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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo XVII (64 a.C.) Maria Galito 2017

César e a Vestal - WordPress.com · 2017. 12. 2. · O primeiro nem esperou que eu me aproximasse e foi saudar-me, com a alegria que o outro sentia, mas não exteriorizava. Há um

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PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo XVII

(64 a.C.)

Maria Galito

2017

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César e a Vestal 381 Maria Galito

Capítulo XVII

690 AUC

Começar de novo é difícil.

Terminei o sacerdócio pelos idos de Março. Depois de celebrar o meu aniversário, Marte abriu alas a uma nova etapa na minha vida.

A cidade parecia pacificada e havia camaradagem no colégio de pontífices. Cessei funções com a sensação de dever cumprido. Cuidei do fogo sagrado uma última vez. Após os rituais protocolares, despi o fato sacerdotal e desprendi as tranças. Não poupei abraços a Licínia, Perpena e Arruntia, nem a Fábia e Popília. Saudei os lictores, a quem agradeci a proteção. Despedi-me de Metelo Pio e de Crassa na Domus Publica e segui em frente.

Eu estava livre! A sensação era boa.

Subi ao Palatino, pela vereda, de trouxa na mão, em roupas simples. Não fui de liteira, nem dentro do carpeto dos pontífices. Não fui descalça, mas a pé, com os cabelos caídos pelas costas, numa Vestália invertida. Palmilhei o caminho, como as antigas romanas.

Lépido e Paulo viram-me logo! O primeiro nem esperou que eu me aproximasse e foi saudar-me, com a alegria que o outro sentia, mas não exteriorizava.

Há um mês que andamos malucos a arranjar tudo, para que fique confortável, tia Emília. – Bracejou Lépido.

Espero que goste da decoração. – Avisou Paulo.

Tão lindos! Sei que vou adorar viver na vossa companhia.

Sorriram satisfeitos. Mas esbarraram um no outro, pois os dois queriam entrar ao mesmo tempo. Dei-lhes passagem. O mais velho aproveitou para vencer a corrida. Lépido aguardou pela minha companhia. Eles já não eram lobitos! Paulo estava casado, tinha um filho e vinte e sete anos de idade. Lépido celebraria, em breve, vinte e cinco.

No vestíbulo não fui saudada por Amílcar, que falecera. Eu não tinha a Ana à espera, pois constituíra família. Também não fui recebida no átrio pelos meus pais e irmãos, de quem tinha saudades! A mulher e filho de Paulo cumprimentaram-me, como manda a tradição.

Bem-vinda à casa onde nasceu. Temos gosto em recebê-la. – Disse-me ela.

Agradeci o carinho com algumas palavras, regadas a mel. Depois prendi o olhar nas efígies dos nossos antepassados. Os Emílios! Eu pertencia outra vez à linhagem patriarcal. Já ninguém podia dizer que eu não tinha família, por ser uma vestal. Aquela era a minha Gens. Esta era a minha morada. Após trinta anos, eu estava finalmente de regresso a casa!

Precisa de alguma coisa? – Perguntou-me a mulher de Paulo.

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Ela era terna e mansa. Tinha olhos doces e era muito dedicada à família.

Pensando bem, preciso de roupas à civil. – Deixei-me rir, ao constatar que não tinha nada para vestir. – Costurei os trapos que trago hoje. Não tenho outra muda. Preciso de uns tecidos novos e de uns conselhos sobre moda. Eu era um patinho feio. Ela prontificou-se a ajudar:

Não se preocupe. Nos primeiros dias, posso emprestar-lhe o que tenho. Mas, no geral, também fio a lã e coso o que visto. O meu marido prefere assim.

Eu sabia disso, pois estava habituada a visitar o meu sobrinho, que era um tradicionalista, sob a influência de Catão e da ala conservadora do senado. Lépido, que era um popular, abanou a cabeça:

Nos tempos que correm, é ridículo que a esposa de um patrício teça e costure a sua própria roupa! Mas o meu irmão é do tempo das guerras púnicas! – Queixou-se Lépido.

Os costumes romanos são importantes. Dão-nos identidade própria. – Advogou Paulo, com toda a convicção.

Como os irmãos pertenciam a partidos diferentes, aquela casa parecia uma sessão interminável na Cúria Hostília. Mas eu conhecia-os bem e sabia manter o equilíbrio.

Tudo se resolve. – Atalhei. – E agora, vou dormir onde? – Perguntei entusiasmada.

Venha comigo, por favor. – Pediu a mulher de Paulo. Ela hesitava, não sabia como tratar-me. Tentei ajudá-la:

Eu já não sou vestal. Pode chamar-me de Emília ou tia Emília, como preferir.

Tia Emília, então. – Decidiu Paulo, embora eu me tivesse dirigido à mulher.

Sim, parece-bem. Todos cá em casa a chamaremos assim. – Concluiu ela.

Os meus sobrinhos despediram-se e foram às vidas deles. Eu voltei à toca de infância! Comparada com o cubículo do sacerdócio, era grande. Nem a cama, nem as paredes eram alvoreadas. Ali havia cores! Será que eu sonhava?

Quando soubemos que este era o seu antigo cubículo, onde a tia Emília dormia em criança, Lépido decidiu vagar o espaço e transferiu-se para um cubículo na ala sul. Desde então, foi tudo remodelado. Mandámos vir estucadores e pintores. Espero que esteja a seu gosto. – Disse a mulher de Paulo, que espreitava da porta.

Não era preciso terem-se incomodado. Obrigada. Respirei fundo, mantendo-me em pé, de olhar fixo nas paredes.

Tem o cabelo tão comprido, tia Emília. – Observou ela.

Tem graça. – Eu não me ria. – No primeiro dia de vestal, cortaram-me as madeixas. Eu não gostava nada de me ver com ponteado curto. – Declarei, pois as memórias eram dolorosas. Eu ainda recordava o medo que tivera do pontífice máximo. – Este é o primeiro dia que não uso as tranças do sacerdócio em trinta anos. – Expliquei. Toquei no meu manto moreno com especial reverência e observei-o com respeito.

Quer que mande vir alguém para cuidar do seu cabelo? – Prontificou-se ela.

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Talvez amanhã. – Propus. – Eu ainda preciso habituar-me à mudança…

Não precisa dizer mais nada, tia Emília. Eu entendo. Amanhã tratamos do cabelo e começamos a pensar em tecidos e em joias. Vou pedir que lhe tragam apenas uma muda de roupa, para o caso de querer tomar banho. Esteja à vontade. – Sugeriu e eu agradeci-lhe por isso.

Comecei a tatear os móveis de madeira, o chão de laje e os frescos das paredes, à procura de referências. Eu queria muito ter uma vida normal!

Acomodei a sacola a um canto. Deitei-me sobre um leito requintado e confortável. Estiquei as pernas. O cabelo espalhou-se pelo travesseiro de linho. Que maravilha!

Ergui-me. Ainda em estado de graça, segui para a casa dos banhos, que fora ampliada quando o meu irmão era vivo e renovada por Paulo, pois Lépido preferia ver as coisas já feitas! Sim, ele saía ao pai.

O balneum tinha um sistema de esgotos de primeira qualidade e o pessoal doméstico, já me tinha preparado o banho. A água quente enchia o tanque de pedra – que era mais uma banheira do que uma piscina – que Paulo chamava pomposamente de caldarium. Os mosaicos do chão eram de inspiração náutica. Nas paredes havia frisos esculpidos com cenas mitológicas. Mas também havia nichos preenchidos com âmbulas de óleos e toalhas de várias cores. Até o vapor da água era perfumado! Para mim, era um luxo. A diferença é que eu agora podia beneficiar dele.

Lépido herdara um edifício do tempo da Monarquia, portanto, o balneum era relativamente pequeno. O espaço estava forrado a mármore mas, em nada, se comparava aos banhos privados que homens, como Pompeu, diziam possuir nas suas casas, à volta da cidade, onde havia espaço de sobra e soberba com fartura!

Os patrícios ainda resistiam à ideia de frequentar balneae e só usavam as latrinas gratuitas numa situação de emergência. Não obstante, os plebeus, até os mais nobres, já se habituavam aos banhos públicos, enquanto experiência social, para se encontrarem com os amigos e filosofarem sobre a vida. Ainda não havia termas em Roma, como havia em Cápua, Cumae e Pompeia, mas as províncias a sul eram mais liberais e influenciadas pelos gregos do que a conservadora Roma.

Eu era uma ex-vestal. Preferia cuidar da higiene sozinha e, por isso, o pessoal doméstico tinha-se ido embora, deixando apenas roupa lavada, escolhida pela mulher de Paulo, sobre um banquinho de madeira.

Já não estava ali ninguém, por isso, podia descalçar-me e despir-me. Enrolei os cabelos nos dedos e mordi o lábio. Eu estava habituada a lavar-me com água fria, guardada num caldeirão de cobre, para enrijar, não alimentar vícios e mordomias indesejáveis a uma vestal. Por isso, foi uma excitação, quando caminhei desnuda por um chão de mosaicos que era uma autêntica obra de arte!

Testei a temperatura da água e enfiei-me dentro do tanque. Os cabelos começaram a nadar. Senti um arrepio, não de frio, mas de prazer. Encostei-me. Estiquei os braços ao

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comprido e deixei-me estar descansada, enquanto chapinhava os pés naquela quentura. Excelente!

Na verdade, aquele antro de mármore era bem melhor do que o buraco escuro do campus sceleratus! Nem dava para acreditar que eu sobrevivera ao castigo de Vesta! Já ninguém podia enterrar-me viva após um cortejo de bradar aos céus. Eu estava livre da foice!

Suspirei longamente e chorei.

Algum tempo depois, regressei ao meu cubículo. Os cabelos continuavam molhados, mas quase secos de os esfregar na toalha. Deitei-me no leito de finos tecidos. Os lençóis eram de primeiríssima qualidade, aos quais eu não estava acostumada. Ao deitar-me, adormeci.

