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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo XIII (73-71 a.C.) Maria Galito 2017

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PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo XIII

(73-71 a.C.)

Maria Galito

2017

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Capítulo XIII

681-683 AUC

A Guerra contra Espártaco foi uma imensa Saturnália.

A Guerra dos escravos eclodiu no ano em que César se candidatou a tribuno militar;

e que Crasso e Catilina foram absolvidos no julgamento contra as vestais.

César iniciou o seu cursus honorum no ano seguinte (em 682 AUC) e tentou cumprir promessas feitas em campanha eleitoral. Foi favorável à restauração da autoridade dos tribunos da plebe (perdida durante a ditadura!) e fez um discurso, ao mesmo tempo aclamado por populares e apupado pelos optimates, a favor da lei Plócia que apoiava o regresso de exilados políticos – tais como o irmão de Cinila e Sertório.

Sertório é homem valente e honrado que, em circunstâncias normais, já teria

chegado a cônsul! Ele não pode viver exilado para sempre. Merece recuperar os

seus direitos de cidadão. Defendeu César no Senado. – Contou-me Mamerco!

Sertório tem alguma hipótese de regressar à cidade? – Perguntei-lhe.

Nenhuma. Metelo Pio e Pompeu odeiam-no! Não o querem capturar vivo. A ideia é matá-lo, o quanto antes! Já conseguiram estripar-lhe a corsa branca, que ele tinha na Lusitânia, como ícone da resistência. Em breve, tudo acabará. Mamerco merecia uma bofetada, pela resposta que me deu!

E o cunhado de César?

Pouco importa se vive ou morre. Esse idiota não assusta um camelo! Aturar Mamerco era muito difícil (mesmo sabendo que ele substituía Metelo Pio!)

Não tenho visto a tal de Nisa. Ela já se foi embora? – Fiz questão de saber.

César ganhou a ação em tribunal. Foi uma grande vitória! A rainha da Bitínia, em troca, saldou-lhe as dívidas e encheu-o de prendas. – Troçou Mamerco. – Mas sim, ela já regressou a casa.

Melhor assim. – Repliquei, de olhos baixos.

César também está de partida, pois foi recrutado para o exército de Crasso.

Ele retorna à Ásia?

Não. Vai combater os escravos.

A que te referes? Não sei de nada.

Porque tens estado protegida em Roma! A sul tem sido um caos.

Como assim? Conta-me tudo. – Pedi, preocupada.

Enfrentamos a terceira guerra servil em seis décadas1! A diferença é que as duas primeiras se resumiram à Sicília, que é uma ilha! Mas esta revolta de gladiadores

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deflagrou em Cápua e ainda não foi contida. – Alertou com rosto sério. – É grave, Emília. Há milhares de escravos em fuga!

Eles andam a matar romanos, é isso?

Já formam um exército e vêm a caminho de Roma.

Os escravos tinham-se sublevado três vezes. Primeiro, no rescaldo das guerras púnicas. Os conquistadores romanos tinham vencido os cartagineses e subjugaram a população autóctone, ocupando as terras. Os lesados tentaram libertar-se da opressão sob a liderança de um profeta sírio e de um guerreiro cilício. Após três anos de lutas, o profeta foi levado a julgamento. O guerreiro pereceu em batalha. A ilha ficou devastada!

A segunda guerra servil rebentou porque Mário precisava recrutar legionários. Mas a Bitínia e as províncias italianas recusavam enviar-lhe homens, reclamando dos impostos exigidos pelos romanos. Foi então que o tio de César conseguiu, através de um decreto do Senado, libertar cerca de 800 escravos sicilianos e incorporá-los no exército com que lutou contra os cimbros. Para trás, ficou um rastilho de descontentamento na ilha, entre o que igualmente aspiravam à alforria e que se amotinaram, formando uma guerrilha de 20 000 legionários e 2000 cavaleiros. Os seus chefes eram um tocador de flauta e um pintor trácio, que foram derrotados após quatro anos de intensas lutas!

A Guerra de Espártaco eclodiu em 681 AUC e recebeu o nome do seu principal caudilho. O gladiador chegou a liderar 100 000 a 120 000 homens. O seu exército incluía mulheres e crianças, que o seguiam como povo errante à procura da liberdade!

Eu pouco me apercebi do que aconteceu, pelo que não sou a melhor fonte de informação sobre Espártaco. Só sei que a liderança de Amílcar foi fundamental para garantir a ordem na casa dos Emílios do Palatino, durante aqueles anos de medo. Os meus sobrinhos ainda eram relativamente jovens e inexperientes, para fazer face às dificuldades que ocorreriam nas suas propriedades; mais até do que na casa patriarcal em Roma, onde, estou em crer, não chegou a verificar-se qualquer incidente gravoso.

Foi Amílcar quem introduziu, no lar dos meus sobrinhos, o culto à virgem. Ele fazia romarias, com o pessoal da casa, ao templo da deusa Diana no Aventino, em cujo morro o grupo fazia a festa! Pela Consuália, o mordomo entregava oferendas à deusa dos estrangeiros, dos desfavorecidos e dos escravos. Depois trazia efígies de cera de abelha, da virgem da caça, para o Palatino e colocava-as no altar doméstico, onde todos oravam, em ação de graças.

