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CURRÍCULO, CONHECIMENTO E CULTURA: MOVIMENTOS DE SIGNIFICAÇÃO Glauber Resende Domingues 1 Universidade Federal do Rio de Janeiro / PPGE Regina Ferreira Barra Universidade Federal do Rio de Janeiro / PPGE I - INTRODUÇÃO O presente artigo visa abordar os conceitos de currículo, conhecimento e cultura como temas centrais de um campo híbrido com contornos e fronteiras cada vez menos nítidos. O que é currículo? Que conhecimentos devem ser selecionados, considerando as relações entre saberes legitimados e não legitimados no currículo? O que é cultura? Não é possível responder a essas questões apontando somente para algo que lhes seja característico, mas somente para acordos sobre os sentidos, sempre parciais e contextualizados historicamente. Esses movimentos de criação com novos sentidos para os termos currículo, conhecimento e cultura, sempre nos remete a sentidos prévios. Os estudos curriculares e os estudos culturais têm definido currículo, conhecimento e cultura de diversas formas e essas têm permeado o cotidiano das escolas. A fim de tornar mais clara a abordagem de cada um dos conceitos, trataremos, primeiramente, sobre “o que é currículo”; em segundo lugar, abordaremos “as questões que definem o conhecimento a ser ensinado”; em seguida, “o que é cultura” e, ao final, apresentaremos algumas reflexões sobre esses termos presentes no cotidiano escolar. II - CURRÍCULO - PRÁTICA DE PODER, SIGNIFICAÇÃO E ATRIBUIÇÃO DE SENTIDOS No Brasil, os aportes teóricos trazidos pelo pós-estruturalismo para os estudos curriculares começaram em meados de 1990. Devido à existência de outras matrizes teóricas, não podemos falar em um único pós-estruturalismo, por isso não daremos destaque a nenhum autor em particular nesse texto. O pós-estruturalismo engloba autores que dialogam com o estruturalismo, assumindo alguns de seus pressupostos e questionando outros. O mais 1 Glauber Resende Domingues e Regina Ferreira Barra são doutorandos do PPGE da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Currículo, Conhecimento e Cultura

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O presente artigo visa abordar os conceitos de currículo, conhecimento e cultura comotemas centrais de um campo híbrido com contornos e fronteiras cada vez menos nítidos.

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  • CURRCULO, CONHECIMENTO E CULTURA: MOVIMENTOS DE SIGNIFICAO

    Glauber Resende Domingues1 Universidade Federal do Rio de Janeiro / PPGE

    Regina Ferreira Barra Universidade Federal do Rio de Janeiro / PPGE

    I - INTRODUO

    O presente artigo visa abordar os conceitos de currculo, conhecimento e cultura como temas centrais de um campo hbrido com contornos e fronteiras cada vez menos ntidos. O que currculo? Que conhecimentos devem ser selecionados, considerando as relaes entre saberes legitimados e no legitimados no currculo? O que cultura? No possvel responder a essas questes apontando somente para algo que lhes seja caracterstico, mas somente para acordos sobre os sentidos, sempre parciais e contextualizados historicamente.

    Esses movimentos de criao com novos sentidos para os termos currculo, conhecimento e cultura, sempre nos remete a sentidos prvios. Os estudos curriculares e os estudos culturais tm definido currculo, conhecimento e cultura de diversas formas e essas tm permeado o cotidiano das escolas.

    A fim de tornar mais clara a abordagem de cada um dos conceitos, trataremos, primeiramente, sobre o que currculo; em segundo lugar, abordaremos as questes que definem o conhecimento a ser ensinado; em seguida, o que cultura e, ao final, apresentaremos algumas reflexes sobre esses termos presentes no cotidiano escolar.

