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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras Raquel Solange Pinto CRÔNICA E MODERNIDADE: CONFIGURAÇÕES DA CIDADE Belo Horizonte 2014

CRÔNICA E MODERNIDADE: CONFIGURAÇÕES DA CIDADE · A cidade, feita capital da República, deveria ser identificada pelo resto do país como o modelo de progresso e civilização

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Letras

Raquel Solange Pinto

CRÔNICA E MODERNIDADE: CONFIGURAÇÕES DA CIDADE

Belo Horizonte

2014

Raquel Solange Pinto

CRÔNICA E MODERNIDADE: CONFIGURAÇÕES DA CIDADE

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais, como requisito parcial para obtenção do

título de Doutor em Literaturas de Língua

Portuguesa.

Orientadora: Ivete Lara Camargos Walty

Belo Horizonte

Fevereiro de 2014

FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Pinto, Raquel Solange

P659c Crônica e modernidade: configurações da cidade / Raquel Solange Pinto

Belo Horizonte, 2014.

165f.: il.

Orientador: Ivete Lara Camargos Walty

Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Crônicas brasileiras. 2. Civilização moderna. 3. Espaços públicos – Rio de

Janeiro. 4. Bilac, Olavo, 1865-1918. 5. Barreto, Lima, 1881-1922. 6. João, do

Rio, 1881-1921. I. Walty, Ivete Lara Camarcos. II. Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(81)-94.09

Raquel Solange Pinto

CRÔNICA E MODERNIDADE: CONFIGURAÇÕES DA CIDADE

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais, como requisito parcial para obtenção do

título de Doutor em Literaturas de Língua

Portuguesa.

______________________________________________

Ivete Lara Camargos Walty (Orientadora) – PUC MINAS

_____________________________________________

Antonio Dimas – USP

____________________________________________

Maria das Graças Rodrigues Paulino – UFMG

_____________________________________________

Maria Nazareth Soares Fonseca – PUC Minas

____________________________________________

Melânia Silva de Aguiar – PUC Minas

Belo Horizonte, 21 de fevereiro de 2014.

A meu filho,

minha inspiração diária.

AGRADECIMENTOS

A todos que contribuíram para a realização deste trabalho, fica expressa aqui a minha

gratidão, especialmente:

A Deus, que me guia e fortalece em todos os momentos da minha vida.

À Professora Ivete Lara Camargos Walty, pela orientação, pelo aprendizado e apoio

em todos os momentos necessários.

A meu marido e filho, que souberam entender minha ausência e me apoiaram nos

momentos mais difíceis.

Aos meus pais e às minhas irmãs, que sempre acreditaram em meu potencial.

À Celinha, Maria Júlia e ao Tonico, que me acolheram na casa deles em Belo

Horizonte, dando-me carinho a atenção.

À minha tia e madrinha, Nazaré, uma pessoa muito especial em minha vida.

A todos que, de alguma forma, contribuíram para esta construção.

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo básico investigar, nas crônicas selecionadas dos autores

cariocas Olavo Bilac, Lima Barreto e João do Rio, as contradições de uma cidade em

transformação, o Rio de Janeiro da passagem do século XIX para o XX, sob o modelo de

modernidade na época, Paris. Investiga-se como a cidade do Rio de Janeiro de então

configura-se como espaço público, aí observando o papel do escritor e suas condições de

produção, no jogo de relações de poder que aí se travam. A pesquisa valoriza a equação

modernidade, jornal e crônica, buscando, assim, compreender como esse gênero, fruto da

prática jornalística, consolida-se como um elemento decifrador da antiga Capital Federal, que

passa, também ela, a ser lida, e como intervém no espaço público da época. Para tanto, traçou-

se um paralelo entre a produção dos três escritores selecionados no que diz respeito à

modernização da cidade do Rio de Janeiro, observando em que se aproximam e em que se

distanciam na leitura da cidade que move suas crônicas.

Palavras-chave: Modernidade. Jornal. Crônica. Espaço público. Rio de Janeiro. Olavo Bilac.

Lima Barreto. João do Rio.

ABSTRACT

This present paper has the basic objective of investigating the selected chronicles of the

authors of Rio de Janeiro Olavo Bilac, Lima Barreto and João do Rio, the contradictions of a

city in transformation, Rio de Janeiro of the late XIX to the XX century, under the model of

modernity at that time. It researches how the city of Rio de Janeiro at that time appears as a

public space, considering the authors’ role and their production conditions, in the game of

power relation. The research values to the modernity, news and chronicles equation,

comprehending how this genre, a result from the journalistic practicing, consolidates itself as

a decoder element of the old Federal Capital, which also starts being read, and how it

interferes in the public space by that time. Thus, it was traced a parallel between the

productions of the three selected writers based on Rio de Janeiro´s modernization, noting the

similarities and differences in the reading of the city that motivates their chronicles.

Keywords: Modernity. Jornal. Chronicles. Public space. Rio de Janeiro. Olavo Bilac. Lima

Barreto, João do Rio.

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Casario ao pé do morro do Castelo (RJ) ............................................ 30

FIGURA 2 – Obras de saneamento e remodelação das ruas (RJ) ............................ 31

FIGURA 3 – Desfilando na Avenida Central ........................................................... 60

FIGURA 4 – Prédios já derrubados ou à espera de destruição .................................. 61

FIGURA 5 – Edificações que foram abaixo para dar lugar à Avenida Central ......... 61

FIGURA 6 – Os novos edifícios da Avenida Central em fase de construção ............. 62

FIGURA 7 – O início dos trabalhos de abertura da Avenida Central ......................... 62

FIGURA 8 – Passageiro de terceira classe. Honoré Daumier (1808-1879) ............... 102

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10

2 A CRÔNICA, JORNAL E CIDADE: REPRESENTAÇÕES DA MODERNIDADE

PERIFÉRICA ............................................................................................................... 16

2.1 Rio de Janeiro: modernidade tardia .......................................................................... 28

2.2 A crônica na modernidade ......................................................................................... 36

CRONISTAS DA VIDA MODERNA .............................................................................. 46

3. BILAC: ENTRE POEIRAS E ESCOMBROS ............................................................ 47

4. LIMA BARRETO: ENTRE DOIS TEMPOS E DOIS ESPAÇOS ............................. 85

5. JOÃO DO RIO: NOS CÍRCULOS INFERNAIS DA BELLE ÉPOQUE TROPICAL

...........................................................................................................................................125

6. CONCLUSÃO ............................................................................................................... 155

REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 161

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1 INTRODUÇÃO

O corpus escolhido para objeto da presente tese compõe-se de crônicas dos autores

Olavo Bilac, Lima Barreto e João do Rio, que, vivendo no Rio de Janeiro no final do século

XIX e nas primeiras décadas do século XX, exploraram em suas crônicas as contradições de

uma cidade em transformação, sobretudo sob o modelo de modernidade na época, Paris.

Objetiva-se investigar como a cidade do Rio de Janeiro, atrelada à modernidade, configura-se

no espaço textual como espaço público, aí observando o papel do escritor e suas condições de

produção.

A pesquisa parte da abordagem do conceito de modernidade, associada

inevitavelmente à cultura urbana. O signo da modernidade que atravessou o século XX é

discutido, principalmente, a partir dos escritos de Marshall Berman (2007),

e Doreen Massey (2008). Neles, intenta-se repensar a modernidade como um período que

englobou promessas, frustrações, continuidades e descontinuidades nos diversos campos da

vida social.

Nesse contexto a cidade passa por transformações, que contribuiriam para o objetivo

de se moldar uma sociedade “ideal”, instituindo uma ordem social harmonizada com o novo

meio urbano, repelindo-se aquilo que era dado como barbárie e atraso medieval.

O planejamento das cidades modernas propiciou o surgimento de espaços de

sociabilidade, impondo um novo desafio: acompanhar as mudanças estruturais de

configuração das relações sociais. A paisagem urbana do século XIX e início do XX

modifica-se, pois, inteiramente, passando a incorporar nova dinâmica do público e do privado,

dividindo e reservando às duas esferas diferentes tipos de comportamentos.

A rua, embora, logicamente, existisse antes do século XIX, não apresentava a

configuração que passou a assumir nessa época como o lugar da multidão, o palco do

espetáculo urbano. Nela, observa-se o fenômeno moderno da circulação: de mercadorias, de

tráfego, de pessoas. Para marcar o estudo dessa imagem urbana, serão considerados os textos

de Walter Benjamin (1987, 1989) que elegeu como privilegiada a relação de Baudelaire com a

cidade de Paris, símbolo maior de modernidade, e que reflete também sobre o fenômeno

contraditório encarnado na figura do flâneur.

Paralelamente aos novos locais de socialização da burguesia, uma nova espécie de

espaço público vai se moldando no Rio de Janeiro no início do século XX. Trata-se da esfera

pública literária, que se consolida com o surgimento de novos jornais, os quais recebiam a

colaboração de inúmeros literatos como Machado de Assis. Instigados pelas mudanças

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políticas ocorridas com o advento da República, os literatos encontram nesse suporte um

espaço de circulação das ideias do público, em que o uso da razão era franqueado para

membros da burguesia letrada que se manifestava sob temas diversos, emitindo opiniões que

nem sempre coadunavam entre si. Por isso mesmo, esse espaço público favorecia o debate.

Nesse sentido, o conceito de esfera pública designado por Habermas (2003) para nomear a

esfera pública livre emergente, no final do século XVIII, auxilia na compreensão desse novo

espaço que surge em terras brasileiras, especificamente no Rio de Janeiro.

Literatura e jornalismo se associam, então, formando um lugar de crítica do cidadão.

A esfera pública burguesa, que se manifesta simultaneamente no cultivo da literatura e na

divulgação de ideias, não era, no entanto, franqueada a todos, apenas aos instruídos.

Nesse novo cenário, inúmeros literatos residentes no Rio de Janeiro marcam sua

posição quanto às mudanças impostas pelo então instaurado regime republicano. Assim, a

literatura funda-se “não apenas enquanto projeto estético e comunicação social, mas também

como dispositivo de processos de emancipação, como forma de intervenção, subversão e

resistência” (OLINTO, 2008, p. 101). Destaca-se, assim, outro aspecto a ser investigado:

verificar como as crônicas selecionadas representam a antiga Capital Federal – Rio de

Janeiro -, no processo de modernização, tendo como referência a construção do espaço

público.

É nesse cenário, em que se tenta romper com o passado colonial e alcançar o

compasso da modernidade já vivenciada na Europa, que a crônica alcança popularidade e

torna-se o gênero por meio do qual muitos literatos analisam a entrada do Brasil na

modernidade.

Os autores selecionados para este trabalho representam essa pluralidade. A formação

da metrópole moderna, com seu aspecto físico, sua estrutura social e os sentimentos que

provocava no homem de então, foi apreendida diferentemente pelos escritores brasileiros

inseridos nas primeiras décadas do século XX, quando o Brasil busca alinhar-se aos modelos

de modernidade preconizados por outros países; a França, com sua capital Paris e, depois, os

Estados Unidos. Assim, reconhecer as nuances que envolveram o Brasil, principalmente o Rio

de Janeiro, na Primeira República, favorece a compreensão das mudanças sócio-estruturais

que marcaram a fisionomia dessa cidade.

Todas as crônicas foram publicadas, inicialmente, em jornais da Belle Époque carioca,

marcada pelo processo de reformulação do espaço urbano real e simbólico. Os jornais,

ocupando papel primordial na integração das múltiplas faces da cidade, debruçam-se sobre as

experiências comuns da vida urbana, estabelecendo redes de comunicação e tornando possível

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a apreensão do sentido social do que nela acontece. Ao difundir padrões e normas sociais,

criam uma espécie de coordenação das múltiplas temporalidades de um público diversificado.

Características do Rio de Janeiro do início do século XX dão à imprensa e aos intelectuais que

nela trabalhavam algumas funções peculiares. A cidade, feita capital da República, deveria ser

identificada pelo resto do país como o modelo de progresso e civilização e representar toda a

nação de maneira a fazê-la aceitável perante os países tidos como civilizados. Essas

características históricas da cidade influenciaram bastante a postura dos intelectuais que nela

viviam e exerciam sua função de letrados, o que define a natureza de sua produção. Muitos

cronistas, no entanto, opuseram-se às mudanças inseridas no Rio de Janeiro, contradizendo o

clima de euforia que aí se instalou.

Como se viu, crônica e jornal passam a andar juntos, o que agrega ao conceito da

primeira novas significações. Com o nome de folhetim, a crônica designava um artigo de

rodapé escrito a propósito de assuntos do dia – políticos, sociais, artísticos, literários. Aos

poucos, foi se tornando um texto mais curto e se afastando da finalidade de informar e

comentar, substituída pela intenção de apresentar os fatos cotidianos de forma artística e

pessoal. De lá para cá, a crônica não deixou de crescer e passou, inclusive, a ser identificada

como um gênero próprio da Literatura Brasileira.

Trata-se de um gênero de difícil conceituação, justamente por abarcar características

de outras modalidades discursivas, como o conto. Mas não há dúvida de que engloba um

ponto peculiar, a abordagem do trivial, do cotidiano, das miudezas presentes no cenário de

uma sociedade, que, por ser tão complexa, muitas vezes, ignora a grandeza dos pequenos

gestos e acontecimentos.

Essa faceta da crônica conferiu ao cronista condições propícias para absorver certas

particularidades do nosso cotidiano, que lhe permitem promover uma releitura de um

momento histórico, pois os acontecimentos são reconstruídos por seu olhar atento e

minucioso, refletindo a natureza e o desenvolvimento da sociedade.

De qualquer forma, trata-se de um gênero essencialmente urbano que serviu

eficazmente às exigências da época, como se verá no primeiro capítulo deste trabalho. O Rio

de Janeiro que se modernizava abria espaço para novos comportamentos, típicos de uma

cidade cosmopolita. Assim, a crônica, por suas características, cumpre bem o papel de retratar

as miudezas de uma cidade em que o novo espaço público é palco de acontecimentos triviais

que servem de tema para as análises do cronista.

Para estudar a crônica como fruto da prática jornalística que se consolidou como um

gênero literário/histórico, de características próprias, e sua importância como registro do

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cotidiano, os seguintes autores foram selecionados: Jorge de Sá (2002), Flora Christina

Bender e Ilka Brunhilde (1993), Davi Arriguci Jr. (2001) e Nelson Werneck Sodré (1999),

além de Walter Benjamin (1987) e seu conceito de cronista como um novo tipo de historiador.

As crônicas selecionadas, sempre tendo a cidade como protagonista, são marcadas

pelo olhar crítico de um observador que, ao percorrer a cidade, discorre sobre questões

importantes para o seu tempo, mas que se mantinham camufladas.

Por isso mesmo, Lima Barreto, Olavo Bilac e João do Rio são considerados cronistas

sagazes da sociedade carioca do início do século XX e se assemelham, muitas vezes, a um

flâneur. Caminham pela cidade e sob um olhar perspicaz captam, a seu modo, as nuances de

um Rio de Janeiro que se modifica para atender ao projeto republicano de modernidade, este

que nunca foi alcançado em sua totalidade.

Assim, o corpus sobre o qual se debruçará a pesquisa serve como espelho da

mentalidade brasileira na passagem do século que, na busca pela consolidação da urbe, abre

espaço à Literatura. Nesse sentido importa examinar em que medida a crônica participa da

construção da esfera pública, que, para Habermas (2003), é uma esfera pública literária. Ao

realizar uma inserção na vasta produção jornalística desses escritores, objetiva-se, pois,

compreender como as crônicas se consolidam como um elemento decifrador da cidade, que

passa a ser lida e como intervêm no espaço público da época. Tanto a urbe quanto o texto

literário são polifônicos, pois permitem uma pluralidade de leituras. Isso significa para o

leitor (de)cifrar os vários signos construtores da cidade, que o cronista buscou traduzir por

meio dos signos do texto literário.

A produção literária de Lima Barreto, Olavo Bilac e João do Rio permite a

visualização de cidades outras que convivem no espaço simbólico de um Rio de Janeiro que

se modernizava, mas era construído como um espaço ilusionista. Afinal, a cidade que se

civilizava sob o patrocínio das elites aburguesadas contrastava com seu padrão colonial,

patriarcal e escravocrata. Portanto, reitere-se, no decorrer do trabalho, objetiva-se verificar

como as crônicas selecionadas representam a antiga Capital Federal – Rio de Janeiro -, no

processo de modernização, tendo como referência a construção do espaço público. Nesse

sentido, os escritos de Angel Rama (1985) são importantes recursos para entender a

construção do simbólico, que fundamenta o conceito de cidade real e cidade ideal. Outras

fontes de pesquisa não menos importantes são fornecidas pelos trabalhos de Massimo

Canevaci (1994), Luciana D’Alessio Ferrara (1997) e outros que estão devidamente descritos

na bibliografia básica.

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A fortuna crítica dos autores é também de grande valia para tal reflexão. Nesse

sentido, serão buscados os trabalhos de Antônio Dimas (1996, 2006) Ubiratan Machado

(2005) sobre vida e obra de Olavo Bilac. As obras de Francisco de Assis Barbosa (2002),

Beatriz Resende (1988, 2004) e Luiz Ricardo Leitão (2006) auxiliam a situar Lima Barreto na

literatura brasileira. Já os trabalhos de Renato Cordeiro Gomes (1996, 2008) e Jullia

O’Donnell (2008) iluminam a obra e vida de João do Rio. Para situar as crônicas selecionadas

no momento histórico-literário a pesquisa se vale das obras de Sevcenko (2012, 2013), Elias

Thomé Saliba (2012), bem como José Murilo de Carvalho (2011).

Por fim, tendo por parâmetro os pressupostos teóricos e a sistemática descritos acima,

o desenvolvimento da tese, estabelecendo, em linha de intenção, ficará assim:

1. Introdução

2. Crônica, jornal e cidade: representações da modernidade periférica

O capítulo discute a relação crônica, cidade, espaço público e modernidade. Nessa

perspectiva, aborda-se o signo da modernidade que atravessou o século XX interferindo nas

transformações do espaço urbano, a formação do espaço público burguês e o papel da crônica

nesse processo. É feito um estudo da crônica como fruto da prática jornalística, que se

consolidou como um gênero literário/histórico, de características próprias, e sua importância

como registro do cotidiano da cidade carioca. Cidade esta que passa então por mudanças

estruturais numa tentativa de se atrelar à cidade de Paris, símbolo maior de modernidade.

Em uma seção denominada Cronistas da vida moderna estão alojados os três

capítulos seguintes:

3. Olavo Bilac: entre poeiras e escombros

4. Lima Barreto: entre dois tempos e dois espaços

5. João do Rio: nos círculos infernais da Belle Époque tropical

Estes capítulos investigam como as crônicas selecionadas de cada escritor representam

a antiga Capital Federal – Rio de Janeiro -, no processo de modernização, tendo como

referência a construção do espaço público. Para tanto, nele se traça um paralelo entre a

produção dos três escritores selecionados no que diz respeito à modernização da cidade do

Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX.

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6. Conclusão: Mais que uma conclusão, buscam-se aqui alguns cruzamentos da

análise das crônicas analisadas, observando em que se aproximam e em que se

distanciam em sua leitura da cidade que move suas crônicas.

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2. CRÔNICA, JORNAL E CIDADE:

REPRESENTAÇÕES DA MODERNIDADE PERIFÉRICA

O tema da modernidade é uma constante e tem ocupado a intelectualidade em

diferentes épocas. Mas, estabelecer um conceito de modernidade é complexo, pois o rótulo

acoberta uma variedade de períodos. Nas investigações literárias, a análise de Marshall

Berman (2007) tem tido ampla aceitação, servindo como sustentação geral para caracterizar a

modernidade do século XIX, com especial atenção para as mudanças ocorridas no espaço

urbano.

Berman (2007) descreve a modernidade como um período que engloba cinco séculos e

se estende até o século XX, quando o projeto de mundialização da modernidade foi

empreendido. Três fases, segundo ele, constituem a história da modernidade.

O início do século XVI até o fim do XVIII compreenderia a primeira fase, em que o

ser humano inicia sua primeira experiência com a vida moderna. E a ausência sensitiva de

comunidade ou público modernos impediria o compartilhamento das impressões oriundas

dessa relação do homem com esse conjunto de experiências.

Para Berman (2007), é no século XIX que se desenrola a segunda fase da história da

modernidade, a partir da eclosão de uma onda revolucionária na Europa, iniciada em 1789.

Trata-se da Revolução Francesa, nominação dada ao conjunto de acontecimentos que, entre 5

de maio de 1789 e 9 de novembro de 1799, alteraram o quadro político e social da França, a

ponto de ser considerada o acontecimento que deu início à Idade Contemporânea. Berman

(2007) sustenta que, com a eclosão da revolução francesa, toma forma um largo público

moderno, em que se compartilha a sensação de viver uma época repleta de transformações

que desnortearam os padrões então vigentes, mudando drasticamente as relações construídas

no plano pessoal, social e político.

O referido autor, ao tratar da ideia de modernismo e modernização, discorre sobre a

ambivalência de se viver em um mundo marcado por uma modernidade que não é absoluta,

pois não atinge a todos os segmentos sociais, ficando uma parcela da população sempre

alijada desse fenômeno:

Ao mesmo tempo, o público moderno do século XIX ainda se lembra do que

é viver, material e espiritualmente, em um mundo que não chegou a ser

moderno por inteiro. É dessa profunda dicotomia, dessa sensação de viver em dois mundos simultaneamente, que emerge e se desdobra a idéia de

modernismo e modernização. (BERMAN, 2007, p. 26).

A terceira fase inicia-se no século XX quando a modernidade transita, em seu

fechamento e esgotamento, para a pós-modernidade. Paradoxalmente, o fortalecimento e

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expansão da modernidade levam à sua fragmentação e a uma pluralidade de linguagens que

impedem a identificação do homem como unidade orientadora.

Berman (2007) salienta que, apesar de sedutor, o grande projeto de modernidade

trouxe em seu bojo idéias paradoxais1. Ainda que tenha tido como proposta o alargamento de

fronteiras, a concepção de universalidade e a crença sem limites na ciência como solução para

todos os problemas, a modernidade teria estimulado a destrutividade humana e criado novas

formas de dominação, em vez de promover a sonhada felicidade universal. A aceleração da

informação trouxe ao ser humano o dilema de sua saturação; a crença no progresso favoreceu

o individualismo e o advento do sujeito preocupado unicamente com o ganho e a acumulação.

Tudo isso marcaria, assim, a crise da modernidade. No título do ensaio tomado de empréstimo

ao Manifesto Comunista de Marx e Engels, Tudo que é sólido desmancha no ar – a aventura

da modernidade, Berman (2007) aponta as contradições e sutilezas que compõem a vida

moderna, apontando para sua paradoxal continuidade e ruptura com a pós-modernidade.

Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder,

alegria, crescimento, auto-transformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que

sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula

todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a

espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de

desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente

desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, ‘tudo

que é sólido desmancha no ar’. (BERMAN, 2007, p. 24).

A questão da modernidade é associada inevitavelmente à industrialização e à cultura

urbana. O habitante das grandes cidades, a partir da segunda metade do século XIX, é

testemunha de um conjunto de referências que transfigura a economia, a política, a cultura e a

sociedade. Em um período constituído por algumas décadas, as quais englobam não só o fim

desses decênios como o início do século XX, o homem ocidental atesta um período de relativa

segurança. Para o pequeno burguês, essa estabilidade é fruto de grandes avanços e mudanças,

a começar pela instalação de galerias de esgoto e a descoberta da energia elétrica, que lhe

promoverão certo conforto em seu ambiente doméstico.

A esse período dá-se o nome de Belle Époque fenômeno cultural iniciado em território

francês, que se traduziu em um novo modo de pensar e viver o quotidiano. Para muitos, com

o encerramento da Belle Époque, o que teria ocorrido com a eclosão da Primeira Guerra

Mundial, veio também o fim da modernidade, ficando para trás um curto lapso de tempo em

1 A esse respeito pode-se ver também Compagnon, em Os cinco paradoxos da modernidade (1996).

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que esta se consolidou social, política e economicamente. O que restou foi um período de

crise, constituindo a agonia desse projeto.

O primeiro sopro de modernidade é sentido e chega trazendo uma dualidade de

experiências. De forma irregular e abrupta, a vida privada, a cidade e as paisagens são

alteradas. Concepções mais arcaicas de espaços como o campo, a cidade, e a rua alteram-se,

refletindo a mutação qualitativa no nível médio de vida.

Foi um momento de opulência em que se deu a expansão de novas possibilidades de

vida, não só no trato econômico. As cisões são mais densas na medida em que os vários

setores da sociedade não conseguem se integrar num conjunto mais amplo, fomentando a

fragmentação. Esse contraditório surgimento da modernidade se faz valer por meio de várias

representações. Há uma mudança na perspectiva do tempo com o surgimento, por exemplo,

da locomotiva, que facilita a vida por meio da circulação de pessoas, objetos e mercadorias.

Ao mesmo tempo, porém, associa-se à agitação, pressa, correria, que implica o afastamento

das pessoas. O próprio crescimento urbano marca essa dualidade com o fenômeno da

multidão, típico dos grandes centros. A imagem recorrente de pessoas circulando se associa

de forma contraditória ao isolamento, fundamentado na perspectiva de que, inserida na

multidão, as pessoas, ao mesmo tempo em que se aproximam se mantêm separadas. Além

disso, com o surgimento da fotografia e o fortalecimento dos jornais existe uma mudança no

modo de registrar a memória. Desde então, é possível capturar instantâneos do tempo e fixá-

los. As informações são frenéticas, construídas por flashes, mas existe uma saturação de

imagens, significando que nem tudo será de fato assimilado.

Karl Marx pensa nessa contradição sob duas perspectivas. Em primeiro lugar, as

forças de produção (o que impulsiona o capitalismo: matérias primas, tecnologias, as

instalações) mudam rapidamente por causa da concorrência, mas as relações de produção

(modo como a riqueza é partilhada, as relações de trabalho) não se alteram no mesmo ritmo.

Em um segundo plano, existe a contradição entre o aumento da riqueza e a miséria crescente

da maioria. Tudo isso relativiza ideais que pareciam positivos.

Mas, os ideais iluministas, que mobilizavam o poder da razão a fim de reformar a

sociedade ainda continuavam válidos. O domínio científico da natureza prometia a libertação

da escassez, da necessidade e das calamidades naturais. Racionalizar o próprio pensamento

permitiria submeter a organização social a um esquema eficiente e a pretensa libertação das

irracionalidades da religião, até mesmo do uso arbitrário do poder. Nesse sentido, o

pensamento iluminista incorpora a noção de progresso e defende de forma ativa a cisão com a

história e a tradição, dessacralizando o conhecimento e a organização social típica dos séculos

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XVI e XVII. A esse respeito diz Compagnon, discorrendo sobre o lugar central ocupado pela

arte na consciência moderna:

A fé no progresso é uma fé no novo enquanto tal, como forma e não como

conteúdo. Uma vez que o tempo moderno é aberto, o progresso, em si

mesmo vazio, tem como único sentido tornar possível o progresso. (COMPAGNON, 1996, p.126).

As mudanças urbanas indiciam essa crença. Antes marcado por espaços insalubres,

não ventilados, em regiões densamente habitadas, o espaço urbano desguarnecido de um

sistema de água e esgoto era foco de constantes epidemias como a cólera. Em função disso, a

medicina higienista do século XIX apresenta uma proposta intervencionista, que busca

recobrar a salubridade do ambiente a partir da intervenção no meio doentio, o que significa

controlar, não apenas as doenças, mas as pessoas. Michel Foucault (2003) discute a noção de

salubridade que permeará as medidas assumidas pelo Estado nessa época a fim de impor a

medicalização da cidade e, por fim, o seu controle político-científico:

Salubridade não é a mesma coisa que saúde, e sim o estado das coisas, do

meio e seus elementos constitutivos, que permitem a melhor saúde possível.

Salubridade é a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde

possível dos indivíduos E é correlativamente a ela que aparece a noção de higiene pública, técnica de controle e de modificação dos elementos

materiais do meio que são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário,

prejudicar a saúde. Salubridade e insalubridade são o estado das coisas e do meio enquanto afetam a saúde; a higiene pública – no séc. XIX, a noção

essencial da medicina social francesa – é o controle político-científico deste

meio. (FOUCAULT, 2003, p. 93).

Nesse sentido, as cidades enfrentam a necessidade de uma reelaboração radical de seu

formato, já que o espaço urbano, por sua aglomeração, passa a ser encarado como risco para o

governo. Isso implica reformas, planejamentos e construções que modernizem o espaço, no

sentido de evitar uma situação de ingovernabilidade trazida pelo agravamento das mazelas

urbanas. São colocadas em prática medidas de saneamento; investe-se em higiene, profunda

limpeza do meio físico e social, pois havia a convicção de que onde reinasse a sujeira, a

concentração, o amontoamento, criava-se um ambiente propício à formação de doenças,

fatores decisivos na mortalidade e morbidade dos habitantes. Em função disso, a periferia da

cidade é o local escolhido para receber lixões, fábricas, cadeias, hospitais, matadouros e

cemitérios. Afinal, o povo não é só vítima, ele é ameaça, daí a necessidade de controle.

Para aperfeiçoar o trabalho da ventilação e conter o fluxo do ar saturado, associado ao

desenvolvimento e propagação de doenças, procede-se a um novo recorte do espaço. Com o

intuito de favorecer a circulação do ar foram instituídas normas que concerniam,

principalmente, à largura das ruas e altura das casas. As cidades foram cortadas por largas

20

ruas, avenidas e bulevares. Além disso, construíram-se praças contendo fontes. O projeto

incluía, além da evacuação dos dejetos que empesteavam as ruas, a evacuação daqueles

considerados vagabundos, eliminando com eles o mau cheiro, a infecção e o risco social. Na

verdade, o poder interferiu no espaço físico e social das metrópoles com o intuito de controlá-

lo.

Em Segurança, Território, População (2008), Foucault afirma que as medidas

buscadas a fim de estabelecer um ambiente livre de doenças serão pensadas sob a perspectiva

da racionalidade política a partir da introdução do conceito de governo. O gerenciamento,

controle e governo da vida humana revestem essa incipiente noção de poder, cujas forças

disciplinadoras incorporam o que Foucault (2008) passa a chamar de governo político, o qual

diz respeito à atuação do Estado. Basicamente, esse é o governo, um agente de mudança, cujo

desempenho político se concretiza através de métodos, técnicas e mecanismos que resultarão

no gerenciamento de um Estado, ou de uma região e, por conseguinte, de um povo – sendo

estes os objetos de mudança. Objetiva-se, com isso, otimizar o espaço público, ordenar a

coexistência simultânea e harmoniosa entre seres ou coisas distintas, enfim, controlar pessoas

e coisas que circulam dentro do território sob o jugo de um poder estatal.

A análise foucaultiana aponta três matrizes responsáveis pela ação governamental: o

poder pastoral, a razão de Estado e o poder de polícia. O primeiro diz respeito à ação do

Estado de integrar em sua antiga forma de poder características das instituições cristãs que se

preocupavam com a salvação do indivíduo. Essa função foi assumida por diversas instituições

estatais, buscando assegurar as necessidades materiais e espirituais da vida de um indivíduo e

de toda a população, a exemplo de um pastor que se preocupa com suas ovelhas. O segundo

ocupa-se da nova ‘governamentalidade’ em foco no projeto da modernidade. Nesse caso, não

se trata mais de salvar a todos e a cada um, mas salvar as riquezas da nação, mesmo se, para

isto, for necessário sacrificar alguns indivíduos. O poder de polícia, que será melhor abordado

em seguida, tem a função de regulamentar as práticas e relações das pessoas no ambiente

urbano. Juntas, auxiliariam na constituição racional de um governo encarregado de conduzir

os indivíduos, constituindo o que Foucault (2008) denomina ‘governamentalidade’,

responsável pela sobrevida do Estado frente às intrincadas modificações políticas, econômicas

e culturais ocorridas entre os séculos XVII e XIX.

Por esta palavra, ‘governamentalidade’, entendo o conjunto constituído pelas

instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa,

de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de

saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos

de segurança. Em segundo lugar, por “governamentalidade” entendo a

21

tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito tempo, para a preeminência desse tipo de poder que

podemos chamar de “governo” sobre todos os outros – soberania, disciplina

– e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de uma série de aparelhos

específicos de governo [e, por outro lado], o desenvolvimento de uma série de saberes. (FOUCAULT, 2008, p. 143-144).

Centrado em questões específicas, o desempenho do Poder Público vai sendo

modificado a partir do momento em que as cidades acolhem cada vez mais pessoas em função

do crescimento da industrialização, intensificando os problemas de ordem sanitário-ambiental.

Nesse ponto, o Estado é obrigado a interpor seu poder de controle:

A teia das interligações urbanísticas criadas pelo desenvolvimento industrial

torna-se necessariamente evidente através da constatação dos inconvenientes

de ordem higiênica causados pela desordem e a aglomeração das novas periferias. Quando estes inconvenientes se tornaram intoleráveis – devido às

epidemias de cólera que proliferaram depois de 1830 – e se estudaram as

primeiras providências para os eliminar, tornou-se clara a pluralidade das

causas determinantes, pelo que as providências adquiriram necessariamente um caráter múltiplo e coordenado. Deste modo, a legislação sanitária torna-

se o precedente direto da moderna legislação urbanística e cedo se

generalizou a noção de expropriação, estendendo-a das obras públicas a todo o corpo da cidade (BENEVOLO, 1981, p. 94).

Com o advento da modernidade, importante função assume, pois, o aparato

tecnológico da polícia, surgido nos séculos XVII e XVIII. Impõe-se, assim, um rígido

monitoramento sobre a movimentação das mercadorias e indivíduos. O objetivo é evitar o

trânsito de delinquentes e mendigos e, por conseguinte, a circulação de pestilências e doenças

nocivas, o que gerava um elevado índice de mortalidade.

Foucault (2008) descreve a polícia como um instrumento tecnológico a serviço do

poder estatal, cuja função é regulamentar as práticas e o modo de agir dos indivíduos em

todos os níveis de sua vida social: “De maneira geral, no fundo, o que a polícia vai ter de

regular e que vai constituir seu objeto fundamental são todas as formas, digamos, de

coexistência dos homens uns em relação aos outros.” (2008, p. 437). Tal medida se concretiza

através de vários subterfúgios, como controlar os vagabundos e bandidos, manter e construir

estradas e ruas, oferecer condições de alimentação, tomar os pobres sob a responsabilidade do

Estado. Nada deve fugir ao controle da polícia, instrumento concreto de um governo estatal

que almeja cada vez mais governar, pois nunca se governa demais.

Foucault (2008, p. 453) associa a polícia à condição de existência da urbanidade

prevista na época. Tida como uma tecnologia privilegiada, a polícia, segundo ele, valeu-se de

regras e leis para regulamentar as práticas e relações da população no meio citadino. A

intervenção consiste em monitorar desde o comportamento moral até as inquietações

22

resultantes da higiene pública, a mortalidade e a alimentação, por exemplo. Nesse sentido, é

possível perceber a relação existente entre a concepção de controle e sujeição dos

comportamentos ao poder disciplinar do Estado, o qual objetivava intervir sobre os corpos

individuais (a microfísica dos corpos) e, por extensão, atingir o espaço macrofísico da

população.

A concepção de polícia, a qual prevaleceu entre os séculos XVII e XVIII, sofrerá

alterações. O significado clássico atribuído ao termo – aumentar a força do Estado a partir do

respeito à ordem geral – se fragmentará em instituições diferentes. Instituições e mecanismos

variados garantirão o estabelecimento da ordem, diversificando as atribuições da polícia,

dotando-a de um papel repressor. Segundo Foucault:

Numa palavra, pode-se dizer que a nova governamentalidade que, no século

XVII, tinha acreditado poder aplicar-se inteira num projeto exaustivo e

unitário de polícia, vê-se agora numa situação tal que, de um lado, terá de se referir a um domínio da naturalidade que é a economia. Terá de administrar

populações. Terá também de organizar um sistema jurídico de respeito às

liberdades. Terá enfim de se dotar de um instrumento de intervenção direto, mas negativo, que vai ser a polícia. (FOUCAULT, 2008, p. 475-476).

Paris é o símbolo desse esforço ordenador, o signo da modernização. A capital

francesa vivenciava as dualidades da revolução industrial, cuja origem remonta à Inglaterra. O

processo da Revolução Industrial se alastrará por todas as cidades inglesas, levando consigo

inúmeros problemas que precisavam ser atacados. Como ainda não existia a figura do

urbanista, essa tarefa ficou a cargo dos generalistas, que buscaram soluções para os desajustes

sociais ocasionados pela precária estrutura urbana da época. Refletindo a necessidade de

oferecer às cidades condições para o enfrentamento das mudanças produzidas pela

industrialização, surge a figura dos reformadores urbanos ou urbanistas neoconservadores,

que agenciaram e executaram obras de grande porte, cujo propósito era a renovação de alguns

centros europeus. Tais medidas reforçaram o caráter técnico do urbanismo, voltando-se para

reformas grandiosas.

Em Paris, o temor de uma insurreição foi triplicado, pois já existia um desalinho

emocional da população, fruto da Revolução Francesa. Conforme Benevolo (1981), na

segunda metade do século XIX, uma nova direita, despótica e popular, submete muitos países

a uma fiscalização direta por parte do Estado sobre a economia e a vida social da população.

Uma sucessão de reformas de cunho coordenador e de preocupação anti-revolucionária é

criada. Havia o medo de que com a exploração operária ocorressem insurreições na capital

francesa, o que acontecia em pequena escala em Londres. Para atender à nova organização

humana irrompe no papel uma cidade planejada. Objetiva-se varrer a velha cidade medieval.

23

Paris realmente apresentava um traçado medieval. Surgiu na Îlle de la Cité, um antigo

aldeamento celta, e foi sob o domínio romano que se estendeu, atravessando os dois lados do

rio Sena. Entre a queda do Império romano e o início da Idade Média, Paris se expandiu

dentro de muros, como qualquer cidade medieval. Eles eram dilatados conforme o

crescimento da população.

Como característica do período medieval, a cidade possuía um traçado orgânico, com

ruas estreitas e muitas curvas. Seu desenho passou por modificações inspiradas em teorias

renascentistas, possibilitando a ampliação de vias e largos públicos, construídos de maneira a

buscar beleza no equilíbrio das proporções. Entendida como um artefato humano, a cidade

deveria ter um traçado mais geométrico possível e sua expansão ditada pela harmonia e pela

razão. Enfim, era preciso modernizá-la, adequando-a às exigências de um novo período,

afinal, a industrialização que irrompera na época era sinônimo de modernização.

Para alcançar tais objetivos, toma-se a empreitada encabeçada, a partir de 1853, pelo

Barão Georges Eugène Haussmann, o prefeito escolhido por Louis Napoléon III, sobrinho de

Napoleão Bonaparte. Napoleão III chegou ao poder de maneira democrática, mas, uma vez lá,

se auto-proclamou Imperador. Haussmann, com o apoio de Napoleão III, empreendeu naquela

Paris medieval a maior intervenção urbanística desse período.

O modelo urbano ideal constituiu-se a partir de um plano unitário, denominado, no

século XIX, de Urbanismo Neoconservador, o qual se caracterizou por um programa de

caráter estético, técnico e higienista. As medidas representaram a criação de largos e grandes

parques; abertura de novas linhas viárias para o trânsito nos velhos bairros; urbanização de

terrenos periféricos; renovação dos sistemas de água, saneamento, iluminação e transporte

público; reconstrução de prédios ao longo dos recentes alinhamentos e instalação de novos

edifícios públicos. Foi preciso pôr ao chão centenas de edifícios e transferir para outras

regiões milhares de pessoas. Chegou-se a demolir bairros inteiros para formar vias de

comunicação urbanas mais espaçosas e retilíneas, favoráveis ao movimento de tropas. Foram

executadas, nos 16 anos do mandato de Haussman como prefeito do Sena, de 1853 a 1869,

importantes obras viárias, urbanização de terrenos periféricos, formação de parques públicos,

além de melhorias nas instalações hidráulicas. Triplicou-se a instalação de iluminação e a

antiga rede de esgoto foi quase totalmente reformulada.

O conceito de Urbanismo Monumental, evidenciado pela grandiosidade das ruas

largas e obras feitas para suportar décadas de crescimento populacional, marcou as reformas.

A esse respeito, diz Berman:

24

No fim dos anos de 1850 e ao longo de toda a década seguinte, (...) Georges Eugène Hausmann, prefeito de Paris e circunvizinhanças, investido no cargo

por um mandato imperial de Napoleão III, estava implantando uma vasta

rede de bulevares no coração da velha cidade medieval. Napoleão e

Haussmann conceberam as novas vias e artérias como um sistema circulatório urbano. Tais imagens, lugar-comum hoje, eram altamente

revolucionárias para vida urbana do século XIX. Os novos bulevares

permitiram ao tráfico fluir pelo centro da cidade e mover-se em linha reta, de um extremo a outro – um empreendimento quixotesco e virtualmente

inimaginável, até então. (...) Por fim, criariam longos e largos corredores

através dos quais as tropas de artilharia poderiam mover-se eficazmente contra futuras barricadas e insurreições populares. (BERMAN,

2007, p. 144-145).

Molda-se, assim, uma sociedade “ideal”, instituindo uma ordem social harmonizada

com o novo meio urbano, repelindo-se aquilo que era dado como barbárie e atraso medieval.

Tal plano urbanístico, moldado por uma concepção racional, antecipa aquilo que Angel Rama

chamou de cidade letrada, referindo-se às cidades planejadas na colonização latino-americana,

um sonho de ordem transposto para o papel (RAMA, 1985, p. 27-28). Rama, situando o caso

da América Latina, fala das cidades coloniais, racionalmente planejadas com o objetivo de

dominação, de jugo dos territórios conquistados. Assim, as cidades latino-americanas seriam

uma das manifestações da ordem a ser implantada pelos conquistadores espanhóis e

portugueses.

Os colonizadores tiveram que se adaptar dura e gradualmente a um projeto que, como tal, não escondia sua consciência racionalizadora, não lhe sendo

suficiente organizar os homens dentro de uma repetida paisagem urbana,

pois também requeria que fossem moldados com destino a um futuro, do

mesmo modo sonhado de forma planificada, em obediência às exigências colonizadoras, administrativas, militares, comerciais, religiosas, que se iriam

impondo com crescente rigidez. (RAMA, 1985, p. 23).

Embora fora da idéia de colonização no sentido estrito, o planejamento das cidades

modernas, com o surgimento de espaços de sociabilidade, impõe um novo desafio:

acompanhar as mudanças estruturais de configuração das relações sociais. A paisagem urbana

do século XIX e início do XX modifica-se, pois, inteiramente, passando a incorporar a

dinâmica do público e do privado, dividindo e reservando às duas esferas diferentes tipos de

comportamentos.

De um lado, há a percepção de que as relações sociais nas grandes cidades, dado o

adensamento populacional, estariam marcadas pelo compromisso de convivência

minimamente harmoniosa entre pessoas não unidas por laços familiares substantivados ou de

associação íntima, levando à necessária construção de espaços amplos de convivência (praças,

avenidas, passeios públicos), guiados todos por um conjunto de racionalidades instrumentais.

25

O ideal de controle, unidade e uniformidade era garantido tanto pela moral da civilidade

quanto pelos códigos jurídicos estabelecidos e fiscalizados pelo Estado. O espaço urbano,

dessa maneira, faz-se alegoria e alvo privilegiado de ações de disciplinamento de corpos e

mentes. Esfera legítima de intervenção e controle do Poder Público, a cidade faz-se símbolo

do novo ordenamento social – dimensionado a partir da preservação dos sentimentos e

intimidades sob o formalismo de convenções. Assim, gestos, roupas e ações passaram a fazer

parte de um “processo civilizador” próprio do ambiente citadino moderno.

Nesse ponto, vale recorrer a Doreen Massey quando, ao discorrer sobre a relação entre

espaço e globalização, revisitando a constituição da história da modernidade, questiona velhas

coerências espaciais construídas por toda uma era imperialista de territorialização que buscava

subjugar o espaço do outro. Isso ocorria de forma a negar suas multiplicidades, suas fraturas e

seu dinamismo. Segundo ela:

(...) um dos efeitos da modernidade foi o estabelecimento de uma relação particular de conhecimento/poder que se refletiu em uma geografia, que foi

também uma geografia do poder (os poderes coloniais/os espaços

colonizados) – uma geometria de poder das trajetórias entrecruzadas. E no momento pós-colonial ela voltou para ficar. (MASSEY, 2008, p. 101).

No discurso da modernidade, prevaleceria a história do colonizador que se recusa a

tratar a multiplicidade inerente ao espaço, visto como cruzamento de trajetórias e histórias.

Expõe, enfim, as condições que deveriam ser atendidas para a efetivação da modernidade e

seus efeitos de violência, racismo e opressão.

O que se desenvolveu dentro do projeto da modernidade, em outras palavras,

foi o estabelecimento e a (tentativa de) universalização de uma maneira de imaginar o espaço (e a relação sociedade/espaço) que afirmou o

constrangimento material de certas formas de organizar o espaço e a relação

entre sociedade e espaço. E que ainda permanece hoje em dia. (MASSEY, 2008, p. 103).

Além do mais, o projeto de modernidade é pensado em termos de um espaço dividido,

mas capaz de articulação interna, a ponto de, por exemplo, absorver produtos e hábitos

culturais que, mesmo trazidos de fora, apresentam um certo isomorfismo em sua relação com

o espaço, o lugar e a cultura. A análise da produção cultural dessa época, no entanto, já

evidencia a circulação de pessoas marcadas pela multiplicidade identitária.

E é nesse meio citadino moderno que entra em cena o flâneur. Ele observa a vida

urbana com todas as suas contradições e tem disposição para vagar e “folhear” as cenas da

cidade. O flâneur, uma criação de Paris, é um fisiognomonista nato da rua, que, ao

perambular sem destino certo, esquadrinha a história social da cidade. Suas perambulações o

obrigavam a passar por uma das mais novas formas de comércio: as galerias, onde as

26

mercadorias estavam em permanente exibição. As passagens, espaços cobertos por vidro com

lojas dos dois lados, eram o lugar ideal para seu deleite, por isso, para Benjamin, “A flânerie

dificilmente poderia ter-se desenvolvido em toda a plenitude sem as galerias” (1989, p. 34-

45).

Charles Baudelaire será uma referência básica na compreensão da modernidade,

segundo Walter Benjamin. Sob a máscara do flâneur, que esquadrinha a cidade e se apropria

dos elementos da cultura moderna, o poeta, através desse simulacro e protegido pelo

anonimato da multidão na qual se insere, descreve o que há de específico no espaço e no

tempo da modernidade, captado e descrito por ele. Por isso mesmo, a obra mais importante de

Baudelaire, As Flores do Mal (1985), é eleita por Walter Benjamin como fonte para analisar a

cidade de Paris. O olhar do poeta, na análise benjaminiana, faz descortinar toda uma nova

cidade, com suas imagens e seus conflitos. Em meio à profusão de pessoas que avolumam e

esvaziam os salões e as ruas, Baudelaire é um “homem da multidão”. Ele, como o dândi e o

flâneur, vagueia fixando seu olhar observador, ao mesmo tempo anuviado e crítico, sobre os

lugares e as figuras do cotidiano que fazem o espetáculo da vida moderna.

Berman (2007, p. 28-29) também reconhece em Baudelaire o poeta da modernidade, o

primeiro grande cronista que explorou a formação da metrópole moderna com seu aspecto

físico, sua estrutura social e os sentimentos que provocava no homem. A Baudelaire, Berman

associa autores como Marx ou Dostoievski. A todos eles credita a capacidade de perceber a

modernidade como um todo complexo em uma época em que somente uma mínima parcela

da população era moderna.

Berman (2007, p. 129) alega que Baudelaire dotou seus contemporâneos de uma

consciência de si mesmos enquanto modernos. Em “O Pintor da Vida Moderna”, de 1863,

(BAUDELAIRE, 2010), Baudelaire pinta a vida moderna como um grande espetáculo, um

show de moda, capaz de deslumbrar o mais descrente espectador. O ensaio consagrará uma

das famosas considerações de Baudelaire, a de que a modernidade é a reunião do eterno e do

transitório, revelando o interesse especial do escritor pela moda e sua relação com a beleza,

com o imprevisível e o passageiro, com a fascinação feminina pela aparência.

Nesse sentido, a referência às imagens do pintor e ilustrador Constantin Guys não é

gratuita. O interesse de Baudelaire pela vestimenta, pelo transitório e pela modernidade

encenada nas ruas de Paris o levará a colecionar desenhos de Guys, nos quais se destacam

homens bem vestidos, mulheres elegantes, as ruas efervescentes de Paris, ao lado da

prostituição. São desenhos que expressam uma faceta da realidade parisiense sob o olhar

arguto desse ilustrador. Reverenciados por Baudelaire como os quadros feitos pelo “pintor da

27

vida moderna”, os desenhos de Guys ajudaram a configurar a ideia de que a modernidade não

se dissocia do efêmero, do transitório. E será na rua, enquanto espaço moderno, que uma série

de imagens se consolidará como símbolos da modernidade: o caos instaurado pelo tráfego

moderno, os bulevares.

Mas, em “O Pintor da Vida Moderna”, Baudelaire mostra como a modernidade é

liricamente celebrada a partir de uma singular forma de pastoral. As dissonâncias sociais e

espirituais da vida parisiense foram banidas da descrição que o pintor faz das ruas. Em uma

visão simplista, a vida moderna é harmoniosa e universal. Assim, a representação da

modernidade é alçada à categoria de uma propaganda, nesse caso, uma publicidade positiva

da modernidade que foi devidamente capturada pela percepção de Constatin Guys, chamado

de G.:

Quando, ao acordar, o Sr. G. abre os olhos e vê o sol fulgurante invadir as

vidraças, diz para si mesmo, com pesar: “Que ordem imperiosa! Que

fanfarra de luz! Há muitas horas já, luz por tudo! Luz perdida por causa de

meu sono! Quantas coisas iluminadas poderia ter visto e não vi!” E sai! E vê correr o rio da vitalidade, tão majestoso e brilhante. Admira a eterna beleza e

a admirável harmonia da vida nas capitais, harmonia tão providencialmente

mantida no tumulto da liberdade humana. Contempla as paisagens da grande cidade, paisagens de pedra acariciadas pela bruma ou batidas pelas lufadas

do sol. Delicia-se com as lindas equipagens, os cavalos imponentes, o asseio

impressionante dos cavalariços, a destreza dos pajens, o maneio do andar das mulheres, as belas crianças, felizes pela vida e pelas boas roupas; em uma

palavra, com a vida universal. (BAUDELAIRE, 2010, p. 31-32).

A postura de Constatin Guys não perdurará na obra de Baudelaire. Ao fim dos anos de

1850, as imagens antipastorais começam a surgir, salientando as contradições da

modernidade. Nesse sentido, seu poema “Spleen de Paris” realça esse teor através de uma

narrativa que se desenrola a partir de um dos arquétipos da vida moderna: o boulevard, termo

utilizado para designar vias de tráfego elegantemente amplas, as quais compuseram o

replanejamento da Paris do Segundo Império. Sentado em um novo café, na esquina de um

recém construído bulevar, um casal apaixonado se entreolha. Homem e mulher estão inseridos

em um ambiente idílico - o café é descrito com pormenores para indicar a graça e exuberância

do lugar. Esse espaço físico opulento dialoga com a estrutura do bulevar, em cujas margens se

distribuem as construções monumentais tão valorizadas nas famosas reformas lideradas por

Hausmman.

Descreve-se para o leitor um instante de intimidade do casal, mas o momento é

saboreado também pelo público, pois a cena é acompanhada pelos olhares de outras pessoas,

entre as quais uma família de pobres. O privado resvala no público. Trata-se de uma nova

28

cena primordial criada pelos bulevares: onde as pessoas poderiam dedicar-se à própria

intimidade sem estar fisicamente sós.