Pela Saturnália as liberdades também eram maiores do que no tempo do meu pai e os castigos foram reduzidos ao mínimo. Portanto, quem residia no lar dos Emílios Lépidos convencia-se que vivia acima da média e que incorria em menos riscos, dentro daquelas paredes, do que na rua. Paulo e Lépido passaram muitas noites sem dormir, com medo que alguém os quisesse matar durante o sono. Mas sobreviveram ao desafio.

Nas propriedades a sul de Roma, Lépido alforriou um feitor por cada casa de pasto, incidindo a escolha entre os indivíduos mais fiéis e competentes. A meu pedido, Lépido também libertou Híspalis. Em consequência disso, ela casou com o capataz de Circeo e o

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casal teve dois filhos. Este núcleo familiar contribuiu para a paz na propriedade, baseada numa boa gestão das equipas de trabalho.

Em Fórmia, Mânio aplicou medidas semelhantes às de Lépido, mas também inovou no sistema. Ao invés de substituir os escravos que lhe fugiram por outros, optou por dar emprego aos aldeãos da região, solicitando, em troca, que o ajudassem a fiscalizar e a manter as propriedades em segurança. Não era modelo fácil de implementar mas era compensador do ponto de vista financeiro, enquanto projeto de longo prazo (pois reduzia o risco de revoltas futuras!) e produzia resultados satisfatórios. Sinceramente, conquistou o meu respeito. Eu sempre fui apologista de tratar bem as pessoas!

Paulo não adivinhava este resultado. Nunca confiou em políticas experimentais e adotou uma postura mais rígida, sob influência de Mamerco. Portanto, eles apertaram as medidas de segurança. Incentivaram os capatazes a aplicar corretivos violentos, não apenas aos mais insurretos, mas em geral. Em consequência, muitos escravos fugiram das terras e, muitos dos que ficaram, criaram problemas, sobretudo em Caieta!

Mamerco foi quem enfrentou maiores dificuldades. Aplicou punições terríveis! Sofreu fuga massiva de escravos (aos quais perdeu o rasto!). Os insurretos incendiaram-lhe os pastos e duas domus rusticas, com impacto negativo nas suas finanças. Ele viveu este período em sobressalto, com consequências desestabilizadoras para toda a família. O que foi mau para ele e para os pobres desgraçados que fugiram (cheios de esperança!) para junto de Espártaco e não encontraram uma solução para as suas vidas.

O excesso de disciplina foi, no meu entender, a principal causa da revolta dos escravos. Os indivíduos amotinavam-se para escapar aos maus tratos! Havia em Roma verdadeiros carrascos que exploravam as pessoas, sem noção de limites no que toca a castigos! Tanto que a revolta de Espártaco deflagrou em Cápua, mais precisamente numa escola de gladiadores, onde havia combates de morte.

A tradição, herdada dos troianos, admitia pagar a gladiadores (se fossem libertos!) ou aos seus donos (se fossem escravos!) para combaterem, durante um funeral, em honra de um pai, de um tio, de um amigo da família, sobretudo se este tivesse feito carreira nas armas. Na assistência, portanto, havia mulheres e crianças e, no geral, vertia-se pouco sangue. Só mais recentemente se multiplicaram os combates públicos, enquanto encenações para multidões sequiosas de entretenimento violento!

A escola de Cápua era famosa, enquanto fornecedora deste tipo de espetáculo deplorável de morte! Os escravos sabiam que tinham poucas hipóteses de sobrevivência e mataram o dono do estabelecimento, por o odiarem! Ao todo seriam uns duzentos gladiadores. Setenta e oito organizaram um plano de fuga. O bando original incluía uma profetisa de Dionísio e três caudilhos: dois gauleses e um trácio. Acabaram por formar um exército liderado por Espártaco, que tivera instrução militar na Trácia. O homem tinha cerca de trinta anos, estava no fulgor da idade!

O senado, a princípio, nem ligou à embaixada de lesados, da região de Cápua, envida a Roma para apresentar queixas contra pilhagens e furtos a residências. Não era caso raro.

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Havia problemas considerados mais preocupantes, a necessitar de resolução rápida e o incidente passou ao lado, pois foi considerado menor.

Os recursos não eram ilimitados e o senado agiu proporcionalmente, levando em consideração o tipo de ameaça. Mas os escravos liderados por Espártaco superaram todas as expetativas – até dos próprios! Até que Roma nomeou um pretor para combater os insurretos de Espártaco.

O pretor chegou a Cápua com cerca de três mil milicianos. Estava convencido que os seus legionários tratariam rapidamente do assunto, bastando, para tal, cercar os homens de Espártaco, antes de os capturar. Bloqueou a estrada do monte Vesúvio, pelo lado da descida. Deu ordens para construir uma vala e limitou-se a esperar pelos escravos no sopé da montanha. Mas estes desceram a montanha, com cordas de videiras entrelaçadas, pelo lado oposto ao exército e atacaram-no de surpresa.

A Batalha do Monte Vesúvio foi um massacre e as vítimas foram quase todas romanas! O pretor só escapou com vida porque foi protegido pelos seus centuriões. Os insurgentes recolheram as armas abandonadas pelos legionários.

Ainda em 681 AUC, o Senado nomeou um segundo pretor para liderar duas legiões contra Espártaco, que já seguia, com os seus homens, para norte. A estratégia consistia em perseguir os fugitivos, mas acabou por ser o contrário.