    II - CURRCULO - PRTICA DE PODER, SIGNIFICAO E ATRIBUIO DE SENTIDOS

    No Brasil, os aportes tericos trazidos pelo ps-estruturalismo para os estudos curriculares comearam em meados de 1990. Devido existncia de outras matrizes tericas, no podemos falar em um nico ps-estruturalismo, por isso no daremos destaque a nenhum autor em particular nesse texto. O ps-estruturalismo engloba autores que dialogam com o estruturalismo, assumindo alguns de seus pressupostos e questionando outros. O mais

    1 Glauber Resende Domingues e Regina Ferreira Barra so doutorandos do PPGE da

    Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  • relevante dos pressupostos partilhados para a desconstruo dos conceitos de currculo relaciona-se ao lugar da linguagem na constituio do social, ou seja, a linguagem ao invs de representar o mundo, o constri (LOPES; MACEDO, 2011). Os discursos, as meta narrativas so em si um ato de poder e no uma expresso da realidade. Assim, podemos entender que os discursos pedaggicos e curriculares tambm so atos de poder o poder de significar, de criar sentidos e hegemoniz-los. A questo fundamental que se coloca : como podemos definir o que currculo? Cada uma das tradies curriculares apresenta um discurso que se homogeneizou e constituiu o objeto currculo, atribuindo-lhe um sentido prprio. Tais tradies o constroem, criam um sentido sobre o que currculo, e, medida em que esse sentido partilhado e aceito, constitui-se um ato de poder. A perspectiva ps-estrutural nos convoca a questionar como esses discursos curriculares se impuseram e a v-los como algo que pode e deve ser desconstrudo. Rejeitar o realismo e aceitar o carter discursivo da realidade implicam sentidos para termos centrais da discusso curricular como conhecimento e cultura. Uma boa teoria curricular deveria contemplar determinados aspectos importantes, como os que seguem: * escolher, na cultura universal, o que ensinar; * preocupar-se com as

    relaes de poder subjacentes a tal escolha; * perceber que os conhecimentos (parte das culturas) interagem com o sujeito e no so externos a ele; * dar conta do processo educativo que acontece nas escolas; * reconhecer a cultura e o conhecimento como sistemas simblicos e lingusticos contingentes, no como um repertrio de sentidos selecionados para compor o currculo, mas como a prpria produo de sentidos que se d em mltiplos momentos e espaos, um dos quais denominamos currculo. O currculo pode ser definido como prtica discursiva, prtica de poder e tambm prtica de significao e atribuio de sentidos. O conhecimento e a cultura so partes inerentes do poder, dos processos de dominao e dos processos de significao. O currculo constri a realidade, governa, constrange, projeta nossa identidade, produzindo sentidos. Em suma, destacamos as definies de Tomaz Tadeu da Silva; de Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo sobre currculo:

    O currculo lugar, espao, territrio. O currculo relao de poder. O currculo trajetria, viagem, percurso. O currculo autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currculo se forja nossa identidade. O currculo texto, discurso, documento. O currculo documento de identidade (SILVA, 2011, p. 150).

  • Trata-se, portanto, de um discurso produzido na interseo entre diferentes discursos sociais e culturais que, ao mesmo tempo, reitera sentidos postos por tais discursos e os recria. Claro que, como essa recriao est envolta em relaes de poder, na interseo em que ela se torna possvel, nem tudo pode ser dito. O entendimento do currculo como prtica de significao, como criao ou enunciao de sentidos, torna inqua distines como currculo formal, vivido, oculto. Qualquer manifestao do currculo, qualquer episdio curricular, a mesma coisa: a produo de sentidos. Seja escrito, falado, velado, o currculo um texto que tenta direcionar o leitor, mas que o faz apenas parcialmente (LOPES; MACEDO, 2011, p. 41-42).

    Quanto s questes da diferena e da identidade social e cultural, elas tambm assumem novas dimenses. As relaes de diferena e as identidades sociais e culturais que se estabelecem no cotidiano escolar, passam a ser vistas como relaes de poder construdas historicamente e como processos dinmicos, em permanente construo (GABRIEL, 2000). Os rumos da discusso em torno dos contedos escolares tm mostrado a pertinncia em buscar caminhos sejam condizentes com as mltiplas tenses que atravessam a elaborao de um projeto educativo. Nesse sentido, Gabriel (2008), levanta alguns questionamentos em relao aos discursos sobre conhecimentos escolares no campo do currculo, tais como:

    Que relaes privilegiar entre sujeitos e conhecimentos escolares nesse espao de enunciao, onde so produzidas e negociadas polticas de diferena? (...) Qual o papel da relao com os saberes (CHARLOT, 2001; 2005) nessa prtica discursiva especfica? Como podemos produzir discursos sobre os saberes e sobre a relao com os saberes no campo do currculo, de forma que possam contribuir tanto para teorizao poltica do currculo quanto para a promoo do aprendizado? (YOUNG, 2000) (GABRIEL, 2008, p. 227).