Ao se dar conta de que são observados pela família de maltrapilhos, a mulher, no café,

exaspera-se e pede ao companheiro que peça ao gerente para afastar aquela gente maltrapilha.

A passagem é reveladora das ironias e contradições da cidade moderna: as transformações

físicas e sociais que haviam tirado os pobres do alcance da visão, agora os trazem diretamente

à vista de cada um. Isso ocorreu porque os bulevares abriram espaço que permitiram aos

pobres caminharem pelo resto da cidade e descobrirem, pela primeira vez em suas vidas,

como era a outra espécie de vida que aí existia. Nessa perspectiva, a cidade é resgatada como

virtude, mas também como vício. Berman assim comenta:

Contudo, cenas primordiais, para Baudelaire, como mais tarde para Freud,

não podem ser idílicas. Elas devem conter material idílico, mas no clímax da

cena uma realidade reprimida se interpõe, uma revelação ou descoberta tem lugar. (...) Ao lado do brilho, os detritos: as ruínas de uma dúzia de velhos

bairros – mais escuros, mais densos, mais deteriorados e mais assustadores

bairros da cidade, lar de dezenas de milhares de parisienses – se amontoavam no chão. Para onde iria toda essa gente? Os responsáveis pela

demolição e reconstrução não se preocupavam especialmente com isso. (...)

A família em farrapos, do poema baudelaireano, sai de trás dos detritos, pára e se coloca no centro da cena. (...) Eles também querem um lugar sob a luz.

(BERMAN, 2007, p. 147).

Dessa forma, na concepção de Baudelaire, a vida moderna possui uma natureza

própria e bela, da qual, no entanto, é parte integrante a miséria, constituindo a marca

paradoxal desse período. Paris reunirá essa imagem dicotômica.

As reformas da capital da modernidade, empreendidas por Georges-Eugène

Haussmann, refletir-se-ão no Brasil, mais especificamente nas obras que darão ao Rio de

Janeiro um outro traçado, idealizado por Pereira Passos, no início do século XX. A narrativa

sobre a cidade e a modernidade nos trópicos se descortinará sob o olhar de quem, aqui,

acompanhou o “Bota-abaixo” que propunha colocar o Rio, metonímia de Brasil, nos trilhos da

modernidade.

2.1 Rio de Janeiro: modernidade tardia

O Rio de Janeiro, nas duas primeiras décadas do século XX, é marcado pelo compasso

dos acontecimentos políticos que levaram à derrocada o sistema monárquico no final do

século XIX. Com o advento da República, em 1889, houve a substituição das elites nacionais.

As elites tradicionais do Império deram lugar ao burguês argentário. As negociatas e cargos

conquistados pelas relações mantidas com o novo governo e a especulação da bolsa de valores

29

ocorrida nos primeiros anos da República, conhecida como Encilhamento, assinalam o

surgimento do novo rico. Trata-se do típico especulador, que assume cargos rendosos e

decisórios no cenário político. A oscilação das fortunas aliada ao crescimento no movimento

portuário, ao surgimento de um vasto comércio, à penetração intensiva do capital estrangeiro

e novas aplicações industriais concorreram para que a sociedade carioca vivenciasse uma

aceleração sem precedentes de seu ritmo de vida. Por todos esses fatores, o Rio de Janeiro,

nessa época, tornou-se o maior centro comercial do país.

Contudo, o crescimento econômico era ínfimo se comparado ao das cidades europeias.

Faltava ao Rio de Janeiro infra-estrutura para atender à demanda da nova elite, que ansiava,

então, por consumir as mercadorias trazidas da Europa pelos navios atracados no porto.

Estruturalmente, a cidade mantinha-se presa ao modelo urbano do período colonial,

impedindo a ampliação de investimentos estrangeiros na cidade. Nicolau Sevcenko assim

comenta o assunto:

Muito cedo, ficou evidente para esses novos personagens o anacronismo da

velha estrutura urbana do Rio de Janeiro diante das demandas dos novos tempos. O antigo cais não permitia que atracassem os navios de maior calado

que predominavam então, obrigando a um sistema lento e dispendioso de

transbordo. As ruelas estreitas, recurvas e em declive, típicas de uma cidade colonial, dificultavam a conexão entre o terminal portuário, os troncos

ferroviários e a rede de armazéns e estabelecimentos do comércio de atacado

e varejo da cidade. As áreas pantanosas faziam da febre tifóide, do

impaludismo, da varíola da febre amarela endemias inextirpáveis. E o que era mais terrível: o medo das doenças, somado às suspeitas para com uma

comunidade de mestiços em constante turbulência política, intimidava os

europeus, que se mostravam então parcimoniosos e precavidos com seus capitais, braços e técnicas no momento em que era mais ávida a expectativa

por eles. (SEVCENKO, 2003, p.40-41).

Como se vê, com o surgimento de uma nova filosofia financeira nascida com a

República surge também a necessidade de uma remodelação dos hábitos sociais, já que o

anacronismo da velha estrutura urbana da capital marcava o descompasso da cidade

(metonímia do Brasil) com o modelo europeu então preconizado nos hábitos sociais e na

própria estrutura de suas cidades. Nessa perspectiva, o Rio de Janeiro passa a sofrer uma

remodelação, pois é preciso apagar a imagem da cidade insalubre. Um objetivo se instaura:

alinhar o Brasil à base econômica e estrutural das cidades europeias. E como já foi citado, o

modelo a ser seguido é o da cidade de Paris, a qual tinha sofrido mudanças em seu traçado no

período de 1851 a 1870.

30

Figura 1. O casario densamente habitado, ao pé do morro do Castelo, onde seria construída a

Avenida Central. Foto de Marc Ferrez, 1890. Fonte: KOK, 2005, p 25.

O início do século XX marca o começo da remodelação da cidade. Sob a gestão do

engenheiro Francisco Pereira Passos, prefeito do Rio de Janeiro de 1902 a 1906, nomeado

pelo presidente Rodrigues Alves, principiam-se as reformas urbanas que passaram a ser

conhecidas como o “Bota-abaixo”. Pereira Passos acompanhou as reformas lideradas por

Haussmann em Paris, pois viveu naquela cidade de 1857 ao final de 1860, quando lá estudou,

especializando-se em engenharia ferroviária e em urbanismo. Ao assumir a prefeitura do Rio

de Janeiro, promoveu a abertura da Avenida Central, colocando em prática uma ideia que já

tinha sido esboçada por ele em 1884, quando assumiu a presidência da empresa de transporte

público do Rio, Carril de São Cristóvão.

31

Figura 2. A modernização do Rio com a

construção de uma “outra” cidade:

obras de saneamento e remodelação das

ruas (ao lado; abaixo, detalhe). Rua da Carioca, 31.1.1906. Foto retirada por

Augusto Malta. Fonte: KOK, 2005, p.

35.

As mudanças introduzidas por Pereira Passos objetivavam dar ao Rio de Janeiro ares

de cidade moderna e cosmopolita, para tanto, obras de saneamento, urbanismo e

embelezamento marcaram as reformas. Nesse sentido, pode-se afirmar que, sob a alegação de

que essas intervenções fundamentavam-se em um grande programa de modernização do Rio

de Janeiro, seguindo cânones europeus urbanísticos e sanitários, instaura-se uma paisagem do

poder, como definida por Sharon Zukin:

(...) a paisagem dá forma material a uma assimetria entre o poder econômico

e o cultural. Essa assimetria de poder modela o sentido dual da paisagem.

Ainda nos termos de Jackson, o termo “paisagem” diz respeito à chancela especial de instituições dominantes na topografia natural e no terreno social,

bem como a todo o conjunto do ambiente construído, gerenciado ou

reformulado de algum modo. No primeiro sentido, a paisagem dos poderosos

se opõe claramente à chancela dos sem poder – ou seja, à construção social que escolhemos chamar de vernacular -, ao passo que a segunda acepção de

“paisagem” combina esses impulsos antitéticos em uma visão única e

coerente no conjunto. (ZUKIN, 2000, p. 84).

32

No caso do Rio de Janeiro, busca-se (re)criar uma paisagem, marcando a capacidade

do Estado de impor uma concepção estética, mascarada pela ideologia da modernização.

Sharon Zukin assim aborda as tensões entre paisagem e o vernacular:

Há sempre alguma tensão entre o que as instituições poderosas, entre elas, o

Estado, querem construir – em razão da honra, da glória e do lucro – e as

criações dos sem-poder.

(...) Mesmo atualmente, a capacidade de impor uma concepção estética está

associada às ideologias de modernização, ao controle da terra e, sempre, à

remoção do vernacular. (ZUKIN, 2000, p. 106-107).

O embate entre a paisagem e o vernacular conduz ao mascaramento da cidade, o que

também aconteceu em Paris. Erigem-se construções arrojadas em substituição a estruturas

dadas como ultrapassadas e sem o apelo do moderno. Mas, ocultam-se os problemas típicos

de uma cidade cosmopolita, gerando o contraste entre o moderno e o que é dado como

barbárie.

Para o autor, a inauguração da Avenida Central e a promulgação da lei da vacina

obrigatória são os marcos da transfiguração urbana da cidade do Rio de Janeiro:

Era a “regeneração” da cidade e, por extensão, do país, na linguagem dos cronistas da época. Nela são demolidos os imensos casarões coloniais e

imperiais do centro da cidade, transformados que estavam em pardieiros em

que se abarrotava grande parte da população pobre, a fim de que as ruelas

acanhadas se transformassem em amplas avenidas, praças e jardins, decorados com palácios de mármore e cristal e pontilhados de estátuas

importadas da Europa. A nova classe conservadora ergue um décor urbano à

altura da sua empáfia. (SEVCENKO, 2003, p. 43).

A Avenida Central representou medidas de intervenção urbana e significou a criação

de novas áreas de atração do capital para promover novas dinâmicas urbanas a partir da

expansão da cidade. O mesmo autor, na introdução à obra História da vida privada no Brasil

(2012), aponta para as conseqüências de tais transformações para aqueles que foram

desalojados dos sobrados do centro a ser “regenerado”:

Na inexistência de alternativas, essas multidões juntaram restos de

madeira dos caixotes de mercadorias descartados no porto e se

puseram a montar com eles toscos barracões nas encostas íngremes

dos morros que cercam a cidade, cobrindo-os com folhas de flandres

de latões de querosene desdobrados. Era a disseminação das favelas. (SEVCENKO, 2012, p.23).

A transformação do espaço urbano, e, por conseguinte, do modo de vida e da

mentalidade carioca, ocorre, pois, a partir de padrões totalmente novos e estranhos para a

33

população. A mudança se deu a partir de princípios rígidos que foram assim listados por

Sevcenko:

(...) a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade

tradicional; a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que

pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, que

será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas

aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense. (SEVCENKO, 2003, p. 43)

Obedecendo a esses quatro princípios, a cidade do Rio se confrontava com o

desmantelamento da imagem da antiga cidade para a criação do cenário moderno marcado por

mudanças estruturais e de caráter alegórico, uma vez que essas transformações “indicam

como o Brasil pôde demonstrar ao mundo o inaugurar da ‘modernidade’ nesta cidade dos

trópicos” (GOMES, 2008, p. 114). Desse modo, era uma modernidade “que se consolidava

por meio da demolição constante e pela busca do ― sempre-novo” (GOMES, 2008, p. 114).

Sob a ideia da regeneração que marcou o período, o movimento de destruição da velha

cidade, símbolo do regime imperial, pelo chamado “Bota-abaixo”, deu lugar a uma nova

estrutura urbana e a uma nova forma de pensar e agir, ganhando contornos muito específicos

em duas esferas distintas. Tal configuração, no entanto, restringe-se aos espaços demarcados

pelos poderosos, contrastando com aqueles para os quais foram os desalojados das ruas

centrais. Sobre isso discorre Paulo César Garcez Marins descrevendo o processo que

dissemina as favelas na cidade:

A miséria e os miseráveis que haviam perdido suas habitações na derrubada

violenta do cortiço tinham à disposição o morro contíguo – e as madeiras da demolição que a própria prefeitura lhes permitira recolher. Barracos de

madeira já estavam disseminados no morro de Santo Antônio, ponto

privilegiado da cidade, e logo estariam presentes no da Previdência, nos anos

que se seguiram às picaretas de Barata Ribeiro. (MARINS, 2012, p. 141).

Assim, o início do século XX, apenas do ponto de vista de alguns, marcaria ou

simbolizaria esteticamente a passagem do Brasil arcaico para o Brasil independente, urbano e,

sobretudo, moderno. Mudança que se configuraria especialmente um contraponto ao

enclausuramento e afastamento do sujeito do período colonial das interações e da própria

possibilidade do contato.

A emergência no país de uma vida citadina como centro prestigioso para as relações

sociais fez surgirem como padrão estético novas casas, assobradadas e com varandas externas

voltadas para a paisagem urbana em seu lócus pulsante, concomitantemente com a criação de

amplos espaços em que os membros da sociedade, sobretudo sua elite, poderiam ver e ser

34

vistos. Um tipo de vivência do moderno que se sustentava exatamente porque mantinha a

dicotomia equilibrada entre público e privado; objetividade e subjetividade. Ver a rua das

sacadas e andar nos passeios públicos, por exemplo, tornaram-se metáforas dessa forma de

dimensionar a vida: gravitando entre a “necessidade”, ditada pelo esforço civilizador, de estar

em contato com muitos – ver, ser visto e reconhecido como prestigioso. Segundo O´Donnell:

Na segunda metade do século XIX, o fim da escravidão, as ondas de

imigração e a melhoria nos transportes contribuíram para o crescimento das cidades, levando fazendeiros para os centros urbanos e alterando o panorama

social de um país cada vez mais diversificado em termos de classes,

profissões e espaços de sociabilidade. Mas seria somente sob o manto de Ordem e progresso que o urbano emergiria como causa e, aos poucos,

também como prática. A ideia de público estava, desde seu nome,

colada às premissas republicanas e assim, gradativamente, as portas das

casas se abriram aos perigos e fascínios do lado-de-fora. (O´DONNEL, 2008, p. 38-39).

Essa busca de progresso contém já em si o divórcio apontado por José Murilo de

Carvalho (2011) entre os termos de uma equação em que república, cidade e cidadania

deveriam andar juntas. Diz o autor:

Na República que não era, a cidade não tinha cidadãos. Para a grande

maioria dos fluminenses, o poder permanecia fora do alcance, do controle e

mesmo da compreensão. Aos acontecimentos políticos eram representações

em que o povo comum aparecia como espectador ou, no máximo, como figurante. (CARVALHO, 2011, p.162-163).

Para aqueles que frequentavam os novos locais de socialização da burguesia, uma

nova espécie de espaço público vai se moldando no Rio de Janeiro no início do século XX.

Trata-se da esfera pública literária, que se consolida com o surgimento de novos jornais, os

quais recebiam a colaboração de inúmeros literatos como Machado de Assis. Instigados pelas

mudanças políticas ocorridas com o advento da República, os literatos encontram nesse

suporte um espaço de circulação das ideias do público burguês, em que o uso da razão era

franqueado para membros da burguesia letrada que se manifestava sob temas diversos,

emitindo opiniões que nem sempre coadunavam entre si. Por isso mesmo, esse espaço público

favorecia o debate. Nesse sentido, o conceito de esfera pública designado por Habermas

(2003) para nomear a esfera pública livre emergente, no final do século XVIII, auxilia na

compreensão desse novo espaço que surge em terras brasileiras, especificamente no Rio de

Janeiro.

Habermas (2003), mostrando a diferença entre os conceitos de público e privado

através dos tempos, analisa a formação, na Europa do século XVIII, de uma esfera crítica

burguesa que, a despeito do controle exercido pela monarquia, passa a escrever contra a

35

própria corte. A oposição entre a esfera pública e o poder, constituída através do uso público

da razão, seria, para o autor, original e sem precedentes na história:

A esfera pública burguesa pode ser entendida inicialmente como a

esfera das pessoas privadas reunidas em um público; elas reivindicam

esta esfera pública regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade, a fim de discutir com ela as leis gerais da troca

na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante, as leis

de intercâmbio de mercadorias e do trabalho social. (HABERMAS, 2003, p. 42).

Essa esfera crítica constitui, para Habermas, o espaço público literário, situado entre o

Estado, responsável pela ordem e segurança dos cidadãos, e a sociedade responsável pela

administração dos demais interesses, inclusive os econômicos. O surgimento desse novo

espaço acompanha o crescente aumento da leitura de livros e revistas literárias que passou a

ocorrer primeiro no ambiente íntimo da casa e, depois, em diversos locais públicos como

salões e clubes de leitura, cafés, redações de jornais e lojas maçônicas – onde se reunia uma

elite pensante, disposta a debater assuntos que atraíam sua atenção. Portanto, o que

Habermas (2003) designa como esfera pública literária tanto remete a um espaço localizável –

como os cafés e jornais – como também a um espaço não material, ambos propícios à

circulação e debates de idéias.

Um pequeno recuo histórico se faz necessário para o entendimento do surgimento

dessa esfera. No séc. XVIII, segundo Habermas (2003), a burguesia alcança relevante papel

na economia da sociedade, no entanto, é privada da autoridade política. Cingidos de

importância social, mas destituídos de função política, os cidadãos burgueses reúnem-se para

discutir temas comuns, geralmente sobre dominação e autoridade, objetivando encontrar

soluções e relativizar o poder do Estado. Toma forma o âmbito do raciocínio público, no qual

se fará uso público da razão, em que as pessoas empenham-se no esforço de elaborar o melhor

argumento. A esfera pública burguesa, politicamente, é levada a efeito a partir de então

mediante a consolidação de sua instituição, a imprensa, que, além de transmitir informações,

serve de instrumento para submeter o Estado à exposição pública de argumentos. As

principais nações precursoras desse processo, na análise de Habermas (2003), são França,

Inglaterra e Alemanha.

É em território francês, no limiar do séc. XVIII, em substituição ao salão da corte, que

despontam os salões onde a aristocracia, escritores, cientistas e artistas se reúnem, com certa

independência em relação aos espaços do Estado, formando um “público”. Os cafés foram, na

Inglaterra, bem como os salões, na França, locais em que se congregavam uma crítica

inicialmente literária e depois também política. Nesses ambientes começa a se efetivar uma

36

espécie de similaridade entre os homens da sociedade aristocrática e da intelectualidade

burguesa. Portanto, seguindo uma tradição que se inicia nos salões, a literatura se legitima nos

cafés, onde a intelectualidade se encontra com a nobreza. Os cafés compreendem o estrato

mais amplo da classe média, incluindo artesãos e merceeiros. Na Alemanha, nas comunidades

de comensais, um pouco menos difundidas que os salões e cafés, o público é recrutado entre

as pessoas privadas que fazem trabalho produtivo, com preponderância dos burgueses com

formação acadêmica.

Nesses países, literatura e jornalismo se associam, formando um lugar de crítica do

cidadão. Em função disso, diz-se que o surgimento de uma esfera pública burguesa se

manifesta simultaneamente no cultivo da literatura e na divulgação de ideias, que não era

franqueada a todos, apenas aos instruídos.

O Rio de Janeiro, no início do século XX, com as mudanças estruturais que passou a

sofrer, foi marcado também pelo surgimento de um espaço público literário burguês, o que

possibilitou a inúmeros literatos aí residentes marcarem sua posição quanto às mudanças

impostas pelo então instaurado regime republicano. Assim, a literatura funda-se “não apenas

enquanto projeto estético e de comunicação social, mas também como dispositivo de

processos de emancipação, como forma de intervenção, subversão e resistência” (OLINTO,

2008, p. 101).

2.2 A crônica na modernidade

É nesse cenário, em que se tenta romper com o passado colonial e alcançar o

compasso da modernidade já vivenciada na Europa, que a crônica alcança popularidade e

torna-se o gênero por meio do qual muitos literatos analisam a entrada do Brasil na cena

moderna

A crônica assume, no Brasil, características próprias, mas sua origem etimológica

recupera um mito clássico. A narrativa aborda uma desavença entre deuses, já que Cronos,

filho de Urano (o Céu) e de Gaia (a Terra), destituiu o pai do trono e casou com a própria

irmã, Réia. Urano e Gaia, inteirados do futuro, profetizaram-lhe, então, que ele seria, por sua

vez, destronado por um dos filhos que gerasse. Para não permitir a concretização da profecia,

Cronos passou a devorar todos os filhos nascidos de sua união com Réia. Mas, esta consegue

enganar o marido, dando-lhe para comer uma pedra em vez da criança recém-nascida. E,

assim, o vaticínio realizou-se: Zeus, o último da prole divina, conseguindo sobreviver, deu a

37

Cronos uma droga que o fez vomitar todos os filhos que havia devorado. E liderou uma guerra

contra o pai, que acabou sendo derrotado por ele e os irmãos.

Assim, Cronos personifica o tempo. O Dicionário etimológico, de Antônio Geraldo

da Cunha (1986, p. 230), aponta a origem do vocábulo crônica, como derivado do latim

chronicus e, este, do grego chronikós. Todas as variantes conduzem, pois, ao mesmo sentido

original: a associação de cronos ao tempo. E mesmo em sua evolução, a palavra nunca perdeu

os laços com o sentido etimológico intrínseco à sua formação. Pode-se pensar que essa

particularidade da crônica, a do sentido ancestral da memória de fatos passados, ou flagrante

de um tempo presente que logo se tornará documento de tempos idos, ajudou a fazê-la um

gênero transplantado com sucesso para o Brasil. Afinal, o país que buscava construir sua

identidade, encontra na crônica o meio de registrar a feição de uma comunidade em

transformação.

Assim, a crônica em seu formato moderno se aclimatou por estes trópicos, a ponto de

ser apontada como um gênero, por excelência, brasileiro. Tal gênero sofreu mudanças em sua

constituição, distanciando-se das características latentes à crônica histórica. Aproximou-se

dos fatos corriqueiros, ligados às notícias diárias. Estas, muitas vezes, circunscritas ao banal,

ganhavam notoriedade ao serem publicadas pelos jornais, em um momento em que a

imprensa escrita, no Brasil, alcança muita popularidade e as tiragens aumentam

consubstancialmente. Tal fenômeno se deve ao fato de que os ideais republicanos de

modernização resultaram na expansão do jornalismo, marcado pela inauguração dos grandes

jornais. Sobre tal expansão, Elias Thomé Saliba observa que

Há que se ressaltar, inicialmente, a partir da última década do século

XIX, o significativo incremento da imprensa, mediante o

aperfeiçoamento tecnológico das oficinas gráficas, que, praticamente,

acompanha a intensificação do crescimento urbano do país. Surge,

afinal, o jornal mais moderno, segundo Olavo Bilac, aquele “jornal

leve e barato, verdadeiro espelho da alma popular, síntese e análise

das suas opiniões, das suas aspirações, das suas conquistas, dos eu

progresso”. (SALIBA, 2012, p.297-298).

Nesse campo, a força da crônica se deve à fixação no Rio de Janeiro dos grandes

nomes das letras nacionais, que fizeram história. Eles tinham espaço garantido na mídia

impressa.

Nesse período, essa cidade, principalmente, assiste ao surgimento dos grandes

periódicos: Gazeta da Tarde (1880), O País (1884), A Notícia (1884), Diário de Notícias

(1885), Cidade do Rio (1888) e, o mais popular dentre todos, a Gazeta de Notícias (1875).

Exceto o Jornal do Comércio, todos os demais surgem no Rio de Janeiro, que se torna, assim,

38

berço do jornalismo brasileiro. Portanto, não é temerário dizer que a crônica se consolidou, no

Brasil, paralelamente à modernização da imprensa, primeira instância mediadora do espaço

público, antes concretizado pelos debates em clubes, ruas e praças. Seu fortalecimento

representa a formação do espaço público que se dá com a circulação de informações como a

de mercadorias. No contexto social do burguês moderno, identifica-se uma estreita relação

estabelecida entre o processo de facilitação do acesso aos bens culturais com a própria

transformação da cultura em mercadoria. Por isso, diz-se que a história da imprensa é a

própria história do desenvolvimento capitalista.

Se no Brasil, o advento desse gênero literário foi assinalado com o surgimento de um

número crescente de jornais no final do século XIX, principalmente no Rio de Janeiro, por sua

tipicidade, atendeu às necessidades de uma época, consolidando-se como o gênero propício

para ser um difusor de ideias que marcaram as primeiras décadas do século XX, quando se

vivenciavam mudanças políticas importantes, como a transição da monarquia para a

república. Arrigucci (2001, p. 53) a denominará, assim, um fato moderno, pois se vincula à

avalanche de novidades trazidas pelo capitalismo industrial. Para Nestor Canclini (1999,

p.150): "[...] as crônicas jornalísticas de fins do século XIX e princípios do XX configuravam

o sentido da vida urbana, inventariando o orgulho monumental dos signos de

desenvolvimento comercial moderno”. Constituia-se, assim a narrativa, por excelência, da

modernidade, que nascia explorando todos os aspectos desse fenômeno: positivos ou

negativos, marcando, enfim, as contradições desse progresso. Por isso mesmo, salientam-se

também imagens responsáveis pela demarcação do urbano e do moderno. Devido ao seu

caráter circunstancial e efêmero e ao suporte na imprensa (jornal e revista) que envelhece no

outro dia, é que a crônica ganha a sua modernidade, presa à dinâmica social das cidades. Ela

também é cria da evolução, das transformações tecnológicas que acometem a sensibilidade e a

percepção humanas.

Estampada nas páginas dos periódicos, a sobrevida da novidade (seja ela um produto,

uma notícia) era tão fugaz como a vida moderna, a partir da qual foi talhada a crônica

brasileira.

Compreendida desse modo, a crônica é ela própria um fato moderno, submetendo-se aos choques da novidade, ao consumo imediato, às

inquietações de um desejo sempre insatisfeito, à rápida transformação e à

fugacidade da vida moderna, tal como esta se reproduz nas grandes metrópoles do capitalismo industrial e em seus espaços periféricos.

(ARRIGUCCI JR, 2001, p. 53).

39

Crônica e jornal passam a andar juntos, o que agrega ao conceito da primeira novas

significações. No jornal, com o nome de folhetim, a crônica designava um artigo de rodapé

escrito a propósito de assuntos do dia – políticos, sociais, artísticos, literários. Por isso, Davi

Arrigucci (2001, p. 56-57) diz que a crônica trata de uma matéria muito misturada, o que

projetou nos primeiros cronistas brasileiros a singularidade de aprendizes. Era preciso

assimilar uma maneira particularizada de tratar o tema, de empregar a linguagem, de usar o

espaço sempre delimitado do jornal, exigindo, assim, um tratamento artístico novo. Dessa

forma, ser um folhetinista era uma maneira de sedimentar o aprendizado que promoveria o

gradual vicejar do cronista. Isso aconteceu com José de Alencar, o qual se aproximou da

crônica através do folhetim, quando publicava na coluna denominada “Ao correr da pena”, do

Correio Mercantil do Rio, em 1854 e 1855, desde capítulos de romances, como O Guarani,

até textos que percorriam os mais variados acontecimentos, dos grandes aos pequenos. O

caráter volátil desse espaço intitulado folhetim acabou por dar o tom que a crônica passou a

ter no Brasil, um produto sui generis do jornalismo literário que é hoje. Esse pêndulo entre

literatura e jornalismo marcará o fortalecimento da crônica e o momento em questão será

descrito por Nelson Werneck Sodré como “...uma fase em que imprensa e literatura se

confundiam...”. (SODRÉ, 1999, p. 248).

Aos poucos, a crônica foi se tornando um texto mais curto, e, afastando-se da

finalidade de informar e comentar (deixada a outros tipos de jornalismo), passou a ser

substituída pela intenção de apresentar os fatos cotidianos de forma artística e pessoal. Isso

ocasionou o surgimento da feição moderna da crônica, seu caráter literário. Nesse caso, o

suporte não se impõe à linguagem literária, mas a esta se associa, dando ao texto um tom

próprio. A arrumação parece insólita e fadada ao desastre, pois o gênero mescla jornalismo e

literatura, sondagem psicológica e social associada às sutilezas do humor. Mas, segundo

Arrigucci (2001), justamente essa elaboração é que afasta a crônica da contingência. Em suas

palavras,

... a uma só vez, ela parece penetrar agudamente na substância íntima de seu

tempo e esquivar-se da corrosão dos anos, como se nela se pudesse sempre renovar, aos olhos de um leitor atual, um teor de verdade íntima, humana e

histórica, impresso na massa passageira dos fatos esfarelando-se na direção

do passado. (ARRIGUCCI JR, 2001, p. 53).

Portanto, dos literatos a crônica herdou a espessura de texto literário, seja no

arranjo/combinação da palavra ou na forma subjetiva de narrar ou apreciar os fatos. Do jornal

se aproximou pela economia linguística, pela apropriação do efêmero, do circunstancial, o

que, entremeado pelo humor, para Antonio Candido, marca a maturação do gênero. Por isso

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afirma que “a fórmula moderna, onde entra um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu

quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica

consigo mesma.” (CANDIDO, 2002, p. 7).

Davi Arrigucci (2001, p. 53) chama atenção para a vinculação da crônica ao jornal,

mas acentua não ser ela um simples apêndice deste, afinal, o gênero assumiu por aqui

características próprias, desvinculadas de sua origem européia. De lá para cá, a crônica não

deixou de crescer e passou, inclusive, a ser identificada com a própria Literatura Brasileira.

Por ser um gênero híbrido (jornalismo – literatura), a crônica apresenta um tom

informativo–argumentativo, próprio da notícia e artigo de opinião e, ao mesmo tempo, é

espaço privilegiado de inventividade e criatividade, possibilitando ao cronista construir novos

significados de mundo, a partir da articulação de várias linguagens. Trata-se de um gênero de

difícil conceituação, justamente por abarcar características de outras modalidades discursivas,

como o conto. Mas não há dúvida de que engloba um ponto peculiar, a abordagem do trivial,

do cotidiano, das miudezas presentes no cenário de uma sociedade, que, por ser tão complexa,

muitas vezes, ignora a grandeza dos pequenos gestos e acontecimentos.

É exatamente essa abordagem do trivial que confere ao gênero crônica condições

propícias para absorver certas particularidades do nosso cotidiano, as quais permitem ao

cronista promover uma releitura de um momento histórico, pois os acontecimentos são

reconstruídos por seu olhar atento e minucioso, refletindo a natureza e o desenvolvimento da

sociedade.

Mesmo que o uso do termo não seja em circunstâncias similares ao aqui adotado, vale,

pois, recorrer a Benjamin, quando afirma que o cronista, diferentemente do historiador, é um

narrador da história, isto é, liberando-se “do ônus da explicação verificável”, que é

“substituída pela exegese, não se preocupa com o encadeamento exato de fatos determinados,

mas com a maneira de sua inserção no fluxo insondável das coisas” (BENJAMIN, 1987, p.

209).

Nesse sentido, o cronista insere-se nos acontecimentos, vivenciando-os, e,

diferentemente do historiador e do romancista, participa de uma experiência coletiva,

partilhando-a com seu leitor. Diz o autor:

O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que aconteceu um dia

pode ser considerado perdido para a história. (BENJAMIN, 1987, p.223).

Não se trata de identificar o cronista atual àquele a que se refere Benjamin, mas de se

perceber que esse gênero textual, ligado ao cotidiano, passando pela experiência do autor,

41

permite-nos uma leitura da história que, diferindo da sancionada pelo poder, abre brechas em

sua linha contínua, ou como quer Benjamin, “rompe o continuum da história”, exibindo-a

como “um tempo saturado de ‘agoras’” (BENJAMIN, 1987, p. 229).

Assim, partindo de um exame minucioso do cotidiano, que lhe fornece os assuntos, o

cronista não se exime de testemunhar o seu tempo, de ser seu porta-voz. As crônicas, quase

sempre, são uma forma de revide ao estabelecido, com a manifestação de certas perplexidades

pessoais e sociais. O cronista institui, então, uma barganha entre ilusão e realidade. Para

combinar, em sua escrita, os acontecimentos vivos da rua e a engenhosidade humana, ambos

submetidos ao crivo do Eu, dosa proximidades e distâncias para registrar o cotidiano subjetivo

e o coletivo social. A crônica moderna, publicada no jornal ou em qualquer outro suporte,

torna-se, assim, difusora de representações sociais, em suas diferenças e contrastes.

Para não cair no efêmero, o cronista, segundo Arrigucci (2001, p. 55), precisa

empregar um estilo adequado capaz de relacionar o fato, que serve de referência ao gênero, à

“subjetividade de um poeta do instantâneo, que, mesmo sem abandonar o ar de conversa

fiada, fosse capaz de tirar o difícil do simples, fazendo palavras banais alçarem vôo.”

Nesse sentido, Jorge de Sá (2002) mostra que a crônica não é tão despretensiosa

quanto aparenta, muito menos apresenta desconhecimento das artimanhas artísticas. O

coloquialismo, a liberdade do cronista, o registro circunstancial, sua estrutura que beira à

economia, podem apontar, na verdade, para uma enorme riqueza textual:

... na construção de um texto literário (e a crônica também é literatura), pois

o artista que deseje cumprir sua função primordial de antena do seu povo,

captando tudo aquilo que nós outros não estamos aparelhados para depreender, terá que explorar as potencialidades da língua, buscando uma

construção frasal que provoque significações várias, mas não gratuitas ou

ocasionais), descortinando para o público uma paisagem até então

obscurecida ou ignorada por completo (2002, p. 10).

A visão despretensiosa do cronista consolidou-se na própria linguagem. O tom

grandiloquente tão prestigiado no século XIX por escritores parnasianos, por exemplo, cedeu

lugar a “uma escrita mais rés ao chão”, expressão cunhada por Antonio Candido (2002). Para

ele, essa quebra do monumental, tão presente no preciosismo linguístico, deu à crônica a

qualidade de estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas, por isso a designa como

amiga da verdade. Ao mesmo tempo, a importância que alcançou, hoje, é sintomática do

esforço por preservar no texto as marcas da oralidade, suavizando a escrita e inserindo o

gênero definitivamente em nossa época. Assim se manifesta sobre o assunto:

O problema é que a magnitude do assunto e a pompa da linguagem podem

atuar como disfarce da realidade e mesmo da verdade. A literatura corre com freqüência este risco, cujo resultado é quebrar no leitor a possibilidade de ver

42

as coisas com retidão e pensar em consequência disto. Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das pessoas. Em

lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos

candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou

singularidade insuspeitadas. (CANDIDO, 2002, p. 5).

Todas essas particularidades da crônica ajudam a consolidá-la como um gênero

essencialmente urbano que serviu eficazmente às exigências da época. No Brasil, como se

viu, assumiu um papel relevante em um cenário marcado por mudanças significativas no

plano sócio-político, em que se tentou romper com o passado colonial e alcançar o compasso

da modernidade já vivenciada na Europa.

O Rio de Janeiro que se modernizava abria espaço para novos comportamentos,

típicos de uma cidade cosmopolita, dando à imprensa e aos intelectuais que nela trabalhavam

algumas funções peculiares. A cidade, feita capital da República, deveria ser identificada pelo

resto do país como o modelo de progresso e civilização e representar toda a nação de maneira

a fazê-la aceitável perante os países tidos como civilizados. Essas características históricas da

cidade influenciaram bastante a postura dos intelectuais que nela viviam e exerciam sua

função de letrados, o que define a natureza de sua produção.

Assim, a crônica, por suas características, cumpriu bem o papel de retratar as miudezas

de uma cidade em que o novo espaço público era palco de acontecimentos triviais que

serviram de tema para as análises do cronista. Nesse sentido, pode-se perguntar se a crônica

não poderia ser ligada à idéia de um elemento da paisagem vernacular, na medida em que,

com o registro do miúdo, rasuraria a História com H maiúsculo da paisagem dos poderosos.

Nesse sentido, o cronista é espectador (mas também um crítico), um misto de

testemunho. Sabe contar ou narrar de maneira muito especial sua contemporaneidade,

consciente da instabilidade dos fatos e acontecimentos que configuram o cotidiano, tal qual

um jornalista, que os cronistas, profissionalmente, também são, quase sempre. Nesse ponto,

recorrer ao conceito de contemporâneo, elaborado por Giorgio Agamben (2009), ajuda a

perceber por que razão o cronista, tido verdadeiramente como contemporâneo, é capaz de

apreender e perceber o seu tempo. Para responder à pergunta, o que significa ser

contemporâneo?, Agamben fala daquele que coloca o seu tempo em relação com outros

tempos, fraturando-o e interrogando-o. Portanto, a contemporaneidade é uma particular

relação com o próprio tempo, que a este se prende, mas que também dele toma uma certa

distância. O afastamento é, então, necessário para poder assimilar uma época em que o

arcaico ali se faz presente a fim de salientar o não vivido, o que é contemporâneo:

43

Já que o presente não é outra coisa senão a parte de não-vivido em todo vivido, e aquilo que impede o acesso ao presente é precisamente a massa

daquilo que, por alguma razão (o seu caráter traumático, a sua extrema

proximidade), neste não conseguimos viver. A atenção dirigida a esse não-

vivido é a vida do contemporâneo. E ser contemporâneo significa, nesse sentido, voltar a um presente em que jamais estivemos. (AGAMBEM, 2009,

p. 70).

Os autores selecionados para esta pesquisa: Lima Barreto, Olavo Bilac e João do Rio,

todos eles, vivendo no Rio de Janeiro no final do século XIX e nas primeiras décadas do

século XX, exploraram em suas crônicas as contradições de uma cidade em transformação.

Suas crônicas atestam uma característica moderna desse gênero, a de resgatar um flagrante do

presente, e por isso mesmo um resgate de outros tempos.

A crônica, destacando um tema, uma cena, um ato do cotidiano da cidade moderna,

apresenta-os em seu aspecto fragmentado, aproximando-os o mais possível do grande público,

como uma fotografia ou um flash. O artifício permite ao cronista compor, através da

abordagem dos pequenos lances constitutivos da rotina de uma cidade, alguns retratos, que

são, então, partilhados com o leitor. Segundo Beatriz Resende, “não é pela fidelidade ou pelo

realismo que a crônica se aproxima do cotidiano, mas por essa propriedade de, pelo flagrante,

pelo recorte, captar e tornar próximo o semelhante”. (RESENDE, 1988, p.110). Nada mais

apropriado que esse texto de flashes cinematográficos para assinalar o discurso de uma

cidade, também fragmentada, em constante exibição.

As crônicas, sempre tendo a cidade como protagonista, são marcadas pelo olhar crítico

de um observador que, ao percorrer a cidade, discorre sobre questões importantes para o seu

tempo, que se mantinham camufladas.

Por isso mesmo, Olavo Bilac, Lima Barreto e João do Rio, considerados cronistas

sagazes da sociedade carioca do início do século XX, assemelham-se a um flâneur.

Caminham pela cidade e com um olhar perspicaz captam, a seu modo, as nuances de um Rio

de Janeiro que se modifica para atender ao projeto republicano de modernidade.

Assim, o corpus sobre o qual se debruça a pesquisa serve como espelho da

mentalidade brasileira na passagem do século na busca pela consolidação da urbe, mas abre

também espaço a olhares sobre a cidade atual. Nesse sentido importa examinar em que

medida a crônica participa da construção da esfera pública, que, para Habermas (2003), é uma

esfera pública literária. Ao realizar uma incursão na vasta produção jornalística desses

escritores, objetiva-se, pois, compreender como as crônicas se consolidam como um elemento

decifrador da cidade, que passa a ser lida, e como intervêm no espaço público da época e de

agora. Tanto a urbe quanto a ficção são, como já se afirmou, polifônicas, pois permitem uma

44

pluralidade de leituras. Isso significa para o cronista (de)cifrar os vários signos construtores

da cidade, como o leitor busca decifrar os signos do texto literário.

Os autores selecionados para este trabalho representam essa pluralidade de vozes.

Importa, pois, identificar a diversidade de posturas que marca a construção de suas crônicas,

as quais foram publicadas, inicialmente, em jornais da Belle Époque carioca, marcada pelo

processo de reformulação do espaço urbano real e simbólico.

Os jornais, ocupando papel primordial na integração das múltiplas faces da cidade,

debruçam-se sobre as experiências comuns da vida urbana, estabelecendo redes de

comunicação e tornando possível a apreensão de sentidos sociais do que nela acontece. Ao

difundir padrões e normas sociais, criam uma espécie de coordenação das múltiplas

temporalidades de um público diversificado.

O espaço urbano, fruto das relações culturais, torna-se um operador de leitura, já que,

como aponta Lucrecia D’Alessio Ferrara (1997) tal espaço conta uma história não verbal:

As transformações econômicas e sociais deixam, na cidade, marcas ou sinais

que contam uma história não verbal pontilhada de imagens, de máscaras, que têm como significado o conjunto de valores, usos, hábitos, desejos e crenças

que nutriram, através dos tempos, o cotidiano dos homens. (...) Em outras

palavras, a imagem polissensorial da cidade vem marcada por determinadas categorias que geram padrões quase emblemáticos, assinalam momentos

históricos e atraem a atenção dos que se ocupam da cultura urbana.

(FERRARA, 1997, p. 202).

Os cronistas leram a cidade e suas marcas, trazendo-as até nós. Em outras palavras,

inseridos em um determinado momento histórico, foram capazes de pensar uma determinada

realidade social. Como indica Renato Cordeiro Gomes, “ler a cidade consiste não em

reproduzir o visível, mas torná-la visível” (2008, p. 35) e para isso se deve levar em conta que

ela é um ‘ambiente construído’(p. 23) pela imaginação e força dos homens, sendo, ainda, um

dos espaços onde se instauram relações econômicas, sociais e culturais entre o homem e seu

próximo e/ou entre o homem e a própria cidade, as quais também serão perscrutadas nos

textos literários aqui trazidos à cena.

As crônicas selecionadas possibilitarão averiguar em que medida esboçam a

(des)articulação da sociedade carioca da Belle Époque, o que exigiria do cronista atenção ao

espírito de seu tempo para registrar tanto a euforia da modernização quanto as mazelas

sociais, consideradas por muitos herança do regime monárquico. Mudanças que vão além da

demarcação espacial dos grupos sociais; as novidades técnicas e, principalmente, as inovações

nos transportes e nas comunicações modificam a percepção da temporalidade e da circulação

45

dentro da cidade, criando novos hábitos e comportamentos. É a vida vertiginosa assim

descrita por João do Rio:

E subitamente, é a era do automóvel. O monstro transformador irrompeu,

bufando, por entre os escombros da cidade velha, e como nas mágicas e na

natureza, aspérrima educadora, tudo transformou com aparência nova e novas aspirações. (RIO,1911, p. 20)

Dessa forma, importa observar em que medida os cronistas selecionados são capazes

de traçar mapas do cotidiano dessa sociedade em que a efemeridade representa uma ameaça

que deve ser contida com a construção de memória.

Todas as mudanças por que passa a sociedade carioca, no início do século XX,

desnorteiam os habitantes da cidade ao desestruturar suas referências, sejam elas espaciais,

temporais ou comportamentais. Nesse momento, a imprensa escrita, representada por seus

cronistas, e como já citado, intelectuais de grande notoriedade na época, passa a cumprir um

papel peculiar.

Volta-se, assim, à concepção de cidade letrada, que segundo Rama (1985, p. 49)

molda-se por um grupo restrito e drasticamente urbano que maneja os instrumentos de

comunicação com ideologização do poder. Seu poder é maior em períodos como o tratado

aqui, em que as transformações rápidas e sucessivas demandam desse grupo a ordenação do

novo universo de signos para que a norma seja fixada. Levando em consideração que a

imprensa passava por avanços significativos e que seus grandes colaboradores eram os

literatos, a instituição e seus integrantes são peças fundamentais na engrenagem dessa

sociedade, pode-se perguntar em que medida suas crônicas apresentam um comportamento

típico do grupo a que se refere Angel Rama, em que medida se afastam dele fazendo ecoar

outras vozes.

Trata-se, destarte, de aprendermos com esses “primeiros modernistas” mais sobre o

nosso mundo, no qual o processo de modernização desenvolveu-se em uma rede da qual

ninguém pode escapar, nem no mais remoto canto do mundo. A leitura, nos capítulos que se

seguem, das crônicas de Olavo Bilac, Lima Barreto e João do Rio não consistirá em uma

análise com o objetivo de abranger sua obra, mas configura uma tentativa de mapear e

examinar imagens da cidade em algumas produções da literatura brasileira desenvolvida no

século XX.

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CRONISTAS DA VIDA MODERNA

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3. BILAC: ENTRE POEIRA E ESCOMBROS

Em artigo intitulado “Festejar e repensar a Independência: um balanço”, os

pesquisadores Hendrik Kraay e Jurandir Malerba afirmam que no século XX o Brasil acolhe a

tendência de se comemorar centenários. Para registrar algumas datas mais emblemáticas,

basta citar o quarto centenário do Descobrimento (1900), o centenário da Independência

(1922), centenários da fundação de grandes cidades (Salvador, 400 anos, em 1949; e Rio de

Janeiro, 400 anos, em 1965). Segundo eles, essas comemorações são referências importantes

para refletir sobre a memória coletiva, a revisita às tradições, o processo de formação das

nações e a oposição política manifestada nas polêmicas suscitadas por elas: “Foram e são

incentivos à produção de novos estudos históricos, sejam ufanistas, sejam polêmicos e

críticos. Às vezes, abriram espaço para historiadores intervirem em debates públicos”

(KRAAY e MALERBA, 2010, p. 366). Comemorações, datas alusivas a episódios

considerados notáveis da história permitiriam, assim, refundar, reatualizar identidades, sejam

elas nacionais ou locais, oficiais ou privadas, públicas ou pessoais.

Em seu tempo, cronistas, como Olavo Bilac, não se eximiram de abordar essas datas

festivas, em crônicas que sugerem como a comemoração dos centenários serve, muitas vezes,

para um fim diferente daquele pensado a princípio. Para celebrar o quarto centenário do

Descobrimento e “a entrada do quinto século da nossa existência”, Bilac publicou em 22 de

abril de 1900, na Gazeta de Notícias, uma crônica extremamente sugestiva sobre os festejos

que estavam sendo preparados pela Associação Centenária para recordar esse feito histórico.

Antes de analisar a referida crônica, é preciso lembrar que as festas do IV Centenário

do Descobrimento não fugiram à regra das comemorações de datas nacionais que, grosso

modo, seguiam um roteiro típico: campanhas de esclarecimento patriótico, organização de

eventos cívicos, montagem de exposições, inauguração de monumentos, confecção de selos,

medalhas, bandeiras e hinos.

Constituiu-se uma comissão de nomes ilustres que tentou levar adiante seus

preparativos. O Brasil de 1900 estava às voltas com crises, econômica e política, bem como

com um profundo desalento frente à experiência republicana após uma década de lutas e

conflitos. Assim, as comemorações não poderiam deixar de discutir a viabilidade do país

como nação moderna. Os argumentos acionados para a realização dos festejos baseavam-se

em um discurso patriótico do qual faziam parte as noções de luta, sacrifício, abnegação,

coragem, heroísmo e honra. Todas elas serviam como justificativa das comemorações, e entre

as vantagens do projeto destacavam-se seus benefícios morais (dignificar a pátria perante o

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mundo civilizado), educacionais (possibilitar a educação cívica) e materiais (favorecer o

crescimento do movimento comercial).

Os trabalhos preparatórios acenavam para a importância e mesmo para a necessidade

de se comemorar o aniversário da nacionalidade. Bilac, na crônica citada, vislumbra no

trabalho de seu primeiro predecessor, Pero Vaz de Caminha, a descrição extasiada de uma

terra magnífica e louva o exercício intelectual do escrivão português, cujo documento, em

uma linguagem lírica, prenunciava o surgimento de uma nação. Não menos significativo é o

fato de Bilac, incluindo em seu texto um trecho da própria Carta, reconhecer em Caminha a

importância magistral de ter sido o primeiro a escrever crônicas em terras brasileiras.

A crônica apresenta uma forte conotação nacionalista e busca incitar o leitor a

descobrir a importância de se comemorar uma data histórica tão significativa para a formação

da nacionalidade brasileira. Mais do que isso, a organização da festa, sua concretização, aos

olhos de Bilac, assume projeções alegóricas. Tal iniciativa representaria a aptidão do

brasileiro de colocar em prática tarefas muito mais grandiosas, e, de uma forma mais concreta,

simbolizaria a força motriz do brasileiro, sua engenhosidade para destacar as potencialidades

de uma nação repleta de atributos que precisavam ser alavancados.

Dessa comemoração histórica, alguma cousa vai ficar, alguma cousa que mostrará o que valemos, como inteligência e como caráter. Ficará o Livro do

Centenário, atestado vivo do quanto valem hoje as nossas ciências e as

nossas artes; ficará, em bronze perpétuo, o monumento da praça da glória, celebrando, a um tempo, a glória de Cabral e o gênio do nosso amado

Rodolfo Bernardelli... (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 346)2.

O emprego do pronome possessivo em “nossas ciências e nossas artes” fortalece o

sentimento nacionalista de Bilac. Na palavra “nossas” subsiste o firme propósito de associar o

brasileiro a grandes feitos, cujo sucesso não se vincula a qualquer ajuda externa que possa

encobrir a capacidade criativa dos que aqui vivem. Mas o cronista se trai quando cita Pedro

Álvares Cabral e Rodolfo Bernardelli; este, um escultor mexicano naturalizado brasileiro e,

aquele, o navegador português que descobriu o Brasil. A referência à escultura produzida por

Bernardelli nominada de “A Descoberta do Brasil”, a qual homenageia três personalidades

que participaram dessa façanha - Pedro Álvares Cabral, Pero Vaz de Caminha e o Frei

Henrique do Coimbra -, acaba por ilustrar o feito de estrangeiros, reforçando uma façanha

europeia, a glória de descobrir o Brasil. Nota-se que a construção de uma identidade nacional

mantém-se presa a um referencial externo, ou seja, o modelo a ser seguido é europeu.

2 Todas as citações da obra de Bilac, se não novamente referenciadas, referem-se a esta edição, exceto o trecho

citado nas páginas 77-78, retirado da crônica publicada na revista Kosmos, em abril de 1904, e, hoje, reunida no

livro organizado por Ubiratan Machado (2005).

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Por outro lado, as comemorações do IV Centenário do Descobrimento do Brasil

ocorreram, mas, na capital federal, não obtiveram o sucesso esperado, pois a situação

financeira do país e os conflitos políticos da época não permitiram a concretização das

iniciativas, e os festejos acabaram tendo suas dimensões reduzidas. Assim, a Associação do

IV Centenário, que se empenhara na realização de campanha nacional tentando sensibilizar os

brasileiros para a importância da celebração, não obteve a adesão esperada. Só algumas

instituições públicas, como a Presidência da República, alguns ministros e algumas unidades

da federação e municípios se sensibilizaram diante do evento.

De qualquer forma, os festejos do IV Centenário deram espaço para que se

desenvolvesse um imaginário sobre o Brasil, destacando a capacidade plástica de se adaptar

do homem brasileiro. Celebrava-se o futuro, a possibilidade de construção de uma nova

sociedade. O lado moderno se fez presente nas memórias sobre engenharia e medicina

apresentadas em congressos simultâneos aos festejos, que mostravam o esforço concreto do

Brasil para ingressar na modernidade pelas reformas urbanas, pela construção de estradas e

pela luta contra as doenças tropicais.

Uma importante fonte documental para essa festa é o Livro do Centenário, com seus 4

volumes, lançados pela Imprensa Nacional entre 1900 e 1910. Nele está reunida, além da

memória das comemorações, uma série de textos de figuras ilustres e especialistas escritos por

encomenda da Associação. O Livro do Centenário, ao fazer uma reflexão enciclopédica,

pretendeu não só divulgar a história do Brasil, mas projetar para as nações do mundo a

imagem de um país amadurecido.

