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CURSO DE TEOLOGIA DA FACULDADE SÃO BENTO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO MARIA DA PENHA DA CRUZ TRAMA, COSTURA E DETALHES A CONSTRUÇÃO DO DISCIPULADO DE MARIA A PARTIR DOS APARATOS NARRATIVOS LUCANOS EM LC 1, 26-38 SÃO PAULO 2018

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CURSO DE TEOLOGIA DA FACULDADE SÃO BENTO

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

MARIA DA PENHA DA CRUZ

TRAMA, COSTURA E DETALHES

A CONSTRUÇÃO DO DISCIPULADO DE MARIA A PARTIR DOS APARATOS

NARRATIVOS LUCANOS EM LC 1, 26-38

SÃO PAULO

2018

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MARIA DA PENHA DA CRUZ

TRAMA, COSTURA E DETALHES

A CONSTRUÇÃO DO DISCIPULADO DE MARIA A PARTIR DOS APARATOS

NARRATIVOS LUCANOS EM LC 1, 26-38

SÃO PAULO

2018

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Teologia da

Faculdade de São Bento para obtenção do

título de Bacharelado em Teologia. Orientador: Prof Ms. Domingos Zamagna

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TERMO DE APROVAÇÃO

MARIA DA PENHA DA CRUZ

TRAMA, COSTURA E DETALHES

A CONSTRUÇÃO DO DISCIPULADO DE MARIA A PARTIR DOS APARATOS

NARRATIVOS LUCANOS EM LC 1, 26-38

Trabalho defendido em 18 /04 / 2018, como requisito parcial para obtenção do grau de

Graduado em Teologia pela Faculdade de São Bento. Tendo como membros da banca

examinadora:

_____________________________________________________________

Prof. Dr. Domingos Zamagna – FSB (Orientador)

_____________________________________________________________

_____________________________________________________________

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AGRADECIMENTOS

AGRADECIMENTO

Minha eterna gratidão a Deus pelo curso de Teologia, bendito curso, que me foi dado

em meio a um mar de turbulência na Congregação. Estudar Teologia me ajudou a passar por

ela, sem sucumbir.

Gratidão à Congregação das Pequenas Missionárias de Maria Imaculada a qual

carinhosa e respeitosamente estou afiliada.

Agradeço ao dom Abade Matias Tolentino, pois sem sua ajuda, ficaria impossível a

realização desse sonho.

Gratidão eterna ao professor Júlio que iniciou como orientador desse trabalho e muito

me incentivou a prosseguir no tema.

Gratidão à Nancy e Alexandre são mais que competentes colaboradores, são pessoas

cheias de bondade e luz. São servidores competentes.

Ao professor e meu orientador Prof. Dr. Domingos Zamagna pelo seu testemunho

brilhante de cristão autêntico, dado ao longo do curso, pela leveza que a fé lhe confere, pela

tranquilidade animadora que me deu ao me assumir, em lugar do professor Júlio, como sua

orientanda e pelo grande respeito que sempre me consagrou, eterna gratidão e admiração.

Agradeço a cada um dos professores do Departamento de Teologia da Faculdade de

São Bento pela inestimável ajuda recebida de cada um através das aulas ministradas, dos

diálogos e escutas. São mestres com luz própria que me fizeram melhor, após o que me

acrescentaram em conhecimentos.

Minha eterna gratidão ao Zilton, com quem caminhei, ao longo da Teologia, pela

incomparável ajuda e pelo que adicionou na linguagem e conteúdo desse trabalho.

Minha gratidão à banca examinadora pela revisão deste trabalho e sugestões valiosas.

Em especial aos professor Domingos Zamagna por aceitar com sua habitual delicadeza

orientar-me nesse trabalho de conclusão.

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DEDICATÓRIA

“Maria não podia acreditar que a planície

tivesse dado nascimento à montanha. Na

candura do seu coração não via que a crista do

monte é o caminho para o monte”.

Kahlil Gibran

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RESUMO

Esta pesquisa teve por intento meditar sobre o discipulado de Maria de Nazaré, conforme a

perícope da anunciação (Lc 1,26-38), e exaltar o Fiat, pois esta jovem viveu o núcleo do

chamado que é o seguimento perfeito de Jesus. Em decorrência de sua resposta a Deus ela se

tornou a mãe do Messias esperado, mas com o chamamento ao discipulado do Filho ela

passou do privilégio de mãe do Filho de Deus ao de discípula, sendo assim incorporada à

comunidade dos seguidores de Jesus. Ela realizou em si o ideal do discípulo nos moldes

exigidos por Jesus. O tema do discipulado em Lucas ganha feições e relevância e, além da

ênfase que ele confere ao perfil do seguidor, atesta que em Maria de Nazaré tem-se o modelo

perfeito de discípula. Este trabalho busca pesquisar, a partir do texto lucano, os fundamentos

bíblicos e teológicos do discipulado, ideal perfeitamente concretizado por Maria de Nazaré.

Por isso pôde-se propô-la como exemplo acabado para o seguidor de Jesus em todos os

tempos.

Palavras-Chave: Lucas. Maria. Discipulado. Anunciação. Evangelho.

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ABSTRACT

This research is intended to meditate on the discipleship of Mary of Nazareth, according to

the narrative of the annunciation (Lc 1: 26-38), and to exalt the fiat, because this young

woman lived the core of the call that is the perfect following of Jesus. As a result of her

response to God, she became the mother of the hoped Messiah, but with the call to the

discipleship of the Son she went from the privilege of mother of the Son of God to that of

disciple, being thus incorporated into the community of Jesus’ followers. She realized in

herself the ideal of the disciple in the mold required by Jesus. The theme of the discipleship in

Luke has its features and relevance, and besides the emphasis it places on the profile of the

follower, it testifies that in Mary of Nazareth one has the perfect discipleship model. This

work seeks to explore, from the Lucan text, the biblical and theological foundations of the

discipleship, an ideal perfectly fulfilled by Mary of Nazareth. For this reason it could be

proposed as a finished example for the follower of Jesus at all times.

Keywords: Lucas. Maria. Discipleship. Annunciation. Gospel.

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SUMÁRIO

1 Introdução .................................................................................................................................... 1

2 Objetivo ....................................................................................................................................... 3

2.1 Objetivo Geral ............................................................................................................................ 3

2.2 Objetivos Específicos ................................................................................................................. 3

3 Metodologia ................................................................................................................................. 4

4 Revisão da literatura..................................................................................................................... 5

4.1 Apresentação do evangelho de Lucas ......................................................................................... 5

4.2 Contextualização da obra ........................................................................................................... 8

4.3 A autoria ................................................................................... Erro! Indicador não definido.0

4.4 Data e local da obra ................................................................... Erro! Indicador não definido.2

4.5 Destinatário ................................................................................. Erro! Indicador não definido.

4.6 Conteúdo e plano......................................................................... Erro! Indicador não definido.

4.7 Elementos da estrutura literária ................................................................................................ 18

4.8 Teologia ...................................................................................... Erro! Indicador não definido.

5 O discipulado: seu desenvolvimento e a apropriação lucana........ Erro! Indicador não definido.4

5.1 Etimologia da palavra “discípulo” ............................................. Erro! Indicador não definido.4

5.2 Discipulado no Antigo Testamento ........................................... Erro! Indicador não definido.5

5.3 Discipulado no Novo Testamento .............................................. Erro! Indicador não definido.6

5.4 O discipulado em Lucas ........................................................................................................... 29

5.5 A compreensão contemporânea do discipulado ........................... Erro! Indicador não definido.

6 Maria: uma perspectiva teológico-bíblica e seu modelo de discipulado ......... Erro! Indicador não

definido.1

6.1 O perfil de Maria em Lucas ....................................................... Erro! Indicador não definido.1

6.2 Discipulado mariano: um itinerário místico ............................... Erro! Indicador não definido.2

6.3 Kénosis no caminho da fé de Maria ........................................... Erro! Indicador não definido.4

6.4 Maria, a primeira discípula cristã............................................... Erro! Indicador não definido.5

7 A Perícope da anunciação (Lc 1,26-38): uma análise a partir da experiência mariana de

discipulado.......................................................................................... Erro! Indicador não definido.7

7.1 Contextualizando a perícope...................................................... Erro! Indicador não definido.9

7.2 Análise da perícope (Lc 1,26-38).............................................................................................. 39

7.2.1 Anunciação: encontro decisivo de Maria com a Palavra de Deus(Lc 1,26-30) .............. Erro!

Indicador não definido.

7.2.2 Anunciação: esclarecimento do Anjo a Maria (Lc 1, 30-33) Erro! Indicador não definido.3

7.2.3 Resposta de Maria (Lc 1,34-38) .......................................... Erro! Indicador não definido.6

7.3 Maria, perfeita discípula ........................................................................................................... 52

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8 Considerações finais ................................................................... Erro! Indicador não definido.6

9 Referências Bibliográficas ......................................................................................................... 58

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo analisar o discipulado de Maria de Nazaré no

texto de Lc 1,26-38, conhecido como a “Anunciação do Senhor”. Sendo assim, esta perícope

constitui o objeto material deste estudo; por sua vez, o objeto formal é o campo da Teologia

bíblica.

Essa seleção de versículos coloca o leitor diante de Maria de Nazaré, quando chamada

a um seguimento sem reservas, bem como diante do desfecho – feliz – dessa mútua entrega: a

de Deus a Maria, a de Maria a Deus.

Pretende-se, portanto, com este trabalho, compreender como o Senhor atua no

discípulo, que se compromete, de forma consciente e responsável, com o projeto salvífico.

Para tanto, apropriamo-nos da leitura de Lc 1,26-38, com a qual se pode concluir que a

Palavra de Deus dirigida a Maria constitui um chamado pessoal específico, que a conforma

em um modelo de discípula para todo aquele que for alcançado pelo chamado divino.

Esse trabalho intenta, assim, conhecer de forma mais aprofundada o alcance do “sim”

de Maria; e, também, compreender se ele pode ser entendido como um modelo para a

investigação da história vocacional de cada indivíduo humano.

Desse modo, pretende-se uma reflexão sobre o caminho discipular de Maria de

Nazaré. Além disso, está prenhe do desejo de ser uma via de aprofundamento na caminhada

de fé e despojamento de Maria. Quer saber e mostrar que ela não era detentora de uma fé

pronta e, sim, de uma fé em construção.

Compreende-se que a perícope em análise ao revelar seus convites, silêncios,

perguntas e explicações, oferece elementos suficientes para sustentar e aclarar esses dois

elementos de interesse, a saber, o discipulado mariano e sua fé em processo.

Nos dias de hoje, em especial, Maria tem sido lida como referência de discipulado.

Assim, qualquer reflexão sobre o tema recai, quase de imediato, sobre sua pessoa. Ela é

chamada discípula-modelo, a mais perfeita, e é vista como a guia e a mestra no discipulado.

Ela seguiu seu Filho, Jesus, com fé qualificada. Viveu em profunda concordância com o

querer de Deus, que se tornou seu, por meio do “sim”.

Tendo essas questões iniciais em vista, buscamos, ainda, ao longo do trabalho,

demonstrar: a) que a adesão ao discipulado era práxis rotineira do Povo de Deus, a qual

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adquire diferentes sentidos e exigências com a ação de Maria. O discipulado de Jesus, a que

Maria aderiu, requer assimilação progressiva e contínua dos ensinamentos do Mestre, bem

como a configuração ele; b) que tal adesão supõe submissão contínua e amorosa ao querer do

Cristo; e, c) que se dá ênfase à resposta favorável de Maria, a qual parece se transformar em

fonte de profunda e duradoura alegria para muitos.

Depois desta introdução, o primeiro capítulo tratará de questões preliminares, tais

como: apresentação e contextualização da narrativa de Lucas, a fonte principal de

investigação dessa pesquisa. Serão apresentados dados sobre a autoria, datação da

composição, local de produção, destinatário, conteúdo, plano composicional e as

características literário-teológicas dessa obra magnifica que é o terceiro evangelho.

No segundo capítulo será abordada a questão do discipulado. Pretende-se destacar

desde a etimologia do vocábulo até como este conceito faz-se presente no Antigo Testamento

e é apropriado pela tradição do texto de Lucas.

O terceiro capítulo almeja destacar as razões que fizeram de Maria de Nazaré uma

discípula perfeita. Para tanto pesquisou-se sobre o ponto de vista de Lucas sobre Maria, seu

itinerário místico e kénosis no caminho da fé. Faz-se necessário reconhecer que a notabilidade

mariana no discipulado é fundamental para o entendimento da análise da perícope em

questão.

O quarto capítulo está dedicado à análise do excerto lucano proposto. Precedem a

investigação do texto, breves apontamentos sobre o itinerário místico de Maria e sua kénosis

no caminho da fé, vivências fortes que a dispuseram aberta para o agir sereno e decisivo de

Deus em sua vida.

Com o material exegético levantado pela análise do excerto lucano, podem-se

apresentar as considerações finais deste trabalho, confirmando que Maria de Nazaré

impregna-se com os qualificativos que descrevem um discípulo em perfeição. Por isso, é

modelo acabado para os discípulos de todos os tempos.

