a angelitude, cada estgio no plano fsico ouna esfera espiritual representa para cada um de ns preciosa oportunidade dedesenvolvimento, cumprindo-nos bem que aproveit-la pela conduo positiva do

    nosso livre-arbtrio.

    Vivendo ainda em um mundo de expiao e provas como a Terra, torna-se-nosimperioso fazer bom uso do ensejo que a reencarnao nos propicia. Por isso oempenho da Espiritualidade em nos proporcionar obras como esta, que ao mesmotempo nos esclarecem e alertam sobre a continuidade da vida de cada pessoa e anecessidade do seu progresso na direo do Criador, com o apoio dos Emissriosdo Cristo. Allan Kardec, com as obras da Codificao, abriu-nos as portas domundo invisvel. Espritos trabalhadores, entre eles Cairbar Schutel, prosseguem atarefa de nos oferecer pginas edificantes para relembrar e reforar a importnciaque devemos ao processo de nossa reforma ntima com vistas e alcanarmos um

    estgio cada vez mais feliz em nossas vidas. Da mesma forma que as obrasanteriores de Alvorada Nova, a coleta medinica de dados deste livro esteve acargo do Grupo de Estudos Cairbar Schutel, do qual sou coordenador.So Paulo, 11 de maio de 1994.

    Abel Glaser

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    Parte 1Despertei naquela manh como de hbito fazia e a primeira providncia queadotei foi esfregar os olhos insistentemente para dissipar uma coceira que estava

    incomodando-me, alm de espreguiar longamente os meus braos para os lados,tomando o cuidado de no atingir minha querida Elvira. Findo esse costumeiroprocesso inicial de despertamento, coloquei as mos atrs da cabea e fiqueialgum tempo observando o teto do meu quarto.

    Nada demais para ver. Era somente uma oportunidade para refletir sobre o meudia, o que iria fazer e o que tinha deixado de cumprir em data anterior. Enfim,tratava-se de um balano matinal a respeito de meus afazeres, mas tambm nodeixava de ser, em algumas vezes, uma anlise global sobre minha vida.

    De sbito, senti um aperto muito forte no corao e uma fisgada no brao. Foi to

    repentino que mal pude levantar-me da cama para dar conta do que aconteciacomigo. A dor passou inesperadamente tambm. Estranho pensei , domesmo modo que veio ela foi embora sem deixar vestgio. Fiquei aliviado, massentia-me atordoado e meio esquisito. Essa sensao confusa que me tonteavaas idias tanto quanto fazia minha vista turvar preocupava-me. Olhei para os ladose constatei que meu quarto estava inalterado, com a minha roupa colocada sobrea poltrona, ao lado do criado-mudo, onde se encontravam meus culos.

    Era um dormitrio amplo e caro, com p-direito alto uma exigncia minha porocasio da construo da casa , que foi decorado com esmero por minhaesposa utilizando toques romnticos, harmnicos e elegantes. As paredes

    estavam caprichosamente revestidas por um tecido estampado floral de seda,expondo cores alegres mas suaves. Todos os dias, quando despertava, apreciavafitar cada detalhe do meu recanto e naquela oportunidade no fora diferente.

    As cortinas de seda na cor salmo, arrematadas por um band no mesmo tom,estavam fechadas e impecveis. Senti uma nusea e parecia estar mais difcilrespirar. No esperei mais e procurei levantar-me para buscar a ajuda de Elvira edos meus filhos. Ergui-me da cama. Mal senti o cho. Pela primeira vez, o tapeteao lado de meu leito no me incomodou com seus felpudos plos. Meu coraoparecia no bater. Que anormal! outra vez pensei. Sentei-me na beirada dacama e inclinei o corpo para a esquerda, buscando encostar a cabea no

    travesseiro por mais alguns minutos. Talvez eu precisasse aprender a levantar.Nada deveria ser feito abruptamente conclu.

    O quarto continuava muito escuro e percebi que l fora chovia bastante, apesar deser uma manh comum de incio de inverno, quando a precipitao atmosfricano deveria ser to intensa. Foi o suficiente para impedir o surgimento do sol. Diasassim davam-me uma desagradvel sensao de desconforto, um autntico mau-humor. Fitei o despertador. Marcava dez horas. Perdi a noo do tempo cheguei a pensar pois no sabia qual era o dia da semana. Resolvi pr um fimquele comeo de suplcio matinal e coloquei-me em p outra vez. De novo, a

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    sensao de tonteira e desconforto. A escurido do aposento j estava tornandoinfeliz o meu despertar arrematei. Dirigi a mo ao abajur e procurei ointerruptor. No consegui. Confuso, comecei a apalpar o mvel ao lado da cama

    tentando apanhar meus culos. Nada, tambm!

    Confesso que nenhum pensamento lgico acercou-me naquele instante. A mobliatinha que estar no mesmo lugar onde a deixara na noite passada, quando medeitei. Mas no achava o abajur, nem os meus culos e, pior, nem mesmo ocriado-mudo!Um sentimento de desespero comeou a invadir-me a tranqilidade. Conclu quechamar Elvira seria a medida mais racional naquele momento aflitivo e gritei o seunome.

    Nenhuma resposta. Ser que todos teriam sado sem me avisar? perguntei-me.

    Talvez fosse Domingo e as crianas estivessem em algum passeio com a me! Ri-me sozinho, talvez histrico, pois insistia em chamar de crianas meus filhospraticamente adultos. A situao no era para riso! corrigi-me. Pronto, outravez, por dormir muito, fiquei para trs.

    J comeara a imaginar o que iria acontecer com o meu almoo, provavelmentesolitrio e trabalhoso, impulsionando-me cozinha para algum tipo de atividade. Aempregada estava de folga, o que era, afinal, justo. Mas nunca gostara de auxiliarmeus familiares em casa em absolutamente nada. Essa era a razo pela qualassustava-me a idia de preparar o meu prprio desjejum ou at o almoo.

    Olhei para o canto do quarto e ao ver ali, no mesmo lugar, a escrivaninha doSculo XVIII que conseguira arrematar num leilo, terminei meu raciocnioalinhavando que alguns nascem para servir e outros como eu para seremservidos. Iria reclamar com a Elvira a respeito da folga da domstica. Uma casa

    jamais poderia prescindir totalmente de serviais.

    Eles eram pagos para, justamente, cuidar dos patres nas horas mais inspitas.Essa era a sua funo, pois outra no poderia ser. Lembrei-me que ela no deviaencontrar-se em casa e percebi que estava por minha prpria conta. Resolvi,ento, abrir a janela do quarto e deixar a luz entrar, mesmo com chuva, pois oabajur parecia estar com a lmpada queimada. Outra vez pensei na falta que a

    empregada fazia numa manh de Domingo. Caminhei, sfrego e cambaleante, atas cortinas que tentei abrir mas no consegui. Minha viso j estava acostumadacom a escurido do quarto e apesar disso eu no localizava nada minha frente.Outra sensao de nusea abordou-me. Percebi que a cada contrariedade minhaesse enjo fazia-se presente. E aquela dor aguda que sentira h pouco? pensei. Fiquei um pouco assustado, mas desprezei de pronto qualquer resultadomais grave. Sempre fui ctico e auto-suficiente, o que significava ser arredio aqualquer pensamento fnebre. Morte era coisa longnqua e normalmente para osvelhos. Eu estava na flor da minha juventude madura ao atingir quarenta e seisanos plenos de sucesso e realizaes. Meu pai tinha vivido at os sessenta e

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    nove e minha me ainda estava no auge do vigor. Ele faleceu porque abusou umpouco da sorte e aventurou-se pela vida sem cautela, contraindo uma pneumoniafatal. Avisara-o de que na sua idade no deveria ter praticado tantos exerccios

    sem acompanhamento mdico.

    A sua resistncia caiu e ele acabou enfermo. Mame era mais preparada etambm o alertou. Ele foi teimoso, por isso morreu cedo. Afastando essas idias,procurei meus chinelos para poder sair do quarto. Achei-os num canto da cama,mas meus ps pareciam maiores que eles pois no os calava de jeito nenhum.

    Angustos chinelos! amaldioei tal como fizera o personagem principal de umromance que eu estava lendo.

    Resolvi finalmente deitar-me outra vez, dormir mais um pouco at que pudesseacordar daquele pesadelo que estava vivendo. Sim, conclu feliz, era apenas um

    sonho estranho que vivia, exatamente do tipo que a gente gosta de contar emfestas e reunies familiares e nada mais que isso.

    Da beirada da cama talhada em mogno e em estilo ingls, onde novamente mesentei, coloquei a mo no travesseiro para afof-lo antes de deitar e nadaencontrei. Insatisfeito e um pouco irritado fixei meus olhos na direo do leito efitei-o detidamente por alguns minutos. A tnue luminosidade que emanava pordebaixo da porta e pelas franjas da cortina haveriam de permitir-me ver o que sepassava l dentro.

    Decidido a fazer um minucioso exame do aposento, ergui minha vista para o

    encosto da cama e fui descendo ponto a ponto o meu ngulo de viso at quepercebi existir algum deitado ali, inerte, frvolo e soturno. Assustei-me ebruscamente saltei da cama. Abaixei devagar, curvando o tronco at que meusolhos pudessem estar prximos da cama. Como em um sonho, ou um verdadeiropesadelo, vi meu prprio corpo estendido sobre o leito, com as mos atrs danuca exatamente como eu estava quando senti aquela dor estranha.

    Achei curiosa a viso e imaginei como eram interessantes os sonhos pelos quaispodamos passar. A cincia haveria de desvend-los um dia por completo.Fascinante! pensei. Eu estava tendo a sensao de ver-me ali mesmo, como seum espelho imenso estivesse colocado em meu quarto retratando-me.

    Tranqilizado, fiquei alguns momentos meditando. Em verdade, estava dandotempo ao tempo para que houvesse o despertamento e o sonho terminasse deuma vez. Nada! Ningum entrava no quarto, eu no conseguia dali sair e nenhummovimento novo acontecia. Fechei e abri os olhos seguidamente at concluir quetinha domnio sobre mim mesmo. Entretanto, o corpo que havia fitado continuavano mesmo local e ainda inerte. Rezar no foi um pensamento que me ocorreu pordois simples motivos: eu nunca havia feito antes e no via motivo para isso. Aorao, no meu entendimento, era um recurso dos mais humildes quenecessitavam cultivar uma esperana na existncia de um deus qualquer parasuportar as misrias que viviam no dia-a-dia. Alis, a prece seria usada por quem

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    estivesse em desespero e precisasse apelar ao sobrenatural para safar-se, o queno era o meu caso.