Além do Livro do centenário, outras obras foram marcantes do espírito de celebração.

Podemos citar o de Afonso Celso, Por que me ufano do meu país, e o do próprio Olavo Bilac

e Coelho Neto, Contos Pátrios, como exemplos significativos de textos que procuraram lutar

contra a descrença que tomava conta das mentes dos brasileiros. Neles procurava-se associar

as benesses da providência, ao criar uma natureza como a brasileira, ao convívio harmonioso

das raças, o que tornaria possível a construção de um grande país no futuro. Tentava-se

desnaturalizar as raízes do atraso e garantir ser possível corrigir os equívocos e problemas do

país. Bilac, em crônica publicada no dia 13 de maio de 1900, aponta, nos festejos da

comemoração do Centenário, um meio de a população redescobrir o Brasil.

Ora, o primeiro lucro que, neste caso, nos ressalta aos olhos, patente

e luminoso é este: a comemoração veio sacudir-nos, veio excitar-nos o sistema nervoso, veio agitar profundamente a lagoa morta, da indiferença e

de ignorância, em que estamos atolados. Foi como se alguém, agarrando

com força o braço do Brasil, e dando-lhe meia dúzia de puxões violentos, lhe

berrasse dentro das ouças emouquecidas: “Olha que tu vives, ó sorna! Olhe

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que tu não és múmia, ó moleirão! Move esse corpanzil, esfrega esses olhos, desentorpece essas pernas, respira com franqueza, sacode fora essa preguiça!

Tu tens sangue, tens alma, tens história, tens futuro! o que te falta é

consciência... ergue-te e anda!”

Imaginam os senhores que toda aquela multidão, pasmada diante das luminárias, sabia, antes do dia 3 de maio de 1900, que houvesse outrora um

Cabral, um Frei Henrique, um Caminha? Não imaginam isso! Havia ali

muita gente para que o Brasil ainda não tinha sido descoberto.... (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 347).

Questiona-se a ignorância do povo, sua falta de consciência, nesse caso entendida

como a inaptidão para empregar a faculdade que lhe permitirá apreender aquilo que se passa à

sua volta, gerando o alheamento, a indiferença. No trecho selecionado, duas imagens se

firmam, intercaladas em um ontem, um hoje e um amanhã. Presente e passado são associados

ao atraso, à apatia. A seleção vocabular ajuda a sustentar a imagem de indolência. Daí o

emprego da expressão “lagoa morta” ou de palavras depreciativas como sorna, múmia,

moleirão e preguiça. O futuro, expresso pelo desejo do autor de que o país alcance projeção e

progresso, é externado pela frase imperativa “ergue-te e anda!”. As personalizações e

interlocuções são comuns nas crônicas de Bilac e isso pode ser apreendido no fragmento

analisado. Como uma figura humana inexpressiva, o Brasil, a que se atribui dotes e qualidades

de uma pessoa, é colocado como interlocutor de alguém apontado pelo cronista como aquele

que se mostra impaciente diante de um tipo tão incapaz de executar projetos grandiosos, de

alçar um futuro promissor. Evoca-se o passado histórico para se projetar o futuro, em um

movimento típico daquilo que Bhabha chama de modelo pedagógico de nação, marcado pelo

mito de origem, pela continuidade e pela tradição (BHABHA, 2003).

No contexto em pauta, uma idéia de purificação fortalece a crença na modernidade.

Bilac manifesta abertamente tal opinião, em crônica publicada em 27 de maio de 1900, de que

o Brasil necessita impor medidas higienistas a suas cidades. A cidade do Rio de Janeiro é seu

alvo, afinal, trata-se da capital federal da República, que apresenta traços da velha cidade

colonial. O vocabulário reforça a imagem negativa não só do Rio como também da

população. Fala em cidade sujíssima, em população de carneiros resignados, em interesses

escusos que impedem de se levar a efeito o saneamento da capital.

A cidade do Rio de Janeiro é hoje tão suja, tão mal cheirosa, tão feia como

no tempo de D. João VI. E, como o poder público continua a confiar

indefinidamente na sabedoria dos médicos, e como a sabedoria dos médicos continua indefinidamente a confiar na iniciativa do poder público, a gente

continua a ficar exposta ao ataque de todos os micróbios, de nome mais ou

menos complicado, e... si cette histoire vous embête, nous allons la recommencer!... (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 352).

51

O fragmento marca uma comparação de dois modelos políticos, o monárquico e o

repúblicano, no que tange à inércia do poder público em debelar os problemas de ordem

sanitarista da cidade: o Rio, na era republicana, ainda não havia progredido a ponto de

eliminar doenças que eram comuns no período colonial. A crônica de estrutura circular

reforça um ponto de vista: haveria um retardamento não só nas políticas públicas de

saneamento, mas, principalmente, no comportamento de todos os envolvidos no processo.

Assim, a predileção de Bilac por nominar o sistema público de saúde de medicina indígena,

higiene indígena, serve para estabelecer a imagem de uma nação que pouco avançara no setor

e precisa ser repreendida: “Vem cá, medicina indígena! senta-te aqui, neste banco da opinião

pública, e ouve as cousas duras que há muito tempo mereces! Ouve e vê se te emendas!”

(BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 352). Veja-se que o fragmento deixa clara também a posição

etnocentrista reproduzida pelo cronista, já que o modelo nacional não admite a diferença de

culturas dadas como inferiores, o que, aliás, era dado como natural naquele momento.

Para o cronista, não havia uma campanha rotineira de ação e educação sanitária. A

cidade mantinha-se atrelada ao comportamento orientado não só para obtenção e preservação

da saúde através das práticas culturais dos povos ameríndios, as quais seriam incapazes de

atender a uma nova ordem social.

Como se vê, a crônica se torna o gênero propício para fomentar a discussão por ter

como suporte o jornal. Isso dava ao escritor não só a condição de fazer dialogar seu texto com

as notícias aí publicadas como lhe permitia ter acesso ao público leitor do jornal, que crescia

cada vez mais.

Em 07 de outubro de 1900, Bilac volta a atacar. Dessa vez, expressa na crônica sua

indignação por ter o Senado rejeitado o projeto de saneamento da cidade do Rio de Janeiro

proposto pelo senador (também médico e jornalista) José Lopes da Silva Trovão ou

simplesmente Lopes Trovão. Em tom irônico, o senador é descrito como louco, perturbado,

pois apenas uma mente insana poderia submeter à apreciação uma proposta tão disparatada.

Repetindo a voz do senado que recusara a proposta, o cronista a desloca partilhando com o

leitor sua indignação

Tratar, realmente, de sanear e de aformosear o Rio de Janeiro é empresa a que só parece possam abalançar-se malucos. A prova disso é o silêncio que

pesou sobre o projeto que, recolhido ao mais arcano dos armários do Senado,

foi dado em pasto às traças vorazes. Ai! de nós! Ainda desta vez, nada se fará em favor da acabrunhada Sebastianópolis. (BILAC In: DIMAS, 2006a,

p. 370).

52

Mais uma vez se critica a cidade colonial e já é possível perceber o nascimento do

postulado nacionalista de Bilac que culmina com a criação de uma organização cívico-cultural

que perdura até os dias de hoje, a Liga da Defesa Nacional. Tendo por criadores Pedro Lessa,

Miguel Calmon e Olavo Bilac, a Liga foi fundada em 7 de setembro de 1916. Suas finalidades

foram definidas no discurso de Bilac na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, onde

inicialmente foi instalado o diretório central da Liga. Os dois pontos principais do programa

eram o serviço militar obrigatório e a educação cívica.

A Liga se atrela às reflexões acerca da identidade nacional iniciadas na segunda

metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX por parte de uma série de

intelectuais brasileiros. Duas visões e interpretações da nação são predominantes nesse

período. A primeira delas, de caráter pessimista, desvaloriza nossa cultura e, influenciada

pelas teorias racistas, concebe o povo brasileiro como uma “raça inferior”. Esses intelectuais

eram céticos quanto à realização de uma civilização “superior” nos trópicos. A raça e o meio

geográfico eram os fatores determinantes na explicação de nossa formação e constituição

enquanto nação.

Por outro lado, havia uma interpretação da nação que procurava prestigiar nossa

singularidade, destacando a extensão territorial, as riquezas naturais e o caráter cordial e

bondoso do homem brasileiro. Na já citada obra “Porque me ufano do meu país”, publicada

em 1900 por Afonso Celso, o homem brasileiro, as belezas naturais, a variedade do clima, a

ausência de calamidades, a grandeza de nosso território, por exemplo, são exaltados.

No caso de Bilac, já nas primeiras crônicas analisadas neste capítulo, é possível

verificar o reconhecimento das potencialidades do País, com o particular enaltecimento das

belezas naturais do Rio. Em postura menos ufanista, no entanto, reconhece a precariedade

urbanística da capital da Nação. O que se percebe é um tom de incredulidade por não ser

possível compreender como uma terra tão promissora trilha um caminho tão adverso. Assim,

o espaço do jornal ocupado pela crônica favorece a manifestação das insatisfações do autor. E

muito mais: vislumbra no próprio cronista a capacidade de lapidar a notícia, de abordá-la sob

um olhar mais criterioso, dissecando suas peculiaridades. Com o uso da imagem do garimpo,

evidencia-se a função que o cronista se atribui de guia do povo, no exercício da escrita

jornalística.

Os noticiaristas registram; os cronistas comentam. O noticiarista retira da

mina a ganga de quartzo, em que o ouro dorme, sem brilho e sem préstimo; o cronista separa o metal precioso da matéria bruta que o abriga, e faz

esplender ao sol a pepita rutilante. Naquela notícia e naquela razão há um

lindo pedaço de ouro, que convém aproveitar.... (BILAC In: DIMAS, 2006a,

p. 566).

53

Nesse tipo de abordagem, a publicação na imprensa de um telegrama de Buenos Aires,

dizendo que o intendente dessa cidade, Adolfo Bullrich, iria em comissão à Europa, a fim de

estudar os melhoramentos das grandes capitais europeias, que podiam, com proveito, ser

adotados na capital argentina, impulsionou Bilac a elaborar uma crônica em que compara o

Brasil à Argentina. O fato lhe permite mais uma vez criticar o estilo de administração adotado

no Brasil. O cronista se ressente do que se tornou o Rio de Janeiro e, por extensão, o Brasil:

“a vergonha da América!”

Mem de Sá, quando fundou “nesta Babilônia de água e verduras” o Rio de Janeiro, fez o que pôde. Hoje, se o velho governador pudesse ressuscitar e

contemplar tudo isso, sentiria o rubor da indignação subir à sua rude face

tostada pelos pós de tantas viagens e de tantas batalhas. Mais uma vez, o criador se envergonharia da criatura.... (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 376).

O recurso da comparação se projeta em inúmeras outras crônicas. A imagem do Rio é

rivalizada não só com Buenos Aires e Paris, mas até mesmo com uma conterrânea – São

Paulo, capaz de se colocar a frente do Rio de Janeiro em matéria de saneamento básico.

S. Paulo, em dez anos, reabilitou-se e depurou Santos, que era mais imunda

que o Rio de Janeiro, salvou Campinas da ruína, saneou várias cidades do interior, e transformou a sua velha capital sorna e feíssima em uma

admirável cidade moderna que, daqui a dez anos, será superior a Buenos

Aires. (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 543).

Tão visceral é a contenda que o cronista rebaixa o Rio à figura clássica do Brás Bocó,

uma insígnia do idiota, que olha em torno de si sem consciência do tempo que passa para

nunca mais voltar. Mas, as primeiras notas de que as mudanças estavam por vir começam a

ser percebidas no tom que as crônicas passam a assumir em abril de 1903. Já se fala em

golpes de picareta, na derrubada de prédios e se prestigia a Prefeitura Municipal em

detrimento da Câmara e do Senado. Aquela representava o progresso, a destreza, a ação e,

estas, pura verborragia. Por isso, em um determinado trecho da crônica publicada em 19 de

abril de 1903, o cronista assim se expressa: “Palavras... palavras... palavras...”. Muita

indignação se mascarou nessa repetição vocabular e no uso das reticências.

Bilac finaliza o texto mesclando duas imagens que foram bem traçadas ao longo da

crônica: uma é dos deputados, caracterizados pela eficiente eloquência, cuja elocução retórica

serve para impressionar apenas; a outra é a da picareta, evocando a faculdade de executar um

projeto, nesse caso, “livrar o Brasil da vergonha de possuir a capital mais horrenda da

América...” (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 560). Em suas palavras, os papeis de ambos já

estão traçados pela contraposição como que ditada pelo destino.

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Falai, deputados! Trabalhai, picaretas! Neste mundo, os destinos variam de indivíduo a indivíduo, e de objeto a objeto. Cada qual, para a sua missão...

Os deputados, bonitos, elegantes, eloqüentes, transpirando aromas e talento,

vieram ao Rio de Janeiro para falar. Vós, picaretas, sujas, grosseiras, feias,

brutais, não servis para fazer discursos, mas deveis servir para livrar o Brasil

da vergonha de possuir a capital mais horrenda da América.... (BILAC In:

DIMAS, 2006a, p. 560).

Nesse trecho, o cronista, em diálogo com interlocutores desiguais, mas colocados no

mesmo nível com a personificação das picaretas, deixa antever que não se deve esperar um

comportamento diferente dos deputados e põe em dúvida o próprio Poder Legislativo.

Explorando a imagem do belo (deputados) e do feio (picaretas), contraria o arquétipo

relativamente aceito de que tudo aquilo que gera aos sentidos deleite e admiração redunda em

honra ou glória, revela bondade ou elevado valor moral. A beleza dos deputados é tratada com

ironia. Mesmo bonitos, elegantes, eloquentes, eles representam a letargia, enquanto que as

picaretas, a disposição para agir.

A leitura das crônicas organizadas cronologicamente por Antônio Dimas em Bilac, o

jornalista (2006a), permite-nos acompanhar a paulatina mudança pela qual a cidade do Rio

passou nas primeiras décadas do século XX, e também apreender o vai e vem de emoções

sentidas por Bilac, que parece quase experimentar a sensação física de se entranhar nos

escombros e na poeira deixadas pelo “Bota-abaixo”. Existe a exaltação das obras, mas

também uma compadecida simpatia pela velha cidade, como se vê nesta crônica já de 1905.

Cidade e cronista se fundem na construção da memória afetiva:

Há pouco tempo, vi cair na rua da Uruguaiana, a casa em que nasci; depois,

vi cair, na rua da Assembléia, uma casa triste e escura, em cujo sótão se

abrigou durante alguns meses a minha mocidade boêmia; e, há bem poucos dias, passando por uma rua longínqua, assisti ao começo do

desmoronamento de uma certa casa pequenina onde... Mas nem quero avivar

a crua saudade que esta recordação me traz! (BILAC In: DIMAS, 2006a,

p. 733).

Peregrinar pela cidade, buscando nela vestígios da velha metrópole e de suas vivências

se torna um de seus afazeres. Por meio de uma crônica publicada no dia 05 de novembro de

1905, em tom de despedida, Bilac narra sua incursão ao morro do Castelo: “... e fiquei parado,

olhando tudo com um largo olhar de despedida, - porque tudo aquilo vai desaparecer”

(BILAC In: DIMAS 2006a, p. 753). O passeio ocorre no dia de Finados que, segundo a

tradição cristã, é dedicado aos mortos. Nada mais emblemático, pois o cronista percorre as

ruas de uma região fadada a deixar de existir com as características que lhe eram peculiares.

Andar pelas ruas do morro do Castelo é a oportunidade de preservar, através da memória

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visual, referências de um estilo de vida que se extinguiria com as picaretas dos operários

responsáveis pelo “Bota-abaixo”.

O leitor é conduzido a esse ambiente através da minuciosa descrição do lugar. O

cenário é melancólico, seja pela constituição física dos casebres e prédios, das ruas

esburacadas e desniveladas, seja pela caracterização de seus moradores. A estes o cronista

destina um parágrafo.

A cada passo, um rápido olhar, lançado através de uma porta, vinha revelar-

me aspectos novos de uma vida de trabalho e miséria. Pátios de estalagens,

inundados de água de sabão; quintais cheios de crianças nuas e sujas rolando no chão, entre galinhas arrepiadas; oficinas escuras em que trabalhavam

homens calados, cosendo sapatos, soldando caçarolas rebentadas,

martelando tábuas; casebres imundos, onde madraços dormiam, sobre esteiras negras, de boca aberta, cozinhando o aguardente; poiais em que se

estatelavam, numa modorra vaga, mulheres maltrapilhas, fitando as pedras

da rua com um olhar idiota; quitandas repugnantes, botequins tresandando a

cachaça e suor, tascas de onde saía um bafo asqueroso de gordura e de azeite queimado... (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 753).

A exposição minuciosa dessas cenas flagradas e enumeradas pelo cronista, enquanto

percorria o morro do Castelo, põe à vista do leitor uma outra face da cidade que é repudiada,

pois contrasta com a ideia muito distinta da nação, cuja identidade se buscava moldar no

imaginário social. Bilac revela traços da cidade que passaram a ser camuflados pelas obras de

revitalização do Rio. Ele não descreve apenas a elegância de homens e mulheres a desfilar

pela Avenida, nem as fachadas dos modernos prédios nela construídos, antes particulariza

também uma população marginalizada. O cenário o deixa pasmo, pois “Eram, a cinco minutos

da Avenida, uma terra e uma gente de outra raça, de outra época, de outra civilização.” (Bilac

In: DIMAS, 2006a, p. 753). O assombro poderia singularizar a negação de uma imagem que

não condiz com a “expressão espacial de um povo unitário”, pegando de empréstimo uma

expressão de Bhabha (2003, p. 203). O crítico literário refere-se à metáfora da coesão social

moderna, uma organização espacial capaz de propiciar experiências coletivas unitárias, para

então questioná-la, por se tratar de uma visão homogênea e horizontal associada com a

comunidade imaginada de nação.

Bilac não advoga que a modernização vai acabar com aquelas condições de vida. O

cronista aponta a miséria, mas não percebe que o embelezamento da cidade é insuficiente para

acabar com ela. Portanto, o que o autor expõe, mesmo se inconscientemente, assume uma

significação deslocada do discurso que prega a homogeneidade da cidade/nação moderna. A

descrição feita pelo cronista é reveladora da cisão de uma cidade dividida no interior dela

própria. Nesse ponto, vale recorrer mais uma vez a Bhabha, quando este diz que “o espaço do

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povo-nação moderno nunca é simplesmente horizontal.” (2003, p. 203) Aproxima-se desse

discurso o conceito de nação elaborado por Benedict Anderson; para quem a nação “...é uma

comunidade política imaginada – e imaginada como implicitamente limitada e soberana.”

(1989, p. 14). O conceito se baseia em um tripé formado por três fundamentos diversos

ligados entre si por um ou mais traços comuns. Para o teórico, a nação é imaginada porque

seus indivíduos, mesmo nunca conhecendo integralmente uns aos outros, compartilham

signos e símbolos comuns, que os fazem reconhecer-se como pertencentes a um mesmo

espaço imaginário. No caso do Rio de Janeiro, procura-se difundir a imagem de que o “Bota-

abaixo” unificaria a cidade, estendendo a todos os cidadãos as benesses trazidas pela

modernidade. Mas, é uma concepção que afronta um outro conceito formador desse tripé: a

ideia de que a nação também é limitada porque suas fronteiras são finitas; mesmo que

elásticas, além dela se encontram outras nações. Ou seja, não existe unidade, mesmo que

aparente. O assombro de Bilac ante uma população tão adversa, vivendo a cinco minutos da

Avenida Central, revela a segmentação da cidade. A unidade só existirá no plano conceitual.

Por isso a nação, segundo Anderson, tende a ser imaginada como comunidade:

(...) porque sem considerar a desigualdade e exploração que atualmente

prevalecem em todas elas, a nação é sempre concebida como um

companheirismo profundo e horizontal. Em última análise, essa fraternidade é que torna possível, no correr dos últimos dois séculos, que tantos milhões

de pessoas, não só matem, mas morram voluntariamente por imaginações tão

limitadas. (ANDERSON, 1989, p. 14).

Para Anderson, seria esse senso de comunidade responsável por integrar uma

população que, na prática, é separada por um determinado critério, a exemplo do tipo ou

classe social.

A crônica de Bilac decompõe a cidade em universos bem distintos, que passam a ser

mais conhecidos pelo leitor a partir do momento em que este dá continuidade à leitura do

texto. Seguindo os passos do cronista pelo morro do Castelo, chega-se ao marco da fundação

da cidade. Próximo dali, Bilac entra na igreja dos Capuchinhos para visitar o túmulo onde se

encontram os restos mortais de Estácio de Sá, fundador da cidade.

Ali eu via a célula geradora da cidade; dali nascera, dali partira o Rio de Janeiro, a minha urbs querida... Aquelas pedras aquelas esculturas,

aquelas inscrições têm mais de trezentos anos; o morro do Castelo é o

relicário da nossa infância de povo... Agora, tudo aquilo vai desaparecer: o morro está condenado. Não lhe

hão de valer razões de respeito histórico ou religioso, nem razões de

economia. A cidade moderna, a Cosmópolis soberana precisa daquele largo espaço que ainda é tomado pela cidade colonial. (...) O morro está

condenado. Já se sumiu, da sua encosta, destruído pela expansão da Avenida,

57

o velho Seminário. Dia a dia, as picaretas vão furando as entranhas da colina sagrada. O Progresso já lavrou e assinou a sentença de morte daquele imenso

mausoléu em que jaz o nosso passado... (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 754).

O trecho faz alusão à morte, ao desaparecimento, à condenação de um passado

histórico, cuja ruína está atrelada ao próprio desaparecimento do morro do Castelo, que daria

lugar às obras de expansão da Avenida Central. Nesse ponto, chama atenção o fato de o

morro do Castelo ser, para o cronista, representativo do ponto espacial de onde se erigiu um

povo, ponto este mostrado como espaço sagrado a forjar sua origem. Bilac projeta, então,

nesse local não só o marco do surgimento de uma cidade, mas de um povo e, por extensão, de

uma nação. Em decorrência desse caráter simbólico, a tomada de consciência, por parte do

cronista, do destino final que será dado ao Morro, deixa transparecer na crônica um tom

melancólico. Não só nessa crônica analisada como em outras, a exemplo da publicada em 13

de agosto de 1905, observa-se, por parte do cronista, um embate entre o enaltecimento da

modernidade e o pesar trazido pela constatação de que ela exige a destruição de um estilo de

vida fincado em um passado tido como obsoleto. Nesses textos, Bilac demonstra todo seu

incômodo ante a expectativa de se viver em uma cidade que vai perdendo as suas referências

históricas, pois o conjunto de acontecimentos que compõem a história de alguém ou algo

também se faz presente no conjunto arquitetônico de uma cidade. Por isso, é lícito afirmar que

o cronista e a cidade se imiscuem, interpenetram-se.

Ora, todos ou quase todos os cariocas, nascidos e criados nesta boa

cidade, devem estar vivendo, como eu, dias de infinita melancolia, ao assistir

à queda e ao desaparecimento dessas casas anciãs, onde viram o primeiro

raio de luz, onde passaram a sua meninice, onde foram felizes ou infelizes. Cada um desses prédios é para muitos de nós todo um universo de

lembranças que se aniquila: no rolar dessas pedras, no desabar dessas

muralhas, no tombar dessas telhas, gemem vidas inteiras que resistiam à morte, fixando-se aos lugares em que se expandiram, e que se desfazem

agora em poeira e em nada. (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 733).

Em tom retórico grandiloqüente, Bilac se refere ao que Renato Cordeiro Gomes

designará de “...apagamento da memória urbana traçada na escrita das pedras dos

monumentos...” (GOMES, 2008, p. 102). Os prédios que caem sob o jugo das picaretas

tiveram a faculdade de reter as lembranças de experiências vividas por pessoas que, de

alguma maneira, a eles se ligaram. O que se perde, portanto, é a memória afetiva da cidade, o

que esta tem de mais terno para seus moradores, pois normalmente se associa a certas

particularidades da vida de uma pessoa: o lugar onde nasceu e se criou por exemplo.

As duas crônicas refletem os contrastes da nação imaginada que, forçosamente, envia

para o limbo a cidade colonial por não haver simbiose entre o novo (moderno) e o velho

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(arcaico). Seria essa uma das exigências, na visão de Benedict Anderson (1989), capaz de

construir o sentido de nacionalidade, de pertencimento. A formação de uma memória comum,

compartilhada, representa uma das pontas do projeto de nacionalidade. Do outro, aposta-se

na ideia de que o nacionalismo exige, também, uma certa dose de esquecimento do passado

para se constituir como tal. No caso do Rio de Janeiro, a demolição de prédios, a

transformação do espaço público, tornou patente a busca por se concretizar o modelo de

cidade/nação moderna. A missão é validada em nome da soberania, outro elemento

responsável por escorar o conceito de nacionalismo apontado por Anderson (1989). Trata-se

de uma primazia concedida ao Estado, constituída pela qualidade de este ser independente,

senhor de seu território e imune, pelo menos no plano conceitual, aos interesses ou pretensões

de qualquer potência estrangeira. Mas, no caso das reformas ocorridas no Rio de Janeiro, o

conceito de soberania diz respeito à atuação do Estado, cujos interesses se sobrepõem àqueles

atinentes à parcela mais carente da população.

Nesse ponto é que se chega a uma pergunta suscitada por Anderson. Como o

nacionalismo consegue incutir na população a ideia de que sacrifícios colossais são

necessários ao engrandecimento da nação? Ele se refere a um cruzamento complexo de forças

históricas, os quais, uma vez criados, podem ser transplantados, “com graus diversos de

consciência e a grande variedade de terrenos sociais, para se incorporarem à variedade

igualmente grande de constelações políticas e ideológicas.” (ANDERSON, 1989, p. 14). O

que se passa no Rio de Janeiro ilustra bem o poder soberano do Estado e os sacrifícios que

este exige em nome da nação (ou do capital), os quais não passaram despercebidos.

Falar do progresso passa a ser uma tônica nos textos de Bilac. Mas as reflexões

esbarram na postura quase recorrente de se avaliar os contra-sensos da modernidade. O autor

enumera algumas questões que se tornam objeto de reflexão em suas crônicas. Para onde irão

os pobres, desalojados com o “Bota-abaixo”? “Ah! nem tudo é beleza e encanto nesta lufa-

lufa benéfica em que se vê a cidade! Os hinos de louvor são justos: mas também deve haver

lugar para um pouco de melancolia, - porque as causas de melancolia são muitas...”. (BILAC

In: DIMAS, 2006a, p. 735). Além disso, denuncia o tratamento dado aos negros, o

analfabetismo, enfim, faz questão de descrever as causas de seu abatimento mental: “E há

ainda uma outra causa de melancolia e tristeza, nesta demolição de prédios: é a lembrança dos

atropelos, das angústias, das aflições em que se vê a gente pobre, obrigada a mudar-se da

noite para o dia. A mudar-se, para onde?”. (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 734).

Há, por parte do cronista, uma preocupação de ordem prática, mas que esbarra em um

campo destinado ao sagrado e que não deveria ser infringido, o lar, e o direito real que tem

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uma pessoa e sua família de ocupar um imóvel. Por isso, a inércia do Poder Público em dar

cabo do problema ostenta características de uma profanação – desrespeita-se, afinal, a

santidade de lugares ou coisas sagradas.

Suponho que duas são as principais causas que demoram a solução do

problema: a escolha do local em que devem ficar situadas as habitações

operárias, e a escolha dos recursos pecuniários de que é preciso lançar mão.

Mas, quando se trata de resolver um tal problema, de tão vasta e sagrada importância essas duas causas de demora são de uma futilidade irritante e

criminosa. (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 734).

Essa inquietação salienta o lado combativo e até mesmo militante do escritor em

oposição a uma outra representação muito mais ressaltada pela crítica literária: a do escritor

ufanista. Enfim, ainda hoje sua imagem está ligada a um patriotismo exagerado, cuja

apreensão se deve a um ideário nacionalista, consolidado, principalmente, por defender a

obrigatoriedade do serviço militar, que culminou com a campanha cívica desencadeada em

1915. Mas, o que se apreende nas crônicas de Bilac é a defesa de um nacionalismo

consolidado em ações que elevem o Brasil à categoria de uma nação civilizada, capaz de

alcançar o desenvolvimento e a urbanidade.

Há de se admitir, então, que a exaltação do Brasil como uma terra promissora e repleta

de singularidades, capazes de alçá-la a um país de primeira grandeza, não impede o cronista

de perceber os entraves a tal projeto. É uma racionalidade construída aos poucos, que o

afastará paulatinamente de outro conterrâneo já citado no início deste capítulo, Afonso Celso,

que escreveu Por que me ufano de meu país, obra publicada para comemorar o IV Centenário

do Descobrimento do Brasil, a qual louva as qualidades do Brasil, sem mencionar os

obstáculos a serem transpostos para se alcançar o objetivo final, nesse caso, a modernidade.

O que há de incisivo nas crônicas de Bilac é a sua crença no Brasil, principalmente, o

reconhecimento de que o País reúne as qualidades necessárias para atingir a modernidade. Ao

mesmo tempo, nota-se um tom irascível nas crônicas, fruto de um sensação de enfado ante a

indolência dos políticos e um certo desconcerto emocional por se viver em um período de

transição.

Mas, a melancolia é substituída pelo estado de grande contentamento com a

inauguração da Avenida Central, como se lê na crônica “Inauguração da Avenida”, de 1905,

em que se projeta o deslumbramento de Bilac pelo símbolo maior da administração Rodrigues

Alves/Pereira Passos, a Avenida Central.

O meu bom povo, o povo da minha linda e amada cidade está delirante. (...)

Que é que lhe haviam dado os governos até agora? Imposto e pau; ruas tortas

e sujas; casas imundas... e às vezes atravessadas por balázios; estados de

60

sítio e bernardas; febre amarela e tédio (...) E eis que, de repente, alguém lhe

tapa os olhos, e leva-o assim vendado a um certo lugar, e retira-lhe a venda,

e mostra-lhe uma avenida esplêndida bordada de palácios, e cheia de ar e de

luz. (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 755).

Nessa crônica, chama atenção como o cronista se colocava frente às mudanças sofridas

pela cidade do Rio de Janeiro nesse período. Para ele, a inauguração da Avenida Central seria

motivo de deslumbramento. Pode-se perguntar se isso se deve ao fato de Bilac ter sido um

defensor do regime republicano, o qual, na sua visão e de muitos intelectuais da época,

conduziria o país rumo ao progresso, à modernização. Mesmo assim, já nos primeiros anos da

República, faz-se sentir a desilusão de muitos que participaram do movimento pró-República,

por constatarem que o regime não se mostrava capaz de (re)construir a nação e alçá-la

definitivamente à modernidade.

Figura 3. Desfilando

na Avenida Central,

7.10.1906, Augusto

Malta. Fonte: KOK,

2005, p. 82.

Nesse sonho, as mudanças estruturais que fascinam o cronista e o povo substituiriam o

urbanismo sedimentado no modelo lusitano, ligado, portanto, à monarquia, por um traçado

urbano que seguisse o modelo francês da cidade de Paris, ícone de modernidade com seus

bulevares, cafés, prédios com arquitetura inovadora. Assim pensa o cronista: “Que não será

quando da velha cidade colonial, estupidamente conservada até agora como um pesadelo do

passado, apenas restar a lembrança?” (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 757).

Na crônica “Inauguração da Avenida”, Bilac se refere ao povo e não se inclui nesse

coletivo. Nesse caso, o referente é a classe menos favorecida, que, na fala do cronista, é

deserdada, pois encontra-se à margem das benesses sociais. A certa altura do texto, Bilac se

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refere diretamente à figura do pobre, desconfiado de que tanta beleza não fora criada para ele:

“Por todo aquele dia e por toda aquela noite, o povo (...) ficou ali, indo e vindo, de boca

aberta, olhando os prédios, sem acreditar no que via – pobre desconfiado de tão grande

esmola.” (BILAC, In: DIMAS, 2006a, p. 756).

Para o autor, as obras de modernização da cidade do Rio promovidas pelo prefeito

Pereira Passos teriam inúmeros efeitos civilizadores. Um deles seria justamente o refinamento

da inteligência bruta daquela “simples e rude gente, que nunca vira palácios, que nunca

recebera a noção mais rudimentar da arte da arquitetura, [mas que] estava ali discernindo

entre o bom e o mau, e discernindo com clarividência e precisão...” (BILAC In: DIMAS,

2006a, p. 756).

Figura 4. Prédios já derrubados ou à

espera da destruição, c. 1904-1905,

João Martins Torres.

Figura 5. Edificações que foram abaixo

para dar lugar à Avenida Central, c.

1904 João Martins Torres.

Fonte: KOK, 2005, p. 57.

A inauguração da Avenida Central é descrita como um marco da modernidade que o

Brasil deseja alcançar. Mas o cronista, naquele momento, parece não se dar conta de que os

pobres continuariam alijados do processo de modernização. O fato apresentado é a construção

de uma avenida que atrai as pessoas carentes sem enfrentar de fato suas mazelas O povo é

marcado como indolente, sem poder de atuação. Sendo assim, só resta guiá-lo, fazê-lo

perceber quão fantástica é a obra recém-inaugurada. E quem fará isso são os homens das

letras, como se pode ver no uso da expressão “meu bom povo”, repetida ao longo da crônica,

que define bem o lugar do cronista em relação aos destituídos da sorte, como são percebidos.

A crônica é marcada por imagens responsáveis pela demarcação do urbano e do

moderno. Palavras como prédios, bulevares e eletricidade remontam a imagens que

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padronizam a referência do que é urbano e moderno, estabelecendo, também, valores de uma

época.

Figura 6. Os novos edifícios da

Avenida Central em fase de

construção, 1905, João Martins

Torres

Figura 7. O início dos trabalhos de

abertura da Avenida Central (vista em

direção à rainha,atual praça Mauá),

1904, João Martins Torres

Fonte: KOK, 2005, p. 68.

Muito interessante é a imagem da Gata Borralheira, presente na crônica, na referência

ao povo: “Assim ficou a Gata Borralheira, quando lhe entrou à cozinha a Fada Bondosa, e,

com um golpe, de varinha mágica, lhe mudou os andrajos sórdidos em alfaias de seda e ouro.”

(BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 755). A Gata Borralheira foi transposta para o mundo

fantástico da modernidade, permeado por imagens de castelos, e visto com um entusiasmo

exacerbado, mesmo quando também existe a constatação de que o país encontra-se num

perpétuo estado de vir-a-ser. Muitas vezes, até nos interrogamos se não há ironia nas palavras

de Bilac.

Se tomado como um operador de leitura, o espaço urbano, com suas marcas ou sinais,

é visto como fruto das relações culturais, e, como quer Lucrecia D’Alessio Ferrara, conta uma

63

história não verbal (FERRARA, 1997, p. 202). O cronista então leu a cidade e suas marcas,

trazendo-a até nós.

Marshall Berman, ao tratar da ideia de modernismo e modernização, discorre sobre a

ambivalência de se viver em um mundo marcado por uma modernidade que não atinge a

todos os segmentos sociais, ficando uma parcela da população sempre alijada desse fenômeno

(2007, p. 26).

Nesse sentido, pode-se afirmar que, sob a alegação de que a abertura da Avenida

Central fundamentava-se em um grande programa de modernização do Rio de Janeiro,

seguindo cânones europeus urbanísticos e sanitários, instaura-se uma paisagem do poder,

marcada pela “assimetria entre o poder econômico e o cultural” (cf. ZUKIN, 2000, p. 84). Aí,

como postula Zukin, “a paisagem dos poderosos se opõe claramente à chancela dos sem

poder”, chamada pela autora de vernacular.

No caso do Rio de Janeiro, busca-se (re)criar uma paisagem, marcando a capacidade

do Estado de impor uma concepção estética, mascarada pela ideologia da modernização.

Retome-se Sharon Zukin quando aborda as tensões entre a paisagem e o vernacular:

Há sempre alguma tensão entre o que as instituições poderosas, entre elas, o

Estado, querem construir – em razão da honra, da glória e do lucro – e as

criações dos sem-poder.

(...)

Mesmo atualmente, a capacidade de impor uma concepção estética está

associada às ideologias de modernização, ao controle da terra e, sempre, à

remoção do vernacular. (ZUKIN, 2000, p. 106-107).

No Rio de Janeiro da época em questão, o embate entre a paisagem e o vernacular é

mascarado pela mudança da cidade. Erigem-se construções arrojadas em substituição a

estruturas dadas como ultrapassadas e sem o apelo do moderno, mas ocultam-se os problemas

típicos de uma cidade cosmopolita, gerando o contraste entre o moderno e a barbárie.

Em “Inauguração da Avenida”, o cronista tenta justificar o silêncio do povo, pois para

Bilac, obra como aquela seria motivo de delírio. Mas, segundo ele o povo está marcado pelo

espanto, impedido de demonstrar seu frenesi ante tão fabuloso marco de modernidade.

“Delirante, não: o meu bom povo está estatelado de júbilo e de espanto (...). O seu silêncio

não é frieza: é excesso de alvoroço moral.” (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 755).

Ao leitor, não seria equivocado interpretar esse silêncio do povo como demonstração

de descontentamento, como se a crônica deixasse passar o lugar dos sem-poder. Afinal, trata-

se de obras que, iniciadas em março de 1904, forçaram a demolição de 641 casas, desalojando

64

quase 3.900 pessoas, o que ocorreu no curto período de seis meses. Tal fato exemplifica a

faceta paradoxal da modernidade. Enquanto a Avenida, com seus novos contornos e palacetes,

é o novo lugar de circulação de uma burguesia que ascende ao poder, a população pobre que

vivia no centro do Rio de Janeiro de lá é retirada, ficando alijada das benesses das

transformações.

Assim, a contradição que é uma recorrente na Modernidade também pode ser

percebida na crônica de Bilac, que enfatiza o progresso representado pela inauguração da

Avenida Central, mas parece ignorar o não acesso do povo às benfeitorias resultantes do

advento dessa modernidade tardia que a cidade do Rio de Janeiro buscava alcançar. A crônica

cita a Avenida e os palacetes que ali foram erguidos como obras destinadas ao olhar do povo,

mas abstém-se de informar, ainda que o faça em outras crônicas, o destino dos pobres que

moravam no centro antes do início das obras. Enfim, o povo, nomeado como deserdado e

rude, continuará a viver nas ruas tortas e nas casas imundas.

Assim, a leitura da crônica em pauta possibilita dar início à composição de um painel

da Belle Époque carioca, marcado pela novidade de um sistema político (a República) e de

um espaço em constante transformação (o urbano).

A gradual metamorfose pela qual passa a cidade interfere, evidentemente, na rotina

das pessoas, gerando contentamento entre alguns e insatisfação em outros. A atuação do

governo, por exemplo, não é uma unanimidade. Bilac bem sabe disso. Em crônica publicada

em 15 de janeiro de 1905 defende as reformas, louvando o desempenho do Poder Executivo.

Não é possível governar, sem ferir interesses: e os interesses não são como os cordeiros resignados, que sofrem e morrem sem protesto. Ninguém pode

administrar sem criar descontentes: quando o número destes é menor do que

o dos contentes, já o administrador pode, ultimado o trabalho, sentir esse doce consolo que vem da tarefa cumprida, mais valioso do que o esplendor

passageiro das apoteoses. (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 684).

O trecho assinala a importância da racionalidade política que Foucault, conforme já

trabalhado no capítulo 1, denominará de governo, cuja função se pautaria na condução do

cidadão nos mais variados domínios. Diz respeito à capacidade de o poder público assegurar

as condições para a manutenção e o incremento da vida em sua dimensão material. No que

concerne à tarefa administrativa que o poder político, na forma da instituição do Estado, terá

de se incumbir, Foucault, que a esse trabalho chamará de governamentalidade, singulariza o

fato de que esta não é alcançada sem originar resistências, as quais adquirem a forma de

questionamento à atividade de conduzir. Segundo ele, o papel das contracondutas “(...) têm

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essencialmente por objetivo, precisamente, recusar a razão de Estado e as exigências

fundamentais dessa razão de Estado (...)” (FOUCAULT, 2008, p. 477).

Bilac fala em “esplendor passageiro das apoteoses”, referindo-se às honras ou elogios

tributados geralmente à pessoa pública. No caso da vacinação obrigatória, a medida não era

popular, mas Bilac a vê como necessária. Por isso critica aquele tipo de administrador que,

imbuído do desejo de alcançar a aprovação popular, ou seja, a glória, faz qualquer coisa,

mesmo se isso contrariar os interesses coletivos.

A vacinação obrigatória desencadeou protestos e violência na cidade do Rio de Janeiro

fruto, segundo o cronista, da falta de conhecimento nascida de “uma massa de gente ignorante

[que], não sabendo ler nem escrever, (...) [está] sempre disposta, pelo seu analfabetismo, a

ouvir e aceitar todas as desbragadas mentiras que os exploradores lhe impingem.” (BILAC In:

DIMAS, 2006a, p. 669).

A lei que instituiu a vacina obrigatória foi aprovada no dia 31de outubro de 1904. O

projeto de regulamentação, apesar de bem intencionado, teria sido marcado por medidas

autoritárias. Previa invasão de casas, interdição de habitações julgadas insalubres, despejo e

internação à força. Por isso tudo, a imprensa apelidou o texto de “Código de Torturas” e os

positivistas questionavam a quebra dos direitos individuais do cidadão. Para muitos, faltaria a

Oswaldo Cruz, idealizador da campanha, sensibilidade política para gerir a demanda. Além

disso, o texto vazou para um jornal e no dia seguinte à sua publicação, começaram as

agitações no centro da cidade.

Os monarquistas, apostando na desordem como um meio de voltar à cena política,

patrocinaram jacobinos e florianistas, os quais usaram os jornais para passar à população suas

ideias conspiradoras. Objetivava-se depor o presidente da República Rodrigues Alves. Mas o

próprio grupo que instigou a revolta perdeu a liderança dos rebeldes e o movimento tomou

rumos próprios. Em meio ao conflito, que resultou em 30 mortos, 110 feridos, cerca de 1000

detidos e centenas de deportados, ocorreu um golpe de estado, o qual tencionava recuperar as

bases militares dos primeiros anos da República. O levante foi debelado e a cidade, como

queria Rodrigues Alves, remodelada.

A crônica de Bilac, publicada em 20 de novembro, defende as medidas do presidente,

o qual havia assumido a presidência da República em 1902. Desejava o escritor ver

concretizado o plano de governo de Rodrigues Alves, que era sustentado por dois pilares:

modernizar o porto e remodelar a cidade. Tal feito exigia executar uma ação ofensiva contra

o maior mal da capital: doenças como peste bubônica, febre amarela e varíola.

66

E eu perguntava a mim mesmo, embrutecido pelo espanto, que mágoa, que ressentimento, que receios, e que despeito pudera levar esta gente a um ato

de tão completa insensatez, obrigando todo o Brasil a perder em um dia o

que ganhara em quinze anos, revoltando-se contra um governo que só quer

dar luz, avenida, saúde, árvores, limpeza, dignidade ao povo, dando trabalho aos que querem trabalhar, provendo os lares de pão, preparando a grandeza

futura de uma pátria que só ainda não é grande e bela por ser suja e

despovoada... (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 668).

Bilac não distingue o ocorrido como um fato que diz respeito somente ao Rio de

Janeiro, antes reconhece na atitude dos rebelados uma ofensiva contra o próprio regime

republicano, sendo capaz de corroer os projetos que alçarão o país à modernidade, à

civilidade. Por isso mesmo confere à ação dos insurgentes a designação típica de um ato

criminoso, sem se dar conta, como ressalta José Murilo de Carvalho (2011, p. 139), do

movimento de resistência empreendido pelo povo. Ele fala em atentado, motim criminoso,

bando, tropel destruidor. Ainda recorre a imagens que associam os revoltosos a animais: patas

da matuta desenfreada, rapina, ferocidade. Mas o que verdadeiramente o incomoda é a certeza

de que a revolta contra a vacina é fruto da ambição de alguns, incapazes de pensar no bem

comum, mas altamente eficientes em explorar a ingenuidade dos analfabetos que, segundo

suas palavras, uma gente ingênua das estalagens, a qual foi convencida de “que o governo

queria vaciná-la com caldo de ratos mortos de peste...” (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 669).

Na crônica, Bilac está a caminhar pela cidade deserta, impactada pelo violento

incidente envolvendo as tropas governamentais e os participantes do movimento. O cronista é

absorvido pela “negrura das ruas”, ficando fora de alguns círculos de luz que irradiados dos

lampiões, muitos deles quebrados pelos revoltosos, criavam uma imagem contrastante: luz e

sombra, luz e escuridão. A descrição elaborada por Bilac é altamente alegórica. Pode ser lida

como o retrocesso, o atraso, a falta de civilidade em contraposição aos projetos de

modernidade que o Brasil ambicionava materializar. Mais expressivo é o fato de o embate

entre as tropas governamentais e os revoltosos ocorrer exatamente na Avenida, consolidada

como uma nova mitologia urbana, como quer Renato Cordeiro Gomes: “...dimensionada na

visão eufórica que a cidade das letras ideologicamente justifica. Esta cidade das letras escreve

o passado que está sendo destruído e remete à cidade futura, utópica.” (GOMES, 2008, p.

116-117)

Gomes se refere à cidade letrada, concebida por Angel Rama, não só como as cidades

planejadas na colonização latino-americana, mas também no que diz respeito à racionalização

das medidas de urbanização impostas pelos homens das letras, ou seja, por aqueles que,

imbuídos da capacidade de ler e escrever, validam-se desse atributo como instrumento de

67

maior alcance para reger uma ordem e impor uma nova configuração à cidade. Mas, entre a

poeira que se levanta com a demolição dos prédios e que causa a transformação da cidade,

nasce também a crítica à mudança que ignora e condena as raízes históricas de uma cidade

que se perde entre escombros e poeira.

No decorrer de 1905, a poeira se transforma em uma imagem habitual nas crônicas de

Bilac. Essa recorrência é condicionada pelo volume de obras que eclodiam pelo Rio de

Janeiro, mas, principalmente, pelas demolições de casas e prédios condenados pelo poder

público. Ao serem jogados abaixo, surgia um pó que impregnava a cidade. Não obstante,

Bilac atribui à poeira a alusão simbólica do nascimento, do novo em detrimento ao

velho/arcaico. Por isso mesmo, aproxima a imagem da poeira do texto bíblico Gênesis.

Poeira, poeira, poeira... Se aparecesse um Moisés, capaz de escrever o

Gênesis, o Beresith da nova Rio de Janeiro, esse historiador-profeta

começaria deste modo o primeiro livro do seu Pentateuco: “I. – No primeiro, Lauro e Passos criaram a poeira; 2 – e antes disso a terra era vazia

e vã e vão e vazio era o céu; 3 – e, então, nada mais houve além da poeira; 4

– e os dois espíritos de Lauro e Passos andavam sobre as nuvens da poeira; 5 – e da poeira saiu a cidade radiante, a cidade cuja beleza é o maior louvor e a

honra maior dos filhos de Mem de Sá”. (BILAC In: DIMAS 2006a, p. 719).

O trecho recorre ao primeiro livro da Bíblia, o Pentateuco, o qual narra diversos

acontecimentos, desde a criação do mundo, na perspectiva judaica (o chamado “relato do

Gênesis”), passando pelos Patriarcas hebreus, até a fixação deste povo no Egito, através da

história de José. Segundo a mitologia judaica, Gênesis (os hebreus dão a esse livro o nome de

Beresith) representa o início, o princípio da criação dos céus, da terra e da humanidade. É o

primeiro dos cinco livros atribuídos a Moisés.

A imagem construída por Bilac conduz ao fenômeno da criação, pois o que as

reformas lideradas por Pereira Passos, cujo empreendimento foi apoiado por Lauro Müller

(sendo este responsável pela pasta do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas – na

presidência de Rodrigues Alves) representam, alçados ao lugar de Deus, é o surgimento de

uma nova urbes, marcada pelo signo da modernidade. A cidade se erigirá do vazio, da

vacuidade absoluta, para simbolizar a existência efêmera, da qual se busca escapar.

No trecho reproduzido, a poeira é o símbolo da força criadora e uma nova cidade dela

surge. Interessante observar que no Gênesis (Beresith), o homem não é somente tido como

criado da poeira do chão, mas também sua posteridade é comparada à poeira (Gn 28, 14):

“Tua descendência tornar-se-á numerosa como a poeira do chão, tu transbordarás o Ocidente

e o Oriente, o Setentrião e o Meio-Dia e todas as nações do mundo serão abençoadas através

de ti e de tua descendência.” (1990, p. 42).

68

Bilac se refere a uma cidade que surgirá da poeira, que se desvincula do passado

colonial. Nesse aspecto, andar pelas ruas repletas de pó remete o leitor à outra imagem

simbólica, a de sacudir a poeira das sandálias, uma fórmula que simboliza o abandono total do

passado, uma ruptura completa, uma negação de tudo o que representava essa terra seca

pulverizada – nesse caso, um modelo de cidade e, por extensão, de pátria.

O autor entrecruza dois tempos que se distanciam pelo lapso de anos, mas se

aproximam por certas particularidades históricas, por isso se refere a um historiador-profeta,

capaz de identificar dois acontecimentos notáveis. O primeiro diz respeito à vitória, liderada

por Estácio de Sá, sobre os franceses, que ocupavam parte do território onde hoje se situa a

capital fluminense. Sobrinho de Mem de Sá, terceiro governador-geral do Brasil, de 1558-

1572, Estácio de Sá fundou, na gestão do tio, São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1º de

março de 1565, e expulsou os franceses da Baía da Guanabara. Os diversos conflitos entre

portugueses e franceses ocasionaram a ruína de São Sebastião. Depois de batidos os franceses

e seus aliados indígenas, Mem de Sá achou por bem que a cidade ficasse instalada em plano

elevado, permitindo a construção de bastiões que a defendessem e que também vigiassem a

entrada da baía da Guanabara. A povoação foi refundada no Morro do Castelo (atual centro

do Rio) marcando o começo de fato da expansão da cidade. O segundo momento se refere às

reformas urbanas lideradas por Pereira Passos, que deu à cidade uma nova fisionomia. Mais

uma vez se busca um novo recomeço para a cidade. Nesse ponto, inversamente, a poeira

assume a acepção de signo de morte, reportando-se à cinza, cujo valor residual é

extremamente simbólico, afinal, na tradição cristã, aquilo que está associado à morte, liga-se

ao simbolismo do eterno retorno, encontrando eco no mítico pássaro Fênix, o qual tem o

poder de renascer de suas cinzas.

Todas essas alegorias ilustram o discurso em defesa do progresso e no extenso

repertório de crônicas produzidas no decorrer da primeira década do século XX, Bilac

continua, insistentemente, a advogar em prol do desenvolvimento que, segundo ele, só será

plenamente alcançado, com o fim do marasmo intelectual. Daí resulta o seu inconformismo

frente à falta de instrução de grande parte da população; sentir-se indignado com o número

alarmante de analfabetos mais uma vez sinaliza para o fato de que o nacionalismo defendido

por Bilac estava associado à efetiva execução de um projeto nacional. O fortalecimento da

instrução pública encabeçaria esse intento. Bilac, em crônica publicada no dia 15 de outubro

de 1905, elege a alegoria de um banquete para discutir a pouca atenção dada pela plataforma

republicana à educação no Brasil.

69

“Adubado por mão de mestre, cozido a ponto, nem muito cru, nem muito desprovido de especiarias, nem muito carregado de excitantes, [o

menu, a plataforma] é um prato que honra a culinária republicana!” – foi a

opinião, creio eu, de todos os convivas que o comeram. (...)

Eu, que não era conviva, não o comi. Cheirei-o apenas, de longe, esticando para ele o nariz ansioso. Direis, sem dúvida, que, por isso, não o

posso criticar... Por quê? (...)