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2 OBJETIVO

2.1 OBJETIVO GERAL

A partir daquilo que foi exposto na introdução deste trabalho, pode-se sintetizar como

seu objetivo fundamental, o seguinte:

Realizar um estudo sobre o discipulado de Maria, a partir da análise dos aparatos

narrativos encontrados na perícope da Anunciação, em Lc 1, 26-38.

2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Desdobram-se, por sua vez, desse objetivo geral, algumas pretensões específicas para

essa investigação; as quais, também, já foram tangenciadas no texto de introdução. Contudo,

são apresentadas sistematicamente, a seguir:

Realizar uma apresentação geral do Evangelho de Lucas;

Explorar o sentido e a trajetória do conceito de “discipulado”;

Apontar Maria de Nazaré como perfeita discípula, segundo a perícope da

Anunciação, em Lc 1, 26-38.

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3 METODOLOGIA

Compreendemos que a fim de levar a cabo a realização da pesquisa esperada e,

também, alcançar, de forma exitosa, os objetivos propostos, temos de desenvolver com este

trabalho um estudo, inicialmente, de revisão literária do tipo qualitativo e descritivo.

Essa experiência de investigação de fontes, como orientação metodológica, foi,

primordialmente, realizada a partir de uma seleção de registros relevantes sobre o discipulado

de Maria de Nazaré, que tomam como base a perícope da Anunciação, encontrada em Lc 1,

26-38.

Nossa fonte bibliográfica essencial é a Bíblia Sagrada, na qual se encontra registrado o

excerto lucano. Além dessa referência, buscamos suporte em comentaristas desse texto bíblico

e, também, em artigos – teológicos – que abordam o tema proposto. Para essas últimas fontes,

foram privilegiados os textos publicados nos últimos cinco anos.

Desse modo, além do crivo da data de publicação, de forma geral, assumiu-se como

critério de inclusão para as fontes a explicita referência ao Evangelho de Lucas e o

discipulado de Maria em Lucas. Em contrapartida, o critério de exclusão foi a não

correspondência temática ao discipulado de Maria, segundo a perícope da Anunciação narrada

conforme o texto de lucano.

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4 REVISÃO DA LITERATURA

4.1 APRESENTAÇÃO DO EVANGELHO DE LUCAS

Não há como negar: o evangelho de Lucas é peculiar. Dentre os textos sinóticos, a

narrativa lucana evidencia mais de quatrocentos versículos exclusivos. Além disso, enquanto

os evangelhos de Marcos e Mateus, basicamente, concentram-se na vida de Jesus, o autor

lucano divide seu trabalho em dois volumes: o terceiro evangelho e os Atos dos Apóstolos.

Ou seja, esse complexo narrativo trata não apenas sobre o tempo de Jesus, mas, também,

interessa-se pelos primórdios da comunidade dos cristãos.

Vale notar, contudo, que em nenhum manuscrito conhecido encontra-se o texto de

Atos dos Apóstolos logo depois do terceiro evangelho. Historicamente, tem-se que, no

contexto do século II EC, para se compor um primeiro compêndio canônico, o evangelho de

Lucas foi separado do texto de Atos e anexado aos três outros evangelhos para construir,

assim, um primeiro corpus canônico. Se por um lado essa medida auxiliou a leitura sinótica,

por outro, criou uma descontinuidade literária, rompendo com a pretendida unidade almejada

pelo autor do complexo Evangelho-Atos (cf. AUNEAU, 1986, p. 204).

É pertinente destacar que o autor lucano dirige-se não apenas aos cristãos, mas leva

em consideração, também, os leitores não-cristianizados. A boa-nova lucana tem, à vista

disso, um enfoque universalizante.

Para Auneau (1986), ainda que se ajuste aos esquemas de Mateus e de Marcos, dos

quais é textual e narrativamente dependente (ver figura 1), o texto de Lucas tem um caráter

missionário e apologético e, assim, parece aproximar-se mais das obras dos Padres da Igreja

do século II.

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Figura 1: Relação entre os evangelhos sinóticos. Canção Nova, 2017.

Graças a um evidente domínio do idioma grego, que se faz notar na riqueza do

vocabulário, o autor lucano pôde polir o seu texto com especial esmero. Desse modo, em sua

obra, o terceiro evangelista, mesmo naquilo que aproveita da tradição de Marcos e Mateus,

constrói um texto elegante, o qual revela tanto uma autoria culta, como um público

pretendido, que transitaria bem por um meio letrado.

O evangelho de Lucas, também, é o mais extenso dos quatro – com mais de mil e cem

palavras gregas a mais que o texto mateano – mesmo tendo um número menor de capítulos

(24 capítulos) do que esse outro texto evangélico (28 capítulos).1

Como percebemos, pela sua dependência textual, o texto lucano não é o primeiro

evangelho. Lucas acolhe esse modelo literário de Marcos. Mesmo assim, Lucas declara,

modestamente, na introdução formal de seus texto (Lc 1, 1-4), que fará um relato de tudo que

se passou; ou seja, o autor lucano não descreve seu projeto literário como a narrativa da “boa

nova”, o que Marcos faz desde o início de seu texto.

De fato, o autor lucano é o mais grego dos autores do Novo Testamento. Maneja com

elegância a língua; preocupa-se em fazer-se compreender pelos ouvintes pouco afeitos às

tradições judaicas. Diferentemente dos outros evangelistas, o autor do terceiro evangelho

1 Para mais informações sobe estatísticas textuais neotestamentárias, conferir Felix Just, SJ. New Testament

Statistics. Disponível em: http://catholic-resources.org/Bible/NT-Statistics-Greek.htm. Acesso em 20/12/2017.

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manifesta-se pessoalmente no prólogo da obra e sob a garantia de um “nós” no livro dos Atos

dos Apóstolos.

Depois do Evangelho de Marcos, como se pode ver, abaixo, na figura 2, uma fonte

importante para Lucas foi uma primitiva coleção das palavras e atos de Jesus, originalmente,

em Aramaico (identificada como “Q”).

Figura 2: Hipótese das duas fontes. Cunha, C. 2012.

Alberto Casalegno (2003) confirma esta informação, ao postular que o evangelho

lucano depende de Marcos e da fonte Q. não obstante disponibilize, em sua obra, também

fontes próprias. É com grande habilidade que ele reelabora o material à sua disposição,

imprimindo nele seu cunho pessoal, seu vocabulário e seu estilo, o que garante ao texto final

intensa absorção das fontes.

A linguagem do evangelho de Lucas, nesse sentido, fica a poucos passos da prosa

clássica do século V e VI AEC. A sintaxe de lucana é bastante requintada, afastando esse

texto daquele do evangelho segundo Marcos2.

A obra, a qual se fez referência anteriormente (AUNEAU, 1986) afirma que a

descoberta, no século XIX, de papiros antigos promoveu novos conhecimentos do grego

chamado koiné. Uma série de estudos mostrou a característica popular e cotidiana da

2 cf. AUNEAU, 1986, p. 212.

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linguagem dos Evangelhos. Lucas, excepcionalmente, usou uma linguagem mais próxima das

produções literárias, renunciando a essas ênfases populares. O texto lucano evita o trivial e/ou

chocante.

Sendo assim, o estilo em Lucas é reconhecidamente superior ao dos outros

evangelistas: ele não hesita em polir a linguagem de Marcos. Corrigi-o pela convicção de que

a dignidade daquilo que se está narrando deveria corresponder a um mínimo de decoro na

linguagem. Ele evita colocar nos lábios de Jesus expressões vulgares. Paga o preço dessa

correção, com a perda de ingenuidade, de espontaneidade e de cor local. (cf. AUNEAU, 1986,

p. 212-213).

Um fator que se tornou, também, um diferencial para Lucas é o de ter origem pagã,

esse distintivo, somado às suas frequentes viagens, eliminaram do texto preconceitos, de

modo que escreveu com simpatia para convertidos oriundos do paganismo. Seus escritos

revelam a mão criadora de um artista delicado e sutil que, todavia, respeitou suas fontes e

permaneceu próximo do ideal da objetividade da narrativa histórica (cf. STUHLMUELLER.

1975, p.6).

Lucas, portanto, introduziu o Cristianismo no mundo das letras. Para São Jerônimo,

sempre que se lê o terceiro evangelho “a sua medicina jorra para refrescar o coração do

cristão” 3.

4.2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA OBRA

Orofino (2013) aponta que o texto do evangelho lucano, sobretudo, é de um mundo

urbano. O ambiente urbano – é verdade – difere muito daquela da vida rural. E vale

considerar que a maior parte do texto bíblico vétero-testamentário foi elaborado no contexto

da ruralidade e, portanto, posiciona-se de maneira contrária à cidade, por ser considerada

Sodoma, Gomorra, Babel, deturpação da linguagem, é, por fim, confusão. O antagonismo

bíblico (vétero-testamentário, na maior medida) em relação ao ambiente urbano sustenta-se

sobre o fato de ele tender a conduzir as pessoas a quebrarem os laços de solidariedade; isto é,

por ele instigar a individualidade excessiva.

3São Jerônimo apud STUHLMUELLER, 1975, p.9.

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O Evangelho de Lucas, portanto, elaborado para os cristãos implantados em um

contexto urbano, implica na necessidade, por parte do autor, de uma transposição

hermenêutica do conteúdo da mensagem de Jesus, que, fundamentalmente, mobilizava a

língua aramaica da zona rural da Palestina, no contexto político e religioso judaico; para o

contexto do judaísmo das cidades agregado às comunidades pagãs de cultura greco-latina.

A boa-nova lucana, no século primeiro da Era Comum, parece propor uma pastoral

urbana, que transpõe para o mundo greco-romano, de cultura urbana, a espiritualidade que

Jesus viveu no meio rural, na Galiléia4.

O texto lucano, então, assume a tarefa de fortalecer as comunidades do mundo urbano

e, também, de dar força às pessoas, que fizeram a opção pelo projeto de Jesus ressuscitado,

em um mundo tremendamente agressivo, que é a cidade greco-romana do primeiro século.

Para Casalegno (2013) em meados dos anos 50 EC, a comunidade, a qual se destina a

mensagem do evangelho de Lucas encontrava-se em um momento de particular dificuldade e

perigo. Corria, assim, o risco de não preservar a integralidade da adesão à fé na pessoa e ação

de Jesus Cristo. O autor lucano, portanto, escreve seu texto evangélico tendo em vista um

momento crítico, em que o evento da fé em Jesus corria sério risco de desmoronar.

As comunidades judaico-cristãs, nesse contexto de relação com o universo helênico,

estavam ameaçadas de reduzir a figura messiânica de Jesus a um mestre de máximas eternas,

a um mero rabino, ainda que gabaritado (cf. OROFINO, 2013.p. 32).

A iniciativa marcana vem como um auxílio para superar esse impasse. Desenvolvendo

o gênero literário da “boa nova”, a partir das múltiplas fontes (orais e escritas) que narravam a

experiência de Jesus de Nazaré, realiza uma síntese capaz de manter uma estreita ligação entre

a pessoa histórica de Jesus e o que ele disse e fez em seu ministério, unificando os vários

aspectos de sua personalidade. Lucas segue as pegadas do modelo literário de Marcos, embora

não se prive de desenvolver um enfoque bastante específico ao apresentar as palavras e os

feitos de Jesus.

O texto evangélico de Lucas parece pretender ajudar os fiéis a verificar a solidez do

ensinamento recebido para se fortalecerem na fé. É um serviço vital, num momento de

dificuldade da Igreja, quando a genuinidade da vida da comunidade cristã começa a ser

ameaçada pelas primeiras divergências quanto as elaborações teológicas acerca do evento e da

4cf. OROFINO, 2013, p.13-14.

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pessoa de Jesus Cristo. Lucas escreve para confirmar os fiéis na fé. Seu objetivo principal,

então, é teológico-catequético (cf. CASALEGNO, 2013, 42 e 44).

Foi a partir desse contexto, portanto, que a peça literário-teológica lucana foi montada

e é a partir dela que almejamos compreender a Maria de Nazaré e seu discipulado.

4.3 A AUTORIA

A notícia mais antiga e certa, prescindindo daquela incompleta do cânon Muratori,

sobre a autoria do terceiro Evangelho, remonta a Irineu, quem faz de “Lucas” o companheiro

fiel do apóstolo Paulo na evangelização do mundo greco-romano. Um traço dessa mesma

aproximação colaborativa entre um certo “Lucas” e o apóstolo Paulo é, também, encontrada

nas chamadas seções-nós dos Atos dos Apóstolos, (At 16,10-17,21,1-18) em que a figura

autoral do prólogo dos textos do complexo Lucas-Atos aparece, também, contemporâneo e

presente nos fatos narrados5.

