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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS CESA MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE - MAPPS SÂMEA MOREIRA MESQUITA ALVES CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A INTERGERACIONALIDADE NA RELAÇÃO AVÓS E NETOS FORTALEZA - CE Abril / 2013

CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS – CESA MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS

E SOCIEDADE - MAPPS

SÂMEA MOREIRA MESQUITA ALVES

CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ?

UMA ANÁLISE SOBRE A

INTERGERACIONALIDADE

NA RELAÇÃO AVÓS E NETOS

FORTALEZA - CE

Abril / 2013

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SÂMEA MOREIRA MESQUITA ALVES

CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ?

UMA ANÁLISE SOBRE A INTERGERACIONALIDADE

NA RELAÇÃO AVÓS E NETOS

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do grau de mestre em Políticas Públicas e Sociedade.

Orientadora: Profa. Dra. Maria do Socorro Ferreira Osterne

FORTALEZA - CE

Abril / 2013

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Estadual do Ceará

Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho

Bibliotecário (a) Leila Cavalcante Sátiro – CRB-3 / 544

A948c Alves, Sâmea Moreira Mesquita.

Cuidar ou ser responsável? Uma análise sobre a intergeracionalidade na relação avós e netos / Sâmea Moreira Mesquita Alves. — 2013.

CD-ROM 188f. : il. (algumas color.) ; 4 ¾ pol. ―CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho

acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slin (19 x 14 cm x 7 mm)‖.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Ceará, Centro de Estudos Sociais Aplicados, Curso de Mestrado Acadêmico em Política e Sociedade, Fortaleza, 2013.

Área de Concentração: Políticas Públicas. Orientação: Profª. Drª. Maria do Socorro Ferreira Osterne.

1. Velhice. 2. Relações internacionais. 3. Avosidade. 4. Família. I. Título.

CDD:711.4

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AGRADECIMENTOS

Em especial ao meu Deus, por me dar forças, iluminar e abençoar

constantemente a trajetória da minha vida, mesmo nos momentos mais difíceis desta

caminhada, confirmando sua presença, cuidado e planos em meu viver. Deus é fiel !

Aos meus pais, Anastácio Moreira e Vera Lúcia (em memória), pelo amor,

educação, zelo e incentivos para eu ir em frente e lutar pelos meus sonhos a fim de

torná-los realidade. E, especialmente à você mãe querida que tanto apoiou meu

crescimento pessoal e profissional. A profissão que hoje exerço dedico a você.

Aos meus familiares, em especial a minha avó Dourinha, que me acolheu com

todo o seu carinho e preocupação, contribuindo demasiadamente para que meus

sonhos se realizassem. Aos meus manos, Anastácio Júnior e Rafael Alves, pelo

carinho e compreensão em todos os momentos.

Ao João Paulo, querido esposo e amigo, por todo o seu amor, companheirismo,

compreensão, paciência, e, principalmente, por todo apoio que me concedeu, não só

no percurso desta pesquisa, mas em toda nossa convivência. Obrigada por

acompanhar minhas batalhas na procura do saber, compreendendo também as duras

renúncias que necessitei fazer, neste período. O mérito dessa vitória é nosso !

Às minhas queridas amigas de longas datas e que sempre torceram por mim,

vibraram, incentivaram, elogiaram desde a minha aprovação no mestrado, e, também

entenderam e perdoaram minhas ausências, são elas: Wládia Ribeiro, Elisângela Lino,

Isabel Cristina e Fabrícia GIrão.

Às amigas Ana Valesca, Andréa Cialdini e Herliene Cardoso, mestras que muito

apoiaram e incentivaram mais esta etapa da minha trajetória acadêmica, desde o

período da seleção.

À minha turma, com a qual tive a oportunidade de estudar, viver momentos de

tensões acadêmicas e também, muitas vezes, descontrair-me.

Em especial à Eniana Pachêco e Ana Marques, queridas amigas do MAPPS,

pela amizade conquistada nestes anos, pelo apoio em momentos difíceis, trocas de

experiências tão valiosas para a elaboração desta pesquisa.

Às profissionais da Coordenadoria de Habitação da Prefeitura Municipal de

Maracanaú-Ce, Eva Cristina e Maria Silênia, grandes profissionais. Histórias vivas da

urbe acima citada.

À minha orientadora, Profª. Dra. Socorro Osterne, que me recebeu com muito

carinho, dedicação e que muito contribuiu, com ricos momentos de orientação, na

construção deste trabalho acadêmico. Sou grata por seu apoio e paciência.

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Aos professores que compõem a banca examinadora deste trabalho por

aceitarem o convite com toda gentileza e atenção, Prof. João Tadeu e Profª Adriana,

bem como aos professores que participaram da banca de qualificação, contribuindo

com suas colaborações e sugestões, as quais serviram para lapidar a pesquisa que

ora apresento.

Em especial, à Prof. Dra. Adriana Alcântara que colaborou demasiadamente

em meus conhecimentos acadêmicos, incentivando e valorizando o presente trabalho

desde que surgiam como pequenas sementes de gerontologia, durante minha

graduação em Serviço Social. Registro aqui minha sincera admiração e estima. Sua

participação na banca de qualificação significou uma bússola mestra no meu

caminhar.

Ao corpo docente do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade

da UECE pelas trocas constituídas ao longo destes dois anos de vivência acadêmica.

À Cristina Maria Pires, secretária do programa de pós-graduação do MAPPS,

pelas palavras, por todos os esclarecimentos necessários, bem como pela atenção e

carinho sempre a mim destinados.

Às avós entrevistadas nesta pesquisa, sempre solícitas e receptivas a todas as

nossas necessidades, com relação à realização deste estudo.

Enfim, a todos que direta ou indiretamente contribuíram na realização desta

investigação, participando comigo desta jornada.

Muito Obrigada a todos !

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O tempo pode apagar lembranças de um corpo

ou de um rosto,mas nunca a memória

daquelas pessoas que souberam

fazer de um pequeno instante,

um grande momento.

(Charles Chaplin)

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RESUMO

Esta pesquisa partiu do objetivo central de ampliar o debate sobre as relações intergeracionais, mediante o recorte das velhas avós que cuidam de seus netos, compreendendo as características que estas assumem na reorganização do contexto familiar. Para tanto, foram delineados alguns objetivos específicos, a saber: explorar o significado da velhice, presente no pensamento das avós cuidadoras de netos, ante a realidade cotidiana enfrentada por este segmento populacional; desvendar o conceito de cuidador que permeia a realidade das avós que tomam para si a responsabilidade para com seus netos; e, por fim, conhecer a realidade dessas avós, analisando suas condições atuais de vida, bem como de quais benefícios e programas sociais esses sujeitos são usuários e/ou possíveis beneficiários. O local onde foi realizado o estudo denomina-se Residencial Vitória, moradia verticalizada, localizada no Município de Maracanaú-CE, Região Metropolitana de Fortaleza-CE. Para a coleta de dados, foram considerados os seguintes instrumentos metodológicos: entrevista áudiogravada (semiestruturada), realizada durante os meses de agosto e setembro do ano de 2012; análise de depoimento, história de vida (destaque para a história oral), observação direta e utilização do diário de campo. Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa e do tipo bibliográfica, documental e de campo. Por meio deste trabalho, observa-se, destarte, que as relações compreendidas pela avosidade, no âmbito familiar moderno, ultrapassam a imagem que outrora ocupava o imaginário coletivo, ou seja, a das avós como meras transmissoras de legados geracionais. Assim sendo, elas assumem papel de protagonistas na vida dos netos, inclusive, no tocante ao seu sustento, independentemente da presença ou ausência dos genitores dessas crianças e/ou adolescentes, tomando para si obrigações com filhos adultos e netos. O vocábulo cuidado admite sentido mais amplo. Os avós passam a assumir significação de pais substitutos para os netos, inclusive, também, no campo das discussões. Palavras-chaves: Velhice . Relações Intergeracionais. Avosidade. Família.

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ABSTRACT

This study started from the central objective of broadening the debate on intergenerational relations, by clipping the old grandparents caring for their grandchildren, including the features that these assume the reorganization of the family context. Thus, we outlined some specific objectives, namely: to explore the meaning of old age, in this thought Grannies caregivers of grandchildren, before the daily reality faced by this population segment; unravel the concept of caregiver pervading reality of grandparents who take on the responsibility to his grandchildren, and, finally, to know the reality of these grandparents, analyzing their current life conditions, as well as social programs and benefits which these subjects are users and / or potential beneficiaries. The place where the study was conducted is called Victory Residential, housing vertically located in the municipality of Maracanaú-EC Metropolitan Region of Fortaleza-CE. To collect data, we considered the following methodological tools: áudiogravada interview (semi-structured), held during the months of August and September of the year 2012, analysis of evidence, life history (especially oral history), direct observation and use of the field diary. This is a qualitative research and the type literature, documentary and field. Through this work, it is observed, Thus, the relations understood by avosidade within modern family, beyond the image that once occupied the collective imagination, ie the Grannies as mere transmitters of generational legacy. Thus, they assume leading role in the lives of grandchildren, including with regard to their livelihood, regardless of the presence or absence of the parents of these children and / or adolescents, taking on obligations to adult children and grandchildren. The term care supports the broadest sense. Grandparents are taking on significance of surrogate parents to their grandchildren, including also in the field of discussion.

Keywords: Old age. Intergenerational Relationships. Avosidade. Family.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 01: Localização de Maracanaú na Região Metropolitana de Fortaleza

Figura 02: Ave conhecida como Maracanã Maracanaú

Figura 03: Residencial Vitória

Figura 04: Área de Desenvolvimento Local de Maracanaú

Figura 05: Distribuição das Intervenções

Figura 06: Placa de identificação do Residencial

Figura 07: Residencial Vitória com maquete

Figura 08: Mapa das Áreas de Risco do Município

Figura 09: Frente do empreendimento

Figura 10: Visão aérea dos blocos

Figura 11: Visão aérea completa do empreendimento

Figura 12: Visão aérea do Salão de Festas e Área de Lazer

Figura 13: Salão de Festas do Residencial Vitória

Figura 14: Área de Lazer do Residencial Vitória

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LISTA DE QUADROS

Quadro 01: Faixa Etária Geral

Quadro 02: Titularidade do Cadastro

Quadro 03: Escolaridade da População Cadastrada

Quadro 04: Atividades e Situações Profissionais

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

CAIXA – Caixa Econômica Federal

CNPQ – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

FAR- Fundo de Arrendamento Residencial.

HABITAFOR – Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas

IDH – Índice de Desenvolvimento Humano

IDI – Índice de Desenvolvimento Infantil

IDM - Índice de Desenvolvimento Municipal

IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicados

MAPPS – Mestrado Acadêmico de Políticas públicas

NOB – Norma Operacional Básica

OMS - Organização Mundial de Saúde

PUC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

SEINFRA – Secretaria de Infra Estrutura de Maracanaú

SUAS – Sistema Único de Assistência Social

UECE- Universidade Estadual do Ceará

UVA – Universidade Vale do Acaraú

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS

LISTA DE QUADROS

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

RESUMO ........................................................................................................................7

CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO.....................................................................................14

CAPÍTULO 2– O OBJETO DE PESQUISA E AS ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS:

CONHECENDO A REALIDADE DAS FAMÍLIAS DO RESIDENCIAL VITÓRIA.........25

2.1 A aproximação com o objeto.......................................................................25

2.1.1 Breve apresentação do município de Maracanaú....................................33

2.1.2 O Projeto Salgadinho................................................................................36

2.1.3 Perfil dos atores da pesquisa....................................................................40

2.1.4 Retrato social dos moradores...................................................................42

2.2 Trilha metodológica percorrida....................................................................46

2.3 Compartilhando algumas impressões de campo.........................................59

2.4 Sobre as informantes: As avós....................................................................61

2.5 Os domicílios...............................................................................................69

CAPÍTULO 3 – DEBATE SOBRE A FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA..........................73

3.1 A família no cotidiano da luta pela sobrevivência........................................73

3.2 Organização familiar: da diversidade dos modelos aos dias atuais............80

3.2.1 Famílias brasileiras: História e dinamismo...............................................83

3.3 A modernidade e suas conseqüências na família.......................................89

3.4 A fluidez nas relações: a participação dos avós no contexto familiar........93

CAPÍTULO 4 – ABORDAGENS SOBRE A TEMÁTICA VELHICE............................114

4.1 Velhices: entre conceitos e preconceitos...................................................114

4.1.1 Sob as lentes do estereótipo..................................................................124

4.2 Laços intergeracionais...............................................................................130

4.2.1 Avosidade: o tornar-se avó.....................................................................142

4.3 Cultura e natureza feminina.......................................................................144

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................152

REFERÊNCIAS..........................................................................................................158

ANEXOS.....................................................................................................................169

APÊNDICE..................................................................................................................186

Termo de Consentimento............................................................................................187

Roteiro de Entrevista...................................................................................................188

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1 INTRODUÇÃO

No século atual, o envelhecimento torna-se um acontecimento sensível,

comum e preocupante, tanto para o mundo desenvolvido quanto para o

subdesenvolvido. Segundo registros do IBGE (2010), de maneira geral se observa que

o crescimento da população envelhecida é mais intensificado nos países em

desenvolvimento, conquanto este contingente ainda seja, proporcionalmente, bastante

inferior ao identificado nos países desenvolvidos. Identificado como fenômeno

mundial, o crescimento da população denominada velha é alarmante em números

absolutos e relativos.

Registrado em todo o mundo, desde o início do século XX, a elevação do

número de pessoas do segmento em estudo instiga pesquisadores, desta temática, a

incluírem nas discussões (de caráter científico e político) a condição e as implicações

que permeiam o fenômeno da condição de avó, no cenário atual, que inclui a

assistência entre as gerações, ou, conforme expressa Camarano (1999), ―a dialética

entre dependência/interdependência entre as gerações‖ (P.86).

Contextualizando a dinâmica populacional brasileira em âmbito mundial,

pode-se destacar o indicador social chamado índice de envelhecimento, cujo valor

medido para o Brasil indicou 51,8, número bem próximo do índice de envelhecimento

mundial, que resultou em 48,2, conforme dados do IBGE (2012).

Ainda analisando o caso do Brasil, relevante é destacar o fato de que este

assume posição intermediária, demonstrando uma população de velhos,

correspondente a 8,6 % da população total, em relação aos países da América Latina.

Tanto no Brasil, quanto em outros países, o grupo da população que mais cresce

refere-se ao segmento envelhecido. A estimativa é de que a população brasileira,

maior de 60 (sessenta) anos, seja de 14,2% em 2020. Diferentemente de outrora,

gradativamente, o Brasil deixa de ser considerado um país de jovens. Num futuro

próximo, a Nação brasileira deverá enfrentar, portanto, um grande desafio oriundo do

crescente envelhecimento populacional.

Conforme registros do censo IBGE (2010), a expressividade dos grupos

etários no total da população no ano de 2010 está inferior a que foi observada em

2000 para todas as faixas com idade até 25 anos, enquanto os demais grupos etários

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elevaram suas participações na última década. O alargamento do topo da pirâmide

etária pode ser verificado pelo crescimento da participação relativa da população com

65 anos ou mais.

A predominância da população feminina entre os velhos é comprovada em

registros do IBGE (2012)1. Segundo a pesquisa, a razão de sexo da população deste

segmento etário é bastante diferenciada, sendo bem elevado o índice de mulheres. No

Brasil, em 2000, o percentual de mulheres equivalia a 55,1% da população

envelhecida; já em 2011 este valor aumentou para 55,7%. Isto significa que enquanto

em 2000, para cada 100 mulheres velhas havia 81,6 homens velhos; atualmente, a

proporção é de 79,5 para o mesmo número de mulheres.

No tocante à esperança de vida feminina, por meio de dados do IBGE,

constatou-se que, em 1980, esta era de 65 anos, ou seja, 6,4 mais elevada do que a

masculina. Já em 2000, este diferencial aumentou para 8,7 anos, em virtude da mais

acentuada diminuição da mortalidade entre o sexo feminino2. Em média, no Brasil, as

mulheres vivem oito anos a mais do que os homens.

Convém citar que fatores como a diminuição da taxa de natalidade, bem

como a elevação da expectativa de vida e a rapidez do processo de envelhecimento

do Brasil cooperam para um novo perfil populacional. Tal situação deixa um alerta

para gestores da esfera pública, pesquisadores e, por que não dizer, para o próprio

núcleo familiar.

Com efeito, pode-se projetar o Brasil com a chamada ―Revolução da

Terceira Idade‖, abordada por Giddens (2005) ao destacar a idéia de que:

[...] Quase todos os países desenvolvidos testemunharão o envelhecimento de suas populações nas próximas décadas. Peter Peterson descreveu essa mudança como uma ―aurora grisalha‖ (1999). Atualmente, uma em cada sete pessoas no mundo desenvolvido tem mais de 65 anos. Em 30 anos, irá subir para uma em quatro [...]. O número de ―muitos velhos‖ (acima de 85 anos) está se expandindo mais rapidamente do que o de ―jovens velhos‖. Daqui a meio século, o número de pessoas acima de 85 anos terá crescido seis vezes mais. Esse processo é algumas vezes chamado de ―envelhecimento dos idosos. (P. 145).

1 Dados referentes ao Censo do IBGE ano 2010.

2 Para o ano de 2000, foi estimada uma esperança de vida de 64,6 e 73,4 anos para os sexos masculino

e feminino, respectivamente, de acordo com números do Ipeadata.

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Esse crescimento contínuo da população com idade igual ou superior a 65

anos apresenta uma preocupação de ordem mundial e apregoa a realização de

pesquisas sobre a temática da velhice. Nessa realidade, ampara-se o interesse em

desenvolver esta investigação.

Na opinião de Debert (1999):

A preocupação da sociedade com o processo de envelhecimento deve-se, sem dúvida, ao fato de os idosos corresponderem a uma parcela da população cada vez mais representativa do ponto de vista numérico. Contudo, explicar por razões de ordem demográfica a aparente quebra da ‗conspiração do silêncio‘ em relação à velhice é perder a oportunidade de descrever os processos por meio dos quais o envelhecimento se transforma num problema que ganha expressão e legitimidade, no campo das preocupações sociais do momento. Considerar que as mudanças nas imagens e nas formas de gestão do envelhecimento são puros reflexos de mudanças na estrutura etária da população é fechar o acesso para a reflexão sobre um conjunto de questões que interessa pesquisar. (P.12).

Vale frisar que trabalhos e pesquisas envolvendo a temática velhice ainda

possuem pouca visibilidade na literatura especializada, bem como no debate

profissional das diversas áreas do conhecimento. A representação numérica desta

faixa etária; todavia, desperta interesse em âmbito público (Estado) e privado

(comunidade e esfera doméstica) pelo fato de eles, os velhos, estarem cada vez mais

presentes no cotidiano da sociedade, no enfrentamento das expressões da questão

social3, muitas vezes, participando deste cenário como atores principais da vida real.

Conforme Fraiman (1991), a partir de 1950, os estudos referentes à velhice

ganharam destaque, em virtude da transição demográfica dos Estados Unidos, bem

como de vários países europeus. Assim sendo, o campo da Gerontologia adquiriu

novos espaços, como relevante área de conhecimento do desenvolvimento humano.

Já no Brasil, estudos que versam sobre a velhice emanam desde a década de 1980.

Foi neste período, segundo Alcântara (2004), que este segmento auferiu ―maior

3 ―Questão social apreendida como o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade

capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação de seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade.‖ (IAMAMOTO, 2004, p.27).

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atenção por parte de geriatras, gerontólogos, movimentos sociais e universidades

(...).‖ (P.13).

Abordar o assunto velhice, compreender algumas definições

terminológicas, tais como o que significam Gerontologia e Geriatria, são providências

de suma relevância, tanto para o pesquisador, quanto para o leitor. Convém frisar que

não há conformidade entre estas definições. Dessa forma, esta investigação se pauta

na análise expressa por Neri (2005), ao esclarecer que:

[...] Gerontologia é o campo multi e interdisciplinar que visa à

descrição e á explicação das mudanças típicas do processo do envelhecimento e de seus determinantes genéticos-biológicos, psicológicos e socioculturais. Interessa-se também pelo estudo das características dos idosos, bem como pelas várias experiências de velhice e de envelhecimento ocorridas em diferentes contextos socioculturais e históricos. Abrange aspectos do envelhecimento normal e patológico. Compreende a consideração dos níveis atuais de desenvolvimento e do potencial para o desenvolvimento. (...) A gerontologia também comporta interfaces com áreas profissionais dentre as quais se destacam a clínica médica, a psiquiatria, a geriatria, a fisioterapia, a enfermagem, o serviço social, o direito, a psicologia clínica e a psicologia educacional, das quais derivam soluções para problemas individuais e sociais, novas tecnologias, evidências e hipóteses para a pesquisa.

[...] o campo da Geriatria compreende a prevenção e o manejo das doenças do envelhecimento. É uma especialidade em Medicina e também em Odontologia, Enfermagem e Fisioterapia, que se desenvolvem á medida que aumenta a população de adultos mais velhos e idosos portadores de doenças crônicas e de doenças típicas da velhice, em virtude do aumento da longevidade desses segmentos populacionais. (pp 95-96)

A pouca literatura, ou seja, a escassez de material para o estudo desta

temática, bem como o desprestígio cultural e no âmbito das discussões, foram alguns

dos fatores que contribuíram para as motivações e inspirações de se dar continuidade

a este ensaio, cada vez mais, ampliando informações sobre a categoria pelo qual se

nutre verdadeira paixão, desde a graduação, passando pela especialização, e, agora

no mestrado: velhice.

Vale salientar que, inicialmente, nas primeiras disciplinas da graduação em

Serviço Social, ou seja, no decorrer das disciplinas de Pesquisa (I e II) a visão da

pesquisadora em alusão já se desenhava para este objeto de estudo. Posteriormente,

durante as disciplinas de Estágio Supervisionado (I e II), os quais foram realizados no

Fórum Clóvis Beviláqua, no Setor de Serviço Social de Atendimento às Varas de

Família, foram proporcionadas vivências e muitos momentos reflexivos no tocante à

Page 20: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

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condição do velho, na sociedade atual. Tais vivências produziram inquietações que

nortearam a elaboração do trabalho final monográfico, da graduação do curso de

Serviço Social, realizado na Universidade Estadual do Ceará - UECE. Foi com suporte

nessas instigações empíricas, bem como da leitura de teóricos especializados (em

velhice e família), que surgiram os questionamentos que demarcaram a formulação do

projeto de pesquisa para o Mestrado Acadêmico de Políticas Públicas e Sociedade da

UECE.

Cabe ressaltar aqui que, no decorrer deste trabalho, adota-se o termo

―velho‖ pelo fato de se compreender que este corresponde ao sujeito do processo

definido como velhice. Esta situação foi muito bem ponderada por Alcântara (2010),

quando a autora acentua que esta opção decorre do fato de ―esta categoria

redimensionar com maior clareza as representações pelas quais a velhice vem

passando.‖ (P. 15).

Ainda sobre este assunto, Alcântara (2010) revela:

Na sociedade brasileira, percebo que, existe um certo melindre para pronunciar a palavra ‗velho‖, pois parece que soa como insulto, o que não é difícil de compreender, uma vez que a juventude é uma categoria privilegiada, apresentando-se como um padrão valorizado, em oposição à desvalorização da velhice. (P. 15).

Durante esta investigação, a circunstância há pouco exposta por Alcântara

(2010) foi identificada nas falas e reações das entrevistadas. Não se restringiu,

todavia, a estas, haja vista que se identificou também tais comportamentos de

negação ou eufemismo da velhice na equipe técnica social da Coordenadoria de

Habitação do Município de Maracanaú-CE, bem como na comunidade onde residem

os sujeitos desta busca de teor acadêmico.

Esta ―negação‖ da velhice e/ou imagens negativas da velhice foram

também abordadas de forma poética por grandes ícones da literatura, tais como:

Rubem Alves, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes, Leonardo Boff, dentre outros, os

quais são compartilhados nos anexos deste estudo.

Caracterizado por intensas mudanças culturais, éticas, econômicas,

sociais e ainda no plano do comportamento humano, num Brasil cada vez mais

urbano, ainda permanece o consenso em torno da família como espaço privilegiado

para a prática de valores e solidariedade.

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Apesar de ser concebida como uma categoria historicamente determinada,

a família é sempre alvo de mudanças, fato que chama a atenção, principalmente, no

tocante à constituição dos ―novos arranjos familiares‖, em que se pode focalizar aqui a

significativa presença dos avós do século XXI. O modo de ser e viver a avosidade vem

se transformando ao longo do tempo. Na atualidade, os avós oferecem aos seus netos

muito mais que simples proteção, pois se tornam cuidadores integrais e, até mesmo,

legais, de seus netos.

Ao ressaltar as relações intergeracionais, Vitale (2005) faz menção à figura

das avós, no contexto de modificações dos laços familiares, os quais demandam

novas exigências à imagem dessas avós que surgem como protagonistas no

panorama das relações familiares.

No último século, a sociedade passou por diversas transformações. Muitas

dessas mudanças impactaram, e ainda impactam, a população envelhecida da

sociedade, na atualidade. Vale lembrar que estas estão relacionadas ao contexto

familiar, o qual, conforme exprime Szymanski (2003), tende a se ajustar,

constantemente, ao cotidiano enfrentado, marcado pela fluidez das relações, de modo

geral.

Nesta ambiência de modernidade, Giddens (1991) adverte para a noção

de que ―a vida social e os laços que ela envolve estão profundamente entrelaçados

com os sistemas abstratos de mais longo alcance.‖ (P.108). Na óptica do autor, a

modernidade altera radicalmente a natureza da vida social cotidiana e afeta os

aspectos mais pessoais da existência humana.

É relevante destacar a idéia de que circunstâncias diversas, como

desemprego, falta de recursos financeiros, gravidez precoce, envolvimento com

drogas, separações conjugais e outras situações, são alguns dos fatores que tem

contribuído para o retorno dos filhos à casa dos pais. Na verdade, essa situação muda

o sistema de solidariedade, e a própria estrutura da família muda de eixo, já que

outras gerações (netos e /ou bisnetos) entram em cena.

Sabe-se que transformações sociais afetam também a instituição família, a

qual desenvolve novas características em sua organização, em sua composição, como

também nas formas de relações entre seus membros, as quais, paulatinamente,

Page 22: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

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passam a se diferenciar do modelo de família nuclear burguês, presente no período de

colonização. Assim sendo, a instituição família encontra-se em constante mudança e

dinamismo, em decorrência da própria estrutura e da conjuntura da sociedade, que

refletem as multifacetadas expressões da questão social. Ocorre que tais

acontecimentos refletem na população velha que, perante a reorganização familiar,

assume novas outra configuração nas relações intergeracionais.

Ocorre que, na atualidade, tais acontecimentos refletem na população

velha, aqui representada pelas avós, as quais, ante a reorganização familiar, passam

a assumir características mais amplas no que se refere a ―cuidar de netos‖, ao

bancarem, além de suas despesas, o custo de manutenção de filhos e, principalmente,

de seus netos, conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA).

Nesta pesquisa, verificou-se que tal situação, talvez, derive muito mais da falta de

opção do que mesmo de escolha para estas ―personagens‖ reais num cenário

cotidiano de famílias monoparentais4, composta por avós e netos.

Na intelecção de SIingly (2010), a família é, assim, apanhada entre as

exigências da vida comum e da existência individual, entre infantes, adolescentes e

adultos, estando sujeita a tensões que atingem também a população mais velha.

Referido autor destaca que a família contemporânea é caracterizada por um duplo

movimento, pois, na medida em que é privada, é simultaneamente, pública. Portanto,

a família, como espaço em que as pessoas acreditam proteger sua individualidade, é

também alvo de intervenções do Estado nas relações com seus membros.

Releva salientar o fato de que, em estudos da história da família e da

criança, a figura dos avós podia exercer relevante papel social no âmbito familiar.

Mascaro (1997) destaca o fato de que, no Império Romano, as famílias abastadas

―confiavam sua casa de campo e seus filhos aos cuidados da avó ou de uma parente

idosa, virtuosa e responsável.‖ (P.27).

O aumento do número de netos que vivem com os avós, sendo, portanto,

criados e/ou até mesmo sustentados por eles, é fato registrado, inclusive, pelo estudo

Perfil dos Idosos Responsáveis pelos Domicílios no Brasil /IBGE (2002).

4 O reconhecimento e a definição da família monoparental, como família natural, podem ser observados no dispositivo 25, da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o qual dispõe que: ―entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes‖.

Page 23: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

21

Ao vivenciar uma situação que, muitas vezes, lhe surge como inesperada,

a população mais velha adquire novo lugar na sociedade contemporânea, ou seja, a

de cuidador5 dos netos, com tendência a reunirem as características maternas e ou

paternas nesta relação. Com efeito, faz-se necessário destacar a amplitude que o

vocábulo cuidado vem assumindo. É válido mencionar que o ato de cuidar passa a ser

considerado inerente ao gênero feminino por motivos históricos e culturais, as quais

ainda nos dias de hoje acompanham o ser mulher. Assim, o ambiente doméstico e as

funções ligadas à esfera privada foram, desde muito tempo, atribuídas ao sexo

feminino, como sendo natural e vinculada às características da maternidade, conforme

considerações de Beauvoir (1980).

Esta circunstância a que estão expostos os avós do século XXI caracteriza

a família como espaço de mudanças também entre gerações, no qual os avós

participam diretamente da organização desta nova estrutura familiar, de modo a

ocupar um lugar de destaque no modelo de organização da família brasileira, bem

como na sociedade. Desse modo, pode-se perceber que a presença dos avós nas

famílias de hoje insere-se num âmbito de modificações dos laços familiares, os quais

lhes demandam novas exigências. Vale frisar que as atuais imagens do

envelhecimento, as quais anunciam mudanças sociais e redefinem identidades,

clamam por uma rediscussão sobre as categorias família e velhice, bem como acerca

da dependência/interdependência entre gerações, segundo alerta Camarano (1999).

O despertar para o estudo da temática velhice, na pesquisa em alusão,

pelo recorte das avós, com idade igual ou superior a 60 anos, que cuidam de seus

netos como já explicitado decorre do fato de se nutrir paixão pela temática ora

desenvolvida. Daí a decisão de se continuar as investigações deste objeto de estudo,

iniciadas ainda na graduação.

O cenário eleito para esta pesquisa foi o empreendimento denominado

Residencial Vitória, local onde foram beneficiadas com unidade habitacional, do tipo

verticalizada (ou seja, apartamentos), 80 famílias de baixa renda, residentes, a

maioria, anteriormente às margens do riacho Salgadinho, o qual está situado no

Município de Maracanaú-CE. O projeto desenvolvido com estas famílias recebeu o

mesmo nome do Riacho (Projeto Salgadinho), o qual, mediante atividades

5 Relevante é frisar aqui a dimensão que assume a palavra cuidado ou a ―expansão nos papéis― das avós

na atualidade , conforme enfatizado por Dellman-Jenkins, Blanemeyer e Olesh (2002).

Page 24: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

22

desenvolvidas pela equipe Técnica Social6, tem como objetivo garantir condições

adequadas de moradia, segurança e lazer para a comunidade local, assim como a

preservação ambiental de importantes recursos naturais da área.

Por intermédio de dados cadastrais7, do próprio Município, comprova-se

que a maioria destas famílias sobrevive de maneira simples, ou seja, suas condições

econômicas não lhes proporcionam, na maioria das vezes, opções de lazer e

alimentação adequadas. São pessoas que sobrevivem com dificuldades, sob uma

realidade dinâmica, crítica e preocupante.

Este texto dissertativo tem como objetivo central ampliar o debate sobre as

relações intergeracionais, compreendendo as características que estas assumem no

contexto familiar. Para tanto, foram traçados alguns objetivos específicos, a saber:

explorar o significado de velhice, compreendido no pensamento das avós cuidadoras

de netos, ante a realidade cotidiana enfrentada por este segmento populacional;

identificar quais fatores contribuem, na atual conjuntura, para que essas avós passem

a cuidar de seus netos, provendo, até mesmo, o seu sustento; e desvendar o conceito

de cuidador (legal ou informal) que permeia a realidade das avós que tomam para si a

responsabilidade com seus netos.

Para a realização deste estudo, alguns autores foram fundamentais, com

suas considerações e orientações sobre o cotidiano da família, sua luta pela

sobrevivência e as conseqüências da modernidade em suas configurações. Foram

eles: Cruz (2012), Yazbek (2012), Iamamoto (2004), Petrini (2003), Szymanski (2003),

Bauman (2001), Osterne (2001), Peixoto (2000) e Giddens (1991). No que se

concerne às discussões relativas à temática velhice, destacam-se, principalmente, os

seguintes autores: Alcântara (2010), Leite (2004), Araújo (2002), Ferrigno (2003),

Vitale (2002), Guedes (2000), Peixoto (2000), Camarano (1999), Mascaro (1997), Bosi

6 Relevante é mencionar que, nos projetos habitacionais, existe uma equipe técnica multiprofissional,

composta por assistentes sociais, sociólogos, geógrafos e advogados, os quais visam a atender as diversas complexidades que se somam à questão habitacional. No que se refere ao Trabalho Técnico Social – TTS, este é desenvolvido por assistentes sociais e estagiários da área, sendo responsáveis pela elaboração, organização, execução e avaliação das ações previstas no projeto de intervenção. Convém salientar que se teve a oportunidade de compor a equipe técnica social do Município em tela, e, embora não se atuasse no Projeto Salgadinho, acompanhou-se algumas etapas deste, contemplando de perto experiências e angústias da população beneficiária do referido projeto; momento de vivências, observações e questionamentos. Também já se possuía experiência profissional, na área habitacional, no Município de Fortaleza-CE, todavia, nunca se deixou passar despercebido objeto de estudo e o pano de fundo que norteiam as relações entre eles (velhos) tanto como assistente social, quanto como estudiosa da temática.

7 Para elaboração deste perfil foram utilizados os cadastros sócioeconômicos preenchidos pela equipe do Serviço Social da Coordenadoria de Habitação, mediante atendimentos sociais e/ou visitas domiciliares.

Page 25: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

23

(1994) e Beauvoir (1990). Tais autores, dentre outros, contribuíram para ampliar o

debate das relações intergeracionais.

A pesquisa em alusão está estruturada em cinco capítulos, incluindo

Introdução e Considerações finais

O primeiro capítulo refere-se à introdução e expressa: a contextualização

da pesquisa, a relevância do estudo, as razões para a escolha do tema, os objetivos e

a organização do trabalho em capítulos.

O segundo segmento denominado ―O objeto de pesquisa e as estratégias

metodológicas: conhecendo a realidade das famílias do Residencial Vitória‖, expõe,

em sua primeira parte, a narrativa da aproximação com o objeto, o campo de

pesquisa, bem como o perfil geral dos moradores deste empreendimento,

participantes da investigação ora relatada. Já na segunda parte, este capítulo traz o

percurso metodológico da pesquisa, explicitando os instrumentais utilizados, aspectos

observados no campo, bem como informações sobre as avós que participaram do

estudo. Sob o ponto de vista metodológico, convém mencionar que esta dissertação

se pauta na concepção metodológica de natureza qualitativa, além de avançar

também em sua fase exploratória, a qual antecede e sucede a construção do projeto,

conforme orienta Minayo (1995).

O terceiro módulo traz o título de ―Debate sobre a família contemporânea‖

e visa compreender a categoria família no cotidiano da luta pela sobrevivência, sua

organização e reorganização sob a modernidade e suas consequências na estrutura

familiar, com ênfase na fluidez entre as relações e a participação das avós (velhas),

que cuidam de netos, para melhor apreensão do objeto de estudo. Vale frisar que

pesquisar sobre família é essencial para compreensão desta realidade, haja vista ser

esta a célula básica ou menor célula organizada da sociedade. Na esteira desta idéia,

Prado salienta que ―uma família é não só um tecido fundamental de relações, mas

também um conjunto de papéis socialmente definidos‖. (1985:23).

O quarto capítulo, nomeado ―Abordagens sobre a temática velhice‖,

objetiva desvendar os conceitos (e preconceitos) sobre velhice, abordar as relações

intergeracionais, estudar a cultura do feminino na sociedade e o fenômeno da

avosidade, assim como a complexidade que assume a palavra cuidar para as avós

Page 26: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

24

que cuidam de seus netos.

O último momento do trabalho comporta ás ―Considerações finais‖. Nesta

etapa, são expressas as conclusões sobre os principais pontos suscitados no trabalho

em pauta.

Sintam-se, destarte, convidados a apreciar o material que resultou deste

empenho!

Page 27: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

25

2 O OBJETO DE PESQUISA E AS ESTRATÉGIAS

METODOLÓGICAS: CONHECENDO A REALIDADE DAS

FAMÍLIAS DO RESIDENCIAL VITÓRIA

―Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos

habitados por uma memória.‖

José Saramago

2.1 A aproximação com o objeto

É crucial iniciar dizendo que o envelhecimento da população brasileira

ocorre de maneira rápida, e que o aumento da expectativa de vida, bem como a

redução da taxa de natalidade, são fatores que cooperam para um novo perfil

populacional. É fato que o Brasil, cada vez mais urbano, é marcado por profundas

transformações sociais, econômicas, culturais, éticas e até mesmo no plano do

comportamento humano.

Compreendendo que a população envelhecida é um segmento em

constante expansão no contexto mundial, deve-se considerar ainda que este aumento

também trouxe novos desafios a essa categoria, na contemporaneidade. Sendo assim,

na atualidade, observa-se que os avós (especificamente as mulheres) passam a ser,

cada vez mais, responsáveis diretos pelos netos, de modo que, na redefinição dos

laços familiares, esses avós assumem o papel de protagonistas principais na vida dos

mencionados, inclusive, no tocante ao seu sustento, independentemente da presença

ou ausência dos genitores dessas crianças e /ou adolescentes.

Debruçar-se sobre a temática velhice e relações intergeracionais não

consiste numa tarefa simples, conforme abordado em capítulos anteriores e também

ratificado nas palavras da Professora Doutora Maria Lúcia Martinelli8, quando

mencionou que havia ―poucos estudos sobre o tema do envelhecimento no CNPq‖,

fato este que chama a atenção, inclusive, no sentido de fazer um alerta quanto à

8 Em agosto de 2012, a Universidade Estadual do Ceará-UECE contou com a significativa presença da

Prof. Dra. Martinelli (PUC/SP), em evento promovido pelo Mestrado Acadêmico de Políticas Públicas – MAPPS, a saber: III Seminário Estado, sociedade e Políticas Públicas. A convidada em alusão abriu a mesa de debate intitulada ―Dimensão Política da Pesquisa Social‖, a qual contou também com a presença da prof. Dra. Maria do Socorro Ferreira Osterne, orientadora desta pesquisa.

Page 28: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

26

necessidade de formar gerontólogos para esta sociedade, haja vista que a pesquisa,

em si, possui ligação com a vida em que se vive e/ou com a vida dos sujeitos.

Relevante é mencionar, por oportuno, a importância da leitura do

cotidiano, a qual deve ser feita pelo pesquisador, haja vista ser por seu intermédio (do

cotidiano), que se faz possível ler/interpretar a conjuntura. É preciso que o

pesquisador saiba dialogar com o real, pois todo problema (objeto de conhecimento e

pesquisa) é, antes de tudo, um problema de vida prática, conforme explanou Martinelli

durante evento na UECE.

A arte da pesquisa é uma tarefa árdua. Ao bom pesquisador deve-se

remeter, dentre outras, à sua capacidade de unir os fios da experiência, considerando

o dia a dia do campo. Nesse sentido, Bourdieu (1989) destaca a pesquisa como

fenômeno ininterrupto e inacabado, enfatizando que:

[...] a construção do objeto (...) não é uma coisa que se produza de uma assentada, (...) é um trabalho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, por uma série de correções, de emendas, sugeridas por o que se chama o ofício, quer dizer, esse conjunto de princípios práticos que orientam as opções ao mesmo tempo minúsculas e decisivas. (P. 26-27).

O interesse em estudar velhice e as relações intergeracionais,

compreendida nesta pesquisa na relação avós-netos, deu-se com amparo em

vivências anteriores no campo dos estudos (na graduação, conforme exposto na

introdução) e intervenções sobre velhice, as quais aconteceram no primeiro campo de

estágio que se desenvolveu, o qual ocorreu no Fórum Clóvis Beviláqua, no Setor de

Serviço Social de Atendimento às Varas de Família, como se adiantou noutra

passagem.

No ambiente ora descrito, sucederam as primeiras experiências e

contatos com a categoria velhice, e seus representantes, na atual conjuntura. Este

setor é responsável pela elaboração de relatórios sociais, de suma importância para

nortear o juiz, em suas decisões, durante a audiência, sendo, portanto, peças

importantes em processos dos tipos curatela9, guarda judicial, e/ou em outros

9 Ação judicial que objetiva identificar alguém para a função/ação de curador (responsável por uma

pessoa incapaz de gerir a si e aos seus bens). Segundo consulta ao dicionário Aurélio, curador consiste na pessoa que é ―encarregada por lei, da administração de bens, de um menor emancipado, de um ausente ou de um alienado internado, ou então pela gestão e liquidação de uma sucessão vacante.

Page 29: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

27

casos/processos em que o juiz considere necessária a intervenção do conhecimento

do profissional de Serviço Social, para sua decisão.

Estes ricos momentos de estágio, os quais perduraram por três anos,

foram responsáveis por muitas inquietações, as quais conduziram a elaboração do

trabalho final monográfico, da graduação do curso de Serviço Social, realizado na

Universidade Estadual do Ceará - UECE. A paixão pelo tema, porém, não se exauriu

aí, mas foi acompanhante diuturno na especialização que se cursou na área de Saúde

Pública (realizado na Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA), e, posteriormente,

indo mais além, chegando ao MAPPS, Mestrado da UECE.

Confessa-se que nos dois primeiros materiais elaborados, há pouco

mencionados, não houve recorte no que concerne à classe social. Para o projeto do

mestrado, no entanto, a nova visão voltava-se para as camadas urbanas populares,

mais especificamente para os avós que cuidavam de seus netos, os quais estavam

inseridos no perfil de ―possíveis‖ beneficiários para o Programa Minha casa, Minha

Vida10 - PMCMV, pertencente ao Governo Federal, em parceria com a Caixa

Econômica Federal-CEF.