Claro está que ninguém pede a minha opinião sobre o prato. Mas, se o não comi, como conviva, no banquete, tenho de comê-lo depois, - como

cidadão e como contribuinte. E, parece-me justo que eu peça, no bocado que

me vai caber, mais uma pitadinha de sal... A “plataforma” é minuciosa acerca dos problemas da política, das

finanças, das indústrias, da lavoura, do comércio, da viação, da defesa em

mar e em terra. Todas essas iguarias e todos esses temperos foram

sabiamente misturados, doses fartas e racionais. Mas o tempero da instrução pública?

(...)

Ora, o que eu devo, como cidadão e como homem, dizer ao eminente autor da “plataforma” é isto:

“Desculpe-me Vossa Excelência, - mas é preciso, enquanto é tempo,

carregar a mão neste tempero! Nós não temos, no Brasil, vários problemas

temerosos; temos um só, mas temerosíssimo problema: o da instrução. O problema da instrução não é um problema: é O Problema. O Brasil é uma

agremiação de analfabetos. E uma agremiação humana qualquer pode ter

boas finanças, boa lavoura, bom comércio, boa indústria, bom exército, boa marinha; se não tiver instrução, poderá ser tudo o que quiserem, mas nunca

será uma nação.” (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 719).

A ideia de nação elaborada por Bilac não difere das máximas da “ordem e progresso”

que se tornaram o lema nacional da República Federativa do Brasil a partir do momento em

que esta se formou. A expressão, cunhada sob a influência do positivismo e depois transcrita

na Bandeira Nacional do Brasil, reproduz os ideais republicanos: a busca de condições sociais

básicas (como respeito aos seres humanos, salários dignos) e o melhoramento do país (em

termos materiais, intelectuais e, principalmente, morais). Mas, entre a cartilha republicana e a

prática vivenciada pela população marginalizada há um nítido desnivelamento, a começar

pelo acesso à instrução que, de acordo com o cronista, representaria a condição obrigatória

para o Brasil, na prática, atingir o status de nação. Isso exigiria a reavaliação funcional das

categorias até então vigentes, pois o país ainda estava preso a uma estrutura oligárquica,

impedindo a ascensão de outros grupos, incluindo aí, toda uma população inculta representada

sobretudo pelos negros da época. O que se infere das palavras de Bilac é o desejo de que o

saneamento do espaço fosse também transferido à população. Em 19 de maio, de 1907, em

uma crônica publicada na Gazeta de Notícias, o cronista assim se manifesta:

Que fizemos nós, afinal? Proclamamos a liberdade dos cativos, mas

não tratamos de assegurar a sua vida e a sua felicidade. Não os instruímos, não os educamos, não lhes demos trabalho; estupidamente e cruelmente

admitimos que já tínhamos feito por eles o mais que podíamos fazer.

70

Que escolas agrícolas, industriais ou profissionais fundamos, de 1888 até hoje, para transformar em verdadeiros cidadãos os homens que havíamos

explorado como animais? Os que lutaram e venceram, lutaram e venceram

sozinhos, sem o nosso auxílio; e não têm conta os que morreram, nesses

sertões ignorados, à míngua de trabalho e de instrução, devorados pela miséria, pela ignorância, pelo alcoolismo, pelo abandono moral... (BILAC

In: DIMAS, 2006a, p. 825).

Mas se o modelo republicano, pautado pela noção de progresso pelo progresso, não

era capaz de instituir as profundas mudanças nas regras do jogo que marginalizavam certos

segmentos sociais, as obras de revitalização impuseram uma nova maneira de agir, alterando

hábitos e costumes típicos da sociedade tradicional e, ao mesmo tempo, refutando algumas

tendências que se contrapunham aos hábitos ditados pela moda europeia. Isso ocorria por

exigência do novo cenário suntuoso emergido da poeira. Daí a campanha patrocinada pela

imprensa para condenar certos comportamentos pouco civilizados, como “...a exposição de

roupas, e outros objetos de uso doméstico, nas portas, janelas e mais dependências das

habitações que tenham face na via pública...” (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 794). Estes, se

praticados, resultariam até mesmo em aplicação de multa por parte da prefeitura. O que há de

surpreendente nas crônicas de Bilac é a constatação de que ele recrimina não somente alguns

atos ligados ao modo de viver comum das camadas mais pobres da população, mas sua

virulenta crítica também atinge certos comportamentos da população abastada.

Já não falo das casas humildes, nos bairros modestos da cidade. Que há de fazer a gente pobre, que mora em casinhas sem quintal, senão fazer da

rua lavadouro, e das janelas coradouro da sua minguada roupa? Não falo das

míseras vestes que, nas estalagens dos subúrbios, aparecem aos olhos de quem passa, estendidas em cordas, ou desdobradas no chão, lembrando os

farrapos de Jó...

(...) O que não se compreende é que essa exibição de roupas de uso íntimo

seja feita em palacetes nobres, de bairros elegantes. De manhã, ainda é

comum ver, em casas ricas, essa exposição impudica e ridícula. Na janela

desta casa, vê-se um alvo roupão de banho, sacudido ao vento matinal; e a casa parece estar dizendo, com orgulho: “Vejam bem! Aqui mora gente

asseada, que se lava todos os dias!...” (...) Que cousa abominável! A casa de

família deve ser um santuário: não se compreende que se transformem as janelas da sua fachada em vidraçarias de exposição permanente, para alarde

gabola do que a vida doméstica tem de mais recatado e melindroso...

(BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 794).

Observe-se na defesa do autor de uma vida mais civilizada os valores que atribui à

família, bem como suas noções de público e privado. Por isso mesmo, ele dita as regras da

moda e dos costumes, como no caso daquela que pregava o uso do paletó de casimira clara e

chapéu de palha em substituição da tradicional sobrecasaca e cartola, ambos pretos, símbolos

da austeridade da sociedade patriarcal e aristocrática do Império. Nem por isso deixava de

71

repudiar o cidadão (sem distinção) que deixasse de usar paletó e sapatos. A criação de uma lei

que obrigava o uso dos aludidos trajes exemplifica os excessos cometidos na época por causa

desse estado de espírito. O que se busca, através de medidas como essa, é afastar os espaços

públicos do privado, impondo-se uma série de medidas restritivas

Não seria também possível, ó cidade bem amada! que, em muitas das tuas casas dos bairros centrais, pudéssemos deixar de ver tanta gente em

mangas de camisa?

Já sei que o calor explica tudo... Mas, santo Deus!, se é só para se ver

livre do calor, e não por economia ou pobreza, que essa gente quer viver à frescata, por que não adotar o uso de um leve jaleco de brim, ou de uma leve

blusa de linho? A frescura do trajo não é incompatível com a compostura! e

não há de ser o uso de um tênue paletó de fazenda rala, que há de assar em vida essa gente tão calorenta! (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 795).

Vale observar o fato de que Bilac se refere aos moradores dos bairros centrais,

indicando uma prática que se tornou comum na época, o anseio de reservar para o público

elegante e chique a porção mais central da cidade, ao redor da nova avenida. Se isso não era

de todo possível, buscava-se ao menos assegurar que todos ou tudo que por ali passasse

seguisse o mesmo padrão imposto pela política de regeneração. Nicolau Sevcenko diz que

O resultado mais concreto desse processo de aburguesamento intensivo da

paisagem carioca foi a criação de um espaço público central na cidade, completamente remodelado, embelezado, ajardinado e europeizado, que se

desejou garantir com exclusividade para o convívio dos “argentários”.

(SEVCENKO, 2003, p. 47).

Essa prática coincide com um dos objetivos traçados pelo poder estatal: a condenação

dos hábitos e costumes ligados, pela memória, a um passado obsoleto. Se no período da

Independência do Brasil, o discurso era da unidade – “Somos todos brasileiros” -, a ponto de

as elites buscarem na figura do índio, por exemplo, um símbolo de nacionalidade, no período

da Primeira República essa relação se torna de oposição. Aflora-se o desejo de ser estrangeiro.

O centro do Rio de Janeiro deveria ser um microcosmo do Velho Mundo,

reproduzindo em escala menor o jeito de ser do europeu. Mais especificamente, almejava-se

traduzir em terras tupiniquins o jeito parisiense de ser. Paris era inigualável, dizia Bilac:

“Livre-me Deus da pretensão de querer comparar o Rio de Janeiro a Paris... Paris é Paris: e

não sei se existe atualmente ou se haverá ainda, na face da Terra, alguma cidade que se lhe

compare...” (BILAC In: Dimas 2006b, p. 338). Havia um modelo de prestígio a ser seguido,

por isso há uma negação de qualquer elemento da cultura popular capaz de comprometer a

imagem de civilidade que passou a ser construída pelo grupo dominante da época. Assim, as

festas populares religiosas - como a malhação do Judas, a festa da Penha e as barraquinhas de

São João -, foram estigmatizadas, pois representavam o retrocesso, o atraso.

72

Pouco importa. Há tradições grosseiras, irritantes, bestiais, que devem ser impiedosa e inexoravelmente demolidas, porque envergonham a

Civilização.

Uma delas é a ignóbil festa da Penha, que todos os anos, neste mês de

outubro, reproduz no Rio de Janeiro as cenas mais tristes das velhas saturnais romanas, transbordamentos tumultuosos e alucinados dos instintos

da gentalha. (...)

E devo confessar que nunca a Festa da Penha me pareceu tão bárbara como este ano. (...) todo esse espetáculo de desvairada e bruta desordem

ainda se podia compreender no velho Rio de Janeiro de ruas tortas, de

betesgas escuras, de becos sórdidos. Mas no Rio de Janeiro de hoje, o espetáculo choca e revolta como um disparate... Num dos últimos domingos,

vi passar pela Avenida Central um carroção atulhado de romeiros da Penha:

e naquele amplo boulevard esplêndido, sobre o asfalto polido, entre as

fachadas ricas dos prédios altos, entre as carruagens e os automóveis que desfilavam, o encontro do velho veículo, em que os devotos bêbados

urravam, me deu a impressão de um monstruoso anacronismo: era a

ressurreição da barbárie, - era a idade selvagem que voltava, como uma alma do outro mundo, vindo perturbar e envergonhar a vida da idade civilizada...

(BILAC In: DIMAS, 2006b, p. 370).

Bilac, representativo da consciência intelectual brasileira, contesta a sobrevida de um

extrato social que não se sintoniza com a nova ordem social vigente. A comunidade do Rio de

Janeiro, e por extensão a brasileira, organiza-se em sociedades opostas. O conflito existe na

dificuldade de coexistência desses dois universos ou na busca, infrutífera, por um

ajustamento.

Para melhor compreender o sentimento de repulsa de Bilac pela festa da Penha, é

preciso detalhar as características dessa festa popular. Era uma solenidade religiosa que reunia

peregrinos de diferentes procedências. Assumiu, também, ares profanos em função de alguns

hábitos nascidos ainda no período escravocrata. Nessa época, como os negros não podiam se

dirigir ao Santuário (localizado em um morro), ficavam embaixo festejando à sua maneira – o

que significava muita dança (o samba principalmente), bebida, comida e rodas de batuque.

Com o passar do tempo, surgiram as barraquinhas no Largo da Penha que, definitivamente,

ajudaram a popularizar a romaria. Assim, a festa da Penha, além de seu aspecto sagrado,

apresentava traços rítmicos com as tradições negras e arremedos de uma festa profana ao se

misturar com o Carnaval. Os fiéis negros, seus descendentes e os vários grupos que com eles

conviviam, para expressarem sua devoção mariana, usavam paramentos coloridos – colares,

chapéus e berrantes. Tudo isso dava à Festa um tom peculiar, desagradando intelectuais como

Olavo Bilac, que se ressentia com essa romaria meio profana que cruzava a cidade em direção

à Penha.

Pela leitura do trecho selecionado, é possível perceber que o cronista se mostra

irascível a qualquer tipo de comportamento que não se adequasse ao novo modus vivendi

73

preconizado, afinal, a profunda mudança impingida à paisagem reflete-se também na

mentalidade do carioca. Mas, a nova cidade se erguia sobre os entulhos de uma tradição

histórica que insistia em se manter viva, maculando, segundo o cronista, o espaço urbano

então renovado. Se havia de existir o carnaval, este deveria se coadunar com as características

que essa festa popular tinha na Europa: ao invés dos batuques, fantasias de índio (muito

populares na época), a existência dos cordões, impunha-se uma nova ordem estabelecida com

a presença de foliões fantasiados de arlequins, pierrôs e colombinas. O importante era não

fazer feio diante da plateia do mundo civilizado. Pensando nisso, em 1904, o Entrudo foi

proibido via edital publicado pela prefeitura. A antiga manifestação carnavalesca em que

foliões atiravam água, farinha, tinta, ovos uns nos outros e, às vezes, davam-se vassouradas,

era uma afronta ao bom gosto: “Creio que de todas as cidades civilizadas, o Rio de Janeiro é a

única que tolera essa vergonhosa exibição.” (BILAC In: DIMAS, 2006b, p. 335). Bilac

defende que o carnaval, no Brasil, deveria seguir o modelo parisiense de festejar.

Em 1903, a prefeitura já havia criado a “Batalha das Flores”, uma tentativa de

incorporar na população modos mais civilizados de se divertir, uma oposição explícita ao

tradicional carnaval da época. A festa era realizada geralmente nos meses de agosto e

setembro (quando a temperatura estava mais amena), e consistia no desfile de charretes,

automóveis e embarcações a remo luxuosamente enfeitadas com flores, nas quais desfilava a

nata da sociedade. As famílias mais ilustres disputavam prêmios, além de participarem de

projetos específicos de ornamentação e barracas que davam todo um clima de quermesse. A

festa apresentava um caráter pedagógico, pois a população carente, sem condições financeiras

de se incluir no cenário criado para tal evento, apenas acompanhava a solenidade. O intuito

era somente um, dotar esse público das ferramentas necessárias para discernir o bom gosto,

dando-lhe uma alternativa mais civilizada de comemorar o carnaval. Em seu trabalho de

mestrado intitulado A Belle Époque carioca: imagens da modernidade na obra de Augusto

Malta, o pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora, Fernando Gralha de Souza, ao

analisar fotos que reproduzem a “Batalha das Flores” afirma que:

[...] é clara a demarcação dos limites espaciais entre quem “ensina” o

divertimento e quem “aprende” a se divertir [...]: enquanto a elite ou está

desfilando ou sentada nos palanques cobertos e elevados, a população assiste ao evento em pé, ao nível do chão e separada por um cordão; enquanto os

carros e os personagens principais são enquadrados no centro das imagens, a

assistência geralmente é retratada à margem das fotos, muitas vezes de costas, assistindo a um espetáculo cujo grau de beleza independia do sujeito

que o observa, já era pré-determinado pela norma estética da modernidade,

achar ou não belo e elegante era revelar a classe social a que pertencia [...].

(SOUZA, 2008, p. 106).

74

À revelia dos traços culturais típicos inerentes à velha cidade, busca-se a

homogeneização, evidentemente, seguindo o padrão parisiense. Fora isso, qualquer outro

comportamento representaria o estado rude de povos bárbaros. Muito significativo é este

comentário de Bilac:

Paris passa por ser a metrópole do vício. Mas a sua população não toleraria jamais essa deificação pública da lascívia.

Em Paris, os séquitos festivos do Boeuf gras e da Mi-Carême são

pretextos para espetáculos artísticos, dignos da admiração e do aplauso de

um povo civilizado. Na festa da Mi-Carême, sobretudo, há, além de um intuito artístico, um intuito moral. Todas as operárias da grande cidade –

gente humilde e pobre, para quem a Vida só tem trabalho e desgostos –

elegem uma rainha, representante legítima da corporação... (...) Não sei se no Rio de Janeiro seria possível organizar uma festa como essa. Mas sei que as

nossas festas carnavalescas são indecorosas, na sua parte pública. Seria bem

melhor que essas exibições se fizessem a portas fechadas. O entrudo era uma brincadeira funesta e selvagem: mas era mais inocente do que a bacanal das

ruas. (BILAC In: DIMAS, 2006b, p. 370).

Ao introduzir o terceiro volume da coleção História da vida privada no Brasil (2012),

Nicolau Sevcenko fala sobre o sentimento de desconforto vivenciado pelo segmento detentor

do poder econômico e de mando na Primeira República frente à exposição dos hábitos e

valores da cultura popular. Tais manifestações eram tidas como manchas que conspurcavam

os ideais de ordem e progresso. O passado, as tradições, os grupos populares e todos os sinais

da sua presença se tornaram fontes de vergonha, mal-estar e indignação. O olhar estava

sempre voltado para o Velho Continente; com ele se buscava uma identificação. Por outro

lado, havia uma ignorância total acerca das terras, das gentes, dos hábitos e da cultura popular

brasileira.

Era como se a instauração do novo regime implicasse pelo mesmo ato o cancelamento de toda a herança do passado histórico do país e pela mera

reforma institucional ele tivesse fixado um nexo coextensivo com a cultura e

a sociedade das potências industrializadas. A compreensão dos fenômenos

do subdesenvolvimento e das desigualdades inerentes ao sistema de trocas no mercado internacional levou um longo tempo para germinar e adquirir

uma significativa substância crítica entre as elites republicanas. E enquanto

essa consciência crítica não amadurecia, prevaleceu o sentimento de vergonha, desprezo e ojeriza em relação ao passado, aos grupos sociais e

rituais da cultura que evocassem hábitos de um tempo que se julgava para

sempre felizmente superado. (SEVCENKO, 2012, p. 27-28).

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que se opõe ao formato que assumiu a festa da

Penha, Bilac escreveu crônicas entusiásticas em defesa das modinhas brasileiras, dos

cantadores e dançadores caipiras, do violão. Enfim, defendia muitos exemplares da cultura

popular bem como a sua preservação. Sua abordagem a respeito do violão merece uma melhor

contextualização. Inicialmente, vale lembrar que esse instrumento, ainda no início do século

75

XX, estava associado à vagabundagem. O violão e sua variante, a viola, por serem baratos,

eram acompanhamentos obrigatórios nas execuções do lundu, da modinha (gêneros

considerados de segunda ordem, porque não tinham total aceitação nos salões) da chula

(gênero considerado de terceira ordem porque havia imbuído muitas práticas da música negra,

como as danças lascivas). Em função disso, o violão foi desprezado, não era requintado. As

famílias de prestígio deveriam ter em casa um piano. Bilac brinca com o fato de ser o Rio de

Janeiro “Uma cidade, em que as crianças já nascem sabendo martelar no piano a gama natural

dos sete sons! Dó – ré – mi – fá – sol – lá – si... Si – lá – sol – fá – mi – ré – dó...” (BILAC In:

DIMAS, 2006b, p. 381). Tamanho prestígio tinha esse instrumento que era fruto de admiração

e respeito à pessoa que, simplesmente, o possuísse. Por isso mesmo, o cronista ironiza a

situação ao afirmar que poderia faltar tudo em uma habitação – comida, pratos, louça,

armário, roupa, cômoda, lençóis – enfim, qualquer item básico de subsistência, menos o

piano. Independentemente da condição financeira do morador, mesmo nas residências mais

humildes “[...] haveis de ver, por força, um piano.” (BILAC In: DIMAS, 2006b, p. 381).

A imagem descrita representa um deslocamento social que atinge a todas as classes:

seja a do rico, cujo espírito da grã-finagem estava subordinado à falsa sensação de se viver em

uma Paris tropical, como a do pobre, o qual ansiava por compartilhar das gratificações

falsamente propagandeadas pelo processo de democratização. Na busca de uma identidade

nacional não se é uma coisa nem outra. Elias Thomé Saliba fala de uma realidade paradoxal,

representativa do dilema coletivo de representação do país:

O que era ser brasileiro naquela sociedade cosmopolita e provinciana, moderna e antiquada, liberal e oligárquica – enfim, como situar-se, se não

como cidadão pelo menos como indivíduo, naquela realidade cada vez mais

fugidia, rarefeita e permeada de instabilidades sociais, com determinações racionais ou com base em esquemas sérios ou repertórios cognitivos

tradicionais? Com que linguagem descrever essa experiência da

sobreposição de tempos de anulação dos espaços e da esterilização dos

destinos individuais? (SALIBA, 2012, p. 297).

Bilac busca essa identidade para o Brasil. Dá mostras que ela será encontrada nas

representações culturais disseminadas pelos demais Estados federativos da nação. Em 1908,

quando ocorre, no Rio de Janeiro, a Exposição Nacional Comemorativa do 1º Centenário da

Abertura dos Portos do Brasil, o cronista se ressente do marasmo do evento que, pelo seu tom

imponente, afugentava as representações culturais mais populares, como os cantores de

modinhas brasileiras tão comuns entre os cariocas.

Onde estão aqui, principalmente, os cantores de modinhas brasileiras? Essa

nota, profundamente nacional, seria um encanto para nós, e uma surpresa e uma revelação para os estrangeiros. Já sei que o violão anda muito

76

desmoralizado nas rodas da alta: mas o povo continua a gostar muitíssimo dele, e basta isso para que ele conserve o seu prestígio. (BILAC In: DIMAS,

2006a, p. 891).

Bilac acaba por louvar a presença, no pavilhão de São Paulo, dos cantadores e os

dançadores caipiras paulistanos, acompanhados de seus violões, o que viria dar “[...] a nota

de arte rústica que lhe faltava.” (BILAC In: DIMAS, 2006b, p. 381). Para ele, seria um contra-

senso uma Exposição que se propusesse a inventariar o Brasil sem uma tocata de violão.

O que causa estranhamento é a maneira paradoxal como Bilac se coloca frente às

manifestações culturais populares. Em outras palavras, por que a aversão à festa da Penha e a

complacência ante a animação, o barulho provocado pela multidão de remediados que

circulam por outros festejos? Marcadamente, existe uma aparente aceitação dessas

representações populares. A acolhida será positiva desde que siga um padrão de

comportamento. O nivelamento de postura, atestado pela burguesia ascendente, atenderia ao

modelo de sociedade que se deseja impingir. Na festa da Penha, o controle sobre os devotos

não é exercido; existe uma maneira particularizada de festejar pautada em práticas que

atestariam, na visão de muitos, um lado promíscuo e bárbaro muito caracterizador do tipo

humano que reina no imaginário europeu quando se pensa nas pessoas que por aqui vivem. A

meta a ser alcançada é só uma: eliminar esses traços de selvageria.

Assim, só há um remédio: é dar tempo ao Tempo, que é um grande

médico. Talvez daqui a alguns anos a orgia da Penha desapareça, como

desapareceu o entrudo, e como desapareceram tantas outras festas bárbaras que se escudavam na implacável e insuportável Tradição.

E, enquanto isso não acontece, o Rio de Janeiro continuará a ser

desonrado pelo escândalo periódico dessa bacanal católica, em que os devotos misturam a hóstia com o peixe frito, o vinho das galhetas com o

vinho dos chifres, a oração com a blasfêmia, o êxtase com a indigestão, a

genuflexão com a rasteira, a ave-maria com a navalhada, e o fervor religioso

com o furor carniceiro. (BILAC In: DIMAS, 2006b, p. 373).

A República incutiu a ânsia por uma representação mais unitária e generalizante do

brasileiro, sob a égide da ordem, que deveria aparentar, evidentemente, características

européias, cujas qualidades lhe dariam uma maior aceitação frente às nações de primeiro

mundo. A homogeneização começou pela transfiguração do espaço urbano e se estendeu às

práticas de sociabilidade.

A busca pela padronização estética migra também para as novas construções. Por isso

mesmo, Bilac contestava o trabalho dos mestres-de-obra, até então, os responsáveis pelas

edificações da cidade. Esse profissional estava até então associado ao arcaísmo das cidades

coloniais, por isso seu trabalho foi alvo de muita crítica. Atribuía-se a ele a insígnia do mau

77

gosto, da falta de inovação. Bilac não pensa diferente; sua crítica à atuação desse profissional

ficou expressa em crônicas como a publicada na revista Kosmos, em 1904.

O meu medo, o meu grande medo, quando vi que se ia rasgar a

Avenida, foi que a nova e imensa área desapropriada fosse entregue ao mau

gosto e à incompetência dos mestres-de-obra. O receio não era infundado... Todos estão vendo que, em geral, as casas mais novas do Rio de Janeiro são

ainda mais feias do que as antigas... Uma boa avenida – dizia eu de mim

para mim – não é somente uma rua muito comprida, muito larga e muito reta: a avenida do Mangue tem todos esses predicados, e, entretanto, é um

horror! Uma avenida precisa de prédios bem construídos, elegantes ou

suntuosos. Casas tortas e feias, em ruas largas, são como vilões na corte:

todos os defeitos se lhes exageram. E, se, vamos encher a avenida de prédios de cacaracá, melhor será que nos deixemos de sonhos, e que nos

contentemos com o beco das Cancelas e com a travessa do Ouvidor!

(BILAC In: MACHADO, 2005, p. 227).

O trecho reforça a visão depreciativa que se tem dos mestres-de-obra. Tachá-los como

incompetentes apenas atesta a valorização do conhecimento técnico em oposição ao saber

fundado na experiência direta e na observação. A revolução científico-tecnológica, advinda

dos ideais iluministas, passou a valorizar o profissional cujo conhecimento era concebido no

ambiente institucionalizado das academias, ao qual o mestre-de-obras não tem acesso. O

domínio de um assunto, de uma técnica, se nascido da prática, da mera observação, não tinha

o mesmo prestígio. O cronista, ao criticar a atuação do mestre-de-obras, reproduz um

pensamento que marcou o programa de regeneração, o de se apoiar no trabalho do

engenheiro, o qual apresentava um perfil que se encaixava às exigências de uma sociedade

cada vez mais tecnicista.

Na crônica, aos mestres-de-obra são associadas as imagens de casas tortas e feias. Os

adjetivos empregados para designar essas residências extrapolam o seu sentido usual e ficam

colados à imagem daquele profissional sem formação adequada, que assume tarefas ou

funções para as quais não está legalmente preparado. A cidade moderna, longe de ser

associada a tal imagem, deve se caracterizar pelas construções imponentes, monumentais. A

civilidade seria alcançada através da racionalidade humana e da ciência, por isso mesmo, a

escolha do salão da Escola Nacional de Belas Artes para apresentação dos projetos é

representativa desse pensamento.

Toda a gente, que, no salão da Escola Nacional de Belas Artes,

admirou os projetos apresentados ao júri – só tinha uma pergunta à flor dos

lábios: “Onde estavam metidos, que faziam, em que se ocupavam todos estes

arquitetos que aparecem agora, com tanto talento, com tanta imaginação, com tanto preparo, com tanta capacidade? E como é que, havendo aqui

tantos e tão bons arquitetos, não há na cidade demonstrações visíveis e

palpáveis da sua existência, em edifícios dignos de um povo civilizado?!” (BILAC In: MACHADO, 2005, p. 227).

78

Nessa crônica, outra importante questão é colocada em debate, já tendo sido abordada

em outros textos: a falta de capacidade do povo para apreciar a qualidade, a beleza das coisas.

Na situação descrita, Bilac defende a ação do Estado que, em diversas ocasiões, desde o início

das reformas, mostrou-se autoritário, ensejando mudanças significativas no cotidiano das

pessoas, indistintamente. E por mais que o cronista se vangloriasse das reformas, algumas

questões não poderiam ser ignoradas. Com o passar do tempo, ante os desatinos causados à

população mais carente, Bilac passa a debater alguns desses problemas. Em 1907, três anos

após a inauguração da Avenida Central, ele trata da crise imobiliária que assolou a cidade. O

tom, agora, é muito distinto daquele empregado na crônica publicada em 1904 (já analisada)

que louvava a inauguração dessa importante obra. Mesmo assim, ele designa as reformas

como necessárias; existe, ainda, um sentimento de aprovação e condescendência para com as

medidas assumidas.

Não há quem ignore que, com as demolições e reconstruções que o

aformosamento da cidade exigiu, houve no Rio uma verdadeira “crise de habitação”. O número de casas habitáveis diminuiu em geral, porque a

reconstrução é morosa. Além disso, diminuiu especialmente, e de modo

notável, o número de casas modestas, destinadas à moradia da gente pobre, porque, substituindo as ruas estreitas e humildes em que havia prédios

pequenos e baratos, rasgaram-se ruas largas e suntuosas, em que se

edificaram palacetes elegantes e caros. E que fizeram os proprietários dos

casebres e dos cochichos que as picaretas demolidoras pouparam? Viram na agonia da gente pobre uma boa fonte de renda, e aumentaram o preço dos

seus prédios. É uma crise completa e terrível: há poucas casas para os

humildes, e essas mesmas poucas casas alugam-se por um preço que não é acessível ao que possuem os poucos desfavorecidos de fortuna, os que

apenas podem ganhar ordenado exíguo ou minguado salário. (BILAC In:

DIMAS, 2006b, p. 373).

Bilac experimenta uma mistura de sensações, fruto de um momento histórico marcado

pelo jogo de contrastes. Ora enaltece a atuação do Estado, ora a critica; é seduzido pelo

discurso do progresso, mas também nem sempre consegue digerir os comportamentos ditados

pelos novos espaços de sociabilidade. Muitas vezes, o cronista se coloca como um

personagem estranho àquela cidade por onde circulam bondes elétricos e automóveis, signos

da velocidade e da vertigem coletiva de se viver em um ambiente urbano que tem sua rotina e

hábitos cotidianos totalmente transformados. O retrato de sua perplexidade e desajuste perante

o novo se perpetuou através de algumas figuras emblemáticas fartamente exploradas nas

crônicas: o caipira em oposição ao esnobe – “A verdade é que grande parte dessa gente

apenas conhece e apenas cultiva, da vida civilizada, a sua manifestação menos inteligente, e

mais tola, que é o amor do luxo e da ostentação.” (BILAC In: DIMAS, 2006b, p. 361). Para

79

designar essas figuras, o cronista recorrerá a termos como snobs, chic, smart. De qualquer

maneira acaba por opor tais termos à ideia de civilidade, por oposição àqueles dirigidos aos

que não acompanham tais movimentos: bugres, botocudos.

Suas crônicas entrecruzam olhares sobre outros signos da modernidade: os

cinematógrafos, a fotografia, o avião, a eletricidade. Nesse quesito, também, a visão é

paradoxal, pois, ora se louvam, ora se criticam os símbolos que marcam a urbe moderna. Dá à

eletricidade a alcunha de “a filha mais nova e dileta de satanás”. O raciocínio é simples: a

eletricidade lançou as pessoas para a rua. Os novos espaços de sociabilidade, criados pelas

reformas, passam a agregar um outro valor quando associados à eletricidade: “Foi ela quem

matou a Fé. Enchendo de povo as ruas e os cinematógrafos, desertou as igrejas. Em vez de ir

ver e meditar nos templos a Paixão de Cristo, ouvindo os sermões e os cantos sacros, a

multidão vai vê-la e meditá-la nos palácios Pathé, em filas de três léguas de extensão.”

(BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 871). Perplexo, o cronista vivencia a inquietante percepção da

fugacidade do tempo e, principalmente, das coisas e das pessoas. Os tempos são outros. O Rio

é uma festa!

A avaliação de Bilac sobre a eletricidade, obviamente, satiriza o novo estilo de vida e se

tornou a alegoria perfeita para o desejo de visibilidade almejado para o Rio de Janeiro. Era

preciso aguçar, pelo olhar, o interesse internacional para o país. A capital da República seria a

vitrine. Em 1906 e 1908, a cidade tem essa oportunidade por conta, respectivamente, da

Terceira Conferência Americana e a Exposição Nacional.

As Conferências representavam um caminho alternativo de construir relações

econômicas e políticas. A Terceira Conferência Americana realizou-se no Rio de Janeiro entre

23 de julho e 27 de agosto. Com exceção do Canadá (que não foi convidado), do Haiti e da

Venezuela, todas as demais nações americanas estiveram presentes. O que deu maior

importância ao evento foi a vinda do secretário de Estado norte-americano, Elihu Root. Era a

primeira visita oficial de uma autoridade do primeiro escalão do governo norte-americano à

América do Sul. Assim, tornou-se importantíssimo para o Brasil causar uma boa impressão.

Levando-se em conta, ainda, a visão preconceituosa que a nação estadunidense tinha dos

latinos - descritos como passionais, pouco confiáveis, preguiçosos, descontrolados e sujos -,

recepcionar os visitantes em uma cidade com os vícios da velha Sebastianópolis (assim

ironicamente chamada pelo escritor Adelino Magalhães) seria corroborar a imagem de atraso

que se buscava expurgar. De tal forma, a ocorrência dessa convenção em uma cidade

remodelada sob a mesma inspiração plástica de Paris significa dizer ao mundo que o Brasil se

alinhara às grandes potências. Assim pensava Bilac:

80

[...] a nossa grande festa deste ano tem sido uma festa moral: primeiro, pelo orgulho de hospedar toda a América dentro da nossa linda cidade, e,

depois, pela civilização perfeita sem orgulhos e sem espaventos, sóbria,

modesta e generosa, que temos mostrado aos que nos visitam.

[...] Banquetes e bailes, espetáculos e convescotes, fogos de vistas e

discursos, - tudo isso se há de dentro em pouco apagar da lembrança

daqueles que nos visitam; mas há uma cousa que eles não esquecerão facilmente: é o espetáculo deste renascimento moral, material, e cívico de

uma nação, que reconstrói a sua capital em quatro anos, que em quatro anos

se liberta da fama de terra malsã que a oprimia, que em quatro anos recupera o valor político antigo, - e que nem por isso se deixa exaltar pela vaidade

tola, e conserva-se moderada, modesta, sóbria, sem arreganhos para os

fracos, sem humilhação diante dos fortes, e a fortes e fracos tratando como a

iguais e irmãos... (BILAC In: DIMAS, 2006b, p. 366-367).

Outro momento importante no primeiro decênio do século XX foi a Exposição

Nacional. Nos seus três meses de abertura, ela foi visitada por mais de um milhão de

pagantes, muitos deles oriundos de diferentes pontos de território em grande parte sequer

conhecido pelos demais brasileiros. Todos os estados da Federação organizaram pavilhões ou

estandes exibindo seus avanços culturais e econômicos em álbuns, fotografias ou catálogos.

Além disso, o Governo Federal e a Prefeitura do Distrito Federal também se fizeram

representar, construindo importantes pavilhões e mostrando o desenvolvimento de seus

serviços públicos.

É notável o regozijo do cronista. Há uma sensação de alívio, pois havia um receio de

que a visibilidade alcançada com a Exposição Nacional expusesse para as demais nações a

imagem de um país atrasado, bárbaro. As reformas urbanas ocorridas no Rio de Janeiro criam

um jogo de cena perfeito, capaz de fazer até o mais cético acreditar que o Brasil encontrara os

trilhos do progresso. Mesmo antes da exposição, em 1907, Bilac já expunha a ideia que tinha

do evento: a oportunidade de reverenciar a nova imagem do Rio de Janeiro. Em crônica

publicada na Gazeta de Notícias, o cronista expõe uma ideia para a exposição – organizar

uma exibição comparativa do “carioca de outrora” e do “carioca de hoje”.

Dous grandes bonecos representariam esses dous frutos díspares da

mesma árvore.

Um deles seria o carioca pé-de-boi, que morria de tédio: atarracado,

gorducho, com óculos de aro de ouro, usando barba passa-piolho, com uma cartola pesada na cabeça, um guarda-chuva de cabo em gancho suspenso do

braço, um lenço de Alcobaça sobrando da algibeira de rabona, uma pitada de

rapé Paulo Cordeiro entre dous dedos da mão direita e um livro de missa na mão esquerda...

O outro seria o carioca de hoje, o carioca que está morrendo de coréia,

o carioca festeiro e delirante, - fininho, pálido, inquieto, febril, trêmulo como uma figurinha de cinematógrafo, usando óculos de chauffeur, calção e sapato

81

de jogador de foot-ball, e tendo na mão direita um foguete comemorativo e na esquerda um carnet de baile... (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 845-846).

Todos esses modelos, bastante caricaturais, apontam para os extremos: o rude e o

esnobe. E é entre tais extremos que circula a crônica de Bilac, ora encomiástica da ordem

civilizatória, ora crítica de suas lacunas e excessos.

O conjunto de textos aqui analisados evidencia uma característica que não pode se

desassociar do perfil de escritor, principalmente o de crônicas, edificado por Bilac: sua veia

combativa. Para este trabalho, que apresenta uma linha de pesquisa bem traçada, foram

selecionadas crônicas que se relacionam entre si por um acontecimento histórico em comum:

a revitalização urbana do Rio de Janeiro. Mas, a custo se extrairá um modelo homogêneo de

reflexão, o que, muitas vezes, conduzirá o escritor a uma abordagem nem sempre una dos

assuntos examinados.

Por elaborar escritos que dialogavam com a notícia diária, produziu, com a rapidez que

o jornal exigia, crônicas que eram publicadas nesse suporte. Pode-se, portanto, deduzir que

nem sempre era factível ao redator formar um juízo mais sedimentado sobre a questão

analisada. Daí o vai-e-vem de opiniões, algumas reacionárias, se avaliadas pelo olhar de quem

se insere em um momento histórico diverso daquele. Por isso, Bilac é uma figura

contraditória, estando aí a sua grande riqueza. Apresenta uma ironia cortante em textos como

o publicado em novembro de 1907, quando comenta a modernização do carro de polícia

(antes chamado de “morcegão”), e relativiza o desempenho da corporação policial que não

acompanha, em termos de eficiência, as melhorias aplicadas ao automóvel, mas alcançou a

elegância exigida pelos gatunos requintados inseridos no cenário produzido pelas reformas:

“uma polícia tão... (como é que se diz agora?)... tão smart, tão dernier bateau, tão up-to-date

como eles [os gatunos refinados].” (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 850). Por outro lado,

apresenta um comentário extremamente equivocado, para não dizer preconceituoso, ao se

referir aos bororos que visitaram a Exposição Universal de 1908. Os índios são descritos com

uma candura entremeada por um juízo depreciativo do cronista, que os qualifica como rudes,

incapazes de apreciar a beleza do que era visto porque ainda não tinham sido civilizados:

Deixam-nos saudades os pequenos índios. [Confesso que não gostaria

de ver aqui, neste recinto civilizado, uma maloca de índios selvagens, ainda

na boniteza nativa, não compreendendo o nosso falar, idiotamente contemplando tudo isto sem comoção, e expostos aqui como animais

ferozes]. Haveria nessa exibição um mau gosto deplorável; e os pobres

íncolas fariam aqui a mesma triste figura dos prisioneiros bárbaros, que os vencedores romanos traziam das terras conquistadas, amarrados aos seus

carros de triunfo. Tenho para mim que os selvagens, ainda existentes em tão

grande número nos sertões do Brasil, não podem ser para nós um motivo de

82

orgulho: devem ser, ao contrário, um motivo de quase vergonha, porque a sua permanência no estado bárbaro demonstra a nossa fraqueza e a

impossibilidade em que ainda nos achamos de dominar e civilizar toda a

imensa porção da terra que nos coube de herança. (BILAC In: DIMAS,

2006b, p. 279).

O que se pôde observar, na análise das crônicas aqui selecionadas, é que como formador

de opinião, Bilac seguiu um caminho próprio, sem cair na tentação de imitar o seu

predecessor, Machado de Assis. A substituição, na Gazeta de Notícias, ocorre em 1897, e

durante quase vinte anos de jornalismo diário, assumiu o papel de opinador. Colaborou em

vários jornais e revistas (Correio Paulistano, Correio do Povo, O Estado de São Paulo,

Kosmos, O Álbum, A Bruxa, A Cigarra, O Combate), contudo, o mais expressivo jornal foi a

Gazeta de Notícias. Todos os intelectuais da geração de Bilac ambicionavam nele trabalhar, o

que representaria a total consagração. Mas o escritor já era celebridade nacional na época, o

que ocorrera com a publicação do livro Poesias (1888), responsável por consolidar sua veia

poética.

Nesta pesquisa, buscou-se resgatar a sua face mais obscura, a de cronista, sabendo-se

que grande parte das crônicas foi publicada na Gazeta de Notícias. Fez-se outra opção,

explorar as publicadas nos oito primeiros anos de 1900, período que engloba as manifestações

de apoio ao “Bota-abaixo” e a efetivação das obras de urbanização. Por volta de 1908, o tema

que assumirá grande importância na pauta de Bilac será a campanha pelo serviço militar

obrigatório e pela defesa nacional, não sendo esse o objeto específico desta pesquisa, embora

apontem para o projeto nacional que anima o escritor.

O que há em comum nas crônicas analisadas é o exercício intelectual, através do qual

Bilac externará sua ideologia. A ferramenta empregada é a palavra. Através dela procura, pelo

discurso, influenciar o comportamento de quem lê seus escritos, buscando induzir essa pessoa

a agir mais de um modo que de outro. Fará isso empregando um vocabulário grandiloquente

além de recursos imagéticos que dão aos textos força suficiente para prender a atenção do

leitor. O poder ideológico, nesse caso, será colocado em evidência. Norberto Bobbio, em seus

estudos sobre o intelectual, aborda o tema e diz que

Assim como o meio do poder político é sempre em última instância a

posse das armas e o meio do poder econômico é a acumulação de bens

materiais, o principal meio do poder ideológico é a palavra, ou

melhor, a expressão de ideias por meio da palavra... (BOBBIO, 1997,

p. 12).

As crônicas de Bilac ganham mais força porque ocupam o espaço do jornal, que detém

um grande poder de difusão, principalmente se o periódico for a Gazeta de Notícias que, nas

83

palavras do cronista, era “naquele tempo, [...] a consagradora por excelência.” (BILAC In:

DIMAS, 2006b, p. 577). Como cronista, ele não se furtou do convívio diário com o burburinho

da informação cotidiana trazida pelo jornal. A partir de sua coluna, desferia farpas em

direções diversas, imbuído de uma prerrogativa que, segundo Antonio Dimas (1996, p. 16)

era vagamente assumida - a de um orientador social, nem sempre infalível e muito menos

coerente. O cronista, em diversos textos, busca dissociar a sua imagem de um cronista fútil,

que se distanciou do mundo à sua volta e, que por estar dele tão afastado, não consegue se

sensibilizar com o que acontece. Segundo Dimas:

Diferente do poeta que se protege e se resguarda no casulo do ócio fecundo e prolongado, favorável à criação que dispensa o convívio imediato,

o cronista está sujeito ao burburinho da informação cotidiana, trazida pelo

próprio jornal para o qual devolverá a matéria que lhe serviu de suporte ou de pretexto. Nessas condições, espremido pelo tempo e pelos acontecimentos

em ação, sua reflexão sai a jato e sua intimidade ideológica torna-se

portanto, mais porosa, porque não pode contar, em princípio, com o manejo

da língua, o que o deixa exposto à curiosidade futura. (DIMAS, 1996, p. 17).

Na prática, isso o levou a se aproximar da cidade, circulando pelas regiões mais pobres,

o que lhe provocava sentimentos diversos.

Quem escreve estas linhas tem ultimamente, no cumprimento de um dever

profissional, percorrido o mais pobre, o mais triste, o mais sujo bairro do Rio

de Janeiro, - a zona que abrange a Saúde, a Gamboa, a Praia Formosa, entre

a orla do mar e os morros da Conceição, do Pinto, da Providência. Nessa região cheia de trapiches, de estaleiros, de depósitos de madeira e carvão, de

estalagens e de tavernas suspeitas, formiga uma população macilenta e triste.

(BILAC In: DIMAS, 2006b, p. 425-426).

O comentário acentua o desconforto do cronista ante uma realidade que nada tem a ver

com o discurso de modernidade preconizado pelos idealizadores das reformas urbanas. Nota-

se, até mesmo, um desejo incontido de não estar ali, circulando pela região mais degradada da

cidade, que, segundo ele, é triste, pobre e suja. Os adjetivos empregados expressam uma visão

aterradora dessa parte da cidade e retiram dele a aura do poeta que cultiva a arte pela arte.

Nesse momento, realça-se o cronista, que busca no cotidiano da cidade a matéria prima para

seus textos.

Aproveitando a leveza da crônica, o escritor se insurgia contra aquilo que renegava, mas

tudo era feito, assim lembra Antonio Dimas (1996, p. 17), “dentro dos moldes brandos que o

gênero requer”, respeitando-se, assim, os moldes exigidos pelo gênero, e não assumindo um

tom colérico (o que às vezes mesmo assim acontecia), para não afugentar o leitor. Os textos

selecionados abriram a possibilidade de conhecer uma das muitas faces de Bilac que, como

cronista, introduz o leitor, a recuperar a sociedade civil do Rio de Janeiro em um momento de

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mudanças profundas em sua organização. O veículo utilizado foi a crônica, para ele, uma

caixa de onde saem uma grande quantidade de “sortimentos”.

Os cronistas são como os bufarinheiros, que levam dentro de suas

caixas, rosários e alfinetes, fazendas e botões, sabonetes e sapatos, louças e

agulhas, imagens de santos e baralhos de cartas, remédios para a alma e remédios para os calos, breve e pomadas, elixires e dedais. De tudo há de

contar um pouco, esta caixa da Crônica: sortimento para gente séria e

sortimento para gente fútil, um pouco de política para quem só lê os resumos dos debates do Congresso, e um pouco de carnaval para quem só acha prazer

na leitura das seções carnavalescas.

Aqui está a caixa do bufarinheiro, leitor amigo: mete dentro dela a tua

mão e serve-te à vontade. (BILAC In: DIMAS, 2006a, p. 631).

Aceitando o convite do cronista, assim foi feito, a mão foi posta dentro da caixa do

mascate. Em outras palavras, sob o olhar de quem se coloca sob a distância, sempre

necessária, para resgatar as particularidades de um texto, os contornos assumidos por um

tema, emergiu, nesta pesquisa, uma face de Bilac como cronista. Sua análise da cidade muitas

vezes ensejou repúdio e outras aplausos, mas não se pode negar que, acima de tudo, o que

fica, ao final, é a constatação de que Bilac nunca encobriu sua paixão autêntica “[...] pela

velha e mal amanhada Sebastianópolis.” (BILAC In: DIMAS, 2006b, p. 126).

4. LIMA BARRETO: ENTRE DOIS TEMPOS E DOIS ESPAÇOS

No início do século XX, como já se afirmou antes, o jornal impresso se torna um

importante veículo de comunicação no cotidiano dos centros urbanos. Nele, a crônica

encontra o espaço adequado para se desenvolver. Como cronista, Lima Barreto retira dos

pequenos lances do cotidiano, o referencial capaz de construir a narrativa da cidade. Emitiu

suas reflexões acerca de temas variados, nos mais diversos jornais e revistas cariocas,

confessando sempre sua paixão pela cidade do Rio de Janeiro. Era um morador de subúrbio,

85

cuja mobilidade auferida pelo deslocamento que realizava entre o subúrbio e o centro ou deste

para aquele acabou por conferir-lhe as condições ideais para melhor lidar com a reforma

urbana patrocinada pela gestão do prefeito Pereira Passos (1902-1906). As crônicas

produzidas no primeiro decênio do século XX, contudo, pouco mencionam o “Bota-abaixo”.

O viés crítico desponta a partir de 1910, quando, de forma virulenta, revela toda sua

indignação pela interferência excessiva do poder na geografia da cidade.

A pesquisadora Beatriz Resende (2004) acredita que a mudança de tom se deve à

demissão de Lima Barreto do jornal Correio da Manhã. Isso ocorreu após ter publicado, em

1909, o seu primeiro romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha. A experiência

advinda com o trabalho realizado nesse jornal forneceu a Barreto condições para a construção

de um romance com forte referência autobiográfica, em que explora o racismo e a

subordinação da imprensa à elite. Pelo tom agressivo com que tratou o assunto, foi despedido,

fechando-se para ele o acesso à grande imprensa. 3. A pesquisadora Beatriz Resende assim

comenta o assunto:

Contraditoriamente, é esta exclusão que irá determinar sua vida como

cronista, garantindo sua independência ante o poder exercido pelos

influentes da imprensa e tornando-o um especial intérprete da cidade, imune à frequente cooptação que ocorria com os intelectuais. Seu caminho será

traçado pelo percurso através das pequenas publicações, independentes,

ainda que frágeis, em geral de vida breve, silenciadas pela falta de dinheiro de seus diretores ou empasteladas pelo autoritário governo republicano.

(REZENDE, 2004a, p. 11).

Essa nova realidade teria, pois, permitido ao cronista uma maior liberdade criativa e

ideológica. Portanto, é justamente no segundo decênio do século XX que se percebe a

elaboração de crônicas em que ele faz um juízo mais criterioso e sem subterfúgios da nova

realidade a que foi submetida a população fluminense com o “Bota-abaixo”. Os jornais e

revistas a que se destinarão as crônicas escritas de 1917 a meados de 1919, por exemplo, eram

periódicos libertários, preocupados com a questão social e o agravamento da desigualdade nas

cidades mais relevantes do país, especialmente na capital federal. Daí que grande parte de

suas crônicas que aqui serão analisadas foram publicadas em revistas e jornais de pequena

circulação ou de vida breve como o jornal Correio da Noite, o semanário A.B.C., o jornal

estudantil A Lanterna e as revistas Careta e Hoje. Muitas dessas crônicas foram

3 As referidas obras fazem parte de um conjunto de dezessete volumes, cuja primeira edição é de 1953,

organizada sob a direção de Francisco de Assis Barbosa, o principal biógrafo de Lima Barreto, com a

colaboração de Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença.

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postumamente reunidas, nos livros Vida Urbana (1956) e Marginália (1956), que também

serão utilizados como fontes para esta pesquisa

O fato é que Barreto passou os primeiros anos de sua carreira, o que ocorre

paralelamente às reformas urbanas, sem se manifestar abertamente sobre as intensas

modificações realizadas no cenário urbano do Rio. Suas opiniões começam a ser propagadas

quando já era possível perceber que o discurso venturoso edificado para justificar as reformas

não se sustentava. Isso vai acontecer até o final de sua vida quando, apesar da pecha de

escritor maldito, já desfrutava de bastante prestígio, a ponto de trabalhar para a Gazeta de

Notícias, um dos jornais mais prestigiados da época.

O cronista não mantinha com o centro do Rio de Janeiro uma relação de empatia.

Vivia no subúrbio e com ele, sim, estabeleceu um afeto profundo ligado às suas lembranças

de infância, quando essa parte do Rio de Janeiro apresentava uma feição agrária. No último

ano de sua vida (1922), escreve uma sensível crônica nominada “De Cascadura ao Garnier”,

através da qual expressa o saudosismo de uma época, mais do que isso, de um estilo de vida

perdido com os novos tempos.

O cronista embarca em um bonde no subúrbio de Cascadura, localizado na região

norte da cidade. Seu destino é a livraria, também editora, Garnier, localizada no Rio de

Janeiro, e que esteve em atividade entre os anos de 1844 e 1934, notabilizando-se por publicar

livros de escritores que se tornaram famosos, como Machado de Assis.

Embarco em Cascadura. É de manhã. O bonde se enche de moças de todas

as cores com os vestuários de todas as cores. Vou ocupar o banco da frente,

junto ao motorneiro. Quem é ele? É o mais popular da linha. É o “titio Arrelia” – um crioulo forte, espadaúdo, feio, mas simpático. Ele vai

manobrando com as manivelas e deitando pilhérias, para um lado e para

outro. (BARRETO v. XII, 1956, p. 83).

Quem são as pessoas que seguem viagem com o cronista? A descrição é alegórica,

mas não deixa dúvida: trata-se de um público miscigenado, fruto do cruzamento de raças

diferentes, como bem sugere a frase “moças de todas as cores”. Levando em conta o horário

em que tomam a condução, pode-se presumir que representam a classe trabalhadora, a força

motriz da sociedade. A origem popular da freguesia se completa quando são detalhadas

algumas particularidades do motorneiro, “um crioulo forte, espadaúdo”. A alegria do condutor

assegura-lhe o apreço de quem diariamente pega a condução. O cronista emprega o adjetivo

“popular” para caracterizar esse homem. A princípio, o vocábulo assume o sentido de famoso,

mas concentra outros significados. Em uma teia de relações construídas a partir de um

referencial imagístico, acentua o caráter quase caricatural da cultura popular. A crônica traz

87

para a cena um modo particular de ser do povo, documentando alguns traços a ele

pertencentes ou dele provenientes: uma maneira singular de se vestir expressa no gosto por

cores variadas nos vestidos das moças e pela espontaneidade do condutor do bonde.