François Bovon (1986) dá a entender, por sua vez, que a autoria do terceiro evangelho

esteve a cabo de um homem da segunda ou terceira geração de cristãos, de língua materna

grega, originário de Antioquia. Nessa perspectiva, o autor de Lucas-Atos seria um cristão de

orientação paulina, mais preocupado com o aspecto missionário da Igreja do que com a sua

organização; era, como atestam as referências intratextuais, um razoável conhecedor da Bíblia

grega na tradução dos Setenta, porém leitor mais assíduo das profecias e dos salmos do que da

Lei; assim, parece mais um gentio-cristão, que na escola dos primeiros teólogos, dedicou-se a

exegese cristológica da Escritura.

Desde essa perspectiva, portanto, o autor lucano é identificado como um homem de

posição social culta; simultaneamente preocupado em facilitar a conversão das pessoas de seu

meio e de não lhes esconder as renúncias que a fé impõe. O autor está pouco a par da

geografia da Palestina e dos usos judaicos, mas bem à vontade com o ambiente da bacia do

mar Egeu6.

Lucas é, nesse sentido, identificado com um historiador e escritor, que conduziu

cuidadosa pesquisa, redigindo uma obra que pudesse acarretar em adesão, por parte de seus

5cf. MARCONCINI, 2012, p. 149. 6cf. BOVON, 1986, p. 281.

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leitores, a fé em Jesus como o messias. Pode-se afirmar, desse modo, que o que moveu o

autor a escrever foi, primordialmente, sua preocupação pastoral.

Conforme Marconcini (2012), a partir do século IV EC, vem-se conjecturar que

“Lucas” pode ser considerado um dos 72 discípulos (cf. Lc 10,1) e, portanto, uma testemunha

direta do que Jesus fez e ensinou. Para essas especulações, “Lucas” é, também, identificado

com o discípulo de Emaús, cujo nome não é mencionado (cf. Lc 24, 13-14).

Essas elucubrações, que apontam para o testemunho direto do autor do terceiro

evangelho, parecem contradizer aquilo que se afirma no próprio prólogo da peça literária,

quando se aponta que o autor não foi testemunha ocular daquilo que Jesus disse e fez (Lc, 1,1-

2). Ele escreve a partir de testemunhas oculares que encontrou em sua vida (Lc 1,2-4). (cf.

NEVES, 2002, p. 314).

Entre as informações quanto a autoria, pode-se afirmar, com base na estrutura interna

do terceiro evangelho, seguramente, que ele pertence a uma comunidade pagão-cristã. Tal

proposição fundamenta-se em recorrentes peculiaridades linguísticas encontradas no texto e

sobre um constante distanciamento dos costumes e hábitos judeu-palestinos (cf.

MARCONCINI, 2012, p.150).

A tradição da Igreja, a partir do ano 200 EC, é unânime em atribuir o terceiro

Evangelho e os Atos dos Apóstolos a um certo “Lucas”. Em suas duas primeiras cartas,

Clemente (c. 90 EC) alude a ele. Justino (c.160 EC), em seus diálogos, faz referências a Lucas

como tendo escrito as memórias do Senhor e afirma, também, que ele foi companheiro de

Paulo. O cânon de Muratori (c.170-180 EC) atribui o terceiro Evangelho a Lucas, médico e

companheiro de Paulo. O mesmo escreveu Irineu (c.175-195 EC) no seu Adversus Haereses,

referindo-se, também, à prova das seções-nós. Outros dados, indo na mesma direção, são

fornecidos pelo cânon antimarcionita (c.175 EC), por Tertuliano (séc. III EC) e por Eusébio

(séc IV EC), que afirmam que Lucas nasceu em Antioquia, era médico, celibatário, escreveu

na Acaia e morreu na Beócia (cf. NEVES, 2002, p. 315).

Isso posto, pode-se conformar um “Lucas”, que foi um homem fortemente

sensibilizado pelas motivações a envolver a pessoa e a vida de Maria de Nazaré. Ele deixou-

se sensibilizar, também, pela humildade, pela paciência e pela mansidão de Jesus. Comoveu-

o, profundamente, os vestígios de misericórdia nas ações do Nazareno.

O autor lucano, conforme indica Larrañaga (1977), detectou e apreciou, melhor que

qualquer outro evangelista, a alma da mulher, e sua importância na vida melhor que nenhum

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outro evangelista. Pelas páginas do terceiro evangelho, vemos passar uma série multiforme de

mulheres: umas recebendo misericórdia; outras oferecendo hospitalidade; um grupo delas

expressando sua simpatia e solidariedade, quando Jesus peregrinava para a morte. Dentre

todas elas, sobressai Maria, com ar inconfundível de servidora e senhora.

O autor imediatamente citado afirmou que a “personalidade singular de Lucas é feita

de delicadeza e sensibilidade. É significativo que Paulo lhe dê uma adjetivação emocional:

“nosso querido médico”7. Asseverando também que Lucas tinha afinidade temperamental

muito de acordo com a personalidade de Maria. Na presença da obra desse evangelista, o

público encontra-se perante um narrador capaz de entrar em sintonia com Maria de Nazaré,

assim como de recolher não apenas feitos de sua vida, mas, também, seus impulsos.

Tendo isso em conta, não é de se estranhar que o autor lucano, entre os evangelistas,

tenha sido aquele que mais pintou a fisionomia humana do Redentor. É o biógrafo de Nossa

Senhora e da infância de Jesus. É o evangelista do Natal.

Pelo terceiro evangelho podemos descrever, também, o temperamento de seu autor:

homem conciliador, discreto, dono de si, minimizando ou omitindo expressões que poderiam

ferir algum leitor, quando isso não comprometia a fidelidade de sua narrativa.

4.4 DATA E LOCAL DA OBRA

Quanto à datação e o local de composição do texto lucano não há uma tradição segura.

Irineu, na mesma fonte já citada, afirma que esse evangelho foi escrito antes da morte e Paulo.

Jerônimo, por sua vez, baseando-se em Eusébio, situa-o depois da morte de Paulo. Alguns

críticos modernos defendem que a datação dessa obra deve situar-se por volta de 63 EC, ou

entre 63 e 70 EC. A maior parte dos especialistas, contudo, prefere uma data posterior ao ano

70 EC. Mas, há ainda uma corrente, com pouca probabilidade de veridicidade, situando a

composição dessa obra após os anos 90 EC8.

Um dos elementos intratextuais mais relevantes, no que concerne a datação do terceiro

evangelho, é o fato de o autor ter notícias da destruição de Jerusalém, mas não da perseguição

de Domiciano. Sendo assim, o texto parece revelar essa tensão crescente e, também, a rejeição

7LARRAÑAGA. 1977, p.11.

8cf. McKENZIE, 1983, p.556.

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próxima por parte da Sinagoga. Esses dados sugerem situar a data de composição entre os

anos 80 e 90 EC9.

Segundo a contribuição do teólogo Benito Marconcini (2012), pode-se assumir que

foi, provavelmente, por volta do ano 80 EC, que o autor lucano registrou seu Evangelho em

“uma cidade helenista, mais provavelmente na Grécia, sem que, contudo, se possa excluir a

Alexandria ou mesmo a Cesaréia” 10

. Na perspectiva do Pe. Marconcini são inaceitáveis as

datas mais antigas do que os anos 70 EC e as posteriores ao ano 95 EC.

Para Pagola (2012), o evangelho de Lucas foi escrito fora da Palestina. Segundo o

teólogo basto, provavelmente, a cidade de Roma, entre os anos 80 e 90 EC são o tempo e o

espaço de composição da obra lucana.

Tem-se que reconhecer, ainda, que há razões plausíveis para datar o Evangelho de

Lucas depois do de Mateus e, com toda certeza, depois do texto marcano. Essas relações

evidenciam-se, sobretudo, por conta das relações referenciais e dialógicas perceptíveis entre

os textos evangélicos sinóticos.

Adota-se, neste trabalho, portanto, a possibilidade de a escrita ter ocorrido entre os

anos 80 e 90 EC.

4.5 DESTINATÁRIO

A obra lucana, dedicada ao “excelentíssimo Teófilo” (Lc 1, 3), destina-se, segundo as

intenções do autor, a um amplo círculo de interlocutores; no entanto, as opções linguísticas e

temáticas do texto, caracterizam a sua audiência como minimamente instruída e falante do

grego.

Os enfoques temáticos e a teologia do autor de Lucas-Atos, desse modo, apontam para

uma comunidade, na qual a expectativa escatológica acha-se, sensivelmente, atenuada e, até

mesmo, correndo o risco de um retorno ao paganismo. Vê-se que o terceiro evangelho revela-

se menos preocupado com a Parusia, a segunda vinda de Jesus Cristo, e mais interessado em

um garantir uma narrativa que fortaleça a fé a partir de um relato ordenado dos eventos ao

redor da vida e ação de Jesus de Nazaré (Lc 1, 1-4) e dos sentidos que essas ações revelam11

.

9cf. Bíblia do Peregrino, Introdução ao Evangelho de Lucas.

10cf. MACONCINI, 2012, p. 150.

11STUHLMUELLER, 1975, p.7.

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Desse modo, tendo-se passado, aproximadamente, meio século da morte de Jesus, a

comunidade a quem o texto lucano dirige-se parece cansada de viver a vontade de Deus no

dia-a-dia. Parece uma comunidade que necessita de conversão.

O terceiro evangelho, nesse sentido, descreve a salvação como dom e caminho para a

conversão, ele destaca essa necessidade, especialmente, no bloco das parábolas, nos capítulos

13-16. Nelas insiste no binômio perdido-encontrado e sintetiza tanto a missão de Jesus,

quanto a descrição da audiência desta obra com a afirmação de que o “Filho do homem veio

procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10).

O terceiro evangelho, portanto, encontra-se dirigido a homens e mulheres cristãos,

para lhes fortalecer a fé. Destina-se à catequese e à formação permanente dos membros da

comunidade. A preocupação com a ordem e clareza de seu conteúdo, como visto, responde a

esse objetivo pastoral.

4.6 CONTEÚDO E PLANO

O texto lucano, como qualquer obra literária, tem sua estrutura e adequa-se a um

programa de gênero. Sendo assim, compreende-se que as narrativas evangélicas não são

simples coleções de ações e pregações de Jesus; mas, sim, verdadeiras ferramentas para a

transmissão das tradições das novas comunidades religiosas e, também, como instrumentos

para consolidação dessa nova fé recebida.

O autor do complexo Lucas-Atos preocupa-se com o conteúdo a transmitir, por isso,

buscou os temas doutrinais do seu Evangelho na semente da Palavra de Jesus. Ele, como

Maria, tinha-os meditado em seu coração (cf Lc 1, 3).

A inclinação mais literária do compositor do terceiro evangelho preveniu que o texto

se tornasse um tratado teológico sobre a natureza do Reino, como o que fora produzido por

Mateus; tampouco, a obra lucana seguiu o estilo litúrgico e solene de João.

Desse modo, o autor de Lucas procede retomando as grandes linhas de Marcos, com

algumas transposições ou omissões. Ele deslocou alguns episódios, ora por preocupação com

a clareza e a lógica, ora por influência de outras tradições. Aquilo que foi omitido, tem sua

razão de ser por despertar pouco interesse nos leitores de origem pagã12

.

12

cf. Bíblia de Jerusalém, 2000, Introdução ao Evangelho de Lucas.

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Isso posto, tem-se que reconhecer que o autor lucano almejou compor uma obra

estruturada e, narrativamente, organizada. No entanto, é certo que é complexo desenvolver

uma única forma de se compreender essa estruturação do texto evangélico lucano entre todos

os seus estudiosos.

Dentre as inúmeras possibilidades de estruturação do livro de Lucas, assim sendo,

adota-se, aqui, aquela proposta pela CNBB, (1998) que ao esquematizar a narrativa lucana,

deixa claro seu intento.

Essa diagramação da estrutura narrativa-textual do evangelho de Lucas não mostra

apenas um esquema de grandes etapas na história da salvação; mas, também, evidencia uma

ordem interna do texto.

Observa-se, a seguir, um quadro dessa organização estrutural do texto do terceiro

evangelho.

Quadro 1: Esquema estrutural do Evangelho Segundo Lucas.

1,1-4 1,5-2,52 3,1-4,13 4,14-9,50 9,51-19,27 19,28-

21,38

22,1-

23,56 24,1-53

Prólogo

Narrativa da

infância

Preparação

para o

ministério

público de

Jesus

Ministério

de Jesus

na Galileia

O relato da

viagem, a ida a

Jerusalém

O

ministério

de Jesus

em

Jerusalém

A

narrativa

da paixão

A narrativa

da

ressurreição

A

intenção

de Lucas

O

nascimento

e a infância

de João

Batista e de

Jesus

apresentados

num

paralelismo

João

Batista

como um

prelúdio

da atuação

pública de

Jesus.

Em Jesus,

Deus

visita e

liberta os

pobres.

O êxodo de

Jesus: uma

viagem

especificamente

lucana,

ocupando a

parte central do

Evangelho,

(9,51-18,14) à

qual é

acrescentada à

narrativa

sinótica da

viagem (18,15-

19,27)

Ministério

no Templo

e eventos

dos

últimos

dias da

vida

terrena de

Jesus.

O clímax

do êxodo

de Jesus,

no qual

ele inicia

a

ascensão

ao Pai.