    Reconhecer a centralidade da dimenso discursiva nas prticas escolares, trata-se de considerar a produo do conhecimento escolar, mediante os usos da linguagem, dos discursos e da produo de sentidos sobre as prticas sociais. De acordo com Gabriel (2008, p. 227), produzir conhecimentos operar no universo de significados, atribuir sentidos aos fenmenos naturais e sociais. Nessa perspectiva, o conhecimento escolar, pode ser entendido como uma produo a partir de diferentes discursos, que ocorre em um determinado contexto. Isso tambm implica em identificar tanto as condies de produo, distribuio e consumo desses discursos especficos, quanto os seus efeitos de poder na construo de sujeitos,

  • identidades e diferenas (GABRIEL, 2008). Nos discursos sobre a validade do conhecimento escolar, a cultura aparece como algo a ensinar e da suscita as discusses sobre a seleo das culturas e conhecimentos que devem estar, ou no, representados no currculo, mobilizando por um lado, discursos de perspectivas universalistas, e por outro, relativistas. Ento, que critrios podem ser mobilizados para afirmar que alguns saberes valem a pena serem ensinados em detrimento de outros? Como pensar em discursos recontextualizados e hibridizados sobre as questes produzidas no mbito da epistemologia social escolar? (GABRIEL, 2008).

    A condio relacional dos saberes introduzem o papel ativo dos sujeitos na produo de sentidos em situao de aprendizagem, o que importa a conexo entre sujeito e o saber. Os sentidos encontram-se, no somente, nos saberes ensinados e aprendidos, mas tambm, nos sujeitos que ensinam e aprendem.

    Portanto, precisamos enfrentar, no campo do currculo, a questo da linguagem e da sua relao com o conhecimento (GABRIEL, 2008, p. 233), ou seja, o enfrentamento de questes de sentido. A linguagem mais que um objeto de reflexo, ela construtora de objetos, teorias e sujeitos, instrumento do pensar e das leituras plurais das prticas sociais, arma de luta, sem a qual na h ao. As identidades constitudas nas relaes assimtricas de poder, com diferentes sentidos disponveis e disputados no contexto em que emergem, assumem a centralidade na produo da cultura e do currculo como espaos de enunciao, onde so produzidas, contestadas e negociadas polticas de identidade e de diferenas.

    O currculo torna-se, portanto, uma luta poltica por sua prpria significao, e pela

    significao do que vem a ser sociedade, justia social, emancipao e transformao social. Nessa perspectiva, a linguagem assume um papel central e constitutivo no dilogo entre o conhecimento, a cultura e o currculo, pois alm de propiciar as condies necessrias para a construo de sentidos, ela tambm oferece pistas para interagir com os discursos, como espao de confrontos, no qual, tambm, ocorrem lutas pela transformao nas relaes de poder.

    III - CONHECIMENTO - AS RELAES ENTRE SABERES LEGITIMADOS E NO LEGITIMADOS NO CURRCULO

    As discusses sobre conhecimento no campo do currculo tm suscitado questes do tipo: Qual conhecimento deve ser ensinado na escola? Qual conhecimento deve ser includo no currculo? Qual deve ser excludo? As respostas a essas questes, bem como as concepes

  • de currculo, modificam-se em funo das diferentes finalidades educacionais pretendidas e dos contextos sociais nos quais so produzidas. Lopes e Macedo (2011) destacam como o conhecimento vem sendo significado em quatro importantes perspectivas do campo do currculo: a acadmica, a instrumental, a progressivista e a crtica. Apesar de as discusses no se esgotarem nessas quatro vertentes, elas englobam os principais embates em torno do tema, em diferentes momentos histricos.