    No sei quanto tempo passei em p, olhando o meu corpo deitado e acreditandoestar sonhando. Foram horas creio. Ali estava, na mesma posio, quandoElvira entrou no quarto. No conseguiria narrar, por falta de lembrana, as idiasque tive ao longo do perodo em que fiquei esttico ao lado da cama semnenhuma manifestao. Alegrei-me contudo, porque ela seria a esperana deresolver o meu dilema. Fui ao seu encontro e abracei-a com fervor, entretanto, nosentiu a minha presena, passando reto por mim. lgico conclu , se estava sonhando, Elvira fazia parte disso e no podia ver-me porque afinal eu estava deitado na cama. Ri-me dessa explicao to bvia.

    O desespero somente comeou a tomar conta de mim, de fato, quando minha

    esposa debruou-se sobre a cama e deu um carinhoso beijo na face daquele queestava deitado em meu lugar. Sentindo a frieza do seu rosto ela atemorizou-se eacendeu a luz do abajur. Imediatamente pensei que o sonho poderia ser dela eno meu. Se Elvira conseguia fazer funcionar as coisas do quarto, ento eu eraapenas coadjuvante num sonho que no me pertencia. Essa era a razo pela qualno consegui acender a luz. J estava dando-me por satisfeito quando um gritoestridente ecoou pela casa e ela saiu apressada do quarto chamando por meusfilhos.

    Senti minhas pernas amortecendo e quase desmaiei, mas nem isso consegui. Quepesadelo infernal estava vivenciando! imaginei. Jamais iria esquecer daqueles

    momentos. O pensamento de que aquilo poderia ser realidade passou-me pelamente, verdade, mas logo o afastei, pois para aceit-lo teria que admitir tambma estpida idia de que poderia estar morto. Absurdo! arrematei, decidido arejeitar essa idia de vez. Resolvi ento ter pacincia e aguardar o meu naturaldespertar. Os mdicos costumavam dizer que as sensaes provocadas pelosono eram muitas e algumas delas ainda no totalmente conhecidas, logo, tinhaque ficar calmo e racionalmente esperar pelos acontecimentos.

    Segundos depois, ingressaram no quarto Elvira e meus dois filhos, Pedro e MarcoAurlio, este ltimo acompanhado de minha nora, Cntia. Todos estavampreocupados e at certo ponto angustiados.

    Pedro segurou a mo daquele corpo que estava na cama, sentou-se na beirada echorou. Elvira sacudia meu outro filho e perguntava-lhe porque aquilo tudo estavaacontecendo to cedo e justamente quando nossa situao financeira era amelhor possvel. Eu tambm achei que seria um desperdcio algum morrernaquela oportunidade e compartilhei do seu sofrimento. Quando me voltei para omeu lado esquerdo, percebi que minha nora vasculhava os bolsos do meu palete de minha cala. Procurava alguma coisa que eu jamais poderia adivinhar o quefosse. Ela retornou para Elvira e disse que no tinha encontrado nenhuma receitamdica e nem qualquer outro elemento que pudesse indicar alguma consulta. Eles

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    estavam achando que eu escondia alguma doena. Bobagem pensei. Semprefui muito forte e saudvel e nada iria ser descoberto nos meus bolsos queindicasse o contrrio.

    Enquanto isso, a janela fora aberta e a luz nebulosa do dia ingressara no aposentoiluminando tudo. Olhei mais uma vez e novamente fitei aquele corpo sobre acama. Era eu mesmo que ali estava como se o tempo tivesse parado no exatoinstante em que coloquei as mos na nuca para sossegar a minha preguia.Elvira deixou o quarto em prantos e meu filho Pedro continuava na beirada dacama, cabisbaixo e choroso. Cntia abraou Marco Aurlio e levou-o para outrocmodo.Quis seguir minha esposa mas no conseguia sair de perto do leito. Uma forteatrao era exercida sobre mim por aquele corpo glido e estendido. Forcei umdesligamento e foi em vo.

    Olhei fixamente para o meu prprio corpo e vislumbrei vrios pequenos fios, bemfinos, escuros e porosos, saindo de vrios locais e fazendo inmeras pontes comaquela massa inerte sobre a cama. Eram muitos. Sentia-me preso por tais fiaposde imaginao, porque o sonho me impunha essa sensao. Quando me virava,dando uma volta completa em torno do meu corpo, esses fios acompanhavam omovimento e no me deixavam por um s segundo.

    Estava ainda contando esses liames estranhos quando minha sogra entrou noquarto. Ela vinha com um tero nas mos e comeou a proferir em voz alta vriaspreces, sem parar nem mesmo para respirar. Era seu hbito estar presente em

    todos os velrios de amigos nossos, rezando aquele enfadonho rosrio.Aborrecido e incomodado, tentei uma vez mais deixar o quarto e fui novamenteimpedido pelas correntes que me jungiam quele corpo.

    Pedro saiu e somente Hilda ficou ali comigo, orando incessantemente para o meudesespero. Dirigi-me at a poltrona bergre onde estavam minhas roupas e sentei.Notei que conseguia uma movimentao em torno do corpo deitado e afastava-medele no mximo dois ou trs metros. Mas foi o suficiente para que eu mecolocasse um pouco mais distante daquela carpideira irritante. Quando ela noestava dando conselhos a todos em minha casa, especialmente a mim, estavarezando. Fora isso, at que gostava de minha sogra. Tnhamos muitos pontos em

    comum, apesar de naquele momento no conseguir lembrar de nenhumpara mencionar como exemplo, porm, estava convicto de que existiam. Lembrei-me do dia em que Elvira, com muito tato, comeou um longo processo deconvencimento para que aceitasse a presena de sua me em nossa casa. Adesculpa era sempre a mesma, salientando que a idade estava chegando e queHilda no era mais auto-suficiente, especialmente por ter ficado viva. Ora, minhame enlutou-se e no ficara invlida. Mas Elvira argumentava tanto que termineicedendo e foi um desastre. Bem feito para mim sempre disse , pois era umdesastre previsvel. Quando eu indagava porque os outros filhos de Hilda no aajudavam, a resposta tambm era possvel de ser prevista: cabia a ela, como filhamais velha, essa tarefa de cuidar da me na velhice.

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    Nossa casa era grande e ajardinada, erguida criteriosamente sobre um folgadoterreno de 600 m2, situado em regio nobre de So Paulo. Fizemos um sobrado

    em linhas retas, com paredes externas brancas, amplas janelas e portas de ferroretorcido pintadas em tom ocre. Ao redor da edificao estava o jardim e nosfundos a piscina, emoldurada por caminhos de pedra envoltos por grama bemaparada e verdejante. Pequenos tufos de flores nos cantos davam-lhe especialtoque de graa. Havamos escolhido todas as peas da nossa residncia, desde omais simples banco no jardim at o mais caro quadro que arrematvamos emleiles. A construo levou algum tempo e foi um verdadeiro transtorno. Consumiumuito dinheiro tambm. Ficamos algunsanos morando em um apartamento, empilhados e irritados, mas nos samos bem.Sempre fomos muito unidos e eu vivia para minha famlia com exclusividade. Onosso sonho era o erguimento de uma casa com o nosso jeito e que fosse o

    espelho fiel de nossos ideais. Mais cedo do que esperava, minha empresa teveuma oportunidade mpar no mercado e ascendi posio financeira que almejeidesde pequeno. Tudo para mim era centralizado na capacidade de enriquecer,afinal, era por essa via que o homem podia impor-se aos outros, de forma pacficae ordeira, tornando-se um membro da elite em sua comunidade. Nunca meconsiderei ambicioso em excesso, nem tampouco egosta. Era apenas umparticipante da vida, um co-autor dos captulos da imensa novela que era a nossaexistncia.

    Quando Elvira e eu fomos a uma loja especializada em plantas, acabamosescolhendo mais mudas do que nosso jardim podia comportar e, apesar disso,

    compramos todas. Fizemos questo de acompanhar pessoalmente a entrega e odescarregamento das dlias, lrios, amarlis, narcisos, slvias e antrios,cuidadosamente transportados para enfeitar nossos sonhos.

    Concretizvamos um ideal acalentado por muitos anos. Depois de utilizarmosaquelas que o paisagista indicou, jogamos as demais mudas fora, pois j estavammurchas e mortas de tanto esperar o momento de fazerem parte de nossas vidas.Alguns amigos nos acusaram, na poca, de desperdcio. Jamais anu a essaargumentao, que considerava ataque de inveja por parte daqueles que noaceitavam o nosso triunfo. Se o dinheiro era meu, poderia us-lo como quisesse,mesmo comprando plantas e mudas para jogar fora. Afinal, ganhara

    honestamente. Meus filhos estudavam em excelentes escolas e davam-se com anata da sociedade. Mesmo surrado esse argumento, Elvira e eu, que notivramos essa oportunidade quando jovens, quisemos dar-lhes tudo aquilo queestava ao nosso alcance para torn-los pessoas de bem, felizes e satisfeitas porterem tido a sorte de nos ter como pais. A pobreza era dura e rspida. Acredito quenunca perdoei meu pai por ter sido to pobre. Sofri muito durante a minha infnciae passei por vrias privaes. Naquela ocasio, costumava dizer ao padreque nos visitava que todos os meus pecados estavam sendo pagos de antemo eque o resto de minha vida seria constitudo somente de prazeres. Riqueza era aminha meta para atingir esse estado de tranqilidade. Ainda jovem, confesso,temia um pouco essa histria de enriquecer e depois ir para o inferno quando a

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    morte chegasse. Mas o sacerdote pacificou-me o esprito, dizendo que somenteos desonestos vo para o martrio eterno. Se o papa era rico, eu tambm poderiaser, com segurana de salvao aps o desenlace.

    Elvira casou-se jovem comigo e logo tivemos o primeiro filho, Marco Aurlio. Eleconsorciou-se, tambm cedo, com Cntia, filha de um industrial de nosso crculode relacionamentos. J tnhamos um neto, nascido de certa forma prematuro.Aprovamos o casamento assim que vimos a conta bancria de seus futurossogros e jamais tivemos problemas de conscincia por causa disso, pois elesdiziam que se gostavam de verdade.Nada melhor do que um matrimnio com amor e dinheiro. S tivemos problemascom o mais novo de nossos dois filhos. Pedro era meio avesso ao conforto eparecia ter nascido para tornar-se monge budista. Tudo para ele tinha que sernatural e simples. No gostava de diverses caras e apreciava a natureza.

    Sempre foi um menino bom e, apesar de um pouco rebelde, poderia ser triunfadona vida caso no fosse to teimoso. Marco Aurlio ajudava-me na empresa herdara o meu esprito empreendedor e Elvira cuidava de nossa casa comesmero e capricho. Recebamos muitos convidados para jantares ao longo dasemana, pois meus negcios sempre exigiram intensa atividade social.