Inicialmente, se pensou como cenário para a pesquisa o

empreendimento, do PMCMV, denominado Senador Virgílio Távora11, localizado em

Maracanaú-CE, o qual seria (e foi) o primeiro empreendimento entregue pelo PMCMV

no Município. Para o referido condomínio, foram cadastradas famílias que residiam em

bairros circunvizinhos à área do empreendimento, e que atendiam ao perfil exigido, ou

seja, famílias que em sua maioria compreendem realidades críticas, moradores de

áreas que os expunha a vários tipos de riscos (tanto físicos12 quanto sociais).

Vale frisar que, neste período, o PMCMV era totalmente novo, e que as

técnicas sociais (bem como os demais profissionais que atuavam no programa em

10

Durante o ano de 2009, teve-se a oportunidade de realizar os trabalhos iniciais no que concerne ao Programa Minha Casa, Minha Vida, no Município de Fortaleza-CE, na Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR, período em que já se direcionava olhar para estes sujeitos na busca da inserção desta política pública. 11

Composto por 672 unidades habitacionais verticalizadas, dividido em três blocos, com 208 (duzentos e oito), 240 e 224 apartamentos, respectivamente. Os tipos de empreendimentos do tipo térreo +1 ainda são experiência nova para o Município de Maracanaú-CE, o qual é permeado de experiências exitosas do FAR no Município, cujo agente gestor é a CEF.

12

Foram apontados como principais: desabamento, inundações causadas pelas chuvas, além da precariedade das edificações em razão dos materiais utilizados (pelos próprios moradores) para a construção (madeira e plástico).

Page 30: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

28

alusão) do Município, recebiam orientações da CEF, a qual repassava critérios

federais para inscrição da família (além, claro, dos critérios identificados pelo próprio

Município). Preocupante é mencionar aqui que, após identificados, cadastrados e

selecionados por perfil, a CEF comunicou, de maneira informal, que pessoas

―analfabetas‖ não poderiam ser beneficiadas pelo PMCMV, haja vista que, mesmo

sendo pensado/elaborado para pessoas carentes com o intuito de ―realização do

sonho do imóvel próprio‖, este dizia respeito a um financiamento, e, como qualquer

outro, se exigia um procurador (para aqueles sem alfabetização).

Tal fato resultou numa situação bastante complicada, tanto para a

equipe social (que conhecia a realidades das pessoas/famílias inscritas), quanto para

o objeto de pesquisa (os velhos) que se pretendia, os quais, muitas vezes residiam,

apenas, na companhia de netos (ainda infantes ou adolescentes). O resultado desse

imenso problema, ocasionado por uma política pública pensada ―de cima para baixo‖,

foi a saída de pessoas já velhas que não tinham ―ninguém de confiança‖ para ser seu

procurador ou para transferir-lhe a titularidade do imóvel.

Em outras palavras, os velhos foram excluídos do contexto dessa

política pública de modo sutil, e, atualmente, a maioria de beneficiários do PMCMV se

refere a pessoas jovens (jovens casais e/ou mães solteiras). Quanto aos poucos que

permaneceram insistindo no direito à moradia com dignidade, não puderam ser os

donos de direito (ou seja, a titularidade do imóvel foi transferida para alguém de

confiança e da família: netos, filhos, irmãos...), embora o compromisso e a

responsabilidade em arcar com o financiamento continuassem, de fato, a ser do velho,

o provedor destas famílias. Nesse sentido, Ferrigno (2003) esclarece que,

Todavia, esse novo paradigma da velhice, ao mesmo tempo em que coloca à sombra a velhice pobre e desassistida e, por conseguinte, as determinações socioeconômicas dessa exclusão, tende a responsabilizar o indivíduo idoso por conquistar, ou não, um determinado estilo idealizado de vida. (P. 73-74).

Recorda-se que, no interior da sala de Serviço Social, da COHAB, por

muitas vezes, se pôde contemplar a insatisfação, a tristeza (expressadas algumas

vezes em lágrimas, outras em palavras), o descrédito em relação ao Poder Público, e

até mesmo as indignações diante de duras realidades daqueles que não puderam

continuar no processo de sua cidadania. São personagens e histórias, algumas das

Page 31: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

29

quais registradas em Diário de Campo, àquela época, às observações que seguem

abaixo:

O dia de trabalho transcorria normalmente, entre um atendimento e outro ...Eu e estagiários de serviço social, envolvidos nas atividades do setor, quando durante um atendimento soa aquela voz envolvida entre sentimentos de raiva e tristeza:

- Doutora, essa era a única chance que eu tinha de possuir minha casa própria e sair do aluguel. Esperei tanto por isso. Peguei uma fila imensa pra inscrição. Cheguei cedinho pra conseguir um lugar. Passei sol e chuva. Agora não posso ficar no programa? E por que é que não disseram isso antes? (Diário de Campo, outubro de 2011).

Passou a ser ―comum‖ a expressão de sentimentos mistos de raiva, tristeza e indignação, durante os atendimentos. E por mais que esclarecêssemos que as orientações não haviam sido repassadas no início do Programa Minha Casa, Minha Vida, aquelas pessoas, já velhas, viam seu sonho (talvez o da vida toda) se desconstruir, naquele momento.

No registro do contato com outra usuária, registrou-se:

Todos os dias ela telefonava, escolhia turnos e horários diferenciados. Seu intuito era, simplesmente, de ―dá notícias sobre a sua situação‖. Em virtude das datas estabelecidas pelo banco financiador, Caixa Econômica, essa usuária queria, como ela mesma dizia ―segurar sua vaga‖. Pois, não mais sendo possível ser a contratante, teria que apresentar com urgência alguém (e de confiança) para ser o seu procurador. E, como não conseguiu. Ela ficou de fora do programa. O último contato telefônico com a citada, com voz de choro, ela disse: ―eu não tenho ninguém de confiança para passar a minha casa. Não entendo, porque mesmo apresentando outra pessoa. sou eu mesma quem vou pagar.‖

E ela tinha razão. O que ela tentou explicar é que no nome do procurador seria emitida toda documentação, inclusive o contrato do imóvel. O procurador seria o dono de direito. Todavia, não o dono de fato, pois o pagamento advinha da aposentadoria daquela senhora. Ela era o pillar econômico de seu lar.

Convém lembrar aqui das palavras de Yazbek (2012), quando questiona

o contexto, preocupante e paradoxal, em que estão inseridas as políticas públicas, ao

ressaltar que:

Page 32: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

30

Pois se de um lado contam com as garantias constitucionais que pressionam o Estado para o reconhecimento de direitos, por outro se inserem nesse contexto de ajuste às configurações da ordem capitalista internacional, com seu caráter regressivo e conservador, que ameaça o direito e a cidadania (...). (P.316).

Nesta caminhada, entretanto, os percalços não foram capazes de fazer

com que se parasse. A pouca literatura relacionada à temática foi, destarte,

considerada o desafio inicial. Então, continuando com o desejo de estudar as relações

intergeracionais, nas classes subalternas, a segunda opção, para se realizar esta

pesquisa foi o Residencial Vitória13, conjunto habitacional localizado na cidade de

Maracanaú-CE, onde se experimentou a oportunidade de trabalhar como assistente

social.

Nas impressões decorrentes desses atendimentos (e de tantos outros)

foram também elementos que motivaram a seguir neste estudo, que compreende os

temas velhice, família e relações intergeracionais.

Igualmente, os estudos aos longos dos anos como discente do nível

superior despertaram a sensibilidade em formular algumas indagações que permeiam

o universo desta investigação, sobre as quais se investiu tempo e empenho na

tentativa de respondê-las, e que para tal foram necessárias idas e vindas ao campo,

haja vista que os significados e respostas não se revelam de imediato.

Cabe aqui mencionar que estes foram momentos valiosos, os quais

compreendem trocas acadêmicas e não acadêmicas; períodos de desaprender as

respostas prontas, de modo a não impedir o avanço do conhecimento, desfazendo-as,

no campo, pela leitura do cotidiano, como alerta o poeta Fernando Pessoa14, ao

mencionar que ―o essencial é saber ver‖. Foram ocasiões ímpares de expor idéias e

também de recebê-las, tendo a sensibilidade de perceber que o conhecimento não se

esgota.

Assim sendo, ressalta-se que a escolha da temática em estudo é fruto

de um conjunto de fatores, dos quais podem ser destacados: o interesse pelo tema, a

relevância, bem como a viabilidade de ser investigada; a viabilidade, no tocante a

recursos de estudo, e o acesso ao que está sendo pesquisado – tudo isto encerra

13

Mais detalhadamente caracterizado no Item.2.1.2, desta pesquisa, denominado ―O Projeto Salgadinho‖. 14

Como Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa).

Page 33: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

31

grande importância. Gondim e Lima (2002), todavia, chamam a atenção para o

seguinte aspecto: o fator primordial deve ser o interesse do aluno sobre o assunto.

Convém lembrar que, no âmbito da pesquisa, as temáticas não se

limitam, apenas, ao mundo acadêmico, mas tomam dimensões mais amplas, ou seja,

de vida, de política e também cultural, com necessidade de retorno à sociedade.

Portanto, temas que impactam e inquietam a sociedade devem fazer parte,

constantemente, da contingência da Academia.

Qual a relação entre velhas avós e seus netos, na complexidade do

vocábulo cuidado? Qual a percepção da velhice para essas avós? O que levou essas

avós a serem cuidadoras de seus netos? Qual a percepção de cuidador para essas

avós ?

Com efeito, o trabalho ora relatado partiu do objetivo central de ampliar

o debate sobre as relações intergeracionais, mediante o recorte das velhas avós que

cuidam de netos, compreendendo as características que estas assumem na

reorganização do contexto familiar, na contemporaneidade.

Assim sendo, foram delineados os seguintes objetivos específicos, a

saber:

Explorar o significado de velhice, presente no pensamento das avós

cuidadoras de netos, ante a realidade cotidiana enfrentada por este segmento

populacional.

Identificar quais fatores contribuem, ante a atual conjuntura, para que essas

avós passem a cuidar de seus netos, provendo, até mesmo, o sustento diário

dos citados.

Desvendar o conceito de cuidador (legal ou informal) que permeia a realidade

das avós que tomam para si a responsabilidade para com seus netos.

Na busca de encontrar os nexos estabelecidos nestes objetivos, partiu-se

dos pressupostos adiante expressos.

Page 34: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

32

Nos dias atuais, a instituição familiar passa por constantes transformações em

sua estrutura, em decorrência das expressões da questão social. A

reorganização familiar alcança também a população envelhecida, aqui

representada pelos avós, que passam a assumir novas funções para com seus

netos. Estes ―novos avós‖ vêm transformando a dinâmica, ao longo do tempo

no enfrentamento de problemas relacionados com o ciclo da pobreza. Tais

configurações derivam muito mais da falta de opção do que mesmo de decisão

dessas ―personagens‖ reais num cenário cotidiano de famílias monoparentais

na relação entre avós e netos.

A velhice compõe uma das etapas inerentes à condição de todo ser vivo,

independentemente de raça, etnia e/ou classe social. Apresentada como um

processo que modifica a relação do indivíduo com o tempo, a velhice, embora

seja individual (ou seja, cada um vivencia seu próprio processo de

envelhecimento), compreende um processo biológico, social e psicológico.

Para os sujeitos desta pesquisa, em sua maioria, a velhice é vista mais como

doença, incapacidade, desprezo, cansaço e encargo, dentre outras carregadas

de negatividade. Para muitos, envelhecer e ficar velho torna-se um momento

trágico da existência humana.

As transformações ocorridas, ao longo do tempo, na estrutura familiar, o

declínio do modelo nuclear burguês e os novos arranjos familiares atribuem a

esses avós responsabilidades mais complexas. São avós que cuidam de netos

em virtude de filhos que vão trabalhar e não têm com quem deixar as crianças

e/ou adolescentes, mas, também, pessoas que, em sua maioria, se tornaram

pais ainda na adolescência; que já faleceram; que são usuárias de drogas, e,

portanto, não têm condições de exercer seus papéis como elementos

cuidadores do processo de socialização de suas proles.

Para as avós que cuidam de netos, sujeitos desta pesquisa, a palavra cuidado

ganha amplitude, gradativamente, na expressão cotidiana desta relação, e

troca intergeracional, haja vista que a contribuição destes avós se estabelece

desde os cuidados básicos e diários (banhar, alimentar, dentre outros...) a

orientar para a vida, educar e até mesmo em ser o representante legal,

mediante solicitação de guarda judicial. Assim, o ato de cuidar, educar e/ou ser

Page 35: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

33

responsável, faz destas avós um tipo de ―pais adotivos‖ dos netos, também, no

campo das discussões teóricas.

Algumas estratégias metodológicas foram desenhadas, a fim de

contemplar os objetivos desta pesquisa, além de possibilitar melhor contato com a

realidade estudada. A seguir, compartilhar-se-á com o leitor o caminho metodológico

percorrido.

2.1.1 Breve apresentação do município de Maracanaú

Maracanaú faz parte da Região Metropolitana de Fortaleza e está

localizado à 25 km da Capital. Limita-se ao norte com Fortaleza e Caucaia, ao sul

Pacatuba, o leste Pacatuba e o oeste Maranguape. Seu acesso se dá pela CE 60 e

CE 065.

A dimensão territorial do Município é de 105km², apresentando fácil

acesso para a Capital por meio das rotas rodoviárias e recentes instalações do

Metrofor. A população de Maracanaú, de acordo com dados do IBGE/CENSO 2010, é

de 209.057 habitantes, com densidade demográfica de 1.877,75hab/km².

FIGURA 01: Localização de Maracanaú

na Região Metropolitana de Fortaleza

Fonte: Diagnóstico Social, 2011

Page 36: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

34

O desenvolvimento de Maracanaú foi bastante gradativo, no entanto, na

última década o Município se destacou no contexto estadual, nas áreas da gestão,

assistência social e habitação. Já ocupa a segunda colocação no Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH), primeira no Índice de Desenvolvimento Infantil (IDI) e

a terceira em Desenvolvimento Municipal (IDM) no âmbito do Ceará.

O topônimo Maracanaú é de origem indígena, tupi-guarani, e possui como

significado: “lagoa onde os maracanãs15 bebem”, referindo-se à lagoa do mesmo

nome, em cujas mediações teve início o povoamento na região, inicialmente, pela

ocupação espontânea, às margens de lagoas e rios, como a lagoa de Maracanaú, o

rio Maranguapinho e a lagoa de Jaçanaú. Neste território, o primeiro contato dos

colonizadores foi com indígenas de Jaçanaú, Mucunã e Cágado, aldeamentos que

deram origem a nomes de bairros nos dias atuais.

FIGURA 02: Ave conhecida como Maracanã.

Fonte: WWW.google.com/imagens

Sua denominação original era Vila do Santo Antônio do Pitaguary e

depois, em 1890, passou a chamar-se Maracanaú, com sua emancipação definitiva

de Maranguape, especificamente, em 5 de julho de 1983, pela Lei Estadual no.

10.811.

15 Ave da família dos psitacídeos, ou seja, aves trepadoras que compreende as araras (aves abundantes no local), periquitos, dentre outros.

Page 37: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

35

Nos anos 1970 Maracanaú passou por uma grande transformação, quando

foi escolhido para sediar o Distrito Industrial de Fortaleza, o qual conta, atualmente,

com cerca de 135 indústrias, numa área de 1.100 hectares.

Conforme o diagnóstico municipal (2005), a cidade de Maracanaú é

caracterizada por uma sólida explosão demográfica, que teve início na década de

1980, época que se refere à implantação dos distritos industriais e dos primeiros

conjuntos habitacionais, os quais alteraram consideravelmente a paisagem urbana e

os modos de vida de sua população.

O surgimento do polo industrial colaborou para a construção de conjuntos

habitacionais para os trabalhadores das futuras fábricas, haja vista a Capital estar

passando por um ―inchaço‖, em decorrência do processo imigratório, de famílias que

fugiam da seca e vinham em busca de melhores condições de vida em Fortaleza. Vale

ressaltar que Maracanaú também já foi conhecido como a maior cidade-dormitório16 do

Ceará.

No que se refere à economia17, o Município traz como destaque o setor

industrial, com ênfase para as seguintes atividades: preparação de britamento e outros

trabalhos em pedras (não associados à extração); produtos de laticínio (exceto leite);

artefatos têxteis de tecidos (exceto vestuário); artigos para cama e mesa e colchoaria;

biscoitos e bolachas; calçados de couro, plástico, tecidos, fibras, madeira ou borracha;

fungicidas; herbicidas; defensivos agrícolas; massas alimentícias; material elétrico

para veículos (exceto baterias) e medicamentos. A arrecadação de Maracanaú é a

segunda maior do Estado. Sobre o clima desta cidade, este é identificado como sendo

tropical.

Quanto à hidrografia tem-se como principais fontes: rio Maranguape;

riachos: Santo Antônio, Timbó (Lameirão), Salgadinho, Taboqueira e Urucutuba;

lagoas: Marancanaú, Jaçunã, Jupaba e do Mingau. A maioria desses recursos

hídricos, contudo, apresenta baixa qualidade em suas águas, em virtude de

lançamentos de dejetos e lixo (doméstico e industrial) no leito dos riachos, de

desmatamento de suas margens, bem como retirada de areia e argila de seus

entornos para atender às necessidades comerciais das olarias e da construção civil.

16

Tendo em vista que, a maioria, de seus habitantes/moradores trabalhava em municípios vizinhos. 17

O Município possui destaque quanto à economia, conhecido por seu polo comercial/industrial, enfatizando sua capacidade de geração de trabalho e renda.

Page 38: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

36

Ante o aumento, nos últimos anos, dos níveis pluviométricos do Município,

enfatizando os meses de janeiro a abril, as recorrências chuvosas afetam diretamente

moradores das áreas de risco do Município, ou seja, que residem nas proximidades de

rios e lagoas.

Seu crescimento populacional não foi acompanhado por investimentos

em infraestrutura, o que pode ser observado, por exemplo, na falta de acesso aos

esgotamento sanitários que, atualmente, atendem a cerca de 55 % dos habitantes.

2.1.2 O Projeto Salgadinho

FIGURA 03: Residencial Vitória

Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação, 2009.

De acordo com o Diagnóstico Social de Maracanaú, elaborado por equipe

técnica especializada, no ano de 2005, como exigência da Norma de

Operacionalização Básica do SUAS/2005, para credenciamento e habilitação do

Município para o nível a gestão plena da assistência, Maracanáu dividiu-se,

internamente, em dois distritos: Distrito-Sede, que abrange a maioria do seu território,

e o Distrito de Pajuçara. Internamente, divide-se em 06 Áreas de Desenvolvimento

Local (ADL's), espaços territoriais com características geográficas e demográficas.

Page 39: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

37

FIGURA 04: Área de Desenvolvimento Local de Maracanaú

Fonte: Diagnóstico Municipal de Maracanaú, 2005.

Pajuçara integra a Área de Desenvolvimento Local - ADL III,, divisão

administrativa e política utilizada pela Prefeitura. Nessa ADL, além do bairro em

alusão, somam-se ainda os seguintes: Bom Jardim, Menino Jesus de Praga, Parque

Progresso, Jardim Paraíso, Alto da Bonanza, Boa Esperança e Novo Mondubim I,

É especificamente na área da Pajuçara que está situado o riacho

Salgadinho, local de origem das famílias pesquisadas neste estudo. A localidade da

Pajuçara é uma região de alta densidade populacional, A população que reside em

seu entorno é extensa e corresponde a, aproximadamente, 26.172 habitantes, sendo

habitada por 30,6 % da população do Município em tela. Vale destacar que a maioria

de seus habitantes sobrevive em estado de pobreza e exposta à vulnerabilidade

social.

Neste espaço geográfico, concentram-se famílias com estilo de vida

simples, ou seja: que vivem com renda mensal baixa (de 01 a 02 salários-mínimos),

com predomínio de emprego do tipo informal, em virtude da baixa qualificação

Page 40: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

38

profissional18, alta taxa de analfabetismo e desemprego, com moradias precárias e

risco iminente de inundações. As famílias moradoras às margens do riacho

Salgadinho, que corta o bairro anteriormente mencionado, encontra-se em sua maioria

neste perfil.

O projeto que recebeu o mesmo nome desse riacho teve como principal

objetivo, através de atividades desenvolvidas pela equipe Técnica Social19, garantir

condições adequadas de moradia, segurança e lazer da comunidade local, além da

preservação ambiental de importantes recursos naturais da área.

No tocante ao investimento, o Projeto Salgadinho custou um valor total de

6.153.507,84 (seis milhões, cento e cinqüenta e três mil, quinhentos e sete reais e

oitenta e sete centavos) e a fonte do recurso é proveniente do Programa Ministério das

Cidades/ Urbanização, Regularização e Integração dos Assentamentos Precários.

O Projeto Salgadinho compreende intervenções dos tipos

reassentamento20 e urbanização, como se pode observar na ilustração a seguir:

FIGURA 05: Distribuição das Intervenções

Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação /Google Maps, 2011.

No que se concerne ao número de famílias beneficiadas com estas

intervenções, tem-se o total de 350, sendo divididas da seguinte forma: 80 para

18

Costureira, manicure, do lar, profissionais da construção civil e autônomos (vendedores).

19

Composta por assistentes sociais e estagiários de serviço social.

20

Transferências de famílias moradoras em áreas de risco para unidades habitacionais.

Page 41: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

39

reassentamento e 270 para serem beneficiadas com regularização fundiária e

melhorias habitacionais. Acrescenta-se ainda que os projetos referentes à

regularização fundiária e as melhorias habitacionais encontram-se em andamento, não

estando totalmente concluídas.

Vale destacar que, mesmo com a concentração de esforços do Poder

Público Municipal, inúmeros são os problemas enfrentados por esta população, no que

se refere às dificuldades inerentes às grandes cidades, podendo-se mencionar como

exemplo: violência, favelização, desemprego, insuficiência de saneamento básico,

bem como outros serviços públicos básicos.

De modo geral, a procura pela moradia precária, por uma parte da

população maracanauense e em áreas consideradas como de risco, decorre de

problemas estruturais, tais como o desordenamento do crescimento populacional

urbano, o desemprego e até mesmo a desmontagem no sistema de garantias e

proteções sociais.

O empreendimento construído para acomodar as famílias que moravam às

margens do riacho Salgadinho foi batizado, pelos próprios beneficiários, de

Residencial Vitória, e foi entregue à população no ano de 2010. Foi edificado em

terreno particular desapropriado pela Prefeitura Municipal de Maracanaú. Composto

por unidade habitacional do tipo verticalizada21, contém 20 blocos residenciais

multifamiliares, áreas de lazer com play-ground e salão comunitário.

FIGURA 06: Placa de identificação do Residencial

Fonte: Registro próprio/ trabalho de campo, 30.07.2012.

21

Apartamento

Page 42: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

40

As edificações possuem pavimentos térreos e superiores, também com

unidades adaptadas para portadores de deficiências. Cada unidade habitacional

apresenta 44 m², distribuídos em dois quartos, sala, banheiro, cozinha e área de

serviço.

FIGURA 07: Residencial Vitória com maquete

Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação, 2010.

A distribuição das unidades habitacionais foi orientada pela metodologia de

sorteio, contemplando moradores de áreas de riscos do município, bem como famílias

remanejadas por desapropriações e indenizações por melhorias.

Nesta localização, geográfica e espacial, foram pesquisados os sujeitos

deste estudo, os velhos/avós, que cuidam de seus netos, bem como o perfil dos

pesquisados, o delineamento de seus modos de vida cotidiana, reorganizações

familiares, relações intergeracionais e estratégias diárias de sobrevivência

(constituídas historicamente neste contexto social).

2.1.3 Perfil dos atores da pesquisa

No Município de Maracanaú-CE, Região Metropolitana de Fortaleza,

percebe-se a existência de conflitos e dificuldades presentes no cotidiano dos sujeitos

Page 43: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

41

pobres (faixas etárias de jovens a velhos), os quais lutam por uma habitação própria e

digna. Para grande parcela da população brasileira, a questão da moradia ainda se

configura como um problema de solução difícil.

Faz-se necessário esclarecer que o grupo familiar (moradores do

Residencial Vitória) aqui apresentado, em sua maioria, compreende realidades

críticas, haja vista que foram trazidos de uma área que os expunha a vários tipos de

riscos (físicos e sociais), sendo apontados como principais os desabamentos, as

inundações causadas pelas chuvas, bem como a precariedade das edificações, em

razão do material disponibilizado para a construção dos imóveis (madeira, plástico).

Por meio de dados cadastrais, do próprio Município, comprova-se que a

maioria destas famílias sobrevive de maneira simples, ou seja, suas condições

econômicas não lhes proporcionam opções de lazer e alimentação adequadas. São

pessoas que sobrevivem com dificuldades, sob uma realidade crítica e preocupante.

Vale frisar que a questão habitacional atinge moradores oriundos das mais

complexas situações, tais como: aluguel, coabitação, área de risco22, imóveis cedidos

(ou emprestados), aluguel social e terrenos em áreas verdes, sendo este último mais

expressivo. Acrescenta-se ainda, ao fator localização do imóvel, a situação de imóveis

com as condições inapropriadas para moradia, ou seja, carentes de infraestrutura,

dessa forma, não possuindo alguns dos serviços básicos, como abastecimento de

água, coleta de lixo e energia elétrica.

FIGURA 08: Mapa das áreas de risco do município

Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação /Google Maps, 2011.

22

Terrenos inadequados para fins de moradia, geralmente, localizados próximos aos rios, lagoas, encostas ou em morros, dentre outros. Conforme Diagnóstico Municipal (2005), as áreas de risco do Município de Maracanaú estão localizadas nas margens do rio Timbó e rio Maranguapinho, dos riachos Atalaia e Retiro, e dos sangradouros dos açudes Olho D‘água dos Pratas e Furna da Onça. No que concerne às localidades mais afetadas, destacam-se: Pajuçara, Jardim Bandeirante, Siqueira, Alto Alegre (I e II), Alto da Mangueira e Olho d‘Agua.

Page 44: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

42

Conforme dados da Coordenadoria de Habitação de Maracanaú, órgão

municipal responsável pela elaboração, execução e acompanhamento das ações

habitacionais de Maracanaú-CE, foi possível conhecer o perfil dos moradores

mediante informações repassadas, por eles mesmos, durante atendimento social e

aplicação de cadastro socioeconômico.

2.1.4 Retrato social dos moradores

De acordo com o Projeto Técnico Social do Salgadinho, o público

beneficiado com o Projeto Salgadinho compreendeu um total de 302 pessoas,

distribuídas nas seguintes faixas etárias:

QUADRO 01: Faixa Etária Geral

FAIXA ETÁRIA GERAL

ESPECIFICAÇÃO QUANTIDADE %

De 0 à 12 anos de idade 92 30,46

De 13 à 18 anos de idade 38 12,58

De 19 à 59 anos de idade 165 54,64

Acima de 59 anos de idade 07 2,32

TOTAL 302 100%

Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/2011

Ao analisar este quadro, nota-se que há um número expressivo de

crianças, representadas, com índice percentual de 30,46%. Relevante é considerar

que este público deriva de um contexto social de limitações, e, por que não dizer, de

exclusões, as quais perpassam, muitas vezes, as diversas fases da vida: infância,

adolescência, vida adulta e velhice.

Quanto à titularidade do cadastro, por sexo, no quadro 02 se pode

observar a situação.

Page 45: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

43

QUADRO 02: Titularidade do Cadastro

TITULARIDADE DO CADASTRO

ESPECIFICAÇÃO QUANTIDADE %

Homens 17 21,25

Mulheres 63 78,75

TOTAL 80 100%

Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/2011

Conforme os dados revelados, observa-se que 78,75 % dos cadastros

possuem titularidades femininas. Estas mulheres elaboram, ―dia após dia‖,

possibilidades de trilhar novos desafios. Este indicador aponta para mudanças

culturais e de papéis no âmbito familiar. Vale frisar que, na comunidade sob estudo,

60,31% das mulheres cadastradas são chefes de família. Segundo dados estatísticos

do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, a chefia feminina no espaço

familiar aumentou consideravelmente nos últimos dez anos.

No que se refere à escolaridade da população cadastrada, identificou-se o

que retrata o Quadro 03.

QUADRO 03: Escolaridade da População Cadastrada

ESCOLARIDADE DA POPULAÇÃO CADASTRADA

ESPECIFICAÇÃO QUANTIDADE %

Ensino superior incompleto 01 0,32

Ensino Médio Completo 29 9,45

Ensino Médio Incompleto 37 12,05

Ensino Fundamental Completo 29 9,45

Ensino Fundamental Incompleto 154 50,16

Educação Infantil 15 4,89

Alfabetizado 20 6,51

Analfabeto 17 5,54

TOTAL 302 100%

Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/2011

Page 46: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

44

No que se concerne à escolaridade da população cadastrada, verifica-se

que um número significativo de pessoas possui, apenas, o ensino fundamental

incompleto. Importa enfatizar que o baixo índice educacional reflete diretamente no

mercado de trabalho, podendo ser observado no decorrer desta pesquisa quando

mencionadas as profissões que demandam pouca (ou nenhuma) qualificação

profissional, e, consequentemente, nos salários pagos por estas.

Quanto à renda familiar, vale destacar que foi considerando todo valor

obtido pelos membros familiares, seja ela oriunda do mercado de trabalho (formal ou

informal), aposentadoria e/ou pensão, bem como de programas assistenciais. Convém

informar que a renda familiar média da maioria desta população é de 01 e ½ (hum)

salário-mínimo e meio, todavia, não se pode desconsiderar a existência de famílias

que sobrevivem com valor inferior a este. Nesta situação, foram constatadas 20

famílias.

Sobre às mulheres, chefes de família, as quais declararam que não

trabalham, sendo, portanto, donas de casas, vale frisar que as rendas destas advêm

do benefício do Bolsa-Família23, da renda do cônjuge ou de suas aposentadorias e/ou

pensões.

Ao observar a ficha cadastral dessas famílias, conforme já mencionado, no

que se refere ao número de componentes familiares, foi possível identificar que, na

conjuntura atual, o núcleo familiar está em redução constante, por diversos fatores

relatados no decorrer dos atendimentos, os quais possuem registros em campos

específicos do cadastro sócio-econômico.

Situações como separações conjugais, mulheres chefes de família, mães

solteiras, casais de velhos, pessoas viúvas e até mesmo avós que cuidam de netos,

foram expressas como sendo alguns casos que justificam a diminuição do número de

seus membros. Assim, a realidade dos dias atuais é caracterizada na luta pela

sobrevivência, pois estão inseridos em tempos difíceis, expressados também nas

relações precarizadas de trabalho, as quais também atingem a instituição familiar.

23

Refere-se a um programa de transferência direta de renda que beneficia famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo país, e integra o Plano Brasil Sem Miséria (BSM). Fonte: www.mds.gov.br/bolsafamilia .

Page 47: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

45

Quanto aos dados levantados sobre as situações e/ou atividades

profissionais mais exercidas pelos beneficiários, os resultados estão contidos no

quadro seguir:

QUADRO 04: Atividades e Situações Profissionais

ATIVIDADES E SITUAÇÕES PROFISSIONAIS

ESPECIFICAÇÃO QUANTIDADE %

Donas de casa 30 37,5

Aposentado 10 12,5

Doméstica 06 7,5

Operário 10 12,5

Reciclagem 01 1,25

Serviços Gerais 05 6,25

Comerciários 07 8,75

Construção Civil 05 6,25

Artesã 01 1,25

Costureira 04 5

Agente Comunitário de Saúde 01 1,25

TOTAL 80 100 %

Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/2011

Em adição, em decorrência da precarização das relações de trabalho,

muitas vezes, a pessoa que possui profissão definida submete-se a exercer trabalho

do tipo ―informal24‖, haja vista a necessidade maior de garantia de sobrevivência,

conforme constatado em atendimentos sociais, realizados pelo Setor de Serviço

Social da citada Coordenadoria.

Observa-se, em síntese, que a caracterização da população beneficiária

corresponde a pessoas com estilo de vida simples que enfrentam dificuldades

econômicas, as quais influenciam diretamente no acesso a direitos básicos, como

alimentação e saúde. De modo mais geral, são famílias carentes da intervenção do

Poder Público.

24

Também chamado de bico, este corresponde a um trabalho eventual e sem vínculo empregatício.

Page 48: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

46

Assim sendo, este público se torna frequente no atendimento diário da

rede socioassistencial, clamando por intervenção de modo compactuado com ações

profissionais de áreas diversas do conhecimento, a fim de garantir a complementação

de saberes e o acesso aos serviços necessários. Nesse sentido, a atuação do Serviço

Social, no contexto de ação interdisciplinar, deve ser destacada como âncora, haja

vista ser este o profissional capacitado para atuar na questão social e suas

multiformes expressões25, num cotidiano cheio de imediatismo e estratégias, sem

desconsiderá-lo como um rico campo de pesquisa.

2.2 Trilha metodológica percorrida

A metodologia é parte indispensável do trabalho acadêmico,

consequentemente, científico. Nesta, foi explicitada a procedência da pesquisa, ou

seja, os passos metodológicos trilhados no decorrer do estudo. É válido acrescentar

que a metodologia consiste numa fase complexa da pesquisa, necessitando, portanto,

de maior cuidado por parte do pesquisador. Sábias são as palavras de Gondim (1999),

ao frisar que a metodologia está presente desde o início do projeto, na medida em que

é muito difícil separar o que fazer do modo como fazer.

Convém mencionar que as idéias preconcebidas não devem acompanhar

o estudante durante a pesquisa de campo, pois ele (o pesquisador) tem a obrigação

de possuir conhecimento de teorias científicas pertinentes ao problema que será

estudado, não deixando, deste modo, ser ―iluminado pelos fatos‖. Não se pode

desconsiderar, todavia, o fato de que a pesquisa consiste num constante desafio, em

que, neste, o pesquisador se torna um eterno aprendiz. Assim sendo, pesquisa é

sempre uma aventura nova sobre a qual incide a necessidade de reflexão.

No que se concerne ao material científico, faz-se necessário destacar a

idéia de que este fornecerá verdades relativas, representadas pelas hipóteses, as

quais poderão se modificar (ou não) a cada confronto com a realidade. Em outras

palavras, não se pode garantir que as hipóteses se sustenham eternamente.

25

Seja no atendimento as demandas conhecidas ou na pesquisa de respostas mais complexas e qualificadas para elas.

Page 49: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

47

Com efeito, Fonseca (2002) esclarece que ―é ilusório ditar quaisquer

‗regras‘ sobre valores e comportamentos em famílias de grupos populares‖. (P.22). É

válido lembrar que nestes grupos estão inseridos os agentes desta pesquisa. A autora

há pouco mencionada dá suporte à afirmação de Cardoso (2004), quando este expõe

sobre o fenômeno estudado, e destaca que ―é a sistematização que a ciência propõe

que permite avançar para além destes fragmentos na busca de uma explicação mais

global, porém, sempre provisória.‖ (P.101).

Esta busca científica, ora levada a efeito, e pautada na concepção

metodológica de caráter qualitativo, em razão de possibilitar a análise da relação

dinâmica que se estabelece entre os sujeitos sociais, bem como da vinculação destes

com o mundo real, conforme se observa nas palavras de Bourdieu (1989): ―o objeto

em questão não está isolado de um conjunto de relações que retira o essencial das

sua propriedades.‖ (P.27). Vale destacar a idéia de que a pesquisa avançou também

em sua fase exploratória, a qual antecede e sucede a construção do projeto, conforme

elucida Minayo (1995).

Consoante leciona essa autora, pode-se perceber que, como resultado

concreto, a pesquisa qualitativa proporciona uma análise mais profunda das relações,

das pessoas e dos fenômenos sociais, apreendendo os significados e valores dos

sujeitos entrevistados. Minayo (1995) pondera explicando a noção de que a pesquisa

qualitativa

[...] trabalha com o universo de significados, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de valores. (p. 22)

Baptista (1999), seguindo o raciocínio de Minayo (1995), destaca que o

objeto estudado não se caracteriza como inerte e neutro, estando, por conseguinte,

carregado de significados e relações que os sujeitos concretos instituem em suas

ações, ou seja, os fenômenos e a situação estão inter-relacionados, bem como

influenciados reciprocamente, de forma que se busca compreender estas inter-

relações numa dada conjuntura. Nos termos de Baptista (1999), nas pesquisas

qualitativas,

Deixam a verificação das regularidades para se dedicarem à análise dos significados que os indivíduos dão as suas ações, no espaço que

Page 50: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

48

constroem as suas vidas, e suas relações, ou seja, à compreensão dos sentidos dos atos e das decisões dos atores sociais, assim como dos vínculos das ações particulares com o contexto social mais amplos em que estas de dão. (P. 35).

Gil (2002) também compartilha da análise de Minayo (1995), e

complementa, afirmando que, na fase exploratória, se enfatiza o estímulo ao livre

pensamento dos entrevistados sobre os temas, objetos e/ou conceitos levantados.

Ainda sobre pesquisa de caráter qualitativo, Goldenberg (2000) contribui,

esclarecendo que esta é formada com origem numa perspectiva compreensiva,

caracterizando-se num objeto de estudo aberto e amplo, em que a coleta de dados se

por métodos qualitativos, os quais não pressupõem quantificação. Logo, é importante

salientar que a preocupação que se tem não está na representatividade numérica,

contudo, numa investigação a fundo da compreensão de um grupo social, de uma

trajetória, de uma instituição, entre outros aspectos.

No tocante à capacidade do pesquisador em tratar com minorias e suas

realidades, Cardoso (2004) ensina que:

Concentra-se o interesse na relevância do tema estudado e na forma pela qual o investigador se engaja no estudo. Um pesquisador capaz de uma ‗boa‘ interação com as minorias ou grupos populares será sempre um porta-voz de seus anseios e carências, logo, da sua ‗verdade‘. O critério para avaliar as pesquisas é principalmente sua capacidade de fotografar a realidade vivida. Sua função é tornar visível aquelas situações de vida que estão escondidas e que, só por virem à luz, são elementos de denúncia do statu quo

26. (P. 95).

Torna-se relevante refletir, porém na idéia de que a análise qualitativa não

corresponde à substituição de métodos quantitativos, conforme esclarecem Cardoso

(2004) e Martinelli (1999). Quanto a esta falsa oposição, Cardoso (2004) explana

expressando o argumento de que:

Certamente esta oposição qualitativo/quantitativo não corresponde a modos opostos e inconciliáveis de ver a realidade. São modos diversos de resgatar a vida social e chegar a iluminar aspectos não aparentes e não conscientes para os atores envolvidos. (Pp. 95-96).

26

Expressão em latim que significa: momento atual. Estado atual das coisas.

Page 51: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

49

Na pesquisa qualitativa estão inseridas as abordagens biográficas, as

quais demonstram compromisso com a história, com vistas a rememorar, no próprio

instante em que fatos da vida cotidiana passam a ser revisitados pelos sujeitos. Tal

razão é ratificado também nas palavras de Durham (2004), quando lembra que a

popularidade das pesquisas antropológicas ocorre também pelo fato destas

concentrarem-se ―(...) em grande medida em temas de interesse geral imediato (...),

mas, muito do que é cotidiano e familiar em nossa sociedade urbana (...)‖. (P.17)

É válido acrescentar que, conforme Bezerra (2002), o cotidiano se refere

ao local onde são expressas as particularidades dos indivíduos, mediante ações e

pensamentos imediatos, cristalizados e naturalizados, os quais reproduzem também a

sociedade. Quanto à relação entre o cotidiano e o objeto de pesquisa, a mencionada

autora aponta que

Os objetos de pesquisa aparecem para o (a) pesquisador (a) como expressões de problemáticas sociais, questões que se apresentam como relevantes para serem estudadas. Ou seja, como manifestações da realidade social, do cotidiano no qual o (a) pesquisador (a) acha-se inserido. O cotidiano emerge, pois, como cenário histórico, palco onde se desenrolam as praticas sociais, o acontecimentos, os hábitos e comportamentos humanos que poderão ser problematizados pro cientistas sociais, pesquisadores, a depender de suas trajetórias individuais neste contexto. (P.11).

Entrando no debate, Campos (2004) acrescenta que ―dentro do quadro

referencial da metodologia qualitativa biográfica destacam-se: História Oral, Biografia,

Autobiografia e História de Vida.‖ (P.43). Neste aspecto, convém ressaltar que o este

trabalho abordará o método da História Oral, como instrumento de investigação,

contemplada num recorte da história de vida das avós entrevistadas, bem como a

experiência do dia a dia, de acordo com Queiroz (1998).

No tocante à valorização do papel dos sujeitos na conjuntura social, por via

de depoimentos e relatos pessoais, com ênfase para a história oral, Ferreira (1998)

ensina:

Na virada dos anos 70 e no decurso da década de 80 registraram-se informações expressivas nos diferentes campos da pesquisa histórica: incorporou-se o estudo de temas contemporâneos, valorizou-se a análise qualitativa, resgatou-se a importância das

Page 52: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

50

experiências individuais, ou seja, deslocou-se o interesse das estruturas para as redes, dos sistemas de posições para as situações vividas, das normas coletivas para as situações singulares. (P.17).

Ainda sobre história oral, Debert (2004) alerta para a noção de que ―a

história oral e a história de vida são sempre um monte de fragmentos desconexos (...).

Nossa tarefa enquanto analistas é entender esses relatos e depois apresentar um

quadro minimamente coerente (...)‖. (P.150).

Lang (1996) confirma o pensamento ora externado por Debert (2004), ao

mencionar que existem ―histórias de vida mais ou menos ricas, mais completas ou

mais fragmentadas.‖ (P.34). Lang (1996), todavia, considera não ser efetivamente

possível a obtenção de uma história de vida completa, em virtude da expressividade

numérica de facetas e fatos que envolvem uma vida. Neste aspecto, Bosi (2003)

também se manifesta acerca da memória e expressa que ―a memória é um cabedal

infinito do qual só registramos um fragmento‖. (P.39).

Colaborando, outra vez, neste estudo, Lang (1996) destaca que história

oral27 de vida se reporta ao:

[...] relato de um narrador sobre sua existência através do tempo. Os acontecimentos vivenciados são relatados, experiências e valores transmitidos, a partir dos fatos da vida pessoal. Através da narrativa de uma história de vida, se delineiam as relações com os membros de seu grupo, de sua profissão, de sua camada social, da sociedade global, que cabe ao pesquisador desvendar. (P.34).