Barreto não se desloca da cena, pois ele mesmo era um mulato, portanto, seus traços

físicos aproximam-no das camadas populares da sociedade fluminense. Isso faz a cena

descrita mais representativa, afinal, o bonde, que segue em direção ao centro do Rio de

Janeiro, leva para lá uma parcela da população em geral alijada dali. A cidade remodelada não

foi criada para esse público. Dele só se deseja o trabalho mal remunerado, o servilismo

responsável por anular sua cidadania.

Os signos da modernidade estão também presentes no trecho selecionado. O bonde, com

suas manivelas e engrenagens, atesta a inserção de um novo aparato tecnológico em um

cenário ainda marcado pela dicotomia que nasce de imagens associadas ao estilo de vida

urbano e rural. A despeito disso, a morosidade da condução, responsável por provocar a

pilhéria de garotos que sobem de assalto os vagões, oportuniza ao cronista fixar o olhar na

paisagem externa: “Os garotos, zombando da velocidade do veículo, trepam no bonde e dizem

uma chalaça ao ‘titio’.” (BARRETO v. XII, 1956, p. 83).

Ali se encontram os vestígios de que a capital da República não é unitária. A

urbanização se concentra em um pequeno espaço territorial que nada tem a ver com porcos

em meio à lama ou com cabras a pastar. A lentidão do bonde pode ser comparada à vagareza

do progresso, o qual protela sua inserção definitiva nos rincões da cidade.

[...] essa trilha lamacenta que, preguiçosamente, a Prefeitura Municipal vai melhorando, viu carruagens de reis, de príncipes e imperadores. Veio a

estrada de ferro e matou-a, como diz o povo. Assim aconteceu com

Inhomirim, Estrela e outros “portos” do fundo da baía. A Light, porém, com o seu bonde de “Cascadura” descobriu-a de novo e hoje, por ela toda, há um

sopro de renascimento, uma palpitação de vida urbana, embora os

bacorinhos, a fossar a lama, e as cabras, a pastar pelas suas margens, ainda

lhe deem muito do seu primitivo ar rural de antanho. (BARRETO v. XII, 1956, p. 83).

O cronista percorre uma região que gradualmente começa a sofrer alterações em sua

configuração. No fragmento, fala-se em renascimento, palpitação de vida urbana para se

referir à renovação da paisagem. Mas, a informação apresentada em seguida, introduzida pela

conjunção adversativa – embora -, contraria o que foi dito sobre a chegada do urbanismo

àquelas paragens. A descrição que se faz do local não condiz com o viver próprio do centro da

cidade, demonstrando haver uma inconsistência no discurso que exalta o Rio de Janeiro como

exemplo de urbanismo sedimentado. As obras que, na gestão do prefeito Pereira Passos,

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buscaram não só melhorar o saneamento do centro da cidade, como também promover o

embelezamento do local, não atingiram a periferia, ficando esta associada ao atraso, fruto da

inércia do poder público, que, na crônica, é descrito como indolente.

Os bondes adentram por novos espaços geográficos, levando, mesmo que tardiamente,

novos hábitos que alteram o estilo de vida ditado pela monarquia, ligado a um passado cada

vez mais distante.

Mas... o bonde de Cascadura corre; “titio Arrelia”, manejando o

controle, vai deitando pilhérias, para a direita e para a esquerda; ele já não se

contenta com o tímpano; assovia como os cocheiros dos tempos dos bondes de burro; e eu vejo delinear-se uma nova e irregular cidade, por aqueles

capinzais que já foram canaviais; contemplo aquelas velhas casas de fazenda

que se erguem no cimo das meias-laranjas; e penso no passado. No passado! Mas... o passado é um veneno. Fujo dele, de pensar nele

e o bonde entra com toda a força na embocadura do Mangue. A usina do gás

fica ali e olho aquelas chaminés, aqueles guindastes, aquele amontoado de

carvão de pedra. Mais adiante, meus olhos topam com medas de manganês... E o bonde corre, mas “titio Arrelia” não diz mais pilhérias, nem assovia.

Limita-se muito civilizadamente a tanger o tímpano regulamentar. Estamos

em pleno Mangue, cujas palmeiras farfalham mansamente, sob um céu ingratamente nevoento. Estamos no Largo de São Francisco. Desço. Penetro

pela Rua do Ouvidor. Onde ficou a Estrada Real, com os seus bácoros , as

suas cabras, os seus galos e os seus capinzais? Não sei ou esqueci-me. (BARRETO v. XII, 1956, p. 83-84).

No trecho acima, existe um entrelaçamento de imagens reportando ora ao primitivismo

do Rio de Janeiro colonial, ora à face moderna da cidade. Elas estão ali: o motorneiro que

ainda traz em sua faina o trejeito dos cocheiros responsáveis por conduzir os bondes de tração

animal, as velhas casas de fazenda, contrapostos à usina de gás, as chaminés das indústrias. O

deslocamento feito pelo bonde permite ao cronista uma experiência singular, a qual não se

restringe a um movimento apenas territorial, subúrbio-centro, implica também um

afastamento relativo ao tempo, passado-presente. Neste caso, não se trata de um tempo

contado e regulado segundo algum critério cronológico, diz respeito à sensação de ser

conduzido a um novo contexto histórico que marca o início de outro ciclo de vida. Como

resultado, o cronista dá mostras de estar fora do lugar, por isso há uma nota de saudosismo e

amargura em sua escrita. Dessa forma, o passado é descrito como um veneno, responsável por

provocar reações adversas no autor: ao mesmo tempo em que o fascina (figurativamente o

veneno é sinônimo de sedução, encantamento), causa-lhe também dor existencial por saber

que no passado ficou um estilo de vida que jamais será por ele recuperado. Portanto, ao criar

laços afetivos com o passado, o cronista sabe que mata qualquer pretensão de ajustamento a

uma nova ordem social.

89

O percurso seguido pelo bonde, relativamente longo, conduz o cronista do subúrbio à

cidade, expondo um ambiente marcado por um estado não só híbrido como transitório. A

paisagem emoldurada pelas janelas do bonde não deixa dúvidas de que existe um hiato entre a

perspectiva do progresso e sua efetivação.

A chegada do bonde à região central da cidade significa adentrar em um território

civilizado. Face a novos estímulos sociais, o cronista descreve a mudança comportamental por

parte do motorneiro, esta que deveria se estender a todos os cidadãos: “E o bonde corre, mas

‘titio Arrelia’ não diz mais pilhérias nem assovia. Limita-se muito civilizadamente a tanger o

tímpano regulamentar.” (BARRETO v. XII, 1956, p. 84). A palavra civilizadamente agrega

uma condição, o modo de ser ou de portar-se que exige o ajustamento a uma nova ordem, a

qual nega os traços da cultura popular representada pela figura do motorneiro negro. O que o

trecho revela é a prática disseminada, naquele momento histórico, de submissão ao jogo

social. Dessa forma, no centro da cidade, “titio Arrelia” rende-se ao código que acaba por

anular aquilo que o condutor do bonde tinha de mais individual.

Ao descer do bonde, o cronista adentra na Rua do Ouvidor. Nada mais simbólico. Era

o logradouro mais importante do Rio de Janeiro: onde se localizava a maioria dos jornais

cariocas e lugar para o qual se dirigia grande parcela da população em busca de notícias. No

final do século XIX, essa rua se destacava pela suntuosidade. Após a construção da Avenida

Central, passou a rivalizar com esta na preferência do público. Paradoxalmente, o estilo de

vida moderno não se harmoniza com as características do antigo logradouro, marcado por sua

estreiteza e seu traçado irregular. O projeto de modernidade exigia o alargamento das ruas, a

construção de avenidas bem ventiladas. A Ouvidor, mesmo sem obedecer a essas regras, não

perdeu sua importância, como se pode constatar na crônica analisada, em que assume um

sentido especial. Circular por ela significa um contínuo distanciamento daquilo que o

subúrbio representa: o atraso em relação ao centro modernizado da cidade. Assim o cronista

se sentia perdido: “Onde ficou a Estrada Real, com os seus bácoros, as suas cabras, os seus

galos e os seus capinzais? Não sei ou esqueci-me.” Portanto, ir à Rua do Ouvidor significa

defrontar-se com o novo, deixar para trás uma parte da cidade que nada lembra a imagem de

progresso e renovação tão bem associada ao centro do Rio de Janeiro. Assim registra-se uma

ambiguidade: ao mesmo tempo em que o cronista rejeita a modernidade, responsável por

alterar o subúrbio e, por conseguinte, um estilo de vida, ele também se sente atraído pelo

novo. Dessa forma, sair de Cascadura (a periferia) em direção à livraria Garnier (localizada na

Ouvidor) é indicativo do poder de sedução que a cidade moderna gerava no cronista.

90

Entre a atração e a repulsa, Lima Barreto toma como objeto essa rua representativa da

vida moderna. Na crônica “Trem de subúrbios”, a crítica do autor recai sobre o exibicionismo

dos “magnatas suburbanos”, pessoas pelas quais nutre uma sincera antipatia.

Porque é no trem que se observa melhor a importância dessa gente toda. Eles

estão na sua atmosfera própria que os realça desmedidamente. Chegam na

[sic] Rua do Ouvidor, e desaparecem. São uns fantoches. (BARRETO In:

RESENDE, 2004b, p. 468).

A ironia do comentário está no fato de que essa imagem de figurão só se torna patente

no subúrbio, no caso do trecho analisado, no vagão de segunda classe. Ali, é possível alcançar

a distinção almejada. Somente ali. Chegando ao centro da cidade, na Rua do Ouvidor, o

“magnata suburbano” torna-se invisível, nada mais o discerne dos demais transeuntes.

Lima Barreto ironizava as modas artificiais que imperavam no local, mantendo uma

relação tensa com essa rua. Frequentador desde 1897, quando tinha dezesseis anos (momento

em que ingressou na Escola Politécnica, situada no Largo de São Francisco, muito próximo da

Ouvidor), teceu críticas à importância que essa via ganhava no imaginário carioca, em

contraposição ao extenso e desacreditado subúrbio. Segundo Barreto, ela não conteria a

verdadeira alma e substância da cidade. Acusava os cariocas de conhecerem apenas a Avenida

Central e a Rua do Ouvidor, desprezando todo o restante, por ele valorizado. Referia-se, com

saudosismo, aos subúrbios cariocas, atravessados pelos trilhos do bonde que o conduziam até

o centro da cidade.

No trecho reproduzido, Barreto trata os magnatas suburbanos que circulam pelo

centro, mais especificamente a Rua do Ouvidor, como fantoches. A imagem do boneco

manipulado por meio de fios esconde uma complexa crítica ao contexto social da época. Tem

a ver com a vida cotidiana alterada pela revolução tecnológica que fomentou a modernização

das cidades, o surgimento de novos espaços sociais e a mudança de comportamentos. O que

Lima Barreto critica em seus textos é a imposição de mudanças que buscam atender a uma

pequena parcela da população. Seu maior ressentimento é que todas as alterações traçadas no

centro da cidade serviam para impor melhorias apenas a essa parte do Rio de Janeiro.

Portanto, ser um fantoche nas mãos, sempre escondidas, de um ilusionista, significava ser

manejado pelas estruturas do poder, buscando satisfazer os interesses de alguns.

O viés crítico do autor quanto à falta de originalidade dessa parte da cidade e de seus

moradores se destaca nessas crônicas. O tom não difere. Segundo ele, os ícones de

modernidade retiram a maior qualidade do subúrbio: a capacidade de não seguir padrões, e

modelos. Esse ineditismo é substituído pela aberração da cópia; reproduz-se no subúrbio o

que se passa no centro da cidade e o restante do país se espelha na cidade-modelo que se

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tornou o Rio de Janeiro naquela época. Assim é que Barreto descreverá as Leis da Imitação,

as quais dizem que “[...] todo o progresso social se deve em parte à invenção ou invenções de

um grupo, propagadas por toda a sociedade circundante, por imitação.” (BARRETO In:

RESENDE, 2004b, p. 470).

A crônica “De Cascadura ao Garnier” é finalizada com a entrada de Barreto na

livraria Garnier, esse era o seu destino. Tal designação não se restringe a fixar o ponto de

origem e de chegada do autor; condensa outros sentidos. Expressa o desejo por aceitação e

reconhecimento. Significa também a bem-aventurança alcançada mediante um feito

extraordinário, a atividade literária em contraste com a marginalização. E como se encaixaria

Lima Barreto nessa rede intrincada de imagens? Sua biografia nos dá algumas pistas: era um

mestiço que residia no subúrbio, “um casca-grossa”, no sentido da falta de linha, atribuída

tanto a seu jeito de ser como à sua produção literária. Luiz Ricardo Leitão, na obra Lima

Barreto: o rebelde imprescindível (2006) esclarece que Barreto resistiu às imposições da

Academia, no que se refere à valorização da linguagem bruta das ruas, não afeita ao

refinamento típico de uma escrita elaborada em conformidade com os padrões formais do

português. Enfim, foi fiel ao público prestigiado em seus escritos, a população suburbana, tão

bem encarnada na figura do “titio Arrelia”.

Pelos trilhos da Central, lateja igualmente o desejo de afrontar normas e

paradigmas, de corromper usos importados e, se possível, de abrasileirar a própria língua, reinventar a gramática e burlar-se dos galicismos, regências e

concordâncias que não atendiam ao gênio tropical do idioma. (LEITÃO,

2006, p. 63).

Por isso tudo, o título da crônica analisada é muito significativo. Lima Barreto

representa genuinamente o suburbano, que a elite marginaliza e deseja segregar. Mas esse

intento não é de todo alcançado, pois esse indivíduo afronta as barreiras que lhe são impostas,

colocando-se à vista de todos. Dessa forma, sair de Cascadura representa o não assujeitamento

a uma ordem imposta. Como literato e intelectual, rejeitado que era, entrar na livraria e

editora Garnier sintetiza sua frenética busca por reconhecimento, o que só vai acontecer anos

depois de sua morte.

Pode-se perceber no trânsito do cronista um movimento que é comum à literatura e à

crítica brasileiras, a oscilação entre o modelo e a cópia. Ora se critica o modelo e se rejeita a

cópia, ora se submete ao modelo ou a alguns de seus ditames. Um projeto de nação se

desenha, pois, sem linhas definidas, apontando para momentos futuros em que se ressalta o

valor da cópia (cf. ANDRADE, 1998) ou se busca um entre-lugar (Cf. SANTIAGO, 1978,

1982, 1989).

92

A ideia de trânsito já se estabelece metonimicamente nas crônicas em que esse

passageiro privilegiado da grande ferrovia da estrada de ferro Central do Brasil fala de sua

locomoção do subúrbio para o centro ou vice-versa. A crônica A estação, publicada na Gazeta

de Notícias, em 1921, sintetiza a importância do ponto de parada de trens no surgimento dos

subúrbios e seu prestígio como local de recreio para a população suburbana.

Na vida dos subúrbios, a estação da estrada de ferro representa um

grande papel: é o centro, é o eixo dessa vida. Antigamente, quando ainda não havia por aquelas bandas jardins e cinemas, era o lugar predileto para os

passeios domingueiros das meninas casadouras da localidade e dos rapazes

que querem casar, com vontade ou sem ela. Hoje mesmo, a gare suburbana não perdeu de todo essa feição de

ponto de recreio, de encontro e conversa. Há algumas que ainda a mantêm

tenazmente, como Cascadura, Madureira e outras mais afastadas.

(BARRETO In: RESENDE, 2004b, p. 439).

Nesse trecho, Barreto reconhece a força catalisadora das estações de trens, preparadas

para receber as primeiras linhas, o que facilitou a comunicação entre o centro e os subúrbios,

revelando cenários ainda desconhecidos para a maioria da população. O que se revela é um

lugar de cruzamentos, um cenário muito distante daquele idealizado pela elite, desejosa por

viver em um país marcadamente europeu, sem negros ou mestiços.

O cronista não ignora a importância dessas paradas de trem no processo expansionista

da cidade. Se o trem favorece a circulação, a estação delimita geograficamente o local em que

habitam as pessoas. Sem contar que a estação cumpriria a função que mais tarde seria

exercida pelas casas de comércio e entretenimento dessa região da cidade. Nesses pontos de

embarque ou desembarque paralelamente eclodiam novos espaços de socialização para um

público que não havia conquistado para si o direito de possuir áreas destinadas ao lazer.

Assim, o aspecto utilitário do trem e das estações não é absoluto. Viajar de trem ou de bonde

se torna um passeio, uma forma de entretenimento. De suas janelas era possível vislumbrar a

imagem de cartão-postal que fez o Rio de Janeiro tão conhecido. Uma sucessão de cenários se

enquadrava à medida que os vagões se movimentavam, deliciando o passageiro,

transformado, naquele momento, em um mero espectador.

No trecho a seguir, Lima Barreto comenta que a chegada do urbanismo à periferia da

cidade diz respeito à presença das estações de trem no subúrbio. Segundo o autor, é ao longo

das linhas férreas e, principalmente, em torno das paradas de trem que se avoluma todo tipo

de estabelecimento e negócio, dando ao local um jeito próprio de viver das cidades. Para

sistematizar o fenômeno que acontece nas regiões adjacentes ao centro da capital federal, a

linguagem é altamente descritiva. Vejamos:

93

De resto, é em torno da “estação” que se aglomeram as principais casas de comércio do respectivo subúrbio. Nas suas proximidades, abrem-se

os armazéns de comestíveis mais sortidos, os armarinhos, as farmácias, os

açougues e – é preciso não esquecer – a característica e inolvidável quitanda.

Em certas, como as do Méier e de Cascadura, devido a serem elas ponto inicial de linhas secundárias de bondes, há uma vida e um movimento

positivamente urbano.

O Méier é ponto inicial de quatro linhas de bondes, uma até de grande extensão, a de Inhaúma, e outra que leva à Boca do Mato, lugar pitoresco,

que já teve fama de possuir bons ares, para curar “moléstias do peito”, como

diz o povo. Além das quatro de que lhe falei, três linhas, vindas do centro da

cidade passam por esta localidade, de modo que a impressão que dá não é

bem de um subúrbio, mas de uma cidade média. Junte-se a isto a Central

com os seus trens de subúrbios, e verão que não aumento. (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p. 439).

Ao enumerar diversos itinerários de trem, acentuam-se as idéias de movimento e

cruzamento. O trecho transcrito assinala que a cidade se expandiu para além dos limites de

sua região central, reproduzindo um movimento paradoxal de explosão e simultânea

implosão. Nesse momento já se prenuncia o fenômeno a que se refere Henri Lefebvre:

A cidade sofreu um processo de implosão-explosão, cresceu e se concentrou, mas ao mesmo tempo se dispersou em suas periferias, seus bairros cada vez

mais distanciados. Ocorre o mesmo com o espaço nacional: “implode”, se

divide em regiões e explode, quer dizer, se mescla com outros espaços nacionais em uma interferência concreta. (LEFEBVRE, 1976, p. 242).

Mesmo que o autor não esteja se referindo ao tempo enfocado pelo cronista, pode-se

retomar aqui uma questão por ele colocada: a cidade que se expande leva consigo qual

identidade? E como se configura o país aí representado? Em meio a um intenso processo de

transformação, o espaço urbano ou o nacional dificultam a seus moradores o estabelecimento

de laços de identificação, funcionando como um lugar vazio. Isso ocorre de diversas formas e

Lima Barreto registra um desses mecanismos quando analisa as casas comerciais do Méier,

tradicional bairro localizado na zona norte do Rio de Janeiro.

É o Méier o orgulho dos subúrbios e dos suburbanos. Tem confeitarias decentes, botequins frequentados; tem padarias que fabricam pães, estimados

e procurados; tem dois cinemas, um dos quais funciona em casa edificada

adrede; tem um circo-teatro, tosco, mas tem; tem casas de jogo patenteadas e garantidas pela virtude, nunca posta em dúvida, do Estado, e tem boêmios,

um tanto de segunda mão; e outras perfeições urbanas, quer honestas, quer

desonestas. (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p. 439).

O que chama atenção no trecho é, mais uma vez, a maneira ambígua como o autor se

refere ao subúrbio. A descrição tanto exulta o Méier como ironiza algumas de suas

características, daí dizer que o circo-teatro é tosco e os boêmios de segunda mão. A imagem é

metonímica; na visão do cronista, quando se tenta reproduzir no Rio de Janeiro o estilo de

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vida francês, o resultado final é uma imitação grosseira da capital parisiense. Por extensão, o

país em construção ocupa esse mesmo espaço.

A partir daí, o cronista lançará uma crítica direta ao fato de que os elementos inseridos

numa nova ordem social são deslocados e rasuram sua identidade. Apesar das origens

distintas de seus moradores, as diversas regiões que compõem a cidade do Rio de Janeiro se

homogeneízam na tentativa de se moldar o espaço público e, por extensão, o comportamento

das pessoas que nele se inserem ao estilo europeu, de preferência. O fenômeno é, como se vê,

mais amplo, pois o hábito de copiar está também atrelado ao Brasil, que, longe de criar sua

própria identidade, tenta reproduzir o estilo de vida de outros países, principalmente os

Estados Unidos e a França.

Barreto continua, delineando o perfil de algumas casas comerciais que despontam no

subúrbio, sempre alinhadas à qualidade estética das chiques lojas da região central.

As casas de modas, pois as há também, e de algum aparato, possuem nomes chics, ao gosto da Rua do Ouvidor. Há até uma “Notre Dame”, penso

eu.

Em anos passados, corria de boca em boca uma pilhéria de “revista de ano”, em que se ridicularizavam os elegantes baratos. Fulano, dizia a facécia,

é um gentleman; veste-se no “Raunier” do Catete e vai ao “Lírico” da

Gávea.

[...] O tipo atingido pelo remoque bufava, esbravejava, procurava recibos

que provassem que ele se vestia no centro da cidade; mas isto era naquele

tempo. Hoje, nenhuma suburbana pobre ou remediada se zangará com quem

lhe disser que ela se veste no “Paquin” do Méier, sobretudo se a graçola

partir de cronistas mundanos, cuja formatura nas ciências brumelescas e artes da rue de La Paix foi feita na Universidade do Caicó de Uruburetama,

da Goianá de Simão Dias, e de outras localidades brasileiras universalmente

conhecidas pele seu “esmartismo”. (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p.

439-440).

Ratifica-se a relação ambivalente de Barreto com o subúrbio. No trecho selecionado, o

alvo é a “aristocracia suburbana”, formada por um público afetado que, sem condições de

frequentar o comércio elegante do centro, tenta reproduzir no subúrbio o ambiente no qual

pudesse exibir sua empáfia. Indiretamente, o cronista aborda um fenômeno que se reproduz

em cascata. Quem vive no centro da cidade tenta imitar os franceses ou os americanos,

enquanto os moradores da periferia, por falta de meios, almejam seguir o padrão imposto

pelos habitantes da região central do Rio de Janeiro. Ao fim, ambos são motivos de chacota

por serem uma cópia deformada da cultura dominante, nesse caso a européia e a americana. A

pecha de ser um “elegante barato” parece atingir não só o comércio suburbano, atrela-se

também aos que se esparramam pela Rua do Ouvidor e pela Avenida Central, locais que, em

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épocas distintas, foram sinônimos de refinamento, por onde circulavam pessoas acostumadas

a frequentar círculos sociais restritos.

O resultado é a universalidade da estrutura social burguesa, que gera a integração de

áreas distantes através da assimilação, por parte de seus moradores, de uma mesma cultura

elitista, mas é uma identidade construída no jogo das aparências.

Nesse ponto, vale recorrer ao crítico literário Roberto Schwarz (2012) que, ao

discorrer sobre a produção literária de Machado de Assis no século XIX, considera fora do

lugar as ideias relacionadas ao mundo burguês europeu, como as relativas ao trabalho livre, ao

progresso, à humanidade, em uma sociedade brasileira marcada pela violência da escravidão.

Apesar de retratar um momento histórico específico, ele próprio admite que a dissonância

gerada pela tentativa de adotar o saber e a cultura de tipo “moderno” no contexto histórico do

século XIX se estende também ao século XX: “Note-se, de passagem, que este padrão iria

repetir-se no século XX, quando por várias vezes juramos, crentes de nossa modernidade,

segundo as ideologias mais rotas da cena mundial.” (SCHWARZ, 2012, p. 21). No capítulo

intitulado As ideias fora do lugar, ele tratará do desconcerto de se viver em um país que

deseja construir sua identidade a partir do modelo europeu. A coerência, nesse caso, não é

levada em consideração; mais vale a fantasia de morar em uma Europa tropical: “E nada

melhor, para dar lustre às pessoas e à sociedade que formam, do que as ideias mais ilustres do

tempo, no caso as europeias. Neste contexto, portanto, as ideologias não descrevem sequer

falsamente a realidade [...]”. (SCHWARZ, 2012, p. 18-19).

Lima Barreto já contesta essa integração artificial, moldada bem ao gosto provinciano.

Para o cronista, o regozijo está em desmascarar a encenação pelo que ela traz de mais cômico:

a impossibilidade de encobrir a procedência de alguém. A questão da nacionalidade é

debatida sob um olhar confrontador, pois não se ignora que a construção de uma identidade

nacional esbarra na constante interferência da cultura estrangeira no modo de ser de quem

vive por aqui. O que resta é uma identidade construída no jogo das aparências.

A ideia de que se pode passar de uma condição a outra, ignorando suas raízes, é

rechaçada por Lima Barreto na irônica nominação dos estabelecimentos comerciais do

subúrbio, reproduzida na voz de seus cronistas mundanos, a quem a falta de refinamento é a

condição para melhor apreender as sutilezas do subúrbio. Daí o jogo com a palavra

esmartismo, adaptada do inglês “smart”, que assumiu na crônica contornos pejorativos.

Originalmente associada ao sentido de ser bem vestido, elegante, moderno, pungente; no texto

encobre a preocupação com a originalidade, com o novo, levada ao exagero, provocando, não

obstante, um resultado oposto ao pretendido.

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A pobreza de originalidade e a falta de nomenclatura das nossas casas comerciais, (sic) facilitam a semelhantes Petrônios, a prestações, ter

espírito, à custa dos subúrbios – cousa que eles não supunham ter quando

envergaram pela primeira vez um fraque de sarja, cortado a capricho pelo

mestre alfaiate Sabino, com casa no Largo da Matriz, em São Nepomuceno de Guabiroba, no interior do Estado de***.

É de lamentar essa pobreza e essa falta na designação das nossas

casas de mercancia. [...] Em geral, nós não inventamos os títulos das nossas casas

comerciais, aliás, de cousa alguma.

As lojas de primeira ordem copiam os das grandes casas das primeiras cidades do mundo; e as dos arrabaldes e subúrbios, por sua vez, copiam os

dísticos daquelas e acrescentam o nome da divisão da cidade em que se

acham. (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p. 440-441).

A preferência por nomes estrangeiros para nominar estabelecimentos comerciais

frequentados por um público, que em nada lembra a burguesia europeia, causa a Barreto

estranhamento e desconcerto. O subúrbio dá mostras de que também já se apropriou dos

discursos e imagens responsáveis por sustentar a mitificação da metrópole-modelo, alinhada

aos países de primeira grandeza. Mas, ao serem designadas por nomes como Raunier do

Catete, Lírico da Gávea ou Notre Dame, as lojas ressaltam ainda mais a dificuldade de se

estabelecer traços de identidade nos ritmos imprevisíveis das cidades brasileiras. Ou, mais do

que isso, exibem essa identidade fraturada, pois esses nomes representam a síntese do

desconcerto e da ambiguidade do país, sendo uma representação paródica do brasileiro, que

transitava entre as figuras do caipira e do cosmopolita. A sobreposição de imagens resulta na

fragmentação, em que a busca pelo requinte e bom gosto, propagandeada pela nova ordem

social, esbarra com a realidade de um segmento da cidade ainda preso ao estilo de vida

nativista e, por isso mesmo, considerado arcaico.

Barreto aponta nisso tudo traços de uma ilusão urbana, nascida pelo surgimento de um

comércio vibrante ao redor das estações de trem: “Nas cercanias das estações de subúrbios,

parece-nos, a ilusão urbana ficou completa com essas tabuletas ouvidorianas, onde até o

francês figura. Elas indicam as lojas em que se amontoam essas cousas fashionable das casas

de fazendas, de sapatarias, de bordados, de balas e bombons.” (BARRETO In: RESENDE,

2004, p. 441). Enfim, a ilusão urbana rende culto à ideia de que qualquer um pode fazer

parte do grande projeto de modernização da nação brasileira ou que esta realmente se efetiva

através do conjunto de técnicas e processos destinados a dar para a cidade - em sua totalidade

-, uma infraestrutura eficiente. Essa, no entanto, é uma impressão que não corresponde à

realidade.

97

Ao circular pela cidade, Barreto exercita uma atividade pela qual nutria um particular

apreço: inventariar o prosaico da vida suburbana. Assim, frequenta lugares onde poderá

aprimorar essa habilidade que, segundo ele, poderá lhe fornecer uma interessante percepção

do mundo.

A “estação” é verdadeira e caracteristicamente suburbana, na segunda metade da manhã, principalmente das nove às onze horas. São as horas em

que descem os empregados públicos, os pequenos advogados e gente que tal.

Então, é de ver e ouvir as palestras e as opiniões daquela gente toda,

sempre a lastimar-se de Deus e dos governos, gente em cuja mente a monotonia do ofício e as preocupações domésticas tiraram toda e qualquer

manifestação de inteligência, de gosto e interesse espiritual, enfim, uma

larga visão do mundo. (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p. 441).

Ao citar empregados públicos e pequenos advogados, o autor destaca os representantes

de novos grupos sociais que passaram a representar os setores médios da sociedade, formando

uma pequena burguesia, cujos pormenores de sua rotina diária, flagrados nas estações,

funcionam como um microcosmo da cidade. Nesse sentido, vale lembrar a descrição feita por

José Murilo de Carvalho da constituição da sociedade brasileira nos anos posteriores à

proclamação da República:

O ponto que mais nos interessa aqui, no entanto, diz respeito à

pirâmide ocupacional, que era extremamente ampla na base e muito

afunilada no vértice. No alto havia um pequeno grupo de banqueiros,

capitalistas e proprietários. Seguia-se um precário setor médio,

composto basicamente de funcionários públicos, comerciários e

profissionais liberais. De tamanho semelhante ao anterior era o setor

do operariado, que incluía principalmente artistas, operários do Estado

e trabalhadores das novas indústrias têxteis, além dos empregados em

transportes. (CARVALHO, 2011, p.76)

Registrando, pelo olhar, cenas que ali se desenrolam, e apurando os ouvidos para

melhor processar as conversas alheias, o autor, à moda do cronista benjaminiano, vai

moldando suas impressões acerca da urbe moderna. Sua escolha criteriosa e fundamentada

recai nos arredores periféricos da cidade e na população que ali vive. Mesmo sendo ele

mesmo um deles, no trecho selecionado, não deixa de lançar um olhar crítico sobre o

comportamento das pessoas que moram no subúrbio. O cronista nos aponta, como se estivesse

a indicar com o dedo, a pessoa que passará a descrever ou um lance que merece ser

depreciado.

Aquele senhor gordo, que está ali, em pé, fora da cobertura da estação,

estudando o ventre e balouçando o chapéu-de-sol, pendente das mãos

cruzadas atrás das costas; aquele senhor conversa com aquele outro, esgalgado, ossudo, fardado de cáqui de algodão, com um boné

escandalosamente agaloado e um pince-nez de poeta romântico,

98

naturalmente sobre cousa de vencimento. Vamos ouvi-lo. (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p. 441-442).

Dentre as centenas de usuários de trem, o foco recai sobre o funcionário público, sobre

o qual Barreto encerra uma análise ou juízo negativo. Percebe-se uma preocupação com os

pormenores; a descrição física associada ao exame minucioso de como se vestiam aqueles

dois homens a conversar na estação de trem objetiva traçar o perfil da “elite” suburbana.

Barreto a qualifica pejorativamente, tratando-a como superficial, afeita ao jogo das

aparências. Nicolau Sevcenko afirma que esse individualismo exibicionista, tão comum nas

primeiras décadas do século XX, foi instigado pelo sentimento de competição nascido com a

recente República. Afinal de contas, os “recém-chegados às benesses do consumo [buscam]

se diferenciar e se distanciar dos menos afortunados e dos despossuídos, de cujo seio vieram.”

(SEVCENKO, 2012, p. 538). Daí resulta o tom caricatural do desenho que Lima Barreto faz

desses homens. Os adjetivos traçam uma imagem grotesca: um sujeito é gordo, tem o ventre

saliente; o outro é alto e magro (ossudo). Um é militar, por envergar um boné repleto de

galões e o outro, através de certos pormenores diluídos no texto, parece ser funcionário de

uma repartição pública. A atitude de ambos chama atenção pelo incisivo desejo de demonstrar

status. Para tanto, manipulam emblemas que passam a simbolizar sua posição elevada na nova

hierarquia social: modos afetados, o fardamento exageradamente cheio de galões, o pince-nez.

Trata-se de um jogo ilusionista bem ao gosto da época, em que se legitima a aparência como

um cartão de apresentação, que será usado para atingir uma posição social de destaque.

Barreto utiliza esses dois homens para atacar um tipo mais específico: o doutor. O

cronista é conhecido pela forma irônica como trata em suas obras aquela que foi considerada

uma mania nacional: a pretensão de qualquer pessoa para se chamar, facilmente, de doutor.

Isso se dá pela posse de um título superior ou até mesmo sem o diploma. Na crônica A

estação, Lima Barreto aborda o assunto:

O brasileiro é vaidoso e guloso de títulos ocos e honrarias chochas. O

seu ideal é ter distinções de anéis, de veneras, de condecorações, andar cheio

de dourados, com o peito chamarré d’or, seja da Guarda Nacional ou da

atual segunda linha. Observem. Quanto mais modesta for a categoria do empregado – no subúrbio pelo menos – mais enfatuado ele se mostra. Um

velho contínuo tem-se na conta de grande e imensa cousa, só pelo fato de ser

funcionário do Estado, para carregar papéis de um lado para outro; e um simples terceiro oficial, que a isso chegou por trapaças de transferências e

artigos capciosos nas reformas, partindo de “servente adido à escrita”, impa

que nem um diretor notável, quando compra, se o faz, a passagem no guichet da estação. (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p. 442-443).

99

O trecho descreve o tipo que personifica as ambições aristocráticas de parte da

burguesia suburbana, intentando distinguir-se do restante da população que residia nos

subúrbios. Com isso, Lima Barreto procura demonstrar como existia certa hierarquia social

nos bairros suburbanos, desmentindo a ideia equivocada de um subúrbio socialmente

homogêneo. A desigualdade se media pelas casas, pelas cores, pelas ruas, assim como pelo

histórico ostentado por cada família. Essa curiosa aristocracia, chamada por ele de “a mais

fina flor da aristocracia do subúrbio”, em crônica intitulada “Esta minha letra...”, seria

composta por uma grande parcela da população detentora de um padrão social mediano: “[...]

funcionários de pequena categoria, chefes de oficina, pequenos militares, médicos de fracos

rendimentos, advogados sem causa, etc.” (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p. 92).

Por seu conteúdo, o diálogo entre os dois homens parados na estação de trem chama

atenção do cronista. Existe um nítido recorte temático: a valorização do conhecimento

tecnicista, cuja legitimação se dá através de um título emitido por uma academia científica.

Isso se torna evidente quando um dos interlocutores comenta o ingresso de um novo

empregado na repartição pública na qual aquele trabalhava. Mais uma vez, o cronista aponta

para a preocupação de um em desmerecer a competência do outro pela ausência da titulação.

- Hoje não entram mais bons empregados; todos, saibam ou não, passam em concurso. Quando entrei, éramos vinte e cinco; só foram

habilitados onze. Hoje!...

Chupou a piteira e acrescentou: - Há exceções. Agora mesmo, acaba de entrar um bem hábil. É

verdade que não é formado mas...

Este “formado” ele disse mais de uma vez, com voz pausada, quase

destacando as sílabas; e isso porque, na sua qualidade de burocrata formado, se julgava superior aos que não o eram.

O valete de copas é formado, mas em farmácia; e exerce um cargo

público “técnico” que nada tem a ver com as cousas de botica. “Técnico”? – perguntarão admirados os senhores. Que espécie de “técnico” é esse?

Explico: hoje, todos os burocratas se julgam técnicos. São técnicos os da

Contabilidade da Guerra, os dos Correios, os dos Telégrafos, os do Tribunal de Contas, os contínuos de Sua Excelência, os porteiros das casas do

Congresso, os amanuenses do Supremo Tribunal, etc. O valete pertencia a

uma dessas repartições, logo... . (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p. 444-

445).

Barreto deseja, pejorativamente, explorar a presunção do locutor, chamando-o de

valete de copas. Nada mais simbólico; sentir-se em uma condição especial demais confere a

este a referida alcunha. Ao reproduzir a estampa de um jovem pajem, a pretensa condição de

superioridade associada a essa carta de baralho rivaliza com o sentido negativo instituído pela

imagem do lacaio – criado, costumeiramente sem libré, que acompanha o amo. Trata-se de

uma pessoa que vive próxima ao poder, mas está longe de representá-lo. O papel

100

desempenhado por ambos – o funcionário de repartição e o lacaio - é outro: traduz a

subserviência típica dos que orbitam em torno do poder sem dele participar efetivamente. O

ridículo da situação está na busca pela autopromoção. A estratégia consiste em garantir status

a uma função de segunda ordem, empregando subterfúgios variados: ora camufla-se a

condição de subordinado quando este atribui à função que ocupa um valor maior do que o

real, ora confere-se à titulação o diferencial para lhe garantir uma posição de destaque na

hierarquia social.

Lima Barreto, no trecho transcrito, expressa-se criticamente a respeito da figura do

técnico, sempre registrado entre aspas na crônica. O que gera motivo para riso é a constatação

de que esse sentimento de superioridade por parte do funcionário público, que atende pelo

título de “especialista”, estende-se do mais simples funcionário da repartição até o mais

graduado.

A crítica do autor ainda recai em outra mania, segundo ele, típica dos burocratas

suburbanos e muito ostentada nas estações de trem: a de exibirem o seu saber. Para provar o

que diz, Barreto reproduz para o leitor trechos, de conversas alheias foram fisgadas por ele,

em um desses pontos de espera. O intuito é satirizar a falsa sabedoria dos funcionários

graduados. Para tanto, o autor cria efeitos cômicos ao focalizar a obsessão dessas pessoas

pelas minúcias, o apego ao formalismo da língua em total desacordo com o dinamismo que

lhe é tão comum.

Os burocratas, porém, não imaginam, nem medem as vacilações deste

nosso português indisciplinado, por causa dos gramáticos, que não o deixam

“assentar”, e levam sempre a “mexê-lo”. Não medem, a ponto de permitir que, com toda a segurança, num banco de estação de subúrbio, um deles se

refira aos conhecimentos de um colega desta maneira:

- O novo amanuense? Você fala do Isidoro?

- Sim. - Ele pode saber francês, história, geografia; mas português não sabe.

Há dias, numa parte de doente, escreveu – “afetado de gripe”; ainda ontem,

não sei a que propósito, escreveu: “um dos que foram”. Sabe lá português! (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p. 443-444).

O trecho tem um viés autobiográfico, pois reproduz um dos traços da escrita literária

de Barreto que, nas palavras da pesquisadora Maria do Carmo Lanna Figueiredo, seria a

“tentativa de expressar-se de forma contundente, contrariando o projeto literário de sua época,

[que] vai atingir diretamente o que ele considera como linguagem ‘distante e aristocrática’

[...]”. (FIGUEIREDO, 1995, p. 12). A predileção por uma linguagem coloquial, não só nas

crônicas, mas também nos romances, aproxima seus textos de um público formado pelo novo

jornalismo. Contudo, mesmo tendo acesso às novas possibilidades de instrução, os

101

destinatários dessa produção intelectual ainda não detinham, segundo a pesquisadora, as

“chaves culturais” que lhe garantissem assimilar a complexidade da literatura então em voga.

Barreto tinha consciência de que, para atingir seu público, precisaria manejar as ferramentas

linguísticas responsáveis por dar maior transparência à comunicação. A lucidez com que

descreve a sociedade então vigente precisa se atrelar a uma linguagem capaz de oferecer ao

leitor a capacidade de distinguir intelectualmente um determinado raciocínio. Por isso, existe

uma tentativa de substituir um modelo que ora prestigia o olhar ufanista da realidade

brasileira, alicerçado sob uma tradição europeia, ora prestigia o floreio verbal. Barreto opta

por uma fala mais próxima do povo, tida por ele como superior, já que não congrega o

artificialismo das regras retóricas e estilísticas do bem escrever.

A conversa reproduzida por Barreto, em que dois burocratas fazem referência a um

colega de trabalho, torna-se mais significativa quando se sabe que o tal Isidoro, foco da

explanação, exercia a função de amanuense, atividade que outrora fora também

desempenhada pelo escritor. Amanuense era o funcionário público de condição modesta que

fazia a correspondência e copiava ou registrava documentos; em suma, um mero escrevente

ou copista, alvo de desprezo na hierarquia das repartições. Lima Barreto exercerá essa função

em 1903, quando, por causa dos problemas psiquiátricos do pai, é obrigado a deixar a

faculdade de Engenharia para sustentar a família, ingressando como escriturário na Secretaria

da Guerra. O que torna essa similaridade relevante está no fato de que, como escritor afeito a

uma linguagem menos empolada, Lima Barreto teve seu trabalho questionado. Muitas de suas

crônicas tratam do assunto, deixando antever sua inquietante consciência de que a educação,

por si só, não era um fator de elevação e inserção imediata nas melhores posições da

hierarquia social. Havia para ele um limite determinado por sua origem humilde e por sua cor,

sem contar o alcoolismo e os problemas de ordem psicológica que o levam a ser internado por

várias vezes.

Ao amanuense Isidoro não foi suficiente “saber francês, história, geografia”, sua

erudição não lhe protegeu de ser atacado; da mesma forma, a erudição do próprio escritor

Lima Barreto tampouco evitou que fosse desdenhado pelo conservadorismo acadêmico, tendo

sido rejeitado duas vezes pela Academia Brasileira de Letras para preencher a vaga deixada

por um imortal.

O autor, seletivamente, subtrai os pequenos lances que, diariamente, desenrolam-se no

interior dos vagões do trem que costumeiramente pegava na periferia. Sua predileção estava

em examinar atentamente as particularidades dos passageiros que frequentavam a segunda

102

classe. Isso pode explicar a fascinação sentida por ele ao observar um desenho de Daumier. A

cena, então captada pelo artista, foi assim descrita por Lima Barreto na citada crônica:

Aquelas caras tristes, tangidas pela miséria, oprimidas pelo exaustivo

trabalho diário; aquele cachimbar de melancolias; aquelas mulheres com os

xales à cabeça, e magras crianças ao colo – tudo aquilo me ficou; mas não foram só os detalhes que aí deixo e cuja exatidão não garanto inteiramente,

que me calaram fundamente n’alma. O que me impressionou mais foi

ambiência que envolve todas as figuras e a estampa registra, ambiência de resignação perante a miséria o sofrimento e a opressão que o trabalho árduo

e pouco remunerador traz às almas. (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p.

467).

Figura 8. Passageiro de terceira classe. Honoré Daumier (1808-1879). Disponível em:

<http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/29.100.129>Acesso em: 02 jan. 2014.

O desenho choca pelo que tem de mais incisivo: a capacidade de registrar o ser

humano degradado pela extrema pobreza. Os passageiros que ali figuram, todos eles,

assumem a condição de cidadãos de segunda classe. Em outras palavras, representam uma

103

categoria de pessoas cuja importância e dignidade ficaram relegadas à segunda ordem. O

cronista se aproxima delas por sua condição de excluído, a figurar como representante de uma

ampla gama de marginalizados. O sentimento de angústia só aumenta quando Barreto se

depara com a triste perspectiva de que o círculo de pobreza e submissão dificilmente se

converterá em outra coisa.

Para Lima Barreto, a tela reproduziria uma cena homogênea; em meio àquela variação

de tipos humanos, a dor, consolidada por um estado de opressão, é capaz de uniformizar

aquela gente. O cronista, no entanto, aponta uma diferença nos vagões de segunda classe por

onde circula o passageiro dos subúrbios brasileiros e explica o porquê.

A segunda classe dos nossos vagões de trens de subúrbios não é assim

tão homogênea. Falta-nos, para sentir amargura do destino, profundeza de sentimentos. Um soldado de polícia que nela viaja não se sente diminuído na

sua vida; ao contrário: julga-se grande cousa, por ser polícia; um guarda-

civil é uma cousa importante; um servente de secretaria vê Sua Excelência todos os dias e, por isso, está satisfeito; e todos eles, embora humildes,

encontram na sua estreiteza de inteligência e fraqueza de sentir motivos para

não se julgarem de todo infelizes e sofredores. Só alguns e, em geral,

operários é que esmaltam no rosto angústia e desânimo. (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p. 467).

No trecho transcrito, Lima Barreto emprega o contraste de imagens para evidenciar a

soberba e a vontade de emulação que carrega consigo esse passageiro, o que o impede de ter

consciência de seu lugar social. O cronista assume, então, o desafio de inferir os significados

que se camuflam por traz de cada comportamento. Longe de insultar, o comentário deixa

transparecer certa tolerância com a presunção dessa gente que resguarda seu brio pela

incapacidade de compreender o que se passa a sua volta. Implicitamente, o autor indica o

caminho para se alcançar a felicidade: a ignorância. A rudeza de conhecimento facilita a

distorção de imagens, necessária para convalidar o jogo cênico instituído pelo discurso da

modernidade.

Locomover-se de trem pela nova urbe é, pois, uma maneira singular de ler a si mesmo

e a cidade, que, violentamente alterada, interfere no modo de vida de sua população.

Ocupando uma das poltronas dos vagões de segunda classe, o cronista exercita sua capacidade

de inventariar os signos da modernidade, construindo um painel simbólico do país; afinal de

contas, os suburbanos também são influenciados pelos valores modernos. As conversas

entrecortadas no interior do vagão não deixam dúvida de que os tempos são outros: ser

moderno é falar de cinema (cinematógrafo), de futebol, estar apuradamente vestido de acordo

com a moda mais estapafúrdia de Paris, frequentar os lugares mais elegantes da época. Por

isso Barreto diz que

104

O trem tem o fartum de cinematógrafo. É Gaumont para aqui, é Nordisk, para lá; é Chico Bóia; é Theda Bara – que mais sei eu, meu Deus!

O execrável football também é conversa obrigada das moças e

senhoras que gastam em saber nomes e cousas de tão nefando jogo uma

energia mental que podia ser mais bem empregada na administração de suas modestas casas.

Os vestuários, com raras exceções, são exageradíssimos. Botafogo e

Petrópolis exageram Paris; e o subúrbio exagera aqueles dois centros de elegâncias.

[...]

Os cavalheiros, com suas roupas a prestações, também se arreiam à moda dos “almofadinhas” das confeitarias de rendez-vous elegantes.

[...]

É pena que a imitação desses rapazes fúteis e dessas moças levianas se

encaminhe para cousas tão de nonada. Bem podiam eles e elas dirigir tão fecundo fator de aperfeiçoamento social para atividades mais altas. Mas o

que se há de fazer? É assim... (BARRETO In RESENDE, 2004b, p. 469-

470).

O trecho expõe alguns emblemas representativos do homem moderno nas primeiras

décadas do século XX. A referência às companhias de produção cinematográfica, Gaumont e

Nordisk, ao comediante Fatty Arbuckle (no Brasil, Chico Bóia) e à atriz Theda Bara, ambos

oriundos do cinema mudo norte-americano, traduz a importância do cinema na construção da

metrópole moderna. Símbolo de avanço tecnológico, o cinematógrafo tem a ver com o estilo

de vida preconizado pelo fenômeno da metropolização, que deveria fazer ressoar as grandes

transformações tecnológicas em marcha pelo mundo.

A ilusão cinematográfica ricocheteava no ambiente externo das salas de reprodução.

Era preciso perpetuar o devaneio no cotidiano sem graça do público frequentador do cinema

através da adoção de um estilo de vida que tentasse reproduzir a elegância dos lugares e das

pessoas exibidas nas telonas. Tais imagens, entretanto, se esvaneciam, quando, ao sair do

cinema, o cronista se deparava com ruas esburacadas, sujas, sem saneamento básico, repleta

de negros, de pessoas mal vestidas. Por isso, as reformas de urbanização da cidade apoiadas

por um grupo de entusiastas, não convenciam aquele que não se deixava iludir. Por isso

mesmo, denuncia que, para se moldar à nova ordem social, a Capital do Brasil, acaba por

perder muito de suas características, inclusive arquitetônicas. Na crônica “O Jardim Botânico

e as suas palmeiras”, publicada em 1919, ao tratar do abandono desse espaço da cidade,

aproveita para criticar os padrões estéticos, bem ao gosto burguês, das novas edificações que

eclodiam pela capital.

Ia eu dizendo, porém, que as nossas construções ultramodernas e ultrachiques são hediondas. As “vilas” (que nome!) que se veem pelos

arredores atuais do Rio de Janeiro, porque não há um, por mais modesto, que

as não tenha; as tais “vilas”, continuo, não se enquadram absolutamente na

paisagem. São petulantes e catitas, para a força e vigor da paisagem; e são

105

acanhadas e mofinas para a amplidão e as fortes sugestões dos horizontes. Antes aquelas velhas casas coloniais, de colunas heterodoxas, acaçapadas

como se sentindo humildes e efêmeras diante do sentimento de eternidade

que transpirava das serras circundantes.

[...] A nossa burguesia republicana é a mais inepta de todas as

burguesias. Não tem gosto, não tem arte, não possui o mais elementar

sentimento da natureza. Há nela pressa em tudo: no galgar posições no construir, no amor, no ganhar dinheiro, etc. Vai, nessa carreira, atropelando,

vai matando, vai empurrando tudo e todos; e, como não tenha educação,

cultura e instrução, quando se apossa do dinheiro, ganho bem ou mal, não sabe refletir como aplicá-lo, num gesto próprio e seu; então, imita o idiota

que procura em comprar o que for caro, porque será decerto o mais belo.

(BARRETO v. XII, 1956, p. 93-94).

Causa-lhe incômodo a adulteração sofrida pela cidade. Segundo ele, o desacordo das

construções com a paisagem local evidencia o artificialismo da nova estrutura social, criada

para se moldar ao gosto da ascendente burguesia argentária. Sua explanação destaca, mais

uma vez, um traço da cultura moderna, a exigência de se manter uma relação com os símbolos

de origem europeia ou norte-americana. Era preciso readequar os padrões habitacionais e a

própria ambição de sanear socialmente a nova capital redesenhada.

Acima de tudo, para ele, o que deveria ficar em evidência não eram as construções,

mas a cidade, com sua topografia irregular, marcada por uma beleza natural ímpar. A falta de

sensibilidade dos novos ricos estaria na incapacidade para perceber que suas moradias

deveriam ser uma extensão do meio natural onde estavam sendo construídas. Contudo, o que

se vê é a descaracterização da paisagem. Por exemplo, em crônica publicada em 1914, no

Correio da Noite, Barreto já criticara a derrubada de árvores seculares para a abertura de

avenidas:

Mas uma coisa que ninguém vê e nota é a contínua derrubada de

árvores velhas, vetustas fruteiras, plantadas há meio século, que a avidez, a

ganância e a imbecilidade vão pondo abaixo com uma inconsciência

lamentável. Nos subúrbios, as velhas chácaras, cheias de anosas mangueiras,

piedosos tamarineiros, vão sendo ceifados pelo machado impiedoso do

construtor de avenidas. (BARRETO v. XII, 1956, p. 87).