Talvez pela força dos números, pois o gladiador chefiava agora milhares de fugitivos! Numericamente, a sua força era impressionante e continuava a aumentar! Mas os escravos não eram só gladiadores. A maioria não tinha treino militar. Nas hostes havia muitas mulheres e crianças, que se armavam de paus e picaretas na esperança de sobreviver, à espera de um milagre que os protegesse, pois tinham arriscado tudo ao fugir dos donos. Não tinham para onde voltar!

Espártaco queria chegar aos Alpes! Se alcançasse o objetivo, a multidão podia cruzar a fronteira romana a Norte e montar acampamento em território bárbaro. A partir daí, os indivíduos que quisessem poderiam tentar regressar à sua terra natal. A ideia não era má. Mas a sua exequibilidade era contestada. Começaram a surgir desentendimentos internos e os insurretos dividiram-se em dois grupos, o menor dos quais, com cerca de trinta mil seguidores, que até obteve algumas vitórias, antes de capitular.

Os cônsules de 682 AUC uniram-se contra Espártaco, que continuava vivo e à frente do seu exército misto. Eles não conseguiram vencê-lo.

Posto isto, o Senado deu ordens de regresso ao governador da Gália Cisalpina, um dos cônsules do ano anterior. O exército proconsular teria aproximadamente dez mil homens e impunha respeito, mas foi igualmente derrotado.

Mânio regressou, enfim, a Roma. Foi recebido, no Palatino, pelo irmão e ambos defenderam, no senado, que o comando da guerra contra Espártaco devia ser entregue a Crasso. Desde o início que o banqueiro se mostrara disponível para levar a efeito a tarefa,

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mas só agora recebia aval nesse sentido. César foi integrado no seu exército enquanto tribuno militar.

O Senado hesitara em entregar um exército de seis legiões ao homem mais rico e avarento de Roma. Não sei porquê. Quem governava era a maioria optimate e o banqueiro não era experiente nas lides militares. Fora um dos principais legados de Sila e a ele se devia a vitória na batalha de Porta Colina. Portanto, ele tinha currículo capaz de neutralizar a ameaça de Espártaco. Talvez a elite temesse um novo ditador. Não é de descurar essa hipótese, pois Crasso era homem de quero, posso e mando!

Seja como for, era claramente competente. Ao contrário dos seus predecessores, não se dedicou a atacar o adversário, mas a cansá-lo. Ao invés de se focar nos números, na quantidade de inimigos, testou a sua capacidade de resistência, pois ele sabia que o trácio arrastava consigo muitas mulheres e crianças.

O problema é que o Senado tinha pressa em resolver o problema e aliciou um dos legados de Crasso a desafiar as ordens do chefe – que proibira expressamente os seus homens de entrarem em escaramuças com Espártaco, para não lhe dar qualquer oportunidade de se reequipar com material de guerra romano. Mas o jovem atacou os escravos com duas legiões, na Romanha e foi derrotado. Os insurretos recolheram as armas dos mortos e ganharam novo fôlego na sua quimera!

Crasso não perdoou a desobediência. Os legionários que regressaram ao acampamento, de rabinho entre as pernas, foram obrigados a arranjar fiadores (pessoas que se responsabilizassem por eles e garantissem o seu melhor serviço!). O que era inaudito!

O comandante também aplicou a dízima. Um tipo de disciplina em desuso, ou raramente aplicada nos exércitos romanos, por ser considerada ignominiosa. Ele ordenou o sacrifício de um desertor em cada dez. Um grupo de quinhentos foi dividido em cinquenta subgrupos de dez. Cada equipa sorteou um homem que deveria ser morto pelos colegas. O referido método disciplinar causou horror entre os legionários e arrepiou a opinião pública. Mas foi eficaz. Os legionários nunca mais desafiaram as ordens de Crasso!

Entretanto, Espártaco seguia pela região da Lucânia em direção ao mar. Tentou negociar o embarque, para a Sicília, de dois mil fugitivos. O que constituiu um duplo erro. Primeiro, porque nada garantia que os escravos estivessem a salvo na ilha. Segundo, ele pagou antecipadamente pelo serviço. Os barqueiros foram-se embora com os artefactos (roubados nas vilas romanas!) e o líder ficou sem meios para pagar outro tipo de investida.

A traição dos piratas teve impacto emocional sobre o caudilho, pois começou a duvidar da sua capacidade para salvar os que confiavam nele a sua liberdade.

Crasso foi atrás de Espártaco, em direção a Régio, com tática de combate regular mas de baixa intensidade. Acumulava pequenas vitórias, sem grande aparato, mas obtinha o grande objetivo de desgastar o inimigo. Espártaco tinha dificuldade em gerir o seu mar de gente naquelas circunstâncias.

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Tal como água mole em pedra dura, tanto bate até que fura, o trácio deu mostras de atingir o limite das suas forças individuais e coletivas. Foi então que Crasso montou cerco aos escravos. Os pobres desgraçados ainda resistiram, mas a fome alastrava! Prestes a capitular, o caudilho fez uma oferta de paz a Crasso.

A intenção de Espártaco era salvar a vida aos milhares de fugitivos que tinha a seu cargo. Mas estava a negociar com um veterano das guerras de Sila e este não teve qualquer misericórdia de uma demonstração de fraqueza! O caudilho perdeu a confiança de cerca de um terço dos seus aliados, que tentaram a sorte sob comando alternativo. Esta cisão foi fatal como o destino!

Houve mais umas escaramuças pelo meio, mas Crasso capturou os escravos e venceu a guerra. – Contou-me Lépido, no dia em que visitei os meus sobrinhos.