    Em 1971, Michael Young lanou as bases da chamada Nova Sociologia da Educao (NSE), com o propsito de definir o currculo e o conhecimento escolar como objetos de pesquisa a serem investigados pela Sociologia da Educao. Nessa perspectiva, a questo do conhecimento passa a ser central para Young (1971, 1989, 2000), que, influenciado pelo interacionismo simblico, afirma que o conhecimento construdo nas interaes sociais entre os sujeitos, formando um conjunto de significados disponveis para o ensino, conforme as convenes sociais e os acordos dominantes com os quais interagimos. Dessa forma, Young (1989) assume uma postura antipositivista e questionadora do status de quem tem o poder de validar certos saberes como sendo conhecimentos, verdades, em detrimento de outros saberes no considerados como verdadeiros. Para Young (2000), um conhecimento vlido e legtimo se tem a capacidade de contribuir para a libertao humana, baseado nos critrios de tica e poltica.

    O foco nas relaes entre conhecimento e estrutura social desenvolvido com maior destaque por Michael Apple, fortemente associado reconceptualizao do campo do Currculo nos Estados Unidos, no final da dcada de 70. Os reconceptualistas buscam estabelecer forte relao entre seu trabalho intelectual e o trabalho poltico de questionar a ordem social estabelecida. Apple (1982), influenciado pelo marxismo, principalmente de Gramsci, busca se aliar s classes trabalhadoras na luta pelas transformaes histricas da estrutura econmica. Apple (1989) afirma que os conhecimentos escolares e seus princpios de seleo, organizao e avaliao so opes que devem sempre ser problematizadas, pois so realizadas em um universo amplo de conhecimentos. Essas opes so baseadas em valores, em ideologias sociais e econmicas e em significados institucionalmente estruturados.

    Por intermdio da transmisso de conhecimentos e valores, a escola contribui para manter privilgios sociais, definidos pela estrutura econmica capitalista, como tambm atua no processo de criar e recriar a hegemonia dos grupos dominantes. Para ele, o trabalho de investigao no campo do currculo deve conectar conhecimento e economia. Apple (1989) problematiza a ideia de seleo de conhecimentos para o currculo escolar, enfatizando como

  • no explicitado o conjunto de suposies sociais e ideolgicas capaz de legitimar o conhecimento de certos grupos em detrimento de outros grupos. Para ele, o currculo produto dinmico de lutas contnuas entre grupos dominantes e dominados, resultado de conflitos, acordos e concesses que envolvem questes socioeconmicas de classe e dinmicas de raa e gnero. Assim, o currculo, o conjunto de conhecimentos a serem ensinados e aprendidos, a seleo e problematizao dos contedos da educao esto sujeitos a grandes variaes histricas.

    Para Apple (1989), o conhecimento hegemnico atua como capital cultural e representa todo um conjunto de concepes, significados e valores que constituem as prticas cotidianas e a compreenso humana sobre o mundo. O conhecimento, para ser hegemnico, deve se constituir como senso comum. Quanto mais esse conhecimento for transmitido como um conhecimento universal sistematizado, legitimado pela tradio que o seleciona como se fosse o melhor, mais facilmente exercer sua hegemonia, traduzindo-se como cultura dominante efetiva.

    A fim de promover uma produo de novos significados para o currculo e abrir espao para uma linguagem da possibilidade, para alm da lgica da reproduo, Paulo Freire inicia sua obra nos anos 60. Considerado o educador brasileiro mais importante, Freire constri em suas teorias a base da educao popular, cujo projeto visa trabalhar com os oprimidos e buscar a conscientizao poltica para sua libertao. A concepo de conhecimento de Freire (1983) se contrape aos contedos compartimentados, estticos transmitidos aos educandos, como se fossem sujeitos passivos, sem saber e no pensantes. Em oposio a essa educao bancria, Freire prope uma educao dialgica, problematizadora e crtica. O conhecimento no possui um significado em si; pelo dilogo com os trabalhadores rurais, no processo de alfabetizao com temas geradores, que os conhecimentos so produzidos nas lutas contra a opresso. O dilogo para Freire (1983) o encontro dos homens, mediatizados pelo mundo. Dessa forma, educador e educando, ambos tem o direito palavra e ao conhecimento, humanizando-se no exerccio da relao dialgica.