A elevação

de Jesus ao

céu, a

promessa

do Espírito

Santo e a

missão dos

discípulos

de serem

testemunhas

de Jesus.

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A partir dessa visão geral, percebe-se que Lucas indica como objetivo do seu

evangelho organizar uma narração bem ordenada dos fatos ocorridos, dispondo-se a ajudar os

cristãos no processo de compreender a importância da caminhada que estão fazendo.

O autor lucano não apenas constrói uma narração sugestiva e cativante, mas sabe,

ainda, perseguir com método e clareza um plano, dentro do qual dispõe seu material. Ao

longo da narrativa, é possível, por isso, captar a intenção de Lucas, que é facilitar e mediar

para o leitor o contato com um mundo, uma cultura e uma língua diferentes, a saber, o

universo judaico.

Sendo assim, apresenta-se, em sequência, uma elaboração a partir do apresentado no

quadro 1 (acima). Nosso objetivo é destacar elementos fundamentais do conteúdo privilegiado

pelo autor lucano, a fim de termos subsídios suficientes para nossa posterior análise teológica

do discipulado mariano, no contexto dessa obra evangélica.

Fiel ao intento de oferecer uma narrativa ordenada dos fatos sucedidos a Jesus,

remontando às suas origens (históricas e teológicas), Lucas antepõe ao evangelho

propriamente dito, um “evangelho em miniatura”, o qual se chama tradicionalmente de

“evangelho da infância”.

A esse respeito, indica o teólogo e missionário claretiano Garcia Paredes que o

“evangelho da infância” é, de fato, “obra do evangelista, embora se servisse de algumas

fontes. Ele não foi somente o seu editor, mas também seu autor”13

.

Os capítulos 1-2, portanto, inspirando-se nos modelos literários do Antigo Testamento

e do ambiente judaico, apresentam uma síntese da fé cristã em Jesus – Messias, Filho de

Deus, Salvador e Senhor. Descalzo afirma, também, que os capítulos 1 e 2 são como um

tapete urdido com fios do Antigo Testamento14

.

Garcia Paredes (1997), já citado, reitera sobre os dois primeiros capítulos do texto de

Lucas que

na base dos relatos lucano da infância existem acontecimentos fundamentalmente

históricos. Nos capítulos primeiro e segundo testifica-se, além disso, e de maneira

preponderante, a confissão de fé da comunidade em Cristo, no qual todas as

promessas atingem sua realização15

.

13

cf. PAREDES, 1997, p.56. 14

Cf. DESCALZO, 1994, p.100. 15

cf. PAREDES, 1997, p.56.

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No segundo bloco narrativo (Lc 3,1-4,13), o texto tem o cuidado de concluir o

currículo de João Batista de forma que, quando Jesus aparece em cena, a missão do Batista

esteja completamente terminada. Com o profeta de Nazaré inicia-se, na perspectiva teológica

lucana, o novo tempo, o tempo definitivo da salvação, que fora anunciada e preparada pela lei

e os profetas.

Na sequência, o texto apresenta o ministério de Jesus na Galileia (Lc 4,14-9,50).

Nesse contexto, Jesus anuncia o cumprimento da salvação: “hoje se cumpre a promessa de

Deus” (Lc 4, 21). As atividades de Jesus, no ambiente galileano, exprimem-se como uma

sequência de encontros, de gestos de libertação, de instrução aos discípulos e ao povo. A

salvação trazida por Jesus, na perspectiva na narrativa do terceiro evangelho, segue o estilo da

ação divina no Antigo Testamento, que vai buscar os de fora, os proscritos e estrangeiros,

mesmo ao preço de causar escândalo e custar à vida.

Entre Lc 9,51 e 19,27, inicia-se um grande deslocamento no projeto narrativo de

Lucas, que levará Jesus ao centro da história da salvação: Jerusalém. A seção da “grande

viagem” é própria do autor lucano. Ele tomou como ponto de partida a menção da última

viagem de Jesus à capital, para criar, desde aí, uma moldura literária teológica para a

atividade redentora de Jesus de Nazaré.

Ressalta-se que a topografia desta viagem é muito vaga, pois não é o foco. Lucas não

pretende registrar um diário da jornada de Jesus, mas um quadro unitário dentro do qual pode

situar grande parte de seu material inédito, reunido desde as suas cuidadosas pesquisas.

A grande viagem, dessa maneira, torna-se um motivo teológico-espiritual. De fato, o

deslocamento de Jesus ao ter por meta Jerusalém, centro e símbolo do antigo povo de Deus,

coração de todas as expectativas e esperanças de Israel, revela-se como uma caminhada rumo

à morte para entrar na glória.

Jesus, na perspectiva lucana, então, é o Messias que deve cumprir o novo êxodo em

Jerusalém, isto é, deve realizar a passagem à glória por meio do sofrimento e da ignomínia da

cruz.

Após acompanhar Jesus na longa caminhada rumo a Jerusalém, o leitor foi sendo

preparado para captar o significado do último encontro de Jesus com a cidade. Na seção entre

Lc 19,28 e Lc 21,38, depara-se com um povo à espera da salvação prometida. Mas essa se

decidirá a partir de um último choque com os chefes e representantes do judaísmo oficial.

Assim, a visita do Messias torna-se julgamento histórico. É a ruptura da antiga história do

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povo de Deus, a fim de que o projeto de Deus possa continuar no novo povo. Ao passar por

esse trecho, entra-se na narrativa da paixão.

Lc 22,1-23,56 representa o clímax do êxodo de Jesus, no qual ele inicia a ascensão ao

Pai: aqui a originalidade de Lucas é ainda mais notável. Nesse bloco revelam-se duas grandes

habilidades, a saber, a fidelidade e a liberdade. A primeira permitiu ao autor respeitar as

grandes linhas da tradicional oral, que já se constituíra como fonte para os textos evangélicos;

enquanto a segunda, exprime a capacidade do autor lucano em trabalhar esse material a fim de

ressaltar sua postura teológica e, também, sua mensagem.

Na parcela final do terceiro evangelho (Lc 24,1-53), percebe-se a preocupação do

texto de Lucas em mostrar a continuidade entre o cumprimento da salvação na morte e

ressurreição de Jesus e seu prolongamento histórico no tempo da Igreja. Os relatos da

ressurreição, a visita ao sepulcro, a aparição aos discípulos de Emaús e a aparição aos onze

convergem para uma cena fundamental para a teologia lucana: o encargo da missão dos

apóstolos (Lc 24, 44-49).

Compreende-se que o texto lucano é, primordialmente, um relato teológico, dotado de

uma maneira de pensar sacramental, que detecta nos fatos históricos sua transparência

transcendente. Todo o conjunto do terceiro evangelho, portanto, pretende ressaltar a novidade

e grandeza da atividade messiânico-salvífica de Jesus de Nazaré.

4.7 ELEMENTOS DA ESTRUTURA LITERÁRIA

Tendo em vista esse arranjo dos conteúdos da narrativa lucano, pretende-se, nesta

seção, apresentar alguns elementos que compõem, tais quais centros, a estrutura literária do

terceiro evangelho.

Disporemos, então, esses pontos nucleares em forma de tópicos seguidos de breves

comentários.

Projeto literário

Esse projeto encontra-se sintetizado logo no prólogo do terceiro evangelho. Nele o

autor lucano reconhece enfaticamente os esforços de seus predecessores: “Visto que muitos já

tentaram compor uma narração…” (v.1a); também, as fontes utilizadas; indica o tema sobre o

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qual trabalharia “dos fatos que se cumpriram entre nós” (v.1b); e, a maneira como viria a

escrever.

Além disso, o prólogo afirma que a composição do texto dependeu de uma pesquisa

exaustiva e meticulosa; o que se vê explicitado em: “a mim também pareceu conveniente após

acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever-te de modo ordenado” (v.3).

Esse projeto, por fim, determina a própria audiência dessa peça narrativa, a saber,

Teófilo (v. 4), que ainda que tenha sido uma personagem real e individual, também,

caracterizou um tipo particular de público, o que já foi discutido previamente.

Intenção literária

O mesmo excerto discutido no tópico anterior (Lc 1, 1-4), já revela uma intenção

literária: procurar transpor as tradições orientais e, também, as próprias fontes

historiográficas, para um nível literário.

Intenção missionária e apologética

Essa ação literária, contudo, não se encerra em si mesma, isto é, não é unicamente

histórica. Há, por certo, uma intencionalidade missionária e apologética.

Aquilo que está sendo elaborado através da construção do texto lucano, ou seja, a

mensagem cristã e da comunidade de fé nascente, ilustra o vigor da missão, assinalando seus

sucessos.

Além disso, a estrutura interna do próprio texto pretende proclamar que a vida de Jesus

realiza as promessas da Escritura (veterotestamentária), revela a afeição de Deus pelo povo e

pelas nações desgarradas, e, por fim, oferece uma ocasião de retornar para o Deus vivo.

Fontes utilizadas

O evangelho de Lucas tem a sua disposição o Evangelho de Marcos, a fonte Q, isto é,

uma coletânea de ditos e feitos Jesus, oriunda da tradição oral. Essa seleção de palavras e atos

de Jesus, o autor lucano compartilha com o autor de Mateus.

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20

Uma fonte exclusiva do terceiro evangelho ficou conhecida como fonte L, isto é, fonte

lucana, pois representa o material exclusivo desse evangelho, que por volta de 35% do texto,

como já visto anteriormente da figura 1.

Lucas como testemunha

Como seus predecessores, o autor lucano não teve acesso direto aos acontecimentos,

que eles almejam narrar.

O conhecimento que o autor do terceiro evangelho carrega consigo é oriundo, ao

mesmo tempo, de um conjunto de testemunhas oculares e servos da palavra (cf. Lc 1, 2).

Desse modo, temos de situar na segunda, talvez mesmo, na terceira geração do da

comunidade cristã as fontes conhecidas pelo autor lucano.

Itinerário

O sentido amplo do texto do terceiro evangelho, como já apontado, organiza-se ao redor

do eixo da revelação de Cristo.

Em um primeiro sentido, essa revelação faz-se notar na apresentação dos momentos da

vida de Jesus de Nazaré, o que é uma estratégia herdada de Marcos.

No entanto, para além desse primeiro sentido, o texto lucano elabora os materiais

recebidos de forma a constituir outra camada de sentido para o seu texto. Desse modo,

fazendo uma seleção do material, por fim, organiza-o, revelando a partir da imagem da

viagem, por exemplo, uma percepção muito mais alargada da própria figura de Jesus.

Riqueza literária

A linguagem de Lucas, como já mostramos, é um grego bem trabalhado. Ele soube

traduzir toda a experiência místico-teológica do evento do Cristo para a cultura greco-latina

da época.

O autor do terceiro evangelho empregou um estilo acurado e uma sintaxe bem

estruturada. Manipulou, pode-se dizer, com desenvoltura o grego clássico. Vale notar que,

quando dá voz a Jesus, procura usar uma forma ainda mais polida do grego.

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21

Lucas tem sido equiparado aos grandes escritores de seu tempo – como Flávio Josefo16

e Políbio17

.

O autor lucano impressiona por alternar, em seus textos, páginas pitorescas e vivazes

com narrações áridas ou esquemáticas; momentos de envolvente poesia que desperta fortes

emoções religiosas e expressões improlíficas. Isso se deve não à sua inconstância e

volubilidade e, sim, ao fato de buscar, em muitos momentos, ser um transmissor fiel de uma

tradição, na qual soube intervir com sabedoria, respeito e espírito de artista.

Referências históricas

É de dar atenção à referência a personagens conhecidos e contemporâneos dos fatos

narrados, no corpo do terceiro evangelho: por exemplo, Augusto, Tibério, Pôncio Pilatos,

Filipe e os sumos sacerdotes Anás e Caifás.

Igualmente curioso, é o fato de o autor lucano registrar algumas datas, de forma

rigorosa. Por exemplo, ano quinze do império de Tibério César (3,1); “Jesus tinha cerca de

trinta anos”18

.

Como já se apontou, anteriormente, é digno de nota que diferentemente desses

recursos a dados históricos, o autor lucano não é um grande conhecedor da geografia e

paisagem palestinas, o que evidencia seu distanciamento em relação a essa região.

Justiça social

Lucas, mais do que Marcos e Mateus, narra Jesus expressando o amor de Deus pelos

desprezados deste mundo, tanto com atitudes, como com a sua mensagem.

O autor lucano é caracterizado por disponibilizar uma imagem de um Jesus de Nazaré

dado a expressar a sua simpatia pelos pecadores. Nesse pormenor, entra Maria de Nazaré,

representante de todas as mulheres desprezadas e minimizadas em sua época.