Portanto, podemos respirar de alívio. Roma não vai ser invadida por escravos e esta instabilidade vai por fim acabar. – Rematou Paulo, que estava verdadeiramente aliviado com o desfecho daquela história.

Do ponto de vista político, porém, a situação não era assim tão segura. É que o Senado dera ordens a Pompeu para sair da Ibéria e marchar em direção a Itália, para apoiar Crasso na luta contra os escravos. O carniceiro chegou ao palco de guerra numa altura em que a esta estava praticamente ganha. O que não o impediu de reclamar vitória.

Pompeu combateu um bando de fugitivos a Norte e agora reivindica os louros da guerra. É absurdo! Na casa patriarcal, ninguém nutria respeito pelo traidor do meu irmão!

Pompeu tem ego insuflado! – Reclamou Paulo.

Ele pensa que venceu todas as guerras em que participou. Mas é falso! Quem derrotou Sertório foi Metelo Pio e a guerra contra Espártaco foi ganha por Crasso na batalha do rio Silário!

Mais importante do que isso! O Senado respirou de alívio quando Crasso e Pompeu abdicaram do poder proconsular. Eles entraram nas muralhas à civil. No décimo mês de 683 AUC, o pontífice máximo também estava de regresso a Roma. O senado concedeu a Pompeu e a Metelo Pio um triunfo conjunto e os dois tiveram de partilhar os aplausos do povo durante o desfile pelas ruas da cidade. Crasso teve direito a uma ovação.

Crasso matou Espártaco ou ele conseguiu fugir? – Perguntei.

O corpo do gladiador nunca foi encontrado. – Avisou Lépido. Paulo corrigiu a versão do irmão, pois não engolia essa versão e denunciou-a:

O que estás a dizer não faz sentido! Crasso garantiu ao Senado que Espártaco tinha caído em combate, na batalha do rio Silário.

Pode ter mentido. Não seria a primeira vez. – Atirou-lhe o irmão, ao desafio.

Nem pensar! Espártaco podia reaparecer, mais tarde e criar embaraços a Crasso. Ouve-me! Crasso foi legado de Sila. Tenho a certeza que deu prioridade à captura do gladiador e que mandou executá-lo assim que teve oportunidade. – Admitiu

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Paulo. – César deve ter-te contado a verdade. Ele era tribuno militar de Crasso e enviava-te, regularmente, mensagens por correio a galope. O que te dizia ele? Lépido resistia em dizer a verdade e olhava para todos os lados.

César não refere pormenores nas mensagens, lamento. Paulo não percebia a lógica de César. Eu adivinhei-lhe os pensamentos:

Espártaco continua a ser perigoso? Depois de morto, virou mártir para muita gente! Os escravos não esquecem o caudilho. Os mais afoitos contam lendas sobre o herói, filho de um deus, qual Héracles dos desfavorecidos. Se as pessoas soubessem onde ele tinha morrido, se houvesse túmulo onde carpir as mágoas, eram bem capazes de lhe fazer romarias com flores e cânticos… Lépido confirmou as minhas suspeitas e advogou, para surpresa do irmão:

A tia tem razão. Ninguém pode saber onde ou como ele morreu.

Tu não me digas que Espártaco foi crucificado com os outros escravos? – Equacionou Paulo, como hipótese. Lépido não confirmou, mas também não o negou. Eu concentrei-me na ideia geral:

Crasso mandou crucificar os fugitivos? Todos? Incluindo mulheres e crianças? – Perguntei, repugnada. Lépido não me respondeu, parecia incomodado com a perspetiva. Paulo disse:

Eu sei que a tia é boazinha e gosta de rogar pelos pobres e desfavorecidos. Mas se a nossa cidade tivesse sido invadida por milhares de escravos vingativos, a quererem matar e torturar os romanos, eu queria ver como era!

Não fales assim com a tia. Mais respeito! – Exigiu Lépido. Paulo retratou-se. Enfim, mais ou menos:

Peço desculpa, tia. Não me interprete mal. Mas se Espártaco foi pregado numa das muitas cruzes, entre ladrões, rebeldes e guerrilheiros como ele, eu sinto-me mais aliviado, agora que ele está morto.

Paulo e Lépido não levaram em devida consideração o horror humano das cruzes, que o vencedor de Espártaco mandou erguer ao longo da via Ápia, a nossa maior estrada, que ligava precisamente Cápua a Roma!

A intenção do vencedor de Espártaco era chocar as pessoas! Era meter-lhes medo. Sobretudo aos escravos, para que se desmaginassem de um novo intento. Justificava o seu ato, por ter sido a terceira guerra servil em sessenta anos. Mas ele também queria deixar um legado na mente das pessoas, do qual ninguém se esquecesse. E conseguiu-o.

Foi uma barbaridade completa! Eram tantas as cruzes, içadas durante dias a fio, que o padecimento daquela gente não parecia ter fim! Os escravos gemiam e contorciam-se de manhã à noite! Morriam lentamente. Alguns levavam dias pregados à madeira, aos gritos. Quem presenciou, mais de perto, o drama dos vencidos considerou-o arrepiante! Mas não deixou de assistir. Esse tipo de comportamento afligia-me! Como é que o meu povo se comprazia com tanta dor? Era horrível!