    Ela era uma esposa exemplar e a todos encantava. Admito que meus amigosinvejavam-me a famlia que tinha e minha slida posio na sociedade. Mas fizerapor merecer, pois tinha capacidade e tino para os negcios. Na vida, fracassaquem incompetente, era o meu lema. O que me aborrecia, no entanto, era osdiscursos de tendncia duvidosa de meu caula ao longo dos jantares de famlia

    nico momento em que conseguia privar do contato com os meus. Desfilava elebelssimos argumentos tericos sobre igualdade social entre todos e a respeito dodever moral que cada ser humano possui de auxiliar os desvalidos. Em quepesasse o meu esforo em demonstrar-lhe que a teoria serve para oslivros e as teses acadmicas, mas que a realidade era completamente diferente, omenino era recalcitrante. s vezes, ele apelava para argumentos teolgicos esustentava a mesma e cansativa verso de alguns padres reacionrios de que acaridade era essencial e dar aos necessitados era o mesmo que dar a Deus.

    Nunca tive formao religiosa, porque meus pais alm de pobres eram ignorantese a religio sempre foi um privilgio dos bons colgios para famlias ricas. Os

    pouco favorecidos da minha cidade interiorana mal conseguiam a alfabetizao,quanto mais conhecer e participar de discusses vazias como essas a respeito deDeus e Seus mandamentos. Portanto, quando Pedro elencava seus motivostericos para ajudar o semelhante eu recomendava-lhe que pegasse suas coisase fosse morar um dia, ao menos, em uma favela. Se assim fizesse, esqueceriaessa histria de caridade num segundo. Ele nunca aceitou meu desafio, masirritava-se profundamente com minhas palavras e acusava-me de ser materialistae insensvel.

    Nada poderia, entretanto, ser mais aborrecido do que a conversa de meu irmoJofre sobre espiritismo. Creio que era pior do que o iderio catlico de meu filho

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    Pedro que, apesar disso, prestava ateno nas teses do tio. Alm da prtica dacaridade, eles, os espritas, recomendavam ateno com a tal de reencarnao o maiornon sense que eu j ouvira na vida. Parecia-me tema de filme de segunda

    classe dizer que os seres humanos voltariam outras vezes a este planeta paraexpiar os seus erros. Quando ele tocava nesse assunto, eu discutia com fervor equase o expulsava de minha casa. Inadmitia essa teoria em sua totalidade.Morreu, acabou. Nada mais razovel que isso. Ento um poderoso governante,que comandou bandos de ignorantes, iria voltar um dia, no futuro, aps o seudesenlace, para ser governado por algum menos capaz? Isso era lgico?Evidentemente que no. Por isso, rejeitava essas teses infundadas e nunca mepreocupei em pensar na morte como um acontecimento prximo de mim. Deixariapara nela falar quando estivesse velho, com mais de oitenta.

    Mas, recordo-me do dia em que organizamos a festa de inaugurao de nossa

    nova casa. Todos estvamos reunidos em torno da piscina e eu fiz questoabsoluta que estivssemos a rigor. Os convidados chegavam em grande nmerorecebidos por Elvira, soberba em seu vestido de tafet vermelho, especialmenteimportado para a ocasio. Levemente rodado, sem mangas, o corpo do vestidocontornava delicadamente os seis, deixando as costas e o colo de fora, tal comoeu apreciava. Ela estava divina desfilando com seu bordado de canutilhos,miangas e strass do mesmo tom, porm em pequena quantidade, o suficientepara lhe conferir um brilho leve e elegante. Uma graciosa echarpe de chiffon,tambm vermelha, acomodava-se harmoniosamente em volta de seu pescoofazendo par inigualvel com o tom dos rubis de seus brincos. Senti-me, naquelemomento, o homem mais feliz do mundo, realizado e confiante. Meus filhos

    usavam black tie pela primeira vez e desfilavam pela casa com lindas namoradas.

    Essa era a vida que sonhara dar minha famlia. No dia da festa, atingira meuobjetivo e dali em diante a vida estava ganha pensava. Subitamente, enquantopreenchia o meu tempo com essas recordaes to aprazveis, ingressou noquarto o nosso mdico particular. Examinou o pulso daquele corpo e, voltando-seao meu filho Marco Aurlio, disse taxativamente que eu estava morto. Meuspensamentos pararam no tempo por alguns instantes e confesso ter sentido oabalo.

    Estremecido, busquei logo uma explicao racional para aquela sensao

    desconfortvel e encontrei a mesma que antes adotara. O sonho que vivenciavatornara-se um pesadelo e tudo fazia para aborrecer-me profundamente. Quandoacordasse, Elvira jamais iria crer em tudo isso. Tinha, no entanto, uma sriapreocupao: ser que conseguiria lembrar com detalhes daquilo tudo?Normalmente, a gente esquece os sonhos e mesmo os pesadelos no voltam mente com tanta mincia achei. Seria muito importante contar aquela minhavivncia sem esquecer de nada. Talvez pudesse at escrever para uma revistamdica contando-lhes essas passagens peculiares e receber uma especialmeno em face da minha coragem e por essa contribuio cientfica. Quem sabeat auxiliar na descoberta de algum tipo de remdio que impedisse esses terrveispesadelos. Afinal eu era um autntico adepto do cientismo.

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    Novamente acalmei-me. Desconfiado ainda estava e comecei a olhar para asminhas mos, tentando constatar se elas mudavam de cor ou de aspecto. A morte

    trazia, segundo os livros, uma tonalidade plida e macilenta. No detecteinenhuma alterao, apesar de ter verificado que aquele corpo sobre a camaestava, de fato, macerado j que o mdico diagnosticara-lhe a morte. No era omeu caso, no entanto. Continuava com excelente aspecto.

    Lembrei-me da ocasio em que tinha ido ao enterro de um estimado cliente, umapessoa que alm dos negcios que juntos fazamos fora meu amigo. Ele estavano caixo, volteado de flores e jazia inerte sob olhares curiosos que oespreitavam. Velas enormes foram colocadas nos quatro pontos que formavamum retngulo ao redor do esquife e, quando acesas, serviam para iluminar aindamais o claro ambiente j servido por lmpadas fluorescentes. Aqueles crios

    pareciam ter a exclusiva funo de tornar lgubre e tristonho o ambiente.Semblantes funestos dos parentes e amigos prevaleciam e coroas de flores noparavam de chegar. Minha empresa patrocinou a mais bela de todas, comorqudeas e crisntemos gigantes, num arranjo invulgar e carssimo. Orgulhei-medo bom gosto de Elvira ao providenciar essa verdadeira pea de arte para ostentara todos a amizade que nutramos pelo falecido. Os dizeres contidos na coroa erambelos e poticos, chegando a emocionar quem os lesse. Tivesse sido escolhidapela minha secretria e ela iria merecer um aumento pensei. Os presentescumprimentaram-me pela gentileza e mostra de carinho.

    Alguns at solicitaram-me o endereo da floricultura que providenciara to

    elegante ornamento fnebre, mas no pude atend-los pois fora minha esposa aautora da faanha. As velas brilhavam no recinto e exalavam um cheiro tpico decmaras morturias, que s era aplacado pela emanao agradvel das flores quesuperavam em nmero e esplendor. Quando o padre fez um discurso salientandoas qualidades e virtudes inigualveis do defunto, realmente chorei, especialmentetocado. Entretanto, aps alguns segundos de lgrimas furtivas, notei que aspalavras do sacerdote estavam sendo muito prdigas e que ele no tinha sito toespecialassim. Elvira, que quela altura j havia chegado, postou-se ao meu ladoe apertou-me fortemente o brao tambm emocionada. Constatei um pouco deexagero no discurso sacerdotal, porm percebi que era exatamente aquilo que osfamiliares e amigos desejavam ouvir.

    A cerimnia fnebre era um acontecimento caracterstico e chegava, no meuentender, a ser elegante. As pessoas estavam sobriamente vestidas, haviasempre muitos ornamentos no local e a fraternidade, ao menos aparente,imperava entre todos. E o que era melhor: mantinha-se o respeito memriadaquele que partiu, mesmo que ele no fosse assim to querido. Eu,particularmente, apreciava esse perdo pstumo que os defuntos recebiam.Enterros e velrios me eram tocantes, desde que logicamente no fosse depessoa de minha famlia ou, em ltima anlise, o meu.

    Acordei de meus pensamentos quando vi aproximaram-se do leito dois homens

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    troncudos e vestidos de branco carregando com eles uma maca. Colocaram asmos por baixo do corpo e deram um s impulso, que foi suficiente para transferi-lo da cama para aquele leito suspenso. Abalei-me pois senti um tranco

    generalizado em meu prprio corpo.

    Quando os enfermeiros afastaram-se do quarto carregando a minha imagemestampada naquela massa inerte, os fios aos quais j me referi esticaram-se e,como se estivessemarrancando fora minha alma, arrastaram-me com eles pela casa afora. O meudesejo de sair do quarto finalmente foi atendido, embora eu no conseguissedeter-me por um minuto sequer nos outros cmodos de minha casa.

    Em segundos estava no interior de um carro fnebre, tristemente constatando queaqueles homens no eram enfermeiros mas funcionrios da funerria. O fato de

    estarem vestidos de branco enganou-me. Pela estreitssima janela do carro viminha casa afastando-se cada vez mais, enquanto percorramos as alamedassofisticadas do meu bairro at perd-la de vista, provocando-me ento uma dorto angustiante quanto aquela que dera incio ao cruel pesadelo que naqueleinstante eu vivenciava.

    Olhei para o corpo ao meu lado e ele estava plido e sem brilho, exatamentecomo os cadveres que via em velrios e enterros. Tentei imaginar porque estavasendo obrigado a sonhar coisas to horripilantes, justamente ligadas morte, daqual sempre tivera enraizada averso. Contava os minutos ansioso, aguardando omomento em que o despertador iria tocar, de fato, e meu tormento estaria

    terminado.

    Minha realidade, naquele momento, cingia-se ao corpo que me acompanhava e aum pequeno universo de dois ou trs metros ao seu redor. Estava literalmentepreso ao cadver e horrorizava-me a hiptese de ficar muito tempo naquelasituao. Resolvi pensar em outras coisas, mais aprazveis e menosdesgastantes. Elvira sempre fora uma boa companheira e acho que me caseiapaixonado, embora o seu doto fosse algo bastante incentivador. No era muito,mas o suficiente para que impulsionasse a minha pequena empresa, queletempo firmando-se no mercado. Gostaria, bem verdade, de ter-me casado comJlia, a moa mais rica e bela que j conhecera na vida,

    mas sempre fui desprezado. Ela tinha, no entanto, razo de tratar-me daquelemodo, afinal, eu era pobre. Casamentos devem realizar-se dentro da mesmaclasse social, sempre foi o meu pensamento. Por isso, resolvi consorciar-me comElvira. Progredimos a partir de ento juntos e irmanados pelo mesmo ideal deenriquecer o mais breve possvel para dar aos nossos filhos a oportunidade deserem aceitos por boas famlias, superando a rejeio que havia experimentadocom a elegante Jlia.