Em sua crítica à desfiguração da cidade e da natureza, Lima Barreto chama atenção

para outro aspecto que desabona as obras de revitalização, o apagamento de uma importante

narrativa da cidade. A história do Rio de Janeiro e de sua população seria sacrificada. Isso

significaria trafegar por uma cidade sem passado e, portanto, sem identidade. Nesse sentido,

em sua atitude já se verifica o aspecto negativo da modernidade apontada por Doreen Massey

(2008), a imposição de uma história única.

106

Um bom exemplo a ratificar tal posicionamento é a crônica em que trata da notícia de

que o Convento da Ajuda, situado na Avenida Central, fora vendido a alguns ingleses e

americanos que pretendiam erguer no lugar da antiga construção um moderno hotel, leva o

cronista a questionar iniciativas como essa.

Houve grande contentamento nos arraiais dos estetas urbanos por tal fato. Vai-se o mostrengo, diziam eles: e ali, naquele canto, tão cheio de

bonitos prédios, vão erguer um grande edifício, moderno, para hotel, com

dez andares.

[...] O bonito envelhece, e bem depressa; e eu creio que, daqui a cem

anos, os estetas urbanos reclamarão a demolição do Teatro Municipal com o

mesmo afã com que os meus contemporâneos reclamarão a do convento. [...]

Com as minhas ideias particulares possa passar sem o passado e sem

a tradição; mas os outros, aqueles que, diariamente, contam nos jornais histórias do açougue dos jesuítas, anedotas do Príncipe Natruza e outras

coisas edificantes e épicas, como é que deixam desaparecer sem uma

lágrima, debaixo do alvião bárbaro, aquele velho monumento, panteão de

rainhas, de imperatrizes e princesas? [...]

Quando, entretanto, eu me faço cidadão da minha cidade não posso

deixar de querer de pé os atestados de sua vida anterior, as suas igrejas feias e os seus conventos hediondos. (BARRETO In: RESENDE, 2004a, p. 99-

100).

O cronista desqualifica os que cultuam a estética e o belo acima de outros valores.

Sabe que, em nome de um novo modelo estético, renega-se a memória de uma cidade, com o

as inúmeras construções esparramadas pela urbe. Por isso lhe é pesaroso saber que o convento

será demolido, pois o edifício guarda lembranças provenientes de experiências ali vividas.

Não se trata de uma memória individual, mas coletiva. Daí advém sua preocupação com o

destino dessa habitação religiosa, que representaria todas as construções antigas do Rio de

Janeiro que terão o mesmo fim: a destruição e o esquecimento. Aponta, pois, para a ironia

presente nesse frenesi pelo novo; a fugacidade do tempo fará com que seja passageira a

manutenção do padrão estético então imposto, que perderá rapidamente o seu caráter de

novidade. Por isso o autor relativiza a noção de beleza. Ao fazer isso, estabelece outro

parâmetro de análise, o qual se distancia de um princípio básico: o belo deve agradar à vista,

precisa alcançar proporções e traços que satisfaçam padrões estéticos de harmonia. Para

Barreto, o raciocínio deve ser outro: a beleza de uma construção está na sua importância

histórica por reunir dados concernentes a um indivíduo e, por extensão, a uma coletividade.

Tal pensamento acaba por levá-lo a se manifestar a favor das igrejas dadas, como feias e dos

conventos tidos como hediondos.

107

Na crônica “Bailes e divertimentos suburbanos”, publicada na Gazeta de Notícias, em

1922, dois temas se entrelaçam: a arquitetura popular e como o morador suburbano se diverte.

A relação existe porque o entretenimento, seguindo uma tradição da monarquia, ocorrera, a

princípio, no ambiente íntimo das casas com os saraus e os bailes. Com a República, um novo

estilo de vida emerge. É preciso se adaptar às regras de conduta instituídas pelos mais

recentes espaços de socialização. Existe o rompimento da clausura doméstica que ocorre tanto

quando os moradores buscam no ambiente público formas de diversão e até mesmo quando as

festas ocorrem no ambiente privado, agora, envoltas por uma maior liberalidade dos

costumes, tornando mais elástico o limite entre o público e o privado.

Na crônica, “Bailes e divertimentos suburbanos”, publicada na Gazeta de Notícias

Barreto fala de um baile que ocorrera em uma casa próxima à dele. Quando, no outro dia,

sentado à mesa posta para o café, fica sabendo, por parte da irmã que participara do baile, da

mais nova dança – um tal de shimmy -, a imperar nessas reuniões festivas, o cronista passa a

rememorar como eram os bailes vinte anos atrás. Seu desconcerto frente aos novos hábitos

urbanos é perceptível, gerando uma série de reflexões. Em primeiro lugar, discorre sobre

como as antigas formas de diversão interferiam na estrutura de uma residência. Ele assim

comenta:

Na escolha da casa presidia sempre a capacidade da sala de visitas

para a comemoração coreográfica das datas festivas da família. Os construtores das casas já sabiam disso e sacrificavam o resto da habitação à

sala nobre. Houve quem dissesse que nós fazíamos casa, ou as tínhamos para

os outros, porque a melhor peça dela era destinada a estranhos. Hoje, porém, as casas mínguam em geral, e especialmente, na

capacidade dos seus aposentos e cômodos. Nas salas de visitas das atuais

mal cabem o piano e uma meia mobília, adquirida a prestações. Meia dúzia de pessoas, numa delas, estão ameaçadas de morrer asfixiadas com as janelas

abertas. Como é que elas podem comportar um baile à moda antiga, em que

dançavam dúzias de pares? Evidentemente, não. Isto acontece com as

famílias remediadas; com as verdadeiramente pobres, a coisa piora. Ou moram em cômodos ou em casitas de avenidas, que são um pouco mais

amplas do que a gaiola dos passarinhos. (BARRETO v. XII, 1956, p. 62).

O trecho chama atenção para o funcionamento de uma residência construída sob o

modelo monárquico. A sala de visitas, edificada principalmente para a realização de bailes e

outras comemorações familiares, torna-se o espaço de transição entre o público e o privado.

Instalada no interior das residências, onde a intimidade das pessoas deveria ser ocultada do

público externo, em ocasiões especiais torna-se um local marcado pela superposição de duas

instâncias. Barreto não fala de convidados, refere-se a eles como “estranhos” a entrar na casa

das pessoas, como se estivessem a macular o que há de mais sagrado em uma residência, a

108

privacidade de uma família, sua intimidade. Contudo, esta não era patenteada à população

mais pobre, obrigada a dividir sua intimidade com outras pessoas nos cortiços e estalagens

cariocas. Nesses locais, as expectativas de privacidade eram praticamente nulas, diluídas pelo

compartilhamento dos varais, tanques e portas abertas. Nesse sentido, para o pesquisador

Paulo César Garcez Marins (2012) o conceito de público e privado é mais abrangente. Não se

restringe ao contraste que nasce do binômio rua - casa. Tem a ver com o que ele chama de

geografia da exclusão e segregação, responsável por separar em bairros distintos os diversos

segmentos da sociedade, mas que, indistintamente, deveriam seguir uma mesma regra de

conduta social.

Privacidade, portanto, não poderia mais confundir-se com domesticidade,

com os simples limites da casa, mas escapava para uma dimensão que abarcava os convívios, os vizinhos – todos sujeitos a uma mesma gramática

de comportamento. Harmonizando-se as vizinhanças facilitava-se o

conhecimento da fisiologia urbana – e das múltiplas “disfunções” geradas nas clivagens sociais altamente tensionadas nas capitais brasileiras,

sobretudo após a concentração de grandes massas populacionais nas cidades

já na primeira década republicana. (MARINS, 2012, p. 136).

Não só na crônica “Bailes e divertimentos suburbanos”, mas em outras, Lima lançará

sua crítica às casas de cômodos, dando-lhes a alcunha de representantes por excelência da

pobreza na capital.

Nutria também uma honesta implicância para com o bairro de Copacabana, pois, para

ele, essa região nobre da cidade era beneficiada pelos investimentos do poder público,

enquanto o subúrbio ficava relegado a receber poucos recursos da prefeitura. Na crônica “O

prefeito e o povo”, publicada em 1921, na revista Careta, manifestou-se sobre o assunto:

Vê-se bem que a principal preocupação do atual governador do Rio de

Janeiro é dividi-lo em duas cidades: uma será a europeia e a outra, a indígena.

[...]

Todo o dia pela manhã, quando vou dar o meu passeio filosófico e higiênico, pelos arredores da minha casa suburbana, tropeço nos caldeirões

da rua principal da localidade de minha residência, rua essa que foi calçada

há bem cinquenta anos, a pedregulhos respeitáveis.

Lembro-me dos silhares dos caminhos romanos e do asfalto com que a Prefeitura Municipal está cobrindo os areais desertos de Copacabana.

Porque será que ela não reserva um pouquito dos seus cuidados para

essa útil rua das minhas vizinhanças, que até é caminho de defuntos para o cemitério de Inhaúma? Justos céus! Tem acontecido com estes cada cousa

macabra! Nem vale a pena contar.

Penso que, nessa predileção dos prefeitos por Copacabana, há milonga; mas nada digo, porquanto tenho aconselhado aos meus vizinhos

proprietários que a usem também. (BARRETO V. XII, 1956, p. 117).

109

Mais uma vez, Lima Barreto fala de uma cidade dividida; pautado por um discurso

higienista, o Poder Público expulsava das áreas nobres da cidade todos aqueles que não

podiam se enquadrar nos preceitos apropriados dos modelos burgueses da Europa e dos

Estados Unidos. Contudo, a expansão da população carente avançara no seio dos bairros de

palacetes, marcando a paisagem e arruinando as ambições de afastar as vizinhanças

empobrecidas. Para restringir o acesso dessa "gentalha" a esses locais “civilizados”, foram

instituídas normas de uso e conduta que acabaram por se reservar esses lugares a um grupo

seleto. Sem falar nos rígidos padrões sanitários de infraestrutura impostos aos

empreendimentos imobiliários realizados nessas regiões.

O cronista não poupa críticas à negligência das autoridades para com o subúrbio e sua

população. Causa-lhe estranhamento conferir grandes esforços e dinheiro à região de

Copacabana, ainda um imenso areal no início do século. Em seu comentário, deixa entrever

uma lógica simples que deveria ser compreendida pelas autoridades: o que justifica direcionar

dinheiro para um investimento é reconhecer neste seu caráter utilitário. E mais, precisa

beneficiar grande parte de uma coletividade. Por isso mesmo, Barreto comenta a necessidade

de melhorar a rua em que vivia, por ser esta o caminho por onde passavam os cortejos que

levavam os defuntos ao cemitério local. Barreto não deixa de ironizar a predileção das

autoridades por Copacabana, dizendo que tal postura se devia à milonga, aqui tomada como

habilidade de enganar, despistar, desorientar; uma forma de astúcia (Cf. HOUAISS, 2001, p.

1924). A sugestão para que a população suburbana protestasse, de forma mais contundente,

traduz o seu pessimismo ante qualquer tentativa de se buscar uma solução pelos métodos

convencionais.

Essas reflexões evidenciam o tom combativo de Lima Barreto, que, no seu exercício

de escritor, colocou-se na defesa da cidade. Fez isso criticando os poderosos, desconfiando de

medidas que impuseram modificações à geografia da cidade, como a derrubada do morro do

Castelo e o aterramento do mar por ordem do prefeito Carlos Sampaio, os privilégios

concedidos às áreas ricas em oposição ao desprezo pelos locais em que se concentravam os

pobres. Por isso, mais de uma vez criticou o Conselho Municipal da cidade. Foi o que

aconteceu na crônica “Até que afinal!...”, publicada no periódico A.B.C., em 1918.

Ele [o Conselho] trata com fervoroso carinho a nossa heroica metrópole, tanto assim que lhe impôs novos tributos; ele a estima tanto que

quer provocar a sua decadência comercial e industrial; ele a ama tanto que só

trata de despovoá-la com as suas posturas draconianas; ele adora tanto o

povo da cidade que só se preocupa em encarecer-lhe a vida... Todos vós que amastes esta cidade, Sá, Mem e Estácio, Vaía Monteiro

– o Onça, Bobadela, Passos e outros – exultai, porque afinal ela tem o que

110

precisa: um Conselho Municipal que quer o seu total aniquilamento. (BARRETO v. XI, 1956, p. 134).

Barreto critica a municipalidade atacando o seu Conselho. O recurso é interessante, pois

não reprova explicitamente o prefeito da cidade, faz isso censurando a falta de habilidade dos

conselheiros, que atuam como corpo consultivo em questões de ordem pública, mas de forma

inapta. Afinal, não levam em conta o que é bom para uma coletividade. O resultado almejado

está no menosprezo à atuação do Poder Executivo. Para tanto, o autor emprega afirmações

paradoxais, estabelecendo relações irônicas entre enunciados que contêm contradições em sua

estrutura, ferindo o senso comum. Existe uma real incompatibilidade entre o que se diz e o

que se faz. O desacordo é assim construído: sentir fervoroso carinho pela cidade X novos

tributos, estima pela cidade X decadência comercial e industrial, amar a metrópole X posturas

draconianas.

Por fim, cita o nome de pessoas que, de uma forma ou outra, influenciaram a formação

da metrópole, a começar pelos portugueses, referidos nas figuras dos administradores

coloniais – os primos Mem de Sá e Estácio de Sá, Luís Vaía Monteiro (conhecido por Onça

pela ferocidade com que exerceu o cargo), Bobadela (nobre militar e administrador português)

-, até chegar a Pereira Passos (prefeito da cidade entre 1902-1906). Essas pessoas são citadas

ironicamente no texto; na visão do cronista, mesmo que referidas figuras históricas tenham

exercido precariamente suas funções, não foram, juntas, capazes de aniquilar a cidade. Esse

mérito, segundo ele, é do Conselho Municipal. Tal feito, se não concretizado em seu sentido

literal, traduz a perda das características que tornam uma cidade singular: as marcas

distintivas de quem ali vive. Nesse sentido é que a crônica “Bailes e divertimentos

suburbanos” favorece um outro tipo de reflexão; a mudança de hábitos, construídos ao longo

de toda uma existência, é impelida pela própria transformação espacial da cidade. Nessa

crônica, seu comentário acerca das danças modernas vem da leitura de um livro produzido por

um amigo, Sussekind de Mendonça. A obra, intitulada O Esporte está deseducando a

mocidade brasileira, em determinado momento, segundo Lima Barreto, trata da

“licenciosidade das danças modernas.” (BARRETO v. XII, 1956, p. 62).

Merece atenção o trecho em que o cronista aborda o tema.

Hei de falar mais detidamente sobre esse vigoroso livro; agora, porém,

cabe só uma observação. Mendonça alude ao que se passa no set carioca;

mas pelo que me informam, o subúrbio não lhe fica atrás. Nos tempos idos, essa gente verde das nossas elegâncias – verde é sempre uma espécie de

argot – sempre mutável e variável de ano para ano – desdenhava o subúrbio

e acusava-o de dançar maxixe; hoje, não há diferença: todo o Rio de Janeiro,

de alto abaixo, incluídos os Democráticos e o Music-Club das Laranjeiras, o dança.

111

Há uma coisa a notar: é que esse maxixe familiar não foi dos “Escorregas” de Cascadura para o Achilleon do Flamengo; ao contrário, veio

deste para aquela. (BARRETO v. XII, 1956, p. 62-63).

Barreto não perde a oportunidade de depreciar a burguesia esnobe que menosprezava o

maxixe, mas que o adotou (sob outra denominação) quando lhe foi conveniente. O maxixe foi

uma dança, a princípio, nascida da coreografia de formas musicais como a polca e o tango.

Assumiu contornos próprios no Rio de Janeiro, onde surgiu na segunda metade do século

XIX. Trata-se de uma dança urbana de movimentos rápidos que, por sua mobilidade, traz um

jeito espontâneo e sensual de dançar. Por isso mesmo, foi, naquela época, banida dos lares por

ser considerada indecorosa. A elite condenava o maxixe, que passou, inclusive, a ser

perseguido pela polícia. Aquele movimento dos corpos, o apelo aos sentidos só eram

aceitáveis entre a população mais baixa. Nesse sentido, Elias Thomé Saliba explica que o

“Maxixe, fruto comestível de uma planta rasteira, foi palavra associada, na época, a tudo o

que fosse também ‘rasteiro’ e de baixa categoria.” (SALIBA, 2012, p. 319).

O que se esconde por detrás da fala de Lima Barreto tem a ver com o sincero desprezo

que nutria pela elite carioca: “Quando, meu Deus, ficaremos livres da burguesia?!”

(BARRETO, v. XII, 1956, p. 94). A estratégia foi inverter os papeis até então bem

construídos de que a falta de polidez, a ausência de educação e, o mais importante, a índole

duvidosa, eram uma prerrogativa da população suburbana. Esses traços, segundo ele,

deveriam ser buscados em outro ambiente, fora do subúrbio, de preferência entre os grupos

mais abastados. O objetivo é defender a população pobre atacando os que se

autoproclamavam “civilizados”. Se a sociedade carioca estava imersa em um estágio de

regressão, o problema fora desencadeado pela elite, não pela população suburbana.

A defesa das minorias será uma constância no trabalho que Lima Barreto realizou

como cronista. Essa predileção não se restringe aos moradores dos subúrbios, mas se estende

aos que viviam fora do eixo urbano, na região rural. Por isso lhe chamou muita atenção,

merecendo até mesmo a elaboração de uma crônica, o livro Urupês, de Monteiro Lobato. A

grandeza do livro, segundo Barreto, estaria no fato de que “[...] nos mostra o pensador dos

nossos problemas sociais, quando nos revela, ao pintar a desgraça das nossas gentes roceiras,

a sua grande simpatia por elas. Ele não as embeleza, ele não as falsifica; fá-las tal e qual.”

(BARRETO In: RESENDE, 2004a, p. 457). O autor demonstra uma especial predileção por

temas alinhados a demandas sociais, não importando se o problema estiver concentrado no

campo ou na cidade. Contudo, por ser o morador de uma metrópole, as questões relativas a

esse ambiente são mais acentuadas em seus escritos. Qualquer incidente pode instigar um

112

comentário zombeteiro. Se o deboche macular a reputação política dos administradores

públicos, melhor ainda. Dessa forma, tratar das enchentes quase regulares que assolavam o

Rio de Janeiro na época de chuva torna-se pretexto para debater, por exemplo, as obras de

revitalização do Rio de Janeiro.

O Prefeito Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade, descurou completamente de solucionar esse defeito do nosso Rio.

Cidade cercada de montanhas e entre montanhas, que recebe

violentamente grandes precipitações atmosféricas, o seu principal defeito a

vencer era esse acidente das inundações. Infelizmente, porém, nos preocupamos muito com os aspectos

externos, com as fachadas, e não com o que há de essencial nos problemas

da nossa vida urbana, econômica, financeira e social. (BARRETO v. XII, 1956, p. 77).

A crônica, intitulada “As enchentes”, foi publicada em 1915, portanto, nove anos após o

término da administração de Pereira Passos. Mesmo assim, o prefeito ainda é alvo das críticas,

por ter concebido modificações na estrutura física da cidade que serviram muito mais para

decorar. O comentário, mais uma vez, discorre sobre o jogo das aparências, quando a beleza

se sobrepõe ao conteúdo, nesse caso, mascarando as carências da cidade. Barreto elabora um

raciocínio simples, mas complexo pela sutileza da imagem: é preciso ser um profundo

conhecedor do Rio de Janeiro, distinguir com clareza os desalinhos da metrópole para depois

interferir racionalmente no espaço urbano. Apesar de Pereira Passos ser, a princípio, o alvo

das críticas, não se pode ignorar a mudança de tom. O trecho oscila entre a terceira pessoa do

discurso e a primeira do plural, dessa forma, se a crítica pela má gestão da cidade recai na

figura de um terceiro, ao final, com a mudança de foco, Barreto não só se condena como

generaliza sua reprovação a todos que vivem na cidade. Enfim, ninguém pode ser eximido. As

inundações acabam por realçar não só a ineficiência do poder público, mas também a letargia

de todos os moradores, que pecam pela omissão. O cronista evidencia um paradoxo e o

ironiza: a cidade moderna, racionalmente remodelada, não deveria sofrer com as chuvas de

verão.

De há muito que a nossa engenharia municipal se devia ter compenetrado do dever de evitar tais acidentes urbanos.

Uma arte tão ousada e quase tão perfeita, como é a engenharia, não

deve julgar irresolvível tão simples problema. O Rio de Janeiro, da Avenida, dos squares, dos freios elétricos, não

pode estar à mercê de chuvaradas, mais ou menos violentas, para viver a sua

vida integral.

Como está acontecendo atualmente, ele é função da chuva. Uma vergonha! (BARRETO v. XII, 1956, p. 77).

113

A engenharia torna-se alvo do escárnio de Lima Barreto. Contudo, mais do que criticar

o ofício, ataca-se a inabilidade para se empregar a ciência, a técnica das construções civis em

benefício do homem e de suas necessidades. Dessa forma, o menosprezo não é gratuito. Causa

espanto o contraste nascido de um mesmo contexto de percepção: em uma cidade marcada

pelos ícones da modernidade, sendo uma referência nacional por adotar ideias e práticas

modernas ainda não consagradas pelo uso, surpreende que o conhecimento advindo com as

mais recentes descobertas científicas não seja capaz de impedir as inundações. Ao final da

explanação, o inconformismo do cronista expresso pela frase exclamativa sinaliza que o

problema não se deve à inabilidade técnica, mas à falta de empenho (político) para resguardar

os interesses de uma comunidade.

Como se viu, em diversas crônicas, Lima Barreto não esconde seu desconforto ante as

inúmeras medidas que buscam descaracterizar não só a cidade como sua população.

Observando o cotidiano da antiga capital do país, não lhe é difícil perceber como se processa

o mascaramento da cidade. Objetiva-se transformar o Rio de Janeiro, e por extensão o Brasil,

em um segmento da Europa, de Buenos Aires ou dos Estados Unidos. Há um modelo a ser

seguido. Seja na prática esportiva, no vestuário, na arquitetura das casas, no traçado da cidade,

nos hábitos e costumes das pessoas, impõe-se uma nova ordem. Seguindo essa tendência,

falar de futebol é apenas um pretexto para discutir questões mais densas, como a tentativa de

se encobrir a presença de negros no Brasil. Na crônica intitulada “Bendito football”,

publicada em 1921, na revista Careta, esse jogo é apontado como responsável por provocar

desacordo de ideias. O cronista acaba por descrever a polêmica da vez: um jornal da época

questionava se era cabível levar para a Argentina, em uma competição internacional,

jogadores negros. Causou espanto a Barreto saber que uma comissão fora organizada para, em

sessão secreta, achar uma solução para o problema.

O conchavo não chegou a um acordo e consultou o papa, no caso, o eminente senhor presidente da República. Sua Excelência que está habituado

a resolver questões mais difíceis como sejam a cor das calças com que os

convidados devem comparecer às recepções de palácio; as regras de precedência que convém sejam observadas nos cumprimentos a pessoas reais

e principescas, não teve dúvida em solucionar grave questão. Foi sua

resolução de que gente tão ordinária e comprometedora não devia figurar nas exportáveis turmas de jogadores; lá fora, acrescentou, não se precisava saber

que tínhamos no Brasil semelhante esterco humano. É verdade, aduziu ainda,

que os estrangeiros possuem os retratos dos nossos senadores, dos nossos

deputados, dos nossos lentes e estudantes, dos nossos acadêmicos, etc., etc., mas são fatos domésticos com os quais nada têm a ver os estranhos; porém,

fez Sua Excelência com ênfase, numa representação nacional não é decente

que tal gente figure. É verdade que o Senado, a Câmara são, mas... isso não vem ao caso.

114

Concordaram todos aqueles esforçados cavalheiros que trabalham “pedestremente” pela prosperidade intelectual e pela grandeza material do

Brasil; e, como complemento da medida, decidiram nomear uma comissão

de antropólogos para examinar os “Enviados Extraordinários e Ministros

Plenipotenciários da Pátria”, ao certame de junta-pés, na República Argentina. [...]

A providência, conquanto perspicazmente eugênica e científica, traz

no seu bojo ofensa a uma fração muito importante, quase a metade, da população do Brasil; deve naturalmente causar desgosto, mágoa e revolta;

mas – o que se há de fazer? O papel do football, repito, é causar dissensões

no seio da nossa vida nacional. É a sua alta função social. (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p. 427).

Barreto não é indulgente com os políticos. Busca desmoralizá-los, explorando a

hipócrita solução dada ao litígio. Negar a ida de jogadores negros a uma competição na

Argentina oportuniza ao cronista algumas reflexões. Inicialmente, a prática de se jogar futebol

marca a interferência de uma cultura dominante sobre um país periférico, desejoso por adotar

o estilo de vida alheio. O esporte foi introduzido pelos ingleses, mas por aqui se aclimatou,

caindo no gosto da população. Depois, espalha-se entre os carentes, perdendo seu caráter

elitista. A polêmica descrita na crônica expõe a tentativa, que mais tarde se saberá infrutífera,

de desassociá-lo de negros e mestiços. Além disso, a decisão confirma o pretenso desejo por

homogeneizar o Brasil. O modelo de nação concebido pela República Velha está muito

distante da realidade das ruas, por onde circulam pessoas que nada lembram o tipo físico

europeu. Mesmo assim, é preciso insistir com o jogo de aparências, esconder a procedência da

população brasileira. A mestiçagem, por isso, é vista como um problema e não como a

condição própria de uma sociedade.

A farsa é denunciada. Sarcasticamente, o cronista esclarece a verdade por trás da

encenação. Tudo se concretiza de maneira sutil; pistas são deixadas para o leitor que, de posse

desses vestígios, é conduzido a uma descoberta. Para atingir tal fim, o trecho faz referência ao

fato de os estrangeiros possuírem retratos “[...] dos nossos senadores, dos nossos deputados,

dos nossos lentes e estudantes, dos nossos acadêmicos, etc., etc. [...]”. (BARRETO In:

RESENDE, 2004b, p. 427). Não se trata explicitamente da imagem registrada pela máquina

fotográfica, mas daquela construída pelo referencial histórico que se concretiza pelas atitudes

e decisões assumidas por um segmento social, nesse caso, representado por quem maneja as

estruturas do poder, seja na figura do político, seja na do intelectual. Portanto, a descrição

mais ou menos fiel desses patrícios brasileiros é de que são, eles sim, o esterco humano.

Merecem o desprezo destinado até então aos negros.

O cronista endurece o tom de sua crítica ao comparar a resolução tomada com medidas

que pretendem aprimorar geneticamente a espécie humana: a nação, maculada pela presença

115

de negros e mestiços em seu território, precisa expurgar a imagem de selvageria que a ela se

associou. O que provoca aversão ao cronista é o uso da ciência para legitimar a exclusão.

Nesse ponto, só resta contestar o saber científico, o qual deveria ser construído sob conceitos

e princípios racionalmente desenvolvidos, mas acaba por sofrer a manipulação responsável

por estigmatizar o indivíduo de pele escura.

Lima Barreto também parece participar do jogo valendo-se da arma da dissimulação,

ao encobrir falas, comentários; a ironia é seu grande trunfo: “É verdade que o Senado, a

Câmara são, mas... isso não vem ao caso.” (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p. 427). O

resultado final, no entanto, pode ser percebido pelo leitor, que consegue apreender da crônica

um desprezo ostensivo e zombeteiro à ideia de o Brasil se fazer representar por jogadores com

estampa europeia, barrando a ida de negros à competição. A estupidez da medida facilita

entender que pensamento preenche as reticências do trecho selecionado.

O futebol torna-se um pretexto perfeito para explorar questões variadas e, a princípio,

sem nenhuma relação aparente com essa prática esportiva. Assim, o futebol ensejou reflexões

até mesmo sobre moda e comportamento social. O cronista aproveita o jogo para assumir a

posição de um arguto observador. O foco não é a partida em si. Os dribles, as faltas cometidas

pelos jogadores, os gols.... pouco importam. Mais vale discorrer sobre a plateia, com seus

usos e costumes. A crônica “Uma partida de football”, publicada em 1919, é um exemplo

desse expediente.

Das coisas elegantes que as elegâncias cariocas podem fornecer ao

observador imparcial, não há nenhuma tão interessante como uma partida de

football. É um espetáculo da maior delicadeza em que a alta e a baixa

sociedade cariocas revelam a sua cultura e educação.

Num círculo romano, com imperadores, retiários, vestais e outros

sacerdotes e sacerdotisas, não se poderiam presenciar aspectos tão interessantes, cousas tão inéditas como nas nossas arenas de jogo do

pontapés na bola. (BARRETO v. XII, 1956, p. 183).

O comentário está longe de enaltecer o jogo e, muito menos, o público que o assiste.

Barreto faz questão de aproximá-los à selvageria dos espetáculos romanos ocorridos nas

arenas, onde se travavam combates entre feras e gladiadores, sacrificavam-se prisioneiros.

Cenas grotescas que, entretanto, cativavam um público fiel, dados como tão bárbaro quanto

as lutas travadas naquele território. O objetivo é apenas um: desassociar a sociedade carioca

da imagem de elegância e civilidade que se buscava construir no imaginário coletivo. Para

tanto, o trecho é marcado por inúmeras declarações que expressam o contrário do que o autor

verdadeiramente pensa. Elegância, cultura e educação nada têm a ver com o futebol, muito

116

menos com seus torcedores. Para o cronista, dar pontapés em uma bola é um comportamento

totalmente dissonante das regras sociais de etiqueta tão prestigiadas por uma população que se

autointitulava polida e culta. Esse comentário depreciativo não se restringe à população

abastada, engloba também os menos afortunados. Dessa forma, Barreto parece comprovar a

afirmação de ser um observador imparcial quando acompanha uma partida de futebol.

Ninguém escapa de sua ironia.

O cronista demonstra uma especial capacidade para revelar o dualismo das coisas, como

se percebe no emprego antitético das palavras alta e baixa. Se no início elas se referem ao

vocábulo sociedade, depois extrapolam seu significado primitivo e passam a designar o

antagonismo que marca a realidade e a natureza humana. É como se o autor quisesse dizer que

o ser humano tende a elevar seus caprichos, sua arrogância, a mania de grandeza, mas tem

diminuta sua moral, sua educação, seu amor ao próximo! Portanto, assistir a um jogo de

futebol oportuniza apreender outros lances, decifrar as particularidades que envolvem o

comportamento humano no jogo social. O pesar do cronista é ainda maior quando observa a

conduta das mulheres como torcedoras:

Não há, portanto, nos nossos hábitos, fato mais agradável do que

assistir uma partida de bolapé.

As senhoras que assistem, merecem então todo o nosso respeito. Elas se entusiasmam de tal modo que esquecem todas as

conveniências.

São as chamadas “torcedoras” e o que é mais apreciável nelas, é o

vocabulário. Rico no calão, veemente e colorido, o seu fraseado só pede meças ao

dos humildes carroceiros do cais do porto.

Poderia dar alguns exemplos, mas tinha que os dar em sânscrito. Em português ou mesmo em latim, eles desafiariam a honestidade: e é,

por um, que me abstenho de toda e qualquer citação elucidativa. (BARRETO

v. XII, 1956, p. 183).

O sarcasmo prepondera no texto. Dessa vez, o tom debochado cumpre a função de

criar uma imagem diversamente oposta àquela comumente associada a certo modelo de

mulher: terna, pura, recatada. É perceptível o incômodo de Barreto com o comportamento

inconveniente das “torcedoras”, assim mesmo designadas, com a palavra entre aspas. O autor

se sente particularmente chocado com o linguajar empregado que, segundo ele, peca pela

grosseria. Tão rude é o vocabulário que só poderia ser dito em outra língua. Daí a comparação

com os carroceiros do cais do porto. Todavia, a relação não é absoluta. O cronista, ao

reconhecer a humildade dos trabalhadores, dá mostras de que o vocabulário tosco empregado

por eles se justifica pela pouca condição social dessa gente. Nesse caso, não há julgamento. O

mesmo não ocorre com as torcedoras.

117

Mais do que ferir o pudor e a moral dos outros, a conduta dessas mulheres sinalizaria a

quebra de paradigmas. A modernidade impõe mudanças não só no traçado da cidade, mas na

forma de agir das pessoas, causando boa impressão em alguns, repúdio em outros. Barreto

pouco se deixa impressionar. A percepção que tem da modernidade é muito parecida com a

avaliação que faz de uma partida de futebol:

O que há, porém, de mais interessante nessas festanças esportivas, é o

final. Sendo um divertimento ou passatempo, elas acabam sempre em rolo e

barulho.

Por tal preço, não vale a pena a gente divertir-se. É o que me parece. (BARRETO v. XII, 1956, p. 184).

A partir da observação e da análise de uma partida de futebol, o autor chega a um

entendimento sobre o assunto: não vale a pena. Ir a um estádio para ver gente dando pontapé

em uma bola, ouvir xingamentos proferidos por mulheres e, ao final, assistir a brigas, não lhe

é vantajoso. Ir ao estádio equivale a outras experiências de se vivenciar novas sensações

trazidas com os ícones da modernidade. Existe, por parte do cronista, uma nítida tentativa de

compreender a nova rotina que se impõe a todos. Para tanto, ele faz uso dos sentidos; aguça os

ouvidos para melhor apreender as conversas, fixa o olhar nas pessoas e no ambiente

recentemente renovado; degusta os novos sabores; aspira cheiros desconhecidos. Dessas

experiências Lima Barreto tira suas conclusões.

O futebol divide espaço com outro tema de sua preferência: o universo feminino. Isso

ocorre, provavelmente, pelas profundas mudanças que envolveram a mulher na passagem do

século XIX ao XX. Denominadas de “vaporosas”, em função do nome dado a uma coluna de

jornal, a alcunha, destinada às elegantes que circulavam pela Avenida Central e pela Rua do

Ouvidor, é ironicamente rechaçada pelo cronista.

Ultimamente, com a criação de secções elegantes nos jornais,

aparecem todos os meses novos qualificativos para nossas elegantes.

Já tivemos as “encantadoras”, já tivemos as “melindrosas”, agora temos as “vaporosas”.

[...]

Só tinha a objectar era a impropriedade da nova designação. “Vaporosas” parece querer dizer que essas moças estão desprendendo

vapor.

Acho aí um pouco de indelicadeza.

Uma moça deve ser sempre uma cousa útil; e o vapor só é útil quando está sob pressão.

Era só a crítica que eu tinha a fazer a essa novíssima designação para

as elegantes da avenida e Rua do Ouvidor. Se é pelo vestuário, seria muito melhor que fossem elas chamadas –

“transparentes”. (BARRETO v. XII, 1956, p. 184-185).

118

Não se sabe ao certo qual era a real intenção de quem nominou as elegantes do Rio de

Janeiro de “vaporosas”. Pensando que o intuito era homenageá-las, a designação tem a ver

com leveza, a extrema delicadeza feminina. Mas, o cronista não pensa assim. Para ele, a

forma escolhida para se referir às mulheres é rude. Portanto, o discurso elaborado por Barreto

parece ser de que as mulheres merecem um tratamento à altura de suas qualidades edificantes.

Mas o que se lê depois disso não combina com essa afirmativa. Ao dizer que “Uma moça

deve ser sempre uma cousa útil”, ele a trata como um objeto, cuja qualidade se mede pelo uso

ou função a que se destina. Por fim, parece-lhe mais justo, se o critério para escolher o nome

fosse outro, associá-lo a uma particularidade do vestuário das mulheres – a transparência.

Chamá-las de “transparentes” sugere a percepção negativa que o cronista nutria pelo novo

estilo feminino de vestir. Na crônica “Modas femininas e outras”, publicada em 1919, na

revista Careta, condena o novo hábito de deixar à mostra certas partes do corpo:

Quando menino, conheci até a anquinha, o tundá; e todos falavam mal dela ou dele, como imoral; entretanto, não deixava o tal adorno ver

descoberta nenhuma parte do corpo. Ao contrário. Vieram o droit-devant, a

jupe-culotte e outras norteações da alma feminina e todos teimaram em encontrar nesses vestuários das damas provas de impudicícia, de despudor e

outras cousas correlatas.

Eu não sei quando eles têm razão, se é quando estimam as mulheres

ultradecotadas nos grandes bailes e teatros, ou se é quando acham isto indecente no meio da rua.

Devia-se remediar essas discrepâncias e discordâncias de modo que

não fossemos apelar para o duvidoso critério das propensões dos gregos que não o tinham firme, tanto assim que há estátuas de deuses e heróis deles que

possuem até nove cabeças e outras nem oito. (BARRETO v. XII, 1956, p.

176).

A crônica reflete o ponto de vista do autor quanto ao vestuário feminino. Ele mensura o

decoro das mulheres às roupas que vestem. O problema está em distinguir o parâmetro a ser

seguido. A oscilação de critérios reflete a inconsistência de uma época, marcada pela falta de

solidez, evidenciando os contrastes que tão bem tipificam a modernidade. Marshall Berman

fala dessas contradições e sutilezas que caracterizam a vida moderna, dizendo que a pessoa

inserida nesse contexto é despejada “[...] num turbilhão de permanente desintegração e

mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia.” (BERMAN, 2007, p. 24)

O trecho extraído da crônica evidencia um código de conduta que acaba perdendo

espaço para uma nova dinâmica social; e por ser flexível, ela incomoda o autor. Nesse novo

contexto, o que é aceitável? Por que o decote nas roupas é admitido em um determinado

espaço e em outro não? Não se sabe ao certo. A questão é lançada ao leitor e, para melhor

situá-lo, o cronista acaba por conduzi-lo a espaços temporais distintos. Para configurar o

119

passado Barreto cita a anquinha e o tundá, que em outra época foram acusados de afrontar os

bons costumes, pois salientavam os quadris das mulheres, mesmo não exibindo nenhuma

parte do corpo, além do droit-devant e do jupe-culotte, que serviam, em outra época, para

acentuar os seios e comprimir o ventre. O presente é marcado pela transparência das roupas.

A digressão temporal cumpre o papel de revelar a inconstância do mundo: o que é imoral hoje

pode não ser amanhã, o que é obsceno em um lugar pode não ser em outro.

Na crônica “Chapéus, etc.”, publicada em 1920, na revista Careta, ele assume gostar

do tema:

Como o Doutor Peixoto Fortuna, o tal da Liga contra a Moralidade, eu me interesso muito pelas modas femininas. Não deixo nunca de ler os seus

preceitos nas seções especiais dos jornais; e, embora não sejam propriamente

femininas, eu gozei a declaração providencial de que, na sua recepção, última, as mulheres deviam aparecer lá de fraque e calça de fantasia.

[...]

Em todo caso, os costumes republicanos estão admitindo tanta coisa

nova que tudo é possível acontecer. Vejam os senhores, por exemplo, essas damas que encontro pelos

bondes... Em vão tento namorá-las! Andam elas com uns chapéus de oleado

de fazer medo a qualquer bombeiro em momento de ataque ao fogo; entretanto, elas vão bonitinhas, contentinhas de fazer um homem como eu,

péssimo namorador, ficar embasbacado.

É possível que essas moças se julguem interessantes com semelhante

cobertura? Não creio. Contudo, elas vão alegres e satisfeitas. Como admitir uma cousa e outra?

Não sei. (BARRETO v. XII, 1956, p. 235).

Esse texto é o exemplo de como Lima Barreto utiliza a crônica para inventariar os

costumes republicanos sem se descuidar do viés crítico, que está sempre ali, mesmo que o

leitor, às vezes, possa querer enxergar certa indecisão do cronista quando este afirma “Não

sei”. O julgamento se constrói sob a égide da perplexidade, que não deve ser lida como

hesitação. Para ele, os chapéus de oleado são terríveis, disso tem certeza e se pergunta se

quem os usa também pensaria dessa forma. Por isso, demonstra dificuldade para entender por

que razão as mulheres utilizam tal adereço. Nada de conclusivo é registrado no referido texto,

mas a resposta para a polêmica questão se dilui em outras crônicas. Mais uma vez, Barreto

fala em imitação, que está longe de alcançar o refinamento cobiçado. O exagero das vestes e

dos adereços as aproxima do grotesco. Daí a convicção do cronista de que as mulheres saem

fantasiadas de casa. Na crônica “Vestidos modernos”, publicada em 1922, na revista Careta,

ele assim se posiciona:

Há dias, saindo do meu subúrbio, vim à Avenida e à Rua do Ouvidor e

pus-me a olhar os trajes das damas.

Olhei, notei e concluí: estamos em pleno carnaval.

120

Uma dama passava com um casaco preto, muito preto, e mangas vermelhas; outra tinha uma espécie de capote que parecia asas de morcego;

ainda outra vestia uma saia patriótica verde e amarela; enfim, era um dia

verdadeiramente dedicado a Momo.

Nunca fui ao Clube dos Democráticos, nem ao dos Fenianos, nem ao dos Tenentes; mas estou disposto a apostar que em dias de bailes

entusiásticos nesses templos de folia, os seus salões não se apresentam tão

carnavalescos como a Avenida e adjacências nas horas que correm. (BARRETO v. XII, 1956, p. 89).

Sair do subúrbio em direção ao centro, onde se localiza a Avenida Central e a Rua do

Ouvidor, designa sempre um movimento mais abrangente. Diz respeito à ruptura com o

isolamento, à tendência para conhecer, por experiência direta, o novo e, o mais importante,

tem a ver com a circulação de novas ideias, que não ficam restritas a um determinado espaço.

O deslocamento se faz, como se tem demonstrado, em sentidos diferentes: do subúrbio para o

centro, deste em direção a Paris. De lá para cá ou de cá para lá, não se fica imune às mudanças

ocorridas no espaço urbano, que acabam por interferir no jeito de ser das pessoas. É nesse

sentido que Marshall Berman (2007) diz que essa experiência com a vida moderna mudará

drasticamente as relações construídas no plano pessoal, social e político.

Para Lima Barreto, dirigir-se ao centro significa a predisposição para experimentar a

vida moderna; mas isso não quer dizer, necessariamente, que tal feito resultará em aprovação.

Circular pelo centro do Rio de Janeiro dará ao cronista a oportunidade de vivenciar a sensação

de fazer parte de uma época marcada por profundas transformações que acabam por

desnortear os padrões até então vigentes, que nada têm a ver com os trajes descritos pelo

autor: casaco muito preto com mangas vermelhas, uma espécie de capote que parecia asas de

morcego e a saia patriótica verde e amarela. O mau gosto é acentuado pelo exagero dos

vestidos, que passam a ser designados como uma fantasia. Esses trajes representam a ausência

de ligação com a realidade, principalmente, com o bom senso. Figurativamente, a fantasia

expressa o ideal que se deseja ardentemente alcançar, nesse caso, a experiência da

modernidade. O importante é estar na moda, não importa a que preço. Barreto denomina essa

ânsia por ficar em voga de “binocular”, ironizando uma coluna do jornal Gazeta de Notícias,

especializada em moda e temas mundanos, chamada “Binóculo”. Ao perambular pelas ruas,

misturar-se à multidão, o cronista consegue distinguir pessoas binoculares. A elas dedica uma

crônica, “Com o ‘Binóculo’”, publicada em 1915, no Correio da Noite.

Ontem, domingo, o calor e a mania ambulatória não me permitiram ficar em casa. Saí e vim aos lugares em que um “homem das multidões”

pode andar aos domingos.

Julgava que essa história de pique-niques não fosse mais binocular; o meu engano, porém, ficou demonstrado.

121

No Largo da Carioca havia dois ou três bondes especiais e damas e cavalheiros, das mais chics rodas, esvoaçavam pela Galeria Cruzeiro, à

espera da hora.

Elas, as damas, vinham todas vestidas com as mais custosas

confecções ali do Ferreira, do Palais, ou do nobre Ramalho Ortigão, do Parc, e ensaiavam sorrisos como se fossem para Versalhes nos bons tempos da

realeza francesa.

Eu pensei que uma pasmosa riqueza tinha abatido sobre o Ameno Resedá ou sobre a “Corbeille des Fleurs” do nosso camarada Lourenço

Cunha; mas estudei melhor as fisionomias e recebi a confirmação de que se

tratava de damas binoculares, que iam a uma festa hípica, ou quer que seja, no Jardim Botânico.

Não é de estranhar que as pessoas binoculares vão a festas e pique-

niques, mas assim, charanga à porta, a puxar o cortejo com um dobrado

saltitante, julgo eu que não é da mais refinada elegância. (BARRETO v. XI, 1956, p. 71-72).

Barreto se autointitula como o “homem das multidões”, pegando de empréstimo a

expressão usada por Charles Baudelaire. Como um flâneur tropical, o cronista gosta de

vaguear por locais onde há grande fluxo de pessoas; dessa forma, consegue passar

despercebido pela multidão e praticar o que mais gosta de fazer: fixar o seu olhar observador,

ao mesmo tempo anuviado e crítico, sobre os lugares e as figuras do cotidiano que fazem o

espetáculo da vida moderna. A descrição, dessa vez, fixa-se nas vestimentas das mulheres.

Contudo, ao invés de detalhar as roupas, prefere citar as lojas onde, provavelmente, as peças

foram adquiridas. Eram magazines de luxo, responsáveis por garantir a beleza e a elegância

de quem ali comprava. Afinal, nesses estabelecimentos se vendiam artigos masculinos e

femininos, geralmente importados, nos padrões da alta moda europeia. Dentre eles se destaca

a Parc Royal, loja de departamento que alcançou muito prestígio entre a classe mais abastada

do Rio de Janeiro no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Dizer que

adquiriu um vestido em tal estabelecimento significava estar na última moda, transformando

todas as pessoas que ali compravam em “binoculares”.

A primeira parte da crônica destina-se a traçar o perfil das mulheres, enfatizando o

glamour das roupas, dos gestos, dos sorrisos. Mas o autor consegue perceber o artificialismo

da cena. O embuste não é perfeito. Contemplando-a melhor, ele apreende detalhes que não se

harmonizam com a imagem de refinamento associada às damas ali presentes. A figura da

charanga, à frente do grupo que se dirigia à hípica, revela mau gosto, desfazendo toda a

encenação. A partir de então, no que equivale à segunda parte da crônica, o autor constrói a

crítica do texto.

O “Binóculo” deve olhar para esse fato; deve procurar pôr um pouco mais de proporção, de discreção nessas manifestações festivas da nossa

grande roda aos cavalos de corridas; e ele tem tanto trabalho para o

122

refinamento da nossa sociedade que não pode esquecer esse ponto. (BARRETO v. XI, 1956, p. 72).

O recado é dirigido à coluna “Binóculo”, portanto, indiretamente ao seu criador, o

pioneiro da crônica social, Figueiredo Pimentel. Nela, moldava-se um tipo de louvação à vida

chique carioca. Era através dessa seção do jornal que ele tratava das novidades da moda, do

bom gosto, do que estava em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Fica fácil

entender que Barreto não se restringe a direcionar seu comentário ferino ao grupo que se

dirigia à hípica, ao som de uma orquestra ruidosa e desafinada. Ela se estende, também, aos

que se colocavam por trás do discurso de louvação ao projeto de modernidade, que se buscava

consolidar através das reformas urbanas e da mudança de hábitos. O recado não deixa de ser

uma forma de caçoar, indiretamente, da coluna que não estaria cumprindo adequadamente sua

função. Era preciso orientar os leitores de que a sofisticação exige também uma certa dose de

discrição. Quando a crônica de Lima Barreto cita a coluna produzida por Pimentel, fica

evidente no diálogo entre pares a equação – modernidade, jornal e crônica -, que tão bem

apreendeu as mudanças vivenciadas pela urbe moderna.

Se faltava sofisticação à turma da charanga, o mesmo ocorria com os vestidos

espalhafatosos, com as fachadas dos novos prédios, com o novo traçado da cidade. Enfim,

todos esses comentários fazem ressaltar a objeção do cronista às mudanças sofridas pela

cidade com as obras de revitalização. Em seu ponto de vista, a ambição de se igualar às

capitais de países como França, Estados Unidos e Argentina faz com que o Rio de Janeiro

sofra alterações responsáveis por descaracterizar a antiga capital da República. Barreto, na

crônica “Sobre o desastre”, publicada em 1917, ao criticar a construção dos primeiros prédios

na cidade, acusa o espírito de grandiosidade e ostentação como responsável pelo apagamento

da essência do Rio. Ele assim diz:

Nesse atropelo em que vivemos, neste fantástico turbilhão de

preocupações subalternas, poucos têm visto de que modo nós nos vamos

afastando da medida, do relativo, do equilibrado, para nos atirarmos ao monstruoso, ao brutal

O nosso gosto, que sempre teve um estalão equivalente à nossa

própria pessoa, está querendo passar, sem um módulo conveniente, para o do gigante Golias ou outro qualquer de sua raça. (BARRETO v. XI, 1956, p.

121).

Barreto vê no sentimento de inferioridade a razão para que o brasileiro se subordine ao

estilo de vida ditado pelas grandes potências. Por isso, a referência ao gigante Golias é

oportuna. Essa lendária figura expressa o desejo do Rio de Janeiro e também do Brasil de se

sobressair imitando os poderosos. O problema está na megalomania. O mesmo ocorre com o

123

espaço urbano, aqui representado pelo Rio; alterado para atender à obsessão por grandeza ou

simplesmente por modismo. Por isso a reprimenda: “As modas dos ‘americanos’ que lá

fiquem com eles; fiquemos nós com as nossas que matam menos e não ofendem muito à

beleza e à natureza.” (BARRETO v. XI, 1956, p. 122).

O que há de comum em todas as crônicas analisadas é a capacidade crítica de Lima

Barreto, que se transfigura em um grande defensor do Rio de Janeiro e do Brasil. No espaço

do jornal e das revistas para os quais trabalhou, ele debate ideias, expondo, como se viu, sua

indignação com o tratamento dado ao subúrbio em detrimento ao centro da cidade. Essa

relação – periferia e centro – , é, no entanto, mais abrangente. Lima Barreto bem sabe que

muitas regiões do Brasil ocupam uma posição periférica em relação às capitais mais

avançadas do país, como São Paulo e Rio de Janeiro, da mesma forma que o Brasil assim se

comporta em relação às nações tidas como de primeira grandeza. O tratamento desigual revela

que nem sempre as prioridades dos governantes têm a ver com o bem-estar da população

carente. Mas, sua atenção, realmente, dirige-se à antiga capital da República, onde as

incoerências administrativas são habituais, não passando despercebidas. Na crônica

“Variações”, publicada em 1922, o cronista se posiciona de forma arguta, de modo que o

podemos considerar até hoje no quadro político brasileiro:

A municipalidade desta cidade tem dessas medidas paradoxais, para as

quais chamo a atenção dos governos das grandes cidades do mundo. Fala-se, por exemplo, na vergonha que é a Favela, ali, numa das portas de entrada da

cidade – o que faz a nossa edilidade? Nada mais, nada menos do que isto:

gasta cinco mil contos para construir uma avenida nas areias de Copacabana. Clama-se contra as péssimas condições higiênicas do matadouro de Santa

Cruz, imediatamente a prefeitura providencia chamando concorrência para a

construção de um prado de corridas modelo, no Jardim Botânico, à imitação do de Chantilly.

De forma que a nossa municipalidade não procura prover as

necessidades imediatas dos seus munícipes, mas as suas superficialidades. É

uma teoria de governo que devia estar na cabeça daquele régulo selvagem que atirava sementes fora e só tinha extremos para as bugigangas de vidros

coloridos. (BARRETO v. XII, 1956, p. 185).