Quando me levantei das almofadas era quase noite! Coloquei uma estola por cima da túnica e saí do quarto em silêncio. Deixei-me encantar por uma luz que espreitava num corredor escuro. Pisquei o olho às pinturas nas paredes e sorri.

Um pouco mais à frente, espreitei para o cubículo iluminado. Reencontrei a mulher de Paulo. Ela tecia onde as minhas irmãs conversavam com a Mater, quando eu era pequena. Senti um aperto no peito, de nostalgia.

Dormiu bem, tia Emília?

Sim, obrigada. – Enrubesci. Para mim, não era normal dormir a sesta!

Como se sente?

Mole! Caí redonda na cama. – Admiti, sentando-me a seu lado. – A ansiedade dos últimos dias cansou-se. Ou foi o banho que me cozeu como frango com cenouras. Ela sorriu e disse-me:

Daqui a pouco mando servir a ceia.

Os meus sobrinhos já chegaram?

Paulo deve estar a caminho. Ele é pontual. Lépido vai demorar. O meu filho já terminou a sua lição. – Explicou, debruçando-se sobre o tear com mestria.

Eu agora venho viver cá para casa. Como prefere que eu a chame?

Fidélis. Foi a alcunha carinhosa que o meu marido me deu. Lépido também a usa, para me diferenciar das minhas manas. – Disse-me.

Fidélis era um termo que enaltecia a sua maior virtude, o facto de ela ser leal! Os meus sobrinhos também a tratavam assim, para a distinguir das irmãs que, como era costume, tinham todas o nome do pai. Fazia sentido eu seguir a tendência doméstica e não dissonar da orquestra.

Devotei-lhe a minha atenção. Pedi-lhe que discorresse sobre o seu tema favorito: os lavores. Fidélis explicou as suas técnicas. Contou-me histórias sobre a mãe junto ao tear e, assim, nos entretemos até o marido dela entrar em casa.

Paulo não se atrasou! Ele seguia uma vida rotineira, cheia de regras. Aquele dia, não foi exceção. Veio espreitar-nos. A mulher levantou-se, de onde estava, sorriu-lhe e foi ter com as escravas, para mandar preparar a ceia. O meu sobrinho acompanhou-me até ao

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triclínio. O filho deles apareceu depois e pediu licença para sentar-se. Fidélis trouxe, com ela, o cheiro a comida e as ilíricas serviram-nos uma refeição frugal.

Ao serão, Paulo fartou-se de falar. Fidélis e o filho ouviram-no mais do que falaram. A conversa foi amena. O meu sobrinho, por sua iniciativa, não puxava temas fraturantes, nem se excedia nos comentários. Enfim, até que chegou o irmão e os ânimos se exaltaram!

Nem com a tia cá em casa consegues chegar a horas! – Atirou-lhe Paulo.

Logo hoje, podias ter esperado por mim! – Revoltou-se Lépido. Antes que declarassem guerra um ao outro, fiz questão de acalmar os ânimos.

Obrigada, Paulo, pelas novidades. Fidélis, a refeição estava saborosa e ainda bem que as aulas de filosofia do seu filho estão a correr tão bem. – Fui diplomática. – Podem ir descansar, os três. Eu fico com Lépido. Não tenho sono, pois dormi a sesta. Assim aproveito e faço-lhe companhia. O que vos parece?

A minha proposta agradava a todos. Aceitaram-na sem delongas. Paulo e a mulher foram-se deitar. Sei que o filho deles ainda ficou a ler, por algum tempo, noutra parte da casa, à luz da candeia.

Lépido desenrolou-se da toga e lançou-a ao ar! Pegou numa côdea e trincou-a, para saciar a fome, enquanto descalçava os sapatos senatoriais. Refastelou-se ao comprido, no leito dos comensais! Serviu-se da fruta. Só depois bebeu o caldo de legumes, mas sem grande vontade. Ele era completamente diferente do irmão!

Já pensou no que vai fazer nos seus primeiros dias de liberdade? – Perguntou, desajeitadamente, a mastigar a comida.

Bom, eu não estive presa. – Corrigi. Embora tantas vezes tenha pensado que sim!

A tia precisa é de divertir-se! Já lhe arranjei festa para ir.

Ah sim? – Surpreendi-me, sem saber se devia ficar feliz ou ansiosa com a ideia.

Mamerco vai organizar uma ceia para amigos… talvez umas cinquenta pessoas! Nós estamos convidados e a tia vai connosco, claro! – Avisou, enquanto deglutia.

Está bem. Eu estava tensa? Ele espreitou-me das pestanas:

Não se preocupe. A festa é em casa de familiares nossos. Os convidados, na sua maioria, não são pessoas estranhas. Portanto, a tia Emília estará em ambiente controlado. Eu não seria doido de a levar ao Aventino, logo no primeiro mês! Mas se a tia Emília quiser experimentar um ambiente mais descontraído, daqui a uns meses, eu levo-a a um banquete mais popular.

Ao Aventino? Não me leves a bacanais, nem a orgias. – Assustei-me. Ele riu-se.

Talvez ficasse surpreendida, se eu lhe dissesse, que também há disso aqui no Palatino. – Disse-me. Infelizmente, eu recordava o casamento de Metelo Pio e de Crassa, do qual eu fugira a sete pés!

No dia seguinte, levantei-me cedo. Eu ainda cumpria os horários do átrio das vestais. Só despira o traje sacerdotal. Os hábitos eram mais difíceis de largar!

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Aproveitei o silêncio para fazer reconhecimento à casa. Observei portas, paredes, frescos, estátuas e móveis, como se os perscrutasse pela primeira vez. Dei um passeio pelo peristilo. Molhei a mão na água do pequeno tanque, no centro do peristilo. Estava tudo muito bem cuidado, numa casa que primava pela sofisticação. Mas a minha sensação, ao percorrer aquele espaço, agora era diferente!

Regressei ao átrio. Perdida nos meus pensamentos, parei junto ao altar dos lares, manes e penates, onde acendi uma vela a Vesta. Orei aos espíritos dos antepassados. Aos poucos, o pessoal doméstico foi acordando. O espaço patriarcal sorriu a um novo dia e os barulhos, lá fora, na rua, aumentaram!

Bom dia, tia Emília. Já de pé? – Perguntou Paulo. Eu estava de joelhos, a rezar. Levantei-me e sorri-lhe.

Dormiste bem, meu sobrinho?

Mais ou menos. Acordei com uma dor de costas, aqui, está a ver? E na nuca! Acho que fiz um torcicolo ao pescoço. – Queixou-se pormenorizadamente.

Isso é que é pior.

Paulo vinha composto, bem penteado e alguém o ajudara a vestir-se, pois estava impecável! Ainda assim chamou pela mulher. Fidélis acudiu-lhe de imediato. Ela fez-lhe uma massagem, com dedos finos e toda a descrição. Retocou-lhe o cabelo e a toga. Ele remexeu-se e agradeceu. Depois acenou-nos, com circunspeção e saiu de casa.

O filho deles acordou e bebeu um copo de água. Esqueceu-se de lavar os olhos e apareceu no átrio com ramelas, daquelas grandes! A sua falta de decoro foi criticada pela mãe. Ele pediu desculpa, tratou de cuidar da higiene e foi obedientemente para o cubículo onde aguardaria pela chegada do professor.

A manhã já terminava quando Lépido se espreguiçou do leito até ao átrio! Fechou a boca para dizer bom dia. Desgrenhou o cabelo, mais do que já estava, enquanto procurava pelos adereços que compunham a indumentária. Não pediu ajuda e enrolou-se rapidamente na toga, pelo que ficou descomposto outra vez. Alisou a testa com as mãos, sem resultados práticos. Lavou a cara depois de estar vestido. Esqueceu-se de comer e saiu à rua de barriga vazia, pois tinha planos de comer com os amigos, sabe-se lá onde! Mas, antes, deu-me uma beijoca repenicada no rosto e despediu-se com um sorriso.

E hoje, o que é que fazemos? – Perguntei a Fidélis. Pois eu, por aquela altura, se estivesse no templo de Vesta, já tinha executado umas cinco ou seis tarefas!

Ela avisou-me que Cícero e Terência tinham sido convidados a cear connosco nessa noite. Na sua opinião, tínhamos de nos despachar para ter tudo pronto quando eles chegassem.

Paulo exigia perfeição e a mulher esforçava-se por satisfazer os seus pedidos. Sendo assim, preparava tudo com muita antecedência. Sei que a ementa da refeição foi revista ao pormenor. Fidélis só parou de rodopiar pela casa quando o marido regressou a casa. O casal estava pronto para receber o eloquente advogado e a sua rica esposa!

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Os convidados fizeram-se anunciar antes do crepúsculo. Cícero era famoso e tinha poder na cidade. Longe iam os tempos do casamento de Metelo Pio, em que competira comigo, com frases de Terêncio. Em porte, metia respeito. Enquanto orador, era esperto como poucos! Também era um fala-barato e um coscuvilheiro do pior! Eu não confiava nele, por isso tentei ser discreta. Para minha felicidade, ele não me ligou nenhuma! Talvez não se lembrasse de mim, ou preferisse devotar-me à insignificância.

Cícero e Terência foram os primeiros a entrar no triclínio. Paulo e Fidélis seguiram os convidados e tentaram acomodá-los de acordo com as regras de etiqueta. O filho de Paulo e eu fomos os últimos a sentar-nos. A princípio, deixei-me estar sossegada a observar e a escutar o que eles diziam.

Não precisei ser hospitaleira para com Terência, pois ela concentrou as suas atenções em Fidélis. Em Roma, as casadas vingavam-se nas solteiras, devotando-as ao ostracismo, conversando preferencialmente com mulheres que também tinham marido.

Eu conhecia Terência muito bem, dos rituais de Bona Dea. Sabia que o melhor era dar-lhe espaço, para ela se pavonear à vontade. Enquanto ela se sentisse em controlo da situação, não cravava as unhas em ninguém. Tinha personalidade forte. Não era bonita, mas vestia-se bem. Tinha queda para as finanças e sabia fazer contas de cabeça. Parecia gostar de falar tanto quanto o marido, sobre o qual tinha ascendente.