16

Flávio Josefo é considerado um dos maiores historiadores judeus de sua época. Além de escrever a História

dos Judeus e suas guerras, também produziu uma autobiografia, na qual se descreve como filho de Matias o

sacerdote judaico, nascido em Jerusalém, instruído pela Torá e adepto do farisaísmo. O seu testemunho é

importante, pois é provavelmente o único relato sobrevivente de uma testemunha ocular da destruição de

Jerusalém. 17Políbio, em grego Πολύβιος, foi um geógrafo e historiador da Grécia Antiga, famoso pela sua obra "Histórias",

cobrindo a história do mundo Mediterrâneo no período de 220 AEC. a 146 AEC. 18

MARCONCINI, 2012, p. 156

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22

4.8 TEOLOGIA

A teologia, que encontramos no terceiro evangelho, encrava suas raízes fortemente na

história, isto é, dialoga com seu tempo, lugar e circunstância.

Depois que o autor lucano conclui haver diligentemente investigado tudo, desde o

princípio, escrevendo seu relato, o seu texto deve ser chamado de o mais, candidamente,

teológico.

Observa-se que a obra de Lucas não traz as ideias que caracterizam a obra de Paulo,

considerado por alguns – como já vimos – seu companheiro e mestre. Ele apresenta uma

teologia em concordância com suas fontes, que são as tradições apostólicas e palestinenses.

Nesse sentido, sua teologia não é, radicalmente, diferente da de Mateus e de Marcos;

também, não se opõe a elas. São majoritariamente diferentes no que diz respeito à ênfase que

parecem dar a certos tópicos19

.

O autor do terceiro evangelho projeta sobre os acontecimentos da vida de Jesus a luz

do mistério da paixão-ressurreição. Dessa maneira, ao ligar esses dois momentos da

experiência do Nazareno, almeja mostrar que a vida, a morte e a ressurreição dele constitui

uma unidade completa.

A narrativa lucana conserva a tríplice predição da paixão que fazia parte da tradição

comum dos sinóticos. No entanto, é a única a apontar o evento da ascensão e, também, a usar

o título de “Senhor”, no sentido cristológico.

O texto lucano concebe Jesus como o Salvador tendo em vista uma perspectiva

universalista e, também, o desejo de apresentar aquele que era um elemento culturalmente

determinado, a saber, o “messias” do judaísmo, a uma audiência muito mais ampla da cultura

grego-latina.

O universalismo de Lucas resulta de sua convicção de que a Boa-nova de Jesus Cristo

se dirige a todos os homens. Escrevendo mais para gregos do que para judeus, o autor lucano

queria que os gregos participassem da certeza da salvação. Talvez, por isso, ele começa a

genealogia de Jesus não com Abraão, mas com Adão, pai de todos os homens, que era filho

de Deus.

19

cf. McKENZIE, 1983, p.557.

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23

Algumas práticas especificamente judaicas, encontradas em Marcos e Mateus, são, por

um lado, deixadas na sombra em Lucas. Por outro lado, apresentam-se os samaritanos como

modelo de caridade e de gratidão; e os gentios, com modelos de bom procedimento e fé

pronta e disponível.

Uma das provas de sua crença no universalismo da salvação é a importância que dá às

mulheres. Em Lucas, elas aparecem mais que nos outros três evangelhos. O texto lucano

parece querer mostrar que a Boa-nova não assumia a atitude judaica em relação à mulher; por

isso, o texto do terceiro evangelho mostra-se menos hostil aos judeus do que Mateus, Marcos

ou João.

É ainda resultado de sua convicção teológica universalista da salvação a apresentação

de Jesus como amigo dos pecadores. Para o autor lucano, Jesus veio procurar e salvar o que

estava perdido, como já pudemos apontar mais acima. Esta é a razão para esse texto

evangélico narrar tantas parábolas que revelam a amizade e a compaixão de Jesus em relação

aos pecadores. O terceiro evangelho, mais que os outros, sublinha, nos milagres de Jesus, a

compaixão para com os que sofrem.

A expressão “reino de Deus”, por outro lado, não se acha enfatizada no texto lucano

como é nos demais sinóticos. O terceiro evangelho, neste sentido, parece seguir mais a

Marcos do que Mateus, na concepção do reino primordialmente como reino escatológico do

futuro20

. Assim, a comunidade cristã, na perspectiva lucana, até pode ser tomada como uma

expressão do “reino de Deus”, no entanto, a consumação dessa comunidade só venha a ser

vista com a volta do Filho do Homem.

À vista disso, podemos concluir essa breve consideração acerca da teologia do autor

lucano, apresentado uma breve síntese por parte do professor Ulloa (2012), para quem, pode-

se afirmar que a teologia lucana

num primeiro momento, expressa a necessidade da reconstituição de Israel para,

num segundo, narrar a participação dos gentios na herança de Israel. (...) Os relatos

do pentecostes dos judeus (At 2), o pentecostes dos samaritanos (At 8) e o

pentecostes dos gentios (At 10) confirmam de forma categórica e explícita o

esquema geográfico-teológico lucano, por meio do qual apresenta o plano histórico

salvífico universal divino.

A partir dessas considerações acerca do universo composicional, temático e teológico

do texto lucano – fonte de nosso objeto de estudo – vamos analisar, em sequência a

constituição do conceito de “discípulo”.

20

cf. McKENZIE, 1983, p.558.

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24

5 O DISCIPULADO: SEU DESENVOLVIMENTO E A APROPRIAÇÃO

LUCANA

5.1 ETIMOLOGIA DA PALAVRA “DISCÍPULO”

Na sociedade grega antiga, o termo “discípulo” era usado para descrever um aluno ou

aprendiz de uma personalidade reconhecida pela sabedoria. Discípulos eram, portanto,

aqueles que buscavam conhecimento e sabedoria. Para algumas das escolas filosóficas gregas,

um discípulo era uma pessoa que se submetia a um talentoso professor. Esse processo de

discipulado envolvia uma relação íntima com o filósofo, bem como certa dependência dele.

No âmbito da língua latina, a palavra “discípulo” – discipulus – significa “aluno,

seguidor ou estudante”, isto é aquele que discere (aprende ou é formado por...).

Segundo o Dicionário Cultural do Cristianismo, ainda para o latim, “discípulo”

significa:

Aluno pessoa que recebe ensinamento de um mestre. Nos evangelhos esse nome é

dado àqueles que seguem o Cristo, os doze e depois aos simpatizantes aos quais

Jesus confiou a missão de evangelização. O discípulo é aquele que deve sua vocação

a Jesus, que adere a ele e dele dá testemunho, por sua vez. A seguir o termo passou a

designar o fiel21

.

Um discípulo, para o contexto dos textos bíblicos, era aquele que aprendia com seu

mestre e, que se empenhava, ao máximo, para se igualar ao seu padrão.

A palavra “discípulo”, no âmbito neotestamentário, é traduzida do termo grego

mathetes. Esse conceito helênico é usado para designar um aluno que se unia a um professor,

a fim de adquirir conhecimento teórico e prático. Ela é usada, desse modo, no Novo

Testamento para indicar a ligação a alguém, ou seja, aquilo que, contemporaneamente, define-

se por discipulado.

O discipulado, nesse sentido, envolve o comprometimento de alguém com certa

pessoa; e, também, submissão à sua autoridade a fim de ser ensinado. O discípulo não é, de

antemão, totalmente discípulo, mas se engaja em um processo de ensino-aprendizagem com

um mestre/professor, o que habilita a ser considerado em uma dinâmica de discipulado.

21

cf. LEMAITRE, 1999, p. 17.

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25

Vale, contudo, reconhecer um entretom garantido pelo discipulado promovido por

Jesus de Nazaré.

O discípulo no contexto do judaísmo, comumente, escolhia o seu rabi em razão de sua

ciência e com o objetivo de, por sua vez, tornar-se mestre. Jesus, de outra maneira, chamava

indivíduos dos mais variados caminhos de vida e os ligava à sua pessoa, a fim de que viessem

a ser suas testemunhas, se preciso, até a morte, apesar de, muitas vezes, experimentarem a

falta de fé e a incompreensão.

Sob a luz dos ensinamentos de Jesus, Cencini (2011) sustenta que o discipulado, no

âmbito cristão, é o que vem a caracterizar o corpo dos seguidores e seguidoras de Jesus; além

disso, esse conceito tem um significado especial de grandeza e munificência, porquanto indica

o modo de ser e de agir daquele que aprende, pouco a pouco, a arte e o esforço de ser

transformado por seguir o Senhor.

Nas seções seguintes, pretende-se descrever com mais detalhes o desenvolvimento dos

conceitos de “discípulo” e “discipulado” desde sua apreciação veterotestamentária, passando

por seu desenvolvimento neotestamentário e, especialmente, lucano, até ancorarmos em sua

acepção contemporânea e, ainda, na leitura desse conceito a partir da experiência mariana.

5.2 DISCIPULADO NO ANTIGO TESTAMENTO

O termo “discípulo” encontra pouca presença nas escrituras hebraicas, mas é frequente

no judaísmo. O texto veterotestamentário apresenta-se, isso posto, como uma nascente, de

onde irrompe a rica experiência do discipulado. Olvidá-lo ou não beber de suas águas seria,

portanto, abdicar de um tesouro gratuitamente ofertado.

No Antigo Testamento, especificamente em IICr 17, 7-9, são descritos mestres

itinerantes da Lei, enviados para instruir o povo. Incluem-se no contexto da vocação profética

e, por isso, podem ser reconhecidos como predecessores dos apóstolos cristãos. A profecia

remete, também, ao termo “discípulo” em relação ao aluno de um profeta, que partilha a vida

com seu mestre, a quem servia e seguia.

Confere-se essa aplicação do conceito a partir dos relatos do círculo de seguidores de

Samuel, Elias, Eliseu e Isaias. Os “discípulos”, nessa conjuntura escutavam a instrução de

seus mestres e passavam-na adiante a pessoas que procuravam conselhos.

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26

Reuniões e refeições eram feitas na casa do mestre. Os discípulos executavam

incumbências, preservavam os ditos e ensinamentos dos profetas a quem seguiam e se

tornavam, dessa maneira, transmissores e intérpretes de sua mensagem; bem como portadores

de uma tradição. Alguém vinha a ser reconhecido como discípulo de um profeta-mestre,

então, quando convidado – e não por disposição própria – pelo próprio mestre, quem o

designava um de seus sucessores.

De acordo com um antigo ditado rabínico, por consequência, um discípulo deveria

“cobrir-se do pó de seu rabino”. Em outras palavras, os discípulos deveriam, a todo o

momento, estar o mais próximo possível de seu mestre. E, após serem de todo treinados, os

discípulos tornavam-se mestres, incumbidos de ensinar e fazer, assim, novos discípulos.

O termo hebraico lamad (דמל), que originalmente apresentava o sentido de incitar,

estimular e treinar; veio a designar, depois, o processo de aprendizado e, em um grande

número de ocorrências no texto bíblico, tem o sentido específico de “estudar, ocupar-se da

Torá”.

Todo povo de Israel devia, por si, ter a Torá como mestre e, assim, ser talmid (תדמיל).

Até mesmo o Messias era esperado como discípulo e mestre da Torá. Mas poucos eram os que

podiam ocupar-se intensivamente da Torá e de seu estudo. Estes se tornavam mestres do povo

e reuniam, a seu redor, discípulos particulares, que um dia seriam mestres da lei, tal como

eles.

O discípulo aprendia, então, a lei e sua interpretação ouvindo e disputando; pelo

contínuo contato com o mestre, era levado a viver conforme a Lei. Para o povo ignorante o

discípulo da Lei era uma personalidade que inspirava reverência. Em troca do ensino, o

discípulo prestava ao rabi, que dedicava toda sua vida ao estudo da Lei, serviços pessoais

como um servo. Era essa a relação que tinha com o rabi, que se exteriorizava na respeitosa

distância em que caminhava atrás do mestre.

5.3 DISCIPULADO NO NOVO TESTAMENTO

Para os contemporâneos de Jesus, era imagem familiar ver um doutor da lei sendo

seguido a essa respeitosa distância. Logo que Jesus apareceu em público, também reuniu um

grupo de pessoas que o seguiam. Assim, exteriormente, ele se parecia com um doutor da lei

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27

judaico, cercado por seus alunos. O mesmo se pode perceber ao se comparar os seguidores de

Jesus, com aqueles de João Batista e os dos fariseus.

O texto do Novo Testamento emprega o termo “discípulo” fazendo referência àqueles

que seguem um mestre, como João Batista (Jo 1,35-38), Paulo ( At 9,25; 21, 16; ITm 1-2) ou,

então, um complexo doutrinário, como o código mosaico (Ex 20,1-21) ou as prescrições dos

fariseus (Lv 11,1-8).

O segundo texto do complexo literário lucano – o Atos dos Apóstolos – estende, ainda

mais, o uso desse título, abrangendo todos os cristãos (At 6,1). O quarto evangelho, no que

lhe concerne, faz surgir a figura do “discípulo amado” (Jo 19,26-27), no qual a Tradição,

acostumou-se a reconhecer João, o evangelista.

Ser discípulo, portanto, na perspectiva do Novo Testamento, é viver em um

relacionamento íntimo com aquele que está instruindo. Nesse relacionamento, o discípulo

aprende continuamente sobre o outro – seu instrutor. Não é, contudo, exigida uma conversão

rápida ao que estará na posição de mestre, mas um lento processo pelo qual se é feito

discípulo.