    L estava eu pensando no passado outra vez. Era um hbito meu passar horasrecordando-me dos bons e maus momentos, como se pudesse algum dia fazer otempo voltar atrs para alterar alguma coisa. Enquanto surpreendia-me em

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    divagaes, o carro fnebre continuava o seu trajeto e passava tranqilamentedentre vrios automveis pelas ruas e avenidas de So Paulo. Olhei pela apertada

    janela do veculo que me conduzia e ao meu lado parou um belo conversvel

    conduzido por um rapaz de seus vinte anos.

    O moo tinha uma linda companhia, tal como era Jlia nos meus tempos decolgio.Lembrei-me de t-la abordado vrias vezes, mas sempre fora rejeitado porque notinha automvel. Naquele tempo no era comum e somente os ricos possuamveculo particular. Mas ela no se importava com meus atributos pessoais, queriamesmo um carro para andar, talvez como estivesse fazendo a formosaacompanhante que acabara de ver. Comecei a imaginar h quanto tempo aquelerapaz ganhara o seu veculo e se o seu pai seria rico. Conclu, por minha conta,que deveria ter sido o seu presente de dcimo oitavo aniversrio e o genitor por

    certo tinha posses.

    Alis, admito que projetei no moo aquilo que um dia desejei para mim, ou seja,que meu pai me tivesse presenteado dessa forma e na mesma ocasio natalcia.Frustrado por no ter sido assim comigo, pretendia dar ao meu filho a alegria dedesfilar pelas ruas com um potente e vistoso carro esporte. Certamente nohaveria alegria maior na vida do que isso ! arrematava convicto. Mas quandomeus dois filhos fizeram dezoito anos, no cumpri o que idealizara a vida toda,talvez por achar desperdcio entregar um carssimo veculo nas mos de uminsensato rapaz. Ambos protestaram e criticaram a minha atitude, porque eu lhesprometera desde cedo esse tipo de presente. Indiferente, mantive a minha

    postura de ceder-lhes o meu prprio automvel quando desejassem impressionaralguma moa.

    De repente, o carro ao meu lado arrancou e a moa ainda olhou com pena paramim. Ela viu que se tratava de um carro fnebre e deve ter imaginado que euestaria morto. Estava certa, pois faria o mesmo se me deparasse com um defuntoto prximo. Voltei a considerar estranho aquele meu sonho, que estavaprolongado demais. Meu nico consolo era estar vivendo uma experincia inditaque poderia preparar-me para o futuro; afinal aduzi , todos iriam morrer umdia.

    Detivemo-nos em outro ponto do trnsito paulistano e ao meu lado parou um txi.No seu interior encontrava-se uma senhora de bastante idade, amparada por um

    jovem de seus quinze anos. Imaginei tratar-se de um neto literalmente carregandosua av ao mdico. O motorista da conduo nem olhava para trs e pareciadesprezar por completo a velha. Causou-me uma certa repulsa aquela situaoque presenciava, pois representou-me que ningum dava ateno idosa mulher.O tempo era implacvel com as pessoas pensei e infeliz daquele que ficassevelho sem ter condies financeiras para suportar os seus caprichos. A pobresenhora deveria estar sozinha e dependente da boa vontade de um menino quetinha a vida toda pela frente, no querendo por certo cuidar da av; por essemotivo, fazia-lhe um favor e nem o motorista do txi soubera compreender isso.

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    Tornar-me-ia um velho somtico e insuportvel resolvi. Pelo menos quando aspessoas falassem mal de mim estariam com a razo. Se eu fosse muito bondoso

    e prdigo, ficaria sem um tosto e seria desprezado. No fundo, odiava a idia deenvelhecer e nem me passava pela cabea morrer, apesar de saber inevitveisambas as situaes. Seguamos mais rpido quela altura do caminho.Provavelmente o motorista do carro fnebre lembrara-se do seu atraso e, paraevitar uma chamada do patro, andou clere.

    Chegamos, assim, em poucos minutos a um local estranho, cuja porta de entradaera um grande porto de ferro que dava diretamente na via pblica. No havialetreiro de identificao, nem qualquer outro ponto de referncia; somente umprdio branco e gasto, parecendo ruir, recebera-nos. O veculo fez uma manobra eestacionou. Vieram alguns homens de dentro do prdio e abriram a porta de trs.

    Transportaram o corpo para uma das salas e, no caminho, contavam piadas arespeito de velrios. Todos riam entusiasmados. Aquilo, confesso, chocou-me.Mesmo que no tivesse relao comigo ou com a perda de algum parente, acheique eles deveriam ter mais respeito com o defunto. Irritei-me, pela primeira vez,com maior intensidade.

    Os fios aos quais me referi anteriormente esticavam toda vez que aquele corpoafastava-se mais de trs metros, aproximadamente, e eu era arrastado para juntodele. Novamente, exasperei-me. Parecia uma assombrao jogada de um ladopara o outro, sem rumo e confusa. Fosse aquela a sensao que a mortecausasse deduzi e jamais iria pensar nisso quando acordasse.

    Trancafiado numa sala escura, ali permaneci por um bom perodo de tempo. Nohavia nenhum ponto de luz no local e a angstia tomou conta de mim. Acreditavaestar irrespirvel pois faltavam suficientes entradas de ar. Subitamente, quando jno sabia em que pensar, ouvi uma voz... Era um tom sinistro, parecendo irnico,que cantarolava a marcha fnebre em descompasso. Causou-me espanto. Olheipara os lados e nada enxergava. Incessantemente continuava a balada soturna.Apesar de vivenciar um pesadelo, deu-me vontade de fazer algumas perguntas eno me contive. Indaguei em altos brados:

    Quem est cantando essa melodia irritante? Responda quem est a!

    comandei com autoridade inquestionvel.

    No bastasse a cano, ouvi tambm risos.

    Se forem os grosseiros carregadores que h pouco vi, peo-lhes que paremessa brincadeira estpida. No considero nem um pouco engraado... Insistiam asrisadas e tambm a marchinha desprezvel, que quela altura era tambmassobiada.

    Covardes! Se isto no fosse um maldito sonho, iria queixar-me ao seu patro.

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    O ateu mundano est acordando de sua catalepsia... Vejam! Ele est furioso econtinua a dez alnas (antiga medida de comprimento, de trs palmos) de seuprprio corpo, sem perceber que morreu. Ei, velhote, sois digno de pena!

    agrediu-me subitamente uma voz na escurido.

    Quem fala? No o conheo, portanto, mostre-se! Como se atreve a invadir-me aprivacidade e atormentar-me em meu sono? V para o diabo! vociferei convictode fazer cessar aquela provocao.

    Tendes o particular hbito de dar ordens, no ? Pobre de vs, o morto! Emmim no mandais. Canto o que quiser e quando me aprouver. H anos sou donodo meu caminho e ningum ir ditar-me como agir.

    Diga-me ao menos quem voc e por que est me aborrecendo...

    No vos interessa o meu nome. Chamai-me de ningum, ou melhor, prefiro queme chameis de guardio. Gostais?

    Guardio do qu? Confesso no entender. O que pretende guardar, este quartoescuro? (risos) forcei um humor que no era verdadeiro.

    Estais rindo de mim ou de vs? A vossa situao dramtica, no percebestes?Sois o motivo direto de minhas risadas, pois gosto de divertir-me em cmarasmorturias como esta. Aqui passo grande parte do meu tempo, especialmentepara encontrar vtimas como vs para achacar.

    No acredito que perco o meu tempo conversando com uma criatura fruto daminha imaginao... disse agastado.

    Quanto tempo necessitareis para perceber que estais morto, criatura!Entendeis o que vos digo? Falo a vossa lngua, apesar que em forma arcaica.Esquecestes as lies de gramtica e por isso no estais entendendo amensagem? (gargalhada)

    Deixe de asneiras! Voc acha que esperto o suficiente para confundir-me?Morto?! Aparea minha frente que lhe mostrarei quem est morto.

    Problema vosso, no meu! Divirto-me custa de ignorantes como vs. Esperoque aprecieis o conforto proporcionado por esta funerria. uma das melhores dacidade. Vossa famlia gostava mesmo de vs, pois vai gastar um bom dinheirosomente para enterrar-vos (risos). Ah, em breve viro maquiar-vos, espero quevos sintais vontade! At breve, desconhecido, vou continuar meu trajeto.

    Felizmente considerei aquele tormento cessou e voltei escuridosilenciosa, bem mais gratificante. Entretanto, aps algum tempo, aquelas palavras

    jocosas comearam a perturbar-me. Por um momento, passou-me pela cabea aidia de poder estar de fato morto.

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    E se assim fosse o que iria fazer? Como sairia daquela situao? Seria ridculoenfrentar to cedo a morte, pois no acreditava em Deus a no ser para

    contentar o padreco de minha cidade natal nem tampouco em vida aps amorte. Talvez com a idade avanada, pudesse comear a pensar no assunto eachasse alguma soluo para o impasse, mas no com quarenta e poucos anos.O mais razovel, no entanto, era manter a hiptese do sonho, oumelhor, do pesadelo. De repente, iria acordar e constatar o dilema imaginrio queenfrentara. Seria uma hilria situao para contar aos amigos repetia paraconvencer-me. Uma coisa aborrecia-me, realmente. Eu j estava saturado desonhar. Queria voltar logo ao convvio familiar e, quando isso ocorresse, iria evitarde dormir pelo mximo de tempo que conseguisse, somente para evitar aquelahorrvel sensao outra vez. Como poderia despertar? pensei. Talvez se meconcentrasse e colocasse todas as minhas foras nisso poderia provocar a

    atividade cerebral que, ento, acionaria o sistema nervoso e pronto! Estariaacordado! Assim fiz. No sei quanto tempo perdi martirizando-me sem nadaconseguir. Aquele estado cenestsico que atingira deixava-me confuso e semrumo. Voltei s minhas recordaes.

    Lembrei-me do dia em que um de meus filhos voltou da escola e desejou falarcomigo. Queria saber o que era uma relao sexual, termo que ouvira naquelemesmo dia na sala de aula. Orgulhoso de ter sido procurado para prestar taisimportantes esclarecimentos que somente um pai pode fazer, narrei-lhe tudo oque sabia e no era pouco. Pedro, com doze ou treze anos na poca, ouviu-meatento. Quando findei minha exposio, ele argiu-me sobre o meu casamento

    com Elvira, desejando saber se ns mantnhamos relaessexuais. Respondi-lheque sim. O menino, esperto, no tardou a indagar-me se era s com sua me queas mantinha. Tentei ser verdadeiro, do mesmo modo que meu fora comigo, razopela qual admiti que no. Um homem expliquei tinha o direito e anecessidade de ter outras namoradas, alm daquela que lhe ocupasse o principalposto na vida. No era desonra alguma para Elvira que eu tivesse outrosrelacionamentos fora do casamento disse-lhe e ele iria fazer o mesmoquando se casasse. Minha sinceridade espelhava o senso comum de meusamigos e de alguns familiares. Em minha posio social, um homem jamaisevitaria conhecer outras mulheres, pois isso lhe conferia um certo prestgio elogicamente status. Nem bem terminei a minha exposio e notei no jovem uma

    feio transtornada, esboando um ar de repulsa. Indaguei-lhe se havia bemcompreendido minhas palavras, mas Pedro dirigiu-me a mim chorando e retorquiu

    jamais acreditar que seu prprio pai fosse um adltero. Exatamente esse foi otermo que usou e o qual nunca mais esqueci.