Cícero era intelectualmente interessante e tinha conversa para três dias! Possuía grande poder de persuasão e ego do tamanho do mundo! Almejava a glória política. Cercava-se de aliados fortes, capazes de o catapultar ao poder!

O advogado tinha uma personalidade fria, mas ele era suficientemente teatral para parecer o que não era, ou seja, propenso ao exagero e à inconstância, fazendo hoje o que dissera, jamais fazer, no dia anterior. Era um oportunista. Não era fiel à sua imagem, porque se reinventava, consoante lhe dava jeito! Não tinha corpo para lutar e colocava-se em perigo quando soltava a língua além da prudência. Era um grão-de-bico? Era um pavão!

O meu amigo Cícero é o melhor advogado da cidade e os seus discursos são pura arte retórica! – Elogiou Paulo, fascinado com a prosápia do convidado. Arqueei a sobrancelha.

Não sei se concordo com a perspetiva histórica dos seus discursos, Cícero. – Adverti. – Eu vivi muitos dos episódios a que se reporta e não os recordo assim. Cícero considerou a frase uma farpa.

É privilégio dos retóricos exceder a verdade histórica para embelezar os feitos dos seus heróis1. É permitido mentir para reportar factos históricos com subtileza.

Mas que fino! Se ele soubesse a enormidade que acabara de confessar, talvez pensasse duas vezes antes de repetir a façanha! Perguntei-lhe.

Cícero costuma mentir nos seus discursos, para melhor defender os seus clientes?

Uma mentirinha ou outra, não faz mal. – Foi o comentário condescendente de Terência, para me calar.

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Mas o marido respondeu-me:

Claro que não! – Exclamou Cícero. Mas até a mulher sabia que ele estava a mentir. – Na barra do tribunal cometem-se alguns excessos, mas eu valorizo a verdade. – Defendeu, com a sua habituar verborreia. – A posteridade merece conhecer os factos, por isso, publico os meus textos e o primeiro dever do historiador é não trair a verdade, não calar a verdade, não ser suspeito de parcialidades ou rancores2.

Cícero é um advogado, não é um historiador. – Alertei.

Eu considero-me um bom contador de histórias. – Disse-me. Não o contrariei.

Os homens voltaram a falar de Catão. Ele optara pela clausura após assistir ao julgamento das vestais, para se dedicar à meditação. Fora enviado para a Macedónia como tribuno militar. Desde então, circulavam muitas histórias sobre ele, algumas das quais foram contadas à nossa ceia.

Catão foi para a Macedónia a pé, com os outros legionários. – Estranhou Paulo.

Pois foi! Não montou a cavalo para evitar mordomias. – Contou Cícero com admiração. – Ele queria desafiar-se, para ficar forte e resistente ao calor, às intempéries e à neve. Se ficasse enfermo pelo caminho, não permitia que lhe acudissem para não transmitir a doença aos saudáveis e obrigar o corpo a recuperar sozinho3. É um valente!

Ele podia ter morrido. – Lembrou Paulo, com mais bom senso.

Catão é teimoso, mas generoso. É pouco dado ao dinheiro. O que não perde ao jogo, ele entrega aos amigos que lho pedem. – Escarneceu Cícero.

O homem continua casado com Atília? – Perguntou Fidélis, para fazer conversa.

Sim. Eles têm dois filhos. – Respondeu Terência.

Que é feito de Serviliano? – Interroguei.

Oh esse já morreu! Catão chorou baba e ranho pelo irmão. – Disse-me Terência.

Cícero contou a história. Quando Serviliano ficou doente, Catão partiu da Macedónia em direção à Trácia, num barco mercador, em dia de tempestade. Apesar dos riscos a que se atreveu, não chegou a tempo de despedir-se do irmão. Carpiu em sua honra. Ofereceu-lhe um funeral de rei. Insistiu nas maiores estravagâncias, para glorificar o irmão. Até mandou incinerar o cadáver com incenso.

Gastou oito talentos na construção de um mausóleo, em mármore de Tasos, branca e polida. – Chacoteou Cícero.

Entristecido, Catão regressou à Macedónia, onde ficou até ao fim do mandato. Deixou de ser tribuno militar, supostamente, sob uma chuva de tristeza. Os outros legionários teriam ficado tristes com a sua partida.

Catão regressou a Roma e perdeu o controlo sobre si próprio. Transformou-se num fanático! Na Macedónia podiam tê-lo elogiado. Em Roma faziam troça dele. Até Cícero se reportava a Catão como se o amigo fosse uma anedota. Partia-se a rir com ele!

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Eu conhecia Catão. Sabia que ele lidava mal com as suas emoções. Punia-se por ter sentimentos de abandono. Considerava-se um indesejado e era certamente desajeitado com as mulheres. Ficava ébrio para esquecer. Tantas bebedeiras tornavam-no obcecado e violento. Ele sentia-se sozinho, mesmo quando inserido num grupo. Fechava-se dentro de uma redoma de teorias e fantasias, que poucos entendiam (a não ser talvez Serviliano e este falecera!). Agora bebia para esquecer. O que seria dele no futuro? Os deuses o diriam.

O homem não anda com boa cara. – Comentou Fidélis.

Catão passa os dias a jogar aos dados. À noite fica ébrio. – Criticou Terência.

Ele já o fazia antes. Agora está pior. – Comentou Paulo, com ar sério. Eles focavam-se nas bebedeiras. Mas o filósofo também fazia serviço público:

Catão ousa mais do que outros. – Alertou Cícero, com voz séria.

Como assim? – Perguntei, sem perceber a que se referia.

Catão agora é questor. Supervisiona o Tesouro Público, guardado no templo de Saturno e está empenhado em fazer valer a sua vontade.

Anda a passar, a pente fino, todos os documentos oficiais. – Avisou Terência.

Ele leva as suas funções muito a sério! – Admitiu Paulo, com apreensão.

Parece um varejador de vespas que ferram toda a gente! – Mocou Cícero. Olhei para eles com exasperação, pois não se explicavam e falavam em círculo:

Mas porquê?

Meteu o bedelho onde não era chamado. – Respondeu Cícero, um optimate. O meu sobrinho era o único interessado em esclarecer-me:

Os burocratas apresentaram queixa contra Catão. Solicitaram a intervenção dos outros questores, para controlar o homem que, sob pressão, acabou por demitir alguns funcionários, inclusive o chefe do Tesouro, que era o mais antigo da instituição! E acusou outro de fraude.

Os funcionários eram incompetentes? – Perguntei eu, pois eles não abriam o jogo.

Eram corruptos. – Respondeu o meu sobrinho.

Nós não sabemos isso. – Corrigiu Cícero. – A única coisa que sabemos é que Catão é questor, mas comporta-se como pretor. Ele quer aplicar a justiça, mas não foi eleito para isso.

Cícero, ele encontrou a lista dos homens que beneficiaram das proscrições de Sila. – Alertou Paulo, algo incomodado.

Está bem. Mas Catão não precisava ter despedido os funcionários do Tesouro, por causa disso. – Insistiu Cícero.

Catão queixou-se dos funcionários, que atrapalhavam as suas pesquisas e lhe negavam informação. – Contra-argumentou Paulo, pois admirava o filósofo.

A sério? – Eu estava espantadíssima! Catão pertencia à ala conservadora do senado mas, pelos vistos, não era um silano.

Catão tem como objetivo político castigar os homens que beneficiaram das proscrições de Sila. – Esclareceu o meu sobrinho.

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É preciso ser valente para enfrentar interesses instalados e tão poderosos quantos esses. – Reconheci, com súbito interesse pelo questor. – Portanto, ele consultou as listas do Tesouro. E depois?

Publicou-as. – Avisou Paulo.

Pelos deuses! – Exclamei, tapando a boca com as mãos, de olhos esbugalhados. – Catão tornou públicos os nomes dos romanos que receberam 12 000 denários, o equivalente a 48000 sestércios, pelo assassínio de um proscrito?

Sim. – Garantiu Paulo.

Quando? Ele assumiu mandato há três meses! – Surpreendi-me.

Um mês? Dois? Não sei. Foi há pouco tempo. – Balbuciou o meu sobrinho. Eu estava positivamente admirada com a posição do filósofo:

Catão é corajoso, não há dúvida. É que Crasso e Catilina estão nessas listas!

Não estão. – Contrariou Cícero.

Ora essa! Eu consultei as listas do Tesouro, durante a ditadura de Sila. Sei que Crasso e Catilina constavam do rol de nomes. Tenho a certeza absoluta! – Garanti.

Eu consultei os papiros ontem. Os nomes não constam das listas. Portanto, o que a Emília afirma é falso! – Insistiu Cícero.

O advogado estava a desautorizar-me? Na casa de meu pai? Fiquei com vontade de o esbofetear! Paulo baixava os olhos e não parecia disposto a enfrentar Cícero por mim.

Rasuraram as listas ou fizeram umas novas? – Perguntei a Cícero.

Não, Emília. Os papiros são os originais. – Asseverou o advogado, com frieza.

Cícero estava determinado em afirmar a mentira, várias vezes, se necessário, para a tornar verdadeira! Conclui, portanto, que Crasso e Catilina lhe pagavam bem para contrariar a onda e afirmar o impensável. Mas vender a alma a Plutão tinha um preço: o Tártaro!

Paulo não me defendeu perante o seu convidado. Mas Terência estava interessada em mudar de tema e deu nova oportunidade ao marido para falar. Portanto, o casal anfitrião deixava que os convidados reinassem no chão sagrado dos Emílios Lépidos. O que era revoltante!

Os tribunais estão cheios de pergaminhos de Catão! – Alertou Cícero. – Enfim, eu não me queixo. Nunca tive tantos clientes, ao mesmo tempo, como este ano e ainda estamos no começo. Por este andar, vou ficar rico! – Riu-se.