O martírio dos condenados terá começado pelos idos de Marte. Lembro-me por causa do meu aniversário. Mas todo o processo prolongou-se até ao mês de Vénus e ainda havia

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romarias aos mortos quatro meses depois. Crasso montara aquele espetáculo de horror para efeitos propagandísticos, para que durasse mais do que o dia de triunfo que o senado lhe concedera.

Amílcar não compareceu às procissões de 683 AUC. Eu só soube disso porque era ele quem me recebia na casa patriarcal. Estranhei ser recebida, no vestíbulo, por um mordomo mais jovem. Perguntei pelo cartaginês. Qual não foi o meu espanto quando me disseram que estava de cama. Em tantos anos, eu nunca o vira doente!

Fui ter com Amílcar, ao cubículo onde descansava. Habituada ao seu porte direito, alto e forte, fiquei espantada ao descobri-lo deitado, sozinho, com cara de velhote. Recordava-o em miúda, a levar-me em ombros, depois de eu ter lavado a cara da Julinha com óleos, e vieram-me lágrimas aos olhos.

Fora Amílcar a primeira pessoa que eu vi ao subir ao Palatino depois de me tornar sacerdotisa. Ele mantivera a casa de pé durante as loucuras do meu irmão. Cuidara da Ana, quando ela era jovem. Salvara Híspalis do Lupercal. Velara pelos meus sobrinhos durante as guerras. Ele estava sempre disponível. Tinha gosto em ajudar-nos. Era carinhoso e alguém em quem eu confiava. Senti uma tristeza imensa quando me apercebi que ele estava a morrer.

Os meus sobrinhos só chegaram à noite, mas vieram ter comigo assim que a mulher de Paulo lhes disse onde eu estava, pois eu não arredava pé daquele cubículo já cheio de pessoas. Nesse dia, Paulo e Lépido perceberam que a qualidade de um homem não se media pelo estatuto, mas pelo caráter. Eu gostava muito do cartaginês e chorei horrores quando ele se despediu de mim com um sorriso terno.

Não chore por mim, vestal Emília. A morte faz parte do ciclo da vida e eu vou finalmente ter com os meus ancestrais. – Disse-me ao partir. – Obrigada por ter sido sempre boa para mim.

Eu é que agradeço, Amílcar, o que fez por nós. – Disse, pegando-lhe nas mãos.

Amílcar não morreu sozinho, mas rodeado pelos amigos; incluindo a Ana, que veio ter comigo, na companhia do marido. Os meus sobrinhos estiveram no velório, mas não participaram no funeral. Eu fiz questão de acompanhar o pessoal doméstico até à última morada de um homem que morreu livre e feliz, rodeado pelos que lhe eram mais próximos.

As cinzas de Amílcar foram, por minha vontade e com autorização de Lépido, enterradas perto do túmulo da nossa família. Foi também ali plantada uma tamareira, que cresceu para se tornar uma árvore grande e forte como ele. Ainda hoje há quem, ao passar pela estrada, repouse à sua sombra e conte a história das lágrimas da virgem que ali chorou pelo cartaginês.

O drama alastrava. Roma encheu-se de mendigos outra vez, com as pessoas que perderam tudo durante as pilhagens. Havia feridos a dormir nas ruas. Pobres pediam esmola. A miséria e a agitação alastravam. Era terrível!

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Pales voltou a arrebitar as orelhas quando o fui buscar, com os alforges cheios de esperança, para darmos alento aos mais necessitados. Ele prontificou-se logo, a sair do santuário sagrado de Vesta, na companhia do lictor e os dois ajudaram-me a reiniciar a distribuição de víveres, pois já não era apenas pão.

Eurísaces, o Joaquim e a Ana, e respetivos familiares e amigos contribuíram no que puderam. Outros se envolveram no processo. Alguns até saíram do conforto das muralhas para dar assistência aos que rodeavam as cruzes e ajudaram as autoridades a recolher os corpos e a dar-lhes sepultura. Era uma questão humanitária e de saúde pública.

O número de voluntários aumentou e o gesto solidário transformou-se num movimento de cidadãos. Havia elementos de todas as classes sociais a participar na campanha de recolha e distribuição de víveres.

És o nosso farol de Alexandria! – Disse-me Mânio, no dia em que me encontrou no fórum. – Espalhas luz à tua volta, ajudando o povo que tenta vencer a escuridão da fome, da peste e da incerteza.

Eu preferia ter bons líderes e paz social.

Tê-lo-ás no dia em que eu for cônsul. – Prometeu. Lembrei-me de lhe agradecer algo que estava em falta:

Os meus sobrinhos disseram-me que mandaste fazer o busto de Concórdia, que temos na Basílica Emília, à minha imagem e eu não sei se cheguei a agradecer-te por isso.

Eu sou um Emílio, também me compete velar pelo edifício. Engoli em seco, encabulada.

Sim, claro, desculpa… Ele era homem sério e raramente sorria, mas nesse dia deu-se a exceção à regra:

Roma precisa de uma Emília Concórdia, como tu.

Mânio enchia-me de elogios e eu não os calava. Por isso, a deusa castigou-me. Enquanto distribuía pão, fui atacada por arruaceiros das classes ricas; por um bando de adolescentes mal-intencionados que, por terem as costas quentes de pais poderosos, achavam piada a fazer mal aos vulneráveis e se riam às custas dos mais fracos.