    A concepo de conhecimento de Paulo Freire teve um grande impacto no campo do Currculo no Brasil e no exterior, o que favoreceu a ampliao do debate em torno da pedagogia crtica no perodo de abertura poltica ps-ditadura militar no pas. Houve grande discusso das ideias de Freire entre os educadores que defendiam a educao popular e os educadores que defendiam a pedagogia crtico-social dos contedos. Em sintonia com o pensamento de Dermeval Saviani (1984), que desenvolve os princpios da pedagogia histrico-crtica a partir do ponto de vista dos dominados, Jos Carlos Libneo (2000)

  • desenvolve a pedagogia crtica-social dos contedos, visando investigar as questes relativas ao ensino e problematizar os processos de seleo de contedos usualmente desenvolvidos nas escolas.

    Na perspectiva das diferentes tendncias, permanece o constante embate entre, os saberes dos alunos, os populares, os no legitimados e, os saberes acadmicos, cientficos, sistematizados, legitimados. Para uma tentativa de superao dessa dicotomia, no deveramos pensar no currculo como produto do embate entre saberes legitimados e no legitimados? Os embates so de difcil soluo, devido diversidade de discursos, teorias e opes sociais, polticas, econmicas e educacionais. O que est em jogo no campo do Currculo a disputa de significados tericos e prticos com os quais atribumos sentidos para ser, estar e operar no mundo. Nesse sentido, o currculo uma produo de cultura e no parte da cultura transposta para a escola, ou seja:

    O currculo tambm no fixo nem um produto de uma luta fora da escola para significar o conhecimento legtimo. O currculo no uma parte legitimada da cultura que transposta para a escola. O currculo faz parte da prpria luta pela produo de significado, a prpria luta pela legitimao (LOPES; MACEDO, 2011, p.92).

    Portanto, so as disputas na produo de significados, presentes em todo processo social, que mantm a escola como um lcus de poder importante, mas que no se limitam a ela. Por isso, Lopes e Macedo (2011) propem pensar o currculo no mais como seleo de contedos ou de cultura, mas como uma produo cultural inserida na luta pelos diferentes significados que conferimos ao mundo.

    IV CULTURA - SISTEMA HBRIDO DE SIGNIFICAO

    A cultura vincula-se classicamente ao campo da Antropologia, que a tem como objeto preferencial de estudo, entretanto, a cultura tambm est ligada intrinsecamente educao e ao currculo. Trata-se de uma temtica complexa de ser abordada, na medida em que assume vrios significados na teoria curricular. Considerando a cultura como uma ao direta do indivduo ou grupo social na transformao fsica do ambiente e dos fenmenos relacionais, numa perspectiva funcionalista que aposta na harmonia social, a principal funo da escola a socializao dos sujeitos, tornando-os capazes de partilhar a cultura. Outro conceito de cultura

  • tambm intrnseco educao e ao currculo o repertrio de significados criados socialmente a partir de um conjunto de sentidos que permite aos sujeitos se identificarem uns com os outros. E a partir desse repertrio que a teoria curricular prope que sejam selecionados os contedos trabalhados pelo currculo e que os sujeitos vo interagir no contexto escolar.