Ao que parece, o sacerdote de Apolo apresentara tantas queixas-crime contra os carrascos do regime do falecido Sila, que entupira o sistema! Tanto assim que o Estado se sentira na obrigação de convocar, não apenas os pretores para presidirem aos julgamentos, mas também os edis. César era suposto ter cessado funções em finais do ano passado, mas os seus serviços continuavam a ser solicitados na barra dos tribunais. O que era inédito!

Catão tornara-se num instrumento de arremesso contra as bases da ditadura de Sila! Nessa medida, servia os interesses de César. Este aproveitou os julgamentos, alguns presididos

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por ele, para aplicar, em Roma, o seu sentido de justiça. Não admira que o filho de Aurélia estivesse ocupadíssimo no princípio do ano!

As proscrições de Sila causaram milhares de vítimas, diretas e indiretas. A iniciativa de Catão e os julgamentos presididos por César poderão restituir alguma justiça ao sistema. – Comentei.

A Emília é uma popular, como o seu falecido irmão? A pergunta de Cícero não era inocente e fez-me alvo da atenção geral.

Eu não me meto na política, Cícero. Sempre me preocupei mais com a coesão social. Mas uma sociedade sem justiça é iníqua. – Retorqui. O advogado não calou a sua opinião e criticou as minhas ações:

A caridade não resolve a vida a ninguém e apenas alimenta a preguiça.

Não concordo consigo. – Fiz questão de frisar.

Pois ouça a minha opinião, que é importante. – Impôs Cícero. – O orçamento nacional deve ser equilibrado e as pessoas devem aprender a trabalhar ao invés de viver à conta do Estado e da assistência social4. Não me calei.

Talvez se os políticos romanos fizessem menos guerras, o povo conseguisse, mais facilmente, governar-se sozinho. Em instabilidade permanente, é preciso haver uma rede de segurança que preste auxílio aos mais necessitados. – Argumentei.

Em troca, Cícero fez-me um discurso que eu preferia não ter sido obrigada a engolir.

Uma eternidade depois, Terência e o marido despediram-se e foram-se embora. Recolhi-me ao quarto e deitei-me com a cabeça aos gritos!

Mas eu estava tão irritada por ter engolido a afronta, em nome da paz e da concórdia – para não destabilizar a ceia organizada por Paulo e a mulher, que pareciam aliar-se aos convidados – que me revoltei comigo mesma! Sentia-me contrariada e ferida no meu orgulho! Em minha casa! Orei no altar doméstico e tentei acalmar-me. Mas assim que Lépido entrou no átrio e me perguntou como tinha corrido o encontro, desabafei todo o meu descontentamento!

O meu sobrinho mais novo, herdeiro da casa patriarcal, não colocou paninhos quentes nas minhas palavras, pois ele também não gostava de Cícero.

Os dias passaram. Eu rezava de manhã e cuidava do altar sagrado. No resto do tempo, vegetava, pois pouco tinha para fazer. Até que, numa manhã de Vénus, fui avisada que chegara um presente para mim. A rapariga, que me servia, veio ter comigo e disse:

Vieram entregar um pacote para si, com a cortesia do senador César.

Obrigada, pode ir.

Regressei ao cubículo, embalada pela curiosidade. Desdobrei o conteúdo, lentamente, sobre o leito. O que eram? Belos e sofisticados tecidos, costurados à luz da moda.

Como é que César sabia que eu precisava de roupa nova? Lépido devia ter falado com ele sobre o assunto. Mas eu não me queixei da indiscrição. A oferta não podia ter vindo mais

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a propósito! Observei tudo com regozijo e descobri que as túnicas e as estolas me serviam na perfeição! Decididamente, como César havia poucos! Fiquei contente. Como uma menina que recebe uma boneca!

Guardei as roupas novas para o dia da festa de Mamerco. Enrolei o cabelo na cabeça, numa bola. Depois saí disparada do cubículo, com súbita vontade de descer ao fórum! Ganhei ânimo e convidei Fidélis a ir passear comigo. Ela hesitou em aceitar o convite, por ter a colcha atrasada no tear. Mas mudou de ideias, foi-se arranjar e apresentou-se no átrio toda arrumada!

Vamos então? Estou com saudades do fórum. – Confessei. Eu até do bulício sentia falta, pois estava entediada em casa, sem fazer nada de útil!

O percurso era curto. Mas fomos de liteira, pois Fidélis não queria sujar as sandálias, que eram de tecido delicado, que facilmente manchava.

Uma vez no fórum, Fidélis apeou-se da liteira, tão lentamente que me atrapalhou! Quando enfim pus os pés no chão, tive de amparar-me nela, para não tombar. Os transeuntes não tiveram misericórdia e empurraram-me. Resultado, quase fui atropelada por uma carroça! Assustada, dei um passo atrás. Mas uma mulher queixou-se da forma mais vernácula.

Eu não estava acostumada a ser desprezada pelo povo de Roma! Habituara-me a ser saudada com respeito. Mas tudo mudara! Não sendo mais vestal, eles pareciam ofendidos comigo por eu ser… era uma nobre do Palatino e o povo odiava os mais ricos da cidade.

Suspirei, confusa. Eu continuava a ser a mesma pessoa! O problema é que os romanos já não me reconheciam, sem o traje de sacerdotisa. Senti-me injustiçada.

Que podia eu fazer? Talvez se eu me aproximasse com bons modos, a interação fosse mais amistosa. Assim que identifiquei uma mulher, entre os transeuntes, a quem auxiliara no tempo da ditadura de Sila, tentei cumprimentá-la. Ela juntou as sobrancelhas em arco:

Não a conheço. O que quer? – Perguntou desconfiada.

Não se lembra de mim, sou… a Emília. – Disse-lhe, ao engolir a palavra vestal.

Uma patrícia? Olhe que não lhe roubei nada. Deixe-me!

Não, espere… – Ainda pedi. Mas a mulher desatou a correr pela calçada, para bem longe de mim.

Respirei fundo e olhei em volta. Convenci-me que era caso isolado. Procurei estabelecer contacto com mais três pessoas, com resultados igualmente desanimadores. Tive vontade de chorar.

Será que ninguém se tinha dado ao trabalho de olhar para mim ao longo daqueles anos? Sem trajes de sacerdotisa, eu teria de começar tudo outra vez? Perdera o voto de confiança do povo. Eu esforçara-me tanto por contribuir para a felicidade coletiva, dera tudo pela cidade e, afinal, era uma desconhecida aos olhos dos meus benfeitores.

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O que se passa, tia Emília? Porque se mete com a populaça? – Perguntou Fidélis. Causava-lhe espanto que eu solicitasse a atenção dos transeuntes, como uma barata tonta!

Não sabem quem eu sou.

E então? – Estranhou Fidélis, encolhendo os ombros. Que responder? Eu não estava habituada a defender-me de uma evidência!

Eu ajudei estas pessoas enquanto era vestal, mas ninguém se lembra do facto.

O povo tem memória curta. Não ligue! A observação de Fidélis era injusta.

O povo de Roma é bom e afetuoso. Sempre me tratou bem. Eu é que já não sou vestal. – Conclui, entristecida.

Calma, tia Emília. Esqueça isso. Vamos comprar um perfume, venha!

Suspirei longamente. Deixei-me levar pelas arcadas da Basílica Emília, como se, à sua sombra, eu me sentisse mais protegida. Eu precisava digerir o novo contexto.

Quando Fidélis encontrou uma amiga da idade dela, que por ali passeava na companhia da sua escrava, aproveitei para propor-lhes que fossem andando para o mercado, que eu já ia ter com elas. Elas aceitaram a ideia e começaram a falar de interesses comuns.

Fui visitar o Joaquim e a Ana. Eles arrendavam loja na Basílica Emília e estavam por perto. O banqueiro não me reconheceu de imediato. Só me saudou quando ouviu a minha voz. Chamou pela Ana. Ela veio. Ao ver-me, estranhou-me. Mas tentou fingir que não.

Deixou de ser sacerdotisa, bem vejo. – Observou a minha antiga ama.

Ah, estou tão infeliz! – Queixei-me, desalentada.

Ora essa, porquê? Julguei que queria voltar à vida civil.

A experiência não está a correr bem…

A Ana escutou-me os lamentos, sossegou-me os queixumes e limpou-me as lágrimas, como estava habituada a fazer quando eu era criança. Depois deu-me bons conselhos e incentivou-me a ir às compras.

A Emília é uma mulher rica e independente. Aproveite a liberdade e divirta-se!

Eu não gosto de gastar dinheiro e nunca usei um perfume, Ana.

Há uma primeira vez para tudo. – Disse-me ela, antes de acrescentar. – Se não for agora, após trinta anos de sacerdócio, será quando?

Sim, eu podia soltar-me… um pouquinho. – Admiti. Ela sorriu-me.

Pensei duas vezes. Agradeci a dica e segui as suas indicações. Caminhei a passo lento até uma loja ali perto. Pelo caminho, fui olhando em volta. Ninguém me reconhecia. Era confrangedor! As reações da multidão confundiam-me? Tentei abstrair-me disso e, de rosto descoberto, sem véu e braços caídos de impaciência, aventurei-me pela loja mais cheirosa do fórum magno. Tossi assim que entrei. Aqueles perfumes todos irromperam-me pelas minhas narinas a dentro, como uma carroça num beco estreito!

Bom dia, domina. Em que posso ser-lhe útil?

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Saudou-me um homem de aparência estrangeira. Ele tinha modos delicados e parecia habituado a trabalhar com flores e aromas. Usava olhos maquilhados de preto. Era careca, por questões culturais e para evitar os piolhos. Na cabeça enfiava peruca de cabelo verdadeiro, liso e negro, com franja larga e direita. Tinha um ar tradicionalmente associado aos mistérios do Nilo.

Egípcio, vim comprar um bom perfume.

Com certeza. Para que quer a fragrância? – Questionou.

Para cheirar bem. Não é para isso que serve um perfume? – Perguntei, estranhando a necessidade de constatar uma evidência. Ele olhou para mim dos pés à cabeça:

É a sua primeira vez em Roma? – Quis saber, julgando-me uma pacóvia.