Na definição de Queiroz (1998), história oral é

[...] um termo amplo que recobre uma quantidade de relatos a respeito de fatos não registrados por outro tipo de documentação; ou cuja documentação se quer completar. Colhida por meio de entrevistas de variada forma, ela registra a experiência de um só indivíduo ou de diversos indivíduos de uma mesma coletividade. Neste último caso, busca-se uma convergência de relatos sobre um

27

Queiroz (1998), alude ao período de reaparecimento da história oral: ―Diz-se reaparecimento porque, do começo do século ao início dos anos 50, a ―história oral‖ fora utilizada por sociólogos como W.I. Thomas (1863-1947) e F. Znaniecki (1882-1958) em sua pesquisa conjunta, datada de 1918-1920; ou como John Dollard (1900) que pretendeu traçar-lhe as regras de aplicação; e também por antropólogos, netre os quias Franz Boas 91858-1942), geográfo alemão convertido à antropologia e naturalizado em 1886, que recolheu relatos e depoimentos de velhos caciques e pajés a fim de preservar do desaparecimento a memória da vida tribal.

Page 53: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

51

mesmo acontecimento ou sobre um período de tempo. A história oral pode captar a experiência efetiva dos narradores, mas também recolhe destes tradições e mitos, narrativas de ficção, crenças existentes no grupo, assim como relatos que contadores de histórias, poetas, cantadores inventam num momento dado. (P.7).

Na concepção de Lozano (2005) sobre história oral, ele se posiciona ao

mencionar a idéia de que:

Diria que é antes um espaço de contato e influência intedisciplinares; sociais, (...) com ênfase nos fenômenos e eventos que permitam, através da oralidade,oferecer interpretações qualitativas de processos histórico-sociais. Para isso, conta com métodos e técnicas precisas, em que a constituição de fontes e arquivos orais desempenham um papel importante. Dessa forma a história oral, ao se interessar pela oralidade, procura destacar e centrar sua análise na visão e versão que dimanam do interior e do mais profundo da experiência dos atores sociais. (P.16)

Faz-se necessário mencionar que o narrador é o próprio objeto de estudo,

haja vista que o relato prestado por ele (depoimento de vida, sua realidade vivida),

enfatizando a subjetividade dos eventos, permite ao pesquisador identificar as

relações sociais e as dinâmicas que se inserem no objeto de estudo, ou seja,

apreender as articulações entre a trajetória individual e social. Conforme Lang (1996),

―a versão do indivíduo tem, portanto, um conteúdo marcado pelo coletivo ao lado

certamente de aspectos decorrentes de peculiaridades individuais.‖ (P.45).

Na avaliação de Gaujelac (2005), o objetivo da história de vida

corresponde a ter acesso a uma realidade que ultrapassa o narrador. Relevante é

frisar que, embora a história oral compreenda o indivíduo na sua singularidade, por

seu intermédio é possível elaborar uma relação simultânea com os fatos sociais,

conforme elucidado por Barros e Silva (2002), e Durham (2004).

Quanto ao encanto que a narrativa oferece Grossi e Ferreira (2001)

acentuam:

O poder e a sedução remetem ao encantamento do outro que, no registro do falante, tranqüiliza-se ao penetrar em sua escuta e aprisioná-lo na teia de significados que a narrativa oferece. O narrador, no momento de sua fala, exerce sobre o outro o poder de seduzir (...). (Pp. 6-7).

Page 54: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

52

Ainda sobre a ―arte de narrar‖, a autora Bosi (2003), em consonância com

Grossi e Ferreira (2001), pondera que:

A arte da narração não está confinada nos livros, seu veio épico é oral. O narrador tira o que narra da própria experiência e a transforma em experiência dos que o escutam. (p. 85)

É válido acrescentar, ainda do ponto de vista metodológico, que este

trabalho possui também caráter exploratório, visando a proporcionar maior

aproximação acadêmica, identificação com o problema, além de permitir aproximação

dos agentes e fatos sociais envolvidos na pesquisa, segundo Gil (1999).

Ainda acerca da história oral, convém acrescentar a noção de que esta

corresponde essencialmente a uma história de vida28. Como parte da metodologia de

pesquisa, a história oral assenta em realizar entrevistas induzidas, instigadas e

registradas (por meio de gravações) com pessoas que podem testemunhar a respeito

de acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou outros aspectos da

contemporaneidade. Debert (2004), em conformidade com Queiroz (1998), assinala

que a utilização da história oral possibilita ―o estabelecimento de uma conversação ou

um diálogo entre informante e analista.‖ (P.142).

Como leciona Haguette (2001), a história oral, a história de vida e a

entrevista são técnicas que não podem ser vistas de maneiras individuais, haja vista

que o produto da relação entre estas formam um ―conjunto de depoimentos que

informam o todo de um determinado projeto de pesquisa‖. (P.94).

De acordo com Queiroz (1998), a entrevista, nas Ciências Sociais, é a

maneira mais antiga e difundida de coleta de dados orais. Quanto à captação dos

dados, argumenta que esta provém da habilidade do pesquisador em orientar o

informante para ponderar sobre o tema pretendido, haja vista ser este último quem:

[...] conhece o acontecimento, suas circunstâncias, as condições atuais ou históricas, ou por tê-lo vivido, ou por deter a respeito

28

Ao abordar os métodos qualitativos de análise, dentre os quais a história de vida, Debert (2004) menciona que têm elevado cada vez mais seu prestígio perante os cientistas sociais.

Page 55: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

53

informações preciosas, as quais ora fornecem dados originais, ora complementam dados já obtidos de outras fontes. Na verdade, a entrevista está presente em todas as formas de coleta dos relatos orais, pois estes implicam sempre num colóquio entre pesquisador e narrador. (P.8).

Na perspectiva de Oliveira (1999), a oralidade não é uma descrição seca,

fria e distante. Esta é, portanto, rica em expressões, emoções, palavras, e, por que

não dizer em silêncio, o qual não deve ser ignorado. Tal atitude é abordada pelo autor

há instantes mencionado que faz um importante alerta para o pesquisador:

Silêncio e infelicidade, assim, andando de mãos dadas, no coração e no semblante dos que vivem a opressão, podem sugerir ao cientista distanciado ou ao pesquisador mais afoito de que ali existe passividade e conformismo. (OLIVEIRA, 1999: p. 53).

No que diz respeito à relação existente entre ciência/pesquisa e cotidiano,

Debert (2004) chama a atenção para ―a importância de darmos condições aos

informantes de nos levar a ver outras dimensões e a pensar de maneira mais criativa a

problemática que, através deles, nos propomos a analisar.‖ (P.142).

Assim sendo, pode-se perceber que, ao relatar a sua vida para o

pesquisador, a pessoa passa a ser contextualizada na conjuntura social, sendo,

portanto, estabelecida uma conexão entre o individual e o coletivo. Deste modo, esta

análise possibilita ao pesquisador uma perspectiva de apreciação de um fenômeno

mais global. Para Sader e Paoli (2004), ―os pesquisadores operam um movimento que

os leva da aparência à essência, que constitui a realidade encoberta dos fenômenos‖.

(P.64)

Complementando a exposição ora exteriorizada por Sader e Paoli (2004),

Debert (2004) acrescenta ainda que, mediante a utilização da história de vida, espera-

se ―é que a partir dela, da experiência concreta de uma vivência específica, possamos

reformular nossos pressupostos e nossas hipóteses sobre um determinado assunto.‖

(P.142).

Vale frisar que, embora o objetivo do pesquisador seja trabalhar as

narrativas que ganham voz na fala de seus sujeitos, por intermédio da história oral,

Page 56: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

54

pretende-se ir além da teia instigante dessa forma discursiva. Destarte, neste estudo,

será privilegiada também a pesquisa do tipo bibliográfica, documental e de campo.

Com efeito, Bourdieu (1989) orienta no sentido de que se deve romper

com o monoteísmo metodológico. Faz, então, um importante alerta, ao mencionar que

―(...) tentar em cada caso, mobilizar todas as técnicas que, dadas as condições

práticas de recolha dos dados, são praticamente utilizáveis‖. (P.26).

Ainda seguindo o pensamento desse sociólogo francês, em harmonia com

Oliveira (1999), destaca-se que a pesquisa é bastante séria e difícil, logo, o

pesquisador deve ter cautela para não confundir a rigidez (oposto da inteligência e da

intervenção), com o rigor, ficando privado de usar este ou aquele recurso entre a

diversidade que podem ser ofertados pelo ―conjunto das tradições intelectuais da

disciplina e das disciplinas vizinhas.‖ (P.26).

Quanto aos instrumentos utilizados no decorrer da investigação, destacam-

se os seguintes: entrevista29 (do tipo semiestruturada) e análise de depoimento30, bem

como história oral (anteriormente citada), sem desconsiderar as conversas informais

com os sujeitos.

Convém partilhar a idéia de que o exercício de observação foi expediente

que se acompanhou a cada encontro (totalizando em nove), conquanto, tenha se

intensificado no momento da conversação. Assim, à medida que o gravador registrava

a fala dos sujeitos da presente pesquisa, não desprezava o desígnio demarcado de

―decifrar a linguagem não verbal e o ambiente daquela situação‖. (OLIVEIRA, 1999:

p.61). É válido lembrar que as entrevistas não foram o único instrumento da presente

pesquisa, haja vista ter sido associadas à observação. A combinação destas práticas

foi facilitada pela utilização (permitida) do gravador.

Do ponto de vista de Cardoso (2004), observar corresponde:

Contar, descrever e situar os fatos únicos e os cotidianos, construindo cadeias de significação. Este modo de observar supõe, como vimos,

29

Vale frisar que é pela da entrevista que o pesquisador apreende os informes contidos na fala dos atores sociais. As entrevistas foram realizadas durante os meses de agosto e setembro de 2012.

30

A pesquisa se concentra na análise de depoimentos, a qual conforme Durham (2004), tem na ―entrevista o material empírico privilegiado‖. (P.26).

Page 57: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

55

um investimento do observador na análise de seu próprio modo de olhar. (P. 103).

Informa-se não ter havido qualquer oposição ao uso deste aparelho, por

parte dos narradores. Confessa-se que, em alguns contatos, se optou por gravar e

registrar no caderno tudo o que diziam. Tais anotações foram de grande valor, haja

vista que a fala lenta e baixa das avós, muitas vezes, configurou maior dificuldade

para transcrever as conversas. Quanto à escolha das depoentes, se falará mais

adiante31. Enfim, nada era impossível, haja vista que o interesse e a paixão pelo objeto

de pesquisa ainda são bem maiores.

Sobre o uso do gravador como meio de registro, conforme Queiroz (1998),

este reaviva o relato oral e possui relevância, à medida que encerra maior precisão e

capacidade de ―conservar á narração uma vivacidade de que o simples registro no

papel as despojava, seu vaivém no que contava, constituíam outros tantos dados

preciosos para estudo‖. (P.03).

Quanto à técnica da entrevista, Haguette (2001) argumenta que

A entrevista pode ser definida como um processo de interação social entre duas pessoas, na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a obtenção de informações por parte do outro, o entrevistado. As informações são obtidas através de um roteiro de entrevista constando de uma lista de pontos ou tópicos previamente estabelecidos de acordo com uma problemática central e que deve ser seguida. (P. 86).

No que se diz respeito à diferença na escolha entre as técnicas de história

de vida e depoimentos, na óptica de Queiroz (1998), esta não implica, somente,

diferenças no modo de aplicá-las, mas, inclusive, e, principalmente, na diferença

presente nas ansiedades do pesquisador com relação às informações que se almeja

obter.

Vale frisar que a intenção desta pesquisa não é conhecer a sequência de

vida de seus sujeitos. Por conseguinte, foi eleita a coleta de informações por meio de

seus depoimentos, os quais tiveram durações variáveis de trinta a cinqüenta minutos..

Como se verifica, no depoimento, o colóquio é dirigido abertamente pelo pesquisador;

31

No item 4.2.1 Sobre as informantes: as vós...

Page 58: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

56

enquanto, na história de vida, a conversa é conduzida pelo narrador. (QUEIROZ,

1998: p.11)

Sobre o depoimento, Queiroz (1998) adverte ainda para a noção de que:

Ao colher um depoimento, o colóquio é dirigido diretamente pelo pesquisador; pode fazê-lo com maior ou menor sutileza, mas na verdade tem nas mãos o fio da meada e conduz a entrevista. Da ‗vida‘ de seu informante só lhe interessamos acontecimentos que venham se inserir diretamente no trabalho, e a escolha é unicamente efetuada com este critério. Se o narrador se afasta em digressões, o pesquisador corta-as para trazê-lo de novo ao seu assunto. Conhecendo o problema, busca obter do narrador o essencial, fugindo do que lhe parece supérfluo e desnecessário. E é muito mais fácil a colocação do ponto final neste caso, assim que o pesquisador considere ter obtido o que deseja. A obediência do narrador é patente, o pesquisador tem as rédeas nas mãos. A entrevista pode se esgotar num só encontro; os depoimentos podem ser muito curtos, residindo aqui uma de suas grandes diferenças para com as histórias de vida. (P.10)

Freitas (2006) empreende um exame com relação à coleta de

depoimentos, a qual pode ser traduzida num amplo empenho de reaver a palavra de

sujeitos que, sem a interferência de um pesquisador, não deixariam qualquer registro

e/ou testemunho. Acrescenta ainda que, por via do trabalho elaborado por um

historiador oral, pretende-se registrar experiências e representações do indivíduo, ao

considerar sua inserção num contexto social.

Ainda sobre os instrumentos metodológicos utilizados no trabalho de

campo: a entrevista32 e a observação direta, a qual impõe uma relação social com o

meio estudado. Minayo (1995) ressalta que a entrevista ―se insere como um meio de

coleta dos fatos relatados pelos autores sujeito-objeto da pesquisa que vivenciam uma

determinada realidade que está sendo focalizada‖. (P.57).

Contribuindo neste debate, quanto ao uso de entrevistas em pesquisas

qualitativas, Haguette (2001) pondera que ―Estudos qualitativos raramente podem

estabelecer, de antemão, quantas pessoas serão pesquisadas, uma vez que tal

número vai depender da qualidade das informações fornecidas pelos próprios

32

Ressalta-se aqui que as entrevistas não consistiram no único instrumento de coleta de dados desta pesquisa, haja vista ter buscado associá-las á observação. Acrescenta-se ainda que nenhum dos sujeitos deste trabalho demonstrou qualquer objeção quanto ao uso do referido equipamento. Quanto ao motivo da pesquisa em alusão, informa-se que este foi explicado com toda clareza aos sujeitos.

Page 59: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

57

informantes‖. (P.57). E acrescenta que à medida que as entrevistas se repetem em

conteúdo, ou seja, não acrescentando nada mais às informações obtidas, chega-se ao

momento de saturação qualitativa, ocasião propícia a encerrar tal procedimento.

No tocante à observação direta, prática rotineira adotada pelo Serviço

Social, nesse trabalho, esta possibilitará comparar as informações obtidas, verificar o

nível de emoção dos entrevistados e suas atitudes com relação ao assunto em alusão.

O ato de observar corresponde a um dos modos mais comuns, entre os

seres humanos, empregado para conhecer e compreender pessoas, objetos e/ou

situações. Na pesquisa, observar é também aplicar os sentidos, com a finalidade de

obter determinada informação sobre algum aspecto da realidade estudada. Assim

sendo, a observação é fator essencial para a pesquisa, sobretudo, a que tem enfoque

qualitativo. A observação direta, como uma das técnicas de coleta de dados,

corresponde também às visitas ao campo de pesquisa. Vale destacar o fato de que as

observações podem variar de atividades formais e informais, durante a coleta de

evidências.

Para a pesquisa documental, foram utilizados tanto o diagnóstico social33

quanto cadastros socioeconômicos, os quais correspondem a instrumentais

fundamentais no trabalho cotidiano dos profissionais34 de Serviço Social, da

Coordenadoria de Habitação, tanto no atendimento social ao usuário em geral, quanto

à aplicação deste no atendimento aos beneficiários de programas habitacionais.

Quanto ao levantamento bibliográfico, Gondim (1999) acentua que este:

[...] é um processo que se verifica ao longo de toda elaboração da tese: irá continuar durante a pesquisa de campo e na fase de análise dos dados, e mesmo durante a redação dos capítulos da dissertação, quando se constatar a necessidade de leituras complementares. (P. 32).

Assim sendo, ela se reporta à importância de uma constante revisão de

literatura para que haja o embasamento das idéias contidas no corpo do texto,

garantindo, assim, qualidade ao objeto estudado.

33

Documento, elaborado por assistentes sociais, que apresenta a realidade social da área e sujeitos ora analisados.

34

Considerando aqui toda a equipe social, composta por assistentes sociais e estagiários do setor.

Page 60: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

58

A pesquisa bibliográfica permite a apreensão das informações de várias

vertentes teóricas referentes às categorias família e velhice (relações

intergeracionais), como também o pronunciamento de alguns autores concernente ao

tema em debate. Vale destacar, todavia, que a revisão bibliográfica incidiu durante

todo o processo de elaboração desta pesquisa.

A pesquisa de campo contou com observações técnicas do diário de

campo. A utilização das anotações neste refere-se a alguns acontecimentos, falas,

impressões orientadas durante toda a pesquisa, haja vista que um dos locais

propostos para coleta de dados, COHAB, já foi campo onde já trabalhou a

pesquisadora. Desse modo, vale frisar que esse contato cotidiano permitiu maior

apreensão das relações que se estabelecem no dia a dia, contribuindo, assim, ao final,

para análise dos dados.

Minayo (1995) evidencia o argumento de que o diário de campo consiste

em ser ―um amigo silencioso‖, o qual não pode ser subestimado no tocante à sua

importância. Referida autora acrescenta ainda que sobre ele o pesquisador se debruça

no intuito de obter detalhes, os quais em seu somatório vão congregar os diferentes

momentos da pesquisa.

O registro no diário de campo tem como objetivo suplementar com maior

riqueza de detalhes o fenômeno estudado, no que concerne, segundo Martinelli

(1999), a captar conteúdos não coletados em dados estatísticos, em arquivos e

documentos oficiais, entretanto, são desvendados pela pesquisa qualitativa.

É importante ressaltar que, na qualidade de investigador social, é preciso

adotar atitude metodológica sempre voltada para o imparcial e o incompleto, ou seja,

compreender que todos os aspectos investigados e selecionados devem ser revistos

permanentemente, de modo que não se há de mencionar fatos e constatações como

sendo absolutos e/ou inquestionáveis.

Convém compartilhar aqui, porém, sobre os anseios que se guardaram

vivenciados durante a investigação, elaboração deste estudo e contatos iniciais com

os depoentes, os quais podem ser constatados em alguns registros elaborados no

diário de campo, como, por exemplo:

Page 61: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

59

[...] Muitas são minhas inquietações enquanto pesquisadora. Os questionamentos quanto à abordagem aos depoentes estão constantemente a me acompanhar...Como será o momento de chegada a cada domicílio ? Quais serão suas reações frente ao teor da minha pesquisa ? Como irão compartilhar comigo seus segredos e dores de ordem tão familiar... Revelações que, talvez, nunca fizeram a ninguém... Por falta de oportunidade? Falta de confiança? Por não ter a quem? Por naturalizar a situação? Sinceramente, não sei !!! Acredito que tudo fluirá aos poucos, que o tempo e o vínculo estabelecidos serão pontos fortes para esta ocasião. Vou seguir em frente !. (Diário de Campo, 10 ago. 2012)

Vale frisar aqui o contínuo ―tecer‖ do pesquisador, pois, por muitas vezes,

pensando que se havia concluído um capítulo, teve-se de que retomá-lo, rever,

acrescentar, ler e reler até atingir o produto final. Em outros termos, a pesquisa

corresponde a um trabalho artesanal, dotado de esforço, paciência e dedicação

conforme a compreensão de Gondim e Lima (2002).

Dessa forma, ao finalizar este tópico, convém retomar os autores Gondim

e Lima (2002), quando estes esclarecem que as fases constitutivas da pesquisa ―não

se desenvolvem de maneira estanque, mas se retroalimentam mediante o trabalho

sistemático e cotidiano dos artesãos-pesquisadores‖. (P.81). Logo, a pesquisa deve

ser considerada como um processo contínuo e inacabado.

2.3 Compartilhando Algumas Impressões de campo...

Algumas vezes, questionava-se sobre o que a visita suscitaria no

repensamento daquela relação intergeracional, o que as avós participantes sentiam

depois que se saia, no que concerne às revelações feitas por elas sobre histórias tão

intimamente familiares. Entretanto, ouvir esta frase final trazia toda satisfação e

alegria: Quando precisar pode vim. Mesmo que já tenha terminado a pesquisa, passe

para fazer uma visitinha !

Evidencia-se que não é fácil estimular as pessoas a falarem sobre

questões intra-familiares, experiências dolorosas, acontecimentos íntimos e

Page 62: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

60

comprometedores ao âmbito familiar, bem como a respeito de temas que a sociedade

rejeita, dentre os quais a velhice. Daí, os constantes silêncios observados nas

narrações, situações que, conforme Alcântara (2010), correspondem a ―abafos

repletos de significados e, é mais do que compreensível, devem ser respeitados.‖

(P.83).

Assim sendo, vale lembrar que na elaboração e reformulação da pesquisa,

cabe ao investigador estar atento às tensões implícitas, como sugere Bosi (2003).

Alguns momentos foram de relatos felizes (acompanhados de risos), embora outros

tinham sido tristes, tensos (entre silêncios, lágrimas e/ou de expressões do próprio

corpo).

É válido frisar que apesar desta pesquisa ser constituída por falas,

verbalizações, está também permeada por silêncios, os quais não podem ser

analisados como involuntários, ou como ―coisas da idade‖, haja vista que, segundo

Orlandi (2002), o silêncio é repleto de significados. Não é visível, é apenas observável,

e, destarte, escorre por entre as falas.

Nesse sentido, semelhantemente à multiplicidade de sentidos presente nas

palavras, o silêncio também exprime sua complexidade no relato da experiência do

indivíduo. Os sentidos desses vazios foram apreendidos por meio de gestos,

movimentos expressos pelo próprio corpo, conforme também abordado por Grossi e

Ferreira (2001), neste estudo, com ênfase nas mãos e rosto das avós entrevistadas.

Quanto à relação entre o narrador e o pesquisador, Bosi (2003) esclarece

que,

O narrador está presente ao lado do ouvinte. Suas mãos, experimentadas no trabalho, fazem gestos que sustentam a história, que dão asas aos fatos principiados pela sua voz. Tira segredos e lições que estavam dentro das coisas, faz uma sopa deliciosa das pedras do chão, (...). A arte de narrar é uma reação alma, olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria, a vida humana. (P.90).

Portanto, não se poderia deixar de registrar o fato de que, no decorrer

desta investigação, as idas e vindas ao campo foram momentos riquíssimos de

Page 63: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

61

experiências, tanto como pesquisadora, quanto como ser humano, ao se ouvir as

vivências dessas avós.

2.4 Sobre As informantes: as avós ...

No Residencial Vitória, conforme visto anteriormente no quadro

denominado Faixa Etária Geral35 da população, consta o total de sete pessoas

contempladas com unidade habitacional com idade acima de 59 anos. Considerando o

respectivo perfil dessa pesquisa, no entanto, com vistas a atender os objetivos desta,

foram identificadas três avós. Vale frisar que havia outras avós (velhas) que cuidavam

de netos, mas que, por outras circunstâncias (doença, avanço da idade, ou

emancipação dos netos), já não cuidavam mais...

Ora, se o objetivo macro desta investigação consistia em ampliar o debate

sobre as relações intergeracionais, estudando as avós envelhecidas que cuidam de

netos, e, assim poder-se compreender as características que estas assumem na

reorganização do contexto familiar, o caminho foi partir desse cenário como critério de

escolha. Neste estudo, foram colhidos relatos de mulheres com faixa etária

compreendida entre 61 e 74 anos. Daí por diante, o próprio cotidiano do campo de

pesquisa sugeriu os sujeitos para esta pesquisa, haja vista que se acompanhou parte

do Trabalho Técnico Social (incluindo o antes e pós-entrega dos imóveis).

A aproximação com os sujeitos deste estudo aconteceu de forma tranqüila,

e os primeiros contatos (com as avós pesquisadas) foram mediados pelas assistentes

sociais que trabalham com as famílias do Residencial Vitória. Todavia, essas

profissionais não permaneciam no momento das entrevistas para que as avós se

sentissem ―á vontade‖ para falar. No primeiro encontro, havia toda a preocupação e

sensibilidade da pesquisadora em explicar a pesquisa, bem como fazer o convite às

avós.

Cabe aqui recordar as palavras de Oliveira (1999), quando relata a

importância de um mediador:

O primeiro contato sendo feito por um mediador que é, ao mesmo tempo, uma pessoa conhecida não oferece constrangimento algum para eventuais recusas e, no caso de assentimento ao convite,

35

Ver em Cap. 2, item 2.1.4 - Retrato Social dos Moradores.

Page 64: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

62

garanta ao pesquisador que os sujeitos estão predispostos a atuar cooperativamente. Além disso, o pesquisador nunca é confundido com um fiscal, um assistente social ou profissional qualquer que possa ser identificado no universo do eles, lembrando Hooggart. (P. 59).

A conquista dos sujeitos ocorreu de forma gradativa. A relação de

confiança e o vínculo com os sujeitos deste estudo cresciam a cada encontro,

surgindo, assim, sempre um ―detalhe a mais‖ nos relatos das vivências destas avós e

seus netos. Nos momentos de campo, durante a elaboração desta pesquisa, se tomou

sempre o cuidado de não ser classificada como ―a assistente social‖, haja vista nunca

ter atuado profissionalmente naquela comunidade.

Embora já tendo o acesso aos cadastros e ao perfil do grupo de moradores

do Residencial Vitória, antes mesmo das visitas de caráter exploratório, permitiu-se

que o próprio ambiente de pesquisa influenciasse na escolha dos sujeitos a serem

trabalhados. Assim sendo, os próprios moradores (diga-se, especificamente, ás

mulheres donas de casa) que pela manhã se encontrava realizando as atividades

domésticas, a elas destinadas, tais quais: lavando roupas, fazendo o almoço, cuidando

da casa e das crianças... Estas também contribuíram no ―apontar‖ dos sujeitos desta

pesquisa; situações confirmadas na fala daquelas profissionais (assistentes sociais e

estagiários de serviço social) que destinavam seu dia a dia de trabalho naquela

comunidade, e, portanto, suas orientações foram imprescindíveis.

Impende relatar-se que, muitas foram as vezes que, ao se chegar ao

Residencial (pela manhã), era-se indagada: ―Você está fazendo a pesquisa das avós,

não é? Muito importante mesmo... uma coisa que vai pra faculdade...Mas, [risos] por

que só pode ser as pessoas velhas?” . Nestas ocasiões, sempre se detinha á atenção

em explicar com detalhes o foco e as categorias desta pesquisa.

Embora se notasse que a informação era compreendida por elas,

observava-se que outras avós (jovens) gostariam também de falar um pouco sobre a

realidade que as cercava. Às vezes, elas não se continham e até comentavam... “eu

também sou avó! mas, ainda não sou velha...”. O fato de ser ainda jovem, e, portanto,

não poder fazer parte desta pesquisa era um consolo, haja vista que a imagem da

velhice é, comumente, identificada, apontada e/ou observada, somente, no outro.

Page 65: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

63

Nesse sentido, Bosi (2003) alerta para a noção de que a velhice ―é uma situação

composta de aspectos percebidos pelo outro (...)‖. (P.79).

Convém evidenciar que o contato estabelecido entre a pesquisadora e o

local da pesquisa consiste num fator relevante do trabalho, com vistas a não perder a

oportunidade de enriquecê-lo e aprofundá-lo com outras possibilidades de

conhecimento, conforme orienta Oliveira (1999). Faz-se necessário sentir o campo de

pesquisa, não desconsiderar nada. Assim, Oliveira (1999) destaca que ―(...) a afeição

das pessoas da vizinhança é uma forma de mergulhar na vida dos sujeitos estudados‖.

(P.62)

Sem deixar nada passar despercebido, buscou-se expor no transcurso das

narrativas as impressões, não restrita ao que se conseguia captar nos entrevistados,

no entanto, também ao que se passava no interior.

Sobre tal capacidade, assenta-se, aqui a ponderação de Oliveira (1999):

Isto quer dizer levar sempre em consideração os outros: seus gestos, seus olhares, seu desprendimento, seus silêncios, seus modos de relacionamento com seus familiares ou com amigos, sem descuidar ainda dos objetos à sua volta. (P. 61).

Com pertinência às peculiaridades dos narradores, ou as características

destinadas à categoria que se decidiu estudar, informa-se que estas foram contadas

oralmente e transcritas tal como colhidas de suas vozes. São limites da idade,

partilhados nas entrevistas, bem como observados na fala, dentre outros, fatos estes

abordados por Bosi (2003), ao se fazer opção por este objeto de pesquisa:

E eles encontraram também os limites de seu corpo, instrumento de comunicação às vezes deficitário. Quando a memória amadurece e se extravasa lúcida, é através de um corpo alquebrado: dedos trêmulos, espinha torta, coração acelerado, dentes falhos, urina solta, a cegueira, a ânsia, a surdez, as cicatrizes, a íris apagada, as lágrimas incoercíveis. (P. 39).

Page 66: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

64

O respeito ao narrador e a atitude do pesquisador, seguidos nesta

pesquisa, foi ponderado por Bosi (2003) e também enfatizado em Oliveira (1999)

quando esse autor alerta sobre os deslizes que devem ser evitados pelo pesquisador,

a saber:

[...] saber esperar, ter paciência, evitar os limites da inconveniência, aprender a conviver com o tempo dos entrevistados , alimentar as conversas conforme a receptividade, manter pontualmente os compromissos e procurar não solicitar dos sujeitos o que eles não têm, como algo já elaborado, no registro de suas consciências (...). Todos esses procedimentos não comportam regras fixas. Vão sendo trabalhados na medida das circunstâncias e da percepção do pesquisador (...). (P. 59).

Em Bosi (2003), é possível compreender a figura do narrador como ―um

mestre do ofício que conhece seu mister‖, uma vez que seu talento de narrar advém

da experiência, com lições que ele extraiu da própria dor e, por conseguinte,

demonstra dignidade em contá-la até o fim, e sem medo. Para a autora sob menção:

―uma atmosfera sagrada circunda o narrador‖. (P.91).

No caso desta investigação, que teve como foco o segmento da população

envelhecida, com um recorte aos velhos (no eufemismo da sociedade, chamado de

idosos36) avós que cuidam de seus netos, desenvolvida com base em três histórias

orais, faz-se relevante que o pesquisador esteja atento ao que já não se pode ouvir,

que não perca de vista o sentido dessas relações ligando-as não somente em âmbito

individual, todavia, também no coletivo. Nesse sentido, Bosi (2003) colabora,

explanando no seguinte exemplo:

Imagine-se um arqueólogo querendo reconstituir, a partir de fragmentos pequenos, um vaso antigo. É preciso mais que cuidados e atenção com esses cacos; é preciso compreender o sentido que o vaso tinha para o povo a quem pertenceu. A que função servia na vida daquelas pessoas? Temos que penetrar nas noções que as orientavam, fazer um reconhecimento de suas necessidades, ouvir o que já não é audível. Então recomporemos o vaso e conheceremos se foi doméstico, ritual, floral...(P. 414).

36

Consideram-se como idosos os indivíduos com sessenta anos ou mais, dado ser este o corte etário utilizado pela Política Nacional do Idoso, (Lei 8.842, de 4 de janeiro, Cap. I, art. 2).

Page 67: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

65

Em informações mais amplas sobre do público-alvo deste trabalho, tem-se

este como pessoas que vivem (e algumas vezes, até sobrevivem) de modo simples,

ou seja, oriundos de áreas de riscos e/ou condições mínimas de habitabilidade37.

Possuidores de pouca e/ou nenhuma qualificação profissional (baixo nível

de instrução educacional), estas famílias enfrentam dificuldades no tocante à condição

de ascensão e até mesmo de melhores condições de vida. Assim sendo, estes

sujeitos expressam, em seu cotidiano, a carência da intervenção do Poder Público,

considerando seus variados níveis de atuação.

Convém destacar a noção de que, no decorrer desse tópico, foram

traçadas linhas que configuram a singularidade de cada uma das informantes, embora

também revelem o coletivo que passeia por esse trajeto. Faz-se necessário ressaltar

que o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido38 foi assinado por todas as

depoentes. Na ocasião, as participantes eram esclarecidas, quanto a este ensaio, e,

por meio deste documento, as avós se declaravam cientes de suas participações na

pesquisa, iniciando, dessa forma, a coleta de dados.

Quanto aos nomes verdadeiros das avós, ora sujeitos deste estudo,

informa-se que foram substituídos por nomes fictícios e comuns39: Ana, Conceição e

Rosa, a fim de resguardar a identificação de cada informante, netos e família, fato este

compreendido nas palavras de Oliveira (1999), quando enfatiza que ―nomes trocados

não invalidam a pesquisa, não distorcem conteúdos e protegem a intimidade dos

sujeitos.‖ (P.64).

Quem são, no entanto, essas avós-personagens de trajetórias em comum?

Então, a seguir uma breve apresentação dessas depoentes...

A Dona Conceição, casada, com 67 anos de idade, evangélica, do lar.

Minha profissão é cuidar de casa. Tem seis filhos, sendo: quatro mulheres e dois

37

Que reúne condições/possibilidades de ser habitado. Conforme consulta, no dicionário Aurélio: ―Qualidade de habitável‖. 38

Este se encontra, no final deste trabalho, em ―apêndices‖.

39

Ao designar nomes fictícios tidos como ―comuns‖ para os sujeitos desta pesquisa, pretendeu-se proporcionar ao leitor uma aproximação com a realidade do fenômeno investigado.

Page 68: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

66

homens, sendo um dos quais adotivo40. A renda familiar corresponde às

aposentadorias do casal, de um salário-41mínimo cada qual, e nada mais. Composição

familiar no domicílio: Dona Conceição, o marido Sr. João, também com 67 anos de

idade e o neto Elias, 09 de nove anos. Convém informar que Elias não é o primeiro

neto que a Dona Conceição ―cria‖, pois, a entrevistada relatou ter “cuidado” de Perla,

filha de outra filha.

- Aqui também tinha uma moça...Mais, ela saiu também de dentro de casa...Mais, era neta também e eu criei desde novinha. Cuidei desde pequenininha. Desde a hora que nasceu. Aí, ela namorava com um rapaz, aí se ajuntou com o rapaz, mora lá pra bando do Boa-Esperança. Aí, ficou só eu, o João e o Elias. Ela ainda não tinha completado os vinte não! (Depoimento concedido por D. Conceição, 67 anos).

A genitora de Perla é a filha mais velha da entrevistada e, atualmente,

mora em São Paulo-SP, após casar-se (pela segunda vez), e, como seu marido foi

trabalhar nesse Estado, ela o acompanhou. Sobre o casal, o homem não é o genitor

de Perla. A Dona Conceição assumiu financeiramente Perla e sua mãe, durante

muitos anos, até que decidiu enfrentar um novo relacionamento e Perla permaneceu

com sua avó.

A mencionada família, antes de se mudar para o Residencial Vitória,

residia no Município de Pacatuba-CE. Durante as visitas, a conversa se desenvolvia

mesmo com a Dona Conceição, que inicialmente estava um pouco receosa em relatar

suas vivências familiares, mas, que depois do primeiro encontro, se demonstrou

comunicativa e interessada na pesquisa.

O Sr. João, sempre estava em casa na hora das entrevistas, todavia, era

mais calado e introvertido. Não participava com palavras, mas sentava-se pertinho de

sua mulher, no sofá da sala, ouvindo toda a conversa. Sempre atenta a ele, não se

perdia um só gesto de confirmação (feito com a cabeça) aos relatos de Dona

Conceição. Em outras vezes, soava baixinho aquele “é verdade !” . Vale ressaltar que

40

―mas, hoje em dia ele sabe quem é a mãe dele, porque eu disse a ele‖ (D. Conceição). Este filho adotivo, atualmente, tem 28 (vinte e oito) anos de idade, não possui laços de parentesco e/ou de consangüinidade com a informante. Todavia, é legalmente filho dela, ou seja, ―registrado em cartório‖.

41

Valor do salário-mínimo em vigência: R$ 678,00 (seiscentos e setenta e oito) reais. (Reajustado em 01.01.2013).

Page 69: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

67

a Dona Conceição enfatizou, no seu dia adia, cuidar, além do neto, também de seu

esposo que já possui mais idade que ela, e que, anteriormente, sobrevivia e

sustentava a família com a agricultura, mas hoje possui saúde e semblante

desgastados pela dureza das atividades laborais.

Outra é a Dona Rosa com 61 anos de idade, doméstica, mas, atualmente,

não pode trabalhar em virtude de problemas de saúde (câncer). É beneficiária do

auxílio-doença do INSS, o qual corresponde a um salário-mínimo. Viúva há 11 anos.

Antes de morar no empreendimento, local da pesquisa, residia em Fortaleza, no bairro

Messejana.

No domicílio, atualmente, residem ela e o neto Elson, de 11 anos. Ela

também cuidou de outros dois netos, desde que eles nasceram - Bia e César –

respectivamente, com 15 e 16 anos de idade. Dona Rosa, apesar de ser a mais nova

entre as depoentes, sempre mencionou as limitações que a doença lhe proporcionou.

A patologia era citada em todas as conversas, bem como a vontade de viver...e, às

vezes, a desesperança também surgia...

- Eu era muito felliz, né! Mas, depois que eu descobri que eu tinha essa doença...Eu fiquei assim meia...Assim, parte da minha vida...(lágrimas). (Depoimento concedido por D. Rosa, 61 anos).

Há seis anos, Dona Rosa foi acometida pela enfermidade acima citada e,

ainda luta contra sua doença trouxe muitas modificações em seu viver, dentre elas a

de necessitar residir três anos com uma filha, logo no início da doença. Contou ainda

que a doença reduziu demasiadamente suas atividades, inclusive a de que ela mais

gostava - cuidar dos netos - haja vista que ela teve que se afastar gradativamente

daqueles netos que criava. Foi tão doloroso quando eu me separei deles, e esta

separação deu-se devido á doença.

Vale frisar, contudo, que, mesmo com o desafio diário de lutar contra essa

doença, a Dona Rosa sempre recebeu muito bem a pesquisa, sorridente, expressiva e

muito atenciosa. Quanto à importância em falar sobre o assunto deste estudo,

Dona Rosa não atendia a visita de vizinhos, nem sequer telefone. Certa vez, durante uma entrevista, o celular tocou. Mas, ele não quis atender. Falei para ela que eu aguardaria, e que ela podia atender,

Page 70: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

68

caso quisesse. Mas, ao atender sua reação foi: olha eu to fazendo uma entrevista aqui com a moça. Depois, eu ligo. Pronto ! Diga... e voltou-se para mim, sem perder tempo. (Diário de Campo, 30 set. 2012)

Com seu jeito simpático, não queria que seu problema de saúde (e a

tristeza que advinha deste) interferisse na qualidade de seus relatos, e, no final de

uma entrevista, expressou:

Eu espero que a história (risos) não seja muito (risos)...Por que a história é essa daí. E, até hoje, eu ainda sinto falta deles. Mas, num posso fazer nada. (Dona Rosa, 61 anos)

Dona Ana, viúva, 74 anos de idade, do lar, é a terceira avó que participou

deste estudo. Na residência, moram ela e seu neto, Pedro, de 16 anos. Esta

informante possui oito netos, e destes cuidou42 de dois - Pedro e Maria, ambos

adolescentes. Pedro é o único que ainda mora com ela. Com relação a Maria,

argumenta que até hoje ainda cuido, no sentido de realizar os desejos de consumo e

suprir as necessidades diárias.

Certo dia, ao chegar no Conj. Vitória, a D. Ana não se encontrava em casa. Interessante é que mesmo com toda a proximidade da vizinhança, ninguém sabia onde ela estava. Posteriormente, quando a encontrei, ela falou baixinho (e fazendo gesto de silêncio), confidenciou-me um segredo...Ela havia ido ao centro comprar um presente para o neto uma televisão. E, não podia falar alto para não causar intrigas, nem ciúmes... (Diário de Campo, 04 jan. 2013)

Essa depoente possui limitações, ocasionadas pela idade, bastante

visíveis, bem como mencionadas por ela. Mesmo acometida de artrose, a Dona Ana é

uma das moradoras mais participativas nas atividades e reuniões do Trabalho Técnico

Social, ainda desenvolvido no empreendimento. Vale frisar que essa característica a

acompanha também em outras atividades, como, por exemplo, nas programações da

igreja evangélica, a qual a citada se congrega.

42

Aqui se referindo ao sentido de ―criar‖, pois, conforme ela mesma disse: ―desde o primeiro eu já cuido‖ (sic).

Page 71: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

69

Durante as visitas, Dona Ana sempre fazia questão de mostrar seu novo

material de cursos (livros e revistas da Escola Bíblica Dominical) que desenvolve em

sua igreja. O Livro Sagrado, a Bíblia, fazia parte do cenário da sala. Estudiosa,

atenciosa e emotiva, algumas vezes se emocionou durante seus relatos, não podendo

conter as lágrimas naquela ocasião ao falar sobre seu neto.

Faz-se necessário destacar o fato de que, em alguns momentos, sua filha

sentou-se numa cadeira na sala e ficou a escutar a conversa. Não houve interferência

ou qualquer outro contato negativo com relação a esta pesquisa; todavia, se

esclareceu sobre o trabalho e ela disse que já tinha ouvido falar por aqui, referindo-se

ao comentário de outras moradoras.

Algumas vezes, se percebeu nas entrevistadas o sentimento de valor que

elas expressavam no que se refere a fazer parte da pesquisa da faculdade, ao

receberem, mais uma vez a protagonista do estudo em seus apartamentos. Eram

momentos em que se sentiam importantes, como personagens principais da realidade

de experiências com seus netos. E, realmente, o eram.