Na realidade neotestamentária, isso posto, a semelhança dos discípulos de Jesus com

os discípulos dos rabinos é puramente exterior.

Uma diferença decisiva, por sua vez, constata-se desde o início do seguimento de

Jesus. Na Era antiga, o judeu piedoso, que queria tornar-se um “rabi”, escolhia, entre os

muitos doutores da Lei, um para ser seu instrutor; então, procurava ser aceito por ele como

“estudante”. O discipulado de Jesus deu-se de modo distinto. Ele escolhia – soberanamente –

os seus discípulos. Recordemos como são registradas suas palavras: “Vinde após mim” (Mc

1,18); e “Segue atrás de mim” (Jo 1,43). Enquanto, aqueles que se achegavam a ele por

própria iniciativa eram, no mais das vezes, repelidos (cf. Lc 9,61s.; Mc 5 18s).

Para o chamado do Nazareno, contudo, parece não haver qualquer pressuposto ou

padrão. Assim como Deus Pai, no contexto vétero-testamentário, dispunha aos profetas as

suas qualidades e não considerava pressupostos ou antecedentes humanos, também Jesus

chamou os que ele quis (Mc 3,13). Esses deixavam tudo e o seguiam. Essa obediência

incondicional ao chamamento de Jesus não encontra paralelo naquilo que existia no contato

rabi-alunos.

Trata-se, nas ações de Jesus Cristo, por seu turno, de obediência ao Senhor, que tem o

direito de tudo exigir; pois o Messias não é qualquer rabi. Com ele não se poderia escolher

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este ou aquele mestre, pois a decisão demandava estar a favor ou contra o Ungido de Deus.

Por isso, o Nazareno parece não tolerar o menor condicionamento ao “sim”, que lhe era

oferecido (cf. Lc 9,59-62).

Segundo o Dicionário de teologia bíblica (BAUER, 1973), tem-se que o Messias

pertencia totalmente e sem reservas à tarefa que a ele fora confiada (Mc 3,31-35). Desse

mesmo modo, também para o discípulo valia o mesmo princípio: quem ama pai e mãe mais

do que a ele, não é digno dele (cf. Mt 10,37). Quem não carrega sua cruz e segue atrás dele,

não pode ser seu discípulo (cf. Lc 14, 26s).

Os discípulos dos doutores da lei, por sua vez, seguiam seus mestres como servos e

com reverência; os discípulos de Jesus, contudo, ao se disponibilizar para o seguimento,

deveriam colocar aos pés do mestre toda a sua vida, com tudo que a compõe.

O sentido do discipulado, no plano neotestamentário, segue, então, a princípio, a

mesma dinâmica da tradição judaica do Antigo Testamento. No entanto, vai incorporando o

discipulado de Jesus, que relativiza todos os outros vínculos.

O Novo Testamento, dessa maneira, define o discípulo como uma pessoa que crê em

Jesus Cristo e emprega, devotadamente, todas as etapas da vida seguindo-o com o auxílio da

graça.

Nos Evangelhos sinóticos, os discípulos de Jesus, em vista disso, são geralmente

homens e mulheres que acompanham o Nazareno em suas peregrinações missionárias. Esse

grupo não se reduz aos doze, mas os inclui. Algumas pessoas, que participam apenas

temporariamente desse grupo, podem ser designadas discípulas, ainda assim.

Nos Atos dos Apóstolos, todos os membros da comunidade são chamados de

discípulos (At 6-21). Na comunidade joanina, por sua vez, “discípulo” é cada um dos cristãos

(Jo 8,31); e Mateus exige que todas as nações do mundo sejam feitas discípulas (Mt 28,19).

A vocação para o discípulo, por conseguinte, evidenciava, com frequência, uma

ruptura radical com a vida sedentária, com a família e a profissão. Exigia, também, disposição

contínua para suportar reações hostis à mensagem proclamada e, até mesmo, o martírio.

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5.4 O DISCIPULADO EM LUCAS

O texto lucano, em suas particularidades, veicula uma imagem de Jesus de Nazaré

como alguém, invariavelmente, em movimento e que está chamando e enviando aqueles que

são identificados com sua atividade.

Isso se dá, na medida em que a perspectiva do texto de Lucas compreende que a Boa

Notícia do Reino de Deus deve chegar a todos. Pensando na grandeza desse encargo, o autor

do terceiro evangelho enfatiza as qualidades requeridas daqueles e daquelas que levariam a

cabo essa tarefa: boa disposição para escutar a palavra, retê-la e dar frutos com perseverança

(cf. Lc 8,15).

Deus toma os homens tais como são, com os frágeis elementos da humanidade de seu

caráter e os prepara para o serviço. Não são escolhidos por serem perfeitos, mas apesar das

imperfeições, para que, pelo conhecimento e observância da verdade e mediante a graça

possam transformar-se segundo a imagem divina.

Para o autor lucano, no discipulado não há opção para reconsiderar a decisão após o

comprometimento. O serviço do discípulo, no contexto do terceiro evangelho, identifica-se

pela fidelidade ao Reino de Deus e, a todo tempo, é um combate contra os assédios do

inimigo do mundo, sem a opção de se manter na neutralidade.

O Cristo, desde a perspectiva do complexo Lucas-Atos, não esconde o fato de que

compartilharia tanto suas recompensas quanto suas aflições com seus seguidores.

No texto lucano, dessa maneira, o discipulado recebe destaque. Por todo o texto, o

autor do terceiro evangelho atesta que o discípulo de Cristo tem um mandato, anunciar aos

demais a ressurreição de Jesus, conforme o testemunho dos apóstolos, apresentando, como

Messias, Aquele que fora crucificado.

Pode-se argumentar que essa ênfase no discipulado, por parte do autor lucano, deve-

se, também, a sua perspectiva teológica – por conta do momento tardio de sua composição –

ter assumido um protelamento da parusia e, consequentemente, uma consolidação da

percepção do ofício das comunidades de fé na continuidade da missão de Jesus.

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5.5 A COMPREENSÃO CONTEMPORÂNEA DO DISCIPULADO

Atualmente, segundo Haan (2009), as exigências do discipulado parecem exageradas.

As consequências de uma obediência radical ao Senhor são tomadas temerosamente. As

histórias de grandes cristãos, que passaram horas em oração, todos os dias; que suportaram

com paciência a perseguição; que deixaram tudo para servir ao Senhor, talvez deixem os

homens e mulheres contemporâneos com sentimentos de irremediável insuficiência e com a

pergunta: o que realmente o Senhor deseja do discípulo, hoje, que se considera pessoa comum

e ainda pressionada a se ajustar ao status quo da comunidade da qual é membro?

Radicalidade e adaptação, então, parecem ser exigidas do discípulo atual. Devido à sua

justiça, no entanto, o Senhor não exige o impossível de seu seguidor. Antes, ele guia com

paciência e capacita, com forças, o seu discípulo, a fim de habilitá-lo para o seguimento.

Na concepção de Bonhoeffer (1984), tem-se que:

O discípulo é arrancado de sua relativa segurança de vida e lançado à incerteza

completa; de uma situação previsível e calculável para dentro do imprevisível e

fortuito; do domínio das possibilidades finitas para o domínio das possibilidades

infinitas. (...) A chamada ao discipulado é, no entanto, comprometimento exclusivo

com a pessoa de Jesus Cristo.22

Encontramos essas orientações no texto lucano, no qual vemos que aquele que se

dispõe ao discipulado e não aborrecer aos seus e à própria vida, não pode ser discípulo do

Cristo (cf. Lc 14,26). Estas palavras provam, em suma, que o primeiro quesito de um

discípulo de Cristo é a sinceridade. Amar a Cristo mais do que a todos, mais do que a própria

vida.

22

cf. BONHOEFFER, 1984, 196p.

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6 MARIA: UMA PERSPECTIVA TEOLÓGICO-BÍBLICA E SEU MODELO DE

DISCIPULADO

6.1 O PERFIL DE MARIA EM LUCAS

O autor lucano, no terceiro evangelho, apresenta Maria como alguém que encarnou o

ser discípulo e viveu, silenciosamente, harmonizada com todas as exigências dessa posição

de vida.

Maria, desse modo, pode ser delineada, na perspectiva de Lucas, por duas coordenadas

– que são, também, encontradas no epistolário paulino – a saber: a graça e a fé (cf.

PAREDES, 1997, p.57).

No texto do autor de Lucas-Atos, Maria é a mulher agraciada (cf. Lc 1,26-28); e,

também, a mulher crente (cf. Lc 1,45). Ela é apresentada como uma personagem ativa e

comprometida, que se oferece, livremente, para colaborar no plano divino de Salvação.

Na narrativa lucana, isso posto, Maria aparece como uma mulher livre, no sentido

radical da palavra. Ou seja, uma pessoa assenhorada de si, capaz de tomar decisões, de

comprometer-se de maneira vinculante, de atuar e, ainda, de pensar por si mesma.

É livre, pois decide por si, como podemos perceber na cena da Anunciação. Ela escuta,

pessoalmente, a voz de Deus e responde, também de modo pessoal, oferecendo sua palavra de

colaboração e assentimento ao plano divino.

Ela é mulher que medita, investiga, aspira conhecer a vontade de Deus e, sabendo-a

compromete-se. Ela não oferece uma colaboração submissa, mas de alguém plenamente livre,

que pede a Deus – razão de sua esperança – e quando ele lhe fala, responde-lhe, em atitude

comprometida.

Quanto a esse ponto, podemos recuperar as considerações de Clodovis Boff (2004).

Humanamente falando Maria aparece dotada de uma subjetividade rica,

interrogativa, reflexiva. É uma mulher consciente, responsável, madura. Ela encarna

a figura do sábio que medita a lei do Senhor dia e noite. Ela tem a psicologia própria

da pessoa crente por excelência, que pensa nas coisas misteriosas de Deus. Maria é

também a figura do teólogo, em sua busca da inteligência da fé23

.

23

BOFF, 2004, p. 49.

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A Maria, conforme a construção lucana, atribui-se a titulação de “serva” (Lc 1,38). E é

espontânea e livremente que ela se coloca a serviço do seu Senhor, reconhecendo-o como seu

único mestre. Por isso, parece justo que Lucas sublinhe a sua fé.

Ela aceita servir em plenitude os desígnios de Deus e põe à disposição a sua natureza

de mulher, para que venha aquele que deve vir – o Messias. O assentimento mariano é um

verdadeiro ato de adoração na fé, no amor, na dádiva.

Murad (2014) sublinha que a grande novidade do autor lucano é apresentar Maria

como a imagem viva do discípulo de Jesus. Como uma discípula infatigável na dedicação e na

correspondência à graça, como alguém que viveu com inteireza seu “sim”.

Maria de Nazaré, nesse sentido, a partir das opções narrativo-teológicas lucanas, torna-

se inspiração e referência primordial para os seguidores de Jesus em todos os tempos e,

também, segundo Autran (1998) mestra a ensinar como encarar o porvir carregado de mistério

a exigir uma constante resposta de fé.

Na “escola” – lucana – de Maria, dessa maneira, aprende-se que é preciso renovar a

opção por Deus, a cada ciclo da vida, e dar frutos na fé e pela fé (Lc 1,45).

Os ensinamentos, aprendidos por Maria, portanto, são colocados em prática em sua

vida rotineira; e nela se encontra com limpidez as exigências para o discipulado de Jesus. São

esses elementos, também, que almejo compreender a partir da narrativa lucana da

Anunciação, que analisaremos adiante.

6.2 DISCIPULADO MARIANO: UM ITINERÁRIO MÍSTICO

Para saber como Maria de Nazaré tornou-se o modelo de todo discípulo,

compreendemos que se faz necessário perscrutar seu itinerário místico, o qual a preparou

para tão generoso “sim”, naquele instante que o autor paulino assenta denominar a “plenitude

dos tempos” (Gl 4,4).

Não há dúvida de que para ela chegar a se vincular a Jesus no discipulado, tivera antes

que percorrer um itinerário místico qualificado. Deve-se a essa dimensão pessoal, vivida

intensamente, a resposta positiva no kairós de Deus.

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Conforme Dicionário de vida mística (2003), Maria certamente, não só viveu a

piedade judaica, mas também a representou em seus mais altos vértices, tomando lugar entre

o povo humilde e pobre de Javé.

Na esteira desse pensamento é valiosa a contribuição que Autran (1998) oferece, na

obra já citada,

Maria está no vértice do Antigo Testamento, quando as promessas se tornam

realidade. Nela está a perseverança do resto de Israel, a potência dos “anawim” que

se tornaram o lugar privilegiado da manifestação de Javé; o Deus-conosco (Is 7,14)

pôde ser visto, escutado, tocado com nossas mãos (IJo 1,1) porque, antes de tudo

tornou-se o Deus encarnado nela24

.

Ela pertencia aos pobres de Javé, os quais eram caracterizados por esperar tudo dele e

nele confiar com abandono alegre e crença no cumprimento das promessas divinas.