    Fiquei abalado, pois j tinha mantido a mesma conversa com Marco Aurlio que,extasiado, ainda obrigou-me a fobar sobre o assunto. Narrara-lhe minhas vriasaventuras e o garoto ficara orgulhoso. Entretanto, o caula olhou-me comdesprezo e repugnncia. No sabia o que lhe dizer quando Pedro fez-me prometernunca mais dizer isso com satisfao para ningum. Jurou no contar a

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    Elvira aquela minha confisso, mas ameaou faz-lo caso percebesse que euestivesse prevaricando fora de casa. Aquiesci e mudei rapidamente de assunto.

    bvio que continuei a agir como fazia antes, mas procurei ser mais cautelosoporque alm de minha esposa tinha tambm a fiscalizao do meu caula.Contava somente com Marco Aurlio para acobertar-me as furtivas escapadasextra-conjugais. E ele o fazia com prazer. Pobre Cntia pensei , devia estarna mesma situao de Elvira e nem ao menos desconfiava. Provavelmente oculpado dessa atitude de meu primognito seria eu, em face dos conselhos quelhe dera ao longo da infncia e adolescncia. Interrompeu-me as idias a aberturaabrupta da porta e o acender das luzes. Entrou uma mulher de idade avanadatrajando um conjunto de saia e blusa, confeccionado em pano barato na cor preta,sem nenhum detalhe que pudesse conferir-lhe algum toque de graa. Ela usavatanta maquiagem que achei estar num circo e no num morgue. quela altura j

    havia percebido que meu sonho desenrolava-se na funerria, pois o coadjuvanteda minha imaginao, chamado guardio, informara-me, alm do que o veculoque transportou o corpo s poderia ter ido para um lugar assim. Quando a figuraextica aproximou-se, colocou sua enorme bolsa, tambm preta talvez paraornar com suas roupas vulgares em cima da barriga do glido e plido cadver.Fazia-me sentir asco, tamanho era o desrespeito. Impassvel, a vetusta retirouinmeros potes e potinhos, abriu-os e espalhou-os sobre o trax do humilhadodefunto. Por horas a fio, sem demonstrar qualquer emoo, maquiou o morto. Defato, sua aparncia melhorou bastante e ele parecia mais bem disposto que aprpria artista.

    Quando terminou o seu trabalho, olhei fixamente para o corpo e percebi que eraexatamente como eu. Conclu, sem chance de errar, que quando morresse ficariamais ou menos daquele jeito. A mulher, ento, guardou seus apetrechos ecacografou num papel algumas frases ininteligveis, colocando no bolso do ternoque havia sido vestido no cadver. Minha curiosidade aguou. O que teria aquelasinistra figura escrito? Seria uma mensagem para os anjos? caoei. Noconsegui pegar o tal bilhete porque minha mo varava pela roupa sem lograralcan-lo. Era terrvel sonhar.

    Conformei-me em no desvendar o mistrio e continuei a refletir sobre meupassado a nica coisa que me dava prazer naqueles difceis momentos.

    No poderia jamais esquecer do dia em que fui chamado pelo gerente de vendas,bastante irritado com um grupo de pessoas que insistia em falar comigo. Paraevitar tumulto dentro da empresa, resolvi receb-lo. Eram voluntrios de umacampanha de arrecadao de fundos para o erguimento de um orfanato no meubairro. Diziam-me da necessidade em ajudar a obra, pois a empresa situava-se namesma regio e estaria, com isso, auxiliando a comunidade beneficamente.

    Alegavam que a instituio tinha por finalidade amparar a criana carente e sempais. Enfim, sugeriram uma determinada quantia que, a princpio,

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    achei elevada. Depois dos fartos argumentos que eles levantaram, julguei seroportuno desfilar-lhes os meus, contando-lhes por horas a fio como comeceiminha carreira, vindo do nada, at atingir a posio de sucesso que podiam

    constatar. O grupo ouviu-me com pacincia, certamente para receber a minhadoao acreditei. Fina a minha exposio, repleta de auto-elogios minhapessoa, dei-lhes metade do que haviam solicitado e prometi-lhes que,futuramente, daria o restante. Aguardaria, no entanto, a obra estar pronta paravoltar a falar no assunto. Quando os voluntrios, agradecidos, saram, chamei osmeus funcionrios e, orgulhosamente, narrei-lhes o meu ato benemrito commincias.Todos me aplaudiram o gesto e consideraram-me uma pessoa sensvel ecaridosa. Foi um bom dia em minha vida, pois tinha sido aclamado por estranhos epor meu prprio pessoal, alm de ter feito uma doao caritativa que me acalentoua conscincia por longo perodo. A partir daquele dia resolvi praticar a caridade

    uma vez ou outra para sentir a aprazvel sensao de dever cumprido. Quem sabeno ganharia algum ttulo comunitrio? conjeturei. Ao chegar em casa, contei minha famlia o meu gesto e outros elogios colhi.

    Bons sonhos devo ter tido naquela noite, bem diferentes desse que estava aatormentar-me. No sei quanto tempo passara quando a porta abriu-se outra veze aqueles homens atrevidos voltaram para pegar o corpo. Outras desagradveispiadas foram proferidas. Passando a uma sala contgua, cuja luminosidadecendrada angustiou-me, o cadver foi colocado num belo caixo de mogno se que se pode qualificar assim um esquife todo forrado de veludo roxo com sutisriscos em linha preta e volteado por alas douradas. Possua tambm desenhos e

    gravaes em baixo relevo, dando-lhe um aspecto sofisticado.

    Trancafiado ali dentro, visores de vidro permitiam enxergar o corpo no seu interior,ainda que a tampa fosse colocada. Comearam, em seguida, a despejar inmerasdzias de flores, entre crisntemos brancos e palmas amarelas, em seu interior,buscando cobri-lo completamente. Aproximou-se do atade uma outra mulheridosa, que no era a mesma que fez a maquiagem. Ela comeou a ajeitarcuidadosamente a decorao floral e nem se abalava de estar lidando com umdefunto. Quantas outras vetustas senhoras iriam aproximar-se do atade paraalgumatarefa especial? No haveria outra pessoa quem sabe mais jovem naquela

    funerria que pudesse encarregar-se do preparo do corpo para o velrio? O meuinconformismo era grande, pois no bastassem os homens que contavam piadaso tempo todo, havia uma srie de velhas carrancudas que passavam horas aomeu lado entregues ao trabalho de embelezamento de um morto. Aquela situaocausava-me asco e irritao, pois ningum estava preocupado com a pessoa quefaleceu. Todos queriam cumprir logo suas tarefas para estarem livres. No havia omenor respeito naquele local conclu. Fazia tempo que no via um nico sorrisode quem quer que fosse. Era um pesadelo angustiante porque srio, soturno emal-humorado.

    Pareceram-me passar somente uns poucos minutos mas acredito que foi muito

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    mais at que as pessoas comeassem a chegar para o velrio. Primeiramenteentraram no recinto os meus familiares, todos cabisbaixos e chorosos, lideradospor Elvira, vestida de preto mas com muito bom gosto, num belssimo tailleurde

    linho e amparada por minha sogra. Fiquei, por um timo, feliz e orgulhoso antea elegante apresentao dos meus. Entretanto, amargurei-me em seguida por noestar com eles desfilando por aquele acontecimento social. Via figurasextremamente idosas e estticas, apoiadas em bengalas, no local e imaginavaque jamais poderia ser o meu velrio pois eu era muito novo paramorrer, especialmente comparando queles vetustos convidados.

    Postei-me altivo ao lado de Elvira e ali fiquei em posio de sentido. Todos que seaproximavam davam-lhe condolncias e lembravam o quanto eu fora bom ecaridoso, alm de ter deixado imensurvel saudade em todos os que me amavam.Seria assim quando, de fato, eu morresse? pensei. Nada mal para algum que

    era um pobre coitado na infncia e conquistara seu lugar na sociedade com muitotrabalho e dedicao. Mas jamais fui ignorante; apenas no tive formao em nvelsuperior. Para compensar, costumava ler muito, especialmente bons livros Machado de Assis era minha preferncia alm de jornais e revistas.Considerava-me culto e bem informado, podendo manter conversao comqualquer pessoa. Estavam certos aqueles que sentiam a minha falta. Se eutivesse morrido, realmente iria deixar muita saudade e no era arrogncia deminha parte ratificar aqueles espontneos cumprimentos a Elvira; apenas deixei parte a modstia, reconhecendo a verdade.

    Formou-se de repente uma fila de funcionrios da minha empresa, que parecia

    no ter fim, e meus filhos comentaram um com o outro como eu era estimadopelos empregados. Minha nora, corroborando essas consideraes, lembrou-lhesquantas coroas de flores haviam chegado. Eram mais de trinta exultava eportanto um sinal de apreo e afeto. verdade que aproximadamente noventa porcento delas foram enviadas por clientes que ainda no haviam saldado suasdvidas para comigo, mas isso no significava que, alm de credor, eu no lhesrepresentava algum importante e distinto.

    Creio que nenhuma outra cerimnia poderia ter-me tocado tanto, no fosse aqueleacontecimento o meu prprio velrio. Porm, em sonho. Quando chegasse a hora,gostaria que tudo transcorresse exatamente daquela forma sintetizei. A alegria

    durou pouco. Quando resolvi afastar-me de Elvira e dirigi-me ao canto oposto dasala, ouvi vrias conversas que no me trouxeram bem-estar. Em rodas deamigos e de funcionrios, muitos estavam tecendo consideraes agressivas edesairosas a meu respeito. Haviam dito palavras gentis a Elvira mas, por trs,denegriam-me a honra em atitude francamente hostil e descaridosa, afinal, nopodia apresentar qualquer defesa.

    Admito que acompanhar aqueles dilogos speros protagonizados por falastresdesumanos era profundamente irritante. Comecei a desesperar-me sem saber aquem recorrer e o que fazer. Quando caminhava confuso de um lado para o outro

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    da sala, deparei-me novamente com aquela soturna figura que na cmaramorturia me havia surgido.

    E ento, estais convencido agora de que morrestes? No ouvis os vossosestranhos amigos e familiares tecendo to boas consideraes a vosso respeito?

    Cale-se! Isto somente um sonho. Se fosse verdade, eles jamais estariamfalando essas coisas horrveis respondi de pronto.