Eu sempre vivi aqui, mas nunca usei perfume. Eu era uma sacerdotisa e…

Ah bom! Como é que se chama?

Emília.

Bem me parecia que era uma patrícia romana! Se exercia funções religiosas, faz sentido que tenha a pele tão jovem e sedosa, sem rugas nem imperfeições. Nunca usou maquilhagem, pois não?

Não.

Nota-se! É uma mulher muito bonita, sabia?

Ah sim? – Admirei-me. Ele ficou deliciado a olhar para mim.

Estou fascinado consigo. Já sei o que vou fazer. – E foi dar uma volta pelo seu estabelecimento. Regressou pouco depois. – Este elixir é sofisticado e vende-se às romanas mais requintadas. Chama-se telinum e é feito à base de azeite fresco, mel, manjerona doce, feno-grego, cálamo, trevo-de-cheiro, cíperos e árum. Ora, experimente. Colocou uma amostra no meu pulso.

Sim, é bom. – Confirmei com olhos pestanudos.

É o perfume da moda desde Menander. – Explicou-me, para mostrar eloquência e sentido de orientação.

Da moda? Esse poeta viveu há mais de duzentos anos! – Estranhei. Ele ficou desconcertado.

O que interessa é o cheiro. – Atalhou! – Este perfume é um clássico e não uma tendência de mercado. Afinal, o que é bom, nunca deixa de o ser.

Tem razão. – Reconheci. Ele sorriu. – Mas não tem nada mais atual? – Indaguei, sem saber bem o que procurava.

Temos perfumes de rosas, cálamo, romã, mirto, cipreste, mástique, de muitos tipos, uns mais exclusivos do que outros. O dinheiro paga tudo! – Explicou.

O egípcio abriu os braços a toda uma panóplia de frascos, óleos, unguentos e folhas para esmagar que possuía em loja e remexeu as mãos de contente. Ele era um fornecedor experimentado. Engoli em seco. E agora?

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Rosas?

É bom para hidratar a pele.

Pode ser, obrigada.

E que tal romã? É afrodisíaco. – E piscou-me o olho, muito lentamente.

Fica para a próxima.

Regateei o preço, por ser excessivo. O egípcio ficou parvo comigo, habituado que estava a pedir o que queria. As mulheres egípcias regateavam o preço, mas as romanas, sobretudo as nobres, consideravam aviltante fazê-lo. Mas eu geria o meu pecúlio desde jovem, estava acostumada a padeiros e empreiteiros, a pensar antes de gastar os meus cobres. Só assim conseguira fazer tanta coisa ao longo dos anos! Portanto, discutia preços.

Despedi-me do egípcio e procurei por Fidélis, que estava com a amiga, mais à frente. Ficámos as três a conversar entre vendedores ambulantes. Mostrei-lhes o meu perfume. A ideia era avaliar a opinião delas sobre a minha compra. Ficaram encantadas com o meu bom gosto! Pelos vistos, o telinum continuava a ser fragância de referência em todas as casas da elite. Nem que fosse por ser caríssimo! O egípcio não me enganara. As explicações confirmavam-se e batiam certo. Era um bom começo!

Elas, em contrapartida, tinham pago preço alto por quinquilharias! Eu nem sabia para que servia metade daqueles objetos. Nem elas, provavelmente! Mas não foram as bijuterias que me causaram espanto. Foi a maquilhagem que elas estavam a comprar.

O que é isto? – Perguntei-lhes, espreitando uma mistela de cor esquisita.

É o creme para o rosto mais caro da loja. – Explicou Fidélis.

Cheira mal. O que é? – Queixei-me.

A amiga de Fidélis olhou-me com ar reprovador. Ao invés de lhe adivinhar os pensamentos, que seriam certamente pejorativos, afastei-me dela. Preferi aproximar-me do vendedor, que era natural da Bitínia. Ele não tinha ódio aos patrícios, sobretudo se fossem bons clientes e lhe comprassem muitos produtos. Perguntei-lhe em tom de confidência:

Ouça lá! Estes unguentos são o quê?

Pergunta que, pelos vistos, nenhuma matrona romana se atrevia a fazer. O bitínio não se importou de me explicar tudo, depois de eu lhe garantir que alguma coisa lhe compraria!

Este, por exemplo, é uma maravilha!

Pastosos! É feito de quê? – Perguntei. Ele hesitou. – Vá lá, prometeu dizer-me.

É um excelente creme de rosto, feito de excrementos de crocodilo, dissecados e misturados em água perfumada. Se colocar durante a noite, garanto-lhe que acorda…

Com cara de excremento. Sim, já percebi. – Comentei com voz sumida. – E isto é o quê?

Leite de burra. Este bálsamo embranquece e amacia a pele, até quando esta está seca e engelhada. Garanto-lhe! Os homens adoram uma mulher...

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A cheirar a leite? Eu não sou uma criança!

Não sabe do que fala! – Ripostou, com bons modos e ar divertido. – As minhas clientes colocam sopas de leite sobre o rosto, antes de se deitarem e acordam com o rosto macio, macio…

Como o rabinho de um bebé? – Trocei. Pigarreei. Não valia a pena insistir com ele, por isso perguntei. – Está bem. Eu acredito. Mas diga-me, qual é o produto que mais vende para o rosto?

Pó de cal. – Respondeu. Apanhei um susto!

Cal de parede? No rosto? Mas isso queima, homem! Ele abanou a cabeça, em descrédito:

Ouça! As romanas não gostam de estar bronzeadas. O principal é cumprir o objetivo. Quer ficar com a cara pálida ou não?

Não.

Prefere feijão cozido para as rugas?

Ah? – Atrapalhei-me. Posto isto, o que podia em comprar?

Prefere levar cinzas, para pintar os olhos? – Foi a sua sugestão seguinte. Nem pensar! Eu recordava os olhos irritados nas ceias esgrimidas de Bona Dea!

Isso faz chorar! Bom, mas eu… preciso cuidar do cabelo. Usei-o muitos anos entrançado e preciso de um creme gordo, que lhe dê consistência. O que sugere?

Usam-se excrementos de rato para a calvície. Agarrei-me ao cabelo, com medo de o perder.

Talvez isto? – Apontei.

É unguento rosado de aranha amassada.

Não, obrigada.

Então! Prometeu-me que levava, pelo menos, um produto. – Exigiu.

Palavra dada é palavra devida. É que eu preciso de levar… alguma coisa. – Arrependi-me de dizer.

Vai um pote de gordura de pato para amaciar o cabelo? É muito, muito bom.

Respirei, engasguei-me e tossi. Mas dei ao homem umas moedas em troca do pote, que coloquei debaixo do braço, sem solicitar ajuda de ninguém. O que surpreendeu um transeunte muito especial, que acabava de vir de uma sessão do senado e que não estava à espera de me ver naqueles preparos:

Porque é que a tia Emília anda nesses andrajos? Não recebeu roupa nova? – Estranhou Lépido, enrugando o rosto.

A que César enviou? Eu vou guardá-la para a festa na casa de Mamerco.

Nem arranjou o cabelo! Porque não pediu, lá em casa, que as moças a ajudassem?

Resmungas mais comigo do que a mulher do teu irmão. Ele fingiu que não me ouviu:

O que leva consigo? Que pote é esse?

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Gordura de pato. É suposto ser bom para o cabelo. Mas eu não vou pôr isto na cabeça! Que Vesta me livre disto! É pestilento. Ele riu-se.

A adaptação à civilização está a ser difícil, tia Emília? Lépido puxava por mim. Eu, que explodia por dentro, não me contive:

O vendedor queria vender-me excrementos de crocodilo e de rato! Unguentos de aranha amassada! Cal das paredes para o rosto! Mas nem pensar! Por este andar eu nunca vou usar maquilhagem! – Exclamei desaustinada. Consegui respirar fundo. – Até logo, sobrinho. – Despedi-me. Mas tão desaustinada estava, que perdi uma sandália, pelo caminho.

Na véspera da festa de Mamerco, Paulo recebeu mensagem de Mânio, a explicar que, por causa das trovoadas dos últimos dias, o ex-cônsul ficara retido em Fórmia, pelo que não podia marcar presença na ceia organizada pelo irmão. Fiquei desiludida com a notícia, pois esperava revê-lo e falar um pouco com ele.

Em compensação, recebi uma segunda oferta de César, entregue dentro de uma caixa de madeira, com âmbulas lá dentro. Eram perfumadas. Em aroma e em textura, eram excelentes!

Então, tia Emília. Como está hoje? – Perguntou-me Lépido, ao chegar a casa.

Sabes que eu te adoro, não sabes, sobrinho lindo. – Sorri-lhe.

Olá! A tia, hoje, está muito bem-disposta …

Estou contente. Ou melhor… devo continuar a queixar-me, pois, em consequência, tenho recebido uns belos presentes!

Ah sim? Não diga. – E riu-se, antes de explicar. – Não fique zangada comigo, tia Emília. Mas eu vi-a tão atrapalhada, que fiquei com pena. Como eu não conseguia ajudá-la, pedi ajuda a César, que tem sempre solução para tudo! Ele disse-me que colocou uma equipa a trabalhar, para encontrar os melhores produtos para si. Portanto, a tia Emília pode usar a roupa e a maquilhagem à vontade e à confiança. Ele só compra o melhor!

Pois, acredito. – E dei-lhe um beijinho na bochecha.

No dia da festa de Mamerco, Fidélis convidou-me para uma sessão de maquilhagem. Mais do que isso, fiquei pasmada com a quantidade de coisas que uma romana fazia para ficar bonita. Sei que sofri horrores à lei da pinça! Mas dos banhos saí uma mulher renovada!

Cortaram-me o cabelo, mas apenas as pontas, para ficar saudável e bonito. Depois fizeram-me um penteado da moda (um que eu considerei aceitável!). Vesti as roupas enviadas por César, as quais mandara lavar e passar a ferro quente no forno. Pedi emprestadas umas sandálias a Fidélis, pois ela calçava o mesmo número do que eu e caminhámos as duas mansamente para o átrio. Quando chegámos, Lépido e Paulo ficaram de queixo caído!