    Conforme definem Silva (2011); Lopes e Macedo (2011), trata-se de um territrio contestado, pois existe mais de uma cultura ou mais de um repertrio de sentidos e significados, que, mesmo que sejam aceitos, nem todos so sempre considerados vlidos como fontes para os contedos ou como cultura de pertencimento legtima e, em torno disso, se estabelece uma longa disputa. Historicamente, a distino entre territrios vlidos e no vlidos to forte que envolve uma srie de excluses e rejeies de reas considerveis da cultura vivida. Muitas dessas excluses operadas em nome de uma cultura geral vm sendo questionadas, o que no significa que tenham deixado de ocorrer. Diversos movimentos sociais - tnicos, de gnero, religiosos vm denunciando a excluso de suas culturas do conjunto dessa cultura geral, de carter universal, que posta em questo pela sociedade que se mostra, a cada dia, mais multicultural. Segundo Forquin (2000), a controvrsia relativismo versus universalismo constitui hoje uma oposio profundamente estabelecida no discurso da educao e da cultura. No contexto desse debate, a questo do multiculturalismo ocupa um lugar cada vez maior, e o grande desafio que se coloca como os sistemas de educao podem levar em conta o pluralismo das culturas, conciliando o universalismo inerente ao pensamento cientfico e o relativismo ensinado pelas cincias humanas, atentas pluralidade dos modos de vida, dos conhecimentos especulativos do mundo e das sensibilidades culturais (FORQUIN, 2000, p.49). Nessa perspectiva, os dois princpios de interpretao - universalismo e relativismo ou os dois conceitos de educao e cultura - no so antagnicos, mas sim dois pilares que se complementam e so fundamentais para uma proposta curricular. Esse panorama intensifica mais a disputa em torno do que ensinar e de como representar as diferentes culturas no currculo.

    Ao mencionar o currculo como territrio contestado, defendemos a concepo de cultura como conjunto de sistemas de significao, que implicam nossa compreenso do multiculturalismo da sociedade contempornea e o dilogo/ negociao da prpria ideia de cultura. Pensar no currculo, a partir dessa diversidade, exige um processo de desconstruo que vem sendo realizado com a discusso da cultura como campo hbrido, cujos fluxos culturais encontram-se em permanente movimento. Portanto, constatar que o mundo

  • multicultural no quer dizer que h espao para todas as culturas se manifestarem. Reconhecemos que a ampliao da comunicao e a luta dos grupos minoritrios, por serem valorizados, geram espaos de enunciao e novas prticas de atribuio de sentidos entre as diversas culturas em disputa. As respostas do campo do Currculo ampliao dos fluxos culturais tm sido categorizadas em multiculturalismo liberal e crtico por diferentes autores, dentre os quais Peter McLaren o de maior referncia no Brasil. Para o referido autor, as abordagens tipificadas de forma genrica como liberais esto marcadas pela aceitao do carter heterogneo da sociedade e pela compreenso de que as identidades sociais so definidas, levando-se em conta indicadores econmicos, culturais e/ou biolgicos. H propostas multiculturais liberais cuja principal caracterstica um certo humanismo, a crena em um princpio de igualdade entre as pessoas, sendo a diferena ocasionada por condies desiguais do capitalismo, que tornam a competio social desfavorvel para os grupos minoritrios. Em contraposio ao multiculturalismo liberal, McLaren (1997) defende posturas multiculturais crticas, que examinem a construo tanto da diferena quanto da identidade em sua historicidade. O autor defende tambm a necessidade de uma negociao cultural que se d num territrio contestado, marcado pela histria, pelo poder, pela cultura e pela ideologia. Em sua defesa, McLaren enfatiza o papel da linguagem na construo dos significados, a cultura como um campo discursivo mltiplo e o importante papel da escola na construo da identidade dos sujeitos. No Brasil, a discusso sobre multiculturalismo no campo do Currculo se faz, prioritariamente, na vertente do multiculturalismo crtico, e, como McLaren, Antnio Flvio Moreira e Vera Candau (2008) defendem uma concepo de currculo multicultural. Para os autores, a sociedade multicultural, e, no seu interior, h um conjunto de culturas em disputa, e as relaes de fora entre elas so desiguais. Em sintonia com McLaren (1997), que defende as culturas como produes discursivas e ao mesmo tempo reais, Moreira e Candau trazem a ideia das culturas como construes histricas. Candau inverte a polarizao entre universalismo e relativismo, argumentando que a educao somente poder ser direito universal de todos na medida em que reconhea e valorize as culturas particulares (LOPES e MACEDO, 2011, p. 193). No basta conhecer as diferenas culturais, preciso reconhec-las e valoriz-las nos discursos de empoderamento dos sujeitos e de suas culturas no ambiente da escola e de empoderamento social de grupos minoritrios, sem os quais no h mudanas profundas.