    Que falaz argumento! Sois realmente um cego para a realidade. Tenho pena devs, pois nunca vi, antes, tamanha recalcitrncia em admitir uma morte. Devereisfazer como eu, desconhecido, reconhecendo logo o vosso atual estado. Assevero-vos: no to ruim quanto pensais.

    E supondo que voc esteja falando a verdade o que vamos admitir, somentepara argumentar, estou morto. Se assim, h quanto tempo voc est vagandoneste morgue lgubre, irritando os que encontra pela frente?

    H anos, suponho! Nem tenho como responder-vos essa questo, mas aconsidero irrelevante, pois o que me confere prazer no digno de contagem detempo. Vs podeis contar os dias e as horas de vossa terrvel situao porque notendes prazer algum no que fazeis. Eu sou diferente! Minha diverso essa queestais vendo...

    Que tolice! Voc um frustrado... um pobre coitado que no sabe para onde ir e

    diz divertir-se nesta funerria imunda. Aposto como nem o seu velrio voc teve asatisfao de acompanhar.

    E para que o faria? Para ver pessoas criticando-me aps a morte? Paraperceber o quanto me aturaram quando vivo eu era e agora descontarem sua iraem cima de minha memria com comentrios grosseiros a meu respeito? Saibaisque j acompanhei centenas de velrios e enterros e em nenhum deles osconvidados souberam manter a compostura. Quando no esto criticando o morto que j no se defende passam a contar piadas oudivagar sobre heranas e legados. A humanidade prfida e suja. Voc muitoamargo, talvez porque no tenha tido uma famlia como a minha. Est parado no

    tempo, cultivando um rancor infinito. Nem o modo de falar voc procurou atualizar.Sua maneira de expresso antiquada e ultrapassada.

    Que grande cultura tendes para corrigir-me os modos dessa forma? Sois umrebolo. A nica vantagem dessa nossa conversa que vs pareceis admitir queno sou apenas fruto da vossa imaginao, como antes o fizestes. Ou estais aconversar convosco mesmo? (risos)

    No perderei meu tempo argumentando com voc. Pouco me interessa de ondeveio ou para onde vai. Prefiro estar ao lado de minha famlia a ter que atur-lo.

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    No pretendo mesmo ficar. Ah, fao-vos um alerta! Cuidado daqui por diante,pois ireis encontrar outros como eu que no vos daro tanta ateno, nemgastaro muita conversa.

    Rapidamente procurei o conforto de Elvira e postei-me, de novo, ao seu lado.Gostava de ouvir as belas palavras de condolncias que lhe eram dirigidas pelosconvivas. Constatei que o tempo passava medida que as velas em volta docaixo eram trocadas com certa periodicidade. Quando minha esposa ficousozinha, aproximou-se dela o meu gerente de vendas, Valter. Sentou-se numacadeira ao lado e pegou-lhe uma das mos.

    Silenciosamente, comeou a afag-la e beij-la. Preocupei-me, pois jamais o virato ntimo de Elvira antes. Achei, no incio, que ele intencionava apoi-la emmomento to difcil, mas no precisava acarinh-la daquele jeito. A cada suave

    deslize de seus dedos pela mo direita da viva, minha ira crescia. Por que elano lhe sustava o afago, retirando-lhe a mo? E se meus filhos vissem aquelacena grotesca? imaginei. Assim permaneceram por muito tempo, o que me fezduvidar da integridade de ambos. Estaria sendo enganado pelos dois? suscitei.Lamentavelmente, no obtive resposta, pois meus filhos voltaram e comearama discutir sobre um outro assunto execrvel: minha herana.

    Marco Aurlio acusava Pedro de ser um fraco, incapaz portanto de conduzir osmeus negcios. O caula atribua ao mais velho os conceitos de desonesto edesleal como eu. Ora, no bastassem as mtuas agresses entre irmos, at omeu nome fora envolvido nisso mais uma vez. Insolentes estavam sendo os

    rapazes conclu. Deveriam respeitar a minha suposta morte e jamais debaterum assunto to suprfluo nesse tipo de cerimnia. Por alguns instantes,contemplei todos os presentes no velrio e no consegui encontrar em nenhumsemblante a imagem do sofrimento e da dor. Estavam tranqilos, emboracansados os que haviam ficado at aquela hora. Nem mesmo minha esposaconseguia manter-se chorosa o tempo todo. Desmistifiquei a imagem que tinha arespeito desse ato de velar um defunto. Imaginei que somente estranhos ficassemalheios dor e tristemente constatava que tambm amigos e familiaresesqueciam-se do morto, preocupando-se com assuntos inconvenientes.

    A situao criada tinha forte apelo de ironia socrtica, pois minhas convices iam

    caindo uma a uma como se toda minha vida fosse um imenso castelo de cartas.No era possvel um sonho to real voltei a pensar. Minhas emoes estavamafloradas e o corao angustiado, somente a razo permanecia turva e abalada.Recusava-me terminantemente a aceitar que havia morrido. Era uma deciso frutodos vrios anos materialistas de minha jornada na Crosta. Se tivesse que sofrerpor causa dessa minha irresignao pensava ainda assim seria um malmenor do que reconhecer o cruel fim proporcionado pela morte.

    Por alguns instantes, fiquei num canto meditando. Quando percebi, havia umamultido de pessoas na sala. No era possvel que vrios convidados tivessemchegado numa frao de segundo sem que tivesse percebido deduzi. Olhei

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    para os presentes e tentei reconhec-los. Somente parte era familiar; a outraintegralmente desconhecida. Buscava uma explicao quando um dos estranhoschegou a mim e indagou:

    Voc parente desse morto?

    O que eu iria responder? Nada mais me era conclusivo e firme. Tente, assim, sersincero.Pode-se dizer que sim.

    Afinal, ou no?

    O que lhe importa saber? redargui.

    No banque o espertinho! Diga-me logo o que faz aqui, pois a primeira vezque o encontro.

    Sou parente do morto arrematei sem muita convico.

    Ento conte-nos alguma coisa engraada ou bizarra a seu respeito.

    Como assim?

    Ora, estamos aqui para dar boas risadas e j que voc conhece o defunto,conte-nos particularidades de sua vida mundana para que ns possamos nos

    divertir.

    Isso um absurdo! Ponha-se daqui para fora gritei colericamente, sem claranoo do que fazia.

    As outras pessoas desconhecidas aproximaram-se e comearam a gargalhar atperder o flego.

    Ele est nervoso, pessoal! Deve ser o prprio que morreu e no sabe. Queidiota eu fui? Parente qual nada. o prprio!

    o prprio, o prprio! berravam todos em coro.

    Estupefato, no sabia o que fazer e tentei agredi-los fisicamente. No consegui,mas minha reao violenta provocou-lhes ainda mais a nsia de ridicularizar-me.Durante horas seguidas, aqueles seres cruis infernizaram-me sem cessar.Enquanto riam e proferiam improprios de toda ordem, comearam a transformar-se e, como se fossem protagonistas de uma pea de terror, viraram criaturasmonstruosas e grotescas bem diferentes dos outros convidados. Pareciam seresno humanos. Assustei-me, de verdade, quando os vi. Eles entreolhavam-sefixamente e continuavam rindo.

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    Quando percebi incuas as minhas reaes, no tive mais qualquer vontade deexpressar meus sentimentos e fiquei silente, porm contrariado. Se aquilo fosseum sonho, quela altura j seria um autntico pesadelo e dos piores de minha

    vida. Para meu conforto, amanhecia e os funcionrios da funerria vieram buscaro caixo para conduzi-lo ao cemitrio. Aqueles seres disformes retiraram-seapressados. Voltei a ter alguns minutos de calma at que houve um tumulto nomomento de fechar o esquife.

    Alguns familiares choravam e outros encenavam a surrada manifestao deinconformismo com a retirada do defunto. Conclu, de imediato, ser uma falsidadegeral, pois haviam passado grande parte da noite conversando animadamente econtando piadas. Alguns discutiam herana e a viva deixava-se afagar por umempregado. Que carinho poderia ainda restar?

    Enfim, eu mesmo j apoiava, indiferente, a retirao do atade, ainda que fossediante das splicas lacrimosas dos presentes. Fechado o caixo e lacrada minhaesperana de logo despertar daquele pesadelo nefasto, o corpo rijo foi lanadodentro do veculo preto, que arrancou dali seguido por imenso cortejo de carros.Eu teria achado magnfica essa cena caso no estivesse por um lado assustado epor outro irado. Partimos todos para o cemitrio. Gostaria de ter ido juntamentecom meus familiares, nos seus luxuosos e velozes veculos, mas restou-menovamente a companhia desagradvel do sarcfago repleto de flores e vusrendados arroxeados. Daquela mesma minscula janela, ficava observando meusfilhos no meu carro, logo atrs de mim. Pedro parecia entristecido e dirigia,enquanto Marco Aurlio, com seu culos escuros adquiridos pessoalmente por

    mim na ltima viagem que fizera a Paris, no deixava os olhos expostospara eu saber se chorava. Estranhei v-lo sorrindo de vez em quando. Elvira, porsua vez, j tinha mudado de roupa. Trajava agora um vestido preto com algunsminsculos detalhes em branco talvez flores ou bolas, mas listras no eram.Estava elegante como sempre.

    Acompanhei-os toda a viagem com um olhar cobioso. Atingimos o nosso destinoem alguns minutos. O trnsito da cidade contribuiu muito, mas honestamente nosaberia dizer qual era o dia da semana quem sabe Domingo, deduzi pelafacilidade de locomoo. Alis, minha vida parecia circundar em torno desse diasemanal e em face disso a sonhar e ainda no havia mudado a data. Talvez fosse

    um fenmeno prprio a esse estado, ou seja, enquanto dormimos o tempo nopassa.

    Admito que fiquei contente em ter encontrado uma tese nova para abonar a minhaansiedade de logo descobrir no estar morto. Antes do enterro, os funcionrios dafunerria levaram o atade para uma capela, onde passou a figurar como o centrode todas as atenes, colocado em posio de destaque, cercado por enormescastiais com velas acesas e apoiado em cavaletes. Na cabeceira da urna foipendurado um imenso crucifixo. Ao redor estavam os convidados conversandoentre si, at serem interrompidos pela prece proferida por um sacerdote

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    desconhecido. Suas palavras no foram to belas e pomposas como aquelas dovelrio de meu cliente.

    Decepcionado, quis afastar-me um pouco para evitar ouvir o sermo mas noconsegui. Os molestos fios seguravam-me junto ao corpo. Jungido a essaangustiante situao de aprisionamento acabei agrimando-me. Se estavaacorrentado ao cadver iria ser com ele enterrado, sem poder libertar-me deduzi. Apavorado, cerquei-me de Elvira abruptamente e ela pareceu sentir aminha presena, pois arrepiou-se toda. Olhou para oslados como se estivesse procurando uma razo para o calafrio que a acolheu desbito, porm no encontrou nenhuma. Achei, por meu turno, que estaria abrigadoao seu lado, mas quando os convidados ergueram o atade para lev-lo cova fuiarrastado pelos corredores do cemitrio como se fosse marionete. Nada afastava-me daquele glido corpo. Conforme nos aproximvamos do buraco que estava

    aberto no cho para engolir de vez o sarcfago, se eu no estivesse sonhandodiria que estava transpirando e com taquicardia. A minha inteno era retirar-medali a qualquer custo antes de baixarem o caixo. No conseguia e isso me gerouum desespero indescritvel. Fiz um esforotenacssimo para desgrudar-me dos fios morfticos do meu pesadelo e foi em vo.