2.5 Os domicílios

Era-se, frequentemente, bem recebida nas residências das entrevistadas

era sempre bem-vinda. Embora, algumas vezes, se percebesse que o período da

manhã (definido por elas) fosse um tanto quanto apertado haja vista os afazeres

domésticos e as responsabilidades com os netos, ainda conseguiam tempo para

compartilhar suas histórias, pois, conforme avalia Bosi (2003): ―uma pesquisa é um

compromisso afetivo, um trabalho ombro a ombro com o sujeito da pesquisa‖. (P.38)

Este representa fator de enorme relevância, bem como lembrado também

nas palavras de Bosi (2003), quando esta menciona sobre a alegria do velho ao relatar

sua história: ―Sua vida ganha uma finalidade se encontrar ouvidos atentos,

ressonância‖‘. (P.82). Seguindo esse raciocínio, Oliveira (1999) faz a seguinte

indagação: ―Quem ouve o que falam os velhos?‖. Nesta, o autor se reporta à exclusão

que tal segmento recebe da sociedade, o qual, muitas vezes, é semelhante ao que

acontece no ambiente familiar.

Bosi (2003), ao analisar a conversa de um velho, acrescenta ainda que

Page 72: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

70

A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda: repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens caras, pela desaparição de entes amados, é semelhante a uma obra de arte. (P. 82).

Na sucessão das visitas, conforme alerta Oliveira (1999), olhos e ouvidos

estavam atentos a tudo, haja vista a relevância desta interação, no decorrer da

pesquisa. Sobre essas ―faculdades do espírito‖, o autor complementa:

Portanto, se o olhar possui uma significação específica para o cientista social, o ouvir também goza dessa propriedade. Evidentemente tanto ouvir como o olhar não podem ser tomados como faculdades totalmente independentes no exercício da investigação. Ambas complementam-se e servem para o pesquisador como duas muletas- que não percamos com essa metáfora tão negativa – que lhe permitem caminhar, ainda que tropegamente, na estrada do conhecimento. A metáfora, propositalmente utilizada, permite lembrar que a caminhada da pesquisa é sempre difícil [...]. (P. 21).

Então, no exercício do olhar em escrita, decide-se repartir com o leitor o

subjetivo das relações representadas em objetos, fotos e seus significados. Os

apartamentos das avós entrevistadas eram todos simples, não significando dizer que

não havia ali um ambiente aconchegante, um ―sentido de pertencer‖, como aborda

Osterne (2001), observado na arrumação dos móveis (alguns poucos móveis), da

disposição dos quadros e das fotografias, do cheiro que exalava dos alimentos

preparados na cozinha, pelas próprias entrevistadas, das cortinas estampadas (que

dividiam ou serviam de portas em outros cômodos).

Ao se adentrar as salas, a organização e os significados dos objetos

impressionavam. Nestas, nem sempre o televisor ocupa lugar de destaque na estante,

a qual tem junto à sua decoração, bibelôs, quadros, fotografias, e a Bíblia, livro

fundamental de orientação, companheirismo, força e fé constantemente relatado nos

encontros com Dona Ana.

As fotografias, em sua maioria, apresentam registro de momentos

marcantes (casamentos, aniversários, dentre outros...) ou lembranças, com retratos de

familiares que residem distante (outras cidades e/ou estados) ou, até mesmo, já

falecidos. Estes registros fotográficos foram encontrados em todas as salas dos

Page 73: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

71

apartamentos das avós entrevistadas, expostos na parede, no móvel da sala ou na

estante.

No apartamento da Srª. Conceição, logo no primeiro encontro, ao contar

sobre o neto caçula que ainda criava, haja vista os demais já terem crescido e/ou

casado, a entrevistada retirou a foto do neto da parede para que se pudesse apreciar,

e, no decorrer da narrativa, não economizava palavras de orgulho por criá-lo, por sua

educação e comportamento; talvez, um sentimento de dever.

Evidencia-se o mosaico de fotos diversas, exposto na parede do

apartamento de Dona Conceição e elaborado por ela própria. Uma arte ! Este foi

cuidadosamente mostrado e explicado, particularizando cada uma das fotografias.

Considera-se que esta passagem ilustra bem a relevância de se manter uma relação

de proximidade com os entrevistados. Assim, compreendeu-se que havia estabelecido

com elas uma relação de confiança. Destaca-se que este vínculo de confiança se

avaliou como sendo bastante positivo, também durante as abordagens.

Quanto ao vínculo de amizade e confiança com as entrevistadas, Bosi

(2003) expressa que ele

[...]não traduz apenas uma simpatia espontânea que se foi desenvolvendo durante a pesquisa, mas resulta de um amadurecimento de quem deseja compreender a própria vida revelada do sujeito. (Pp. 37-38).

Ainda sobre a convivência estabelecida entre sujeitos e pesquisador,

Oliveira (1999) abordou muito bem ao mencionar que:

A convivência próxima aos sujeitos da pesquisa permite que os ensinamentos ultrapassem os limites do que é tematizado (...). Não importa que se trate de um movimento assimétrico, informalmente realizado, desencadeado às vezes por pessoas que mal conhecem as letras. Aqui elas são portadoras de um saber não codificado, tecidos nos fios da experiência vivida e, por isso, múltiplo e infinito. Não são lições de casa; são lições de vida. (p.: 266).

Page 74: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

72

Convém ressaltar a relevância da comunicação com o cenário da

pesquisa, na compreensão do fenômeno estudado. Conforme expressa Bosi (2003),

―Temos com a casa e com a paisagem que a rodeia a comunicação silenciosa que

marca nossas relações mais profundas.‖ (P.442). Segundo a citada, ―tudo fala!‖.

Page 75: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

73

3 DEBATE SOBRE A FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA

―A menos que modifiquemos a nossa maneira de pensar,não seremos capazes de resolver os

problemas causados pela forma como nos acostumamos

a ver o mundo"

Albert Einstein

3.1 A família no cotidiano da luta pela sobrevivência

Ao pensar em família, no contexto de uma sociedade capitalista, não se

pode desconsiderar que as desigualdades advindas deste modo de produção, as

quais suscitam a ―questão social43‖, afligem a categoria família, que também é alvo,

portanto, dos reflexos desses condicionamentos e/ou fatores externos.

Abordar o núcleo familiar é situá-lo como espaço indispensável para a

garantia da sobrevivência, de desenvolvimento, bem como de assistência integral dos

filhos e dos demais membros, independentemente do modo de sua organização e/ou

estruturação. Pode-se dizer, destarte, que a família corresponde a um fenômeno

universal, haja vista sua existência, nos mais diversos tipos de sociedade.

A família é constituída pela iniciação de socialização e aprendizado dos

afetos, bem como das relações sociais. Em consonância com esta afirmação, Petrini

(2003) destaca a idéia de que a família surge como lugar ―da gratuidade, do

acolhimento incondicional, que precede os cálculos da convivência, criando ao seu

redor, uma rede de solidariedade (...)‖. (Pp.5-6). Na família, logo, são propiciados os

aportes afetivos e, sobretudo, materiais, necessários com base nos relacionamentos

pessoais.

43

Definida por Iamamoto (2004) como, ―o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade

capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação de seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade‖. (P. 27)

Page 76: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

74

Alcântara (2010) contribui neste debate, acentuando o que exprime Pierre

Bourdieu para que

[...] o ‗espírito de família‘ como o estado de integração mútua entre os membros da família, no qual se estabelece em um cotidiano de trocas, ajuda mútua, festas comemorativas registradas nos álbuns fotográficos, produto de um consistente trabalho simbólico e prático. Nesse sentido, um verdadeiro trabalho de coesão, quer dizer, o de perpetuação do ‗sentimento familiar‘, um exercício de manutenção desempenhado principalmente pelas mulheres. (P. 98)

Convém mencionar que a instituição família se encontra em constante

mudança e dinamismo, decorrentes da própria estrutura, bem como conjuntura da

sociedade. Nas famílias mais pobres, como, por exemplo, os interlocutores desta

pesquisa, as trajetórias e movimentos traçados no meio intrafamiliar ocorrem, muitas

vezes, do modo traumático, em razão da ditadura estabelecida, tanto pelas próprias

condições econômicas quanto na luta diária pela sobrevivência, quer seja individual ou

familiar. Cruz (2012) destaca ser esta uma ―época em que reina a luta pela

sobrevivência e, portanto, o individualismo (...)‖. (P.266).

Nos relatos de Dona Ana, sempre foi possível constatar a participação

dessa avó no que concerne à preocupação em proporcionar melhores condições

econômicas, mesmo aos netos que não residiam com ela. Durante os encontros com

esta entrevistada, a expressão ―mensalidades‖ era frequentemente usada, aludindo à

ajuda financeira que ela prestava, inclusive, aos netos que residiam em outras cidades

do interior do Ceará. Já no caso de Dona Conceição, tal auxílio aos demais netos

ocorria por meio de alimentos, ou mandando para as residências deles ou reunindo os

netos em sua casa nos horários das refeições principais.

A não naturalidade e a mutabilidade são características descobertas por

estudiosos acerca da instituição família. Para Bruschini (1990), estudar família é despi-

la de sua ―aparência de naturalidade percebendo-a como criação humana mutável‖.

(P.50). Vale frisar que essa autora defende família, não como instituição natural,

porém como um conjunto de indivíduos unidos por diferentes elos, podendo ser estes

constituídos por sangue, adoção ou aliança (casamento e/ou união estável).

Page 77: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

75

Assim, a família consiste numa elaboração social e simbólica, cujas

relações de parentesco são estruturantes da vida social. Nas palavras de Bruschini

(1990), ao pesquisar esta temática, deve-se considerar que

Se de um lado, portanto, o conceito de família se refere a um grupo social e empiricamente delimitável, de outra parte ele remete também a um modelo cultural e sua representação. A análise da família deve por isso mover-se nos planos das construções ideológicas e de seu papel na organização da vida social. (1990: p. 34).

Lasch (1991) ressalta a importância da família como locus privilegiado de

vivência autônoma, da intimidade e de proteção das pessoas ante o poder

normatizador e repressivo das instituições políticas e econômicas. Esse estudioso

concorda ainda com o pensamento de Szymanski (2003), quando esta declara que a

família, por dinamismo e contradição, também reproduz conflitos, violências e

rejeições.

A situação que envolve a realidade das famílias se caracteriza, também,

por problemas sociais de ordens diversas, como, por exemplo, as barreiras

econômicas, sociais e culturais que afetam diretamente o desenvolvimento integral de

seus componentes. Portanto, a família, como forma específica de agregação44, possui

dinâmica de vida própria, afetada também pelo desenvolvimento socioeconômico.

Neste sentido, Szymanski (2003) complementa, assinalando que refletir sobre família

é articular as idéias referentes a ela, no viver cotidiano.

Assim sendo, pode-se observar que a família está suscetível as pressões

internas (provenientes de mudanças evolutivas de seus membros), e externas

(oriundas das exigências para se adaptar às instituições sociais significativas, as quais

possuem impacto sobre os componentes da família). Responder a estas exigências,

tanto de dentro como de fora, demanda transformação constante nos membros desse

grupo primário, em relação um ao outro, de maneira que possa crescer, enquanto o

sistema familiar mantém continuidade.

44

Vale salientar que, ao núcleo familiar, novos membros se agregam, nascem, saem alguns para constituição de outras famílias, para enfrentarem o mercado de trabalho, assim como morrem. A família, portanto, corresponde a um processo interagente não só da vida, mas também das trajetórias individuais de cada um de seus membros.

Page 78: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

76

Ante as considerações ora expostas, torna-se possível compreender que a

família não é composta, apenas, por um grupo de pessoas unidas por afinidade e/ou

consangüinidade, todavia, como um espaço onde são atendidas as necessidades

vitais, bem como materiais, de seus membros. Tal afirmação é ratificada nas palavras

de Bruschini (1990):

[...] a família também persiste como universo vital porque nela necessidades da vida material são satisfeitas a partir de relações pessoais nas quais as emoções desempenham papel decisivo. Desejo, afeto, amor, ódio, desgosto, prazer, são sentimentos presentes nas relações entre cônjuges, pais e filhos e demais parentes. (P. 28).

Sobre os ―demais parentes‖, destacado nas palavras de Bruschini (1990),

destaca-se também a participação dos avós na atualidade, compreendidos, também

no campo das emoções, e, muitas vezes, por exercerem papel decisivos na vida de

seus netos. Peixoto (2000), complementa destacando que ―os avós brasileiros

participam intensamente da vida dos netos‖. (P.110). Convém salientar que esta

participação dos velhos, em seu núcleo familiar, aparece em duas vertentes:

subjetivas (amor, carinho...) e/ou materiais (garantia dos mínimos para a existência).

Neste experimento, estes mínimos foram relatados pelas avós de várias formas, como

alimentos, dinheiro, medicação e apoio no próprio domicílio.

Ainda se reportando à família e suas modificações ao longo do tempo,

Peixoto (2000) acrescenta:

De todo modo, contrariamente às aparências de desordem, apontadas na variação dos indicadores demográficos, as famílias continuam a contribuir para a reprodução biológica e social da sociedade, função que podemos considerar do ponto de vista socioantropológico como sendo universal. (Pp. 7-8)

Osterne (2001) contribui para este debate, ao analisar e definir a categoria

família:

[...] algum lugar seja o ‗lar‘, ‗a casa‘, ‗o domicílio‘, ‗o ponto focal‘, onde se possa desfrutar do sentido de pertencer, onde se possa experimentar a sensação de segurança, afetiva e emocional, onde se possa ser alguém para o outro, apesar das condições adversas mesmo independente das relações de parentesco e consangüinidade. (apud Osterne. P. 92)

Page 79: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

77

É lícito evidenciar que a convivência cotidiana familiar entre os pobres45 é

garantida, muitas vezes, a duras penas, como estratégia imprescindível à

sobrevivência não apenas material, mas também afetiva. Consoante o raciocínio de

Yazbek (2012), o adentrar no universo denominado pobreza, observa-se que este é

[...] marcado pela subalternidade, pela revolta silenciosa, pela humilhação e fadiga, pela crença na felicidade das gerações futuras, (...) e, sobretudo pelas estratégias para melhor sobreviver, apesar de tudo. Embora a renda se configure como elemento essencial para a identificação da pobreza, o acesso a bens, recursos e serviços sociais, ao lado de outros meios complementares de sobrevivência precisa ser considerado para definir situações de pobreza‖. (P.292)

Ainda refletindo sobre a pobreza e suas dimensões, convém destacar as

situações, bem como ás estigmatizações46 a que é submetida esta parcela da

“sociedade de escassez”, conforme a análise de Yazbek (2012), se referido à

população que procura por trabalho, por local para dormir, sobreviver...Ou seja, ―gente

que fica à espera em longas filas ‗para receber benefícios: uma cesta ‗um saco de

leite, uma consulta, um lugar no ônibus para ir ou voltar do trabalho, para obter um

documento, para conseguir um emprego, reivindicar um direito....‖ (P. 292)

Observando a realidade das famílias menos ―favorecidas‖, ou seja,

denominadas pobres, residentes em Maracanaú, constata-se que a pobreza é

expressa neste Município, não somente pelo desemprego, mas também em virtude de

acesso aos serviços públicos, podendo-se destacar educação, saúde, saneamento e

habitação.

Esta dificuldade, ou até mesmo, falta de acesso aos serviços públicos, foi

também identificada na fala das entrevistas, como se pode constatar:

- Agora, pra nós aqui nesse Conjunto, tá meio ruim pra nós...Nós tem só um agente de saúde. Mas, Não tem médico. Chega no médico sem conhecer mesmo, e pronto ! Você me atende, você me atende,

45

A noção de pobreza é ampla. A pobreza, compreendida como categoria multidimensional, não se limita, somente, pelo não acesso a bens, mas se expressa também através da carência de direitos, de oportunidades, de informações, de possibilidades e de esperanças. Convém mencionar que abordar a problemática familiar em todas as suas dimensões e singularidades constitui uma tarefa difícil e complexa, conforme esclarece Montãno (2012).

46

Inseridos numa ordem social que os desqualifica, os pobres passam também a ser marcados por clichês, do tipo: inadaptados, marginais, problematizados, portadores de alto risco, casos sociais, dentre outros, conforme Yazbeck (2012)

Page 80: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

78

fulano me atende, é assim... Mas, a gente tem que dá graças a Deus por isso ! (Depoimento concedido por Dona Ana)

Neste fragmento, pertencente a uma das avós entrevistadas, verifica-se a

falta de compromisso do Poder Público para com o próprio segmento populacional, a

que já atende, ou seja, que reúne necessidades constatadas pela equipe técnica

social municipal para intervenção pública, com maior atenção e continuidade.

Em decorrência das dificuldades enfrentadas na realidade diária, conforme

expresso no capítulo anterior, as famílias maracanauenses encontraram como

alternativas, de enfrentamento à sobrevivência (e, por que não dizer, garantia de

sobrevivência), os trabalhos esporádicos, ou seja, informais, também denominados

―bicos‖.

- Nós vendia era tapioca pra interar o salário que era pouco pra sobreviver...Quando ele era vivo (o esposo), ele ajudava até a ficar com eles (os netos) enquanto eu saia pra vender...tinha que ser! (Depoimento concedido por Dona Ana)

Neste caso, acima apresentado, tem-se a seguinte situação: o bico é

realizado até mesmo pelos mais velhos, ou seja, a própria entrevistada, a fim de

complementar a renda familiar, haja vista de ter o compromisso tanto com a filha, que

retornou para casa, quanto para o neto. Mesmo já velhos, os genitores mantinham (ou

mantêm) as responsabilidades domésticas com suas diminutas aposentadorias.

Atualmente, apenas com uma aposentadoria, pois Dona Ana está viúva.

Cruz (2012) expressa, por oportuno, a noção de que ―em tempos da plena

fetichização do capital, reificado na fase atual pela hegemonia da globalização

financeira que tem como uma de suas expressões sociais o desemprego cultural (...)‖.

(P.242)

Neste espaço de incertezas, advindas do próprio capital, pode-se lembrar

das palavras de Bauman (2001), ao evidenciar o argumento de:

O capital pode viajar rápido e leve, e sua leveza e mobilidade se tornam as fontes mais importantes de incerteza para todo o resto. Essa é hoje a principal base da dominação e o principal fator das divisões sociais. (P. 145).

Page 81: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

79

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001) em sua obra denominada

Modernidade Liquída, chama a atenção para a transição de uma Modernidade ―leve‖,

―fluida‖, que suplantou infinitamente a Modernidade ―sólida‖, de modo a ocasionar

intensas alterações em todos os aspectos da vida humana, inclusive nas relações,

fator este que causa preocupação também para os estudiosos da categoria família.

Em suas análises, Bauman (2001) abordou também o assunto referente às estratégias

de sobrevivência das famílias frente às teias da Modernidade.

Prado (1985) e Peixoto (2000) argumentam não se poder negar que o ato

de solidariedade, entre estas famílias, ainda é muito forte. Prado (1985) também

salienta que a família não corresponde, exclusivamente, a ―um tecido fundamental de

relações, mas também um conjunto de papéis socialmente definidos.‖ (P.23).

Por conseguinte, a família também pode ser compreendida como um

sistema complexo de relações, no qual seus componentes partilham um mesmo

contexto social de pertencimento. Conforme Fichter (1967), a família pode ser

interpretada como ―uma configuração ou combinação de padrões de comportamentos,

compartilhado por uma coletividade, e centrado na satisfação de algumas

necessidades básicas, do grupo‖. (P. 173)

Brushini (1990), todavia, chama a atenção para o fato de que ―não há

completa harmonia e unidade interna na família.‖ (P.77). Tal situação foi observada

nas três famílias das avós entrevistadas. Nas palavras de uma delas, no que

concerne a conflitos internos, considerou que: isso é coisa de família mesmo...é coisa

comum! (Dona Ana)

Acrescenta, ainda, que a família é um grupo social formado por pessoas

que se relacionam diariamente, produzindo uma dinâmica e complexa trama de

emoções, não consistindo numa soma de indivíduos, mas num conjunto vivo e

conflitante de pessoas com personalidade e individualidade próprias. É neste espaço,

possível de transformações, que deve ser ressaltada a dinâmica familiar, ponderando

também as peculiaridades da história de cada família, marcada pelos diversos

contextos sociais.

Enfocando o cotidiano das famílias, na batalha pela sobrevivência, Vitale

(2002) esclarece que

Page 82: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

80

Inúmeros são os desafios que permeiam a vida da família contemporânea. Podemos pensar em temáticas como violência intra e extra familiar, desemprego, pobreza, drogas e tantas outras situações que atingem a dolorosamente a família e desafiam sua capacidade para resistir e encontrar saídas. (P. 45).

É válido explicar que os impactos desses desafios e mudanças sobre o

cotidiano das relações familiares atingem também a população envelhecida, ou seja,

os velhos de cada família, de maneira a atribuir-lhes novas cobranças ante as

imposições que a própria dinâmica do sistema lhes expõe. Perceber a família como

um processo social, em elaboração e modificação, é alargar os horizontes para os

novos arranjos que surgem no interior destas.

Assim, aflora a participação do velho, representado nesta pesquisa pelo

recorte das avós, haja vista este contexto favorecer a mudança de papéis para estes.

Desse modo, observa-se que o papel do indivíduo velho foi modificado, tanto no

âmbito social quanto familiar

Torna-se, porém, salutar mencionar que as transformações sociais e,

consequentemente, familiares, que se expressam nos dias atuais, ocorreram de modo

gradativo mascarando uma realidade demasiadamente complexa. Neste trabalho, as

estratégias de sobrevivência estão, intrinsecamente, ligadas à compreensão das

relações pessoais que na sua base, com ênfase na inetergeracionalidade.

3.2 Organização familiar: da diversidade dos modelos aos dias

atuais

As diversas mudanças ocorridas no plano socioeconômico e cultural,

pautadas na globalização da economia capitalista, refletem também em interferências

no âmbito da estrutura familiar, ocasionando alterações em seu padrão tradicional de

organização. Assim sendo, a categoria família passa a demonstrar novas

características, ou seja, outra configuração em sua forma de estrutura e composição,

sendo, portanto, desconstituído o modelo de família tradicional ideal.

Page 83: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

81

Abandona-se, portanto, o modelo patriarcal e cede-se lugar aos modelos

diversos, dos quais se originaram os também designados ―novos arranjos familiares‖.

Desse modo, não se pode falar em família, contudo, em ―famílias‖, de modo que se

possa tentar observar a diversidade de relações que a envolvem, do Brasil-Colônia à

sociedade atual.

Observa-se a família como categoria historicamente determinada, em que

as mudanças nela ocorridas correspondem a reflexos das modificações sucedidas na

própria sociedade. Assim, Benincá e Gomes (1998) concordam com Bruschini (1990),

ao defenderem o argumento de que ―a família é um organismo mutável, que

transforma e é transformado pela sociedade‖. (P.178). Tal fato chama a atenção,

principalmente, no tocante aos desafios surgidos para os avós do século XXI,

compreendidos como sujeitos desta pesquisa.

Em anuência ao pensamento de Benincá e Gomes (1998), Petrini (2003)

colabora neste estudo, ao exprimir a intenção de que:

A família encontra-se me constante mudança por participar dos dinamismos próprios das relações sociais. O processo social dos últimos séculos acelerou as mudanças, com conseqüências substanciais em todos os aspetos da convivência humana. A família, integrada nesse contexto, necessariamente passa por transformações de tal magnitude, que parece prestes a desaparecer. (P. 60).

Faz-se necessário ressaltar que, além da variedade de modelos de família

entre as classes, e no interior dos grupos familiares, existe uma diversidade de

experiências familiares e de modos de organizações plurais ao longo da história, bem

como para diferentes modos de atribuir significados aos agrupamentos familiares47.

É mprescindível destacar entretanto que, a instituição família não perdeu

sua relevância, nem seu papel na sociedade. conforme Benincá e Gomes (1998),

Bruschini (1990), Petrini (2003) e Peixoto (2000). Portanto, faz-se relevante entender a

família não apenas como matriz da sociedade, mas feita um sistema em constante

transformação.

47

Como as famílias monoparentais, reconstituídas de pessoas sozinhas, os ―ninchos vazios‖ de velhos, dentre outros mais visíveis na atualidade, dado seu crescimento demográfico.

Page 84: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

82

Petrini (2003) faz uma excelente consideração, ao explicar que, no

decorrer da evolução histórica, a família persiste como matriz do processo civilizatório.

Compreendendo a família como sendo o fundamento da sociedade, referido autor

complementa, acentuando essa idéia:

Muitos estudiosos observam que a estrutura familiar continua presente nas diversas culturas, em todos os períodos históricos, como forma de relação social constitutiva da espécie humana. Esta encontra no ambiente da família, não só os elementos favoráveis à sobrevivência, mas as condições essenciais para o desenvolvimento e a realização da pessoa. (P. 65).

Consoante ao que pensa Petrini (2003), Mello (2003) indica ser possível

identificar o movimento e a diversidade inerentes à instituição família, quando

assegura que ―em todas essas situações a família não está desorganizada, mas

organizada de maneira diferente, segundo às necessidades que lhe são peculiares‖.

(P.58). Torna-se, portanto, imperativo salientar que, neste movimento (de organização,

desorganização ou reorganização) do grupo familiar, as relações se modificam

constantemente, resultando no surgimento de outras atribuições.

Ao explorar a instituição família, sob a óptica relacional, pode-se perceber

que esta funciona com suporte numa interação mútua de seus membros (ou seja, as

partes), de modo tal que o conjunto (o todo) se torna mais que do que somatório das

partes, e que a alteração de uma destas modifica todo o produto. A família

corresponde, por conseguinte, a um sistema vivo, haja vista sua constante

transformação, conforme consideram Mello (2003), Petrini (2003), Szymanski (2003),

Benincá e Gomes (1998) e Bruschini (1990).

Para Petrini (2003), os vínculos familiares são capazes de traduzir uma

relação entre o indivíduo e a totalidade de sua existência:

Um grupo de pessoas é reconhecido como família quando se configura como uma relação de plena reciprocidade entre os sexos e entre as gerações. Trata-se de um recíproco pertencer, na maioria das vezes não simétrico, constituído através de processos de vinculação desenvolvidos em contextos diádicos

48. (P.72).

48

Referência do próprio autor: Donati, 1998; Bronfenbrenner, U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

Page 85: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

83

Ainda com relação à diversidade de formas que a categoria família pode

ostentar, Szymanski (2003) complementa:

O mundo familiar mostra-se numa vibrante variedade de formas de organização, com crenças, valores e práticas desenvolvidas na busca de solução para as vicissitudes que a vida vai trazendo. Desconsiderar isso é ter a vã pretensão de colocar essa multiplicidade de manifestações sob a camisa-de-força de uma única forma de emocionar, interpretar (...). (P.27).

Assim sendo, constata-se que não é fácil definir ou mesmo compreender

claramente o que é a instituição família, como esta se compõe ou se relaciona, haja

vista não existir ―família regular‖, ou um modelo, como se pensava outrora. Curioso é

que apesar das alterações, a imagem da família ideal e estruturada, com base no

modelo nuclear, ainda possui influência nos dias de hoje.

Nas falas de Dona Rosa e Dona Conceição, narrando suas histórias,

percebeu-se que este ―modelo‖ ainda era idealizado e desejado. Na circunstância de

Dona Conceição, duas de suas filhas foram mães solteiras, e o desejo de vê-las com

família constituída, estruturada (ou seja, marido e filhos) fazia parte, inclusive, de suas

orações. Atualmente, a citada sente-se ―confortada‖ no sentido de suas filhas terem

casado novamente. Os frutos do primeiro relacionamento, todavia, ficaram sob a

responsabilidade da avó.

Ao estudar família, há de se perceber a existência de uma diversidade

(histórica e cultural) presente nas formas como as pessoas organizam sua vida

privada, as relações afetivo-sexuais, a prática de criação de filhos, a divisão das

tarefas domésticas, bem como de papéis, no grupo familiar. Assim sendo, faz-se

necessário observar que, dentro de cada cultura, a organização da vida privada pode

expressar formas e processos diferenciados.

3.2.1 Famílias brasileiras: História e dinamismo

Desde o início do período colonial49 brasileiro, o assunto família ocupa um

papel de grande relevância na História do País. Conforme a expressão empregada por

49

Nessa época, a família era popularmente conhecida como ―patriarcal‖ (focada na figura do pai), a qual se tornou base para caracterizar a família brasileira. A família possuía uma composição o qual configurou um padrão de ―família nuclear burguesa‖ que obrigatoriamente apresentava a existência de um homem, uma mulher e filhos, todos com papéis sociais definidos.

Page 86: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

84

Costa (1989), no período focalizado, a família era popularmente conhecida como

―patriarcal50‖, a qual se tornou fundamento para caracterizar os grupos familiares

nacionais.

Quanto às análises sobre a família, na sociedade atual, é imprescindível

ressaltar que estas constituem um mosaico que reflete os diferentes significados que

essa instituição, tão básica quanto complexa, pode assumir.

No tocante aos modelos de família, Samara (1986) chama a atenção para

um detalhe importante, referente às ―famílias extensas do tipo patriarcal‖, ao

esclarecer que estas não foram predominantes no Brasil, sendo, portanto trivial

encontrar aquelas com menor número de integrantes. Acrescenta ainda que a família

do tipo patriarcal adquiriu configurações regionalmente diferentes e mudou com o

tempo. Convém frisar que para alguns autores, o modelo patriarcal foi historicamente

analisado como insuficiente para dar conta das modificações peculiares às

organizações familiares no Brasil, da Colônia ao Império.

Durante os três primeiros séculos do período de colonização, o termo

família estava exclusivamente relacionado à ―família latifundiária‖ segundo Costa

(1989), porquanto, na época da organização/estrutura familiar, advinha todo poder

social, administrativo, político e econômico. Da família patriarcal derivou toda a

formação social do País.

Destaca-se a idéia de que, além da diversidade, quanto aos modelos

apresentados pela categoria família, havia também a presença de um arquétipo

dominante (ou padrão), compreendido no modelo patriarcal. Osterne (2001) defende o

argumento de que este modelo não existiu sozinho51, embora tenha exercido

importante papel em determinada época.

Ainda sobre o arquétipo do tipo patriarcal, Osterne (2001) corrobora com

este estudo, quando ensina o seguinte:

A famosa ‗família patriarcal‘ era decididamente uma forma dominante de constituição social e também política. Obviamente não consegue ser a única em termos de ordenamento social, uma vez que com ela

50

Definição no decorrer deste subcapítulo. 51

Conforme Osterne (2001), o modelo de família patriarcal passou a ser dominante ao se sobrepor às formas oficiais existentes ao longo da história, as quais não foram compartilhadas pela maioria da população brasileira.

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85

competiam as leis e uma burocracia polarizada que correspondia à ordem constitucional da sociedade. Não se pode negar é que o modelo patriarcal, enfim, tenha exercido sua dominação além de ser possuidor de expressiva visibilidade social, em razão do seu poder e da capacidade dos seus elementos em exercerem o controle dos recursos de poder no meio social. (P. 65)

Na família do tipo patriarcal, as funções eram deliberadas, sobretudo, em

razão do sexo. Assim sendo, mulheres e filhos ocupavam lugar de inferioridades em

face da figura masculina52, ou seja, do pai que tinha a obrigação de sustentar a família,

bem como de zelar pela sua unidade. À mulher, por sua vez, era reservado o papel de

mãe. O homem/marido era o provedor. A mulher/mãe a dona de casa.

Observa-se que a lenta transformação, no tradicional modelo familiar

(casal e filhos), aponta para alterações relevantes na família. Convém mencionar que

as mulheres, nos dias atuais, sobretudo nas camadas populares, possuem maior

responsabilidade pela gestão do orçamento familiar, conforme evoca Peixoto (2000).

Retomando o debate sobre a diversidade de modelos, Costa (1989)

explica que a família latifundiária, até o século XIX, incidia numa ―unidade de produção

e consumo‖. A família fabricava tudo de que necessitava (dos utensílios domésticos

aos objetos de uso pessoal) no próprio lar, ou seja, na casa-grande, marco dessa

estrutura familiar. De acordo com esse autor, sentimentos de intimidade ou

privacidade eram desconhecidos ou ausentes neste ambiente familiar.

Com base na obra do sociólogo Gilberto Freyre, no Prefácio à primeira

edição de seu sublime livro Casa-Grande e Senzala, a importância da casa-grande

pode ser constatada na afirmação do autor pernambucano, quando mencionar:

A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema

econômico, social e político: de produção (a monocultura

latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi,

o bangüê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com

capelão subordinado ao pater famílias, culto dos mortos, etc.); de vida

sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e

da casa (o ―tigre‖, a touceira de bananeira, o banho de rio, o banho de

52

A este eram devidos respeito e obediência. Modelo tradicional da família patriarcal em que a expressa dominação masculina lhe garantia privilégios. Vale lembrar que para as mulheres restavam-lhes ideais, tais como: castidade e submissão (ver item 4.3 deste estudo).

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86

gamela, o banho de assento, o lava-pés); de política (o

compadrismo). Foi ainda fortaleza, banco, cemitério, hospedaria,

escola, santa casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas,

recolhendo órfãos (1983: XXXVII).

Mediante transformações ocorridas na vida rural e na emergente

urbanização do sistema econômico, conforme estudos feitos por Osterne (2001), a

família patriarcal adentra a decadência, passando a ser exceção na organização da

Pátria social brasileira. Bruschini (1990) ratifica o pensamento da autora há instantes

mencionada ao exprimir que ―exceções ao modelo, porém, não reforçam sua

elasticidade como também a riqueza da realidade empírica, que de longe o extrapola‖.

(P.37)

No final do século XIX, num quadro ainda predominantemente latifundiário

e escravista, surge o tipo família burguesa ou modelo nuclear de família. Este era

fundamentado no triângulo pai, mãe e filhos, bem como numa complexa combinação

de autoridade e amor paternal. Observa-se que, com a chegada da Corte Lusitana ao

Brasil, o molde patriarcal, gradativamente, foi sendo substituído pela família nuclear

urbana, resultante de um conjunto de adaptações de regras importadas da Europa.

Conquanto, porém, essa organização familiar tenha se tornado ―moderna‖,

ela não nega as características patriarcais, pois, como ilustra Almeida apud Osterne

(2001),

A família nuclear burguesa, esse modelo ideal, surge no marco da ascensão da burguesia industrial (...). (...) A família intimista, fechada para si, reduzida ao pai, mãe e alguns filhos que vivem sós, sem criados, agregados e parentes na casa, eis o modelo de modernidade no limiar do século XIX. A mulher, ‗rainha do lar‘, mãe por instinto, abnegada e vivendo em osmose com os bebês, sendo ela o canal da relação entre eles e o pai, que só se fará presente para exercer a autoridade. Essa família, é bom que se diga, continua patriarcal: a mulher ‗reina‘ no lar dentro do privado da casa delibera sobre as questões imediatas dos filhos, mas é o pai quem comanda em última instância. Ou seja, no padrão ideal, ele deve comandar (...). (P. 69).

Ainda quanto à organização familiar, pode-se esclarecer que os grupos

familiares se mostram como diversificados, quanto ao parâmetro de composição.

Tomando como critério de análise a unidade doméstica, esta categoria pode ser

Page 89: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

87

formada por famílias biparentais, famílias monoparentais, famílias compostas de várias

gerações, unidades ampliadas53, dentre outros.

Ante esta exposição a respeito dos arquétipos de família, verifica-se que

as expectativas em relação à família, existentes no imaginário coletivo, ainda se

expressam saturadas de idealizações, e, dessa forma, a família nuclear passa a ser

considerada como um dos símbolos, ou seja, a forma tradicional de se pensar família.

Samara (1986) admite que a família do tipo patriarcal marcou a sociedade com

vestígios de sua organização.

Convém salientar que a categoria família possui características e normas

baseadas nos costumes, como religião, hábitos, valores morais, que podem ser

diferenciados, todavia, os laços afetivos não se alteram. Na opinião de Prado (1985), a

família é ―uma instituição social que varia através da História e apresenta até formas e

finalidades diversas numa mesma época e lugar, conforme o grupo social que esteja

sendo observado‖. (P.12)

Não há como negar ser a família a unidade social que enfrenta uma série

de tarefas de desenvolvimento. Estas divergem junto com parâmetros das diferenças

culturais, entretanto possuem raízes universais, como defende Tepedino (1997), ―(...)

uma espécie de aspiração à solidariedade e a segurança que dificilmente pode ser

substituída por qualquer outra forma de convivência social‖. (P.326).

É importante ressaltar que não se está a considerar os tipos de família,

reconhecidas pelo ordenamento jurídico, tais como o casamento, a união estável,

família monoparental e sim, a essência da família lato sensu, considerando que todas

têm o fundamento principal que as originou, que é o aspecto emocional-afetivo.

Hinoraka (2001) manifesta- se, neste sentido:

[...] biológica ou não, oriunda do casamento ou não, matrilinear ou patrilinear, monogâmica ou poligâmica, monoparental ou poliparental, não importa. Nem importa o lugar que o indivíduo ocupe no seu âmago, se o de pai, se o de mãe, se o de filho; o que importa é pertencer ao seu âmago é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores, e se sentir, por

53

Onde além de pai, mãe e filhos existem outros componentes.

Page 90: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

88

isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade pessoal (P. 72).

Consideradas como grupos sociais concretos, as famílias são unidades

sintetizadas, haja vista que a realidade cotidiana não se enquadra por inteiro em

qualquer que seja o modelo sugerido. Dessa forma, percebe-se que a categoria família

se mostra numa pluralidade de formas e sentidos, conforme aponta Alcântara (2010):

A instituição família comporta uma diversidade de práticas, maneiras de organizar valores e visões de mundo diante das mudanças socioeconômicas e políticas, e não ponderar essa multiplicidade de expressões é incorporar o modelo hegemônico da ‗família pensada‘, imposto por um discurso oficial – seja o das instituições, o da mídia ou o de profissionais; tal discurso reforça a imagem da família nuclear burguesa – isto é, monogâmica, composta de mãe, pais e filhos – como um valor. (P. 92).

Vale frisar que, na atualidade, a família não se mostra decadente,

degradada e/ou desvalorizada, entretanto, inegavelmente é, diferente em seu modo de

organização e enfrentamento do cotidiano. Carvalho (2003) faz uma consideração

relevante, ao mencionar a necessidade de ―olhar a família em seu movimento‖,

considerando-a como um grupo social, em que seus movimentos de organização,

desorganização ou reorganização mantêm um estreito vínculo com o contexto

sociocultural.

Szymanski (2003) corrobora com a afirmação de Carvalho (2003) e alerta

para a importância de apreender o cotidiano familiar, o qual exprime regras e códigos

próprios, num modelo que passa a ser elaborado historicamente, ou seja, a ―família

vivida‖. Importante destacar que a autora opta pelo afastamento de arquétipos rígidos

e preestabelecidos, dando ênfase às particularidades dos grupos ou organizações

familiares.

Assim sendo, ao se estudar a vida privada, é possível notar o quanto é

difícil acompanhar a natureza das mudanças em curso. Carvalho (2003) defende o

argumento de que tal dificuldade sucede em razão da complexidade e amplitude das

situações que permeiam este fenômeno de movimento. Ao longo das leituras sobre a

temática família, é válido enfatizar que se torna impossível atribuir a esta um formato

singular, um modelo único ou ideal, que possa abranger as relações humanas, e, por

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89

conseguinte, a complexidade do debate sobre família. Estudar família é compreendê-

la como processo mutável, e não como um sistema pronto e finalizado.

Nesse sentido, Alcântara (2010) reforça que:

Os estudos antropológicos advogam o reconhecimento das relações familiares como um constante processo de grande complexidade social, no qual se constrói uma pluralidade, na qual gênero, geração e sexo operam como categorias fundamentais para o estudo da família. Tomar tal fenômeno sob a perspectiva de normas estabelecidas impossibilita a apreensão de um universo tão heterogêneo e dinâmico. (P. 93).

Ao lado, porém, da variabilidade dos tipos de família, observa-se, portanto,

a existência relevante de alterações nos padrões familiares, haja vista que a

particularidade de como cada núcleo familiar cuida de seu equilíbrio e sobrevivência

interage com os relacionamentos interpessoais, bem como intergeracionais de seus

membros. Em oposição à família pautada em padrões normativos, foi regida esta

pesquisa de modo a ser considerada, portanto, a ‗família vivida‘.

3.3 A modernidade e suas consequências na família

Nos dias atuais, não se pode falar em modelo familiar único, haja vista a

evidente heterogeneidade das configurações familiares encontradas no cenário social,

conforme mostrado no tópico anterior.

Ao longo deste estudo, identificou-se a instituição família como alvo de

constante mudança decorrente da própria estrutura e conjuntura da sociedade. Como

diz o poeta Carlos Drummond de Andrade, citado por Iamamoto (2004): ―Este é tempo

de divisas, tempo de gente cortada‖. (P. 17).

Iamamoto (2004) ratifica essa exposição, ao ressaltar que a sociedade

atual passa por profundas transformações, tanto em sua estrutura econômica quanto

nas relações sociais, fato também expresso por Bauman (2001).

Page 92: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

90

Nas palavras da autora Iamamoto (2004), tal situação vivenciada

corresponde a tempos difíceis, em que o emprego e o subemprego expressa

nitidamente o adensamento da questão social. Sobre estes novos tempos, Bauman

(2001) acrescenta que ―a vida de trabalho está saturada de incertezas‖. (P.169).

É válido salientar serem diversos os estudos elaborados acerca de

mudanças ocorridas na instituição família. Alguns destacaram questões que afetam as

relações de parentesco, como também os laços biológicos e familiares. Convém

destacar que as alterações ocorridas no seio familiar, as quais podem ser facilmente

notadas no mundo contemporâneo, trouxeram consigo novos desafios à população

identificada como velha, principalmente no recorte da figura das avós cuidadoras de

seus netos.

Seguindo esse raciocínio, Alcântara (2010) ressalta que ―a esta nova

configuração atribui-se a rapidez das mudanças (...)‖. (P. 102); mudanças estas

consequências da emergência sociedade pós-industrial, as quais suscitam na

sociedade contemporânea um processo de redefinição em diversos âmbitos, ou seja,

são novos valores que configuram outra visão de mundo, de sociedade, de momento

histórico que se instala globalmente.

Bauman (2001) aborda, em seu conceito de Modernidade líquida, as

constantes mudanças expressas pela população, na sociedade global; transformações

estas que também podem ser mostradas como caráter negativo e influenciador direto

das relações humanas; e, por que não dizer, de parentesco e/ou papéis?