  • A proliferao de culturas minoritrias um efeito diferenciador da globalizao e tambm uma das causas de maior visibilidade multicultural. Para Stuart Hall (1997), a centralidade da cultura advm da transformao das esferas - econmica, social, poltica e cultural - da sociedade e tem enorme impacto de transformao do cotidiano. A mudana de paradigma, no que tange produo do conhecimento, denominada, por Hall, virada cultural - essa nova compreenso da linguagem coloca a cultura no centro da cena, pois esses sistemas de significao que possibilitam construir sentidos so a prpria cultura.

    Giroux (2000) identifica a cultura como capital poltico, na medida em que trata de uma fora pedaggica capaz de legitimar relaes e prticas sociais. Para o autor, a principal funo da escola a emancipao dos sujeitos e discute a prtica curricular como prtica cultural; em que, os professores so apresentados como trabalhadores culturais. A cultura um terreno contestado em que os sujeitos constroem suas relaes com um mundo. Trata-se de um espao de produo simblica que produz artefatos com grande potencial pedaggico, dentre os quais o autor destaca os filmes, os livros, os programas de TV, as tecnologias de informtica. Esses artefatos so como discursos culturais que visam regulao dos sujeitos e que precisam de ser criticados por uma pedagogia comprometida com a cidadania, capaz de explicitar os nexos desses discursos com o poder e as suas consequncias materiais na manuteno das desigualdades sociais. Essa pedagogia performtica no sentido de que envolve a ao poltica de interveno de professores e intelectuais eticamente comprometidos com a responsabilidade social, exercendo um trabalho colaborativo que vise reconstruo dos espaos culturais e as esferas pblicas colonizadas por perspectivas liberais. Giroux defende a ideia de que a cultura regula e regulada pelos sujeitos.

    A linguagem institui a diferena e cmplice das relaes de poder. Esse o ncleo central do pensamento ps-estruturalista, em que saber e poder esto atavicamente interligados na instituio do mundo real. Esse mundo real no natural, mas simblico. Seus sentidos e sistemas de significao so construdos pela linguagem, pelo discurso, que a prpria cultura. O currculo, assim como outras prticas, atribui significados, apresenta um discurso que constri sentidos, portanto, ele uma prtica cultural.

    Nessa perspectiva, no h cultura pura; a cultura sempre hbrida, com novas criaes a partir de fragmentos de significaes, independentemente de qualquer interao entre os grupos sociais. As culturas so sempre misturas de outras misturas, num movimento incessante de produo de sentidos que se utiliza de fragmentos de sentidos deslocados no tempo e no espao, como um fluxo de transformaes.

  • V - CONSIDERAES FINAIS

    No campo do Currculo, a discusso multicultural aponta para conceitos como dilogo e negociao entre culturas preexistentes, entendidas como contedos curriculares e que poderiam ser reescritas em outras bases. Partindo da ideia ps-estrutural de que os currculos so cultura e, portanto, sistemas de significaes e representaes, eles trazem a marca colonial da regulao. Esses sistemas pretendem direcionar os sujeitos, criar efeitos de poder, e o fazem; no entanto, como cultura, so tambm fundamentalmente hbridos, ambivalentes e, por isso, no so capazes da regulao total, em que outros sentidos sempre irrompem. Entender as mltiplas determinaes de um fenmeno social, incluindo currculo, conhecimento, cultura, mas tambm, sociedade, economia, poltica e Estado, significa entender como tudo isso significado, e essa significao dada por um discurso que estabelece regras de produo de sentido. A estruturao de um discurso no faz cessar o movimento das diferenas, das possibilidades e dos novos sentidos imprevistos. O discurso tenta produzir fechamentos de significao, mas ele provisrio, pois o campo da discursividade sempre abre para o fluxo de criao e articulao de novos sentidos.

    VI - REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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