A alusão que se faz à Copacabana e ao Jardim Botânico não é gratuita. Esses locais

ocupam uma posição oposta ao subúrbio. Se para as regiões nobres da cidade há

demonstrações de zelo, a região suburbana é deixada de lado. Construir avenidas em

Copacabana, quando a região ainda era despovoada; erguer um hipódromo, quando há outras

necessidades mais urgentes, apenas ressaltam algumas das incoerências cometidas pela

administração pública. Valorizam-se obras que acabam por acentuar o desejo de se erguer

124

uma cidade longe do real – “à imitação de Chantilly” – numa referência ao castelo de

Chantilly, situado ao norte da França.

Lima Barreto não se deixa empolgar pelo projeto de modernidade que acaba dando à

cidade uma configuração artificial, como se vê pelas imagens usadas nessa e em outras

crônicas. Ao mesmo tempo em que rejeita os ícones da modernidade, sente-se atraído pelo

novo. Contudo, ao caminhar pela Avenida Central ou pela Rua do Ouvidor, ao circular pelo

Leblon ou por Copacabana, ao fixar os olhos com atenção em pessoas que circulam por esses

ambientes, tem a convicção de que o subúrbio é o seu refúgio. Em oposição ao ambiente

ilusionista edificado no centro do Rio de Janeiro, no tempo da Belle Époque, Barreto busca na

simplicidade do subúrbio a autenticidade das coisas. Mas a cidade já não é a mesma;

transformou-se em meio às picaretas reformadoras. O que resta é a saudade de um tempo que

não voltará jamais, marcado pelas constantes interrogações:

“Onde estão os jasmineiros das cercas? Onde estão aqueles extensos tapumes de maricás que se tornam de algodão que mais é neve, em pleno

estio? Os subúrbios [...] guardam dessas belas coisas roceiras, destroços

como recordações.” (BARRETO In: RESENDE, 2004b, p. 130).

De qualquer forma, sua crônica não registra apenas essas imagens idílicas, antes

registra a mudança, os signos da modernidade em sua incongruência e desafio. Sua escrita

contém, pois, muito das histórias apagadas pela modernidade, muito das construções

demolidas, muito do trânsito irregular entre centro e periferia.

125

5. JOÃO DO RIO: NOS CÍRCULOS INFERNAIS DA BELLE ÉPOQUE TROPICAL

No contexto republicano, marcado pela urbanização da cidade, fruto de um projeto

político de modernização da antiga capital federal, a rua assume a condição de protagonista.

Em seu papel de observador sensível da cidade, João Paulo Barreto, mais conhecido como

João do Rio, estabeleceu com a via urbana uma relação quase visceral, que resultou em uma

produção singular de crônicas. Como Bilac e Lima Barreto, utilizando o espaço do jornal,

partilha com o leitor uma série de reflexões sobre as transformações provocadas não só no

espaço físico, mas, principalmente, nos habitantes, nos costumes, enfim, na sociabilidade. A

esse respeito, Sevcenko, comparando Machado de Assis e João do Rio, caracteriza suas

crônicas como “Histórias miúdas, de gente pequena e grande, que vão compondo o painel em

que fica retratada a modernidade pan-brasileira, na moldura mítica do Rio de Janeiro”.

(SEVCENKO, 2012, p.524)

São essas histórias, sobretudo de gente pequena, que se encontram no livro A alma

encantadora das ruas, publicado em 1908, objeto deste capítulo.

No texto, “A rua”, que abre essa obra, apresentado primeiramente em uma conferência

ocorrida em 1905 e, depois, reproduzido na Gazeta de Notícias, o cronista declara seu amor

incondicional pela rua: “Eu amo a rua”. (RIO, 2008, p. 28). Ao questionar-se sobre o que

seria a rua, o cronista reproduz a designação elaborada por alguns dicionaristas:

(...) Os dicionários dizem: “Rua, do latim ruga, ‘sulco’. Espaço entre as

casas e as povoações por onde se anda e passeia”. E Domingos Vieira,

citando as Ordenações: “estradas e ruas pruvicas antiguamente usadas e os

Rios navegantes se som cabedaes que correm continuamente e de todo o tempo pero que o uso assy das estradas e ruas pruvicas”. (RIO, 2008, p. 28-

29)

A tática, no entanto, mais do que precisar o significado, serve para demonstrar a

imprecisão desses conceitos. Daí advém a tese que será sustentada pelo autor: o significado da

rua ultrapassa as explicações simplistas de dicionários ou aquelas encontradas no discurso da

lei. Para ele, a rua tem alma e não se resume ao significado vazio de um verbete de dicionário.

A obscuridade da gramática e da lei! Os dicionários só são

considerados fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam.

Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei in-folios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de

fachadas, por onde se anda nas povoações...

Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! Em Benarés ou em Amstedão, em Londres ou em Buenos

Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a

agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o

126

auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. (RIO, 2008, p. 29).

Dizer que a rua tem alma significa afirmar que ela é detentora de personalidade, ou

seja, reúne um conjunto de características responsáveis por lhe conferir uma identidade

própria. Dessa forma, uma rua jamais será igual a outra, e cada uma delas está sempre em

movimento e transformação. Mesmo assim, existem traços que igualam todas as ruas do

mundo. Um deles está no fato de que a rua, constitutiva da cidade, é uma criação humana,

fruto do esforço exaustivo daqueles que a construíram.

Observe-se, porém, que, mais do que isso, importa assinalar que o cronista associa

desde o início à rua as agruras dos mais necessitados, por acolher o sofrimento dessa gente,

tornando-se o lar de quem não possui uma moradia convencional para viver. Essa percepção

determinará certas escolhas de João do Rio. As crônicas que compõem o livro A alma

encantadora das ruas (2008) atestam a preferência do autor por esquadrinhar esse logradouro

público, particularizando o que se vê ali – pequenas profissões, tatuadores, manifestações

religiosas, músicos ambulantes, mercadores de livros, velhos cocheiros, os agenciadores de

coroas para luto, os cordões de carnaval. Focalizando tais profissões, o escritor faz um quadro

daquilo que José Murilo de Carvalho chama da pirâmide ocupacional típica da sociedade

republicana da passagem do século, já mencionada por nós no capítulo sobre Lima Barreto. O

interessante é que ele se detém na base dessa pirâmide, que o historiador considera “marca

especial (do Rio) em relação a outras grandes cidades da época”:

O enorme contingente de trabalhadores domésticos, de jornaleiros, de

pessoas sem profissão conhecida ou de profissões mal definidas. Esse

lumpen representava em torno de 50% da população economicamente ativa, com pouca variação entre 1890 e 1906. (CARVALHO, 2011, p. 76).

É, pois, sobre esse contingente da população que se debruça o cronista, descrevendo as

várias faces da miséria personificada como, por exemplo, as operárias, os trabalhadores de

estiva, as mulheres mendigas. A rua, sempre personificada pelo autor, recebe ainda a arte e a

língua popular, de certa forma insubordinadas frente ao sistema estabelecido:

A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. Não

paga ao Tamagno para ouvir berros atenorados de leão avaro, nem à velha

Patti para admitir um fio de voz velho, fraco e legendário. Bate, em

compensação, palmas aos saltimbancos que, sem voz, rouquejam com fome para alegrá-la e para comer. A rua é generosa. O crime, o delírio, a miséria

não os denuncia ela. A rua é transformadora das línguas. Os Cândido de

Figueiredo do universo estafam-se em juntar regrinhas para enclausurar expressões; os prosadores bradam contra os Cândido. A rua continua,

matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo

aos dicionários as palavras que inventa, criando o calão que é o patrimônio

clássico dos léxicons futuros. (RIO, 2008, p. 29).

127

O foco recai no artista que faz suas exibições em praças, nos logradouros públicos,

distanciando-se do ambiente requintado de um teatro. O cronista contrapõe dois universos: a

cultura popular em oposição a um modelo artístico que se baseia nas tradições ou nos

costumes consagrados, neste caso, representado pelo tenor Francesco Tamagno e pela soprano

Adelina Patti. Essa predileção atesta a capacidade da rua de acolher e prestigiar o talento de

pessoas com menos recursos ou posses. Daí se compreende por que razão ela é considerada

generosa para com os mais necessitados, a ponto de não denunciar o crime nem mesmo de

rotular a miséria ou a loucura dos que ali vivem. A rua é transformadora de línguas, em outras

palavras, ela subverte o registro formal, expresso pelas regras da gramática normativa,

valorizando uma maneira de expressar em que o vocabulário e a sintaxe ficam bem próximos

da linguagem cotidiana. Por isso a referência metonímica a Antônio Cândido de Figueiredo,

autor do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, originalmente publicado em 1899 e depois

alvo de várias reedições.

Todas essas considerações atestam que o traço fundamental da rua é a sua ligação com

a plebe. Ao se conhecer uma, aproxima-se da outra. Para o cronista, só será possível entender

a psicologia da rua quando a pessoa interessada nisso assumir um pouco dessas

características; movimento e insubordinação, o que a ligaria ao flâneur baudelairiano.

Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito

vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo

desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar. É fatigante o

exercício?

Para os iniciados sempre foi grande regalo. A musa de Horácio, a pé, não fez outra coisa nos quarteirões de Roma. Sterne e Hoffmann

proclamavam-lhe a profunda virtude, e Balzac fez todos os seus preciosos

achados flanando. Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos

dicionários que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da

observação ligado ao da vadiagem. (RIO, 2008, p. 31).

O ato de flanar é apontado como a condição ideal para melhor assimilar as

características da rua e, por extensão, a metrópole moderna. Afinal, qualquer cidade,

independentemente de seu tamanho, nasce de uma via pública. O cronista faz questão de

destacar que não se trata de um simples transeunte, o flâneur pratica uma arte através da qual

se unem duas condições essenciais: o gosto por caminhar sem rumo certo e a capacidade de

lançar um olhar reflexivo, questionador sobre as coisas. Isso o diferenciará do simples

transeunte, que apenas se desloca pela cidade sem fixar o olhar na paisagem ou nos tipos

128

humanos que por ali circulam. Também não poderá ser confundido com o vagabundo típico,

que nutre o gosto por andar à toa. O flâneur é isso, mas não se resume a essa especificidade.

Ele aperfeiçoou sua capacidade analítica, o que lhe conferiu certa habilidade para descortinar

a cidade, distinguindo as incoerências e virtudes da metrópole moderna. Ao citar Horácio,

Sterne e Hoffmann – todos eles escritores consagrados que valorizavam tal prática –, o

cronista busca dar credibilidade ao gosto por flanar, sempre ligado a um tipo de arte que se

quer defender. Para ele, o importante é não confundir essa prática com a vagabundagem, pelo

menos nos moldes em que esta é mais conhecida.

É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur

ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem

ficar eternamente adiadas. Do alto de uma janela, como Paul Adam, admira o caleidoscópio da vida no epítome delirante que é a rua; à porta do café,

como Poe no Homem das multidões, dedica-se ao exercício de adivinhar as

profissões, as preocupações e até os crimes dos transeuntes. (RIO, 2008, p.

32).

O cronista aponta três importantes aspectos que norteiam o flâneur. O primeiro diz

respeito à ociosidade, quase uma exigência para que o ato de flanar ocorra. Nesse sentido, o

flâneur aparece como a figura de um burguês que tem o tempo à sua disposição e que pode se

dar ao luxo de desperdiçá-lo. Nada deve ser mais importante do que perambular pelas ruas,

sem destino certo. O caráter observador, já citado, permite distinguir o flâneur de qualquer

outro indivíduo que caminha pelo espaço público. Em oposição a este, habituou-se a observar

analiticamente as pessoas, confrontando atitudes, descobrindo ou adivinhando outras. Esse

circular investigativo pela cidade abrange reflexão e compreensão dos fenômenos que a

envolvem. Por ser, antes de tudo, um observador da cidade, sem a ela se integrar totalmente,

cultiva o anonimato misturando-se à multidão. Dessa forma, a flânerie só pode existir em

meio à urbe moderna, pois, através do alargamento das ruas, o que vai acontecer com a

modernização do espaço urbano, ficou mais fácil vagar pela via pública; em meio à multidão

que se esparrama pelos passeios públicos, o flâneur se oculta e consegue exercitar o que

melhor sabe fazer, observar e refletir. Assim fez o poeta Charles Baudelaire, citado no

primeiro capítulo deste trabalho. Na visão de Walter Benjamin, conforme já dito no capítulo

anterior, Baudelaire é uma referência na compreensão da modernidade. Sob a máscara da

flâneur, o poeta francês corta a cidade de Paris, apropriando-se dos elementos da cultura

moderna, descrevendo em sua obra mais importante, As Flores do Mal (1985), com poemas

escritos no decorrer dos anos 1840, o que há de específico no espaço e no tempo da

modernidade. João do Rio não citará diretamente Baudelaire, buscará em Paul Adam e em

129

Edgar Allan Poe as reminiscências da arte de caminhar e observar, de caminhar e refletir. É

mais taxativo ao citar um conto de Poe, O Homem da Multidão, cujo enredo explora o tema

da paisagem e da massa urbana, como já se viu no capítulo sobre Lima Barreto.

Essa aptidão será compartilhada por João do Rio. No exercício da profissão de

repórter, ele desenvolverá a predileção por perambular pela cidade, a qual, em meio às

reformas urbanas, apresenta traços de uma urbe moderna, mas, também, marcas da antiga

cidade colonial.

Eu fui um pouco esse tipo complexo, e, talvez por isso, cada rua é

para mim um ser vivo e imóvel.

Balzac dizia que as ruas de Paris nos dão impressões humanas. São

assim as ruas de todas as cidades, com vida e destinos iguais aos do homem. Por que nascem elas? Da necessidade de alargamento das grandes

colmeias sociais, de interesses comerciais, dizem. Mas ninguém o sabe. Um

belo dia, alinha-se um tarrascal, corta-se um trecho de chácara, aterra-se um lameiro, e aí está: nasceu mais uma rua. Nasceu para evoluir, para ensaiar os

primeiros passos, para balbuciar, crescer, criar uma individualidade. (RIO,

2008, p. 33).

O cronista vê, pois, a rua como uma pessoa em desenvolvimento. O progressivo

processo de transformação pelo qual passa o ser humano e, por extensão, a rua, é representado

por verbos que representam a evolução de um bebê até chegar à fase adulta. Daí dizer que a

rua balbucia, cresce, cria uma individualidade. Alcançar a maturidade significa, nesse caso,

atingir a fase do desenvolvimento, entendida aqui como a modernização, já que as ruas,

segundo o cronista, nasceram para evoluir.

Renato Cordeiro Gomes o nomeará como um repórter-flâneur, capaz de ler os signos

que compõem a cidade:

O repórter-flâneur, assim, lê o espaço público, metonicamente representado

pela rua, como realidade viva e dinâmica. A rua é como o homem: tem corpo

e alma. O narrador-flâneur, que deambula e reflete, cheio de curiosidade, lê a cidade como um discurso, vendo-a enquanto inscrição do homem no

espaço e no tempo. Lê os signos da cidade: o “corpo”, a base física, os

significantes, cujos significados – “a alma encantadora” – o narrador constrói pelo estabelecimento de nova sintaxe, nova gramática, nova

semântica, motivado pela empatia-entusiasmo que o identifica à rua.

(GOMES, 2008, p. 122).

Como um repórter-flâneur, João do Rio se contrapõe a si próprio enquanto um dândi

que freqüenta espaços daqueles que curtem a ociosidade gerada por uma confortável situação

financeira. Suas incursões pela cidade ocorrem por razões profissionais. Atuando como um

repórter investigativo, circula pela região miserável da antiga capital republicana, revelando a

outra face da modernização. Opta por conhecer “in loco” a face degradante da cidade na

130

figura dos fumadores de ópio, dos tatuadores, das crianças criminosas, das prostitutas e dos

trabalhadores de estiva. Assim, nas palavras de Renato Cordeiro Gomes:

[...] a Frívola City cede o palco da escrita àqueles “núcleos

persistentes” que compõem A alma encantadora das ruas. Os textos

encenam o que mancha o projeto da cidade da virtude civilizada, da cidade ideal que a ordem planejou. Encenam aspectos da antitética cidade do vício,

símbolo e estigma dos males sociais. (GOMES, 2008, p. 121).

Foi se deslocando pela cidade que João do Rio conseguiu apreender e representar o

panorama urbano que pouco se ajustava à face moderna e pomposa do Rio, a qual, cumpre

aqui ressaltar mais uma vez, não foi ignorada pelo escritor. Em crônicas reunidas no livro

Pall-Mall Rio (1917), título tomado de empréstimo da coluna escrita por ele no jornal O Paíz,

aborda a vida mundana da cidade, em uma referência ao estilo de vida das altas rodas da

sociedade carioca de que era também frequentador. Contudo, foi percorrendo as ruas do Rio,

sem ignorar o lado mais obscuro da cidade que o cronista conseguiu assimilar a “alma” delas.

Por isso mesmo, Renato Cordeiro Gomes (1996), intitula um de seus livros sobre o

autor João do Rio: vielas do vício, ruas da graça, onde afirma: “Como repórter andarilho,

perambulou pelas vielas do vício: como cronista mundano, passeava pelas ruas da graça.”

Presumindo que a arquitetura de uma cidade tem as ruas como alicerces, João do Rio

descreve as características que tipificam algumas ruas do Rio de Janeiro, dentre elas a Rua do

Ouvidor:

Vede a rua do Ouvidor. É a fanfarronada em pessoa, exagerando, mentindo, tomando parte em tudo, mas desertando, correndo os taipas das montras à

mais leve sombra de perigo. Esse beco, inferno de pose, de vaidade, de

inveja, tem a especialidade da bravata. E, fatalmente oposicionista, criou o boato, o “diz-se...” aterrador e o “fecha-fecha” prudente. Começou por

chamar-se Desvio do Mar. Por ela continua a passar para todos os desvios

muita gente boa. No tempo em que os seus melhores prédios se alugavam

modestamente por dez mil réis, era a rua do Gadelha. Podia ser ainda hoje a rua dos gadelhas, atendendo ao número prodigioso de poetas nefelibatas que

a infestam de cabelos e de versos. Um dia resolveu chamar-se do Ouvidor

sem que o senado da câmara fosse ouvido. Chamou-se como calunia, e elogia, como insulta e aplaude, porque era preciso denominar o lugar em que

todos falam de lugar do que ouve; e parece que cada nome usado foi como a

antecipação moral de um dos aspectos atuais dessa irresponsável artéria da futilidade. (RIO, 2008, p. 34-35).

A Rua do Ouvidor, personificada, assume a personalidade daqueles que a frequentam.

Segundo João do Rio, os diversos nomes empregados para designá-la foram inspirados em

traços que a distinguem e a frivolidade desponta como sua principal característica. Em um

jogo de contrastes, o cronista busca no passado reminiscências do que fora esse logradouro

131

para depois retornar ao momento da enunciação do texto e, assim, reafirmar que a Ouvidor

reúne vícios e virtudes acumulados ao longo tempo.

Citar a Ouvidor é significativo. Naquela época, fora o centro difusor de todos os

modismos trazidos da Europa e depois irradiados para os demais recantos do Rio de Janeiro e

daí para o Brasil. Sua influência não se restringiu a estabelecer um padrão de vestimenta, a

incorporar novos hábitos ou a divulgar novas ideias, foi também o local onde se reuniam

escritores e se instalaram livrarias como a Garnier. O cronista, criticando o cenário literário da

época, afirma que a Ouvidor atende a um “número prodigioso de poetas nefelibatas que a

infestam de cabelos e de versos.” (RIO, 2008, p. 34-35). Os aspectos políticos são fortemente

marcados no texto pelas formas verbais exagerar, mentir, tomar parte em tudo, desertar,

correr, todas no gerúndio, o que indica a ideia de movimento e agitação. Além disso, a

acusação a esse jogo é explícita também com o uso dos verbos caluniar, elogiar, insultar e

aplaudir. Por isso mesmo, o cenário político se desenha entre situação e oposição e aí

circulam, mais que os políticos, sua retórica, condenada pelo cronista como a retórica literária.

O cronista não se detém na Ouvidor; outros logradouros públicos do Rio de Janeiro

receberam sua atenção: a rua da Misericórdia, das Laranjeiras, o Largo do Moura, as ruas de

Santa Teresa, a rua do Sacramento, o Largo do Paço. Cada uma dessas áreas urbanas, com

suas especificidades, foi responsável por criar o seu tipo, aquela pessoa que incorpora um

traço marcante capaz de associá-la a uma determinada região da cidade.

Nas grandes cidades a rua passa a criar o seu tipo, a plasmar o moral

dos seus habitantes, a inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes,

hábitos, modos, opiniões políticas. Vós todos deveis ter ouvido ou dito aquela frase:

- Como estas meninas cheiram a Cidade Nova!

Não é só a Cidade Nova, sejam louvados os deuses! Há meninas que

cheiram a Botafogo, a Haddock Lobo, a Vila Isabel, como há velhas em idênticas condições, como há homens também. A rua fatalmente cria o seu

tipo urbano como a estrada criou o tipo social. Todos nós conhecemos o tipo

do rapaz do largo do Machado: cabelo à americana, roupas amplas à inglesa, lencinho minúsculo no punho largo, bengala de volta, pretensões às línguas

estrangeiras, calças dobradas como Eduardo VII e toda a snobopolis do

universo. Esse mesmo rapaz, dadas idênticas posições, é no largo do Estácio inteiramente diverso. As botas são de bico fino, os fatos em geral justos, o

lenço no bolso de dentro do casaco, o cabelo à meia cabeleira com muito

óleo. Se formos ao largo do Depósito, esse mesmo rapaz usará lenço de seda

preta, forro na gola do paletó, casaquinho curto e calças obedecendo ao molde corrente na navegação aérea – calças a balão. (RIO, 2008, p. 41).

Existe um interlocutor, representado na figura do leitor, com o qual o cronista dialoga

e busca estabelecer certa aproximação. É como se o autor quisesse ciceroneá-lo pelas ruas,

conduzindo, pela mão, a esses caminhos abertos para cortar a cidade, deixando antever o que

132

faz de cada logradouro um local único. Em tom professoral, o cronista ensina o leitor a

explorar os sentidos a fim de melhor identificar a procedência de alguém. O importante é

saber reconhecer os indícios que possibilitam distinguir a origem da pessoa. O olhar deve se

ater às roupas, aos acessórios, à maneira de pentear o cabelo. Mesmo quando não se cita de

qual país se origina o modelo prestigiado por este ou aquele segmento, fica latente que o

denominador comum entre todos os transeuntes é a padronização. Dizer que no largo do

Depósito será possível vislumbrar rapazes usando calças obedecendo ao molde corrente na

navegação aérea confirma certa tendência a uniformizar não só roupas como também uma

maneira de ser e agir, ou seja, a ideia da cópia impera na dinâmica social. Não importa o

quanto esse fenômeno constrange o cronista, que chega a dizer – “... sejam louvados os

deuses” -, (RIO, 2008, p. 41), a existência do tipo urbano é inevitável. A existência da rua por

si só determina a sobrevida deste. Nesse jogo entre ruas e pessoas, João do Rio aponta para

um conceito processual de espaço, antevendo o aspecto relacional que geógrafos como Milton

Santos(1988) e Doreen Massey (2008) atribuem ao conceito.

A descrição evidencia a figura do esnobe, melhor dizendo snob, se a pretensão for

seguir o modismo linguístico da época. Para melhor caracterizá-lo, João do Rio prefere o

neologismo “snobopolis”. O termo criado expressa a censura ao ato de plasmar as pessoas que

circulam pelas ruas, que habitam as cidades. O cronista emprega a palavra plasmar que

acentua a ideia de modelar, ou seja, dá-se nova forma ou feição ao espaço público que sofreu

alterações significativas em seu traçado, vindo a repercutir também na maneira de agir de

quem ali vive. O importante é saber se adaptar a cada circunstância ou lugar de tal forma que

se um mesmo rapaz resolve circular pelo largo do Machado, indo depois ao largo do Estácio

para então chegar ao largo do Depósito deverá se adequar ao estilo de cada um desses espaços

públicos, como no caso do lenço que se metamorfoseia conforme o espaço em que se circula.

O lenço pode ser o mesmo, o largo também, mas, ao serem estes nominados de Estácio,

Machado ou Depósito, passam a construir identidades próprias, da mesma forma que o pedaço

quadrado de tecido assume novos predicativos ao serem nominados de lencinho, lenço ou

lenço de seda.

Se cada rua tem sua individualidade, também construiu sua história, repleta de dramas

e glórias, diz o cronista. São narrativas que se não forem registradas no papel ficarão perdidas,

soterradas sob uma narrativa única imposta pela modernidade. Daí a importância do jornal

situado no desenvolvimento da comunicação e sua função social, incrementada pela

República e seu afã de modernização.

133

Um belo dia, a rua proclamou a excelente verdade: que as palavras leva-as o vento. Logo, nós assustados, imaginamos o homem-sandwich, o cartaz

ambulante; mandamos pregar-lhe, enquanto dorme, com muita goma e muita

ingenuidade, os cartazes proclamando a melhor conserva, o doce mais

gostoso, o ideal político mais austero, o vinho mais generoso, não só em letras impressas mas com figuras alegóricas, para poupar-lhe o trabalho de

ler, para acariciar-lhe a ignorância, para alegrá-la. Como se não bastassem o

cartaz, a lanterna mágica, o homem-sandwich, desveladamente, aos poucos, resolvemos compor-lhe a história e fizemos o jornal – esse formidável

folhetim-romance permanente, composto de verdades, mentiras, lisonjas,

insultos e da fantasia dos Gaboriau que somos todos nós... (RIO, 2008, p. 45-46).

O cronista recorre a uma imagem alegórica para se referir ao surgimento da cultura de

se registrar, pela escrita, as ações e pensamentos do homem. A prática pode ser

exclusivamente humana, mas para o autor nasce de uma invocação da rua, que sabe

reconhecer como as palavras, expressas oralmente, podem cair no esquecimento. Incapacitada

de se exprimir graficamente, a função é transmitida ao ser humano, que utiliza recursos

variados para deixar gravada a história da humanidade, sendo esta também feita de pequenos

lances. Nesse ponto, as narrativas se embaralham. A história da rua dialoga com a do homem

urbano, já que esta é feita naquela. Ao citar o cartaz, a lanterna mágica, o homem-sandwich,

oportuniza-se acompanhar flashes da evolução dos meios de comunicação até chegar ao

jornal, cuja função maior é a de publicar narrativas que se desenrolam nas ruas e acabam por

contar a própria história da cidade. Citando o jornal como suporte por onde discorrem

“verdades, mentira, lisonjas e insultos”, indiretamente reforça-se a sua importância como

espaço de crítica do cidadão. Essa função dialogará com o conceito elaborado por

Habermas (2003) de espaço crítico literário, que tanto remete a um espaço localizável –

como os cafés e jornais – como também a um espaço não material, ambos propícios à

circulação e debates de ideias.

O trecho trata do surgimento do jornal e, nessa esteira, do próprio desenvolvimento do

jornalismo, que, como já tratado no primeiro capítulo desta pesquisa, atendeu aos ideais

republicanos de modernização. O jornal é designado por João do Rio como folhetim-romance,

trazendo à tona sua característica mais primitiva, quando o periódico cumpria também o papel

de ser o difusor, especialmente no século XIX, de novelas ou romances. Como se viu, a

crônica também se refere ao jornal como um gênero propício para inventariar a vida moderna.

Tão fugaz como esta, a crônica tem uma sobrevida curta, pois se associa ao jornal, cujo

destino, muitas vezes, ao final do dia, é o lixo. Nada mais conveniente do que registrar em

crônicas os pequenos lances responsáveis por consolidar a narrativa da rua; uma extensão da

cidade que leva consigo novos dramas e novas personagens, os quais são cotidianamente

134

substituídos por outros dramas e outras personagens. Afinal, a cidade e seus habitantes

seguem uma outra cadência, ditada pela velocidade, em que o novo suplanta o velho em um

tempo jamais visto.

A crônica “Pequenas profissões”, estampada na Gazeta de Notícias, em 1904, com o

título “Profissões exóticas”, é mais um exemplo da capacidade do autor de traçar um perfil da

cidade nada condizente com a da urbe que se modernizava ante as obras de revitalização

iniciadas na primeira década do século XX. O texto é introduzido por uma descrição que

enfatiza o cenário por onde circulará o cronista.

O cigano aproximou-se do catraieiro. No céu, muito azul, o sol derramava toda a sua luz dourada. Do cais via-se para os lados do mar,

cortado de lanchas, de velas brancas, o desenho multiforme das ilhas

verdejantes, dos navios, das fortalezas. Pelos bulevares sucessivos que vão dar ao cais, a vida tumultuária da cidade vibrava num rumor de apoteose, e

era ainda mais intensa, mais brutal, mais gritada, naquele trecho do Mercado,

naquele pedaço da rampa, viscoso de imundícies e de vícios. O cigano, de

fraque e chapéu mole, já falara a dois carroceiros moços e fortes, já se animara a entrar numa taberna de freguesia retumbante. Agora, pelos seus

gestos duros, pelo brilho do olhar, bem se percebia que o catraieiro seria a

vítima, a vítima definitiva, que ele talvez procurasse desde manhã, como um milhafre esfomeado. (RIO, 2008, p. 54).

Como um observador que se coloca a uma determinada distância e se vê atraído por

uma cena. João do Rio fixa o olhar em duas figuras: o cigano e o catraieiro. Por alguma razão,

o cronista percebe que vale a pena ater-se àqueles dois homens. Seletivamente, ignora todos

que circulam em torno deles para, então, seguir-lhes os passos. No mais, o foco recai no

ambiente no qual, dali para frente, desenrolar-se-á a ação. Deixando-os, por um instante, de

lado, o cronista aborda o espaço físico, cuja descrição começa por explorar a visão idílica da

natureza, construída à moda de uma aquarela pintada em cores bastante iluminadas: azul,

branco, dourado, verde. Contrapõe-se a esse, um ambiente marcado pelo tumulto, pela sujeira

e, principalmente, pela libertinagem de seus freqüentadores. Aí, além da visão, outros sentidos

são invocados por meio da alusão ao barulho e aos gestos dos envolvidos na cena descrita. A

urbanidade, na visão do cronista, parece dar lugar à selvageria. Nesse sentido, o cigano é

comparado ao milhafre, espécie de gavião europeu, e o catraieiro se converte em caça. Mas o

milhafre também representa o gatuno, o ladrão que persegue sua vítima até conseguir retirar

dela o que deseja. Seja qual for a imagem que prevaleça, ambas ajudam afastar o modelo de

civilidade que o Rio de Janeiro tenta esboçar através das reformas. O Mercado representa o

avesso da cidade limpa, moderna e bem frequentada. Mas, é caminhando por ele e por outros

espaços parecidos que se terá a oportunidade de melhor apreender a “alma” da cidade.

135

Paradoxalmente, não há uma alma, uma essência, mas uma pluralidade contrastiva. Nessa

pluralidade, está o “exército de infelizes”, como comenta a crônica, e o cigano é um deles.

O Rio tem também as suas pequenas profissões exóticas, produto da

miséria ligada às fábricas importantes, aos adelos, ao baixo comércio; o Rio,

como todas as grandes cidades, esmiúça no próprio monturo a vida dos desgraçados. [...]

Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco, do que cai nas

sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade, os que apanham o inútil para viver, os inconscientes aplicadores à vida das

cidades daquele axioma de Lavoisier; nada se perde na natureza. A polícia

não os prende, e, na boêmia das ruas, os desgraçados são ainda explorados

pelos adelos, pelos ferros-velhos, pelos proprietários das fábricas... - As pequenas profissões!... É curioso!

As profissões ignoradas. Decerto não conheces os trapeiros sabidos, os

apanha-rótulos, os selistas, os caçadores, as ledoras de buena dicha. Se não fossem o nosso horror, a diretoria de Higiene e as blagues das revistas de

ano, nem os ratoeiros seriam conhecidos. (RIO, 2008, p. 56).

A referência aos trapeiros leva mais uma vez a Baudelaire e Benjamin e sua percepção

da modernidade ambígua, incorporando o progresso e o lixo deixado por ele, sejam os

objetos, sejam as pessoas. Jeanne Marie Gagnebin retoma a figura do Lumpensammeler ou o

chiffonnier, de Baudelaire, e a estende para o do “catador de sucata e de lixo, esse personagem

das grandes cidades modernas que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movido pela

pobreza, certamente, mas também pelo desejo de não deixar nada se perder”.

Esses cacos, inscrevendo-se na ordem social, podem ajudar a construir

outro discurso histórico, já que como o historiador descrito por Benjamin, o autor/personagem “deve muito apanhar tudo aquilo que é deixado de lado

como algo que não tem significação, algo que parece não ter nem

importância nem sentido, algo com que a história oficial não saiba o que fazer”. (GAGNEBIN, 2004, p. 90).

Ao tratar dos trapeiros e de figuras similares, João do Rio desempenha, ele mesmo, seu

papel, pois recolhe das ruas figuras desprezadas assim como suas histórias para compor o

quadro ambíguo da sociedade carioca de então.

Por isso, mesmo na crônica em questão acolhe as histórias que lhe são exibidas pelo

guia quando caminha pela região do cais. O parceiro exibe ao autor uma outra face da cidade,

que só pôde ser apreendida porque se afastaram das ruas que já haviam sofrido a intervenção

do poder público. O cronista diz ter sido arrastado para lá, sendo obrigado a entrar em um

território muito diferente do ostentado pela região nobre da cidade. Nesse momento, o

cronista é conduzido por seu companheiro, Eduardo. Mas, ao produzir a crônica, João do Rio

assumirá o papel deste e conduzirá o leitor do jornal, muitas vezes alheio ao que se passa no

lugar em que vive, por caminhos alternativos. De certa forma, quem lê a crônica também se

136

torna um andarilho, mas percorre a cidade de outra maneira; segue as palavras do cronista e,

assim, desvela a cidade real, camuflada pela opulência da Avenida Central e de tantas outras

construções monumentais que eclodiram no Rio de Janeiro naquela época. Nesse momento,

crônica e jornal cumprem a função de serem instrumentos críticos, binóculos com que se pode

olhar a cidade, mais especificamente o segmento marginalizado. Assim, ao se explorar na

crônica um vocabulário, cujo valor semântico concentra a imagem do lixo, das sobras, o autor

assume a condição de narrador marginal, que dá voz a uma narrativa segregada pela sociedade

capitalista.

Na crônica, os dois homens caminham em um ambiente marcado pela miséria. O tom

dado ao texto é de denúncia: para o autor, exercer uma profissão exótica significa estar à

margem da sociedade. Quem a executa está situado na escala mais baixa da pirâmide social, a

tal ponto que disputa com os animais os meios de sobrevivência. Se o poder público insiste

em ignorar essa gente, a solução é se adaptar ao meio, utilizando os recursos a que se tem

acesso. Daí a imagem do rato em meio à sarjeta, dos magros gatos dos telhados. Tanto um

como outro simbolizam a tenacidade para se manter vivo, mesmo que para tanto seja preciso

valer-se de meios escusos. Esses trabalhadores anônimos fazem parte de uma engrenagem

responsável por garantir a própria existência da cidade. A exploração ocorre em cadeia, de

cima para baixo: a começar pelas fábricas importantes, pelo baixo comércio, chegando aos

ferros-velhos. O abuso dificilmente será denunciado porque as “profissões exóticas” não

agregam o mesmo valor de uma atividade legitimada pela sociedade. Sendo assim, fica fácil

entender o assombro do cronista: “ - Mas, senhor Deus! é uma infinidade, uma infinidade de

profissões sem academia! Até parece que não estamos no Rio de Janeiro...” (RIO, 2008, p.

56). É então que Eduardo chama atenção de João do Rio, dizendo que essas pessoas

desafortunadas frequentam a “academia da miséria”: “ - Coitados! Andam todos na dolorosa

academia da miséria, e, vê tu, até nisso há vocações!” (RIO, 2008, p. 56).

A perplexidade do cronista não se resume à existência de tantas profissões exóticas,

deve-se, também, ao fato de serem encontradas no Rio de Janeiro, exemplo de modernidade a

ser seguido pelo restante da nação. Torna-se perceptível que a modernidade, então

propagandeada pelo regime republicano não atinge todos os segmentos sociais. Isso confirma

o que diz Marshall Berman (2007), ao tratar da ideia de modernismo e modernização, sobre a

ambivalência de se viver em dois mundos: um está totalmente concatenado com as inovações

tecnológicas, que atende ao modelo racionalizado de mundo; o outro que simboliza o atraso

tão bem exemplificado na crônica pela miserável vida de quem exerce as pequenas profissões.

137

No texto, a palavra academia tem seu sentido inicial subvertido. Ela ainda está

associada ao conhecimento, ao domínio de uma prática ou saber, mas não se trata de um saber

enciclopédico, adquirido no ambiente de uma instituição regular de ensino. As pequenas

profissões – representadas pelos trapeiros, os apanha-rótulos, os selistas, os caçadores, as

ledoras de buena dicha –, são ensinadas na rua e a miséria é a grande professora. Por

necessidade, aprende-se a sobreviver. A cartilha passa a ser outra, como bem se observa na

descrição que a crônica faz da profissão de “caçadores” e “selistas”.

De todas essas pequenas profissões, a mais rara e a mais parisiense é a

dos caçadores, que formam o sindicato das goteiras e dos jardins. São os

apanhadores de gatos para matar e levar aos restaurantes, já sem pele, onde

passam por coelho. Cada gato vale dez tostões no máximo. Uma só das costelas que os fregueses rendosos trincam, à noite, nas salas iluminadas dos

hotéis, vale muito mais.

[...] Os selistas não são os mais esquadrinhadores, os agentes sem lucro do

desfalque para o cofre público e da falsificação para o burguês incauto.

Passam o dia perto das charutarias pesquisando as sarjetas e as calçadas à cata de selos de maços de cigarros e selos com anéis e os rótulos de charutos.

Um cento de selos em perfeito estado vende-se por duzentos réis. Os das

carteiras de cigarros têm mais um tostão. Os anéis dos charutos servem para

vender uma marca por outra nas charutarias e são pagos cem por duzentos réis. Imagina uns cem selistas à cata de selos intactos das carteirinhas e dos

charutos [...] e calcula [...] em quanto é defraudada a Fazenda nacional

diariamente só por uma das pequenas profissões ignoradas... (RIO, 2008, p. 57-58).

O trecho inicia-se com uma ironia. A proximidade que o Rio de Janeiro tenta manter

de Paris ocorre de maneira inesperada. Não é só pelo traçado da cidade que a antiga capital

republicana busca se assemelhar à famosa cidade francesa. Em comum, existe a profissão de

“caçador” (de gatos). Melhor seria que a familiaridade ocorresse por outras razões, mas o

texto não ignora tal particularidade. Os grandes centros urbanos, todos eles, têm suas

profissões exóticas, opondo-se à face glamorosa da cidade. A venda de gatos, que, depois

serão consumidos como coelhos, simboliza o jogo ilusionista a que é submetido o morador da

urbe moderna, desvelando, também, o mecanismo social em que tudo se vende e tudo se

compra. Mesmo em Paris, saborear um coelho pode não passar de uma fraude. O logro, para

ser perfeito, conta com recursos cênicos que acentuam o seu caráter verossímil. Mesmo

quando servido nas salas iluminadas dos hotéis, o gato passa por coelho. O Rio de Janeiro,

sob a perspectiva de um transeunte da Avenida Central, poderá ser sempre visto como coelho,

mesmo sendo um gato de rua.

Nesse ambiente paralelo, subverte-se a noção de certo e errado, e a moral atende por

outro nome. No caso dos selistas, eles perpetuam uma atividade banal, a falsificação. Os selos

138

de maços de cigarro e os selos com anéis e rótulos de charutos são usados para vender um

produto por outro. Fuma-se um charuto barato como se estivesse consumindo um produto

mais caro. Sobrevive-se a qualquer custo. Se for preciso trapacear, assim será. Mas, não se

pode ignorar a manutenção do sistema porque há participação tanto de quem vende como de

quem compra. O exercício de tal atividade, na crônica, deve ser visto como metáfora do jogo

de cópia e modelo de construção da nação, que, ao buscar se alinhar aos países de primeiro

mundo, exibe a falsificação, inclusive do próprio sistema capitalista.

“Caçadores” e “selistas” são profissões que, apesar de nominadas como pequenas

profissões, interferem significativamente na dinâmica social. O comentário final, expresso no

trecho, tenta demonstrar o impacto dessas atividades nas contas do Poder Público pelo não

pagamento de tributos ao fisco. Mas o texto lembra bem que a pilhagem maior se dá em outro

ambiente, bem longe da rua: o desfalque de erário público e a falsificação cometida pelo

burguês incauto, que não difere dos trabalhadores anônimos da rua. Tanto um como outro

sobrevivem seguindo uma cartilha própria de conduta.

A perambulação realizada pelos dois companheiros continua. Não há um destino certo.

Apenas se deixam levar. São conduzidos por qualquer acontecimento que lhes atraiam os

olhos. A caminhada é educativa, pois através dela faz-se um inventário das ruas e, por

conseguinte, das profissões alternativas que são ali exercidas.

Os selistas têm lugar certo para vender os rótulos dos charutos

Bismark: em Niterói, na travessa do Senado. Há casas que passam caixas e caixas de charutos que nunca foram dessa marca. A mais nova, porém,

dessas profissões, que saltam dos ralos, dos buracos, do cisco da grande

cidade, é a dos ratoeiros, o agente dos ratos, o entreposto entre as ratoeiras

das estalagens e a diretoria de Saúde. Ratoeiro não é um cavador, é um negociante. Passeia pela Gamboa, pelas estalagens da Cidade Nova, pelos

cortiços e bibocas da parte velha da urbes, vai até ao subúrbio, tocando uma

cornetinha com a lata na mão. (RIO, 2008, p. 58).

No caso dos ratoeiros, o texto explora o jogo entre sujeira e limpeza, estabelecendo uma

imagem paradoxal, pois eles estão a serviço da higienização da cidade, mas transitam entre a

sujeira e a limpeza.

A cidade moderna marginaliza quem exerce tais profissões, por isso se diz no texto que

elas, como os ratos, “saltam dos ralos, dos buracos, do cisco da grande cidade”. (RIO, 2008,

p. 58). A imagem converte esses profissionais em objetos desprezíveis, formando o estrato

mais baixo da sociedade. Todos eles, pelo exercício de suas atividades, maculam a cidade.

Daí a alusão ao cisco, que reforça a ideia de sujeira e, por conseguinte, de impureza. Tratados

como bichos peçonhentos, a eles se destina o espaço degradante da urbe. Contudo, a

139

circulação dessas pessoas pelas áreas nobres da cidade pode ser apenas limitada, mesmo

porque os moradores dessas regiões dependem dos que exercem as pequenas profissões.

Dessa forma, o trânsito desses trabalhadores por locais destinados à elite do Rio de Janeiro é

apenas tolerado. Melhor seria que não existissem, mas se esparramam por toda cidade e

arredores. Lendo a crônica, é possível mapear onde cada um se concentra: na região do

Mercado, no cais, no ex-largo do Paço, na travessa do Senado (em Niterói), na Gamboa, na

Cidade Nova. Ao final, seja da caminhada ou da leitura, já é possível apreender um pouco da

“alma” da cidade; a ironia está no fato de que se a urbe rejeita os seus habitantes mais

humildes, não pode prescindir deles para sobreviver. Eles são a face escondida da podridão

próprias das relações de poder. Nesse sentido, o trecho abaixo, extraído da crônica, encerra

uma crítica contundente:

O Rio pode conhecer muito bem a vida do burguês de Londres, as

peças de Paris, a geografia da Manchúria e o patriotismo japonês. A apostar,

porém, que não conhece nem a sua própria planta, nem a vida de toda essa

sociedade, de todos esses meios estranhos e exóticos, de todas as profissões que constituem o progresso, a dor, a miséria da vasta Babel que se

transforma. E entretanto, meu caro, quanto soluço, quanta ambição, quanto

horror e também quanta compensação na vida humilde que estamos a ver. (RIO, 2008, p. 61).

O Rio de Janeiro é comparado à mítica torre de Babel. Construída para ostentar a

grandiosidade humana, acaba provocando a ira divina, pois o empreendimento é visto como

uma tentativa do homem de rivalizar com Deus. Para impedir que a obra prosseguisse,

instaurou-se o caos a partir do momento que, por imposição de Deus, os trabalhadores

passaram a falar línguas diferentes, ocasionando a dispersão, a balbúrdia. A metrópole

moderna, de certa forma, apresenta os traços dessa construção. Marcada pela grandiosidade de

sua arquitetura, aquela foi erigida para refletir a capacidade humana de projetar grandes feitos.

Mas, também, seguiu o destino da torre. Tornou-se uma Babel pela multiplicidade de “vozes”

que a compõem, ou seja, a cidade fragmentou-se. A unidade não existe e nisso concentra sua

ruína, mas, também, sua grandiosidade. Afinal, pela diversidade de tipos humanos, a urbe

moderna se mantém em plena atividade. Nela, haverá o ratoeiro, o selista, o trapeiro, os

apanha-rótulos e as ledoras de buena-dicha, todas essas profissões que formam a Babel

moderna e fazem parte da alma da rua.

Outras profissões são citadas em crônicas como “Os tatuadores”, “Velhos cocheiros” e

“Os urubus”. Nelas, João do Rio continua a esquadrinhar a rotina de trabalhadores que

exercem atividades estranhas ou ligadas ao passado colonial. Ganhar a vida tatuando,

conduzindo cavalos ou agenciando coroas e fazendas para luto integra uma rotina que a

140

cidade moderna deseja ocultar, pois remonta ao atraso. Por isso, causa espanto ao cronista a

presença de tatuadores no Rio de Janeiro, em pleno século XX: “O petiz tirou do bolso três

agulhas amarradas, um pé de cálix com fuligem e começou o trabalho. Era na rua Clapp, perto

do cais, no século XX...” (RIO, 2008, p. 62). Por trás desse comentário, o cronista reproduz

um pensamento da época: a cidade moderna deve se atrelar ao requinte da elite europeia, de

preferência, e renegar práticas primitivas que não atendem ao projeto de modernidade.

Na obra A alma encantadora das ruas, é possível, pois, perceber que muitas crônicas

descrevem uma prática que será comum para João do Rio: caminhar pela cidade sob a

orientação de outra pessoa. As incursões, seguindo o exemplo do que ocorreu em “Pequenas

profissões”, prestigia lugares marginalizados. É o que acontece em “Sono calmo”:

Um delegado, outro dia, conversando dos aspectos sórdidos do Rio,

teve a amabilidade de dizer:

- Quer vir comigo visitar esses círculos infernais? Não sei se o delegado quis dar-me apenas a nota mundana de visitar a

miséria, ou se realmente, como Virgílio, o seu desejo era guiar-me através de

uns tantos círculos de pavor, que fossem outros tantos ensinamentos. Lembrei-me de que Oscar Wilde também visitara as hospedarias de má fama

e que Jean Lorrain se fazia passar aos olhos dos ingênuos como tendo

acompanhado os grão-duques russos nas peregrinações perigosas que Goron guiava.

Era tudo quanto há de mais literário e de mais batido. Nas peças

francesas há dez anos já aparece o jornalista que conduz a gente chique aos

lugares macabros; em Paris os repórteres do Journal andam acompanhados de apache autêntico. Eu repetiria apenas um gesto que era quase uma lei.

Aceitei. (RIO, 2008, p. 174).

O autor questiona o convite que recebera do delegado e investiga o objetivo que se

esconde por trás de tal proposta. De acordo com o cronista, se o intuito é ensinar algo, o

delegado se aproximaria de Virgílio, personagem da Divina Comédia, escrita por Dante

Alighieri. Dessa forma, a caminhada ensejaria diversos ensinamentos. A relação com referido

personagem traz uma série de alegorias que não podem ser ignoradas. Virgílio, referência ao

autor do poema épico Eneida, guiará o próprio autor da Divina Comédia, Dante Alighieri, a

uma viagem espiritual pelo inferno, purgatório e paraíso. Portanto, João do Rio assume a

condição deste e a autoridade policial daquele.

Virgílio personifica a razão que conduzirá ao conhecimento e este só será plenamente

alcançado pela experiência. Esse papel, no caso da crônica analisada, estender-se-á ao

delegado. Tanto um como outro conduzem seus parceiros ao desconhecido; são guiados às

profundezas do inferno onde saberão reconhecer o que é a miséria humana. A experiência

singular se revelará transformadora. No caso de João do Rio, tira-se dele a pecha do

intelectual cuja escrita não tem força porque é construída sob uma perspectiva muito

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distanciada do mundo tangível. A dificuldade de retratar a cidade real, para muitos, está no

fato de que ela é vista de longe. O cronista não se sujeita a isso; incorpora o flâneur, aguça os

sentidos e se lança pelas ruas da cidade. O que encontrará pelos becos e ruelas miseráveis não

condiz com a propaganda desencadeada pelos que estão por trás das reformas de urbanização

da antiga capital federal.

Dessa perambulação, nascerá a ideologia que consolidará os textos do cronista. E

através da palavra ele expressa sua posição. Dessa forma, o cronista assume a condição do

intelectual que, segundo Jean Paul Sartre,

[...] aparece como uma variedade de homens que, tendo adquirido alguma notoriedade por trabalhos que dependem da inteligência (ciência exata,

ciência aplicada, medicina, literatura etc.), abusam dessa notoriedade para

sair de seu domínio e criticar a sociedade e os poderes estabelecidos em nome de uma concepção global e dogmática (vaga ou precisa, moralista ou

marxista) do homem. (SARTRE, 1994, p. 15).

Sartre fala de abuso, mas não condena a atividade exercida pelo intelectual, antes a

defende. A palavra é empregada para indicar o não enrijecimento de um ofício. O filósofo

exemplifica o que afirma: um cientista fabricar uma bomba é uma coisa; julgar o seu

emprego, outra. Isso significa que, para muitos, o cientista deveria continuar assumindo as

funções pelas quais é socialmente reconhecido, nada mais. Sartre não pensa assim. Através

de sua prática diária, e falando de um local privilegiado, o intelectual, nas palavras de Sartre,

tem o mérito de desvelar os conflitos, mitos, valores e tradições que a classe dominante

pretende transmitir às outras classes para garantir sua hegemonia. (1994, p. 31). E como, no

caso de João do Rio, esse desvelamento se consolidaria? Isso ocorre quando o cronista

ultrapassa o limite de sua prática laboral, que nesse caso pode ser a do escritor literário ou do

repórter, e passa a opinar, contestando o conjunto das verdades estabelecidas.

João do Rio, ao ser conduzido aos ambientes mais decadentes da cidade, diz repetir

uma ação comum, já batida entre outros escritores. “Eu repetiria apenas um gesto que era

quase uma lei.” (RIO, 2008, p. 174). Aceitar o convite para conhecer a face empobrecida do

Rio de Janeiro o coloca em outro patamar. Prefere não se esconder; atende ao chamado da rua

e por ela circulará, compartilhando a mesma experiência vivenciada por tantos outros

escritores.

O objetivo da excursão, a princípio, é proceder a uma caça de garotos pobres sem teto,

os pivettes. Acompanhando o delegado, seguem João do Rio e dois amigos daquele, um

bacharel e um adido de legação. Saindo do posto de delegacia, chegam à rua, a qual passa a

142

ser detalhadamente descrita pelo cronista que assume, na crônica, uma função ambígua, pois,

a princípio, não se sabe a partir de que lugar ele critica.

Íamos caminhando pela rua da Misericórdia, hesitantes ainda diante

das lanternas com vidros vermelhos. Às esquinas, grupos de vagabundos e

desordeiros desapareciam ao nosso apontar e, afundando o olhar pelos becos estreitos em que a rua parece vazar a sua imundície, por aquela rede de

becos, víamos outras lanternas em forma de foice, alumiando portas

equívocas. Havia casas de um pavimento só, de dois, de três; negras, fechadas, hermeticamente fechadas, pegadas uma à outra, fronteiras,

confundindo a luz das lanternas e a sombra dos balcões. Os nossos passos

ressoavam num desencontro nos lajedos quebrados. A rua, mal iluminada,

tinha candeeiros quebrados, sem a capa auer, de modo que a brancura de uns focos avermelhecia mais a chama pisca dos outros. Os prédios antigos

pareciam ampararem-se mutuamente, com as fachadas esborcinadas,

arrebentadas algumas. De repente uma porta abria, tragando, num som cavo, algum retardatário.