Numa linha próxima de pensamento, Ferrigno (2003) explana:

A mudança de comportamento dos idosos, ao que parece, acompanha a mudança de hábitos da sociedade como um todo. Se a modernidade caracterizou-se por uma organização, classificação, ordenação do ciclo de desenvolvimento humano, uma certa ‗desorganização‘ da vida social e familiar é vista por certos autores como indício de um outro momento histórico que apenas está iniciando e que alguns chama de Pós-modernidade. (Pp. 61-62).

Vitale (2005) colabora com esta discussão, ao alertar para a idéia de que

―as condições socioeconômicas imprimem organização material à vida cotidiana dos

idosos e atribuem significados ao seu vínculo com os netos.‖ (P.104). A elevação do

índice da convivência entre avós e netos, atualmente, toma grandes proporções, bem

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91

como inquietações para os curiosos e/ou estudantes do assunto, haja vista a

amplitude desse ―cuidado‖ no dia a dia, o qual perpassa situações como: fornecer

recursos financeiros, apoio emocional, dentre outras implícitas nas relações de

parentesco. Neste contexto, Peixoto (2000) alude que os avós passam a ―ser o apoio

com que os netos podem contar‖ (P.110)

Ainda sobre a abordagem da relação entre a Modernidade e suas

ingerências no meio familiar, Petrini (2003) ressalta que o horizonte (ou a lógica) do

mercado influi constantemente nestas, à medida que

Realiza atualmente, com um radicalismo inédito, a sua vocação originária de ser ―auto-regulado‖, e invade todos os aspectos até mesmo os recantos mais íntimos da vida familiar e da consciência pessoal, difundindo seus critérios, valores, (...) realizando a mais ampla ―colonização do mundo da vida.” (P. 178).

Assim sendo, pode-se destacar que as transformações sociais por que a

família contemporânea passa a influenciam a redefinição dos laços familiares, e,

consequentemente, altera o cotidiano das relações destas enfatizando, assim, a figura

da pessoa velha na sociedade atual, ou seja, dos avós, no contexto social.

Ainda de acordo com Bauman (2001), a Modernidade e suas incertezas

produzem consequências em todas as relações, direcionando famílias na adoção de

estratégias, até mesmo de sobrevivência, para enfrentar os desafios impostos pela

sociedade contemporânea. O autor evidencia, em seu conceito de Modernidade

líquida, as transformações vivenciadas pela população inserida no mundo globalizado.

Seguindo o raciocínio de Bauman (2001),

A nova instantaneidade do tempo muda radicalmente a modalidade do convívio humano – e mais conspicuamente o modo como os humanos cuidam (ou não cuidam, se for o caso) de seus afazeres coletivos, ou antes, o modo como transformam (ou não transformam, se for o caso) certas questões em questões coletivas. (P. 147).

Yazbeck (2012) compartilha da análise ora exposta, e aborda a pobreza

como um dos produtos da questão social, e, portanto, expressão direta das relações

vigentes na sociedade capitalista e desigual.

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Os ‗pobres‘ são produtos dessas relações, que produzem e reproduzem essa desigualdade no plano social, político, econômico e cultural, definindo para eles um lugar na sociedade. Um lugar onde são desqualificados por suas crenças, seu modo de se expressar e seu comportamento social, sinais de ‗qualidades negativas‘ e indesejáveis que lhes são conferidas por sua procedência de classe, por sua condição social. Este lugar tem contornos ligados á própria trama social que gera a desigualdade e que se expressa não apenas em circunstâncias econômicas, sociais e políticas, mas também nos valores culturais das classes subalternas e de seus interlocutores na vida social. (P. 289).

Retomando a globalização e seus efeitos, tanto Bauman (2001) quanto

Giddens (1991), autores que trabalham com a Modernidade, tema de grande

relevância nos debates das Ciências Sociais, reconhecem as dificuldades que o

mundo globalizado impõe às pessoas, neste estudo refletido como transformador,

inclusive, nas relações de parentesco.

Nas exposições de Petrini (2003), verifica-se que, em meio às turbulências,

a família se empenha em reorganizar, na sociedade contemporânea, aspectos de sua

realidade que o ambiente sociocultural vai desgastando. Na opinião do referido autor,

tal situação acontece por estarem as famílias ―reagindo aos condicionamentos

externos, e ao mesmo tempo, adaptando-se a eles, a família encontra novas formas

de estruturação que, de alguma maneira, a reconstituem (...).‖

Assim como Petrini (2003), Bauman (2001) admite que o núcleo familiar

seja atingido por fatores externos a ele, ao abordar os efeitos de uma ―modernidade

liquída‖, em que, por meio desta, é possível estabelecer uma relação no que concerne

a esta ―liquidez‖ também em diversos âmbitos, que passa a afligir também as relações

interpessoais cotidianas.

Ao considerar o fenômeno da liquidez, proposta por Bauman (2001), é

possível compreender que os liquídos não possuem formas, e desse modo, passam a

se acomodar/adaptar conforme os invólucros que os contêm. Assim é a família, nos

dias atuais, em seu ajustamento aos desafios que lhe são instituídos.

Estudar as transformações ocorridas na sociedade, inclusive nas relações

diversas (trabalho, família e comunidade), em Bauman (2001), é compreender que o

contexto de todas estas relações deixam de ser concretos, passando a ser líquidos e

relativos ao espaço, ao tempo, dentre outros. Portanto, reportar-se às conseqüências

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93

da Modernidade, seguindo o pensamento desse autor, consiste em ponderar também

sobre sentimentos diversos, sejam eles medo, ansiedades e incertezas.

3.4 A fluidez nas relações: a participação dos avós no contexto

familiar

No Brasil, pesquisas revelam a diversidade ocorrida na organização

familiar, tanto no que se refere à sua composição quanto no que concerne às formas

de sociabilidade que vivificam em seu interior, as quais trazem consigo mudanças

também em suas relações. Aqui, há de se avaliar entrelaçamento da vida privada com

a pública.

Ante a elevação da expectativa de vida, os papéis familiares foram

alterados, dada a complexidade de circunstâncias criadas por fatores socioculturais e

econômicos, os quais afetaram diretamente a dinâmica da estrutura familiar,

contribuindo, assim, de modo relevante, na composição e recomposição da família

moderna.

Nessa perspectiva, Peixoto (2000) indica: ―(...) notamos que nunca a vida

privada apresentou tanta porosidade vis-à-vis a vida pública. Isso se manifesta pelo

fato de que a primeira é cada vez mais atravessada por mecanismos de

funcionamento próprios da segunda.‖ (P. 8). Para a autora, a instituição família não

está enfraquecida, todavia, se deparando com o surgimento de novos modelos

familiares, constituídos com base nos fenômenos sociais, como: transformações nas

relações entre os sexos, inserção massiva da mulher no mercado de trabalho, dentre

outras.

No que se relaciona à revolução na escolaridade das mulheres e a relação

com as transformações ocorridas no âmbito familiar, Peixoto (2000) exprime a noção

de que:

Uma das revoluções mais marcantes do século XX foi certamente a progressiva escolaridade das mulheres e a possibilidade de elas obterem os mais diversos diplomas e especializações. O acesso das

Page 96: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

94

mulheres à instrução afetou o conjunto de seus comportamentos. Apesar de persistirem importantes desigualdades profissionais e familiares entre os gêneros, a escolarização das mulheres contribuiu para atenuar os efeitos desses fenômenos, autorizando-as a utilizar estratégias que colocam em questão a ordem vigente. Cada vez mais diplomadas, as mulheres participam ativa e maciçamente da vida profissional e têm acesso a empregos mais qualificados do que no período precedente. Tais mutações são acompanhadas de profundas transformações pessoais e familiares, que se traduzem sobretudo em um aumento do número de mulheres solteiras e em uma reinterpretação dos modelos conjugais e familiares. (P. 63).

Contrariamente, destacam-se aqui as melhores condições de vida que

demonstrou as pessoas envelhecidas, as quais por meio delas, se torna evidente sua

elevada participação no mundo associativo e é visível uma melhor integração na rede

familiar. Peixoto (2000) elabora, todavia, os seguintes questionamentos: ―que papel

ainda desempenham os avós no seio da família? São eles os transmissores das

histórias familiares, dos comportamentos e dos saberes ?‖ (P.96)

Importa levar em conta o fato de que tais transformações sociais

enfrentadas pela categoria família contribuíram para o crescimento do número de

famílias nas quais coexistem três ou quatro gerações, e, portanto, a assistência

financeira do domicílio atravesse uma mobilidade social geracional. Assim sendo, os

avós passam a contribuir para melhorar a condição de vida das famílias.

Tal subsídio, ofertado pela população mais velha aos mais jovens (filhos

e/ou netos) pode dizer respeito tanto as aposentadorias, quanto o próprio trabalho da

pessoa velha para complemento, ou até mesmo sustento do núcleo familiar. Nas

histórias das três avós, abordadas nesta investigação, todas foram responsáveis por

suprirem, além das necessidades das suas filhas, também as de seus netos.

- Eu é quem sustentava tudim. É.. Eu trabalhava. Eu ganhava salário. Eu trabalhei quatro anos numa casa lá de uma senhora. (Depoimento concedido pela Dona Rosa, 61 anos)

Desse modo, é mister mencionar a situação a que estão expostos os avós

no século XXI, que não se constitui isoladamente, portanto, está inserida nos desafios

da contemporaneidade. A evidência expressa por Petrini (2003) é de que nesse

panorama de mudanças, também observado nas palavras de Mello (2003), pode-se

destacar o novo modelo que assumem as relações intergeracionais na atualidade.

Page 97: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

95

Vale frisar que, no contexto da estrutura proposta pelo núcleo familiar, devem ocorrer

as interpretações54 presentes nas inter-relações.

Compreende-se a família como uma rede de parentesco, cujos membros

se organizam com objetivo cotidiano de existência e sobrevivência, valendo ressaltar,

portanto, a participação das mulheres avós na vida de seus netos, com ênfase nas

famílias pobres. Neste sentido, Sarti (2003):

Essa rede que constitui a família pobre, através da qual as relações familiares se atualizam, permite revitalizar o sentido do papel central das mulheres na família, reiteradamente destacado na literatura sociológica e antropológica sobre as famílias pobres no Brasil. (P.70)

Ainda no que concerne às relações intergeracionais, nesta conjuntura,

Petrini (2003) expressa opinião:

Nesse cenário de mudanças, é necessário compreender os novos arranjos familiares, as novas características que as relações intergeracionais assumem e os sistemas de referência disponíveis para pessoas e famílias nos diversos momentos do ciclo da vida, bem como as funções que assume a família na atualidade, sua relação com os dinamismos sociais, em ambiente caracterizado por pluralismo ético, cultural e religioso. As relações entre os sexos e as gerações constituem o fulcro da realidade familiar, ao redor do qual diferentes modelos se estruturam e se decompõem, em conseqüência de circunstâncias históricas e sociais, culturais e ideológicas diversas, dando origem ora a modelos nos quais prevalecem a cooperação, a reciprocidade, a solidariedade, a negociação, ora a modelos nos quais prevalecem a disputa, a competição, ou a indiferença, a estranheza e o conflito. (P.62)

Considerando a contribuição das relações intergeracionais no contexto

familiar na contemporaneidade, Szymanski (2003) acrescenta que não se pode

―desconsiderar a inegável influência das inter-relações pessoais na infância e

adolescência‖.

Convém destacar o fato de que alterações ocorridas no seio familiar

trouxeram consigo rearranjos de papéis e funções. Osterne (2001) afirma que, no

mundo contemporâneo, as mudanças ocorrentes na família possuem para estas

certas conseqüências como a perda do sentido da tradição.

54

Petrini (2003) chama a atenção para as novas características que estas relações passam a ostentar, além das funções que toma para si a família na atualidade.

Page 98: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

96

Vale ressaltar que transformações socioculturais e históricas ocidentais

são fatores de relevantes contribuições, no que se refere às mudanças por que passa

a categoria família, tanto em sua estrutura quanto em sua função. Não se pode

desconsiderar que a elevação do fenômeno da longevidade corresponde a um dos

aspectos que cooperam para as modificações na família, influenciando os

relacionamentos entre as gerações, bem como diversificando as funções da pessoa

velha na dinâmica familiar.

Quanto à relação entre estudar as categorias velhice e família, Alcântara

(2010) faz excelente explanação, ao esclarecer que

É improvável abordar a questão do envelhecimento no contexto brasileiro, hoje, sem contemplar a família. Assim, pensar a velhice, tomando a família como perspectiva, é adentrar no âmbito das relações, de maneira a conhecer os modos pelos quais os indivíduos lidam com as peculiaridades de cada geração, além dos papéis que cada um desempenha no grupo (...). (P. 94)

Compreende-se que esta intensa participação das avós, no seio familiar, é

uma realidade complexa que demanda estudos que busquem apreender as

transferências intergeracionais, haja vista estas velhas-avós emergirem, no cenário

contemporâneo, como personagens centrais na vida de seus familiares.

Com efeito, no que se diz respeito às transformações ocorridas nos

―novos‖ papéis intergeracionais, Camarano (1999) exprime seu ponto de vista assim:

[...] os padrões de assistência entre as gerações devem ser vistos no

contexto dinâmico do curso de vida das pessoas e das mudanças nas

relações familiares (...) as novas imagens do envelhecimento, que

expressam as mudanças sociais e redefinem identidades, vem

acompanhadas de uma rediscussão sobre a família, envelhecimento

e sobre a dialética entre dependência/interdependência entre

gerações. (P.86)

Vitale (2005) e Camarano (1999) compartilham da mesma idéia quanto à

relevância dos avós no contexto familiar contemporâneo e a relação entre eles e seus

netos. Nos dias atuais, é comum identificar crianças e/ou adolescentes ―criados‖ por

avós, considerando o sentido mais amplo da palavra, haja vista que esta relação

aconteça de lares cujos pais são ausentes ou em lares multigeracionais (ou

Page 99: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

97

transgeracional55), isto é, compostos por pais, avós e até mesmo bisavós. Assim

sendo, os avós velhos, no século XXI, passam a atuar como pais.

Nas histórias das avós, abordadas neste estudo, o verbo cuidar toma

proporções mais amplas, haja vista envolver situações como cuidados básicos e

diários (desde o nascimento), preocupação com acompanhamento médico, compra de

remédios, realização de desejos de consumo, o ato de educar, de aconselhar, o

acompanhamento escolar, bem como o carinho e atenção.

Os aconselhamentos ou ―noções recebidas pelos avós‖ (p.73), de acordo

com Bosi (1994), foram também características registradas nos rotineiros encontros

com as entrevistadas, principalmente nas conversas com Dona Ana, a avó mais velha

que participou do estudo. Ela gostava de confidenciar ―alguns mimos‖ (compras de

presentes mais caros) que fazia para o neto que mora com ela. Tais relatos eram

contados em forma de segredo, segundo ela própria. E a razão para isso? Não

despertar nos demais netos sentimentos de inferioridade ou ciúmes.

O fato que chama a atenção é a presença ou o contato das genitoras em

todas as situações. Não foram, porém, todas as avós que consideraram as mães

como responsáveis, pelo menos no sentido moral, por seus filhos. Na opinião de Dona

Conceição, ser uma avó cuidadora de neto é ser uma mãe...Mas, eu sou mais mãe

dele do que ela, do que ela que teve né ? Já na opinião de Dona Rosa, sua filha

sempre fez opção por más companhias, pessoas erradas...vagabundas !

Atualmente, observa-se ser expressiva a presença dos avós no espaço

doméstico como cuidadores de netos, sem desconsiderar, portanto, outras funções

que eles, os avós, podem também assumir. Vale lembrar que as relações e as

dependências intergeracionais, nesta pesquisa, compreendem o relacionamento entre

avós-netos.

Contribuindo neste debate, Fonseca (2002) adverte para essa idéia:

Os primeiros nascidos de uma geração freqüentemente passam seus

primeiros anos com uma avó que, cuidando deles, cumpre as únicas

obrigações familiares. Vinte anos depois, quando a obrigação se

55

Refere-se à coexistência/convivência de duas (ou mais) gerações dentro de uma mesma família.

Page 100: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

98

transforma em direito, a vó pode muito bem reivindicar, na sua

velhice, a companhia de um dos netos mais novos. (P.32)

Indagadas quanto à existência ou não de diferença, no que se concerne ao

cuidado dedicado ao primeiro neto em relação aos demais, as avós entrevistadas

foram unânimes em dizer que não havia, contrariando, dessa forma, parte da

explanação de Fonseca (2002).

- Tem diferença não. Todos eu quero bem. Tudo é uma coisa só. (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos)

- Não, minha filha. Não tem diferença ! (Depoimento concedido por Dona Ana, 74 anos)

- O amor é igual. Ser avó que cuida é como ser uma segunda mãe. (Depoimento concedido pela D. Rosa, 61 anos)

Consoante a perspectiva de Fonseca, ―ao cuidar de um neto, por exemplo,

uma mulher justifica sua demanda de apoio e afeto aos seus próprios filhos‖. (P.33).

Assim sendo, constata-se que o desempenho do papel ampliado que

assumem os avós no âmbito familiar contemporâneo excede a imagem que outrora

ocupava o imaginário coletivo, ou seja, a dos avós como exclusivos transmissores de

legados geracionais, conforme ressalta Vitale (2005): ―a herança simbólica, a

transmissão da memória familiar‖. Ela complementa, dizendo que ―os avós que estão

em nossa volta ou os que alguns de nós somos hoje tendem a se distanciar dos

modelos guardados em nossas lembranças‖. (P. 93)

Ao falar em imaginário, interessante é destacar uma personagem clássica

do escritor Monteiro Lobato56 - Dona Benta - é um dos componentes de uma das obras

de maior destaque na literatura infantil, o famoso: Sítio do Picapau Amarelo, produção

esta que atravessa gerações. Nesta literatura, Dona Benta é uma avó cujos netos são

Pedrinho e Narizinho (crianças protagonistas da história que se desenvolve no sítio da

avó, denominado de Sítio do Picapau Amarelo). A avó desta fabulosa história refere-

se a uma senhora simpática, de cabelos brancos presos em coque e um livro na mão.

Esta personagem foi utilizada como padrão para as avós brasileiras, durante muito

tempo.

56

Um dos mais influentes escritores brasileiros do século XX, José Bento Renato Monteiro Lobato, na literatura, destacou-se no gênero ―conto‖. Nascido em Taubaté-SP, em 18.04.1882, referido escritor faleceu aos 66 anos de idade, no dia 05.07.1948.

Page 101: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

99

Saltando da ficção para a realidade, convém acrescentar que esta relação

passa, antes de tudo, pelos circuitos constituídos internamente na família, portanto,

pela dinâmica de vida familiar. Tal transformação presente na relação avós-netos foi

abordada também por Peixoto (2000) e Vitale (2005).

Vivenciando uma circunstância que, muitas vezes, lhe aparece como

inesperada, a população velha, aqui representada pelos avós, assume nova função na

sociedade contemporânea: a de provedor ou pilar econômico do grupo familiar.

Camarano (1999) salienta que tais transferências intergeracionais ganham importância

no seio familiar. Na opinião dessa autora, a nova configuração familiar em que muitos

velhos estão inseridos advém:

[...] não só pelo mencionado aumento da longevidade, mas também por novas realidades sociais resultantes de igualmente profundas na estrutura da família, no mundo do trabalho, [...] e em várias outras dimensões da economia e da sociedade. (p. 254).

Destarte, pode-se observar em dias atuais que a responsabilidade e/ou

colaboração dessas avós-velhas, seja financeira ou moral, sobrepõe-se a elegância

dos cabelos brancos, os quais anteriormente representavam, apenas, respeito,

afetividade, companheirismo e tranquilidade. Por conseguinte, no interior das famílias,

a relação de cuidados das avós para com os netos também é alvo de modificações

culturais e sociais, como diz Vitale (2005), ao classificar os avós como uma espécie de

―pais adotivos‖, considerando aqui o sentido mais amplo da palavra.

Lopes e Park (2005) confirmam a ideia ora apresentada por Vitale (2005),

ao destacarem que existem ―avós que são pais‖ e ―avós que são avós‖. No primeiro

caso, ambos fazem alusão ao cuidado desses avós num sentido amplo e complexo, o

qual não se define, apenas, na posição geracional, mas também no significado social

que assumem para o grupo, em seu cotidiano. Já no segundo caso, reportam-se a um

modelo anterior em que o amor, o interesse e a participação sem responsabilidade

estavam atrelados aos avós.

Na relação avós-netos, pode-se observar a existência de uma relação de

troca entre estas duas gerações, tão distintas e próximas ao mesmo tempo, parecendo

até mesmo uma relação de complementaridade. Para Peixoto (2000), ―os laços entre

avós e netos se tecem pouco a pouco‖. (P.98). Sobretudo no que tange ao

desenvolvimento dos seus netos a influência é recíproca. Desse modo, se pode

Page 102: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

100

acentuar que a relação entre essas duas gerações possui caráter mutuamente

relevante.

Vale frisar que, ao analisar a relação dependência e velhice, Camarano

(1999) adverte que, embora haja uma associação estabelecida entre estas, haja vista

o indivíduo consumir mais do que produz, a partir de determinada idade, que se

convenciona chamar de ―idosa57‖, no caso do Brasil a situação é diferente.

Essa autora argumenta que na, evidência empírica da realidade brasileira,

não se observa clara a associação ora descrita. Com efeito, Camarano (1999)

considera que a população velha (vista como, socialmente, ―beneficiária58‖), na

atualidade, passa da condição de assistida a assistente. Sobre este assunto, Vitale

(2005) concorda com a exposição de Camarano (1999), quando assinala que os netos

ou filhos adultos também são assumidos, em todas as áreas, haja vista que,

[...] levando em conta as dificuldades experimentadas pelos adultos jovens dessa década, o idoso, (...) tem crescentemente recebido em seu domínio filhos adultos e crianças classificadas como parentes, os quais na maioria das vezes são netos. (P.304).

Compreendendo, portanto, que a família é o grupo social concreto por

meio do qual são realizados os vínculos, os avós constituem uma espécie de elo entre

as gerações. Assim sendo, eles podem dedicar uma contribuição considerada rica e

até mesmo complexa aos seus netos. Tal aporte pode ser encarado tanto de forma

emocional quanto econômica.

Muitos são os fatores que colaboram para este estatuto de ―pais reservas‖,

dirigido aos avós (cuidadores de netos) nos dias atuais, como gravidez na

adolescência, morte dos genitores, envolvimento com drogas, dentre outras situações

que fazem dos avós figuras relevantes na socialização, como também na criação dos

netos.

57

Informa-se que nesta pesquisa opta-se por utilizar a palavra velho para fazer alusão aos sujeitos desta, haja vista que eufemizar a situação (ou os sujeitos) não é interesse da pesquisada. 58

Aludindo ao período/fase da aposentadoria, como pondera Ferrigno (2003), ao esclarecer que ―(...) para cada etapa da existência há um conjunto de normas e de expectativas próprias de cada sociedade.‖ (p.74)

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101

- E o pai dele é um...Bixovéi lá da banda do Maracanaú. Mas, aí depois ele... Eu descobri que ele vive nas drogas. Aí, um dia, ele falava que eu não levava o menino lá e eu levei o bichinho. Lá, achei foi ele drogada lá... Pensa que o menino quer ir mais lá ? quer não ! (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos)

Nas histórias abordadas neste estudo, a gravidez na adolescência e o uso

de drogas foram identificados como motivos fortes para que esses netos passassem a

conviver na companhia de suas avós. No caso das filhas de Dona Conceição, as

citadas estabelecem novos relacionamentos, os quais deram origens a outros filhos

que permaneceram com seus genitores.

Já a filha de Dona Rosa, segundo a entrevistada, constitui vários outros

relacionamentos e ainda não se firmou com ninguém. Assim a responsabilidade das

avós entrevistadas entrou em cena e não contou também com ajuda dos genitores dos

netos, haja vista o envolvimento deles no mundo obscuro das drogas. Retomando o

fator socialização na relação avó e netos, Bosi (1994) se manifesta, declarando que

―eventos considerados trágicos para os tios, pais e irmãos mais velhos são

relativizados pela avó‖. (P. 73). Convém frisar que, durante as conversas, foi possível

perceber que tal atitude possuía dois significados, estabelecidos elas mesmas (as

avós): proteger e amenizar os impactos que estas histórias pudessem trazer para a

vida de seus netos.

O retorno à casa dos pais, segundo Peixoto e Luz (2007), não se refere a

um fenômeno recente. Então, a novidade consiste na elevação dos números destes

arranjos por parte dos jovens oriundos de classes sociais, tanto popular quanto média.

Este exemplo de rearranjo familiar também pode receber o nome de ―famílias

ampliadas‖. Nos dias atuais, tornam-se frequentes os tipos de rearranjos familiares em

que os indivíduos denominados ―velhos‖ estão incluídos.

Com efeito na avaliação de Camarano et al. (1999), avalia que ―(...) não se

sabe se, por exemplo, se do ponto de vista dos idosos os arranjos familiares

predominantes estão refletindo as suas preferências ou se são resultado de uma

‗solidariedade imposta‘‖ (p.145), ou seja, a formação de famílias contendo três ou mais

gerações não pode ser simplesmente elucidada por preferências, mas pode ser fruto

de razões econômicas, cabendo aos mais velhos prestar apoio material aos filhos e

netos dependentes.

Page 104: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

102

No enfoque das relações intergeracionais, Vitale (2005), em conformidade

com Camarano (1999), ressalta a figura das avós, em um contexto de modificações

dos laços familiares, os quais lhes demandam novas funções e exigências. Nos dias

atuais, as avós passam a ser responsáveis diretas, inclusive, no tocante ao sustento

dos netos, independente da presença ou ausência dos genitores dessas crianças e ou

adolescentes, por motivos diversos.

Concluindo este raciocínio, Vitale (2005) pondera:

Cuidar, educar ou ser responsável ? Disciplinar, ser companheiro das

brincadeiras, contar histórias, oferecer pequenos presentes, passeios,

guloseimas, conselhos, ouvir sentimentos, segredos, acolher, suprir

algumas necessidades infantis, ajudar a sustentar, transmitir as

histórias familiares...esses e tantos outros aspectos indicam a

diversidade de situações que envolvem os avós. (P. 95).

O ato de cuidar corresponde a uma atribuição, prioritária, do gênero

feminino. Mascaro (1997) destaca que no Império Romano, as famílias abastadas

―confiavam sua casa de campo e seus filhos aos cuidados da avó ou de uma parenta

idosa, virtuosa e responsável‖. (P. 27). Assim, verificou-se que as mulheres foram as

primeiras cuidadoras e que estas desempenhavam seu papel no seio familiar,

principalmente na função de mãe.

E por que não citar as escravas e amas, as governantas, as babás, as

religiosas, as avós, bem como as demais mulheres que exerciam e/ou cumprem o

papel de cuidadoras ?

Neste trabalho, que reflete sobre a família, as atenções se dirigem para a

figura da avó, muito significativa, todavia, pouco reconhecida na sociedade, e até

mesmo no âmbito acadêmico, conforme verificado por estudantes e autores da

temática. O destaque dado à figura da avó é também expresso no ditado popular: ―ser

mulher-avó e ser mãe duas vezes‖. Considerando esta premissa, Leite (2004) enfatiza

que ser avó ―significa também ter cumprido todas as etapas da vida de uma mulher na

sociedade e na família‖. (P. 54).

Page 105: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

103

Tomando por exemplo a análise feita por Dona Conceição, uma das avós

entrevistadas, no que concerne à ênfase na figura da avó cuidadora de netos, ela

expressou: Eu sou mais mãe do que ela !

Nesta perspectiva, Bacelar (2002) assinala que o estudo da figura da avó

se torna complexo também ―pela carência de informações a seu respeito‖. E

complementa:

[...] os estudiosos lamentam a escassez de estudos sobre muitos

aspectos referentes à família, entre os quais destacamos aqueles

pertinentes aos avós, especialmente à presença da avó, tão marcante

na constelação familiar e que necessita de maiores esclarecimentos

além da rotina no cotidiano das famílias: cuidar dos netos ou ajudar a

filha nas tarefas domésticas. (Pp.26-27).

Vitale (2005), em conformidade com Ferrigno (2003) e Bacelar (2002),

reforça a noção de que embora haja ―reconhecimento inegável da importância e das

implicações do envelhecer na sociedade, os avós não ocupam lugar privilegiado de

discussão‖. (P. 94). Ou seja, pouca é a visibilidade desses agentes sociais, até

mesmo em pesquisas sociológicas.

A elevação do número de netos que vivem com as avós é fato. Um dos

fenômenos registrados pelo estudo Perfil dos Idosos Responsáveis pelos Domicílios

no Brasil, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), é o crescimento do

número de netos e bisnetos que vivem com os avós, em geral, criados e/ou

sustentados por eles.

Diversas são as razões que compreendem este acontecimento, mas o fato

é que, nos últimos anos, o número de pessoas que têm a oportunidade de conviver

com suas avós e bisavós é crescente. Conforme Lopes, Neri e Park (2005), a

significativa elevação da expectativa de vida, em razão da melhoria da qualidade

desta, corresponde a um dos fatores que melhor colabora para a elucidação desta

realidade.

Na língua portuguesa, a expressão cuidar possui significados diversos, tais

como: zelar, desvelar, ter cautela, ter atenção. Ostenta ainda características unívocas

de outros termos como, por exemplo: meditar, imaginar, pensar, empregar atenção ou

interessar-se por. Esta palavra, todavia, representa muito mais do que um momento

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104

de atenção, constituindo, na realidade, atitude de ocupação, preocupação,

responsabilização, além da implicação afetuosa com o ser a quem se destina o

cuidado. (REMEN, 1993; WALDOW, 1998; BOFF, 1999).

- O Elias aqui é muito bem cuidado, minha filha! E eu quero muito bem a ele. É bem cuidado de carinho, é de tudo! Tudo que ele precisa a gente dá Só se a gente não puder...Mais a gente podendo, agente dá. (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos)

Nesta parte da pesquisa, foi abordada a situação da avó tanto como

mulher já velha, quanto a sua atuação na família contemporânea. Atualmente, é

significativa a presença das avós no espaço doméstico como cuidadoras de netos,

sem desconsiderar, portanto, outras funções que estas velhas avós podem também

assumir, haja vista que elas, além de participarem da economia familiar, atuam na

educação dos netos, assumindo cuidados parciais e/ou até mesmo integrais.

Destaca-se, porém, que essa situação não se estabelece isoladamente,

está, portanto, inserida nos desafios da contemporaneidade, como se pode observar

nas declarações de Camarano (1999), quando acentua que ―(...) os padrões de

assistência entre as gerações devem ser vistos no contexto dinâmico do curso de vida

das pessoas e das mudanças nas relações familiares‖. (P. 86).

Conforme Dellman-Jenkins, Blanemeyer e Olesh (2002), os papéis das

avós foram ―expandidos‖ ao longo do século XXI, pois, além de responsáveis pelos

cuidados básicos e diários de seus netos, passaram a ser responsáveis pelo sustento

financeiro daqueles que moram em sua companhia.

É comum observar, então, que muitas avós cuidam de seus netos

enquanto os genitores destes trabalham, e, dessa forma, participam também do

processo educacional de infantes e/ou adolescentes. As avós são os membros mais

próximos e frequentes no auxílio ao cuidado dos netos. Responsáveis por seus netos

de forma mais complexa, ou seja, além de bancar o sustento dos citados, estas avós

assumem obrigações quanto à educação dos netos em período integral, dessa forma,

representando até mesmo a principal referência adulta para os mencionados.

D. Conceição é quem acompanha Elias também na escola, compra o material escolar, participa das reuniões, às vezes o leva para o colégio. Na escola, a professora sabe que ela (D. Conceição) é avó e mãe e repassa também os elogios para ela: A

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105

professora disse que no colégio ele é um ótimo aluno. (Diário de Campo, 30 jul. 2012)

No que concerne à classificação de cuidadores, Santos (2003) pondera

que,

[...] cuidadores secundários são representados por outros elementos

que podem desempenhar o mesmo tipo de tarefa dos cuidadores

primários, mas que não têm o mesmo grau de envolvimento e

responsabilidade pelo cuidado. Os terciários são aquelas pessoas

que auxiliam, esporadicamente ou quando solicitdas, no

desenvolvimento de atividades instrumentais da vida diária mais

relacionadas às tarefas especializadas. (SILVERSTEIN e LITWAK,

apud SANTOS, p.17).

Convém ressaltar que as avós, provavelmente, podem ser classificadas

como cuidadoras primárias quando assumem o neto em situações de negligência ou

abandono por parte da genitora, sendo, portanto, responsáveis por toda a educação e

subsistência; E, como secundárias, quando prestam cuidado aos netos na ausência

dos pais, seja em razão de trabalho, viagem, dentre outras; e como terciárias, nos

casos em que são requeridas para uma atividade específica.

Observa-se que o desempenho do novo papel que assumem os avós, no

âmbito familiar moderno, ultrapassa a imagem que outrora ocupava o imaginário

coletivo, ou seja, a dos avós como exclusivos transmissores de legados geracionais,

como ressalta Vitale (2005): ― a herança simbólica, a transmissão da memória

familiar‖. A referida autora complementa esta afirmação, destacando que ―os avós que

estão em nossa volta ou os que alguns de nós somos hoje tendem a se distanciar dos

modelos guardados em nossas lembranças‖. (P. 93). Portanto, os avós são

geralmente caracterizados e lembrados por meio do lugar que ocuparam na família,

bem como do próprio lugar.

Assim sendo, torna-se notável, nos dias atuais, o fato de que a

responsabilidade e/ou colaboração dos velhos, seja financeira e/ou moral, sobrepõe-

se à elegância dos cabelos brancos, os quais anteriormente representavam, apenas,

respeito, afetividade, companheirismo e tranquilidade. Por conseguinte, no interior das

famílias, a relação de cuidados das avós para com os netos também é alvo de

modificações culturais e sociais, como expressa Vitale (2005), ao classificar os avós

Page 108: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

106

como uma espécie de ―pais adotivos‖, considerando aqui o sentido mais amplo da

palavra. Peixoto (2000) corrobora essa afirmação, quando diz que os avós

―recomeçam uma segunda carreira de pais‖.

Tal situação pode ser observada nas seguintes falas:

- Ela me chama de mãe e ele de pai. Os pais que ela conhece é ele e eu. A mãe dela ela chama é de ‗Ninha‘. Ela não chama de mãe, não ! (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos)

- A mãe dele mesmo, ele chama é de ‗fia‘. Mas, ele sabe quem é a mãe dele mesmo, porque eu passo para ele. (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos)

Nos casos dos netos Elias e Perla, suas genitoras constituíram novos

relacionamentos e famílias. Na medida em que é possível, auxiliam financeiramente,

embora seja pouco. Quanto aos contatos com suas genitoras, a mãe de Elias o visita:

Ela visita! E ela vem pra cá, quando eu não posso ir com ele lá, ela vem aqui, leva ele

pra lá, nas férias. Já no caso de Perla, o contato é mais restrito, pois sua mãe reside

em outro estado.

Esse cuidado ―de forma ampliado‖, se é que se pode dizer assim, também

foi identificado na narração de Dona Rosa, quando se pronunciou sobre sua condição

de avó cuidadora de neto, antes de seu problema de saúde, o qual já foi relatado em

capítulo anterior:

- Eu acho muito importante, viu ! É muito ... eu trabalhava muito né !? Sofri muito para criar eles por que a mãe deles não tinha responsabilidade, e era tudo comigo. Eu trabalhava, dava comida, dava tudo a eles. Tudo era meu. Tudo era eu, por que ela né !? A vida dela era viver jogada aí pelo mundo. Agora é que ela se aquietou mais, depois que eu...Mas, toda vida eles foram comigo para escola. Ia buscar e ia deixar. Pra médico. Pra tudo! tudo! Ela nunca fez nada por eles não. (Depoimento concedido por Dona Rosa, 61 anos)

- Eu gostava de cuidar dos meus netos. Eu adorava cuidar deles. Eu ia trabalhar de manhã, eu me levantava às 05:00 horas, aí fazia três mamadeira de mingau, uma para cada qual, né! Aí, dava o mingau deles e ia trabalhar. E eu gostava muito...Me separei deles por causa de doença, mas...Se eu não tivesse adoecido e ...Eu num tinha me separado deles não. Porque eu não podia trabalhar mais e meu marido não tinha pensão. Não tinha como eu sustentar eles. E a mãe deles era uma irresponsável (e ainda é) e não tinha como sustentar os bichim, né! (Depoimento concedido por Dona Rosa, 61 anos)

Page 109: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

107

O cuidado faz parte da vida, perpassando etapas diversas, as quais

compreendem, desde a concepção, desenvolvimento e até o momento final da vida.

Costenaro e Lacerda (2002) consideram que ―ter cuidado com alguém ou com alguma

coisa é um sentimento inerente ao ser humano, ou seja, é natural da espécie humana,

pois faz parte da luta pela sobrevivência e percorre toda a humanidade‖. (P. 29).

Retomando as considerações referentes aos novos papéis

intergeracionais, Camarano (1999) entende que:

[...] as novas imagens do envelhecimento, que expressam as

mudanças sociais e redefinem identidades, vem acompanhadas de

uma rediscussão sobre a família, envelhecimento e sobre a dialética

entre dependência/interdependência entre gerações. (P. 86).

Desse modo, considera-se que a presença das avós na família se

modifica, ao mesmo tempo em que se intensifica, no contexto da sociedade atual.

Karl Marx (1989) menciona que, ―na produção social da própria vida, os

homens contraem relações determinadas necessárias e independentes de suas

vontades‖. (P. 136). Assim, observa-se que há nas trocas/relações intergeracionais o

sentido de contribuição/colaboração à própria dinâmica social da vida humana.

Destarte, não se pode desconsiderar que os avós cuidadores de netos, sujeitos desta

pesquisa, assumem também, em suas múltiplas funções, a de educar. Cuidar também

é educar.

Passando a vivenciar uma situação que, muitas vezes, lhes aparece como

inusitada, a população envelhecida assume também outra função na sociedade

contemporânea: a de cuidador dos netos. Segundo Osterne (2001), os avós se

interessam, cada vez mais, por solicitar a guarda judicial59 de seus netos, além da

tendência a incorporarem as características maternas e ou paternas na relação com

esses infantes e/ou adolescentes, embora a resposta biológica de seu organismo já

esteja de forma lenta e debilitada.

59

Sobre a Guarda Judicial, o Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA, no artigo 33º, esclarece que: ―a guarda obriga à prestação de assistência material, moral e educacional à criança e ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se à terceiros, inclusive aos pais.‖ (2000: p.311)

Page 110: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

108

Esta condição a que estão expostos os avós do século XXI, de acordo com

Vitale (2005) e Petrini (2004), caracteriza a família como espaço de mudanças entre

gerações, no qual os avós participam diretamente da organização da nova estrutura

familiar, oficializando ou não este cuidado. No tocante às novas dimensões da vida

familiar e à presença das avós nestas cenas, Vitale (2005) acrescenta:

Por sua vez, essas famílias, desprovidas de proteção social, têm

necessidade de incrementar as trocas intergeracionais para

responder às exigências dos diversos momentos de seu ciclo de vida.

Os avós, como já foi apontado, participa ativamente dessas trocas.

(P.100).

Desse modo, na atualidade, os avós oferecem aos seus netos muito mais

do que simples proteção, pois se tornam cuidadores integrais e até legais de seus

netos, ocupando, realmente, posição de pais substitutos dos netos, inclusive, também

no campo das discussões. Assim sendo, pode-se perceber que o sentido da palavra

cuidar se torna vasto neste debate. Impõe que se ressalteo fato da obrigação

educacional também está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA,

enfatizando assim o grande caráter de responsabilidade conferido ao detentor da

guarda judicial.

Há, portanto, de se considerar a relevância da palavra educar para estes

avós, os quais diferem dos avós de outrora, e que, além da transmissão de legado

geracional, contribuem, cotidianamente, na formulação do saber (ou seja, do

conhecimento) de seus netos.

Para Durkheim (1955), os resultados, aprendizados e experiências de uma

geração são repassadas por seus descendentes, quase que de forma conservada,

graças aos livros e monumentos figurados, tradição oral, dentre outras. Quanto ao

termo educação, o autor francês o reserva para a ação que uma geração de adultos

exerce sobre infantes, jovens e adolescentes, caracterizando-a como uma influência

toda especial.

Pode-se, com efeito, perceber que o novo papel que os avós passam a

exercer, nos dias atuais (o de cuidadores de netos), implica a estes avós um sentido

mais vasto da palavra cuidado, haja vista que a função educadora também se faz

presente neste cuidado. Assim sendo, as avós assumem também a função de

transmissores de comportamentos e saberes, bem como das histórias familiares.

Page 111: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

109

Durkheim (1995) ressalta, ainda, não ser possível educar os filhos da

forma como pretendem seus genitores. E, acrescenta que a função educativa também

possui papel de ―preparar as crianças‖. (P.39). Ele acresce à ideia de que a sociedade

se refere a uma entidade moral duradoura, a qual liga as gerações e o legado de cada

uma, conservado e acrescentado.

Vitale (2005) faz uma relevante e inquietante reflexão ao se referir às

novas funções que os avós assumem na atualidade, no âmbito familiar, ao ponderar

que a condição de ser avô ou avó se transforma ao longo do decurso de vida,

inclusive, podendo ser substituída por tempos mais complicados. ―Ser avós ou chefes

de família?‖, esta é, portanto, uma indagação que aflige os avós no século XXI.

A população velha é um segmento em constante crescimento no contexto

mundial. Este aumento, entretanto, também trouxe novos desafios a essa categoria na

contemporaneidade. Hoje, os avós passam a ser os responsáveis diretos para com

seus netos. Na redefinição dos laços familiares, eles assumem um papel de

protagonistas principais na vida desses descendentes, inclusive, no tocante ao seu

sustento, independente da presença ou ausência dos genitores dessas crianças e/ou

adolescentes.

Camarano (1999), ao apresentar sua pesquisa sobre o velho brasileiro,

acentua seu papel na família e mostra que esse tende a passar da condição de

dependente para a de provedor. Algumas avós sentem-se, até mesmo, obrigadas a

cuidar de seus netos pela própria situação de dependência econômica em que se

encontram seus filhos, recebendo em sua casa tanto os filhos adultos quanto os netos.