Eurísaces levou uma traulitada na cabeça, antes de fugir. Pales deu às patas, com tal velocidade e empenho, e orelhas a abanar, que me livrou de ser atingida. Mas foi ferido pelos desordeiros. Apeei-me e puxei pelas rédeas do jumento ensanguentado, enquanto Mânio ajudava o lictor a livrar-se dos desordeiros com golpes de espada!

A via-sacra, já frenética de gente por causa das festas da Consuália, mais ficou com o rodopio! Mas o guarda lá cumpriu a sua função e escoltou-me de regresso ao santuário.

Quando procurei, nos alforges de Pales, pelo unguento que costumava usar para lhe tratar as feridas, reparei que não tinha como curá-lo. Foi então que Mânio se disponibilizou para resolver o problema e eu agradeci-lhe a gentileza. Ainda aguardei por ele junto ao portão do santuário, mas como ele se demorava e o bichinho parecia tonto, entrei no espaço sagrado de Vesta e despedi-me do lictor.

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Pales caminhava sem forças, por causa do golpe que sofrera. Fonteia espreitou-nos do templo e veio ter connosco para se inteirar do que passava. Tratei de explicar-lhe, em poucas palavras, que havíamos sido atacados por brigões. A minha intenção era deitar o animal nos degraus do templo, para estar mais próximo de nós, enquanto estivesse de convalescença. Popília, que perscrutava a nossa chegada, refutou tal hipótese. Convenceu a sumo-sacerdotisa a obrigar-me a levar o jumento sagrado para a sua cabana – a qual ficava longe, para ser que mal se endireitava em patas! Mas lá foi ele, aos trochos mochos.

Pales fez o caminho até ao lucus e deitou-se debaixo da árvore cabeluda. Ele não queria beber e recusava comida; e não teria sobrevivido se algo de muito estranho não tivesse acontecido.

Mânio apareceu-nos de repente! No bosque sagrado. É isso mesmo! Ele veio ter comigo, fazendo uso de uma entrada secreta, que teria sido trilhada quarenta anos pela mãe dele, a vestal Emiliana e da qual ele tinha conhecimento, sabe-se lá como!

Tu não podes estar aqui. – Avisei, num murmuro, para ninguém nos ouvir.

Deixa-me salvar o animal sagrado e vou-me embora.

Pales enrolou-se nas patinhas e baixou as orelhas, antes de ficar inconsciente. Mânio começou a coser-lhe as feridas com uma agulha ligeiramente queimada. Só depois aplicou uma untura, tapada por folhas muito verdes, de cheiro intenso. O irmão de Mamerco dominava as artes médicas, pelo menos as essenciais à sobrevivência em ambiente militar.

Agora é rezar para que ele não tenha infeções e arrebite! – Concluiu Mânio, enquanto lavava as mãos de forma improvisada.

Agradeci-lhe a dedicação. Ele despediu-se de mim e eu espreitei a entrada secreta, embalada pela curiosidade. Ainda me distraía a inspecionar o muro, quando Mânio se virou para mim e perguntou:

Queres que eu volte? Apanhou-me de surpresa. Olhei para ele. Mas não consegui ler-lhe o rosto.

Como assim? – Hesitei. – Para tratar de Pales?

Não, para cuidar de ti. – Foi a sua declaração de intenções. Engoli em seco, perplexa com proposta tão direta.

Eu sou uma vestal. – Relembrei-lhe, sem saber se aquilo era uma armadilha. Aquele não era um ato irrefletido de Mânio e tratou de explicá-lo:

Disseste ao meu irmão que ninguém foge às suas origens e ao seu destino, que me valorizas mais agora que conheces a minha história. Não o esqueci. Desde que Mamerco o referiu casualmente, que penso nisso todos os dias! – Exclamou. O meu coração acelerou. Pigarreei de nervosismo:

A ideia era incentivar-te a seguir em frente com a tua vida. – Argumentei.

Precisamente. Por isso estou aqui.

Não estou a perceber. – Duvidei. A sua mensagem era clara?

Se aceitares a minha proteção, de hoje em diante, garantirei a tua segurança. Vou candidatar-me a edil e tenho planos de habitar em Roma. Conheço todos os

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pontífices. Sou amigo de Metelo Pio e de quase todos os Cecílios, que não se virarão contra mim, em caso de dificuldade. Nem a minha presença nas redondezas levantará suspeitas. Portanto, não tens a temer. – Advogou, de rosto sério e compenetrado.

A sua oferta era melhor do que qualquer proposta que César me tivesse feito ao longo dos anos e nós já não nos falávamos! Mânio era um homem adulto, com presença de espírito e noção de responsabilidade. Deveria eu escutá-lo?

Podes ver-me no fórum, quando quiseres, Mânio. Eu saio de vez em quando à rua, para as missões solidárias e tu hoje já me salvaste dos arruaceiros, obrigada.

Mânio era um guerreiro de quarenta e três anos. Eu tinha feito trinta. Ele sabia exatamente o que queria. Eu nem por isso. Ele estava habituado a lutar em batalhas mas, detrás daquela máscara de conservadorismo, envolta em camadas de disciplina férrea, havia um homem apaixonado:

Eu gosto de ti, Emília – Confessou, como quem admite uma derrota. Ele lutara contra os seus sentimentos e deixara-se vencer por eles. Não devia ser fácil, para Mânio, lidar com aquela novidade: a de sentir-se vulnerável.