No limiar do Novo Testamento, em vista disso, entende-se que a espiritualidade dos

pobres de Javé concentrou-se nessa Virgem nazarena. Maria – a virgem – realizou as

características dos pobres de Javé: a pobreza (tanto no plano econômico, como no espiritual

(cf. Lc 1, 38.48;2,24), a alegria em Deus Salvador (cf. Lc 1,46-47), a confiança nas

promessas divinas (cf. Lc 1,55), o silêncio meditativo (cf. Lc 1,19.51) e, também, a

solidariedade com o povo de Deus (cf. DICIONÁRIO DE VIDA MÍSTICA, 2003, p. 662).

Nessa espiritualidade vivida cotidianamente, fez ela a experiência de Deus, podendo

assim descobrir seu rosto autêntico. Esse rosto, descoberto por Maria, é poderoso, santo,

misericordioso e fiel (cf. Lc 1, 49-50.54-55): Vê-se que o Deus vivenciado por Maria é

transcendente e condescendente; ou seja, age na História, alterando contextos a fim de

favorecer os pobres e oprimidos, sendo fiel à aliança com seu povo.

Maria, por conseguinte, inclui em seu itinerário espiritual uma contínua kénosis, isto é,

um esvaziamento da vontade própria e a aceitação do desejo divino. Pode-se, nesse sentido,

fazer memória da apresentação desse conceito por Xavier (2007), quem o apresenta como “o

despojamento por amor, sair de si para buscar o outro, para aproximar-se do outro e para

salvar o outro”25

, isto é, kénosis compreende – para o mesmo autor – a “síntese da doação”26

.

Maria foi, no sentido pleno, a personificação do povo eleito, no qual se cumpriram

duas missões: dar nascimento ao Messias, em primeiro lugar; e, depois, acolhê-lo pela fé. No

entanto, faz-se necessário compreender ainda melhor essa questão do despojamento amoroso

24

AUTRAN, 1998, p.165. 25

XAVIER, 2007, p. 45. 26

Idem, ibidem.

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34

mariano, como elemento central do seu assentimento ao plano divino e conformador de todo

o seu discipulado. Essa questão será aprofundada, na seção seguinte.

6.3 KÉNOSIS NO CAMINHO DA FÉ DE MARIA

Como é salientado no Dicionário de vida mística (2003), tanto o Antigo Testamento,

quanto o Novo explicam que para se aproximar de Deus é necessário ter fé e ela, segundo

essas mesmas fontes, demanda um despojamento contínuo.

Foi a esse despojamento que Maria de Nazaré foi chamada e, em relação a isso, não

hesitou. O alcance da entrega mariana, a profundidade do desapossamento e a grandeza de

submissão à Palavra de Deus, tornaram-na merecedora do louvor de Isabel (cf. Lc 1,45).

Na Anunciação, a Virgem de Nazaré achou-se no centro da história espiritual da

humanidade e veio a se tornar a representante e, também, o arquétipo do gênero humano.

Clodovis Boff (2004), tomando essa perícope em consideração, reitera que se tem de

reconhecer que a anunciação é “o texto relativo a Maria mais importante de todos. É o texto

mais prenhe de sentido mariológico”, isso porque apresenta “uma cena evangélica em que a

Virgem está no centro, como grande protagonista”27

.

A fé, isso posto, desde a perspectiva da ação mariana, não foi só adesão à Palavra de

Deus; mas, também, um dom de si e, principalmente, um contato com o mistério divino – por

si só, inexprimível – no qual se arraigava mais intimamente, à medida que sua vida avançava

em sintonia com a do Filho.

Mais uma vez, fazendo referência ao Dicionário de vida mística (2003), tem-se que,

em Maria, especialmente a partir do contexto da Anunciação, a fé, longe de ser estática,

parece dinâmica, porquanto se modificava com o tempo e passava por momentos difíceis e

por fases de incompreensão e de trevas.

Na esteira desse raciocínio, Paredes (1997) relata, em sua obra já citada, que Maria

comporta-se não com pura passividade, mas compromete-se, mobilizando toda a sua pessoa:

mulher crente e modelo da comunidade cristã nascente.

27

cf. BOFF, 2004, p.46.

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O caminho místico e de despojamento, isto é, a experiência kenótica feito por Maria

de Nazaré, dessa maneira, veio prepara-la para responder, com um decisivo sim a Deus, em

nome da humanidade.

Esse ponto, em particular, e, também, seus desdobramentos específicos é o que

pretendemos constatar e analisar, com atenção, a partir dos elementos singulares da perícope

da Anunciação, o que faremos no próximo capítulo.

6.4 MARIA, A PRIMEIRA DISCÍPULA CRISTÃ

Tendo destacado alguns elementos distintivos da figura mariana no texto lucano e,

também, da percepção sobre o seu discipulado daí decorrente, propõe-se, nas próximas linhas,

uma ponderação sobre o singular posicionamento de Maria de Nazaré quanto ao ser discípulo.

Maria de Nazaré afigura absorver, em seus traços típicos, todos os carácteres do

verdadeiro discípulo. Em Maria encontramos todas as características do discipulado segundo

o coração de Deus. A Sagrada Escritura é a primeira a testemunhar a vida de Maria como

discípula de Jesus. Atesta Alexandre Awi (2017).

A vocação de Maria começou a se concretizar desde cedo, principalmente, quando se

percebe o despontamento divino em sua vida, com o evento da Anunciação. A partir daquele

instante, Maria de Nazaré – conforme nos narra o texto lucano – iniciou um itinerário de

conhecimento e transformação; ou seja, um caminho de discipulado, que só pode ser

percorrido numa atitude de fé.

Pe. Alexandre Awi (2017) assegura que não só cronologicamente, mas

“kairologicamente”, Maria é a primeira discípula de Cristo. Na ordem da criação e da graça.

Ela não só foi a primeira discípula, mas também a discípula mais perfeita. Foi o primeiro

membro da comunidade dos fiéis em Cristo.

Em Nazaré, Maria acreditando na mensagem do anjo e respondendo com a afirmação

de ser “a serva do Senhor” (Lc 1,38), tem-se o primeiro ato de fé no Verbo, o primeiro ato de

fé, fundamentalmente, cristão, o que é condição essencial para o discipulado do Mestre.

O texto bíblico ao mostrar que, ainda diante de tanta grandiosidade, com essa atitude,

Maria ficou intrigada ante a saudação do anjo (Lc 1,29), permite reconhecer que a fé mariana

foi uma fé pautada pela dinâmica e feita de desafios, os quais precisaram ser superados. O

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texto lucano, portanto, explicita que a fé de Maria não era pronta. Esse autor evangélico

parece ter compreendido a grandeza dessa experiência de fé e, por isso, enfatiza a figura da

Virgem como a mulher de fé por excelência.

Para Pe. Iwashita para além das dúvidas, Maria foi a crente por excelência. É justo,

portanto, que na esteira dos crentes, que formam a Igreja, ela esteja, com o seu fiat, na ponta

inicial. Quando se trata do grande rio da fé, que flui através da Igreja, encontramos a fé

mariana, antes mesmo daquela dos apóstolos. Em suas atitudes Maria mostrou a importância

do ato de fé, pois a graça não pode agir se dela não vem precedida.

Maria de Nazaré discípula. Essa construção justifica o olhar especial que o terceiro

evangelho fomenta. O autor lucano, a partir do discipulado mariano, parece almejar

comunicar a compilação dos requisitos para o discipulado autêntico. Maria de Nazaré tinha

perfeita disposição para escutar; reter, meditar sobre a Palavra, ou seja, ela buscava assimilá-

la e dar, a partir dela, frutos, sendo perseverante (Lc 8,5-8;15).

Para Pe. Belini, na chamada Anunciação (Lc 1,26-38) – objeto da atenção deste

trabalho – Maria mostra-se atenta e disponível a escutar e acolher a Palavra de Deus. Reter a

palavra, rememorá-la é, contudo, uma atitude básica no judaísmo e Lucas afirma que Maria

conservava tudo no coração; mas, além disso, meditava tudo em seu íntimo (Lc 2,19).

Tendo, com essas últimas considerações, conquistado certo conhecimento sobre o

discipulado, principalmente no tocante ao registro neotestamentário, verifica-se a

singularidade do discipulado de Maria de Nazaré. Ela não pertence ao grupo dos doze

apóstolos; não faz parte do grupo dos discípulos itinerantes, que seguem Jesus; e não se

confunde com a multidão. Maria emerge desses nichos e se interessa, intimamente, pelo

Messias.

A jovem de Nazaré é, isso posto, uma discípula atípica e arquetípica, que, mesmo

partilhando de tantas atitudes dos discípulos de Jesus, não pode, no entanto, ser reduzida à

medida deles; ao contrário, inegavelmente os supera, não podendo ser nem limitada ao

discipulado doméstico e nem ao discipulado itinerante, porque participa de ambos e está além

deles.

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7 A PERÍCOPE DA ANUNCIAÇÃO (LC 1,26-38): UMA ANÁLISE A PARTIR

DA EXPERIÊNCIA MARIANA DE DISCIPULADO

Na sequência, apresentamos o texto evangélico lucano selecionado para a análise.

No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia,

chamada Nazaré, a uma virgem, desposada com um varão chamado José, da casa de

Davi; e o nome da Virgem era Maria. Entrando onde ela estava disse-lhe: “Alegra-

te, cheia de graça, o Senhor está contigo”! Ela ficou intrigada com essa palavra e

pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. O anjo, porém, acrescentou:

“Não temas, Maria! Encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberás no teu

seio e darás à luz um filho, e o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será

chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor lhe dará o trono de Davi, seu pai; Ele

reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim”. Maria porém

disse ao anjo: “Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?” O anjo

lhe respondeu: “O Espírito virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a

sua sombra. Por isso, o santo que vai nascer será chamado Santo, Filho de Deus.

Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para

aquela que chamavam de estéril. Para Deus, com efeito, nada é impossível”. Disse,

então, Maria: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!” E

o anjo a deixou”28

.

7.1 CONTEXTUALIZANDO A PERÍCOPE

O anúncio a Maria aconteceu, desde a perspectiva da narrativa lucana, num contexto

de espera intensa pela vinda daquele que seria reconhecido como o salvador; ou seja, o

“messias”.

Nesse contexto de aguardo e promessa, pode-se imaginar que fosse o sonho de

qualquer jovem mulher israelita, ser a mãe do messias. No entanto, mesmo diante dessa

possível sugestionabilidade, Maria de Nazaré, jovem e sensata, conforme o texto, quis checar

os seus sentidos diante da mensagem do anjo.

Διεταράχθη e διελογίζετο (cf. Lc 1, 29). São esses os termos que o autor do terceiro

evangelho escolhe para descrever a experiência mariana diante da intervenção angelical. Os

dois termos são antecedidos por um mesmo prefixo intensificador (δια), que indica “através,

até o limite” e, assim, de forma apropriada, “extremamente, marcadamente, severamente,

intensamente, profundamente”. Vê-se, dessa maneira, que a jovem de Nazaré se encontrava

“profundamente”, “intensamente” ταράσσω, isto é, “problema” ou “agitação”. Essa condição

levou a outra situação, também, intensificada, a saber, λογίζομαι, ou seja, ir e voltar,

28

Lucas 1,26-38. Cf. Bíblia de Jerusalém, 2000.

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mentalmente, ao avaliar uma situação. Esse termo, enfim, considera o dado de estar

revolvendo algo internamente enquanto se reúnem diferentes razões para algo.

Desse modo, “ficou perturbada” e “começou a pensar” revelam pouco do que era o

estado que o autor do texto almejava transmitir ao optar por aqueles dois termos.

Essa reflexão é válida, porquanto evidencia que a fé de Maria é uma fé dinâmica que

se nutre da oração, da confiança e da entrega a Deus. A posição mariana, nesse texto, resulta

de uma conformação – no melhor sentido do termo – diante de desafios. A fé de Maria, então,

não é uma receita pronta feita de facilidades.

O anúncio do anjo a Maria – o texto, comumente, intitulado de “anunciação” – vem

depois do anúncio do anjo a Zacarias. Nos dois casos, anunciam-se nascimentos. Vale

compará-los, a fim de perceber suas semelhanças e diferenças.

Descrevendo, portanto, a visita do anjo a Maria e a Isabel, o autor lucano evoca as

visitas de Deus a várias mulheres estéreis do Antigo Testamento: Sara, mãe de Isaque (Gn

18,9-15), Ana, mãe de Samuel (ISm 1,9-18), a mãe de Sansão (Jz 13,2-5). A todas anunciou-

se o nascimento de um filho com missão importante na realização do plano de Deus. Nesse

texto, o mesmo anúncio é feito a Isabel (esposa de Zacarias) e a Maria.

Maria, no entanto, não é estéril (cf. Lc 1, 27). Ela é virgem (παρθένος). Encontra-se,

nesse dado, uma primeira particularidade da narrativa lucana acerca da figura da jovem de

Nazaré. Essa imagem, por sua vez, contrasta, no próprio texto, com a descrição acerca de

Isabel, que é (re)apresentada – de conhecimento público – como estéril (στεῖρος), isto é,

“rígido, não natural, incapaz de conceber”.