Observa-se, portanto, que os arranjos familiares, em que estão inseridas estas

pessoas já velhas, organizam- se para enfrentar situações diversas e adversas, tais

como: o que fazer em face do envelhecimento populacional, de maior dependência

dos jovens e do próprio ―enxugamento‖ do Estado.

- E foi uma confusão...elas namoravam, e arrumaram esses namorados, e caíram na besteira de arrumar bucho...Aí, ficaram dentro de casa e eu aconselhava...Bem novinha elas...(Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos)

- O pai da Perla nunca ajudou em nada. Nunca deu nem um kilo de açúcar. Os outros avós nunca deram nada a ela. E eu, eu ajudei foi as duas. (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos)

Page 112: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

110

No decorrer dessa pesquisa, observou-se que as avós maternas eram as ―maiores responsáveis‖ em assumir seus netos. Em algumas vezes, a genitora da criança (ou adolescente) trabalhava para ajudar, como no caso da mãe de Perla. Todavia, a contribuição da avó (seja financeira e/ou afetiva) esteve sempre presente nestas relações. (Diário de Campo, 30 jul. 2012).

No caso de D. Ana, a qual tem uma outra filha que mora no apartamento vizinho ao seu, a entrevistada enfatizou que do momento que ela retornou para a casa de seus genitores com o filho (neto da informante) até os dias de hoje, ela (a filha) é alvo de preocupação e dependência econômica da entrevistada. D. Ana, por várias vezes, evidenciou sua apreensão com o futuro desta filha, principalmente, após sua morte. (Diário de Campo, 26 set. 2012).

No que se refere à função das avós na família contemporânea, Vitale

(2005) compreende que:

No entanto, as mudanças dos laços familiares e a vulnerabilidade que

atinge as famílias demandam novos papéis, novas exigências para

essas figuras, personagens que ganham relevo não só na relação

afetiva com os netos, mas também como auxiliares na socialização

das crianças ou mesmo no seu sustento, mediante suas contribuições

financeiras. (P. 94).

Concordar com Magalhães (1989) é compreender que, no contexto da

contemporaneidade, são atribuídas responsabilidades mais complexas às avós no que

concerne a ―cuidar‖ de seus netos, quando o referido autor considera que as

especificidades de papéis e significados, atribuídos à velhice, foram distintos e em

consonância com cada período histórico. Assim, os padrões concernentes a esse

cuidado e a relação avós-netos estão estabelecidos tanto cultural quanto socialmente.

Ao pensar sobre idade e períodos históricos, Motta (1998) destaca:

As sociedades, em diferentes momentos históricos, atribuem um

significado específico ás etapas do curso de vida dos indivíduos:

infância, juventude, maturidade, velhice. Também estabelece as

funções e atribuições preferenciais de cada grupo de idade na divisão

social do trabalho e dos papéis na família. (P. 225).

Ante a atual conjuntura, observa-se que os avós que passam a cuidar de

seus netos, os provêem de sustento diário e de sua contribuição como educadores,

direcionando um processo civilizatório e até mesmo estabelecendo comportamentos e

Page 113: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

111

normas que direcionarão os netos por sua vida adulta, atuando na formação de

valores, padrões e regras. Considera-se aqui, portanto, a amplitude que assume o

vocábulo cuidar para as avós, na atualidade.

Ainda sobre a transmissão de valores na relação avós e netos, bem como

dos estudos que versam sobre esta temática, Peixoto (2000) assim se posiciona:

Eles aproveitam para transmitirem alguns valores morais e sociais

(respeito aos outros, sobretudo aos mais velhos; honestidade;

importância dos laços familiares, o valor do trabalho, as histórias da

família ...), pois muitos deles acham que os pais de hoje são muito

negligentes nessas questões. No Brasil, essa temática tem sido,

entretanto, pouco debatida, tanto nos estudos sobre as questões da

família contemporânea como naqueles que pesquisam e tratam do

envelhecimento. (P.107).

Sob essas condições, na sociedade moderna, as avós oferecem aos seus

netos muito mais do que simples proteção e carinho. Assim sendo, este experimento

suscita o interesse em conhecer e analisar a inserção das avós (mulheres

envelhecidas) na família, bem como na sociedade, discutindo a relação que envolve

envelhecimento e família.

Nas considerações de Peixoto (2000),

[...] as noções de avô e de avó são relativamente recentes. Na

Europa, até o século XVIII, a imagem da grand-parentalité60

estava

vinculada à velhice, á decadência e à morte. Ao longo dos anos,

observa-se a transformação do papel dos avós, conseqüência do

aumento da esperança de vida e do recuo do modelo patriarcal até

então assimilado á uma autoridade forte da geração mais velha e,

assim, à uma distância afetiva. As relações afetivas entre avós e

netos emergem nos anos de 1930, quando os primeiros se tornam

auxiliares dos pais na socialização das crianças. (Pp.97-98).

Quanto aos assuntos abordados nesta pesquisa, não se pode

desconsiderar o surgimento de alguns questionamentos, como este: haverá, portanto,

uma inversão de papéis para essas avós que tiveram seus papéis ―ampliados‖ ante o

contexto da globalização e suas conseqüências?

60

Termo usado em francês para caracterizar o estudo dos avós.

Page 114: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

112

Nesta perspectiva, os/as avós surgem como protagonistas nas cenas das

relações familiares no mundo contemporâneo, cujo vínculo vai além, haja vista a

complexidade que envolve esta relação (avós-netos). É mister evidenciar que, na

contemporaneidade, a significativa presença dos avós pode ser constatada em

diversas situações, que os envolvem de forma complexa e/ou até mesmo subjetiva,

conforme se observa no raciocínio de Vitale (2005):

Por essas razões, a figura clássica da vovozinha sentada na cadeira

de balanço, cabelos brancos, fazendo tricô ou crochê, presente nos

livros infantis, pouco corresponde ao perfil dos avós atuais,

possivelmente em todos os segmentos sociais, considerando-se as

mudanças por que passou a família, em especial a partir da segunda

metade do último século. (P.101).

Compreendendo a complexidade da teia familiar, Petrini (2003) aflui ao

debate, considerando a família como complexo simbólico importante, e acrescenta que

―o complexo simbólico da família é o primeiro ponto de apoio, o primeiro cimento da

sociedade.‖ (P.72). Nesta perspectiva, Vitale (2005) acrescenta ainda, que os avós

―parecem se apresentar como rede de apoio concreta, mesmo para aqueles mais

pobres, como laços dentre as gerações que conferem a identidade à história familiar‖.

(P.54).

Assim sendo, convém destacar o fato de que a família conta com a

colaboração dessas pessoas mais velhas de formas diversas, seja no cuidado diário

com os netos, seja em circunstâncias mais complexas que envolvem as relações

intergeracionais, como suporte afetivo e socioeconômico tanto para os filhos, quanto

para os netos, conforme evidenciam Peixoto (2000) e Vitale (2005). Nesta pesquisa,

observou-se que Dona Rosa e Dona Conceição foram surpreendidas com situações

que não imaginaram para as filhas, ou seja, elas serem mães na adolescência e ela

ainda assumir a responsabilidade financeira destas, mesmo durante a vida adulta.

Vitale (2005) faz uma importante, bem como preocupante reflexão, ao

destacar as atribuições que os avós, principalmente, para o sexo feminino61,

assumem na atualidade, ao mencionar que: ―a condição de ser avô ou avó se modifica

ao longo do percurso de vida: os belos anos de ser avós podem dar lugar a anos mais

61

Ao considerar o cuidado como uma atribuição do sexo feminino, conforme será abordado no decorrer desta pesquisa, especificamente no tópico 4.3 denominado: Cultura X natureza do feminino.

Page 115: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

113

difíceis‖. (P. 98). Acrescenta que ―As relações intergeracionais e de gênero compõem

o tecido para se pensar a condição de ser avô (ó)‖. (P.104)

Ante as questões até aqui discorridas, surge, portanto, a relevância de se

estudar alguns pontos ligados à velhice, na sociedade brasileira contemporânea, e sua

interação no contexto das relações entre gerações; destarte, problematizar o decurso

do envelhecimento na contemporaneidade reveste esta pesquisa de relevância tanto

acadêmica quanto social.

Suscitadas algumas considerações acerca da categoria família e da

contribuição das relações intergeracionais, no contexto familiar, no capítulo a seguir,

buscou-se apresentar um debate sobre a categoria velhice e sua importância no

contexto da contemporaneidade.

Page 116: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

114

4 ABORDAGENS SOBRE A TEMÁTICA VELHICE

―A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu, mas pensar o que ninguém ainda não pensou

sobre aquilo que todo mundo vê.‖

Arthur Schopenhauer

4.1 Velhices: entre conceitos e preconceitos

Da década de 1960 em diante, a temática velhice/envelhecimento passou

a ser estudada pelas Ciências Sociais, embora de maneira tímida. Já na década de

1980, o fenômeno do envelhecimento passou a ser vislumbrado de fato, inclusive, com

relevância teórica.

Tanto o descaso quanto a escassez de material teórico, em relação a esse

assunto foram evidenciados e denunciados por Beauvoir (1970), autora de destaque

no estudo da temática, ao expressar que havia uma ―conspiração de silêncio‖, pois, à

medida que não possuíam um lugar social, os velhos também não conquistavam lugar

teórico.

As especulações sobre o envelhecimento humano são, de tal modo

antigas que remontam à própria história da humanidade. Em períodos históricos,

sociedades e culturas diferentes, o debate em si sempre foi alvo de controvérsias e

reflexões. Pode-se, pois, dizer que não há unanimidade a respeito do assunto.

Os conceitos elaborados sobre a velhice surgem como produtos de

determinada época. No plano individual, envelhecer significa aumentar o número de

anos vividos. Convém ressaltar, entretanto, que as especificidades atribuídas a este

conceito variam de acordo com cada momento histórico, bem como da sociedade em

que se está inserido, simultaneamente, influenciada por outros aspectos62.

62

Sendo eles de natureza social, biológica, cronológica e psicológica.

Page 117: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

115

É oportuno mencionar que não há uma definição exata de velhice,

porquanto existe uma multiplicidade de aspectos, indissociáveis uns dos outros, que

esta assume. Assim, o envelhecimento não procede de um só fator, mas representa

diversos fenômenos funcionando conjuntamente.

Beauvoir (1990) ratifica o pensamento ora exposto, ao esclarecer que a

velhice não corresponde a um fato estático, e sim ao resultado e ao prolongamento de

um processo. Envelhecer relaciona-se à idéia de mudança, caracterizada por um

declínio, e envolve também aspectos biológicos, psicológicos, existenciais e culturais.

Segundo a referida autora:

[...] Mas a vida do embrião, do recém-nascido, da criança é uma mudança contínua. Caberia concluir daí, como fizeram alguns, que nossa existência é uma morte lenta? É evidente que não. Um tal paradoxo desconhece a essencial verdade da vida; esta é um sistema instável no qual, a cada instante, o equilíbrio se perde e se reconquista: é a inércia que é sinônimo de morte. Mudar é a lei da vida. É um certo tipo de mudança que caracteriza o envelhecimento: irreversível e desfavorável – um declínio. (P. 17)

Mascaro (1997) corrobora o pensamento da autora acima ao afirmar que:

Ao lado dos fatores genéticos, os aspectos sociais e comportamentais também são muito importantes. O processo de envelhecimento humano precisa ser considerado num contexto mais amplo, no qual circunstâncias de natureza biológica, psicológica, social, econômica, histórica, ambiental e cultural estão relacionadas entre si. (P.50)

Envelhecer está inserido num processo complexo e multidimensional, que

começa a ser determinado no nascimento. Alguns autores defendem o argumento de

que este processo se inicia no útero materno. Outros consideram o envelhecimento

como o tempo de vida em que o organismo passa por consideráveis transformações

visivelmente expressadas no declínio de sua força, disposição e aparência, as quais

podem ou não incapacitar/comprometer o desenvolvimento vital.

Estudar ―as velhices‖ é considerá-las em seu contexto plural e também

real, ante as multiformes manifestações da questão social, num contexto

contemporâneo rico de desafios. Ferrigno (2003), em conformidade com Beauvoir

(1990), alerta sobre essa ―pluralidade de formas de envelhecer‖. Definir velhice é,

Page 118: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

116

portanto, compreendê-la em sua particularidade e complexidade, sem desconsiderar o

significado e importância dela nos dias atuais.

Segundo Ferrigno (2003), corroborando a percepção de Beauvoir (1990),

sobre as características singulares da velhice, tem-se que:

Principalmente a partir da segunda metade da vida o ser humano vai mudado sua forma de orientação no mundo; vai deixando de ser orientado externamente para ser orientado cada vez mais pelo seu interior. Com isso e graças ao acúmulo de experiências singulares, ou seja, que somente ele vivenciou, vai formando uma subjetividade única. Portanto, as idiossincrasias de cada idoso tendem a se manifestar de modo cada vez mais exuberante. Como decorrência desse processo de diferenciação ou de singularização, cada um se torna na velhice mais e mais incomparável a qualquer outro ser idoso; torna-se cada vez mais ele mesmo. (Pp.135-136)

Convém ressaltar que a velhice compõe um das etapas do ciclo natural da

vida, sendo este nascer, crescer, amadurecer, envelhecer e morrer; e as alterações

que a caracterizam têm origem no próprio organismo, e acontecendo de forma

gradual. Seguindo este raciocínio, em Ferrigno (2003), citando Bobbio, constata-se

que ―a velhice não está separada do resto da vida que a precede: é a continuação de

nossa adolescência, juventude e maturidade‖. (P. 81)

Como, porém, identificar a idade da velhice?

Responder a esta indagação não é tão simples assim, haja vista que, em

períodos históricos diferentes, em sociedades e situações sociais distintas, a pessoa

pode ser considerada velha com 70, 60 e até mesmo, aos 40 anos de idade. Nas

palavras de Bosi (1994),

Além de ser um destino do indivíduo, a velhice é uma categoria social. Tem um estatuto contingente, pois cada sociedade vive de forma diferente o declínio biológico do homem. (P. 77).

No que se refere a limite de idade estabelecida legalmente, no Brasil, tem-

se a Lei 10.74163, de 1º de outubro de 2003, dispondo sobre o Estatuto do Idoso e

63

Conforme Art 118. A lei entrou em vigor decorridos 90 (noventa) dias de sua publicação, ressalvado o disposto no caput no art. 36, que vigorou a partir de 1º de janeiro de 2004.

Page 119: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

117

dando outras providências, estabelece como idoso todo aquele com idade igual ou

superior a 60 anos.

Relevante é compreender que a velhice corresponde a um fenômeno

biológico, um processo heterogêneo e individual, sofrendo por sua vez influência do

meio sociocultural. Sobre este assunto, Fraiman (1991) contribui no debate:

A idade é uma das variáveis que regulam o comportamento social e as relações entre indivíduos e grupos, em todas as sociedades. Ela conglomera e torna homogêneas grandes classes de indivíduos, submetendo-os às normas sociais que não apenas os beneficiam, mas também estigmatizam e até os prejudicam, por desconsiderar as diferenças individuais. (P.19).

Fraiman (1991) ressalta que, para o senso comum, velho é aquele que

possui muitos anos de idade e uma vasta experiência acumulada, diferenciando-o

assim dos demais. Muitos são os termos utilizados para se reportar a este importante

estágio de vida, podendo destacar, por exemplo: idoso, terceira idade, quarta64 idade,

nova idade, idade avançada, geração de cabelos brancos, melhor idade, feliz idade,

velho, velhote, dentre outros. Vale frisar que tais palavras surgem não como

sinônimos, todavia, como uma forma de eufemizar a palavra velho, haja vista esta ser

associada ao que ―se joga fora‖, a algo desprezível. Nas palavras de Ferrigno (2003),

―a palavra ‗velho‘ não é agradável‖. (P.68).

Relevante mencionar que as análises sociológicas, e até mesmo

demográficas, seguem a mesma modificação conceitual, haja vista que estas

terminologias, embora vinculadas a processos biológicos, são elaborações de cunhos

sociais ou culturais.

Ainda quanto às nomenclaturas, Peixoto (1998) acrescenta que

O termo ‗velho‘ tem assim uma conotação negativa ao designar, sobretudo, as pessoas de mais idade pertencentes às camadas populares que apresentam mais nitidamente os traços do envelhecimento e do declínio. (P.78).

64

Para Ferrigno (2003), alguns gerontólogos chamam a velhice avançada de Quarta idade, identificado-a pela ―decorrência da acentuação das limitações físicas e da presença mais provável de patologias, inclusive mentais‖. (P. 74).

Page 120: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

118

Evidencia-se que tais termos são responsáveis pela constituição de uma

identidade estigmatizada. Há, portanto, o surgimento de terminologias diversas para

se tratar do assunto velho ou velhice. Releva destacar, ao abordar esse contexto, que

segundo Peixoto (1998) a expressão ―terceira idade‖ teve origem na França, em 1962,

ao ser inserida uma política de integração social da velhice, a qual objetivava a

alteração da imagem dos indivíduos envelhecidos, haja vista que, até este período, a

velhice era considerada exclusão social. Em outras palavras, aos velhos destinava-se

o asilo.

Quanto às palavras velho e velhote, a autora acrescenta ainda que estas

eram aplicadas para aqueles que não detinham o status social, ou seja, os

despossuídos e/ou indigentes, de modo a reforçar suas condições de exclusão. Já a

designação de idoso era mais polida, se assim é possível dizer. Era reservada aos

sujeitos que possuíam status social proveniente das seguintes circunstâncias65:

experiências em cargos políticos, posição financeira privilegiada ou de alguma outra

atividade de destaque na sociedade.

Tais classificações, de acordo com Peixoto66 (1998), nasceram num

período histórico em que nas relações de produção, a força de trabalho, era o bem

precioso, cujas categorias menos favorecidas tinham para vender. Com a diminuição

desta força, o sujeito inseria-se na categoria de velho (sem atividade laboral e

desassistido pelo Estado, situações que legitimavam seu estado de pobreza). Por isso,

ainda hoje, associa-se velhice à invalidez e à decadência.

Assim como Peixoto (1998), Beauvoir (1990) e outros autores analisados

neste estudo, Ferrigno (2003) apresentou a ideia de decadência relacionada à velhice,

e posiciona-se quanto a isso:

65

Ou seja, determinadas categorias, tais como: os ricos, os dirigentes políticos e/ou religiosos, os inetelectuais, dentre outros que possuíam valor social.

66

Segundo a autora, a partir dos anos 60, surge uma nova política social francesa, voltada para a velhice, que elevou o valor das pensões, e conseqüentemente, o prestígio dos aposentados. Os vocábulos velho e velhote foram substituídos por idoso, em textos oficiais. Assim, as pessoas envelhecidas passaram a ser tratadas com maior respeito. No final da década de sessenta, tais transformações chegaram ao Brasil que assimilam a noção francesa de idoso, passando a utilizar o termo em alguns documentos oficiais. Desse modo, Terceira Idade passa a ser a nova fase da vida, compreendida entre a aposentadoria e o envelhecimento, caracterizando um envelhecimento ativo e independente. Vale frisar que a expressão Terceira Idade traz consigo um convite a práticas de atenção e cuidados com a saúde, ou seja, a boa qualidade de vida. O termo Terceira Idade (troisième age) foi cunhado pelo gerontólogo francês Huet.

Page 121: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

119

Nessa perspectiva a velhice é tida como sinônimo de decadência, daquilo que já foi ou que ‗já era‘ expressão bastante usada, principalmente pelos jovens. Em minha opinião, devemos falar de adultos jovens e adultos velhos. O idoso não deixa de ser um adulto, continua sendo um adulto, um adulto mais velho. (P. 52).

Ainda no que tange a esse descaimento vinculado à velhice, convém

salientar que, sob essa óptica de ponderação, predomina a visão do envelhecimento,

ou seja, em seu aspecto biológico e suas implicações em estado individual.

Ante o debate sobre o conceito de velhice, vale frisar que se torna tarefa

árdua atribuir uma definição exata para velhice, principalmente quando se quer

caracterizar uma pessoa como velha, utilizando, apenas, o critério da idade. Beauvoir

(1990) pondera que a categoria velhice não expressa uma realidade bem definida. E,

acrescenta que o processo de envelhecimento resulta da interligação do sujeito com a

sociedade, ao mencionar que velhice é

Um fenômeno biológico com conseqüências psicológicas que se apresentam através de determinadas condutas consideradas típicas da idade avançada. Modifica a relação do homem no tempo e, portanto, seu relacionamento com o mundo e com sua própria história. Por outro lado, o homem nunca vive em estado natural: um estatuto lhe é imposto também na velhice, pela sociedade a que pertence. (P. 11).

A autora postula a noção de que a idade modifica a relação do indivíduo

com o tempo. Destaca a definição de velho como alguém que possui longa vida por

trás de si, e adiante uma expectativa de sobrevida em demasiado limitada. Os velhos

têm suas perspectivas reduzidas pela sociedade, pelas restrições decorrentes da

própria idade. Segundo a autora, porém, ―(...) a relação com o tempo é vivida

diferencialmente, segundo um maior ou menor grau de deteriorização do corpo‖.

(P.15).

Apesar de Beauvoir (1990) admitir não ser fácil descrever a categoria

velhice, a mencionada alvitra defini-la a partir de três dimensões, sendo estas:

biológica, psicológica e existencial. De acordo com a autora, ―o que torna a questão

complexa é a estreita interdependência desses diferentes pontos de vista‖. (P.15).

Assim sendo, concebe a velhice numa perspectiva de totalidade.

Page 122: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

120

Na análise elaborada por Fraiman (1991), a idade pode ser conceituada

em quatro dimensões: cronológica, biológica, social e existencial. A primeira foi

instituída, principalmente, em funções de práticas administrativas, ou seja, relaciona-

se à definição de papéis ocupacionais. É marcada pela data de aniversário da pessoa.

Seguindo o raciocínio de Fraiman (1991), corrobora com esta percepção

Ferrigno (2003) ao destacar esse pensamento:

No caminho em direção à fase da Terceira Idade, em decorrência de inúmeros fatores culturais contemporâneos, os contatos sociais, tendem a rarear, isto é assiste-se a um progressivo esvaziamento de papéis, fato que determina ao idoso um crescente isolamento ou recolhimento ao espaço doméstico. A aposentadoria, a viuvez, a perda de amigos, e a chamada ‗síndrome do ninho vazio‘, esta última caracterizada pela debandada dos filhos emancipados, são fenômenos que impõem aos mais velhos uma expressiva diminuição de funções. (P.52).

Ainda que seja, todavia, um fator importante, objetivamente mensurável, a

idade cronológica não é considerada suficiente para definir o ser velho, pois não

expressa a condição da pessoa, haja vista que o fundamental não é o mero transcurso

do tempo, contudo a qualidade deste, o que se vivenciou e a qualidade do ambiente

que a cercaram.

Na perspectiva de Fraiman (1991),

Por si só a idade cronológica de um indivíduo nada nos revela sobre sua existência, personalidade, intelectualidade, produtividade e energia vital. A Pessoa é muito mais do que a simples expressão de suas atuais condições físicas e de saúde, uma vez que a dimensão mental, experiencial também age, se modifica a cada instante. (P.21).

Esta realidade que supera as limitações físicas do corpo, ao tentar

evidenciar a energia vital e intelectiva, foi evidenciada na fala de Dona Ana, ao

mencionar que,

- Eu acho ruim é porque eu não posso andar quase, por causa da artrose, né! Tenho problemas nas pernas, no corpo todinho. Mas, Hoje, eu fui pra oração e na volta, um rapaz que anda num carro me trouxe até aqui. Tem também a minha bengala...E, mesmo assim, eu vou pra reunião. (Depoimento concedido por Dona Ana, 74)

Page 123: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

121

Neste relato, a entrevistada frisou que faz uso da bengala para auxiliá-la

no deslocamento diário, e, mesmo assim, a citada é bastante participativa nas

reuniões do condomínio, bem como nas atividades da igreja evangélica a qual é

congregada, afirmando gostar de participar de tudo.

Convém destacar que, para o início da velhice, nos países em

desenvolvimento, foi estabelecida a idade de 60 anos, e para os países desenvolvidos

65 anos, perspectiva definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), assim como

utilizada como referencial pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Conforme a autora anteriormente citada, a idade biológica se refere às

condições orgânicas, ou seja, transformações fisiológicas, anatômicas, hormonais e

bioquímicas do organismo, consideradas símbolos da idade avançada. Na opinião de

Mascaro (1997), o envelhecimento biológico é, em regra, descrito pela exposição de

uma série de insuficiências, perdas e limitações.

Nesse período, alguns aspectos mais visíveis são diminuição do vigor

físico, esquecimento, dificuldade de locomoção, falta de firmeza nas pernas e mãos,

enrugamento da pele, cabelos brancos, dentre outros. Estes podem provocar rejeição

da própria imagem. Marcas peculiares da velhice são também observadas na

respostas da seguintes avós:

- Às vezes, eu me esqueço das coisas. Não é toda vida não, né! Às vezes, vou botar uma coisa ali num canto, aí não sei coma foi que eu botei. Aí, depois, com um bom pedaço, né!? Que eu vou, eu fico sentada ali, que eu fico com a cabeça (...) aí, eu me lembro aonde é que fico com a cabeça (...), aí eu me lembro aonde é que ta. È pouco, num é muito não. Mas, já to me esquecendo já... (Depoimento concedido por Dona Rosa, 61 anos).

- O que eu tenho pra dizer é assim... Porque agora eu não sou mais como eu era, porque aqui e acolá, eu tenho assim um problema... Tenho pressão alta...Uma vez eu fui extrair um dente que eu tenho aqui, que tá bem molim, aí eu cheguei lá, não pude nem extrair porque eu tava com a pressão muito alta, acredita ? (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos).

- E, ás vezes, não tenho... Eu fico sem coragem de ir para igreja. É assim... Às vezes eu vou...ás vezes num vou...É assim...cansada né!?. Sinto muita dor nas pernas. (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos.

Convém lembrar, entretanto, que este conjunto de transformações físicas

não ocorre a um tempo só, haja vista que o envelhecer é processual, assim, as

Page 124: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

122

mudanças físicas vão surgindo paulatinamente e em si mesmas, variando de pessoa

para pessoa. Conforme Bosi (1994), ―antes do afastamento definitivo há um declínio

lento, intermitente, acompanhado de dolorosa lucidez.‖ (P.76).

O envelhecimento como fenômeno biológico é um processo básico,

consequência de uma evolução contínua, iniciada com o nascimento e com término na

morte. De acordo com Mascaro (1997), a idade biológica é definida pela herança

genética, bem como pelo próprio ambiente.

A idade social, por sua vez, está relacionada com a participação do

individuo na vida produtiva, e, por que não mencionar, laboral. Nesta, a sociedade dita

as regras. É determinada por normas67 e expectativas sociais, sob as quais as

pessoas são categorizadas em termos de seus direitos e deveres como cidadãos.

Mascaro (1997) complementa, ressaltando que a idade social se refere às normas,

crenças, estereótipos e eventos sociais que controlavam pelo critério de idade a

função dos velhos.

É cediço dizer que, nas sociedades ocidentais, é comum associar o

envelhecimento com a egressão da vida produtiva pelo caminho da aposentadoria.

Bosi (1994), ao analisar a velhice na sociedade industrial, ressalta que a rejeição

sofrida pelo ser humano velho se vincula à perda da força de trabalho, porquanto ―(...)

ele já não é produtor nem reprodutor‖. (P.77). E acrescenta ainda que ―quando se vive

o primado da mercadoria sobre o homem, a idade engendra desvalorização‖. (P.78).

Quanto à idade existencial, Fraiman (1991) pondera ser esta a soma de

experiências pessoais e de relacionamento, adquirida e acumulada no decorrer do

tempo:

A idade social, determinada por regras e expectativas sociais, categoriza as pessoas em termos dos direitos e deveres que têm como cidadãos, atribuindo tarefas a ser desempenhadas, mais ou menos relacionadas às idades cronológica e biológica. (P. 20)

Ainda sobre os ―marcos da idade‖ ou ―idades da vida‖, Mascaro (1997)

acrescenta que, embora seja estipulada por uma sociedade, deve-se tomar como

67

Para Mascaro (1997), as normas dão origem ao relógio social o qual determina o que os indivíduos em determinadas épocas históricas, sociedade e cultura devem ou não fazer. Exemplos: de escolher uma profissão, de casar, de ter filhos, de começar a trabalhar, de se aposentar, de ir para escola, de sair do colégio, dentre outros.

Page 125: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

123

maior relevância o fato de que ― ‗a idade da velhice‘ é relativa e não tem o mesmo

significado para todas as pessoas‖. (P.42). A autora defende a ideia da existência da

singularidade do processo de envelhecimento.

A referida autora define a idade psicológica como uma das componentes

das ―idades da vida‖. Esta é mais abrangente e envolve mudanças de comportamento,

consequências das modificações biológicas do envelhecimento. É influenciada por

regras e perspectivas sociais, bem como por componentes de personalidade.

Importa referir a noção de que, para conceituar o fenômeno em alusão, a

velhice, faz-se necessário compreendê-la num âmbito complexo, considerando a

interdependência de seus múltiplos aspectos. Vale frisar que, neste segmento, estão

incluídos indivíduos diferenciados entre si, acrescentando os pontos de vista

socioeconômico, demográfico e epidemiológico. Quanto aos indicadores sociais deste

grupo populacional, Parahyba (1998) destaca que os diferenciais via renda, sexo e

educação costumam ser bastante significativos.

Beauvoir (1990) e Loureiro (2000) apoiam esta reflexão, ao alertarem para

o fato de que a velhice só deve ser compreendida em sua totalidade, porque esta não

representa, apenas, um fato biológico, mas também cultural. Deste modo, pode-se

perceber que a forma de imaginar, bem como de viver o envelhecimento, depende da

conjuntura histórica, dos valores e do lugar que este velho ocupa na sociedade.

Assim sendo, observa-se que a velhice corresponde a uma invenção

social68 historicamente produzida. Destarte, pode-se mencionar que existe grande

diversidade de velhices, as quais variam de acordo com a classe social, condição

biológica, sexo, estado funcional, dentre outros aspectos. Com efeito, ao pesquisar

sobre ―as imagens da velhice‖ com a pretensão de apresentar uma definição para esta

categoria, é conveniente expressar que não há modelos de envelhecimento e/ou de

velhice.

Ao abordar as tentativas de definir a velhice, Leonardo Boff 69, em seu

artigo designado Oficialmente Velho faz excelente e sábia consideração, ao dizer que

68

Conforme Magalhães (1989).

69

Leonardo Boff é teólogo, professor e membro da Carta da Terra. Doutor em Filosofia da Religião, pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Uiversidade Federal do Rio de Janeiro. Para maiores

Page 126: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

124

―Este é o desafio para a etapa da velhice. Então nos damos conta de que

precisaríamos de muitos anos de velhice para encontrar a palavra essencial que nos

defina‖.

Assim sendo, percebe-se que os estudos que versam sobre a velhice

reportam diversidade. Muitas teorias antigas compreendiam o envelhecimento como

um declínio e/ou fraqueza do organismo, considerando a velhice, portanto, como uma

doença. Desse modo, associada à patologia, os cientistas tentavam descobrir a cura

para seus males.

Sobre esta questão, Mosquera (1993) ensina que ―velhice em si não é

anormalidade nem doença, é apenas uma fase da vida humana enquadrada na

grande dimensão da ‗adultez‘70. A velhice é uma conseqüência natural do

desenvolvimento humano‖. (P. 15).

Todavia, não se pode negar que existam definições deturpadas, as quais

ocasionam o surgimento de estigmas e estereótipos, que desvirtuam a realidade e

colaboram para emergência de fatores negativos, como preconceito e discriminação,

conforme analisado no próximo tópico.

4.1.1 Sob as lentes do estereótipo

Vista sob este ângulo, a velhice pode ser avaliada sob a óptica do mito e

das ideias errôneas, tanto no que diz respeito ao processo de envelhecimento, quanto

à própria velhice individual. Vale salientar que, ao iniciar os registros para escrever seu

livro sobre a velhice, Simone de Beauvoir relata que escutava, frequentemente, a

seguinte frase: ―mas que assunto triste!...‖

informações, acessar o site www.leonardoboff.com . Quanto ao artigo Oficialmente Velho, este se encontra na íntegra, em anexo, ao final deste trabalho. 70

Mosquera (1993) divide a velhice em três etapas, a saber: ―adultez‖ velha inicial (de 65 a 70 anos de idade), ―adultez‖ velha plena ( varia entre 70 e 75 anos de idade) e ―adultez‖ velha final (vai dos 75 anos de idade até a morte).

Page 127: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

125

Na abordagem da temática do envelhecimento, convém exibir também,

dentre outros aspectos (sociais, econômicos, culturais), uma forma de pensamento

denominada preconceito, a qual atinge o segmento longevo. No que se refere a esta

atitude de ―natureza universalizante‖, Ferrigno (2003) corrobora com o presente estudo

quando diz:

[...] nossa sociedade desenvolveu pouca tolerância e compreensão em relação aos ‗diferentes‘, aos ‗desviantes‘, ou as chamadas ‗minorias‘. A esse conjunto quase infindável de tipos de pessoas podemos incluir categoriais sociais como: judeu, negro, mulher, homossexual, pobre, idoso, etc. Paradoxalmente e ironicamente, verificamos que as minorias somadas constituem-se na grande maioria da população! No entanto, ainda que minoritários, os padrões de comportamentos, eleitos como ideais pela civilização, têm uma força gigantesca e surpreendente. (Pp.132-133).

Corroborando a percepção de Ferrigno (2003), Éclea Bosi (1994) destaca:

Em nossa sociedade de classes, dilacerada até as raízes pelas mais cruéis contradições, a mulher, a criança e o velho são, por assim dizer, instâncias privilegiadas daquelas crueldades – traduções do dilaceramento e da culpa. (p. 11)

Por se fazer referência a preconceito, torna-se assinalado dizer que, na

sociedade contemporânea71, há exacerbada valorização do novo, do belo, do jovem,

e, que fácil é observar a velhice no outro. Ao não se reconhecer em sua velhice, é

mais comum (talvez mais simples, menos doloroso) comentar a velhice identificada no

próximo, como se pode verificar na dificuldade de defini-la na fala das próprias avós:

- Eu digo assim por que...eu acho que depende da...da situação da pessoa, porque a minha avó, minha sogra velhinhas elas viviam tão bem. Eram bem cuidadas pelos filhos, né! E até que ela já faleceu... Ela faleceu com noventa anos... mas, ela era uma velhinha feliz . A gente chegava lá, e ela era alegre, e conhecia a gente, e eu espero quando chegar na minha velhice ser assim né ? (risos). Eu espero... Eu espero chegar lá, se Deus me permitir, né! Entendeu? (Depoimento concedido por Dona Rosa)

- Lá pros sessenta e sete anos, lá pros oitenta é que a gente vai ficando velha... (pausa). E as mudanças.... eu acho que muda, porque a gente não é mais do jeito de como era mais nova...assim

71

Corpo ágil, saudável e forte é valor presente na sociedade contemporânea. Portanto, a perda desse ―conjunto‖ também consiste numa forma de banimento e discriminação da velhice.

Page 128: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

126

pra caminhar...sei lá! Numa coisa e noutra... (Depoimento concedido por Dona Conceição)

Além da dificuldade de falar sobre a própria velhice, esta imagem é

fortemente associada à ideia de morte. Dona Conceição era sempre a mais resistente

sobre este assunto, todavia, deixava escapar em sua fala planos vinculados à

preocupação com o neto, bem como proximidade da morte

- Velhice? O que eu sei sobre negócio de velhice é assim ...[silêncio!] Eu acho assim... [silêncio!] Ah! Eu penso assim...já falei até para mãe do Elias, eu disse ‗Fia‘ quando eu ficar bem velhinha ou quando eu morrer, aí é o tempo de tu cuidar dele, viu ! (Depoimento concedido por D. Conceição, 67 anos)

É salutar exprimir que a veiculação dos estigmas da velhice ocorre de

formas diversas, como, por exemplo, propagandas, novelas, programas de humor,

exibição do corpo jovem e saudável, da moda, produções literárias que tratam o velho

com deboche72, bem como permeia as relações sociais.

Desenvolvendo um raciocínio parecido, Bosi (1994) menciona a existência

de uma ―ferida aberta em nossa cultura‖, reportando-se à velhice oprimida, despojada,

banida e desvalorizada. No que se refere a outras formas de ―opressão da velhice‖, as

quais Oliveira (1999) denominou de ―movimentos invisíveis e reais da opressão‖, Bosi

(1994) acrescenta:

Oprime-se o velho por intermédio de mecanismos institucionais visíveis (a burocracia das aposentadorias e dos asilos), por mecanismos psicológicos sutis e quase invisíveis (a tutelagem, a recusa do diálogo, e da reciprocidade que forçam o velho a comportamentos repetitivos e monótonos, a tolerância de má-fé que, na realidade, é banimento e discriminação), por mecanismos técnicos (as próteses e a precariedade existencial daqueles que não podem adquiri-las), por mecanismos científicos (as ―pesquisas‖ que demonstram a incapacidade e a incompetência sociais do velho). (P. 18).

72

Caduco, ancião, avançado em anos, idoso, são algumas formas, mais ou menos, pejorativas, que se reporta à pessoa velha.

Page 129: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

127

Se a tolerância com os velhos é entendida assim, como uma abdicação do diálogo, melhor seria dar-lhe o nome de banimento ou discriminação. (P. 78).

Vale frisar que, considerando a categorização pela idade cronológica, na

organização social brasileira, essa, além de privilegiar os sujeitos mais jovens em

detrimento dos mais velhos, haja vista refletir o sistema de produção vigente73,

também subsidia crenças e opiniões negativas acerca do indivíduo envelhecido.

Nesse sentido, Ferrigno (2003) alerta para a noção de que a

predominância da imagem jovem é tão forte que, em algumas situações, se chega até

a induzir nos mais velhos caricaturas do que seria caracteristicamente juvenil, de

modo tal que o velho tem que negar a velhice e identificar-se com o jovem. Sobre esta

perniciosa tendência de ―juvenilização‖, Ferrigno (2003) pensa desse modo:

Em torno da figura do jovem foi criado durante as últimas décadas um marketing bem definido. O conceito de juventude está fortemente associado a mercadorias e serviços que prometem vitalidade, beleza, sensualidade e liberdade. Assim, os consumidores de qualquer idade, mesmo os mais velhos, sonham com a possibilidade de adquirir alguns dos propalados atributos juvenis. (Pp.64-65)

Imagens negativas ou até mesmo de não aceitação desta fase da vida

denominada velhice também foram referidas em textos, contos, poesias e poemas

elaborados por escritores famosos. Como exemplo, pode-se destacar74: Lygia

Fagundes Telles (ao mencionar que ―a velhice é um horror!‖), Rubem Alves (ao

escrever ―A Pior Idade‖), Cecília Meireles (em sua poesia denominada ―O Retrato‖),

Vinícius de Moraes (em seu poema ―Velhice‖), dentre outros. Alarcon75 (2008),

baseado em Norbert Elias, chama a atenção para a necessidade da sociedade

contemporânea afastar-se de suas fantasias e de seu tabu ao se acercar de certos

fenômenos, como por exemplo: o envelhecimento.

Essas reflexões, referentes à negação da velhice, são passíveis de

observação na fala das entrevistadas, ao se reportarem sobre suas compreensões

quanto à velhice, na sequência:

73

Inserido num processo de globalização, marcado pela instantaneidade e descartabilidade de modo a favorecer o culto à juventude, à virilidade e à força, em detrimento da velhice associada à decadência.

74

Esses textos e/ou poesias encontram-se ao final deste trabalho compondo o item ―Anexos‖.

75

Professor dos cursos de História e Geografia, da Universidade Federal de Campina Grande.

Page 130: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

128

- O que eu entendo por velhice (silêncio). Vixe, eu nem sei te dizer. Isso aí eu não sei nem lhe responder (risos). Sei não. Isso aí eu não penso. Isso aí não...É porque eu ainda não cheguei no tempo de pensar isso aí não...esse negócio de velhice, não! (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos)

- Mais, por enquanto, eu não tenho como dizer né ? (silêncio). Só se for ainda daqui pra frente...eu não sei como explicar como é, porque hoje em dia eu me sinto bem. Por enquanto, eu ainda resolvo, né?. Minhas coisas eu ainda resolvo só...é...negócio de médico...negócio de resolver alguma coisa aí, né? Eu resolvo só. Ainda to né (risos). Eu ainda sei (risos). (Depoimento concedido por Dona Rosa, 61 anos)

Contribuindo nesse debate, sobre esse aspecto negativo da sociedade

perante a velhice, Beauvoir (1990) expõe que, para esta imagem social, se registra:

[...] a do velho louco que caduca e delira e de quem as crianças zombam. De qualquer maneira, por sua virtude ou por sua objeção, os velhos situam-se fora da humanidade. Pode-se, portanto, tratá-los sem escrúpulos, recusar-lhes o mínimo julgado necessário para levar uma ida de homem. (P.10).

Em sua obra A Velhice, Beauvoir (1990) esclarece que não há mudança

significativa na forma como a sociedade lida com os mais velhos, referindo-se ao

Período Medieval e o Moderno, haja vista que em ambos o ser humano velho era visto

como tendo valor social reduzido. No primeiro, porém, o longevo era considerado

adulto, e, só posteriormente surgiu sua condição de ser percebido como velho.

Na condição de Alarcon (2008), ainda ressaltando os estigmas negativos

sofridos pelos velhos, o autor exprime a idéia de que há uma força viva permeando a

sociedade no que concerne ao ―poder dos jovens em relação aos velhos‖, poder este

expresso pelo autor com arrimo em Bobbio, na ―crueldade que se expressa na

zombaria dos velhos desvalidos‖. (p.394). Todavia, é expresso bem como pela

constituição de uma imagem de fealdade reservada aos personagens da velhice.