    O esquife comeou a entrar na cova. Todos os presentes davam sinais de adeus,alguns choravam e meus familiares apoiavam-se uns nos outros. O sacerdoteaproximou-se e comeou a despejar uma gua intil em cima do caixo, enquantoa minha perspectiva de viso mudava. Olhava as pessoas de baixo para cima epassava a ver o mundo de dentro para fora da terra. Seria enterrado vivo

    pensei. Logo em seguida, recomposto desse devaneio, acrescentei a mim mesmoser impossvel estar vivendo aquilo, pois em verdade frisei no estava morto.Porm, a horrvel sensao persistia e quando j me sentia vulgarmente a sete

    palmos debaixo da terra no mais via todos os convidados no cemitrio.

    Conseguia vislumbrar somente aqueles mais curiosos que se aproximavam doburaco e dispunham-se a olhar para baixo, talvez querendo ter certeza de que eume encontrava mesmo ali. Inenarrveis foram os momentos que vieram a seguir.

    Sem que esperasse, o coveiro rude e sem instruo, naquele cemitrio,conforme pareceu-me iniciou o soterramento. Fiquei alucinado e ferido em

    meus brios. Como um homem daquele poderia colocar um ponto final naexistncia de um empresrio bem sucedido e conceituado como eu? indaguei-me, j zonzo como se estivesse temulento. Sentia faltar-me horizonte, futuro,esperana. Como era duro ser subterrado daquela forma refleti. Para quemficava devia ser simplesmente um gesto derradeiro de despedida, mas para quemia junto com o corpo era a pior das sensaes. Completamente entibiado, cedi aocansao e prostrei-me.

    No agentava mais lutar contra os fios que me prendiam e fui compelido aacompanhar instante por instante o soterrar daquele cadver.

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    Como poderia descrever a minha impresso quando as ltimas ps de terra foramlanadas sobre o esquife?! Senti-me sozinho, isolado e profundamenteamargurado. Todos me haviam lanado ao abandono. Elvira sara de minha vista,

    provavelmente acompanhada por Valter, o gerente traidor. Por medida desegurana, quando despertasse daquele esdrxulo pesadelo, iria despedi-lo.Meus filhos logo voltariam sua rotina e esqueceriam do pai, do mesmo modoque no mais se lembravam de Nick, o velho pastor alemo que era a adoraoda casa at ser atropelado por um desatento motorista. Enfim, a vida iria continuarpara todos, exceto para mim que estava aprisionado no rarefeito ar de um esquifeescuro, na companhia desgostosa de um corpo a um passo de submeter-se decomposio.

    No tinha mais nenhuma imagem do exterior e fiquei confinado a flores murchas evus rasgados. Sentia-me largado e confuso, afinal j tentara acordar diversas

    vezes e nunca havia conseguido. Como iria fazer para sair dali? pensei. Gritarno adiantaria porque ningum iria ouvir, alm do que tentara isso no velrio e nodeu resultado algum. Onde estaria aquela criatura que me aborreceu na funerria?At mesmo ela seria uma boa companhia para minha completa solido. No sabiamais contar as horas ou os dias e tinha nojo de olhar para o lado, pois sentia queo corpo estava apodrecendo. Assistia tudo inerte, notando a invaso abrupta devrios microorganismos por todo o meu corpo , quela altura glido e solidificado.

    A pele encontrava-se desidratada e uma mancha verde j tomava conta doabdmen e partia para o trax e cabea. Horrorizava-me cada vez que percebiaestar sendo literalmente devorado por aqueles seres quase invisveis.

    Bolhas cheias de lquidos cresciam pelo corpo, principalmente no rosto, pescoo eventre e meus olhos e lngua ficavam procidentes. O mau cheiro que se instalouno buraco era insuportvel. Conseguia senti-lo como se estivesse acordado.Parecia real o que estava vivendo. Isso sem contar a fome, a sede e o frio que meangustiavam. Pouco a pouco desintegravam-se todos os tecidos e o corpo perdiagradativamente a sua forma. No conseguia conformar-me e amaldioei o dia emque nasci, pois preferia jamais vivenciar aquelas sensaes da morte. Germes,insetos e acarianos atuavam continuamente, vitimando o que restava de Afonso, orico e bem-sucedido empresrio que ao longo de anos serviu-me de invlucro.

    Quem era eu quela altura? pensei. No tinha mais identidade. Estavapulverizado. Desalentado, apoiava meu rosto sobre os joelhos e abraava com osbraos as pernas (Nota do autor espiritual: o narrador refere-se naturalmente aoseu corpoespiritual, j que o material estava em decomposio acentuada.).Fiquei como um caramujo, enrolado, arredio, por muito tempo. Quando dava contado que se passava, aterrorizava-me e imaginava por alguns instantes que, semorto eu estivesse mesmo, iria passar toda a eternidade preso naquele buraco.Por que Deus permitiria isso? pergunte-me pela primeira vez. Para responder aessa questo, cobrei-me algum ensinamento religioso do passado, talvez ummandamento que o padre de minha cidade natal houvesse ensinado. Enfim, algodeveria existir para justificar tamanha brutalidade e judiao.

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    Ningum deveria ser lanado ao seu prprio funeral daquela forma. Se existissealgum amor divino, certamente no se coadunaria com tal situao. Entretanto,no ia muito longe em minhas divagaes porque o atesmo impedia-me. Nunca

    admitira a existncia de Deus, nem mesmo da vida aps a morte. Alis, nemmesmo a idia de morrer to cedo passara-me pela cabea. Fui estpido argumentei. Deveria ter-me preparado para a morte, que inevitvel. E, porcautela, poderia ter lido algum livro com teses espiritualistas para saber como sairde situaes como aquela que vivenciava caso fosse verdadeira a proposio deque h vida depois da morte.

    Mortificava-me o pensamento de que poderia ter, de fato, morrido e estavaapodrecendo ali ao lado do meu corpo. Se assim fosse, iria acompanhar momentoa momento o longo processo de putrefao e quando virasse p at mesmoaquele malssimo objetivo de decomposio estaria perdido.

    O que iria fazer ento? Quando j no fosse mais que p, engolido pelasentranhas da terra, como passaria os meus dias? insistia em questionar.Ironicamente, lembrei-me de ocasies passadas quando desprezei belosmomentos de minha existncia procurando emoo e aventura. De vez emquando, Elvira e as crianas propunham-me um passeio simples no parque, porexemplo, e eu dizia que tinha mais o que fazer e no perderia tempo com algo tointil e desinteressante. Inmeras outras vezes fiz mesma coisa e rejeitei tudo oque se considerava pacato e comum.

    Sentia, quando estava enterrado sem luz, ar e vida ao meu lado, o quanto fora

    feliz e jamais dera valor ao que me era proporcionado. Tinha uma famlia querida,um bom trabalho e a possibilidade de passear em um parque, vendo flores e tendoo cu azul sobre minha cabea. At mesmo a claridade solar seria um prmio paramim, que me encontrava arremessado s trevas. Se pudesse voltar no tempo simplifiquei modificaria o ritmo da minha existncia e implementaria outro, bemdiverso, que fosse mais simples, tranqilo e apegado aos valores inerentes natureza humana. Nada de aventuras extraconjugais ou viagens longas; coisaalguma de artificialismos que serem para enrijecer o carter dos homens. Comoera fcil pensar em mudar de vida quando estava enterrado e submerso emsolido e desespero conclu. Por que no tive esses pensamentos quandoestava vivo?! completei.

    Pela primeira vez, cedi e aceitei a idia de que, afinal, poderia estar morto. Eramelhor assim. Se estivesse apenas sonhando e despertasse seria um momentode rara felicidade, porm se no mais voltasse vida material, precisavaacostumar-me com a idia. Naquele buraco, preso e paralisado, nem mesmolouco ser-me-ia permitido ficar. Minhas conscincia e memria no foramalteradas e eram os nicos bens que me restavam. Conseguia raciocinar e colherecordaes e comecei a dar valor s pequenas coisas que ainda possua.Fragmentei o meu sentimento em duas partes: rancor e resignao.Aparentemente inconciliveis, o meu estado de miserabilidade espiritual eratamanho que conseguia espao para cultiv-los. Guardava um amargo

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    ressentimento dos instantes que estava sendo obrigado a vivenciar, mascomeava a sorvar em meus rgidos princpios materialistas e buscava conformar-me com o fato de estar, quem sabe, morto.

    Quando Elvira disse que se casaria comigo, senti um ligeiro aperto no corao efelicitei-me por ter alcanado mais uma conquista em minha jornada. Sara de umapobreza vergonhosa e comeara a ingressar em outro patamar de minha vida.Casando-me, meu sogro havia prometido investir uma razovel quantia emdinheiro no negcio que eu estava montando. No era muito, porm o suficientepara fornecer-me combustvel para decolar em minhas aptides. Eu era excelentecomerciante e s me faltava capital. Conquistando Elvira moa de classemdia, sem nenhum encanto especial, mas que tinha um gnio afvel ecompreensivo levei comigo para o altar um considervel aumento em minhaconta bancria. Achava que o casamento servia justamente para isso. Se fui

    rejeitado por Jlia jovem de bero nobre e rica aceitei submisso os ditamesdo destino, prometendo-me, no entanto, uma rpida ascenso social. Esseprogresso no se destinava conquista da altiva moa que no me quis, massomente para ter o prazer de, como pai, refutar candidatos inadequados, nofuturo, mo de alguma filha minha. Talvez fosse um recalque mal resolvido, mastudo que nos ocorre de errado acabamos descontando nos outros um dia.

    Sempre pensei desse modo e ao consorciar-me a Elvira dei o primeiro passo parasolidificar o meu intento. No tive filha alguma, quem sabe porque algumpretendente fosse sofrer muito em minhas mos. Renovado economicamente peladdiva do sogro, aumentei minha empresa e senti-me fortalecido para enfrentar os

    obstculos da vida, exceto morrer. Para isso realmente no me havia preparado.Jurei que s pensaria no assunto ao atingir os oitenta anos, patamar queplanejava atingir. Mas possivelmente no tenha dado tempo. Morrera sem saber enaquela cova mida tinha que encontrar uma soluo para o meu dilema.