Fidélis está bonita, não está? – Disse-lhes, com um sorriso no rosto.

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Aos meus olhos, ela estava muito elegante. Mas eles contorciam o rosto na minha direção e sussurraram entre si aquilo que eu, apesar de tudo, consegui escutar:

Sabes que vamos ter trabalho hoje, não sabes? – Perguntou Lépido ao irmão

Eu sei, já percebi. Tenho olhos para ver, não sou cego! Aquele diálogo entre os dois despertou-me fortes inseguranças.

Desculpem, estou com cara de farinha? – Perguntei. Não teriam gostado da minha maquilhagem? Teria eu exagerado nos preparos? Para minha surpresa, Lépido deixou-se rir da minha atrapalhação:

Oh, tia, até parece que não se viu ao espelho! Encolhi os ombros e respondi como uma vestal:

De facto, não vi. Nunca o faço. Paulo e Lépido entreolharam-se.

Edepol! A tia não existe! – Exclamou Lépido, de espanto. Paulo tentou ser compreensivo e corrigiu o irmão:

A nossa tia foi vestal durante trinta anos! Não é como as mulheres que tu conheces, parvalhão! Deixa-a sossegada. Vamos andando! Lépido observou-me de alto-a-baixo e sorriu:

Sim, vamos. Estamos atrasados…

Quando saímos à rua não chovia, mas o tempo estava cinzento e as nuvens acumulavam-se no céu. O dia não parecia ser o melhor para festejos, mas eu queria muito divertir-me como as outras mulheres da minha idade. Já era tempo!

Entrei num liteira com Fidélis, a rebolar as mãos no regaço. A princípio, mantive o silêncio. Mas as minhas inseguranças falaram mais alto. Acabei por perguntar:

Estou feia? Sinto-me algo atrapalhada nestas roupas novas, com maquilhagem e este penteado. Não quero fazer má figura. Fidélis foi carinhosa comigo e tentou sossegar-me:

Está bonita, garanto-lhe. Se estivesse mal, eu dizia-lhe. – Fez questão de frisar. As minhas mãos tremiam, por isso, a mulher de Paulo acrescentou. – A tia Emília não costuma ir a festas. Eu percebo. Mas estou aqui consigo. Tenha calma.

Agradeci a simpatia. Mas, assim que entrei em casa de Mamerco, senti-me uma corsa a entrar numa cova de lobos! A forma como os convidados me olhavam, era claustrofóbica! Senti-me em areias movediças.

Independentemente de ser bonita ou feia, já não era uma mulher jovem! Teria a cara cheia de rugas? O egípcio que me vendera os perfumes garantira-me que não, mas ele podia ter-me mentido para eu gastar, com ele, mais alguns cobres.

Observei em torno de mim. Os homens pareciam surpreendidos e devoravam-me com o olhar. Mas não era agradável. Era como se eu fosse carne fresca. De repente, senti-me nua. Eu tinha saudades do traje de sacerdotisa que antes me protegia dos olhares alheios.

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Por outro lado, as mulheres miravam-me com desdém! Como se uma rival tivesse entrado num mercado altamente competitivo, onde todas quisessem comprar o mesmo par de brincos! Aquilo era uma feira de vaidades.

Sejam bem-vindos. – Saudou Mamerco.

O ambiente era exclusivo. Frequentado pelos mais altos dignatários da cidade, parecia uma selva chique, regada a sorrisos que cresciam como ervas daninhas entre os canteiros mais sofisticados.

Está tão bonita, Emília. – Elogiou Cornélia, mas com agudos que me assustaram.

Não diga isso, que até fica mal. Bonita é você. – Acrescentei imediatamente, antes que ela me matasse!

Ah obrigada! Arranjei o cabelo sabia… – E explicou-me, detalhadamente, todo o seu dia de preparos, com entusiasmo redobrado.

Metelo Pio também lá esta e era um rosto de espanto. Tomei a iniciativa de os cumprimentar, pois Lépido nunca mais o fazia e Paulo parecia desconfortável, rebolando as mãos uma na outra, enquanto Fidélis nada dizia.

Os meus cumprimentos, pontífice máximo. Como está?

Per-perplexo. – Foi a resposta que me deu. Olharam uns para os outros.

Bom, ainda bem que vieram. – Disse Mamerco, para fazer conversa. Mas o pontífice máximo virou-se para ele e perguntou:

Mânio não vem-vem à festa? Ele anda com a ca-cabeça a dormir!

A mim compete-me organizar as festas, Metelo Pio. Ao meu irmão compete aparecer. Mas não posso obrigá-lo a vir, não é? Sabes que ele é orgulhoso e teimoso. Não me meto com ele. – Declarou Mamerco.

Ainda conversámos um pouco, mas Lépido afastou-se do grupo e começou a circular entre as mulheres bonitas. Paulo sentou-se com a esposa a um canto e eu fiquei junto ao casal, de olhar ausente. Fidélis pareceu satisfeita por eu estar a fazer-lhe companhia.

Lá estavam Semprónia e o marido, entre os artistas! Crasso e a mulher acomodavam-se à direita, a conversar com Catilina e a esposa. Mas não foram eles que se aproximaram de nós. Foi Cícero e Terência. Eles faziam companhia a Silano e a Servília. Catão não comparecera à festa e a sua irmã agradecia-lhe a gentileza, pois detestava-o e não fazia segredo disso.

Que bom vê-los! – Assim saudou Silano a Paulo e Fidélis, enquanto Servília decidia se devia dar-me atenção ou ignorar-me.

Os cumprimentos foram exagerados e bafientos, com Paulo e o advogado a recorrerem à retórica, e Silano a fingir que percebia alguma coisa do que os outros dois estavam a dizer. Entretanto, Cícero espreitava o decote de Servília, pois parecia embasbacado com ele. Ela divertia-se a achocalhar os seios redondos, supostamente para o marido, mas para Cícero também poder observá-los.

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Servília atraía os olhares masculinas e parecia ser o tipo de mulher capaz de dar a volta a um homem. Eu conhecia-a dos rituais de Bona Dea e recordava as barbaridades que ela dizia das outras matronas. Não tinha boa índole, mas não lhe faltava personalidade!

Então, o que opina dos debates políticos deste ano? – Perguntou-me Servília.

Contraí-me, da mesma forma que reagiria a uma cascavel. Ela era manipuladora, arrogante, e perigosa. Podia ser vingativa, se as coisas não lhe corressem de feição. O melhor que eu tinha a fazer era evitá-la.

Não sou uma mulher politizada. – Respondi com secura, olhando noutra direção.

O meu objetivo era que ela esquecesse que eu existia. Consegui-o! Ela virou-me as costas e empurrou Terência para a direita. Elas, naturalmente, detestavam-se. A primeira dava demasiada importância à segunda, que a tratava com desprezo.

Não é que a mulher de Silano fosse bonita. O seu nariz projetava-se para a frente e tinha uma boca espúria. Mas havia nela um sexto sentido feminino que lhe permitia transformar desvantagens em proveitos. Por isso, com um sorriso, colocou as mãos nos ombros de Cícero e do marido e lá foram os quatro tramar a vida a terceiros! Sim, porque Terência seguia-os a espumar raiva!

Olhei em volta, com receio que outros se metessem connosco. Resolvi incitar a minha família a deambular pela festa, para não estarmos tão vulneráveis naquele beco sem saída. Eles fizeram-me a vontade.

Mas o drama veio ter comigo! Cornélia fez questão de chamar-nos à sua beira. Junto a Aurélia estava o irmão Aurélio, que era bom amigo de Lépido.

Como estão todos? – Cumprimentou Paulo, tomando a iniciativa. Saudámo-nos. Lépido estava inserido noutro grupo, mas aproximou-se:

Então Aurélio? – Saudou-o.

Sejas bem aparecido, homem! Como vão esses ossos? – Respondeu-lhe Aurélio, sorrindo. – Quem é esta mulher tão bonita? Não fomos apresentados, pois não? – Perguntou de forma galanteadora. Ele era um homem bem-apessoado. Lépido fez-lhe sinal para que se moderasse:

É a minha tia Emília… que deixou de ser vestal há quinze dias. Lembras-te? Eu falei-te nisso. – Alertou. Aurélio ficou boquiaberto. Por momentos, pensei que lhe ia dar uma coisa má!

A tua tia?! – Depois olhou para Lépido e mexeu os lábios sem som, para repetir a pergunta. O meu sobrinho endereçou-lhe um olhar reprovador.

Sim, a minha tia Emília.

Aurélio endireitou-se. Passou a mão pelo cabelo e alisou a toga. Só depois me sorriu, com dignidade proconsular.

Peço perdão, senhora. Hoje não a reconheci e aqui ficam as minhas desculpas.

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César e a Vestal 401 Maria Galito

Ele era bem mais velho do que eu, mas estava atrapalhado.

Não se preocupe. Vou considerar a sua cortesia um elogio. – Sorri-lhe.

O rosto de Aurélio iluminou-se! Já não tirou os olhos de cima de mim. Aurélia assistia a tudo, de camarote. Apesar de preocupada, nada comentou, como era seu apanágio.

Pompeia detestou-me, não sei porquê. Mas as mulheres, em geral, pareciam comportar-se como se eu fosse uma rival. Brigar com ela, era a última das minhas intenções! Preferi ignorá-la.

O problema é que Servília se aproximou com o seu grupo. Lépido e Aurélio concentraram as suas atenções na mulher de Silano, ao mesmo tempo que Paulo recuperava a conversa com Cícero e Silano. Cornélia e Pompeia começaram a coscuvilhar sorrateiramente sobre Servília aos ouvidos de Aurélia e de Fidélis. Eu mantive-me numa posição estratégica, capaz de escutar as respetivas conversas paralelas, ao mesmo tempo tão diferentes quanto cáusticas!