Em tal direção, conforme avaliação de Ferrigno (2003), em consonância

com Alarcon (2008), avalia que:

Tudo que é novo é bom, bonito e interessante. Tudo que é velho é ruim, feio e desprovido de interesse. O antigo tem de lutar para sobreviver: seja um ser humano, uma casa, uma praça, uma rua. Tudo tende a ser destruído e substituído pela última moda. (...) Tudo se destrói com rapidez e sem escrúpulos. Tudo se alija sem maiores

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129

discussões em nome da expansão econômica e do progresso. De que progresso? O progresso que interessa ao consumo inesgotável e à destruição de tradições e valores e bens urbanos e rurais (P.56)

Sob o ponto de vista de Elias, a modernização das relações não conseguiu

abolir a desvalorização absoluta da velhice. Segundo ele, isso não seria plausível, haja

vista o envelhecimento trazer consigo uma dimensão resignada pela sociabilidade

moderna. Ainda sobre essa recusa social, quer seja esta explícita ou não nos dias

atuais, Alarcon (2008) pondera:

Cada vez mais sabemos sobre o corpo e a velhice e, ao mesmo tempo, isolamos a morte no espaço privado e privatizado no interior das câmaras inacessíveis dos hospitais. Mais que isso: somos cada vez menos capazes de nos sensibilizar frente ao momento em que o corpo dá sinais de que se transforma. O nosso desejo é a permanência, é a vida eterna, é a eterna juventude, é a rigidez, a força e a beleza. Os nossos maiores temores são o inesperado e a finitude, e deles nos afastamos com vigor. (P.398)

É digno de se exprimir a idéia de que, até mesmo de uma forma

involuntária, com de atitude considerada ―positiva‖, todavia movida pelo preconceito,

esta pode ser ofensiva à pessoa velha. Como exemplo disso, pode-se ressaltar a

crônica do educador, escritor e psicanalista Rubem Alves, chamada ―Gestos

Amoros76‖ (publicada no Jornal Folha de São Paulo, em 27.05.2008), quando o citado

descreve seu sentimento de inferioridade ante de um ato ―simples‖ e cortês de uma

jovem.

Ainda sobre as imagens negativas imputadas à velhice, observa-se,

também, que a elaboração do significado de velhice é permeada por um conjunto de

fatores (crenças, mitos, preconceitos e estereótipos), os quais nesta sociedade se

revelam por meio de representações pejorativas e/ou apelidos depreciativos, que

abrangem tanto o fenômeno do envelhecimento, quanto o indivíduo que envelhece,

inflingindo-lhes sentimentos: vergonha e inferioridade, levando a atitudes

preconceituosas e de exclusão77 para com esse segmento etário da população.

76

Rubem Alves, excelente cronista, também tratou o tema velhice . A crônica relata quando o autor depara, pela primeira vez, a velhice e proporciona ao leitor uma reflexão sobre o tratamento que recebem as pessoas mais velhas. Referida crônica também consta no item ―Anexo‖.

77

No item designado ―Anexo‖ também está o poema denominado ―Como se Morre de Velhice‖, no qual em poucas palavras a autora Cecília Meireles expõe a dor da indiferença que se sofre, muitas vezes, na velhice.

Page 132: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

130

Assim, convém salientar que o rechaço sofrido pelo segmento etário

denominado velho está intrinsecamente vinculado à fuga dos ―padrões‖ estipulados

e/ou cultuados pela sociedade vigente, em que um corpo velho que não produz nem

reproduz (biologicamente e capitalistamente) está fadado à marginalização. Dessa

forma, percebe-se que a opressão da velhice ocorre numa multiplicidade de maneiras,

sendo algumas explicitamente brutais e outras tacitamente permitidas.

No item denominado ―Anexos‖, compartilha-se com o leitor a sugestão do

filme intitulado: Stardust – O Mistério da Estrela, no qual é possível identificar

situações abordadas neste segmento, como: o culto à beleza, à jovialidade, a imagem

da bruxa representada pela mulher envelhecida, a negação da velhice, dentre outras.

4.2. Laços intergeracionais

Ao abordar este assunto, inicialmente, faz-se necessário destacar o

sentido ativo que assume o termo ―geração‖. A definição desta palavra corresponde à

ação de gerar, de engendrar um ser vivo, um período de vida, bem como a produção

ou desenvolvimento de alguma coisa. Família, linhagem, genealogia são alguns dos

substantivos que associam significados ao vocábulo geração.

É fato que aumento da longevidade ocasiona uma coexistência maior no

decorrer do tempo, beneficiando bisnetos, netos, filhos, pais, avós e bisavós. Convém

destacar que os laços geracionais podem chegar a quatro, ou até mesmo cinco

gerações. A aproximação geracional possibilita troca mútua, no contexto familiar do

cenário contemporâneo e suas nuances. São gerações distintas, como por exemplo,

avós e netos convivendo no tempo. Fato este que possibilita à geração mais velha

também a adquirirem novos conhecimentos, tais como: utilizar aparelho celular,

realizar cursos de informática para usar o computador com seus netos, dentre outras.

No âmbito intergeracional da família seus membros se estabelecem como

sujeitos e seres sociais. É com origem na família que se pode compreender o

comportamento de cada pessoa, à luz da organização e funcionamento de um sistema

Page 133: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

131

de relações, cuja conjuntura demarca e atribui sentido a tudo o que acontece no seu

interior.

A ideia de geração traz consigo o conceito de parentela. Os sistemas de

parentesco são concebidos como estruturas formais da sociedade. Leite (2004)

aborda estes sistemas, e sobre eles esclarece que são constituídos a partir dos

arranjos e combinações de três relações básicas: as de descendências (entre

pais/filhos e/ou entre mães/filhos), de consanguinidade (entre irmãos) e de afinidade

(firmada com o casamento).

As funções do núcleo familiar, concedidas com base em sua organização

em termos de parentesco, são relevantes tanto para a família quanto para a sociedade

em que está inserida, haja vista ser a ela (a família) o principal vínculo entre indivíduo

e sociedade, conforme esclarecem Leite (2004) e Vitale (2002).

Quanto à força e coesão existentes nos laços de parentesco, Bosi (1994)

pondera que:

De onde vem, ao grupo familiar, tal força de coesão? Em nenhum outro espaço social o lugar do indivíduo é tão fortemente destinado. Um homem pode mudar de país; se brasileiro, naturalizar-se finlandês; se leigo, pode tornar-se padre; se solteiro, tornar casado; se filho, tornar pai; se patrão, tornar-se criado. Mas, o vínculo que o ata à sua família é irreversível: será sempre o filha da Antônia, o João do Pedro, o ―meu Francisco‖ para a mãe. Apesar dessa fixidez de destino nas relações de parentesco, não há lugar onde a personalidade tenha maior relevo. (P.425).

É preciso evidenciar que a socialização é fator importante no estudo das

relações intergeracionais78, haja vista a técnica de transmissão do mundo social dar-se

por via das relações. Importante é imprimir destaque ao fato de que a herança

simbólica familiar é transmitida através das gerações. Destaca-se, por adequado, que

à figura dos avós é atribuída esta responsabilidade de perpetuar o legado geracional.

No tocante à transmissão, Vitale (2003) aponta que:

78

No item ―Anexos‖, compartilha-se com o leitor a indicação do filme denominado UP, Altas Aventuras.

Neste, é possível verificar a relevância das relações intergeracionais (com destaque para avós e netos). De uma maneira lúdica e divertida, análises realizadas na presente pesquisa são também identificadas no citado filme.

Page 134: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

132

As relações intergeracionais compõem o tecido de transmissão , reprodução e transformação do mundo social. As gerações são portadoras de história, de ética e de representações peculiares ao mundo. As gerações, no entanto, estão construídas umas em relação às outras. (P.91).

Ainda sobre esta transmissão das experiências vividas, Ferrigno (2003)

complementa este debate, acentuando que:

[...] a transmissão de ensinamentos a partir do vivido fica mais imediatamente clara quando se fala de uma contribuição das gerações mais velhas para as mais novas. Vários autores se referem aos idosos como agentes de preservação da memória cultural. (P.177)

Quanto aos conteúdos recebidos e enunciados por gerações mais velhas,

a autora alerta ao dizer que estes podem ser coligados em: legados de ordem (os

quais se referem à organização, educação e responsabilidade), legados de

solidariedade (os quais fazem alusão ao amor, respeito, colaboração, senso de justiça,

amizade...) e legados de fé (que compreendem à espiritualidade). Entende-se que tais

legados representam as bases da vida familiar para as avós, conforme explana a

autora anteriormente citada.

Destarte, torna-se evidente perceber que as transições entre gerações

pressupõem ou provocam processos peculiares de transmissão, formação,

socialização, ensino e aprendizagem. No que se refere às variáveis que influenciam

as relações entre avós e netos, Dias (2002) assinala que estas são distintas e

compreendem ―idade, gênero, mediação dos pais, distância geográfica, trabalho e

saúde dos avós, o nível sócio-educacional da família, ocorrência de eventos

destrutivos (separação, crises, doenças), entre outros‖. ( P. 2).

No caso da Dona Ana, avó entrevistada, todos residiam na mesma casa,

ou seja, os genitores e seu neto, o qual nasceu doente com problemas respiratórios e

teve maior atenção de sua avó materna, desde que nasceu. Esse cuidado da avó, no

entanto, era compartilhado com os genitores do garoto. Dona Ana preocupava-se em

esclarecer sempre a seguinte situação: Nós que cuidamos dele. Nós tudim ! Eu, a mãe

dele e o pai dele. Nós tudo!

Page 135: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

133

Ainda conversando sobre esse cuidado partilhado entre a avó e os

genitores do garoto, Dona Ana verbalizou que Pra num desagradar ninguém, eu

chamo ele é nosso filho, por que ele é filho de nós três.

Na inteligência de Oliveira (1999), a situação pela qual avós e netos se

percebem juntos, em sentido trivial, comporta uma multiplicidade de conflitos que

envolvem a vida interior dos sujeitos, bem como as relações mais amplas com a vida

social, haja vista que, em algumas situações, a união desfeita passa a insinuar um

descompromisso dos pais em relação à criação de seus filhos.

A aproximação de avós e netos para uma vida em comum, embora

muitas vezes não pareça, traz junto de si uma gama variada de

conflitos. Alguns são nítidos, como no caso dos netos cujos pais se

separam, outros mais velados, quando os pequenos ficam apenas

uma parte do dia com os avós, enquanto os pais estão fora

trabalhando. Não menos conflitivas são ainda as situações vividas

por crianças que são criadas junto com os netos consangüíneos, elas

que praticamente foram abandonadas pelos pais. Estes todos, porém,

são conflitos internos, vividos dentro de uma dada relação

interpessoal. Outros, de natureza externa, relacionados com a

condição social dos sujeitos, também merecem ser considerados no

desenvolvimento do tema. (P. 266)

É delicado o debate acerca de como se originou a situação de os

avós assumirem a criação dos netos ou, conforme o caso, dos

pequenos deixados aos seus cuidados por pessoas que recusam a

paternidade ou a maternidade, com os inúmeros compromissos

decorrentes. (P. 267)

Sobre esta a relação entre a separação dos genitores (dentre outros

fatores) e a aproximação entre avós e netos, tem-se as particularidades nos seguintes

discursos:

- Por que a mãe deles é daquelas pessoas que não quer nada com a vida. É assim...gostava das pessoas erradas. Só gostava de vagabundo. Aí, o primeiro que ela gostou, teve logo dois filhos, que é o César e a Bia. Aí, ela deixou ele e foi morar mais nós, dentro de casa. Aí, ela pegou e e arranjou outro que é o pai do Wilson . Vagabundo também. Aí o meu marido morreu. Ela vivia jogada pelo mundo, pra cima e pra baixo, com o menino né ! ...Aí, eu peguei e botei dentro de casa. Aí, ficou comigo morando. Já o Wilson veio pra minha companhia logo que nasceu. Mas, eu criei todos três todos bem pequenininhos. (Depoimento concedido por Dona Rosa, 61 anos).

Page 136: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

134

- Foi assim... Ele nasceu, o menino...quando foi com dois ou três meses, ele pegou uma gripe que começou a cansar e nunca mais ficou bom. Nós que cuidamos dele. Nós tudim. Eu (avó materna), a mãe dele e o pai dele...Nós tudo !!!(Depoimento concedido por Dona Ana, 74 anos).

Nesse caso, mesmo ambos genitores sendo presentes, a atenção, os cuidados diários e até o auxílio financeiro dedicados pela avó (D. Ana) não foram dispensados...Digamos que o cuidado foi, inicialmente, compartilhado... (Diário de Campo, 09 ago. 2012).

Nesta ocasião, relatou que possui cuidado com seus netos como se fossem seus filhos. Ficou emocionada, e começou a chorar ao verbalizar seu amor e atenção...Sobre os outros netos, mesmo os que não moram (ou nunca moraram com ela, ela disse: ―eu ajudo, por que eu ajudo eles tudo, né!‖. A referida ao mencionar que ajuda à todos, referiu-se ao caçula, um bisneto com oito meses de vida, o qual não vive em sua companhia. Todavia, também é ajudado financeiramente por ela. “Desde o primeiro eu já cuido”. Euforia ao falar dos netos, de seu amor para com eles, de seu sentimento em ser útil e de cuidar... (Diário de Campo, 09 ago. 2012).

- Foi assim, por que eu tinha uma filha e ela tava namorando com um rapaz, aí ela saiu grávida dele. Aí ela ficou dentro de casa, aí depois, ela começou a gostar de outro. Aí, ela foi falou pra mim que queria se ajuntar com esse rapaz. Aí, eu fui e disse assim: vá se ajuntar, mas o menino eu vou ficar com ele, por que... Eu era muito pegada com o menino. Aí, eu tive medo por que podia ele ir par companhia desse homem, dele não ser pai dele e bater nele. Aí, ela disse: tá certo mãe! Pode ficar com ele ! Aí, eu fui fiquei criando ele. (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos).

-O pai dele não manda nada. Um tempo a mãe dele (avó paterna) mandou um recado pra levar ele (o garoto) lá. Aí, eu conversei com a mãe dele, e ela disse: é mãe leva ele lá!‘ Aí, nós levemos. Quando nós cheguemos lá, minha filha, ele tinha levado uma pisa tão grande da polícia. E o menino já grande, o menino vendo tudo. O bichim viu ele com o corpo todo cheio de peia. Aí, ele perguntando assim: ‗E o que foi isso vózinha (avó paterna)?‘ E, eu fiz assim com o olho pra ela não dizer. Aí, ela disse: ‗ Não, meu filho foi que ele levou ...assim, assim....Aí, ele botou aquilo na cabeça e só vivia perguntando,perguntando...Aí, outra vez, eu levei ele lá de novo, que ele queria ver ele pra dá uma bicicleta. E aí, que quando nós chegamos lá, aí ele tava preso. Aí, eu conversei com ele... Elias...eu não vou levar mais você lá não, e nem ele pise lá em casa, por que a gente vai e você vê é coisa feia lá ...é peia...é preso. E ele perguntou: ‗ por que?‘. Aí, eu fui e disse para ele que era porque ele ‗coisa‘ droga. Aí, ele disse: ‗mãe, nunca mais no mundo eu quero ir lá...E, não foi ais não! (Depoimento concedido por Dona Conceição).

A ênfase que esta entrevistada concedeu à palavra medo foi consolada

quando a genitora do infante disse que a Dona Conceição poderia permanecer com

ele. A genitora do garoto tinha 15 anos de idade quando deu à luz seu primeiro filho.

Atualmente, a citada tem outro filho (uma menina), fruto de seu segundo companheiro

Page 137: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

135

e que mora com o casal. Quanto ao menino, criado pela avó materna, foi cogitado por

sua genitora que o registro de nascimento fosse elaborado no nome da avó. Tal

solicitação, contudo, não foi permitida pelo cartório, segundo Dona Conceição.

- Acho que ela imaginou assim... Eu penso que ela imaginou assim...que o marido dela não é o pai do Elias, né? E, pensou assim também, mas a mãe cuidou dele desde novinho... Ela saía pros cantos e eu ficava com ele... Também ela imaginou assim...Eu acho que eu vou deixar é ele com a mãe mesmo. E quando ela foi pra casar, ela disse assim: ‗É mãe eu não vou levar não. Fica pra mãe ! Fica pra mãe! (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos).

Convém salientar, com suporte nas relações entre avós, filhos e netos, que

é possível refletir sobre a situação social destas interações. Consoante a autora

supracitada, o grupo familiar ―(...) visto do prisma de parentesco, se constitui em laços

de compromissos e lealdade entre os seus membros, tanto na linha de descendência

como na de ascendência‖. (P.37).

Considerando as trocas nestas relações, Fonseca (2002) alerta:

Os primeiros nascidos de uma geração freqüentemente passam seus

primeiros anos com uma avó que, cuidando deles, cumpre as únicas

obrigações familiares. Vinte anos depois, quando a obrigação se

transforma em direito, a vó pode muito bem reivindicar, na sua

velhice, a companhia de um dos netos mais novos. (P. 32).

Vitale (2002) defende o argumento de que a figura dos avós, na

contemporaneidade, expressa uma importância de forma a fazê-los emergir como

protagonistas nas cenas das relações familiares, no mundo globalizado.

Na contemporaneidade, a significativa presença dos avós pode ser

constatada em diversas situações, as quais os envolvem de forma complexa e/ou até

mesmo subjetiva. Ao compreender a diferença entre a avó no passado79, e a avó do

presente, Vitale (2005) ressalta que,

Por essas razões, a figura clássica da vovozinha sentada na cadeira

de balanço, cabelos brancos, fazendo tricô ou crochê, presente nos

79

Mascaro (1997) menciona esta imagem da avó em tempos passados, contando histórias para os netos e apresentando marcas, como cabelo preso num cocó, bengala, dentre outros.

Page 138: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

136

livros infantis, pouco corresponde ao perfil dos avós atuais,

possivelmente em todos os segmentos sociais, considerando-se as

mudanças por que passou a família, em especial a partir da segunda

metade do último século. (P. 101).

O âmbito familiar é local onde são recriados os códigos, ensejando, dessa

forma, uma teia de relações significativas para seus membros. Mediante o sistema de

parentesco são criados os vínculos sociais e é suposta uma ligação afetuosa (seja

mais intensa ou mais diluída), entre os componentes da família, conforme o nível de

parentesco. A família é um sistema complexo de relações, haja vista que nela seus

membros partilham um mesmo contexto social de pertença. Falar de família também

se refere a memória e transmissão.

É bom ressaltar que os laços de afetividade, determinados pelas regras

que permeiam as relações sociais familiares, também exprimem sua contribuição com

vistas a manterem unidos os membros da família. Conforme Vitale (2002), ―(...) a rede

social e as trocas intergeracionais, ou seja, as solidariedades familiares ajudam a

existência destas famílias‖. (P. 54).

Na oportunidade, D. Conceição lembrou de falar sobre outros netos que residem nas proximidades do Residencial Vitória e que, no horário das principais refeições (almoço e jantar), eles sempre estão por aqui. ... (Diário de Campo, 26 jul. 2012).

Em conversa com D. Ana, ela revelou também que conzinha pra muitos, pois na hora do almoço a casa é cheia. Pois, ela faz o almoço e aqueles netos que moram próximo vem buscar a misturinha deles. A entrevistada tem sempre a mesma preocupação com os netos no cotidiano, a sobrevivência, a alimentação...Ao lado do apartamento de D. Ana mora uma das filhas dela. Constatou-se também que o apartamento de D. Ana é uma espécie de ponto de apoio, dentre outros momentos, principalmente, nas horas de refeições. (Diário de Campo, 25 set. 2012).

No tocante às relações intergeracionais, Petrini (2003) expressa que, em

meio a um cenário de mudanças, faz-se necessário destacar o surgimento de outros

arranjos familiares, diferentes, bem como das características que as relações

intergeracionais passam a ostentar, além das funções que toma para si a família na

atualidade. Desenvolvendo um raciocínio parecido, Ferrigno (2003) expõe :

Se as gerações são continuamente construídas, desconstruídas e

reconstruídas, a relação entre elas está sempre sendo refeita. Novas

Page 139: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

137

relações, por sua vez, determinam novos comportamentos das

gerações, num envolvimento dialético e de retroalimentação

permanente. Ficamos, então, instigados a saber o que ocorre na

relação entre gerações. Conflito ? Competição ? Cooperação ?

Afetividade ? Indiferença ? Autoritarismo ? Igualitarismo ?. (Pp. 45-

46).

Vitale (2002), corroborando os pensamentos de Petrini (2003) e Ferrigno

(2003), evidencia que o núcleo familiar se organiza de forma peculiar no

enfrentamento dos ―percalços do cotidiano‖. Faz-se necessário ressaltar que a

singularidade da forma que cada família encontra para manter (ou cuidar) de seu

equilíbrio e sobrevivência interage com os relacionamentos interpessoais e

intergeracionais de seus membros.

Na relação avós-netos, focalizada neste trabalho, pode-se observar a

existência de um vínculo de troca entre estas duas gerações, tão distintas e próximas

ao mesmo tempo, parecendo até mesmo uma relação de complementaridade.

Sobretudo no que tange ao desenvolvimento dos seus netos, a influência é recíproca

nesta relação. Segundo Ferrigno (2003), ―todavia, não há como negar a reciprocidade

de influências nas relações entre as gerações‖. (P.144).

Assim sendo, é possível afirmar que a relação entre essas duas gerações

possui caráter mutuamente relevante. Vitale (2002), assim como Ferrigno (2003),

defende a ideia de que a rede de parentesco é caracterizada por um ―sistema de

trocas de ajudas mútuas‖.

Interessante...durante as conversas com a D. Ana ele sempre fazia menção „as mensalidades‟ dos netos. Nas primeiras visitas não compreendi. Mas, posteriormente a situação foi clareando...Estas referiam-se ao auxílio financeiro que a entrevistada para os netos, mesmo aqueles que não moravam com ela, residindo na mesma cidade que ela morava ou até mesmo no interior, D. Ana ia deixar...Com o passar do tempo, a doença e o avançar da velhice já não mais contribuíam para que ela viajasse para ver os netos e deixar „as mensalidade pra comprar alguma coisa pra eles‟. (Diário de Campo, 08 jan. 2013).

É no cotidiano que avós e netos se descobrem, modificam- se,

completam- se e influenciam- se. Esta relação entre gerações é fundamental para o

desenvolvimento global do neto, principalmente no que se refere aos aspectos

culturais, psicoevolutivos e formativos, como pensa Andrade (2008).

Page 140: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

138

Na concepção de Peixoto (2000),

Os avós têm muito a transmitir. Às memórias individuais se conjugam às memórias coletivas e as lembranças não se limitam às suas trajetórias pessoais nem à vida familiar; seus relatos falam de acontecimentos políticos e sociais assim como das transformações do bairro e da cidade e da evolução dos costumes. (P.108).

Conforme essa autora, na esfera cultural, os avós representam a voz da

experiência, ou seja, o passado, desconhecido por aqueles que não vivenciaram (os

netos). Fator importante para compreensão intelectual de fatos atuais, tanto na vida

pública quanto na privada.

Na compreensão de Vitale (2005), por meio da figura das avós pode-se

observar que ―as mulheres têm tido papel privilegiado nos processos de transmissão

da cultura familiar. Nesse sentido, as avós emergem como elo entre as gerações e

revelam um tempo familiar e coletivo‖. (P.102)

A imagem dos avós, através do aporte de sua experiência, surge também

como estimulante à criatividade, à motivação e à linguagem, para com seus netos.

Andrade (2008) ratifica esta premissa, ao considerar que:

Esta troca cultural é também uma troca afetiva entre o avô e o neto que além de estimular a potencialidade intelectual e relacional de ambos, favorece a manutenção da memória histórica permitindo a redescoberta de uma presença ativa do velho na família, riqueza esta que a sociedade nem sempre reconhece e aprecia. (P.10).

Quanto ao apoio psicoevolutivo, a autora acima mencionada esclarece que

esta relação exerce função positiva na constituição do EU de seus netos,

principalmente em situações, como processos projetivos, suporte, autonomia, perdas,

lutos, separação dos genitores, próprios de cada fase de crescimento e

desenvolvimento tanto do infante quanto do adolescente.

Já no aspecto formativo, esta relação assume caráter de apoio na

compreensão da vida, bem como na experiência de separação e de morte. Tal suporte

apresenta relevância para a formação dos netos no que diz respeito ao enfrentamento

de situações diversificadas, no decorrer das fases da vida.

Page 141: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

139

Nas relações com os netos, é possível identificar o surgimento da

linguagem do afeto, criando-se uma relação de cumplicidade entre estas duas

gerações, permitindo que avós e netos usufruissem da liberdade de expressões de

carinhos e brincadeiras.

- Quando a Rita saí de casa que ele fica aí, ele não gosta de sair não...De primeiro ele não fazia isso não. Mas, agora ele faz. Ele num gosta de sair que é pra não me deixar só. Eu quero muito bem a ele. (Depoimento concedido por Dona Ana, 74 anos).

Pode-se perceber aqui que a entrevistada enfatizou a atenção que o neto tem por ela. A recíproca também é verdadeira. Existe entre eles uma reciprocidade (Diário de Campo, 25 set. 2012).

O amor e carinho dos avós cuidadores de netos é sempre expressado, quer no dito, como também no não-dito. No caso da D.Conceição, ela gostava de repetir sempre em suas narrações: Ele é meu bem querer. Quero muito bem a ele. (Diário de Campo, 30 jul. 2012).

Leite (2004) defende o argumento de que existem duas situações, as quais

permitem estabelecimento de verdadeiros laços entre avós e netos, a saber: cuidar e

criar. Segundo a mencionada, estas favorecem o desenvolvimento de múltiplas trocas,

considerando os mais diversificados domínios, os quais podem ser expressos nas

mais variadas esferas, como, por exemplo: conselhos, passeios, ajudas80,

confidências, dentre outras. Nas relações estabelecidas entre avós e filhas ou avós e

netos, é inevitável surgirem questões de cuidados com os netos.

Sobre o ato de aconselhar, Bosi (1994) pondera:

Aquilo que se viu e se conheceu bem, aquilo que custou anos de aprendizado e que,a final, sustentou uma existência, passa (ou deveria passar) a outra geração como um valor. As idéias de memórias e são afins: memini e moneo , ‗ eu me lembro‘ e ‗eu advirto‘, são verbos parentes próximos. (P.481).

Tais recomendações, advertências e/ou conselhos foram também

identificado nas falas das avós entrevistadas neste trabalho, os quais podem ser

verificados nas falas a seguir:

80

Relevante é considerar que estas ajudas podem assumir tanto o caráter físico (através dos cuidados diários), quanto financeiro.

Page 142: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

140

- Eles tem respeito e educação. Eu ainda dou carão. Eles pode ta fazendo qualquer coisa e quando algum diz: ‗lá vem a vó!‘ (risos)... (Depoimento concedido por Dona Ana, 74 anos).

Este relato a D. Ana conta com muito orgulho, haja vista já ser velha e com dificuldades para andar, enfatiza que ainda possui moral e destaca sua autoridade com seus netos para chamar-lhes atenção e advertir, mesmo para aqueles que não moram mais com ela e já são adultos. (Diário de Campo, 25 set. 2012).

- É responsabilidade, viu! ...ter cuidado pra saber como é que eles andam...É assim! E eu e o Elias...eu quebro muito minha cabeça com o Elias porque eu sou doente da pressão, e quando ele vai pro colégio aí é que eu recomendo um bocado de coisa. Eu digo: cuidado lá no colégio! Não queira brincadeira. Quando sair de lá, é no caminho de casa. Aí, não queria brincadeira com ninguém. Olha as arenga! É assim... Quando for passar num canto, cuidado ! Repare! É assim... E enquanto ele não chega eu não sossego. É assim..E ele atende! (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos).

Considerando o sistema de trocas intergeracionais, são evidenciados os

fenômenos da solidariedade e de apoio (tanto emocional quanto financeiro) entre as

gerações familiares, apontado por Ferrigno (2003), bem como demonstrado nas

palavras de Vitale (2002), quando a citada menciona que os avós surgem:

[...] como personagens-chaves diante das fragilidades conjugais, da recomposição familiar e monoparentalidade. Eles parecem se apresentar tanto como rede de apoio concreta, mesmo para aqueles mais pobres, como laços dentre as gerações que conferem identidade à história familiar. (Pp.53-54)

Assim sendo, pode-se constatar que as redes familiares proporcionam

alguma forma de apoio, de acordo com seus desenhos de classes, bem como suas

possibilidades situacionais. Andrade (2008) ressalta que a responsabilidade de cuidar

de netos, muitas vezes inesperadas nesta etapa de vida dos avós (ou seja, na

velhice), impacta sobre a saúde física-emocional desses avós, podendo, inclusive,

afetar sua qualidade de vida.

Considerando tal relação em duas vertentes, sendo elas o risco e o afeto,

a citada autora pondera que: ―Contudo, as relações com os netos envolvem também

sentimentos, senso de obrigação familiar, e satisfações que em muitos casos

sobrepõe-se sobre o ônus que o cuidar de netos pode acarretar‖. (P.19).

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141

- Eu tenho tanta pena dele...(choro). Por que ele não tem pai. O pai que ele conhece é esse aqui (avô paterno). Na igreja, ele se ajoelha orando pela ‗fia‖ (mãe biológica). Ele fica de joelho orando pela mãe dele. (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos).

- É muito bom a gente cuidar de neto! (pausa) Dá um trabalho...Mas, a gente...é a segunda mãe, né? Como é um segundo filho pra gente, né? Eu amo meus netos mais do que amo meus filhos. Eu adoro meus netos. Aliás, eu tenho aí um pequenininho que...ave Maria...é tudo pra mim! (lágrimas). (Depoimento concedido por Dona Rosa, 61 anos).

- Aonde eu to, se eu sentir que ele ta faltando alguma coisa...Eu ligo logo pra mãe dele pra saber se ela já resolveu...(Depoimento concedido por Dona Ana, 74 anos).

No caso de D. Ana, os genitores do garoto nunca se ausentaram. Dessa forma, o cuidado era compartilhado... Conforme narra a D. Ana, Essa família aí sempre morou comigo, em Viçosa do Ceará, depois Fortaleza, depois Maracanaú. Observei também que mesmo já velha e com as limitações decorrentes da própria idade, D. Ana exerce as tarefas domésticas, e sempre durante os momentos de conversas estava atenta ao fogo da panela, à panela de pressão e, preocupada se a comida estava boa. (Diário de Campo, 25 set. 2012)

Sobre esse ―senso de obrigação familiar‖, no sentido de cuidar dos netos e

seu sentimento de missão cumprida, Dona Ana contou que gostaria de ser lembrada

pela família pela seguinte frase: Aí vai uma véinha heroína !, referindo-se ao dia de

sua morte e ao apoio, bem como suporte familiar, por ela dedicado no âmbito

doméstico.

Outro fator importante, abordado por grande parte dos estudos sobre as

relações familiares, refere-se à proximidade geográfica que pode influenciar nas

relações entre membros da família. A distância espacial se revela como elemento

essencial para a solidariedade familiar, bem como para a criação dos laços afetivos.

Ressalta-se, todavia, que este feito não pode ser compreendido como regra geral, haja

vista que outras situações diferenciadas podem ser encontradas81.

Apesar de D. Ana afirmar que “não tem diferença” no que se refere ao cuidado ofertado ao primeiro neto (e o que reside mais próximo) e os demais netos, descobri que ela sempre se dedicou mais a este neto, e que ele é criado, inclusive, com alimentação diferenciada. ―É por que ele não come toda coisa...já se acostumou a comer assim umas coisas...”. A avó se preocupa também em proporcionar uma alimentação de melhor qualidade, além de ajudar em outras coisas também (material escolar, dentre outros...). ― Ah! Eu ajudo com roupa,

81

A distância espacial nem sempre significa distanciamento afetivo, entretanto, pode influenciar nessa relação (avós-netos).

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142

ajudei muito na medicação, com os remédios, e no cuidado de dar conselhos...”. (Diário de Campo, 25 set. 2012).

A relação entre avós e netos, além de aproximar gerações, ensejam uma

releitura de vida entre os membros da família, sem desconsiderar aqui o sentimento de

continuidade da vida expressa por meio do nascimento dos netos.

Assim sendo, sobre esta relação, Peixoto (2000) considera:

Transmissões materiais, transmissões afetivas, e apoios diversos formam o circuito das solidariedades e das transmissões entre as gerações e constituem elementos de base da reprodução familiar. Os avós são o apoio com que os netos podem contar, ainda que não compartilhem concepções de vida semelhantes. (p.110)

Embora, alguns estudos que abordam as relações avós e netos realcem os

benefícios direcionado aos netos, há de se compreender, portanto, a existência de

uma reciprocidade, conforme Ferrigno (2003), nos benefícios originados pelo

relacionamento entre essas duas distintas gerações.

4.2.1 Avosidade: o tornar-se avó ...

Neste ensaio universitário, foi considerada como necessária a inclusão

deste tópico no intuito de apresentar a visão de alguns autores sobre a função de ser

avó (ou avô), etapa humana esta também denominada de avosidade ou vovozice. A

avosidade consiste num termo cunhado pela Psicogerontologia (campo da psicologia

relacionado ao estudo do envelhecimento). Semelhante à palavra maternidade82, a

expressão avosidade define um conjunto de transformações relevantes na vida adulta,

o qual compreende também o modo de o indivíduo se relacionar com seus filhos,

família, e consigo mesmo.

Podendo ser definida como laço de parentesco, a avosidade83 está

intimamente vinculada às funções materna e paterna, das quais, contudo, se distingue

82

Exposto em tópico anterior: 4.3 – Cultura e natureza feminina.

83

O uso do termo avosidade não é muito comum, situação esta que passa a ser compreendida, para Redler (1986), como sendo um tipo de resistência e/ou enfrentamento ao tema.

Page 145: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

143

desempenhar papel categórico na formação do sujeito. (OLIVEIRA; VIANNA;

CARDENAS, 2010). Araújo (2002) e Guedes (2000) complementam, acentuando que

a avosidade se localiza nas filiações trigeracionais do ponto de vista pessoal, social e

familiar.

Ter um neto (a) significa um novo laço geracional e, até mesmo, promessa

de vida. No que concerne à relação entre família e intensidade dos laços, Peixoto

(2000) pondera:

A concepção da família como pilar fundamental da organização da

existência dos indivíduos revela simultaneamente a intensidade dos

laços que as unem ao ambiente familiar e sua singularidade,

implicando uma forte solidariedade entre seus membros. (Pp.66-67).

Retomando o assunto sobre avosidade, tem-se que esta corresponde ao

momento em que as relações intergeracionais são enfatizadas e que o núcleo familiar

assume novas formas ou características, as quais também irão influenciar nas

dinâmicas relacionais, principalmente na contemporaneidade, haja vista que a ―nova

família‖, ao abranger uma geração a mais, pode reunir respostas imediatas a

situações (sociais, econômicas...) a que ela foi ou passa a ser submetida.

Convém destacar que o fato de se tornar avó ou avô, em qualquer

circunstância, implica alteração no lugar em que se ocupa na família e/ou própria

dinâmica, fato este que poderá ter conotação positiva e enriquecedora, negativa e

relacionada à perda (como, por exemplo, da liberdade e do descanso), bem como de

―peso‖ (ao vivenciar uma ―dupla maternidade‖), considerando a complexidade dessa

responsabilidade. O relacionamento de avosidade se aproxima bastante dos

sentimentos maternos e paternos.

Dessa forma, pode-se dizer que a avosidade compreende a lógica do

apoio familiar, haja vista que este não significa, apenas, uma obrigação, pois

―representa um princípio de vida e um elemento fundador das relações familiares‖.

(PEIXOTO, 2000).

Vale salientar que a relevância da reciprocidade na relação estabelecida

entre avós em netos foi reconhecida, principalmente, durante a década de 1980 e,

desde então, o interesse pela avosidade acendeu consideravelmente. Dentre outros

Page 146: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

144

fatores que colaboraram para esta situação, está a elevação da expectativa de vida, a

qual proporciona maior tempo de permanência dos sujeitos na função de avós,

conforme versam Oliveira; Vianna; Cardenas,(2010).

Lembra-se, contudo, que a condição de avó (ou avô) ao se fazer presente,

independe da anuência do indivíduo, conforme pondera Freitas (2006). Destarte, tal

função requer a elaboração do questionamento do próprio papel como filho e como

mãe, no sentido de que não se repitam os erros e se compensem as faltas, de acordo

com Gerondo (2006).

Vale frisar que o ser avó84 (avô) surge no cotidiano familiar carregado de

idealizações e planejamentos junto á chegada do novo neto (a). O fenômeno da

avosidade, no entanto, também é considerado singular e pessoal, pode não ser tão

natural quanto se pensava, e, portanto, surgir acompanhado de conflitos e angústias.

E este momento, a chegada do neto, poderá suscitar novas responsabilidades, as

quais poderão ser de natureza efêmera ou não.

Diante do exposto, convém evidenciar a relevância do exercício da

avosidade nos dias atuais, haja vista a diversidade dos modos de vida no âmbito das

famílias, fato este que, conforme Peixoto (2000), não significa que as trocas

intergeracionais tenham se elevado ou se reduzido, todavia, ocorre é que as relações

adquiriram outras formas em face das exigências e das circuntâncias.

4.3. Cultura e natureza feminina

Conforme abordado anteriormente, a experiência do envelhecimento

retrata heterogeneidade, compreendendo a diferença também entre os sexos

(feminino e masculino). Neste tópico, buscou-se analisar a imagem do

envelhecimento, bem como as peculiaridades vinculadas ao gênero feminino.

84

É válido lembrar que o ―Ser avó‖, nos dias atuais, pode implicar não ter ―muita idade ou idade avançada‖, haja vista a existência de avós jovens, fato este recentemente observado na personagem Lucimar (interpretada pela atriz Dira Paes), na novela Salve Jorge, que está no ar pela emissora Rede Globo, todavia, elas (as avós jovens ou jovens avós) não são o foco deste estudo.

Page 147: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

145

Estudos que discutem sobre o envelhecimento populacional conferem

(dentre outros tópicos), destaque à chamada ―feminização da velhice‖, segundo Debert

(1999) e Peixoto (1997), fato este que emerge do menor índice de mortalidade entre a

população idosa do sexo feminino. A redução da mortalidade favoreceu, então, ambos

os sexos, todavia, foi mais expressiva entre as mulheres, resultando, assim, em maior

representatividade entre elas.

Conforme visto anteriormente85, falar da velhice, principalmente, da velhice

feminina, é também mencionar o desprestígio atribuído a esta, em diferentes épocas e

sociedades. Ao abordar as narrativas mitológicas86 e a história87, verifica-se que a

relevância e a valorização da mulher estavam associadas estreitamente ao seu papel

de mãe e procriadora. Na sociedade contemporânea, ainda é possível observar

expressões de estereótipos e preconceitos em relação à pessoa envelhecida.

Quanto ao sexo masculino, este é vinculado à imagem de força e

mantenedor da família. Tal análise é reforçada nas palavras de Sarti (2003), quando

ela menciona o ―lugar de homem e lugar de mulher‖, destacando que o papel

masculino corresponde ao ―de prover teto e alimento, do qual se orgulham os

homens.‖ (p.62)

Analisando concepções de caráter genérico, na sociedade atual, verifica-

se que a função reprodutora atribuída à mulher, de forma a compreendê-la a partir da

potencialidade de gerar filhos, lhe confere uma série de outros valores, os quais

passam a ser aceitos como inerentes à natureza de mulher, ou seja, atributos de sua

condição feminina, segundo esclarece Leite (2004).

Considerando essa percepção, convém salientar que a maternidade é

compreendida como natural. Em outras palavras, própria do status maternal da

mulher, ou, ainda, conforme a autora acima mencionada, ―a sua própria natureza de

mulher a faz ser maternal, dedicada‖. (P.45). Assim sendo, o ser mulher está

85

Alusão ao item 4.1.1, do presente estudo, intitulado : ―Sob as lentes do estereótipo‖. 86

―As narrativas mitológicas contam-nos que a mulher idosa, infértil, não se identificaria mais com a Grande mãe, que tem poder de fecundação e de nutrição.‖ (MASCARO, 1997: p.17).

87

―No folclore brasileiro, a bruxa é também vista como uma mulher velha, magra, enrugada, feia, suja e coberta de trapos, que perambula misteriosamente pela noite fazendo maldades e assustando as crianças. Os sertanejos do nordeste imaginam a fome na figura de uma velha esquelética, que espalha miséria por onde passa.‖ (MASCARO, 1997: p.18)

Page 148: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

146

intrinsecamente relacionado ao fato de ser mãe, imputando-lhe assim ilusões, ou seja,

construções sociais de naturalidade à maternidade.

Ainda quanto a este papel atribuído ao sexo feminino, Sarti (2003)

acrescenta que ―a autoridade feminina vincula-se à valorização da mãe, num universo

simbólico em que a maternidade faz da mulher mulher, tornando-a reconhecida como

tal, senão ela não será uma potencialidade, algo que não se completou‖. (P.64).

Beauvoir (1980) corrobora esse pensamento, ao esclarecer que tais

concepções vinculadas ao papel feminino, na sociedade, conferem a este gênero

características adquiridas no seu cotidiano, como, por exemplo, o de ser paciente e

calma. Também a expressão de ―naturalidade‖ das atividades ligadas ao lar são

designadas às mulheres, conforme demonstra Beauvoir (1980):

Cotidianamente a cozinha ensina-lhe paciência e passividade; é uma alquimia; cabe-lhe obedecer ao fogo, á água; esperar que o açúcar derreta, que a pasta fermente e também que a roupa seque, que as frutas amadureçam. Os trabalhos caseiros aparentam-se a uma atividade técnica; mas são por demais rudimentares, por demais monótonos para convencer a mulher da causalidade mecânica. Aliás, mesmo nesse terreno, as coisas têm seus caprichos, há tecidos que encolhem e outros que não encolhem ao serem lavados, manchas que desaparecem e outras que não, objetos que quebram sozinhos, poeiras que germinam como planta. (P. 364).

Observa-se que, a crença naturalista engloba e institui relações de

causalidade natural-lógicas, as quais irão definir todas as relações sociais da mulher,

de modo a afirmar a capacidade biológica feminina de gerar filhos, fator este que para

Leite (2004) implica uma série de atribuições, a saber:

a) O cuidado e a criação das crianças de forma praticamente exclusiva e individual por parte da mãe biológica;

b) Uma mística maternal baseada no amor incondicional aos filhos, que constitui uma gratificação suprema para a mulher (basicamente aos filhos próprios);

c) O acesso à maternidade e às experiências emocionais provenientes desse fenômeno como fatores essenciais para a constituição da feminilidade (ser mulher é ser mãe);

d) Uma série de atributos da personalidade feminina como ternura, compreensão, tolerância, intuição, passividade, cuidado com os outros, que são esperados, primordialmente, na conduta das mulheres em todas as suas relações humanas, pelo fato de serem mães. (Pp. 45-46).