    Quando se est em desesperadora situao, vrias respostas anteriormenteinadmissveis para o ser passam a ser consideradas com a ateno. Esse foi omeu processo de conscientizao, pois imaginei que s sairia daquele buraco sepudesse libertar-me dos negros fios que me jungiam ao quase extinto cadver.Percebi que eles pareciam desaparecer no momento em que eu admitia estar, defato, morto. Quando negava, eles enrijeciam e a priso continuava. Resolvi, ento,

    tentar uma sada para o meu sofrimento. Concentrei-me com todas as foras ebusquei convencer-me em definitivo que no mais pertencia ao mundo dos vivos.Foi difcil e doloroso, mas sem o corpo fsico quela altura devorado porminsculos seres da escurido tornou-se uma misso possvel. Horas, dias,meses ou anos no saberia especificar transcorreram naquele processo deconvencimento ntimo. Como era duro e complicado ser materialista deduzi.Mas em algum momento senti que seria capaz de afastar-me daqueles despojos etentei. Lentamente joguei-me para o lado e avancei sobre a terra. Empurrei comfora visando desencavar-me. Pela primeira vez, senti-me flutuando e no maisencontrava as correntes que me ligavam ao esquife apodrecido. Subitamente, deum modo inexplicvel, vi-me em cima do tmulo e no mais soturnamente

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    enterrado. Tive a sensao de voltar a respirar, embora j estivesse convencidoque isso no era possvel a um morto. No mximo, seria um semivivo ousemimorto, no sei bem. O fato que havia conseguido deixar o buraco e estava

    de volta ao mundo exterior.

    Era noite e o cemitrio estava escuro como um breu. Ainda assim o alento invadiu-me o mago e qualquer coisa seria melhor que a total escurido da cova.Conseguia deslocar-me de um lado para o outro e tentei vrias vezes caminharpelas alamedas daquela comunidade solitria. Os mausolus eram imponentes ebelssimos. Havia esttuas de mrmore e flores caras murchando em vasos deporcelana. Olhei fixamente para um deles em especial e pensei: Que desperdcio!Se a famlia que o colocou soubesse que o morto no tem o menor interessenessa ostentao porque est soterrado, infeliz e angustiado, jamais iria gastartanto dinheiro nessa asneira decorativa. Era verdade que estava amargo e noutros

    tempos at que gostaria de ter visto tanta riqueza perdulria. As coisas estavammudando raciocinei.De repente, senti que algumas pessoas aproximavam-se. Seriam mortos, comoeu, ou vivos? Deixei que chegassem mais perto. Caso falassem comigo,naturalmente eram do meu novo mundo; do contrrio, seriam do outro. Elespassaram por mim e sequer voltaram os olhos na minha direo. Ou no meenxergaram ou fora desprezado. Disposto a desvendar o ocorrido, procureiacompanh-los. Eram quatro rapazes cujas idades deviam variar de dezesseis avinte anos. Eles agacharam perto de um sepulcro pomposo e quebraram acorrente que protegia a porta de entrada. Conclu estarem vivos, pois conseguiamtocar nas coisas com eficcia. Segui-os. Dentro do mausolu, reviravam tudo

    procura de bens valiosos, o que me fez deduzir serem ladres. Era impressionantea sensao de v-los furtando na minha frente porque no conseguia esboarqualquer reao: estava impassvel. Em outros tempos, talvez a clera me fizesseavanar sobre eles tentando deter-lhes a ao criminosa. Mas estava mazelento epouco me importava o que faziam. O sofrimento que tive naquela cova horrvel eraincomparvel a qualquer outra dor argumentei. Se resolvessem subtrair ocemitrio inteiro, eu s ficaria mais feliz por livrar-me daquela desagradvel visode tmulos e sarcfagos. Deixei-os ocupados nos seus afazeres e sa de perto.

    Para onde iria? refleti. J que podia locomover-me, resolvi andar pela cidade e,quem sabe, procurar minha famlia. O cemitrio da Consolao era grande e

    ficava quase no centro de So Paulo. Chegando rua, olhei os carros passando esenti um aperto no corao: nunca mais iria dirigir um automvel. Essa foi a piorimagem que poderia ter tido. Afinal, depois de tanto sofrer aprisionado ao meuextinto corpo fsico, o que importava conduzir um veculo naquele trnsito catico?Mas o ideal materialista de vida arrebatara-me por longos anos e seria difcil, deuma hora para outra, perd-lo. Fui caminhando em direo ao Jardim Paulistano,onde morava. Subi at a Avenida Paulista e depois acompanhei o curso daAvenida Rebouas. No trajeto, lembrava-me como fizera questo absoluta deresidir naquele bairro tradicional da capital paulistana. Dissera a Elvira: Nossosfilhos precisam ter o melhor. Vamos morar onde esto as famlias aristocratas denossa cidade. Na realidade, comeava a admitir que a vontade de igualar-me

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    aos ricos era muito mais interesse egostico meu do que um favor aos meus filhos.Pedro nunca ligou para isso e Marco Aurlio, tendo dinheiro no bolso, estavasempre feliz. Elvira, por sua vez, era simples por natureza e o que eu dizia estava

    bom para ela.

    Enquanto seguia o rumo do meu bairro, via passar por mim multides de Espritosseguindo encarnados. Sabia que no eram vivos porque eles flutuavam como euum pouco acima do solo e tinham uma tonalidade diferente plida, cinzenta,sombria. Alm disso, as pessoas dos automveis no os viam no meio da rua epassavam por eles como se fossem apenas nuvens de fumaa ou algo parecido.Sentia-me, no entanto, solitrio porque no tinha ningum para conversar e at osmortos ignoravam-me.

    Determinado a chegar logo em casa, continuei. Passando por algumas manses

    transformadas em casas e escritrios comerciais, percebi que muitas daquelasfamlias tradicionais, s quais me referi h pouco, j no eram to ricas assim etiveram que sair de suas moradas antigas, alugando-as a terceiros para gerarrenda. O esteretipo da riqueza era passageiro e muitos perdiam tudo da noitepara o dia. De que adiantava concentrar todos os esforos no acmulo de rendase no carregvamos conosco para o tmulo esses valores? Sentia-me vontadepara ter tais idias pois ningum melhor que eu acabara de sofrer uma penosavivncia abaixo da terra, desprovido de qualquer conforto e passando as maioresprivaes. Tive fome, sede, sono e frio, sensaes que me marcaramindelevelmente. Nada disso pde ser saciado, apesar de ter morrido deixandofortuna. Onde estava, predominavam outros tipos de valores, talvez os

    espirituais... justamente os que eu no cultivava. Para sair dali, fui obrigado aadmitir que estava morto e enquanto no cedi minha estreita teimosia nadaconsegui.

    Chegava esquina da Avenida Brasil quando vi um motorista perder o controle doseu veculo, que vinha em alta velocidade pela via pblica, atravessar o canteirocentral e bater frontalmente num poste. O condutor ante o violento impacto foi arremessado longe, varando o pra-brisa do carro e estatelando-se no cho.Parecia ser um rapazote de no mais que dezoito anos. Ele sangrava por todos osporos e contorcia-se de dor, mas provavelmente estava quase inconsciente. Eramquatro horas da madrugada e ningum parava para socorr-lo. Pensei que

    pudesse ser um filho meu e entrei em pnico, embora soubesse nada poder fazerpois estava morto. Olhava para os lados e comecei a perceber uma turba deEspritos aproximando-se. Eles gargalhavam e cutucavam-se mutuamenteapontando algum detalhe na agonia do jovem.

    Fiquei irritado com tamanha barbaridade, em especial pela indiferena e falta dehumanidade daqueles seres que se arrastavam como eu pelas trevas dametrpole. Finalmente, para meu consolo, aproximou-se do lugar uma viaturapolicial. Os guardas desceram e de imediato tentaram socorrer o ferido. Intil, poisele j estava morto. Tinha certeza disso porque o vira assustado ingressando nomundo espiritual, sem muita noo do que lhe acontecia. Tentei chegar mais perto

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    para dar-lhe algumas orientaes e no consegui. Aquelas criaturasendemoniadas juntaram-se em volta do rapaz e em pouco tempo sumiram dalicarregando-o consigo. Fiquei perplexo, ao mesmo tempo em que ouvia um policial

    dizer ao outro que o motorista estava completamente embriagado. Teria elecometido suicdio? Ou fora somente imprudente? No soube responder a essaminha dvida, mas o certo que o moo saiu dali rapidamente antes que eupudesse dizer-lhe qualquer coisa. Por que fora levado por aqueles Espritos,diferentemente do que acontecera comigo? imaginei. Sem resposta, continueiminha viagem.

    Contornei pela Avenida Brigadeiro Faria Lima e ia entrar na Alameda GabrielMonteiro da Silva quando vi um carro esporte, muito bonito, provavelmenteimportado, levando um casal. A moa era jovem e bem vestida. Tinha um cabelolouro que esvoaava loucamente pela fora do vento que invadia o automvel,

    deixando o rapaz cada vez mais admirado por tanta beleza e sensualidade.Estranhei, entretanto, quando percebi a presenade uma outra figura entre eles. No conseguia distinguir quem era e, por sorte, osemforo fechou. Parado, aproximei-me. O moo fazia propostas suaacompanhante e, quela hora da noite, naturalmente no eram das melhores.Enquanto ela pensava, a criatura que ao seu lado esguia parecia mussitar emseus ouvidos, incitando-a a aceitar. Finalmente, o semforo tornou-se favorvel eachei que o carro iria embora, mas o rapaz disse que dali no sairia at ouvir-lhe aresposta. A jovem orgulhou-se dessa demonstrao de fora e apressou-se emsuas reflexes. Outra vez, aquele Esprito murmurou-lhe alguma coisa. Ela entoaceitou o que o jovem lhe propusera e o veculo arrancou violentamente. Fiquei

    alguns momentos pensativo. Quem havia, afinal, decidido: a moa ou a criatura?Poderia haver tanta intromisso dos mortos na vida dos vivos? perguntei-me,sem condies de obter resposta mais uma vez.

    Que mundo bizarro, repleto de mistrios, que misturava fico com realidade! exclamei. Na minha concepo momentnea, eu era uma personagem fictcia naterra dos vivos.

    Quando cheguei em minha residncia, amanhecia. Entrei pelo porto principal,alis varei por ele. No quintal, o nico a perceber minha presena foi o co deguarda, um dobermann comprado para substituir o velho Nick. Ele latiu sem parar

    e no tinha a perfeita noo de quem ali estava, nem mesmo o lugar exato ondeme encontrava pois rodou em volta da piscina trs ou quatro vezes irritado, comose estivesse procurando o meu rastro. Senti-me um larpio, um verdadeiroinvasor, no obstante fosse a minha casa. Pouco depois, estava na salaapreciando os meus valiosos quadros e minhas peas de arte. Eram todos lindose caros. Estavam intocados, no mesmo lugar em que os deixara. Elvira, minhaquerida esposa, iria conserv-los ali para sempre imaginei. Sentei-me emminha poltrona pre