César já não era o meu campeão. Ele despedira-se de mim de forma abrupta e tinha outras prioridades na vida, naquele momento. Conseguiria eu abrir o coração a outro homem? Não era apenas uma questão de sentimentos, mas de segurança também. Mânio desconhecia o meu passado com César. Se o descobrisse, podia virar-se contra mim. Portanto, os riscos eram elevados e não deveriam ser descurados!

Desculpa, mas apanhaste-me de surpresa. Não sei o que dizer-te. Ainda me faltam vários de sacerdócio. Mas, se quiseres, podes aguardar por mim. Mânio inspirou com força, para se recompor:

A ideia original era esperar que abdicasses. Mas nada me garante que queiras sair do templo e eu gostava de convencer-te a partilhar a vida comigo. Ele falava pouco, mas o seu discurso era incisivo!

Eu saio assim que cumprir trinta anos de sacerdócio. – Garanti.

Mas ainda te faltam sete anos e eu… não consigo esperar mais! – Exclamou, pela primeira vez, com timbre inquieto. Ele, até fisicamente, mal se continha!

Mânio, tu vais candidatar-te a cargos públicos: a edil, a cônsul! Tens a carreira política à tua frente. Mas, se te descobrem comigo, matam-te! A mim, enterram-me viva! Que planeias fazer? Visitar-me no bosque sagrado? Não, não… Ele pegou nas minhas mãos:

Pensa sobre a minha proposta. Voltarei dentro de dois dias, pela primeira hora da noite. Se não estiveres aqui, concluirei que não me queres e tudo ficará esquecido, juro.

Mânio partiu. Fiquei sozinha, entregue às estrelas! Refleti bastante sobre a sua oferta. A tendência inicial foi recusá-la liminarmente. Porquê? Eu nunca refletira nos riscos quando a opção era César.

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Eu era uma tradicionalista. Julgava-me mulher de um homem só. Deixara-me seduzir por César e apenas nele pensava. Mas a situação tinha-se complicado bastante quando ele casara e já era pai de uma filha. Ao contrário de Mânio que era solteiro sem filhos. O primeiro nunca permanecia muito tempo na cidade, o segundo tinha planos de assentar. O de Subura fora combater na guerra contra os escravos, enquanto tribuno militar e estava em início de carreira. Mânio já fora questor e candidatava-se a edil, ocupando um lugar confortável no cursus honorum.

César defendera publicamente os interesses da rainha da Bitínia e, ultimamente, tinha fama de seduzir esposas dos adversários para se vingar deles; pelo que jogava num tabuleiro ao mesmo tempo perigoso e vil. Seria verdade? Podia ser um rumor. Conhecia eu o homem frio em que ele se transformara? E os votos que havíamos trocado no altar doméstico? Ele tinha-os esquecido.

Podia Mânio substituir César no meu coração? O futuro edil era homem discreto. Os dois tinham pouco em comum (para além dos nomes configurarem na lista de patrícios!).

O optimate era atraente, mas não necessariamente bonito. Era pouco mais alto do que eu. Era corpulento, forte e corajoso. Pensava antes de agir. De caráter metódico, escolhia as batalhas, não se metia em todas! Mânio era educado, mas estava habituado aos rigores da carreira militar. No exército era considerado um homem formal, distante e cumpridor da hierarquia, honesto, íntegro e justo. Falava num tom baixo e firme, que impunha respeito, pois terceiros tendiam a calar-se para ouvir o que ele tinha para dizer.

César era um mariano, ouvia-se a léguas! De rosto atraente, chamava a atenção com os seus olhos penetrantes de águia-real! Em criança parecia um boneco louro. Em adulto era um galanteador de cabelo castanho ralo e já penteava o cabelo para a testa com o dedo. Era alto e atlético, mas delgado. Carismático na maneira de falar e de agir, no campo de batalha podia ser agressivo e obstinado. Na política era ambicioso. Atirava-se de cabeça aos objetivos e estes tinham de ser religiosamente cumpridos.

César era individualista. Um líder que dizia comer sentado no chão, com os legionários; e que corria atrás deles, no palco de guerra, para os incentivar de espada na mão. Ouvi dizer que não impunha grande disciplina no exército, embora exigisse o cumprimento rigoroso de duas ou três premissas.

César era arrebatado, quando estava comigo. Fazia-me sentir especial num dia. Nos demais, o centro das atenções era ele. Era homem sofisticado. Ria-se do meu humor lépido, mas dissertava sobre a sua vida, os seus problemas, as suas aventuras e estratégias políticas. Ele não indagava sobre o meu dia, sobre o que eu pensava ou sentia. Era uma relação de Júlio com César, em que eu servia de intermediário entre os dois. Ele precisava da minha companhia para conversar e descomprimir após um dia de trabalho.

Mânio sempre seguira as regras. César punha-as em causa sempre que não lhe servissem. O primeiro era constante. O segundo era volúvel, pois seguira carreira religiosa, depois fizera sucesso no exército, antes de tentar a advocacia, também tinha queda para a política, até gostava de escrever e de aventurar-se na literatura e, já agora, tinha opinião sobre

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filosofia e arte. Dispersava-se! O irmão de Mamerco só se metia na política porque, em sociedade, lhe competia, enquanto patrício, terminar o cursus honorum.

A vantagem de Mânio era a sua maturidade. César agia muito por impulso e sem medir a meios, com muita graça e engenho e a cara mais deslavada do mundo, mas podia ferir! César era o meu passado. Podia ser Mânio o meu futuro? Tinha de decidir-me!