Até que me cansei de os ouvir. Antes que se matassem com sorrisos daninhos e críticas corrosivas, pedi licença e afastei-me, para tão longe quanto pude! Segui por corredor colunado, que desembocava num muro com vista para a cidade, onde não havia ninguém.

Chovia, não muito, sem grande intensidade. Mas o céu chorava de desânimo. Como conseguiam os romanos aguentar toda aquela pressão? Até numa festa! Conclui que a minha primeira festa, à civil, estava a ser um desastre!

Enchi o peito de ar! Respirei fundo, deixando que o ar frio penetrasse pelas minhas narinas. O tempo desagradável afugentara os convidados para o interior da casa. Mas eu precisava de desaquecer os ânimos! Senti o vento levar para longe a minha frustração e já não tinha véu para deitar ao chão.

Fixei-me na vista panorâmica sobre a cidade. Observei os focos de luz. Escutei a cadência da chuva, que dançava ao cair. Só me ouvia respirar sob um céu cinzento carregado de nuvens. Perguntei aos deuses se não teria sido melhor eu continuar sacerdotisa.

Foi então que alguém me envolveu pela cintura. Sobressaltei-me. Aquela era a antiga casa de Sila e apanhei um susto de todo o tamanho! Mas não era um desconhecido. Era César!

Olá Emília.

Olá César.

O seu olhar, intenso e penetrante, era tudo o que eu pedira aos deuses, para aguentar aquele tormento! O seu corpo era a tábua de salvação que eu procurava. Por isso, deixei que me envolvesse num abraço. Instintivamente, enrosquei-me nele e senti-me em casa.

César pousou a cabeça sobre o meu novo penteado, que já não era entrançado. Eu já não era uma vestal, portanto, podia aninhar o rosto no seu pescoço sem que os pontífices pudessem condenar-nos à morte. Foi bom remédio, pois a minha dor de cabeça passou. Há anos que não estávamos juntos. Mas não nos estranhávamos. Há coisas que não se esquecem nem se explicam!

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A chuva continuava a cair. Recompus-me, sorridente. Ele mirou fundo nos meus olhos numa expressão descontraída e sedutora. César era bonito como um deus! Tinha cada vez menos cabelo, mas sabia vestir-se e o seu odor corporal era cativante. Era o tipo de homem que atraía as pessoas até ele e eu, despida do traje de sacerdotisa, sentia-me solta. Queria muito ser abraçada e beijada.

Estás bela, Emília. – Disse ele. – Eu sabia que as roupas te ficavam bem. Foi música para os meus ouvidos.

Eu ainda não te tinha visto, mas era minha intenção agradecer-te pela roupa.

Que perfume bom! Cheiras bem, minha querida.

Obrigada, César. – Respondi, com o coração aos pulos.

Estás a gostar da festa? Pestanejei. Apesar de embalada, não consegui mentir.

Estou a detestar. César soltou uma gargalhada.

Emília, tu és pérola! – Exclamou. – Toda a gente mente em Roma. Mas tu consegues dizer a verdade, de forma tão… genuína. É incrível!

Era um elogio? Entendi-o como tal. Ronronei. Ele beijou-me carinhosamente os lábios. De repente, foi como se o meu lar não tivesse telhado, mas o sabor da sua boca.

Tenho um presente para ti, Emília. – Avisou.

Outro? – Perguntei, de olhos pestanudos. César mostrou-me um fio de ouro, de onde pedia um brocado de pérola marítima, da cor da alvura, pura, grande e redonda, que enrolou ao meu pescoço. César era um galanteador:

Dizem que Vénus nasceu de uma ostra e esta é uma joia digna de outra joia.

Obrigada, César. Adorei! Eu dantes não podia usar joias.

Eu sei.

Este é o primeiro tesouro ao qual posso chamar meu. – Agradeci, com a mão enrolada à pedra. Eu estava entusiasmada, com o coração inundado de esperança. Dava mesmo vontade de estar ali, pela companhia.

Como te sentes agora que já não és uma vestal? Sinto-me livre! Mas será que era mesmo assim?

A princípio foi estranho.

Porquê?

Por várias razões. Mas sobretudo porque a população já não me reconhece sem o traje de sacerdotisa. Há pessoas a quem ajudei durante anos que agora passam por mim sem me cumprimentarem. Como se agora eu… não fosse ninguém.

Entendo. Já me senti assim muitas vezes.

A sério? Enfim, eu não me queixo da população. Até penso que a culpa é minha. Fui eu que mudei, de repente, sem avisar. – Reconheci. – As pessoas talvez se sintam traídas. Mas não lhes quero mal. Continuo a ser a mesma pessoa.

O povo não confia em ti, por causa do nome que carregas.

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Parece que sim. Como é que sabes?

Tem sido a minha sina.

César entendia a minha frustração. Nem os meus sobrinhos, nem Fidélis, nem o Joaquim ou a Ana, tinham compreendido que a realidade me feria. Mas ele sim.

É reconfortante falar com alguém da nossa língua. – Disse-lhe. César beijou-me, agora com mais intensidade. Fiquei osculada. Piscou-me o olho.

Bom, tenho de regressar à festa. Ficas bem? Despedia-se de mim? Estranhei o desapego.

Já vais? Fica um pouco mais comigo. – Pedi-lhe carinhosamente.

Querida, não podem ver-nos juntos. Eu sou um homem casado.

Então divorcia-te. – Repliquei imediatamente.

As coisas não assim tão simples, Emília. O que foi um balde de água fria. Até tremi!

Tu disseste que não estávamos juntos porque eu era vestal. Pois bem, já terminei o mandato de sacerdotisa. Estou disponível. O teu casamento foi celebrado sine manu, podes divorciar-te de Pompeia. Se o fizeres agora, nós podemos casar no final do ano, se quiseres.

Eu deixara-me embalar pelas palavras. Ele baixou os olhos e não me respondeu. Fez-se silêncio. Imaginei um muro a crescer, entre nós, daqueles pesados, com argamassa e tijolos aquecidos ao sol. Uma fronteira intransponível. E o coração caiu-me aos pés.

Tenho de ir. Não fiques aqui sozinha durante muito tempo, Emília. – Aconselhou.

César, por favor, espera! Vamos conversar. – Pedi-lhe, com voz sumida. Comecei a tremer.

Sobre o quê? – Indagou, com voz firme, corpo contorcido e semblante carregado. Eu ouvia o coração no pescoço, que acariciava com a mão.

Sobre nós os dois. Eu deixei de ser vestal, quero constituir família e ter filhos. Podia ter sido o início da declaração de intenções. César fez-me parar logo ali:

Mas eu não posso oferecer-te o que queres, Emília. Ele bem podia ter-me fechado a porta no nariz! O impacto seria o mesmo.

Não gostas de mim?

Claro que gosto! Mas não posso separar-me de Pompeia. Preciso chegar a pretor e, sem o esquema que tenho montado no Senado, seria impossível atingir o objetivo, no atual contexto político. Sou sobrinho do falecido Mário, lembras-te? Eu não tenho qualquer afeto pela filha de Cornélia, mas continuarei casado com ela até chegar a cônsul! – Rematou com voz gelada.

Isso pode levar anos… e eu não tenho esse tempo para esperar, César. Se quiser ter filhos, eu preciso constituir família em breve.

Lamento, Emília.

Foi a desilusão total! A princípio, não soube o que responder. Depois entrei em negação. Não consegui calar-me. Até lhe propus apoio político:

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Eu sou uma ex-vestal. Tenho muitos contactos, por toda a cidade. Eu tinha a mão ao peito.

Não chega! Eu preciso de votos de todos os quadrantes políticos, das várias bancadas do senado. Preciso do apoio de populares, de optimates e de oportunistas que entraram no senado pela mão de Sila. Vê se percebes! É através de Pompeia que tenho acesso aos inimigos do tio Mário. Sem eles, a maioria no senado, eu não chegarei a pretor, quanto mais a cônsul! Os teus sobrinhos odeiam Pompeu, mas eu preciso do homem como meu aliado! Eu não posso ir contra Crasso, pois tenho dívidas e compromissos que preciso absolutamente respeitar! Se era para argumentar com base em lógica, eu sabia responder-lhe à letra!

Quanto deves?

Isto não são temas para discutir aqui, neste momento. Podem ouvir-nos…

A tua dívida não pode ser assim tão grande que não se consiga saldar.

1300 Talentos. – Confessou, qual fossem apenas 13.

Fiquei para morrer! Era muito. Demasiado! César pagara dois talentos a Fagita para fugir das proscrições de Sila. Os piratas da Cilícia haviam pedido 20 talentos pelo seu resgate, ao que César ripostara que 50 talentos era o seu valor, enquanto jovem patrício. Catão recebera 120 talentos como herança. É certo que a fortuna de Crasso estava avaliada em 7100 talentos, mas ele era o homem mais rico de Roma e não havia ninguém que se lhe comparasse, em momento algum da história de Roma. Por conseguinte, 1300 talentos era dívida, para todos os efeitos, impagável.

Segundo a lei das XII Tábuas podes ser vendido como escravo. – Suspirei. Ele encolheu os ombros. – Um cidadão da República pode vender outro cidadão se este for seu devedor. A Lex Poetelia Papiria melhorou a situação dos devedores insolventes, concedendo-lhes alguma proteção legal. Mas nem o Estado consegue salvar-te dos credores se deves uma soma dessas!

César possuía a pior faceta dos patrícios. Nutria desprezo pelo dinheiro, sobretudo quando o desbaratava! Talvez pensasse que as moedas nasciam nas árvores! Como era bom negociador, ao invés de amortizar as dívidas, contraía novos empréstimos e fazia mais gastos, como se não lhe incumbisse a tarefa de criar riqueza. Talvez se pensasse superior à ideia de gerir um orçamento como toda a gente! Ou então, pensava-se muito esperto.