Page 149: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

147

É fato que a identificação do sexo feminino é composta por um legado de

atribuições sobre as mulheres que norteou (e ainda acompanha) a experiência de

todas elas. Ao considerar o feminino como experiência e não particularidade, pode-se

compreender que desde a infância as diferenças infligidas pela sociedade permeiam,

nitidamente, o dia a dia destas relações com modelos comportamentais

préestabelecidos.

Desse modo, observa-se que as responsabilidades que incidem sobre a

mulher são inculcadas desde que estas ainda são crianças, ou seja, nos primórdios da

educação familiar. As crianças são instigadas a se identificarem com modelos do que

é feminino e masculino (com brinquedos, cores, dentre outros...) para melhor

exercerem os papéis correspondentes e as atribuições de cada sexo.

Apoiando as afirmações anteriores expressas também no pensamento de

Leite (2004) e Beauvoir (1980), destacam-se as declarações de Osterne (2001):

O cotidiano das meninas, primeiro na família, depois na escola e nas relações sociais, é permeado por ofertas de modelos de comportamento mais dóceis, mais delicados, com caminhos pouco definidos no mundo das decisões, mas muito fortes no que se refere a papéis secundários e submissos. Já dos meninos, são esperados a iniciativa, a agressividade para enfrentar os fatos corriqueiros, o constante acerto nas investidas sexuais, a escolha de caminhos característicos de pessoas fortes e vencedoras- os provedores. Inculca-se nos meninos a crença na existência de um homem viril, corajoso, forte, esperto, conquistador e imune às fragilidades, inseguranças e angústias da vida. (P.121).

Tratando sobre a distinção entre natureza e cultura, torna-se imperativo

mencionar que aos homens foram associados às conquistas e participações no mundo

público, como vivências no mundo da cultura. Às mulheres, porém, tocaram as

atividades que ―parecem ser irrelevantes‖. Assim sendo, a posição da mulher na

sociedade passa a ser proveniente de suas funções biológicas, e reservam-se à esfera

privada.

Tais oposições, identificadas em preceitos culturais, atribuem ao homem

tudo o que é construído, ordenado e valorizado. Em síntese, o significado de ―cultura‖,

enquanto à mulher (definida por símbolos que reforçam suas funções sociais e

biológicas) o de ―natureza‖. Alguns autores apontam que para as mulheres, mais que

os homens, estava o envolvimento com materiais ―sujos‖ e perigosos da vida, dando à

Page 150: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

148

luz e lamentando a morte, respectivamente, além de cozinhar, desfazer-se de fezes,

dentre outras circunstâncias análogas e submissas, limitadas ao âmbito doméstico.

Segundo Laplantine (2000), ―a cultura é o conjunto dos comportamentos,

saberes e saber-fazer característicos de um grupo humano ou de uma sociedade

dada, sendo essas atividades adquiridas através de um processo de aprendizagem e

transmitidas ao conjunto de seus membros‖. (P.120).

Assim sendo, de maneira adquirida, a cultura permite que as pessoas

aprendam com seus antepassados modos de viver e imputar valores a

comportamentos, além de discernir o que pode ou não ser adequado, conforme os

parâmetros de cada sociedade. As atitudes de cada indivíduo são consideradas

símbolos, com um significado distinto, fundamentados na cultura em que cada sujeito

está inserido.

Ainda quanto às questões suscitadas a respeito da relação natureza e

cultura entre os sexos, Leite (2004) evidencia que,

[...] o papel social feminino faz com que as mulheres criem a partir de sua própria essência, enquanto o homem é livre para ou forçado a criar artificialmente, isto é, através dos meios culturais e dessa maneira manter a cultura. Por essas razões as mulheres são identificadas ou simbolicamente associadas com a natureza, em oposição aos homens que são identificados como cultura. Conseqüentemente, elas se vêem como os outros as vêem, e reproduzem o que a sociedade quer que elas sejam. Dentro do princípio, ‗ser mulher é ser mãe‘ e ‗ser mulher-avó é ser mãe duas vezes. (P.47).

Em rejeição ao determinismo biológico, surge o termo gênero, o qual

passou a ser utilizado na década de 1970, com o intuito de produzir uma reflexão

acerca da diferença sexual. Para Osterne (2001), ―foram as feministas americanas as

primeiras a usar o termo com o objetivo de destacar o caráter fundamentalmente

social das distinções baseadas no sexo‖. (P.117).

Quanto à posição da figura feminina no contexto familiar, no passado era

comprometida com o lar, designada ao casamento e à educação dos filhos. Já nos

dias atuais, as mulheres saem de casa para exercer atividades laborais fora do

ambiente doméstico, colaborando com uma parcela indispensável da renda para

Page 151: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

149

manutenção da casa, ou até mesmo chefiam famílias. Em suma88, conforme alerta

Osterne (2001), há de se considerar ―a presença da mulher na complexidade social‖.

Neste sentido, Vitale (2005) corrobora no debate, ao esclarecer que:

Nas famílias mais empobrecidas, há hoje uma elevada proporção de mulheres mais velhas que, sem terem tido melhores possibilidades educacionais, trabalham recebendo, conseqüentemente menor renda. Essas são, entretanto, chefes de família, provedoras de um grupo familiar que, com freqüência tem poucas pessoas trabalhando. (P.101, apud CAMARANO 1999)

Há de se considerar, portanto, que a contemporaneidade trouxe novos

desafios e/ou até mesmo conflitos para as mulheres no que tange às transformações

no contexto familiar, liberdade sexual, bem como alterações nas formas de procriação

e educação da prole. A cultura ainda se faz forte, contudo, ao vincular a imagem

feminina às tarefas domésticas, a ser a guardiã do afeto e da moral da família, e ao

ato de cuidar, o qual ainda tende a ser imputado às mulheres como sendo

constitutivos de sua condição feminina. Vale frisar que, embora não sendo prescritos,

estes papéis são assumidos.

Assim sendo, com âncora no juízo moral, estabelecido na sociabilidade

burguesa89, valores como altruísmo e maternagem90 tornam-se presentes no cotidiano

das mulheres, as quais passam a acumular uma dupla jornada de trabalho. Às

mulheres impõe-se a responsabilidade de cuidar de seus familiares (sejam eles

crianças, adolescentes, velhos e/ou enfermos...) a fim de cumprir normas

historicamente elaboradas e interpretadas como próprias da índole feminina.

Ainda em conformidade com Leite (2004), Beauvoir (1980) e Osterne

(2001), Ferrigno (2003) colabora nesta discussão: ―percebi que as mulheres tendem a

88

Importante destacar, no Brasil, a partir de 1970, o impulso dos movimentos feministas.

89

Conforme Szymasnky (2003), dentre as teorias e modelos que versam sobre a categoria família, destaca-se aquele que faz alusão à família nuclear burguesa, ou seja, o que compreende a seguinte composição: pai, mãe e filhos. A citada autora acrescenta ainda que ―fora desse contexto as famílias são consideradas incompletas ou desestruturdas‖. (P. 24).

90

Bandinter (1985) estabelece uma importante diferença entre os termos maternagem e maternidade. Segundo a referida autora, o primeiro compreende a capacidade de cuidar de um infante, educá-lo moralmente para a vida em sociedade. Tal capacidade está associada ao cuidado geral desempenhado pela mulher, haja vista esta condição ser socialmente aprendida no decorrer da vida de uma mulher (como por exemplo: cuidar de parentes em períodos de doença). Sendo fruto de uma condição sócio-histórica, o estigma da maternagem é vinculado ao campo feminino, embora podendo ser exercida também pelo sexo masculino. Quanto à maternidade, a condição de gerar e parir uma criança, corresponde a uma característica essencialmente feminina.

Page 152: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

150

manter uma preocupação maior com a família e efetivamente cuidam mais de seus

familiares, ou seja, mantêm os papéis de cuidadoras que a cultura forjou para elas‖.

(P.171)

Verificam-se, destarte, declarações, no campo do senso comum, de que o

vínculo da figura feminina como sendo cuidadora independe do lugar que a citada

ocupe na teia familiar - cônjuge, companheira, irmã, tia, mãe, filha, avó. Desde que

seja mulher, sua ―missão‖ de cuidar está predestinada pela sociedade, de modo que o

ato de cuidar do outro esteja presente em seu cotidiano, como ação naturalizada,

rotineira ou repetitiva.

Vitale (2005) complementa tal exposição:

No esteio das relações intergeracionais, os avós, mais especialmente a mulher, podem conviver não só com o cuidado das crianças, mas também com o dos mais idosos da família. Da mulher se espera e se delega à assistência à geração mais nova e às mais velhas. (P.101).

Sarti (2003), em concordância com o pensamento de Vitale (2005),

esclarece que a mulher ―é quem cuida de todos e zela para que tudo esteja em seu

lugar‖. (P .64). É importante perceber que, para o sexo feminino, o mundo da casa,

compreendido na esfera privada, foi o projeto de vida imposto pela sociedade, de

modo que assumi-lo e administrá-lo fizesse parte das suas atividades cotidianas pelo

simples fato de ter nascido mulher.

O desempenho do papel das mulheres na esfera familiar realça o processo

de legitimação dessas ações/atividades entrelaçadas aos códigos de cada época e/ou

sociedade em que se vive. Assim sendo, Sarti (2003) argumenta que ―o homem é

considerado o chefe de família e a mulher a chefe de casa. Essa divisão

complementar permite, então, a realização das diferentes funções da autoridade na

família”. (P.63).

Quanto ao ―toque feminino‖ impresso nas mais diversas relações sociais,

Vitale (2005) prioriza o recorte da figura dos avós, e sustenta que,

As relações de gênero imprimem um perfil na relação avós-neto. Diz o ditado popular que ser avó é ser mãe duas vezes; e ser avô é ser pai com açucar. Abranda-se o modelo paterno, perpetuam-se os cuidados femininos. Talvez as coisas não sejam assim tão lineares:

Page 153: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

151

os modelos de atenção e vínculo com as crianças são revisitados, transformados e/ou mantidos com o nascimento dos netos. Mas, por certo, os avós, homens e mulheres, dão um sentido diferente a essa relação, segundo suas experiências familiares e seus relacionamentos sociais de gênero. (P.101).

É fato que o envelhecimento populacional significa mudanças de pesos

dos diversos grupos etários no total da população, em decorrência da queda da

fecundidade e da mortalidade. É esta última que veio seguida, porém, de avanços nas

condições de saúde e ocasionou transformações em todo o ciclo da vida, até mesmo

nos papéis sociais atribuídos a cada idade e sexo.

Enfocando as relações intergeracionais e de gênero, indaga-se qual o

papel desempenhado pelas avós, no âmbito familiar de hoje, ao considerar um

contexto de mudanças dos laços familiares, os quais lhes demandam novas

exigências e funções.

Neste sentido, Camarano (1999) aponta que as mulheres envelhecidas, na

atualidade, além de suporte familiar, assumem também papéis não esperados, fato

que lhes possibilita, no contexto de uma sociedade contemporânea (forjada pelas

desigualdades sociais e/ou pela trajetória das reformulações do próprio lugar da

mulher na sociedade), tornarem- se importantes agentes de mudança social.

Assim sendo, no cotidiano das famílias, faz-se significativa a presença da

avó, sendo necessária a identificação de mais esclarecimentos sobre estas velhas-

avós, tornando o ambiente familiar campo significativo a ser questionado e elucidado,

além de ser preciso compreender quais outros aspectos estão em volta dos sujeitos

desta pesquisa.

Page 154: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

152

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

―São momentos que eu não me esqueci Detalhes de uma vida,

histórias que eu contei aqui.

(...) Se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi...‖

Roberto Carlos

Confidencia-se o fato de que, embora enfrentado qualquer expensas,

durante a investigação em tela, esta se revelou, tanto no caminhar acadêmico quanto

pessoal, como experiência ímpar. Isto porque, embora se continue na busca pelo

aperfeiçoamento do conhecimento, tendo como alvo o mesmo objeto de pesquisa,

relembra-se as palavras de Bosi (1994) ao mencionar que ―(...) não se lê da mesma

forma o mesmo livro‖. (P. 58).

A elevação do número do segmento populacional denominado velhice

reflete em mudanças muito mais do que demográficas, pois se relaciona com outros

fatos e acontecimentos sociais relevantes, como, por exemplo, alterações na

economia e no modo de vida, que têm como consequência a reconfiguração dos

modos de solidariedade entre as gerações na família. Para Vitale (2005), estas

transformações atingem também as funções dos membros no âmbito familiar.

Discutir relações intergeracionais, família e as mudanças ocorridas nesta

torna-se tarefa complexa. Durante este estudo, observou-se que muitos autores

buscaram desconstituir a concepção do modelo ideal que permeou a sociedade

brasileira por um longo período, fazendo compreender-se que o conceito de família

possui dimensão social e simbólica, e, portanto, esta instituição passou (e passa) por

várias transformações. Todavia, na fala das entrevistadas foi possível constatar, ainda,

fortes características da família nuclear burguesa ao desejarem que suas filhas

consigam constituir “famílias estruturadas”.

Ante a atual conjuntura, no que se refere aos ajustamentos da categoria

família, ressalta-se que estes funcionam como uma espécie de ―estratégia‖ traçada

para o enfrentamento dos desafios impostos pelo cotidiano, objetivando, assim,

garantir a sobrevivência de seus membros, no interior dos grupos familiares. Nos

Page 155: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

153

relatos apresentados, nesta pesquisa, percebeu-se que tanto o amparo material

quanto o afetivo compõem estas estratégias.

Compartilha-se com os consulentes deste estudo o fato de que, ao longo

desta produção científica, foram observadas, nas histórias das avós entrevistadas,

marcas diversas, das quais umas apregoavam tristezas, em outras, sentimentos de

solidariedade, amor, carinho, pena, proteção, responsabilidade e, até mesmo, o de

dever cumprido. Assim sendo, constatou-se que o cenário familiar também é

permeado por tensões e divergências.

As particularidades da vida moderna cooperam para a formulação de um

novo perfil de relações entre avó e netos, nos dias atuais. Nos depoimentos das avós

entrevistadas foi possível perceber que quem antes recebia os netos para os almoços

de domingo, hoje em dia, faz parte da dura rotina destes, por motivos distintos que

fortalecem os laços entre estas duas gerações. Nos termos de Alcântara (2010), ―a

convivência entre os velhos e seus familiares permite repensar as trocas, as

interações e a forma como são engendradas no espaço doméstico‖. (P. 107).

Neste estudo, constatou-se também que as adversidades da vida

obrigaram a se mudar o foco da estrutura da família nuclear, transformando o modo de

vida dentro das famílias contemporâneas, as quais passam a criar articulações entre

as gerações, elaborando outros códigos que mantêm certo substrato básico de

gerações anteriores. Portanto, falar em relações intergeracionais na família é adentrar

num mundo complexo.

Assim sendo, destaca-se a participação cada vez mais ativa das avós, já

velhas, no âmbito doméstico. Ao perceber a existência de três ou quatro gerações no

mesmo domicílio, a assistência financeira também passa por uma mobilidade

geracional. Na atualidade, os velhos passaram de dependentes a provedores

principais numa sociedade capitalista, portanto, consumista. Tal situação foi percebida

nos relatos das avós que passaram a ser o amparo de suas famílias, auxiliando os

netos que moram em suas companhias (e também os que não moram) com dinheiro,

e, até mesmo, com alimentos.

Page 156: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

154

É fato, porém, que a família, bem como a sociedade moderna, privilegiam

o jovem em detrimento do velho. Cabe aqui a seguinte reflexão: quem é o jovem e

quem é o velho, nesse contexto, senão os netos e os avós ?

Triste é perceber que a imagem de ser velho hoje, numa sociedade

utilitária, é permeada por mitos e preconceitos, incorporados e transmitidos por

gerações. Esta situação foi constatada na fala e abordagens com os sujeitos

entrevistados, sempre numa mesma perspectiva: a negação de sua velhice e a

facilidade de identificá-la e aceitá-la, apenas, no outro. A percepção de velhice

vinculada à rejeição foi homogênea entre elas (as avós). Talvez, como mecanismo de

defesa, para não encarar a própria morte, ou para maior aceitação social.

Nesta pesquisa notou-se que a relação geracional vai além de um simples

―cuidar de netos‖. Assim, há, portanto, uma complexidade que pode ser denominada

de rede de relações, a qual é mobilizada para resolver aquilo que é urgente. O ―ser

avó‖, por definição, está implicado numa relação tríáde, que envolve avós, filhos e

netos. A avosidade é um tema ainda pouco estudado, e a relevância dessas avós na

atual conjuntura permite também que seja analisado o pano de fundo que se

apresenta e/ou norteia estas relações.

No ambiente familiar, a figura da avó demonstra importância, no apoio

afetivo, educacional, financeiro, bem como em ocasiões de drama familiar, haja vista a

fluidez de seus vínculos, como, por exemplo: separação dos pais, novos

relacionamentos ou, até mesmo, a morte de um dos genitores.

Geralmente, as avós cuidam dos netos para colaborar com os filhos. Em

ocasiões distintas, como podemos conhecer nesta pesquisa, tais necessidades

motivaram o acolhimento desses netos, a saber: irresponsabilidade, incapacidade dos

pais em assumi-los. Nestas circunstâncias, as avós incorporam a responsabilidade

materna e se consideram as principais substitutas para essa atribuição, como

constatadas aqui.

O ato de cuidar toma proporções mais extensas haja vista o fato de que

este se vincula também à preocupação de ensinar moralmente o que é correto aos

seus netos, responsabilidade esta que as avós cultivam na formação da personalidade

Page 157: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

155

de seus netos. Vale lembrar que um bom legado deixado pelos avós pode ser decisivo

para a constituição dos valores de seus netos.

Verificou-se que, em nenhum dos casos abordados havia situação

regularizada, no que concerne à oficialização do cuidado, mediante o pedido de

guarda judicial; todavia, existe anuência de, pelo menos, um dos genitores dessas

crianças e ou adolescentes com relação ao neto ser cuidado pela avó.

Sobre a guarda judicial, o artigo 33 do Estatuto da Criança e do

Adolescente enfatiza que: ―a guarda obriga à prestação de assistência material, moral

e educacional à criança e ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-

se a terceiros, inclusive aos pais.‖ (2004: 311). O detentor da guarda tem o dever de

assegurar à criança ou adolescente total assistência. Nos casos aqui estudados,

embora não formalizados perante a Justiça, observou-se que as avós cuidadoras de

netos preenchem todos os requisitos há pouco expostos.

Diferentemente de outrora, hoje, as famílias passam a receber de volta, no

sentido de apoiar ou até mesmo sustentar, seus filhos adultos, os quais retornam para

a residência dos genitores, na maioria das vezes, trazendo netos para a população

mais velha. Tal situação não decorre, em grande parte, de questões afetivas, e, sim

por necessidades, impactos das questões sociais que, como não são fatos isolados,

refletem na população jovem na figura dos filhos e, por consequência, estende-se aos

netos. A falta de recurso financeiro, o desemprego e a maternidade precoce são

alguns dos fatores que contribuem para o retorno a esses domicílios. Com efeito, em

relação às modificações nos caminhos de vida dos mais velhos e de seus filhos

adultos, a influência das avós cresceu.

Conquanto as avós tentem negar as aparências, o cuidado com os netos,

não disfarçam as evidências de uma sociedade com características do mundo

globalizado, onde a redução do Estado propicia consequências em áreas distintas,

tanto nas vidas e nas relações entre pessoas e entre as gerações. As limitações

físicas também existem e foram evidenciadas, neste estudo, nos depoimentos das

avós.

Convém mencionar que estes velhos, apesar da precariedade do benefício

da aposentadoria, assumem o suporte econômico familiar, de modo a garantir-lhe a

Page 158: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

156

sobrevivência, no contexto social que estão inseridos, como verificados nos resultados

desta pesquisa, mesmo quando são, apenas, aposentados com rendimentos

diminutos. Dessa forma, a imagem das avós da atualidade vai além daquela da

vovozinha na cadeira de balanço, contando histórias, representando, apenas, respeito,

companheirismo e tranquilidade.

No que respeita à prioridade de políticas públicas e/ou garantia de direitos

(condições de saúde, aposentadoria digna) para esse segmento populacional,

percebe-se que estes ainda deixam muito a desejar, haja vista que, muitas vezes, o

discurso referente à ―primazia‖ não se concretiza ou deixa ambiguidades. Tal

circunstância terá, pois ligação com a capacidade da sociedade em reafirmar (de

maneira consciente ou não) a exclusão para com seus velhos?

Não se pode negar, contudo, que para os avós, a companhia dos netos

traz consigo a volta dos sonhos destas, demonstrando, em algumas ocasiões, até um

maior sentido afetivo para suas vidas. O relacionamento entre avós e netos pode ser

marcado pelo prazer e trocas intensas, principalmente de cuidados.

Considera-se que há nesta relação (avós e netos) a reciprocidade, ou seja,

para os netos surgem oportunidades como entender o ciclo vital, ampliar a noção de

família, permanecer no seio da família biológica (mesmo não tendo seus genitores

como seu responsável) e aprender a respeitar os mais velhos. Enquanto isso, para os

mais velhos, os benefícios desta relação podem ser compreendidos como sendo:

melhor socialização e utilização do tempo ―livre‖ da aposentadoria, além da

possibilidade de voltar a fazer planos.

O maior o contato entre avó-neto possibilita uma relação mais intensiva

entre estes sujeitos. Embora neste estudo as avós não tenham verbalizado claramente

tal relação, as atitudes, demonstrações de preocupação e atenção permitiram esta

conclusão. Assim, pode-se compreender que a responsabilidade e o carinho foram

estabelecidos com base na convivência entre estes, de modo que a distância

geográfica, conforme elucida Dias (2002), influencia diretamente na relação avós e

netos.

Atualmente, os avós passam a ser os responsáveis diretos por seus netos,

pois na redefinição dos laços familiares, assumem o protagonismo na vida destes,

Page 159: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

157

inclusive, no tocante ao sustento, independentemente da presença ou ausência dos

genitores dessas crianças e ou adolescentes. Deste feito, conforme Peixoto (200),

criar netos, assim como substituir os pais, passam a ser exigências das circunstâncias,

fato confirmado nos depoimentos das avós ora entrevistadas.

Interpretando por este prisma, a rede de parentesco na

contemporaneidade parece funcionar bem, tendo a solidariedade entre os membros da

família como ápice. Não é bem assim, entretanto, pois, nesta pesquisa, as avós

cuidadoras de seus netos vivenciam esta circunstância muito mais por uma falta de

opção do que mesmo por escolha.

Assim, por intermédio desta investigação, pretendeu-se ampliar o debate

sobre as relações intergeracionais, suas contribuições e implicações, na perspectiva

das relações e reorganizações familiares, na contemporaneidade. Acredita-se que foi

possível responder positivamente às hipóteses de investigação propostas, bem como

atingir os objetivos do presente estudo.

Ante o conteúdo ora desvendado, compreende-se ser impossível pensar

numa sociedade sem a presença de seus velhos. Destarte, problematizar o processo

de envelhecer, na atualidade, reveste esta pesquisa de relevância, tanto acadêmica

quanto social. Desse modo, considera-se que seria de fundamental importância se

designar, desde a infância, mediante conteúdo programático e/ou eventos escolares,

novas visões sobre a imagem da velhice, desvinculando-a de idéias negativas, como

incapacidade e descartabilidade.

Espera-se, então, que este trabalho contribua para uma análise apropriada

das temáticas abordadas, no contexto da sociedade contemporânea, bem como do

debate de questões que deste trabalho possam advir, sem qualquer pretensão de

esgotar a discussão, haja vista não ser este o objetivo.

Page 160: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

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169

ANEXOS

Page 172: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

170

Fotos da Maquete Virtual - Projeto Salgadinho (Residencial Vitória)

FIGURA 09: Frente do empreendimento

Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/SEINFRA, 2009.

FIGURA 10: Visão aérea dos blocos

Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/ SEINFRA, 2009.

Page 173: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

171

FIGURA 11: Visão aérea completa do empreendimento

Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/ SEINFRA, 2009.

FIGURA 12: Visão aérea do Salão de Festas e Área de Lazer

Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/ SEINFRA, 2009.

Page 174: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

172

IGURA 13: Salão de Festas do Residencial Vitória

Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/ SEINFRA, 2009.

FIGURA 14: Área de Lazer do Residencial Vitória

Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/ SEINFRA, 2009.

Page 175: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

173

IDADE DA PEDRA

―Sou da idade da pedra lascada.

A velhice é um horror.

Era uma jovem tão bonita.

Mas para não envelhecer

Você tem que morrer jovem.

E ninguém quer morrer jovem‖.

Lygia Fagundes Teles

Page 176: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

174

A PIOR IDADE 03/02/09

Deve ter sido um demônio zombeteiro disfarçado de anjo que inventou que a velhice é

a "melhor idade". Chamar velhice de "melhor idade" só pode ser gozação ou ironia.

O que me faz lembrar o acontecido há muitos anos. Naqueles tempos não havia o

orgulho em ser negro. As alusões à cor eram tão proibidas quanto as sugestões

sexuais. "Ela está grávida" -ninguém dizia isso, a palavra "grávida" era obscena, chula.

Em vez da verdade nua e crua, uma expressão que todo mundo entendia sem que a

palavra obscena fosse pronunciada era "Ela está num "estado interessante‘"…

Pois uma família protestante se preparava para receber a visita de um conhecido

pastor negro. (Um parêntese. Nos Estados Unidos, a palavra "negro" era e é ofensiva.

Em vez de "negro" ["nigro"] usa-se "black", "black is beautiful". A palavra "negro" era

mais ofensiva ainda na sua forma corrompida "niger".

As crianças eram educadas para o racismo como se fosse a coisa mais natural, e

eram ensinadas a cantar numa brincadeira "Eeny, meeny, miny, moe, catch a niger by

his toe" -"Agarre o crioulo pelo dedão…").

Acontecia que o tal pastor -isso era bem conhecido de todos- sofria de um humilhante

complexo por causa da sua cor. Os hospedeiros ficaram angustiados diante da

possibilidade de que sua filha de seis anos -um doce de menina- fizesse

inocentemente alguma referência a esse fato. Trataram então de adverti-la: "Não diga

jamais que o reverendo Clemente é negro…".

A menina ouviu e aprendeu. O hóspede chegou, tudo estava correndo às mil

maravilhas, a menina doce se apaixonou pelo reverendo Clemente e, num momento

de carinho, assentada no seu joelho, ela tomou a sua grande mão negra nas suas

minúsculas mãos brancas e disse: "Sua mão é branquinha, sua mão é branquinha…".

É precisamente isso que acontece quando os alto-falantes das salas de embarque nos

aeroportos anunciam: "Terão prioridade para o embarque gestantes, crianças,

pessoas com dificuldade de locomoção e pessoas da melhor idade".

Já reclamei com os funcionários, dizendo-lhes a minha irritação. Eles me disseram que

nada podiam fazer porque as ordens vinham de cima. Concluo que "em cima" não há

nenhum velho.

O que é melhor? Ser respeitado ou ser desejado?

Velhice é quando a gente começa a ser tratado como "objeto de respeito" e não como

"objeto de desejo". Mas o que quero não é ser olhado com respeito, mas com

desejo…

Page 177: CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A

175

Aconteceu faz 25 anos, uma tarde, no metrô, vagão cheio, tudo bem, eu me via jovem,

pernas fortes, segurei-me num balaústre. Meus olhos começaram a passear pelo rosto

dos passageiros -cada rosto é mais misterioso que um universo- até que meus olhos

se encontraram com os olhos de uma jovem que me olhava, eles, os seus olhos,

sorriam para mim e eu fantasiei que ela me desejava. Ficamos assim por alguns

segundos trocando olhares de namorado até que ela, num gesto delicado, se levantou

e me ofereceu o seu lugar… Seu gesto me disse sem palavras: "O senhor é velho. Eu

o respeito. Eu lhe dou o meu lugar…". Nesse momento percebi que a minha idade era

a pior de todas. A melhor idade era a dela, da mocinha que me deu o lugar…

Sugiro um nome diferente para essa idade, que não é ironia, mas poesia: "Pessoas

portadoras de crepúsculos no seu olhar…".

Rubem Alves

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176

Retrato

"Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

Em que espelho ficou perdida a minha face?―

Cecília Meireles

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177

GESTOS AMOROSOS

“Idoso” é palavra de fila de banco e de supermercado; “velho”, ao contrário, pertence ao universo da poesia

DEI-ME CONTA DE que estava velho cerca de 25 anos atrás. Já contei o ocorrido

várias vezes, mas vou contá-lo novamente. Era uma tarde em São Paulo. Tomei um

metrô. Estava cheio. Segurei-me num balaústre sem problemas. Eu não tinha

dificuldades de locomoção. Comecei a fazer algo que me dá prazer: ler o rosto das

pessoas.

Os rostos são objetos oníricos: fazem sonhar. Muitas crônicas já foram escritas

provocadas por um rosto -até o mesmo o nosso- refletido no espelho. Estava eu

entregue a esse exercício literário quando, ao passar de um livro para outro, isto é, de

um rosto para outro, defrontei-me com uma jovem assentada que estava fazendo

comigo aquilo que eu estava fazendo com os outros. Ela me olhava com um rosto

calmo e não desviou o olhar quando os seus olhos se encontraram com os meus.

Prova de que ela me achava bonito. Sorri para ela, ela sorriu para mim… Logo o

sonho sugeriu uma crônica: ―Professor da Unicamp se encontra, num vagão de metrô,

com uma jovem que seria o amor de sua vida…‖

Foi então que ela me fez um gesto amoroso: ela se levantou e me ofereceu o seu

lugar… Maldita delicadeza! O seu gesto amoroso me humilhou e perfurou o meu

coração… E eu não tive alternativas. Como rejeitar gesto tão delicado! Remoendo-me

de raiva e sorrindo, assentei-me no lugar que ela deixara para mim. Sim, sim, ela me

achara bonito. Tão bonito quanto o seu avô…

Aconteceu faz mais ou menos um mês. Era a festa de aniversário de minha nora.

Muitos amigos, casais jovens, segundo minha maneira de avaliar a idade. Eu estava

assentado numa cadeira num jardim observando de longe. Nesse momento chegou

um jovem casal amigo. Quando a mulher jovem e bonita me viu, veio em minha

direção para me cumprimentar. Fiz um gesto de levantar-me. Mas ela, delicadíssima,

me disse: ―Não, fique assentadinho aí…‖ Se ela me tivesse dito simplesmente ―Não é

preciso levantar‖, eu não teria me perturbado. Mas o fio da navalha estava

precisamente na palavra ―assentadinho‖. Se eu fosse moço, ela não teria dito

―assentadinho‖. Foi justamente essa palavra que me obrigou a levantar para provar

que eu era ainda capaz de levantar-me e assentar-me. Fiquei com dó dela porque eu,

no meio de uma risada, disse-lhe que ela acabava de dar-me uma punhalada…

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Contei esse acontecido para uma amiga, mais ou menos da minha idade. E ela me

disse: ―Estou só esperando que alguém venha até mim e, com a mão em concha, bata

na minha bochecha, dizendo: ―Mas que bonitinha…‖ Acho que vou lhe dar um murro

no nariz…‖

Vem depois as grosserias a que nós, os velhos, somos submetidos nas salas de

espera dos aeroportos. Pra começar, não entendo por que ―velho‖ é politicamente

incorreto. ―Idoso‖ é palavra de fila de banco e de fila de supermercado; ―velho‖, ao

contrário, pertence ao universo da poesia. Já imaginaram se o Hemingway tivesse

dado ao seu livro clássico o nome de ―O idoso e o mar‖? Já imaginaram um casal de

cabelos brancos, o marido chamando a mulher de ―minha idosa querida‖?

Os alto-falantes nos aeroportos convocam as crianças, as gestantes, as pessoas com

dificuldades de locomoção e a ―melhor idade‖… Alguém acredita nisso? Os velhos não

acreditam. Então essa expressão ―melhor idade‖ só pode ser gozação.

Folha de São Paulo, 27 de Maio de 2008.

Rubem Alves

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COMO SE MORRE DE VELHICE

Como se morre de velhice

ou de acidente ou de doença,

morro, Senhor, de indiferença.

Da indiferença deste mundo

onde o que se sente e se pensa

não tem eco, na ausência imensa.

Na ausência, areia movediça

onde se escreve igual sentença

para o que é vencido e o que vença.

Salva-me, Senhor, do horizonte

sem estímulo ou recompensa

onde o amor equivale à ofensa.

De boca amarga e de alma triste

sinto a minha própria presença

num céu de loucura suspensa.

Já não se morre de velhice

nem de acidente nem de doença,

mas, Senhor, só de indiferença.

Cecília Meireles

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OFICIALMENTE VELHO

Neste mês de dezembro completo 70 anos. Pelas condições brasileiras, me torno

oficialmente velho. Isso não significa que estou próximo da morte, porque esta pode

ocorrer já no primeiro momento da vida. Mas é uma outra etapa da vida, a derradeira.

Esta possui uma dimensão biológica, pois irrefreavelmente o capital vital se esgota,

nos debilitamos, perdemos o vigor dos sentidos e nos despedimos lentamente de

todas as coisas. De fato, ficamos mais esquecidos, quem sabe, impacientes e

sensíveis a gestos de bondade que nos levam facilmente às lágrimas.

Mas há um outro lado, mais instigante. A velhice é a última etapa do crescimento

humano. Nós nascemos inteiros. Mas nunca estamos prontos. Temos que completar

nosso nascimento ao construir a existência, ao abrir caminhos, ao superar dificuldades

e ao moldar o nosso destino. Estamos sempre em gênese. Começamos a nascer,

vamos nascendo em prestações ao longo da vida até acabar de nascer. Então

entramos no silêncio. E morremos.

A velhice é a última chance que a vida nos oferece para acabar de crescer, madurar e

finalmente terminar de nascer. Neste contexto, é iluminadora a palavra de São Paulo:

"na medida em que definha o homem exterior, nesta mesma medida rejuvenesce o

homem interior"(2Cor 4,16). A velhice é uma exigência do homem interior. Que é o

homem interior? É o nosso eu profundo, o nosso modo singular de ser e de agir, a

nossa marca registrada, a nossa identidade mais radical. Esta identidade devemos

encará-la face a face.

Ela é pessoalíssima e se esconde atrás de muitas máscaras que a vida nos impõe.

Pois a vida é um teatro no qual desempenhamos muitos papéis. Eu, por exemplo, fui

franciscano, padre, agora leigo, teólogo, filósofo, professor, conferencista, escritor,

editor, redator de algumas revistas, inquirido pelas autoridades doutrinais do Vaticano,

submetido ao "silêncio obsequioso" e outros papéis mais. Mas há um momento em

que tudo isso é relativizado e vira pura palha. Então deixamos o palco, tiramos as

máscaras e nos perguntamos: Afinal, quem sou eu? Que sonhos me movem? Que

anjos que habitam? Que demônios me atormentam? Qual é o meu lugar no desígnio

do Mistério? Na medida em que tentamos, com temor e tremor, responder a estas

indagações vem à lume o homem interior. A resposta nunca é conclusiva; perde-se

para dentro do Inefável.

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Este é o desafio para a etapa da velhice. Então nos damos conta de que

precisaríamos muitos anos de velhice para encontrar a palavra essencial que nos

defina. Surpresos, descobrimos que não vivemos porque simplesmente não

morremos, mas vivemos para pensar, meditar, rasgar novos horizontes e criar

sentidos de vida. Especialmente para tentar fazer uma síntese final, integrando as

sombras, realimentando os sonhos que nos sustentaram por toda uma vida,

reconciliando-nos com os fracassos e buscando sabedoria. É ilusão pensar que esta

vem com a velhice. Ela vem do espírito com o qual vivenciamos a velhice como a

etapa final do crescimento e de nosso verdadeiro Natal.

Por fim, importa preparar o grande Encontro. A vida não é estruturada para terminar

na morte, mas para se transfigurar através da morte. Morremos para viver mais e

melhor, para mergulhar na eternidade e encontrar a Última Realidade, feita de amor e

de misericórdia. Aí saberemos finalmente quem somos e qual é o nosso verdadeiro

nome.

Nutro o mesmo sentimento que o sábio do Antigo Testamento: "contemplo os dias

passados e tenho os olhos voltados para a eternidade".

Por fim, alimento dois sonhos, sonhos de um jovem ancião: o primeiro é escrever um

livro só para Deus, se possível com o próprio sangue; e o segundo, impossível, mas

bem expresso por Herzer, menina de rua e poetisa:"eu só queria nascer de novo, para

me ensinar a viver". Mas como isso é irrealizável, só me resta aprender na escola de

Deus. Parafraseando Camões, completo: Mais vivera se não fora, para tão longo ideal,

tão curta a vida.

Leonardo Boff

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STARDUST- O Mistério da Estrela

Sinopse e detalhes do filme

Este filme baseia-se na história de Neil Gaiman e conta a trajetória de Tristan, um

jovem que passa a procurar uma estrela cadente que ele prometeu à sua amada, a fim

de conquistar o seu amor, até a data de seu aniversário. A jornada o leva a uma terra

esquecida e mística. Na Terra Encantada, Tristan descobre que a estrela é uma linda

garota chamada Yvaine. Mas, durante a busca, ele descobre que não é o único que

deseja encontrar a referida estrela, pois, príncipes competindo pelo trono e bruxas

obcecadas pela beleza e eterna juventude, também parecerem querer algo dela.

Com lançamento no dia 12.10.2007, este é um filme norte-americano e obedece às

seguintes classificações de gênero: fantasia, aventura, drama e família. Apresentando

humor inteligente e efeitos especiais, possui tempo de duração de 127 (cento e vinte e

sete) minutos.

O filme Stardust - O Mistério da Estrela consiste num conto de fadas moderno,

direcionado ao público adulto, que reúne romance, comédia e aventura. Neste, é

possível observar, além de outros aspectos, alguns fatores apresentados na pesquisa

em alusão, dos quais podem ser elencados:

A imagem da bruxa representada pela mulher envelhecida

O culto ao belo

A busca incessante pela juventude eterna

A identificação da velhice no outro

A velhice como um mal (ou uma doença)

A cobiça da jovialidade

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Up, Altas Aventuras

Sinopse e detalhes do filme

O filme narra uma história de ação, a qual tem como protagonista Carl Fredricksen, um

vendedor de balões que, aos 78 (setenta e oito) anos de idade, mora sozinho, e, que

está prestes a perder a casa em que sempre viveu com sua esposa, a falecida Ellie.

Ocorre que o terreno onde a casa está localizada desperta interesse num empresário,

que deseja construir no local um edifício.

Após um incidente em que acerta um homem com sua bengala, Carl passa a ser

considerado uma ameaça pública, e, portanto, é forçado a ser internado num asilo.

Como estratégia para impedir que isto aconteça, ele enche milhares de balões em sua

casa, fazendo com que ela levante vôo.

O objetivo de Carl é viajar para uma floresta na América do Sul, num local onde ele e

Ellie sempre sonharam morar, mas nunca foi possível. Entretanto, quem o acompanha

nessa aventura é Russell, um menino de 8 (oito) anos de idade, escoteiro e amante da

natureza. O enredo conta também com a participação de outros personagens

divertidos: Kevin (a ave tropical) e Dug (um golden retriever falante).

Inicialmente, a relação entre ambos (velho e menino) não se dá de maneira natural,

tendo em vista que Carl Fredricksen evita Russell. Contudo, posteriormente, o garoto

ensina-o uma outra maneira de ver vida, novos sonhos, novas expectativas. Então, a

relação intergeracional compreendida neste filme, embora de caráter lúdico, leva-nos a

algumas reflexões no que se concerne ao objeto de estudo da presente pesquisa.

O filme Up, Altas Aventuras é a 10ª longa-metragem de animação. Produção da

Disney Pixar e apresentado em Digital 3-D. É um filme norte-americano (lançado nos

Estados Unidos em 29.05.2009), corresponde ao gênero animação e possui duração

de 96 (noventa e seis) minutos. Revelou também sucesso de bilheteria.

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Imagens de cenas do filme

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APÊNDICES

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APÊNDICE 1

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ? UMA ANÁLISE SOBRE A INTERGERACIONALIDADE

NA RELAÇÃO AVÓS E NETOS

AUTORA: Sâmea Moreira Mesquita Alves (Discente do Mestrado Acadêmico de Poíticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará – UECE).

ORIENTADORA: Profa

. Dra. Maria do Socorro Ferreira Osterne (Professora da Universidade Estadual do Ceará – UECE).

SUMÁRIO DO PROJETO: Refere-se de uma pesquisa qualitativa, com vistas à obtenção do título de Mestra, cujo objetivo é: Analisar a intergeracionalidade presente na relação entre avós (que cuidam de netos) e netos, bem como compreender o contexto dessa relação nas camadas populares.

CONSENTIMENTO: Com base no exposto acima, afirmo que aceito participar da pesquisa em alusão, de forma voluntária, e também para a divulgação dos dados por mim fornecidos.

____________________________________ Data: ____ / ____ / _______.

Assinatura do participante

Debati este projeto com o participante, utilizando linguagem compreensível e adequada. Avalio ter propiciado as informações necessárias para os depoentes, conforme os princípios éticos da pesquisa, considero também que eles tenham compreendido meus esclarecimentos. Informo que o entrevistado (a) não pagará e nem será remunerado por sua participação. Acrescento ainda que as informações fornecidas serão utilizadas, exclusivamente, para os fins desta pesquisa.

____________________________________ Data: ____ / ____ / _______.

Assinatura do responsável

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ESTRUTURA DA ENTREVISTA / DEPOIMENTOS

1. PERFIL

1.1 Sexo: ( ) M ( ) F

1.2 Idade:

1.3 Profissão:

1.4 Situação Conjugal:

1.5 Renda

1.6 Religião:

1.7 Iidade de seu neto (a) :

2. QUESTÕES SUBJETIVAS

2.1 Onde residia anteriormente com sua família ?

2.2 Qual a compreensão de velhice, na sua percepção ?

2.3 Qual a/as motivações que a levaram a ser cuidadora de seu neto(a) ?

2.4 Quando ele (a) passou a ser cuidado por você ?

2.5 O que é ser cuidador para você ?

2.6 Qual a origem do rendimento familiar?

2.7 Participa de alguma Programa de Política Social?