Será que eu gostava do meu novo pretendente? Oferecia-me proteção, o que me agradava. Com César eu sempre vivera em sobressalto. A paixão não me dominava ao pensar em Mânio, mas o afeto poderia crescer com a convivência e eu sentia-me sozinha.

Vacilei na forma de proceder até ao derradeiro momento. Eu devia ser prudente. Mas não fui. Avancei para o bosque sagrado, naquela noite escura e sem lamparina de azeite, para não ser detetada, com o coração aos pulos. Passei pela cabana de Pales e suspirei ao chegar ao destino, pois já vinha atrasada.

Ninguém me esperava. Teria sido uma cilada? Aproximei-me do muro e encostei a testa à parede, com as mãos agarradas às tranças. Sentia-me profundamente triste, quando devia estar aliviada. No fundo, eu estava vulnerável, carente e desorientada. Confiara, pela segunda vez, no homem errado?

Foi então que duas mãos me envolveram com uma capa escura. Era Mânio! Encaixei-me no seu abraço e deixei-me envolver nos seus carinhos.

Eu nunca devia ter entrado para o templo de Vesta. – Queixei-me no seu peito. – Eu sempre quis casar, ter filhos, uma família. O que estou eu a fazer neste bosque sagrado, Mânio?

Dar-te-ei tudo o que tu quiseres, se me aceitares. – Prometeu, com voz séria. Ele transmitia-me segurança:

Chegaste agora?

Vim muito antes da hora combinada, minha querida. – Reconheceu.

Mânio estava ansioso, com o coração a bater como tambor em dia de festa! A sua calma era apenas aparente. Ele esperara além da conta, sem se desmotivar a partir, apesar do meu atraso. Explicou-o mais tarde. Por ora só queria beijar-me e escondeu-nos por baixo do manto, para que nem a lua nos espreitasse.

Com César eu nunca sabia quando seria a próxima vez. Estava acostumada a deitar o coração à larga, a não ter expetativas sobre o dia seguinte. Mas Mânio era homem de rotinas. Mais uma vez, nada tinha a ver com César!

Mânio era homem à moda antiga. Não usava água de cheiro nem joias. Não se ginasticava em ginásios, nem pedia massagens ao corpo. Ele corria na rua à chuva e ao vento. Os seus músculos deviam-se exclusivamente ao trabalho ou à guerra. Não era sedutor. Nunca se preocupara em aprender a agradar a uma mulher. Fazia tudo por instinto. Em contrapartida, era fiel e dedicado. Preocupava-se com o meu bem-estar. Raramente falava de si, de tão acostumado a ser reservado nos sentimentos ou pensamentos mais íntimos.

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A informação brotava dele a custo! Tive de puxar por ele, para que me confessasse o seu desconforto em fazer campanha para edil curul. Ganhou as eleições por ser um Emílio Lépido, irmão de um pontífice ex-cônsul, cunhado da filha de Sila e apoiado pelos Cecílios, fatores importantes num Senado dominado pelos optimates. Mas também venceu por mérito, pois sabia gerir equipas de empreiteiros e engenheiros; e dispunha de ouro para gastar em jogos que pudessem agradar e entreter o povo, pois ele era bastado e não pobre e endividado como César!

O novo edil era contido nos galanteios. Poucas vezes reconhecia gostar de mim ou gabava a minha beleza. Mas era afetuoso através de gestos, de contrapartidas e nunca me faltava quando eu mais precisava.

Tens frio? – Perguntava ele, convidando-me para dentro do seu abraço protetor.

Ele era um conservador e geria emoções conflituantes, por isso, não filosofava sobre a nossa relação. Mânio falava pouco, mas sentia muito, atordoado por sensações intensas, que mal compreendia, num coração espartilhado, habituado a receber pouco.

Não falávamos da sua mãe vestal, nem do pai incógnito. Mas o passado causava-lhe desconforto! Talvez fosse uma das razões porque sentia tanta atração por mim, como se assim, indiretamente, ele se aproximasse um pouco das suas origens.

Passava a mão pelo meu rosto, como se não acreditasse que a minha presença fosse real. Perscrutava-me como se eu fosse frágil, como uma flor, ou estivesse num altar. O que me assustava, pois temia que ele me colocasse num pedestal do qual eu pudesse cair.

Venho ter contigo dentro de sete dias, pois tenho de sair de Roma. Mas volto a tempo para estar contigo, não te preocupes. – Asseverou no dia em que finalmente descontraiu o rosto na minha presença. Foi uma conquista ganha a pulso.

Eu tinha calma com ele, pois ele não me fazia falsas promessas, nem falhava no acordado. Explicava-me as suas rotinas, para me manter tranquila e segura. Era companheiro que honrava os compromissos e evitava colocar-me em perigo. Mas faltava-lhe humor. Nunca se ria. Levava tudo muito a sério. O que tinha de bom e de mau.

Tu não tens cócegas? – Perguntei-lhe, desiludida, pois eu tinha e muitas!

Se me mentalizar nesse sentido, não tenho. Quem manda é a mente, não o corpo.

Se controlas assim tanto os teus sentimentos, porque não esperaste que eu terminasse o sacerdócio? – Desafiei.

Eu consigo controlar as cócegas, mas não o meu amor por ti.

Suspirei nos seus braços e ele beijou-me.

NOTAS FINAIS:

1 Revoltas de Escravos: I (135-132 a.C.), II (104-100 a.C.) e III (Guerra contra Espártaco: 73-71 a.C.).