Trechos inteiros da calçada, imersos na escuridão, encobriam

cafajestes de bombacha branca, gingando, e constantemente o monótono apito do guarda noturno trilava, corria como um arrepio na artéria do susto,

para logo outro responder mais longe e mais longe ainda outro ecoar o seu

áspero trilo. (RIO, 2008, p. 21).

A descrição enfatiza o lado obscuro e decadente dessa parte da cidade, reproduzindo a

percepção depreciativa de quem não vive ali. O prejulgamento antecede a excursão, a tal

ponto que o cronista afirma que o grupo caminhava hesitante diante das lanternas de vidros

vermelhos. Nessa perspectiva, nomina-se de vagabundos e desordeiros as pessoas que não

seguem uma ordem instituída. A imagem de abandono é reforçada quando o autor cita a

precariedade das construções e a rua mal iluminada.

De forma mais expressiva, o trecho explora o binômio luz e escuridão, dando a

impressão de que aquelas pessoas adentravam um reino tenebroso, o avesso do espelho, sendo

aquele representado pela moldura, que não reflete a luz. Imergir na escuridão, afastando-se da

luz significa, nesse caso, desprender-se da cidade imaginada e cenograficamente preparada

para criar a ilusão da modernidade. A escuridão camufla, ficando esse segmento da cidade

escondido sob falsas aparências. Nesse ambiente circulam pessoas bem diferentes das que

frequentam a Avenida Central. Se nesta pulsa, por parte de quem por ali circula, o desejo de

aparecer, de desfilar para exibir a elegância dos trajes vindos de além mar, o refinamento dos

gestos duramente construídos pela imitação, na rua da Misericórdia as pessoas se escondem

como ratos afugentados, gerando em muitos que são testemunhas das cenas ali desenroladas

um sentimento de dor e solidariedade causado pela miséria alheia. Esse logradouro carrega

sua identidade expressa no nome que a designa, diferenciando-a de qualquer outra rua do

143

mundo. Não importa existirem outras ruas chamadas Misericórdia, a que se localiza no Rio de

Janeiro é única, sendo citada na crônica A rua, já explorada neste trabalho.

A rua da Misericórdia, ao contrário, com as suas hospedarias lôbregas, a

miséria, a desgraça das casas velhas e a cair; os corredores bafientos, é

perpetuamente lamentável. Foi a primeira rua do Rio. Dela partimos todos nós, nela passaram os vice-reis malandros, os gananciosos, os escravos nus,

os senhores em redes; nela vicejou a imundície, nela desabotoou a flor da

influência jesuítica. [...] Dela brotou a cidade no antigo esplendor do largo do Paço, dela decorreram, como de um corpo que sangra, os becos humildes

e os coalhos de sangue, que são as praças, ribeirinhas do mar. Mas, soluço de

espancado, primeiro esforço de uma porção de infelizes, ela continuou pelos

séculos afora sempre lamentável, e tão angustiosa e franca e verdadeira na sua dor que os patriotas lisonjeiros e os governos, ninguém, ninguém se

lembrou nunca de lhe tirar das esquinas aquela muda prece, aquele grito de

mendiga velha: - Misericórdia! (RIO, 2008, p. 35).

Mesmo no período da Belle Époque brasileira, essa rua ainda, como uma mendiga

velha, continua a se lamentar e a pedir esmola. E é por esse logradouro que em uma

determinada noite caminham João do Rio e seus companheiros atrás dos “zungas”,

hospedarias baratas que abrigavam os miseráveis da cidade os quais, por uma razão ou outra,

passavam as noites nestes locais. Eles param em frente a uma dessas hospedarias, a inspeção

começará. Resolvem entrar. O que se verá daí para frente são cenas dignas de serem

reproduzidas por Dante Alighieri. A comitiva não descerá ao inferno, percorrerá os diversos

pavimentos que compõem a hospedaria. Os círculos infernais imaginados pelo escritor

florentino serão substituídos, no mundo real, pelos diversos andares que formam o “zunga”. O

que verão é descrito, literalmente, como uma cena dantesca:

Havia com efeito mais um andar, mas quase não se podia lá chegar,

estando a escada cheia de corpos, gente enfiada em trapos, que se estirava

nos degraus, gente que se agarrava aos balaústres do corrimão – mulheres

receosas da promiscuidade, de saias enrodilhadas. Os agentes abriam caminho, acordando a canalha com a ponta dos cacetes. Eu tapava o nariz. A

atmosfera sufocava. Mais um pavimento e arrebentaríamos. Parecia que

todas as respirações subiam, envenenando as escadas, e o cheiro, o fedor, um fedor fulminante, impregnava-se nas nossas próprias mãos, desprendia-se

das paredes, do assoalho carcomido, do teto, dos corpos sem limpeza. Em

cima, então, era a vertigem. A sala estava cheia. Já não havia divisões,

tabiques, não se podia andar sem esmagar um corpo vivo. A metade daquele gado humano trabalhava; rebentava nas descargas dos vapores, enchendo

paióis de carvão, carregando fardos. Mais uma hora e acordaria para esperar

no cais os batelões que a levassem ao cepo do labor, em que empedra o cérebro e rebenta os músculos.

Grande parte desses pobres entes fora atirada ali, no esconderijo

daquele covil, pela falta de fortuna. Para se livrar da polícia, dormiam sem ar, sufocados, na mais repugnante promiscuidade. E eu, o adido, o bacharel,

o delegado amável estávamos a gozar dessa gente o doloroso espetáculo.

(RIO, 2008, p. 178-179).

144

Ler o trecho proporciona uma experiência sensitiva. A cena é captada pelo olhar, mas

também pelo olfato. O recurso já fora explorado em outras crônicas, como em “Pequenas

profissões”. Objetiva-se colocar o leitor no ambiente descrito a fim de que a experimentação

seja a mais real possível. As pessoas que passam a noite nos “zungas” são descritas como

animais. A condição humana é perdida, pois a elas não se destina o mínimo de dignidade. Por

isso o cronista se refere a essa gente como gado humano a exalar o fartum típico de um

animal. Emprega também a palavra gentalha para se referir a esses moribundos. O termo,

extremamente pejorativo, reforça a percepção que se tem dessas pessoas: são tratadas como

gente desclassificada, a ralé da sociedade, servindo apenas como força motriz para a execução

dos projetos que conduziriam o Rio de Janeiro definitivamente à modernidade.

O cronista, o adido, o bacharel e o delegado assumem, simbolicamente, funções

distintas na excursão. João do Rio, como já tratado, representa o intelectual que, através da

observação, estabelece um olhar crítico sobre a realidade circundante e se manifesta sobre ela,

denunciando-a, mas, também, reproduzindo na crônica um juízo discriminatório da população

que vive no local visitado. Portanto, seu comportamento é dúbio, marcado pela comiseração,

mas também pelo preconceito. O adido, funcionário diplomático agregado a uma legação

estrangeira, como representante de interesses específicos, é o forasteiro, tem a ver com a

percepção que se tem do Brasil lá fora. A princípio, na crônica, ele é descrito como um

ingênuo, para não dizer inexperiente. De certa forma, ao imputar-lhe tal característica,

entende-se que o cronista, indiretamente, contesta o fato de que as nações estrangeiras

conhecem superficialmente este país. O olhar é ingênuo e simplista, ora descrevendo o Brasil

sob a alcunha da nação idílica, tropical e selvagem (no bom sentido), ou como um país

pautado pela miséria e selvageria. Mas, no decorrer do texto, o adido faz comentários que

tiram dele essa condição. Inicialmente afirma: “O adido assegurava que miséria só na Europa

– porque a miséria é proporcional à civilização.” (RIO, 2008, p. 174-175). Depois, em tom

reflexivo diz: “Não tivesse ele visitado a miséria de Londres e principalmente a de Paris!”

(RIO, 2008, p. 177). Todos os comentários trazem uma nota crítica, levando o leitor a pensar

que tal característica retira do adido o sentimento de superioridade, tornando-o capaz de

apreciar o mundo com mais clareza e retidão. Ao citar Londres e Paris, o cronista refere-se a

dois centros culturais e econômicos, símbolos de modernidade. Mesmo assim, nessas nações

também se vislumbra o outro lado do espelho.

A presença do bacharel em direito na excursão é uma ironia, afinal, ele está em um

local em que o respeito à condição humana foi totalmente desprezado. Ele encarna a lei, mas

representa o braço da Justiça que atende aos interesses de um segmento social privilegiado.

145

Por sua vez, o delegado seria o braço coercitivo do Estado, exercendo uma força

disciplinadora que busca não só monitorar um ambiente, mas também idealizar e executar

medidas a fim de estabelecer um local dado como propício para se viver. Os agentes estão ali

para impor a lei do saneamento, que combatia a convivência adensada, em precárias

condições sanitárias, nas áreas centrais da cidade. A crônica reproduz uma situação comum na

época. Diante da crise de habitação que se abateu sobre a cidade com o “Bota-abaixo”, a

população carente buscou novas formas de moradia, proliferando pela cidade cortiços e hotéis

baratos, os “zungas”, que se tornaram, pelas precárias condições sanitárias, focos de doenças

como a varíola. Em função disso, segundo Nicolau Sevcenko (2012, p. 23), surgem as

medidas coercitivas que autorizavam os agentes de saúde, escoltados pela polícia, a entrarem

nesses locais e, se fosse o caso, tinham o direito de mandar demolir a habitação,

compulsoriamente.

Os agentes de polícia, na crônica, estão no lugar dos “batalhões de visitadores”, assim

chamados os grupos que vistoriavam as habitações. Aqueles exercem o que Michel Foucault

(2008) chamará, em outro contexto, de poder de polícia, cuja função é regulamentar as

práticas e relações das pessoas no ambiente urbano a fim de se alcançar a governabilidade,

responsável pela sobrevida do Estado frente às intrincadas modificações políticas ocorridas

entre os séculos XVIII e XIX. Com o advento da modernidade, esse aparato tecnológico da

polícia assume uma função especial, pois, através dele, busca-se monitorar desde o trânsito de

delinquentes pela cidade até as inquietações com a higiene pública, como diz Foucault. (2008,

p. 453).

Situação parecida foi descrita na crônica “Sono calmo”, cujo título traz um significado

especial. Metaforicamente, o sono é um estado que pode revelar estagnação, incluindo a

social ou econômica. Essa é a condição da “gentalha” que se amontoava na hospedaria barata.

São pessoas destituídas de seus direitos básicos, inseridas em um ciclo vicioso de miséria do

qual dificilmente se libertarão. Acordá-las, mesmo sob as ordens de um policial, seria retirá-

las de seu torpor, instigá-las a assumir uma posição combativa ante um sistema que

negligencia o segmento mais carente da sociedade. Essa falta de cuidado fica bem expressa

através da resposta que o delegado dá ao adido quando este propõe a criação de asilos para

receber aqueles desafortunados: “- É verdade, os asilos, a higiene, a limpeza. Tudo isso é

muito bonito. Havemos de ter. Por enquanto Nosso Senhor, lá em cima, que olhe por ele!”

(RIO, 2008, p. 180). Na cidade moderna, impõem-se as políticas de higienização que apenas

servem para excluir e marginalizar a população carente. Nada mais. E assim termina a

crônica:

146

As suas mãos, maquinalmente, esticaram-se, e os nossos olhos, acompanhando aquele gesto elegante de ceticismo mundano, deram no céu,

recamado de ouro. Todas as estrelas palpitavam, por cima da casaria

estendia-se uma poeira de ouro. Naquela chaga incurável, chaga lamentável

da cidade, a luz gotejava do infinito como um bálsamo. (RIO, 2008, p. 180).

A cidade é apresentada como um organismo vivo, no qual se identifica uma ferida

aberta: a miséria, representada pela existência das dezenas de “zungas” que infestam o Rio de

Janeiro. Mas, paralelamente a essa imagem, outra se apresenta recorrente nas crônicas de João

do Rio, a de uma natureza exuberante a contrastar com o grotesco. São descrições que falam

de um céu azul ou cravejado de estrelas, de um mar anil, sereno, límpido, podendo ser

encontradas em crônicas como “Sono calmo”, ora analisada, e em outras como “Profissões

exóticas” e “Mariposas do luxo”.

Diferentemente das crônicas até agora analisadas em que as regiões da cidade são

marcadas pelo infortúnio , em “As mariposas do luxo”, o cenário descrito é mais uma vez a

Rua do Ouvidor. Assim, pressupõe-se que o texto discorrerá não mais sobre os desatinos e

restrições pelos quais passa a população carente da cidade, explorando, dessa vez, o estilo de

vida suntuoso que rege a vida dos ricos. Mas, o autor seguirá fazendo o que tão bem se

propôs; descrever a cidade sob um olhar crítico. As camadas de verniz que emprestam à

antiga capital um ar de opulência e modernidade serão gradualmente retiradas, deixando à

mostra a cidade real.

A crônica faz do leitor um espectador. Valendo-se da descrição do cronista, aquele

vislumbra uma cena aparentemente banal, duas moças apreciando avidamente os objetos

expostos em uma vitrine de uma das tantas lojas de luxo que infestam a Ouvidor.

- Olha, Maria...

- É verdade! Que bonito!

As duas raparigas curvam-se para a montra, com os olhos ávidos, um vinco estranho nos lábios.

Por trás do vidro polido, arrumados com arte, entre estatuetas que

apresentam pratos com bugigangas de fantasia e a fantasia policroma de

coleções de leques, os desdobramentos das sedas, das plumas, das guipures, das rendas...

É a hora da indecisa em que o dia parece acabar e o movimento febril

da rua do Ouvidor relaxa-se, de súbito, como um delirante a gozar os minutos de uma breve acalmia. Ainda não acenderam os combustores, ainda

não ardem a sua luz galvânica os focos elétricos. Os relógios acabaram de

bater, apressadamente, seis horas. Na artéria estreita cai a luz acizentada das primeiras sombras – uma luz muito triste, de saudade e de mágoa. Em

algumas casas correm com fragor as cortinas de ferro. No alto, como o teto

custoso do beco interminável, o céu, de uma pureza admirável, parecendo

feito de esmaltes translúcidos supostos, rebrilha, como uma joia em que se tivessem fundido o azul de Nápoles, o verde perverso de Veneza, os oiros e

as pérolas do Oriente. (RIO, 2008, p. 154).

147

O trecho descreve uma cena que marca a modernidade, o fortalecimento do consumo. A

cidade sofre alteração em seu traçado para atender, também, a um modelo econômico que tem

na circulação e na exposição de objetos a sua sobrevida. É preciso seduzir o consumidor,

instigá-lo a comprar, por isso a construção de lojas com vitrines oportuniza expor mercadorias

para venda ou propaganda. Ao transeunte proporciona-se uma experiência singular, a fantasia,

responsável por estabelecer um ideal que se deseja ardentemente alcançar. Os objetos

assumem outra importância, representam um estilo de vida a ser atingido. Consumir - mesmo

pelo olhar -, leques, sedas, plumas e rendas afugenta a triste realidade que assola muitos dos

que circulam pela Ouvidor. Pratica-se, através da organização precisa dos objetos no

mostruário, a arte de seduzir. Mesmo as pessoas possuidoras de uma melhor condição

econômica não estão isentas dessa aspiração. Se o destino não lhes permitiu nascer na França,

a solução encontrada é reproduzir aqui o requinte europeu tão bem traduzido nas roupas,

acessórios, móveis e outros apetrechos expostos pelas mais exclusivas lojas do Rio de Janeiro.

As duas moças que fixamente apreciam os produtos expostos na vitrine não são

diferentes. Estão encantadas por objetos que se tornam um desejo de consumo, nada mais.

Afinal, elas representam uma parcela da população que jamais terá acesso a esses bens. São

pessoas humildes, cuja condição se reproduz no nome de uma delas, Maria. Representam a

mão de obra barata da cidade e aparecem na Rua do Ouvidor no final da tarde, quando saem

do trabalho e retornam às suas casas. A crônica denominará esse momento como “a hora da

indecisa”, já que não é noite, mas a claridade do dia também perde a sua força. Por trás dessa

designação, aparentemente banal, esconde-se uma sobreposição de imagens. A princípio, tem

a ver com a própria falta de identidade do Rio de Janeiro, que não é uma coisa nem outra. As

obras de revitalização impõem uma arquitetura que não reflete as características geográficas

da cidade, muito menos o jeito de ser da população carioca. A mistura de estilos traduz o

anseio de uma elite que deseja impor à antiga capital do país um modo de vida incompatível

com a realidade vigente, como a construção de chalés em pleno trópico, a adoção de

vestimentas que só deveriam ser usadas durante o inverno europeu. A discrepância é total.

Nessa parte da cidade, ainda, pode-se vislumbrar um fenômeno que se repete sempre ao

entardecer: a Rua do Ouvidor é tomada por moças de poucos recursos financeiros, as quais,

sozinhas ou em grupos, são atraídas pelo conteúdo das vitrines das lojas como as mariposas,

que apresentam hábitos noturnos, também atraídas pela luz artificial dos focos elétricos. O

foco recai no poder atrativo do luxo ostentado nos objetos cuidadosamente arranjados nas

vitrines das lojas: “A rua não lhes apresenta só o amor, o namoro, o desvio... Apresenta-lhes o

148

luxo. E cada montra é a hipnose e cada rayon de modas é o foco em torno do qual

reviravolteiam e anseiam as pobres mariposas.” (RIO, 2008, p. 156).

Contudo, os homens e mulheres que caminham pela Ouvidor, nesse horário, nada

lembram o público elegante que a frequenta em outro momento, quando

Já passaram as professional beauties, cujos nomes os jornais citam; já voltaram da sua hora de costureiro ou de joalheiros as damas do alto tom; e

os nomes condecorados da Finança e os condes do Vaticano e os rapazes

elegantes e os deliciosos vestidos claros airosamente ondulantes já se

sumiram, levados pelos “autos”, pelas parelhas fidalgas, pelos bondes burgueses. A rua tem de tudo isso uma vaga impressão, como se estivesse

sob o domínio da alucinação, vendo passar um préstito que já passou. Há um

hiato na feira das vaidades: sem literatos, sem poses, sem flirts. (RIO, 2008, p. 154-155).

O autor descreve os tipos humanos que dão à famosa rua a fama de ser catalisadora de

modismos, impondo ao resto da cidade um estilo de viver. A enumeração veloz tem na

repetição da conjunção “e” o ritmo que dá ao texto uma cadência frenética, lembrando o vai e

vem das pessoas, a agitação típica da Ouvidor. Mas, é uma agitação que nada lembra a

balbúrdia das regiões próximas ao mercado, por onde circula a população pobre. Objetiva-se

dar à descrição uma leveza tão peculiar quanto o tipo de vida levado pela elite carioca. Por

isso o autor fala da graça dos vestidos das mulheres, do requinte dos homens. São

reconhecidas pelo seu prestígio social, o qual se manifestará de formas variadas. O autor

associará as mulheres a atividades amenas como ir ao costureiro ou ao joalheiro e, no caso dos

homens, tratá-los-á pelo título. A ideia é desassociá-los da condição de trabalhadores, cuja

sobrevivência dependerá da realização de atividades que exigirão grande esforço físico.

Representam a materialização da Belle Époque carioca. Mas, a descrição traz algo de

impalpável, de etéreo, enfim, não parece real. Por isso o cronista fala em alucinação. O que se

vê na Rua do Ouvidor não reflete a cidade, cuja face real só será captada ao cair da tarde.

Nesse momento, a encenação desaparece, a rua se despe da fantasia, ficando “sem literatos,

sem poses, sem flirts.” Abre-se passagem, agora, para pessoas reais, cuja sobrevivência

depende de um trabalho árduo e mal remunerado, responsável por lhes retirar o viço, a

esperança, a alegria de viver. A descrição, agora, ganha outro tom. O entusiasmo se esvai da

mesma forma que, ao final da tarde, o sol perde a sua força.

Os operários vêm talvez mal-arranjados, com a lata do almoço presa

ao dedo mínimo. Alguns vêm de tamancos. Como são feios os operários ao

lado dos mocinhos bonitos de ainda há pouco! Vão conversando uns com os outros, ou calados, metidos com o próprio eu. As raparigas ao contrário: vêm

devagar, muito devagar, quase sempre duas a duas, parando de montra em

montra, olhando, discutindo, vendo.

- Repara só, Jesuína...

149

- Ah! Minha filha. Que lindo!... Ninguém as conhece e ninguém nelas repara, a não ser um ou outro

caixeiro em mal de amor ou algum pícaro sacerdote de conquistas.

Elas, coitaditas! passam todos os dias a essa hora indecisa e parecem

sempre pássaros assustados, tontos de luxo, inebriados de olhar. Que lhes destina no seu mistério a Vida cruel? Trabalho, trabalho; a perdição, que é a

mais fácil das hipóteses; a tuberculose ou o alquebramento numa ninhada de

filhos. Aquela rua não as conhecerá jamais. Aquele luxo será sempre a sua quimera. (RIO, 2008, p. 155).

Com a chegada dos novos transeuntes, a Rua do Ouvidor perde a sua “essência”, pois

em nada lembrará o ponto elegante da cidade. Se fosse personagem de um conto de fadas,

seria a Gata Borralheira se transformando em uma abóbora. Mais uma vez, o tempo ditará a

quebra do feitiço. O cronista não esconde a sua percepção do que vê. Por que mentir? A

pobreza é feia, repugnante. Ao leitor, fica o desconcerto, o sobressalto advindo da honestidade

do comentário que também explora a dualidade do espaço urbano moderno, o qual oscila

entre o novo e o velho, o feio e o bonito, o luxo e a miséria, o encanto e a repulsa.

Apesar de o trecho não ignorar os operários, o foco do autor se concentra nas moças.

Elas representam a falta de esperança, a pobreza anônima encarnada em mulheres vitimadas

por um sistema político, econômico e social. Portanto, ao focalizar essas duas jovens, o

cronista faz menção às centenas de outras que vivenciam uma situação parecida. Seguindo

essa linha de pensamento, o nome de uma delas, Jesuína, assume um sentido todo especial.

Lembra o nome do messias, Jesus Cristo, que, ao ser rejeitado pelos seus, sofreu o martírio de

morrer crucificado. Viver, para essas mulheres, é motivo de sofrimento constante; um

calvário marcado por abusos de toda sorte. Pela Ouvidor não circulam apenas as “professional

beauties”, existe uma infinidade de Marias e Jesuínas a perpetuar as desventuras de um

segmento marginalizado.

O cronista consegue vislumbrar nessas moças uma característica que as distingue de

tantas outras jovens sem recursos que vivem no Rio de Janeiro; elas buscam reproduzir,

mesmo minimamente, o modo “vivendis” implantado com o advento do regime republicano.

Atravessar a Rua do Ouvidor dá a elas uma nova perspectiva do mundo. A proximidade com

o luxo, ostentado nas vitrines das lojas, faz despontar nessas moças sentimentos conflitantes

expressos pela pontuação do texto. As reticências, pontos de exclamação e de interrogação

reforçam não só o deslumbre causado pela visão dos produtos expostos pelas lojas, mas

também o lamento advindo da falta de esperança, pois aquele estilo de vida exibido pelo

comércio de luxo da região dificilmente será alcançado por elas. Por isso, no decorrer do

texto, o cronista irá se referir a elas como “pobres moças” e não como moças pobres. Mesmo

150

assim, existe uma tentativa de alinhar uma identidade à outra. Nada que as difira do desejo de

aproximar o Rio de Janeiro dos países de primeiro mundo. Nesse sentido, a cidade se converte

também em uma “mariposa do luxo” a rodopiar em torno das luzes ilusionistas da

modernidade. Descrever essas pobres moças possibilita ao leitor perceber como se configura o

embuste, o jogo de aparências, que numa escala maior ou menor se faz presente em todos os

segmentos sociais.

Os vestidos são pobres: saias escuras, sempre as mesmas; blusa de

chitinha rala. Nos dias de chuva um parágua e a indefectível pelerine. Mas

essa miséria é limpa, escovada. As botas rebrilham, a saia não tem uma poeira, as mãos foram cuidadas. Há nos lóbulos de algumas orelhas brincos

simples, fechando as blusas lavadinhas, broches “montana”, donde escorre o

fio de uma chatelaine. Há mesmo anéis – correntinhas de ouro, pedras que custam barato;

coralinas, lápis-lazúli, turquesas falsas. Quantos sacrifícios essa limpeza não

representa? Quantas concessões não atestam, talvez, os modestos

pechisbeques! (RIO, 2008, p. 155-156).

Ao designar a miséria como “limpa e escovada”, o cronista incute certa dignidade às

humildes moças. A arrumação completa - o cuidado com a roupa, a higienização das unhas, a

limpeza dos sapatos e o uso de acessórios -, caracteriza a busca por atingir um estádio

civilizatório mais avançado. Percorrer essa rua significa entrar em um território que exigirá

delas assumir um novo código de condutas. Portanto, a preocupação com a aparência tem a

ver com a tentativa de se adequar ao modelo social vigente. Entretanto, o produto final não

consegue ocultar a origem delas. O jogo de aparências fica evidenciado pelo uso das pedras

falsas que adornam os anéis, as correntinhas que imitam o ouro e a pobreza dos vestidos.

Essas jovens se tornam uma extensão da cidade moderna, cuja sobrevida exige de quem nela

vive participar do jogo ilusionista. O que aparece exteriormente – a exuberância das novas

avenidas, as pomposas fachadas dos prédios recém-construídos – camufla os problemas

típicos dos grandes centros urbanos. A cidade, bipartida, converte-se em duas. Uma, moderna

e limpa, destina-se a um público seleto. A outra, segregada pela primeira, representa o atraso,

a decadência social. Mas, o intuito final, isolar uma cidade da outra, não é alcançado. A

presença das “mariposas do luxo”, na Ouvidor, comprova bem isso. Vê-las ali demonstra

quão díspar é a modernidade; luxo e miséria se fazem representar no espaço urbano moderno,

reforçando a imagem insólita que permeia os signos da modernidade.

A crônica, como se viu, enfatiza o estado de transe vivenciado pelas jovens

trabalhadoras, que atraídas pelo comércio de luxo da região, lembram as mariposas a voar

embevecidas em torno de um ponto de luz. O luxo está para a luz como as humildes moças

estão para as mariposas. Por isso o texto explora não só o poder atrativo dos objetos à venda,

151

mas também o trabalho laborioso de acentuar as suas qualidades através da artificialidade dos

jogos de luzes que cumprem a função de fomentar o jogo cênico. Basta empregar a

iluminação certa para que uma vitrine com algumas joias baratas se transforme em um

mostruário de preciosidades.

[...] como se ao lado um príncipe invisível estivesse a querer recompensar a mais modesta, comentam as jóias baratas, os objetos de prata,

as bolsinhas, os broches com corações, os anéis insignificantes. [...]

Mas, lá dentro, o joalheiro abre a comunicação elétrica, e de súbito, a vitrina, que morria na penumbra, acende violenta, crua, brutalmente, fazendo

faiscar os ouros, cintilar os brilhantes, corriscar os rubis, explodir a luz

veludosa das safiras, o verde das esmeraldas, as opalas, os esmaltes, a azul das turquesas. Toda a montra é um tesouro no brilho cegador alucinante das

pedrarias.

Elas olham sérias, o peito a arfar. Olham muito tempo e, ali, naquele trecho de rua civilizada, as pedras preciosas operam, nas sedas dos escrínios,

os sortilégios cruéis dos antigos ocultistas. As mãozinhas bonitas apertam o

cabo da sombrinha como querendo guardar um pouco de tanto fulgor; os

lábios pendem no esforço da atenção; um vinco ávido acentua os semblantes. Onde estará o Príncipe Encantador? Onde estará o velho d. João? (RIO,

2008, p. 158-159).

Com as luzes acesas, forja-se o jogo entre realidade e ilusão, fazendo reluzir até

mesmo aquilo que não é ouro ou pedra preciosa. A estratégia consiste em ludibriar os olhos, a

tal ponto que se passa a acreditar no engodo. A claridade repentina, abrupta, cega por

instantes as pobres moças. Elas ficam à espera de um príncipe encantado que nunca virá.

Inserem-se em um mundo irreal; nele não há vestidos de chita, uma rotina exaustiva de

trabalho e muito menos a vida medíocre em uma casa modesta de subúrbio. Transitar pelo

centro da cidade, “naquele trecho de rua civilizada”, reserva a elas a fantasia de poderem

assumir outras identidades. Chegando ao final da rua, encontrarão o limite territorial que as

conduzirá a uma cidade que nada tem a ver com o luxo encarnado nas lojas da Ouvidor.

Sendo assim, vista de longe, sob as luzes artificiais da modernidade, a região central da cidade

também se parece com as joias baratas, que bem arranjadas e com a iluminação adequada,

passarão como adornos feitos de material valioso.

O estado de transe suscitado pela iluminação cênica relativiza o tempo da enunciação.

A confusão mental é apreendida pelas perguntas desconexas, que traduzem o desejo incontido

de alterar a ordem social então vigente. A miragem do príncipe encantado, encarnado na

figura do rei d. João, revela-se tão absurda como a tentativa de transformar o Rio de Janeiro

em uma réplica de Paris. O entorpecimento só é quebrado quando anoitece e a rua volta a ser

frequentada pelo público típico da Ouvidor, formado pelas damas do alto tom, pelos nomes

condecorados da Finança, pelos condes do Vaticano e rapazes elegantes.

152

É noite. A rua delira de novo. À porta dos cafés e das confeitarias, homens, homens, um estridor, uma vozeria. Já se divisam perfeitamente as

pessoas no largo São Francisco – onde estão os bondes para a Cidade Nova,

para a rua da América, para o Saco. Elas tomam um ar honesto. Os tacões

das botinas batem no asfalto. Vão como quem tem pressa, com quem perdeu muito tempo.

Da avenida Uruguaiana para diante não olham mais nada, caladas,

sem comentários. Afinal, chegam ao largo. Um adeus, dois beijos, “até amanhã!”.

Até amanhã! Sim, elas voltarão amanhã, elas voltam todo dia, elas

conhecem nas suas particularidades todas as montras da Feira das Tentações; elas continuarão a passar, à hora do desfalecimento da artéria, mendigas do

luxo, eternas fulanitas da vaidade, sempre com a ambição enganadora de

poder gozar as joias, as plumas, as rendas, as flores. (RIO, 2008, p. 159).

As “mariposas do luxo” são afugentadas pelo retorno da multidão, a qual se esparrama

pela Ouvidor, privando-as da intimidade necessária para apreciarem os produtos expostos nas

vitrines das lojas. Aquele hiato, responsável por interromper a continuidade do tempo não

mais existe. A vida retoma seu fluxo natural. Para elas, aquela famosa rua é um local de

passagem, nada mais. O destino já lhes traçou um caminho e este, seguramente, desembocará

no subúrbio. O cronista marca, através da denominação das ruas, o afastamento gradual da

face glamorosa da cidade, estabelecendo um paralelo entre um aqui e um acolá. O aqui é a

Rua do Ouvidor, marcada pelo luxo, pela graciosidade e pompa de homens e mulheres da

mais fina sociedade carioca. Acolá existe o subúrbio – a Cidade Nova, a rua da América, a

região de Mangaratiba (onde se localiza a Praia do Saco) -, o avesso do urbanismo bem

sedimentado.

O alvoroço que contagiou as jovens trabalhadoras dá lugar ao desalento, ao

conformismo arrematado pelo silêncio, o qual, paradoxalmente, diz muito. Representa o

vazio existencial, a ausência de esperança, reforçada pela estrutura circular da crônica a

destacar não só a presença dessas moças na Ouvidor, no início do texto, como, também, ao

final deste, pois esclarece que elas ali estarão nos dias vindouros. Passado, presente e futuro

se fundem, formando um tempo contínuo, já que o hoje não foi diferente do ontem que não

será diferente do amanhã.

A crônica denuncia a falsa ideia de que a cidade moderna foi feita para todos. O Rio

civiliza-se para alguns; sempre existirá uma população marginalizada a gravitar em torno de

um segmento social privilegiado. As “mariposas do luxo” representam bem esse público, cuja

exploração oferece medíocres perspectivas de vida. Elas ocupam uma posição secundária na

pirâmide social, e chamá-las de “mendigas do luxo” ou de “fulanitas” realça essa condição.

Ciente dos dissabores que atormentarão a vida dessas mulheres, o autor se apieda.

153

“Pobrezinhas”, assim ele as chama. Finaliza a crônica descrevendo, para um interlocutor não

definido, uma cena recorrente, que de tão banal passa despercebida para a maioria: “[...] as

mariposas do Luxo, no seu passinho modesto, duas a duas, em pequenos grupos, algumas

loiras, outras morenas...”. (RIO, 2008, p. 160).

Em A alma encantadora das ruas, João do Rio dá visibilidade a quadros urbanos que,

apesar de parecerem meio desconexos, formam um todo significativo, capaz de dar

visibilidade a uma face da modernidade muitas vezes ocultada pela louvação ao novo. A

cidade, em sua multiplicidade de ruas e becos, é lida pelo repórter-andarilho que busca

mapeá-la sob um olhar reflexivo, atentando-se aos paradoxos, desvelando as fissuras que

acentuam o caráter dissonante da urbe moderna. Flanando, João do Rio demonstra que a

cidade, apesar da nova fachada, ainda apresenta ritos, costumes que remontam à época

colonial. Nesse sentido, as crônicas exploradas neste trabalho esboçam um caráter

decadentista ao revelarem o olhar pessimista do autor frente à nova ordem social. Mas, os

textos são também marcados por paradoxos, pois, ao mesmo tempo em que o autor critica o

tratamento dado à população marginalizada, reforça o olhar preconceituoso de uma elite que

deseja impor o estilo de vida burguês a toda população Essa visão antitética singulariza a urbe

moderna, em que o novo convive com o velho, o belo com o feio, a opulência esbarra na

miséria, o desenvolvimento preconizado coexiste com o atraso. Dessa forma, as crônicas

trazem o significado e a própria “essência” da rua na modernidade; esta, cujos contrastes

incitam a repulsa, o desconcerto, mas também envolvem. Nesse ponto, vale lembrar, que o

cronista tanto se mostrará deslumbrando com o refinamento do público elegante que circula

pela Ouvidor como sentirá repulsa pela miséria que margeia a cidade. A pesquisadora Julia

O’Donnell (2008) lembra que João do Rio apresentava tanto as características do dândi, por

gostar de frequentar lugares chiques, a “Frívola-city” expressão do autor, como um

personagem decadendista a circular pelo submundo urbano. Dessa forma, diz ela, suas

crônicas apresentam dois extremos, representando, assim, as duas facetas do progresso do Rio

de Janeiro de então. (O’DONNELL, 2008, p. 55).

A leitura das crônicas permite ao leitor atravessar a cidade, adentrando em regiões que

não são reconhecidas pelo Poder Público. Existe um universo paralelo a ser apreendido, no

qual se encontram figuras que a povoam, mas são constantemente ignoradas, como os

mendigos, os trabalhadores de rua, as “mariposas do luxo”, os meninos de rua, enfim, “a

canalha”, uma gente que sofre com o desprezo de quem busca um outro modelo de cidade e,

por extensão, de pátria.

154

João do Rio tornou a cidade multifacetada uma protagonista e cabe ao leitor,

convidado a circular por ela, desvendá-la, valendo do único sentimento capaz de unir os

homens: o amor da rua, o qual, nas palavras do cronista “nos une, nivela e agremia”.

155

6. CONCLUSÃO

A leitura das crônicas de Olavo Bilac, Lima Barreto e João do Rio evidenciou as

contradições que permeiam o projeto de modernidade idealizado pelo regime republicano,

que, nas primeiras décadas do século XX, busca, por meio das obras de revitalização lideradas

por Pereira Passos, aproximar o Rio de Janeiro do ícone de modernidade na época, Paris.

Esse modelo de modernidade, visando universalizar os espaços, acaba por questionar

velhas estruturas que não atendiam aos anseios do grupo dominante. A multiplicidade, que tão

bem tipifica os espaços territoriais, passa a ser negada. Em seu lugar, urge instaurar uma nova

forma de organização espacial - responsável por eliminar a identidade não só do lugar como

de quem ali vive -, mesmo que para tanto se faça uso da violência, do racismo e da opressão.

Os três autores deixaram em suas crônicas exemplos das diversas formas empregadas para

subjugar o espaço do outro, nesse caso, a população carente do Rio de Janeiro. A retirada

compulsória dos moradores da região central da cidade, a destruição do Morro do Castelo, a

demolição de casas e prédios antigos, a imposição de uma nova forma de pensar e agir nos

recém criados espaços de sociabilidade, a negação da cultura popular foram formas usuais de

subjugação retratadas nos textos analisados. As crônicas demonstram que a ideia da

regeneração que marcou o período, chamado de “Bota-abaixo”, deu lugar a uma nova

estrutura urbana e a uma nova forma de pensar e agir, ganhando contornos muito específicos

em duas esferas distintas: os espaços demarcados pela elite em contraposição àqueles para os

quais foram os desalojados das ruas centrais.

As crônicas se convertem em um precioso referencial de como cada um desses

escritores representa a antiga Capital Federal, no processo de modernização, tendo como

referência a construção do espaço público. O que há em comum entre eles é a maneira

ambígua de ver as obras de revitalização e os ícones de modernidade, os quais davam ao Rio

de Janeiro um novo arranjo.

Em Bilac, observa-se uma forte conotação nacionalista. Para o cronista, o Rio de

Janeiro e, por extensão o Brasil, é marcado por uma série de atributos que o colocariam na

condição de uma cidade avançada. Suas crônicas enfatizam um modelo pedagógico de nação,

que, entendida como uma narrativa da modernidade, era marcada pela lógica da unidade.

Bilac, recorrentemente, louvará o passado histórico do Brasil para justificar a projeção de um

futuro promissor do País. No passado ele encontra os atributos que permitem associar esta

nação ao projeto de modernidade que ainda está por ser construído. Falar das riquezas naturais

de sua terra, referir-se ao descobrimento do Brasil, citar os primeiros administradores da

156

antiga colônia ou percorrer os locais que se tornaram marcos do surgimento da cidade são

recursos empregados para, lembrando, as potencialidades do Rio de Janeiro e também do

Brasil, a eles conferir uma origem nacional a ser reconhecida pelo outros países. O interesse

do estrangeiro pela terra brasileira só reforça o pensamento do cronista de que um futuro

glorioso está por vir.

Em função disso, Bilac acolhe entusiasticamente as reformas de urbanização

promovidas na gestão de Pereira Passos. Os textos selecionados para figurar nesta pesquisa

permitiram acompanhar não só a reação do cronista ao “Bota-abaixo” como a sua defesa

aberta das obras, desde quando o projeto estava sendo analisado pelas autoridades

competentes. Obteve-se, assim, uma percepção bastante ampla do posicionamento do

cronista, pois seus textos englobam o antes, o durante e o depois. Falar do Rio de Janeiro que

se transforma passa a ser, pois, um tema comum. E para melhor desenvolvê-lo, Bilac caminha

pela cidade, buscando reter na memória as referências históricas que vão se perdendo. O

cronista e a cidade se imiscuem, interpenetram-se.

A leitura progressiva das crônicas de Bilac permite, no entanto, apreender a mudança

de tom em relação ao projeto de modernidade. De defensor aguerrido Bilac se transforma em

um causídico mais reticente. Começa a publicar crônicas que questionam, por exemplo, o

destino das pessoas desalojadas do centro e a descaracterização da cidade com a derrubada

dos prédios históricos. As crônicas, contudo, não mantêm uma regularidade de opinião. Ora

louvam-se as obras de revitalização, ora condenam-se. A inconstância de pensamento é

também perceptível na maneira como apreende os ícones da modernidade – o telefone, o

cinematógrafo –, ao lado, por exemplo, das manifestações da cultura popular. Nesse caso,

mais especificamente, defendendo um modelo de prestígio a ser seguido, nega qualquer

elemento da cultura popular capaz de comprometer a imagem de civilidade que passou a ser

construída pelo grupo dominante da época e do qual fez parte. Daí advém sua repulsa pela

Festa da Penha, pelo maxixe, pelo carnaval (comemorado à maneira popular). Bilac

experimenta uma mistura de sensações, fruto de um momento histórico marcado pelo jogo de

contrastes. Muitas vezes, o cronista se coloca como um personagem estranho àquela cidade

por onde circulam bondes elétricos e automóveis, signos da velocidade e da vertigem coletiva

de se viver em um ambiente urbano que tem sua rotina e hábitos cotidianos totalmente

transformados. Suas crônicas, muitas vezes, revelam o desconforto do cronista ante uma

realidade que nada tem a ver com o discurso de modernidade preconizado pelos idealizadores

das reformas urbanas.

157

Como formador de opinião, seguiu um caminho próprio, e teve no gênero crônica o

meio pelo qual buscou externar sua ideologia e influenciar o comportamento dos outros. Suas

crônicas ganham mais força porque ocupam o espaço do jornal, interagindo com o burburinho

da notícia diária trazida por esse meio de comunicação. Isso o faz distanciar da pecha do

escritor fútil, construída por suas composições poéticas parnasianas. O grande mérito de seu

trabalho concentra-se na possibilidade de conhecer uma de suas muitas faces, que, como

cronista, introduz o leitor, a recuperar a sociedade civil do Rio de Janeiro em um momento de

mudanças profundas em sua organização.

Lima Barreto, também, retirou dos pequenos lances do cotidiano, o referencial capaz

de construir a narrativa da cidade, mas, dessa vez, sob a perspectiva de um morador de

subúrbio. É o que vai diferenciá-lo de Bilac – o escritor já consagrado -, e de João do Rio, em

sua face de dândi. O deslocamento que realizava entre o subúrbio e o centro ou deste para

aquele acabou por conferir-lhe as condições ideais para melhor assimilar as implicações da

reforma urbana patrocinada pela gestão do prefeito Pereira Passos, mesmo que as crônicas, a

princípio, pouco mencionem o período do “Bota-abaixo”. Esse é outro ponto que o

diferenciará de Olavo Bilac. Enquanto este registrou em seus textos suas impressões sobre as

obras de revitalização desde o período que as antecede, Barreto se posicionará sobre o

assunto, de forma mais contundente, a partir de 1910, quando já estavam sendo finalizadas. E

surgirá virulento, revelando toda sua indignação pela interferência excessiva do poder na

geografia da cidade. Sua atuação como cronista combativo terá espaço nos jornais e revistas

de pequena circulação, o que lhe dará oportunidade de exercer mais livremente esse papel.

Mais uma vez, Barreto seguirá um caminho diferente de Bilac, inclusive de João do Rio, pois

estes colaboraram com jornais de maior prestígio.

A leitura das crônicas permitiu apreender o apreço de Lima Barreto pelo subúrbio,

onde viveu por toda uma vida. Não residindo na região central, o deslocamento pela cidade

era constante, utilizando, para tanto, bondes e trens – signos da modernidade. Inúmeras são as

crônicas em que o cronista, dentro de um desses meios de transporte, atravessa a cidade,

percorrendo locais que, gradualmente, começam a sofrer alterações em sua configuração e

observando as mudanças nos hábitos e costumes de uma cidade que se modifica em um ritmo

alucinante. A referência maior é ao trem. Como a imagem é recorrente, fez-se a opção, nesta

pesquisa, por analisar individualmente as crônicas selecionadas, pois o tema, que soará

repetitivo, pode ser percebido como metonímia de outros deslocamentos. O trem será o mote,

portanto, não só para falar da paisagem modificada que é vista através das janelas dos vagões

como para tratar de outras questões como o jogo social, os “magnatas suburbanos”, a falta de

158

originalidade da cidade/subúrbio e de seus moradores. Locomover-se de trem pela nova urbe

é uma maneira singular de ler a si mesmo e a cidade. Sua condição de passageiro de segunda

classe norteará seus escritos, servindo também de referência para o lugar da população

marginalizada da cidade, o que permite apontar em direção da atitude que vai desaguar no

sentido da "mirada estrábica" de Ricardo Piglia: "um olho dirgido para a inteligência europeia

e o outro para as entranhas da pátria (PIGLIA, 1991, p. 61) Seu lugar social lhe confere um

olhar especial sobre modelos e cópias configurados no mapa da cidade e do país.

Ao modo de um flâneur deslocado, como na crônica "O binóculo" ((BARRETO v. XI,

1956, p. 71-72), utiliza, então, suas crônicas para criticar o desejo incontido da população

fluminense de imitar europeus e americanos. A imagem é metonímica, a partir do momento

que a censura, por extensão, recai sobre os brasileiros. Se Bilac condena essa prática quando

trata de questões específicas – como a construção, no Rio de Janeiro, dos primeiros arranha-

céus, seguindo o modelo estadunidense –, Barreto não apresenta variações quanto ao tema.

Falar de moda, de arte ou de esporte torna-se um pretexto para criticar a questão da cópia.

Dessa forma, observando o cotidiano da cidade, não lhe é difícil perceber como se processa o

mascaramento da urbe; ele sabe que existe um modelo a ser seguido. Seja na prática esportiva,

no vestuário, na arquitetura das casas, no traçado da cidade, nos hábitos e costumes das

pessoas, impõe-se a ordem da imitação, sempre contestada pelo cronista.

Através de críticas como essa, o autor deixa evidenciado em seus textos um

nacionalismo crítico, bem diferente daquele defendido por Bilac. Neste, há uma exaltação dos

valores nacionais; naquele, ainda que exista o enaltecimento do que é próprio da nação, há um

tom crítico, marcado pelo repúdio, quase xenofóbico, ao que é estrangeiro.

Essa diferença fica evidente, por exemplo, nas crônicas que tratam da Avenida

Central; enquanto Bilac louva sua construção como presente ao povo brasileiro, Lima a

repudia, vendo nela a imitação grotesca de um estilo de vida não condizente com o Rio de

Janeiro.

A relação com o centro do Rio e com tudo que ele simbolizava mostra-se, no entanto,

também ambígua, na medida em que ao repúdio pelo novo, junta-se a atração e o

encantamento. Por outro lado, o subúrbio tão amado, não escapa de sua veia crítica, já que o

autor ali percebe o movimento da cópia em cascata.

O que há, pois, de comum em todos as crônicas de Barreto aqui analisadas, é a

referência à ilusão urbana, que rende culto à ideia de que qualquer um pode fazer parte do

grande projeto de modernização da nação brasileira. O cronista parece apontar para a

construção da nação como um jogo de máscaras que se multiplicam.

159

Como Bilac e Lima Barreto, o cronista João do Rio, utilizando o espaço do jornal, lê a

cidade, observando as transformações provocadas, principalmente, nos habitantes, nos

costumes, enfim, na sociabilidade. Nas crônicas publicadas em A alma encantadora das ruas

(2008), a rua, personificada, assume a condição de protagonista. Importa assinalar que o

cronista associa desde o início à rua as agruras dos mais necessitados, por acolher o

sofrimento dessa gente, tornando-se o lar de quem não possui uma moradia convencional para

viver.

As crônicas que compõem o livro A alma encantadora das ruas (2008) atestam a

preferência do autor por esquadrinhar esse logradouro público, particularizando o que se vê

ali – pequenas profissões, tatuadores, manifestações religiosas, músicos ambulantes,

mercadores de livros, velhos cocheiros, os agenciadores de coroas para luto, os cordões de

carnaval, as operárias. Focalizando tais profissões, o escritor faz, como se viu, um quadro

daquilo que José Murilo de Carvalho chama de pirâmide ocupacional típica da sociedade

republicana da passagem do século. É, pois, sobre esse contingente da população que se

debruça o cronista, descrevendo as várias faces da miséria. Assim, demonstra sua capacidade

para traçar um perfil da cidade nada condizente com a da urbe que se modernizava com as

obras de revitalização iniciadas na primeira década do século XX.

João do Rio falará mais diretamente sobre o ato de flanar, apontado como a condição

ideal para melhor assimilar as características da rua e, por extensão, da metrópole moderna.

Movimentando-se entre a multidão como o personagem do conto de Poe, explicitamente

citado, pinta um cenário dantesco, em que as pessoas ora dão personalidade às ruas, ora têm

sua personalidade definida por elas.

Nesse jogo entre ruas e pessoas, João do Rio aponta para um conceito processual de

espaço, antevendo o aspecto relacional que geógrafos como Milton Santos(1988) e Doreen

Massey (2008) atribuem ao conceito.

As crônicas de João do Rio são marcadas pela plasticidade, construída a partir de uma

imagem que se apresenta recorrente, a de uma natureza exuberante a contrastar com o

grotesco da miséria. Em muitos de seus textos, “Sono calmo”, “Profissões exóticas” e

“Mariposas do luxo”, por exemplo, descrições que falam de um céu azul ou cravejado de

estrelas, de um mar anil, sereno, límpido, contrasta com o cinza das roupagens pobres, dos

cortiços imundos, enfim, da própria miséria. O recurso pode ser entendido como a imagem

antitética de uma cidade que convive com o belo e o feio, o luxo e a miséria, o atraso e o

progresso. Essa imagem seria, afinal, o da escrita do cronista, já que ele, em sua face de

dândi, transita também pelos espaços de luxo.

160

Assim, João do Rio, faz-se flâneur e trapeiro, a exibir o lugar do pobre, que, ficando à

margem do progresso, tem apenas acesso aos detritos deixados pela elite. Como o trapeiro,

recolhe os detritos, os restos que urbe moderna rejeita e pinta, como bem o mostra Maria

Zilda Cury (1996), o avesso do cartão postal da cidade, metonímia do Brasil moderno.

Em suas crônicas da obra em estudo, o cronista assume o lugar das pessoas que o

guiam em suas caminhadas pela cidade, como se vê no recurso adotado em vários dos textos.

João do Rio conduz, assim, o leitor do jornal, muitas vezes alheio ao que se passa no lugar

em que vive, por caminhos alternativos. De certa forma, quem lê a crônica também se torna

um andarilho e percorre a cidade, seguindo as palavras do cronista. Dessa forma, desvela a

cidade real, camuflada pela opulência da Avenida Central e de tantas outras construções

monumentais da época. Nesse momento, crônica e jornal cumprem a função de serem

instrumentos críticos, binóculos com que se pode olhar a vida em suas múltiplas facetas.

Outra maneira de colocar o leitor em cena é através das interlocuções. O diálogo,

muitas vezes estabelecido com uma pessoa não identificada, representa a relação do cronista

com o leitor de jornal a quem o autor deseja apresentar a outra face do progresso do Rio de

Janeiro de então. Tal estratégia permite ao leitor atravessar a cidade, adentrando em regiões

que não são reconhecidas pelo Poder Público. João do Rio torna a cidade multifacetada uma

protagonista e cabe ao leitor, convidado a circular por ela, desvendá-la.

O que há de comum entre os três escritores é a prática jornalística empregada como

um elemento decifrador da antiga Capital Federal. Utilizando o espaço do jornal, que cada vez

mais se popularizava, os autores encontraram ali o ambiente propício para difundir suas

ideias. A crônica, por sua vez, foi o gênero, que, em função da economia linguística, a

apropriação do efêmero e do circunstancial, atendeu às necessidades da época. Através dela,

Olavo Bilac, Lima Barreto e João do Rio conseguiram, cada um sob uma perspectiva

diferente, difundir as várias formas de representação da sociedade moderna, em suas

diferenças e contrastes, deixando inscrito em seus textos um rico esboço de uma época através

de narrativas que se desenrolam nas ruas e acabam por contar a própria história da cidade.

Guardadas as devidas diferenças, fazem-se cronistas à moda de Benjamin, a contar não

a história com H maiúsculo, mas histórias miúdas a rasurarem essa escrita pretensamente

oficial.

161

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