De acordo com o terceiro tomo das XII Tábuas, se alguém entregar o seu dinheiro a juros superiores a um por cento ao ano, pode ser condenado a devolver o quádruplo. A lei defende os cidadãos sujeitos a juros galopantes que não possam pagar. Portanto, os prestamistas incorrem em ilegalidade e eu posso delatar a situação. – Acrescentou, dando azo à sua veia de advogado.

Queres levar os teus credores a tribunal? – Espantei-me. As consequências seriam imprevisíveis!

Farei tudo o que estiver ao meu alcance para chegar a cônsul. Não tenho margem de manobra para contemplações, se quero defender a integridade física e moral da minha família. – Foi a conclusão de César.

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César não temia o perigo, talvez gostasse de arriscar-se daquela maneira. Eu não!

Se não te divorcias de Pompeia… separo-me eu de ti.

Tu nem sequer tentas compreender o meu lado! – Queixou-se.

Estou a entender, sim. Queres tudo sem abdicar de nada…

Eu quero aquilo a que tenho direito!

Eu também. – Rematei.

Eu sentia-me tão cansada! Tinha frio e só queria ir para casa. Nem tinha forças para discutir. Fechei os olhos, com as mãos entrelaçadas. César podia ter insistido. Mas deve ter mudado de estratégia, pois recuou:

Não estou a pedir-te nada, Emília. Tu é que sabes de ti. A vida é tua. Naquele jogo eu não entrava, portanto, precisava tomar uma atitude definitiva:

Eu não devia ter aceitado os teus presentes sem conhecer as tuas intenções. Queres que te devolva a pérola e as roupas? – Perguntei com a integridade à flor da pele, como perfume acima de qualquer preço.

Ele ficou para morrer! Engoliu em seco e ficou rubro de olhos fixos nos meus. Não aguardei por resposta. Retirei o fio do pescoço e devolvi-lho. Ele recusou receber a joia.

Foram ofertas, Emília. Fica com elas.

A joia é tua.

Não a devolvas. Fico sem jeito! – Rogou, de rosto rubro.

Se soubesses o que eu me sinto, neste momento, aceitavas. – Adverti. Entreguei-lhe o fio de ouro com a pérola, abrindo e fechando-lhe a mão com uma lágrima. – Amanhã devolvo-te as roupas e o resto, obrigada. Ele coçou-se. Estava verdadeiramente encabulado. Mas acrescentou:

Peço-te que penses no passado que nos une, antes de tomares uma decisão final. A vida nem sempre é como a desejamos. Não hesitei.

A decisão está tomada. Eu sigo o meu caminho, tu segues o teu. Sem problema. César sabia dominar as suas emoções e conteve-as, muito mais do que eu!

Aproveita a festa. Tenho de ir. – Despediu-se e foi-se embora.

Senti um vazio imenso! Suspirei longamente para a chuva que enevoava a cidade. César era um logro? Recordei a casa de mármore cor-de-rosa, onde nós os dois, tantos anos antes, havíamos trocado votos à luz do altar doméstico. Pareciam tempos tão distantes! Mas, por alguma razão, o edifício fora arrasado durante a ditadura de Sila.

A ilusão acabara! César era um homem com pedalada que eu não conseguia, nem queria acompanhar! Ele não marcara território a meu favor, portanto, ele não gostava de mim o suficiente, talvez pouco ou nada. Era uma questão de orgulho? Eu tinha de esquecê-lo. Ele não era solução para mim!

Ainda não percebi o que vês nesse homem. – Confessou alguém das arcadas. César partira. Quem seria? Olhei em volta. Eu conhecia aquela voz.

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Mânio! – Exclamei.

Ao dar com ele, entrei em pânico! Eu não via o irmão de Mamerco há muito tempo. Encará-lo não era fácil. Trazia-me memórias, de quando ainda não era vestal máxima! Quantas vezes eu me deslocara ao lucus, ao local dos nossos encontros, à sua procura, a ver se me esperava? Nem sei, vinte, trinta? Quantos dias me mantive à porta do Senado a cantar e a discursar, sob ameaça de Catilina, para o salvar da morte? Seis, sete dias seguidos? Quantas noites mal dormidas passara, a pensar nele, com saudades? Dezenas! Mas ele partira para Fórmia e eu nunca mais lhe pusera a vista em cima!

Ele regressava agora, bonito e tostado do sol, a respirar saúde. Qual bom conservador, não descorava os seus latifúndios! Mas que tinha ele para oferecer-me, após prolongada ausência? Um pedido de desculpas? Uma explicação emocionada? Uma joia? Um beijo? Não! Mânio fazia-me uma cena de ciúmes.

As minhas suspeitas confirmaram-se. Tu continuas a gostar de César.

Mas que patrícios eram aqueles, que não protegiam as mulheres? Só pensavam no seu umbigo. César aproximara-se com asas de águia, qual filho de Júpiter. Mânio saíra da toca, qual filho de Saturno.

Julgava que estavas em Fórmia, Mânio. A sua voz era corpórea e transmitia, em si, uma mensagem:

Convenci Mamerco a espalhar essa mensagem. – Admitiu com a frontalidade que lhe era característica. – Eu sabia que vinhas à festa e queria ver como reagias.

Tu fizeste-me uma tocaia?

E caíste nela, não foi? Ele parecia inchar em tamanho. Ou era eu que já não estava a ver bem a coisa?

Não podes reagir como se estivesses no exército e eu fosse uma cidade sitiada!

Ah não?

Não sou o inimigo! Sou uma mulher. – Revoltei-me. – O que estavas à espera que eu fizesse? Ele tinha uma lista de expetativas defraudadas:

Que resistisses a César. Que me fosses leal. Que sentisses a minha falta. Não é pedir muito, para princípio de conversa!

Eu não te vejo há muito tempo. Tu foste para Fórmia, lembras-te?

Tu és volúvel à sedução fácil de César. – Repreendeu Mânio. – Foste ingénua ao pensar que ele deixaria tudo para ficar contigo. César não vai divorciar-se de Pompeia, pois ela assegura-lhe a vitória nas eleições e tu não!

Eu ouvi o que ele disse…

César ambiciona ser um novo Mário! Ele não pensa com o coração. Apostaste no cavalo errado! – Contra-argumentou.

Não aposto em cavalos. Não sou mulher de gastar dinheiro nas corridas. Só quero casar, ter filhos, um marido, uma vida tranquila. Foi por isso que deixei de ser uma vestal.

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Mânio arqueou a sobrancelha e confessou-se:

Pois olha. Eu até trouxe um anel de noivado. Pensei em pedir-te em casamento, hoje. Mas depois da cena a que assisti, desisti da ideia. – Concluiu. – Fiz vida no exército. Nunca casei. Só contrairei matrimónio com a mulher certa. Tapei o rosto rubro com as mãos.

Mânio…

Querias as atenções de César? Do homem mais carimbado da cidade? Alegra-te! Recebeste uma pérola. Ele gosta de as distribuir às suas preferidas… Ele ofendia-me. Sabia disso e fazia de propósito, para me magoar.

Eu devolvi a joia a César. Não mereço o que dizes. – Defendi-me. Mânio guardou a aliança de ouro debaixo da toga e deu-me uma lição de moral:

Nem tudo o que seduz é bom e nem tudo o que é bom seduz. Fizeste a tua escolha. Tiveste o que merecias.

Aquilo era demais! Não me aguentei. Fixei-me na figura de Mânio e comecei a chorar. Foi quando César saiu da escuridão e avançou na nossa direção. A cavalgar nas pernas, sacou do gládio que escondia debaixo da toga. Ameaçou Mânio, com voz tonitruante.

César era vulcão em ebulição, tal a brutalidade com que projetava energia. Mas Mânio estava habituado à guerra e não vacilou. Pelo contrário, avançou contra ele, também de arma na mão.

Eu disse-te para a largares, Mânio!

Tu não me dás ordens e vais pagar pelo que lhe fizeste, canalha!

Emília é minha! Não é tua. Se não te afastas, mato-te! O meu coração sobressaltou-se.

Parem com isso, por favor. – Pedi-lhes, de tão nervosa.

César e Mânio odiavam-se. Mas não se esmurravam como no casamento de Pompeia! Esgrimiam os seus gládios, numa luta de morte. Lutavam entre si e podiam ferir-me, inadvertidamente, enquanto se balanceavam em movimento, o que me obrigou a recuar no espaço.

O combate corpo-a-corpo estava renhido. Os dois engalfinharam-se, exercendo pressão sobre ferro com punho de madeira. A violência era de cortar a respiração! O barulho assustava, pois eles eram guerreiros experimentados e as lâminas, chocavam e faziam eco, e cortavam-me o peito de expetativas defraudadas.

Vocês importam-se de gostar de mim e de parar de se odiarem um ao outro!

Honestamente, pensei que eles acabavam um com o outro naquele dia! Pela segunda vez, tentei separá-los. Não me contive mais e gritei-lhes de coração despedaçado:

Roma não pode ser uma eterna luta entre Rómulo e Remo. Parem! Estou tão farta de guerra civil, porque não estão vocês?

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Mânio e César hesitaram. Surpreendidos, entreolharam-se. Algo neles ficou suspenso. Aproveitei o hiato e caminhei para junto deles, que respiravam a compasso rápido, com as roupas desalinhadas e o suor a cair pelas testas, como a chuva que desfalecia do céu.

Coloquei a mão esquerda no braço de César e a direita no ombro de Mânio.

Aos poucos eles foram serenando e baixaram as armas. Fez-se silêncio. Estávamos os três ofegantes, insatisfeitos e estafados, num drama partilhado que não tinha graça nenhuma e que felizmente não constituía espetáculo para ninguém aplaudir.

Por favor, que ninguém morra aqui hoje. – Pedi. – Se não há amor e apenas dor, separemo-nos em paz e que cada um siga com a sua vida.

NOTAS FINAIS:

1 Baseado em Cícero, Bruto, 42. 2 Frase atribuída a Cícero. 3 Histórias baseadas em Plutarco, Vidas Paralelas, Catão o jovem, V-VI. 4 Baseado no pensamento de Cícero.