A Palavra de Deus, assim, chegou a Maria não por meio de um texto, mas através de

uma experiência profunda de Deus, manifestada na visita do anjo. Foi graças à ruminação da

Palavra de Deus, graças ao seu itinerário místico, que ela foi capaz de perceber a Palavra viva

de Deus na visita do anjo e obedecê-la.

Tendo em consideração esses pontos, é que se vai, nas próximas seções, analisar, mais

detidamente, as peculiaridades dessa perícope, tendo-se em vista, fundamentalmente, o

enquadramento da disponibilidade mariana ao discipulado.

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39

7.2 ANÁLISE DA PERÍCOPE (LC 1,26-38)

7.2.1 Anunciação: encontro decisivo de Maria com a Palavra de Deus (Lc 1,26-30)

O autor lucano, apresenta, no capítulo 11 de seu evangelho, Jesus de Nazaré,

respondendo a interpelação de uma mulher, no meio do aglomerado de pessoas. Ela havia

abençoado o ventre e os seios, dos quais Jesus havia sido gerado e alimentado.

Invariavelmente, somos levados a considerar a jovem de Nazaré, desde essa interpelação. A

resposta do Cristo, contudo, soa, a primeira vista desconcertante, porquanto ele traz a fala da

mulher a uma conclusão, afirmando que, de fato, são abençoados “aqueles que ouvem a

Palavra de Deus e a põe em prática” (cf. Lc 11, 28).

Em primeiro, seria possível reconhecer uma ruptura, por parte de Jesus, em relação à

referência à sua mãe. No entanto, pode-se compreender, tomando a perspectiva da perícope

em análise neste trabalho, que essas palavras do Nazareno se referem, fundamentalmente, a

Maria, a primeira discípula do Senhor, antes de fazer alusão a quaisquer outros.

Maria, isso posto, configura-se como modelo de acolhida e vivência do Verbo – seja

esse conceito tomado na sua percepção de registro do dito de Deus, também como o Filho.

Emerge, então, a questão: quando Maria encontrou, de forma decisiva, a Palavra de

Deus?

Pode-se buscar responder apontando que a partir do acontecimento da Anunciação,

nessa perspectiva teológico-literária lucana, Maria se torna modelo para todo encontro pessoal

com a Palavra de Deus; porquanto, ela a acolhe, medita nela, torna-a parte do seu interior e,

ainda, faz dessa Palavra parâmetro para o seu viver.

Contemplar, desse modo, o exemplo de Maria no momento da Anunciação, no

momento preciso, em que ela é interpelada pela Palavra de Deus, afiança que se venha a saber

quais são as disposições interiores necessárias para se tornar um discípulo de Jesus.

Se naquela altíssima negociação, naquela hora decisiva para a humanidade, Gabriel

aparece como o embaixador de Deus, Maria – por eleição divina – pode ser alçada à condição

de representante para a humanidade. Nesse sentido, pode-se resgatar, uma vez mais, a

contribuição do missionário claretiano Garcia Paredes (1997), afirmando que:

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Quando veio a este mundo, o Filho de Deus não se serviu dos cegos mecanismos da

natureza, mas entrou na nossa história sem impor-se, dialogando com o homem,

oferecendo-se ao homem, providencialmente uma mulher simples acolheu a palavra

interpeladora e, em nome do que há de melhor na nossa humanidade, recebeu a

oferta divina.29

A saudação do anjo foi, desse modo, um momento de mútua entrega: de Deus, por um

lado, que se deu a Maria, por meio da graça; e, por outro, de Maria, que se sabendo cheia de

graça, rendeu-se a ela, respondendo “sim” à singular dádiva de ser a mãe do Messias. O

mesmo autor – citado anteriormente – comenta a partir dessa noção da “Anunciação” como

momento de encontro, que em Maria, então, deve-se reconhecer.

A primeira comunidade cristã, autêntico resto de Israel, filha de Sião, que se sente

saudada por Gabriel em Maria. Ela representa corporativamente o novo povo de

Deus. A comunidade de Lucas se vê tipificada nela. A alegria que o anjo evoca em

Maria é a alegria da comunidade que assiste o cumprimento das promessas de

Deus.30

Atendo-se à reflexão de Rita Romio (2014) pode-se seguramente afirmar que Maria de

Nazaré, por conseguinte, não se intimidou diante do novo, que surgia em sua vida. Assumiu

ser a mãe daquele que se chamaria “Jesus”, mesmo sabendo que teria a sua ideação pessoal

(re)configurada. Por meio da fé, acolheu essa missão, arriscou a própria vida, rompeu

barreiras, abriu-se à alteridade.

Outras perguntas que se devem enfrentar diante desse modo lucano de registar esse

encontro entre Maria e a intervenção da Palavra divina são: qual a razão dessa marca temporal

tão precisa no início da perícope?; qual a razão da intervenção angelical?

O texto do terceiro evangelho registra “Ἐν δὲ τῷ μηνὶ τῷ ἕκτῳ” (Lc 1, 26ª), isto é, “no

sexto mês”. A presença desse número específico pode, sim, apenas estabelecer uma datação

em relação ao evento com Isabel, que seria retomado ao final dessa perícope. Ainda assim,

não se pode deixar de buscar estabelecer um paralelo com a narrativa da criação, em Gênesis,

na qual se pode ler que

E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança;

domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais

domésticos, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se arrasta sobre a terra. (...)

E viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. E foi a tarde e a manhã, o

dia sexto (Gn 1, 26.31).

29

GARCIA PAREDES, 1997, p. 57. 30

Idem, p. 60.

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O sexto dia, então, é o momento privilegiado da criação do humano. No marco textual

de Gênesis, por um lado, vê-se formado o primeiro humano. Por outro lado, o texto lucano, ao

registrar o evento da concepção do Filho de Deus, e o fazendo no sexto mês, reveste esse

evento de significado simbólico e, também, confere a ele um status de grande relevância, para

a própria compreensão da humanidade. Por isso, pode-se compreender a opção de uma

tradução desse trecho do versículo lucano, na qual se lê “quando chegou à plenitude dos

tempos” (Gl 4,4). O tradutor opta por retirar o marco numérico e evidenciar o valor simbólico

desse tempo.

ט ל בו .Desse modo, o texto vétero-testamentário caracteriza a gênese do sexto dia .מ א

Tudo “era muito bom” (Gn 1, 31b).

Da mesma forma, algo deve ser “muito bom” no contexto do paralelo lucano. Assim, é

que se pode encontrar com a expressão “cheia de graça”.

Κεχαριτωμένη (cf. Lc 1, 28) é uma expressão nova e estranha e aparece como um

vocativo, no lugar do próprio nome de Maria. Uma análise superficial do texto – lembrando

das considerações acerca do espanto mariano – poderia indicar que foi, justamente, essa forma

de tratamento que tenha perturbado a Virgem de Nazaré.

Qual a razão desse sobressalto? Pois, bem, Garcia Paredes (1997), outra vez, orienta

nossa apropriação desse conceito, revelando que ele é capaz de definir Maria diante de Deus.

Por intermédio de seu mensageiro, Deus não a chama “Maria”, mas “agraciada,

cheia de graça”, encantadora, (Kecharitomène). Empregado em lugar do nome

próprio da Virgem, este vocativo define quem é Maria para Deus, aquela que foi e

continua sendo objeto a graça benevolente e encantadora de Deus. O passado, o

presente e o futuro de Maria são abrangidos unitariamente neste nome de graça que

Deus lhe impõe. A ação benevolente e graciosa de Deus cria em Maria um estado de

permanente reflexo dessa graça31

.

Afirmou-se, anteriormente, que essa expressão é “nova e estranha”. Pode-se tomar tal

posição, porquanto, esse termo, oriundo do verbo χαριτόω, que pode exprimir as noções de

“favorecer” e “conceder livremente favor ou graça” aparecem duas vezes em todo o contexto

neotestametário. Primeiramente, encontra-se esse termo no capítulo inicial da Carta aos

Efésios (cf. Ef 1, 6). A citação lucana, depois, revela o segundo uso desse termo.

A tradição crítica acerca da epístola aos Efésios é bastante conturbada: opõem-se

aqueles que afirmam a autoria – direta ou indireta – paulina (e.g. Hoehner, Thielman, Cerfaux

31

GARCIA PAREDES, 1997, p. 61.

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e Murphy-O'Connor), contra aqueles que a negam (e.g. Bultmann e Schweizer). Há ainda os

que preferem manter-se em silêncio sobre o assunto, pois reconhecem a falta de evidências

conclusivas (e.g. Cadbury e McNeile).

Levando, portanto, em conta essa variância quanto a autoria da carta, chega-se a um

intervalo temporário para a composição que se estende desde os meados dos anos 60 EC até,

aproximadamente, a década de 80 EC.

Considerando que aceitamos – para o escopo deste trabalho – a escrita do terceiro

evangelho entre os anos de 80 e 90 EC, pode-se, desse modo, reconhecer uma possível

influência do uso do conceito, na Epístola aos Efésios, sobre o texto lucano.

Tem-se, isso posto, uma chave de compreensão desse conceito.

A citação em Efésios, revela o uso desse verbo atrelado a “Deus e Pai de nosso Senhor

Jesus Cristo” (cf. Ef 1, 3). É ele, quem coloca esse verbo em ação, no sexto versículo:

ἐχαρίτωσεν, isto é, “sua graça, a qual nos deu gratuitamente” (cf. Ef 1, 6). Vê-se, com esse

termo, um verbo conjugado no aoristo ativo.

Esse tempo verbal é de difícil compreensão para muitas das línguas modernas, pois

não encontra um paralelo preciso nelas. Swetnam (2002) explica que o aoristo almeja

comunicar a ação como num curto instante, sem distinguir passos ou detalhes do seu

progresso. Ou seja, esse tempo pretende relatar aquilo que acontece em um tempo passado

indefinido, indeterminado ou, ainda, sem fixação do tempo. Superficialmente, as traduções

para a língua portuguesa optam por verter esse tempo para o “gerúndio + particípio passado”

ou, também, para o pretérito perfeito.

No caso do texto lucano, por sua vez, o termo aparece como um verbo no particípio

passado, assumindo função de um vocativo. Mais uma vez, depara-se com uma estrutura

bastante complexa da língua grega. Albertim (2013), lançando luz sobre essa forma verbal,

explica que o particípio perfeito “dentro da noção de ação acabada, (...) traduz a noção de

estado ou de condição do sujeito” que rege a ação. Desse modo, outra vez, o sujeito da ação é

Deus, que nesse contexto, livremente concede seu favor (de forma plena) à virgem de Nazaré.

Dessa feita, com a plenitude da graça, Maria, sobressai, de modo peculiar, no contexto

da comunidade de fé cristã. Esse vocativo – “cheia de graça/agraciada” – revela a virgem

como convocada, justificada e mantida por meio da graça.

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Maria se torna, por isso, sinal permanente da graça de Deus entre os homens. Nela se

manifesta, de modo exemplar, a benevolência e o favor divino, que se conserva

constantemente sobre os adeptos da mensagem de Jesus e pode acompanhá-los em todas as

suas atividades.

Dizendo que o Senhor é com ela, o mensageiro coloca Maria entre os libertadores e

protetores de Israel. A mulher – comumente, humilhada e desprezada – é, com essa fala,

colocada no cimo do plano de Deus e, também, destacada como um personagem que levaria a

bom termo uma grande missão, para a qual conta com a presença e apoio incondicional de

Deus.

A saudação angélica (Lc 1, 28b) – Χαῖρε κεχαριτωμένη ὁ Κύριος μετὰ σοῦ – é, dessa

forma, nova. Anteriormente, não havia sido endereçada a nenhum ser. Estava reservada para

Maria. Ela – e ninguém – havia visto essa fórmula sendo dirigida a alguém. Por isso, sua

perturbação. O anjo lhe acudiu, portanto, mandando-a não temer e explicando-lhe que havia

achado graça diante de Deus.

O encontro com o “mistério fascinante e tremendo” – para resgatar a expressão

importante de Rudolf Otto32

– fez com que Maria se sobressaltasse emocionalmente. O que

motivou sua reação foram as palavras, que evidenciavam a ação favorável de Deus. Maria

reagiu pessoalmente diante da irrupção de Deus em sua vida e se pôs a dialogar consigo

buscando uma compreensão mais profunda daquele movimento voluntário de Deus sobre ela,

uma vez que foi atingida pela maravilhosa presença do mistério de Deus nela.

7.2.2 Anunciação: esclarecimento do anjo a Maria (Lc 1, 30-33)

“Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus” (Lc 1, 30).

Essa é a resposta do mensageiro angélico ao sobressalto de Maria. Faz-se interessante

notar, nesse contexto, que há, virtualmente, nenhuma referência da localização de onde o

diálogo estava ocorrendo, a não ser a cidade de Nazaré.

O anjo fora enviado, como faz conhecer o texto ao afirmar que “no sexto mês, foi o

anjo Gabriel enviado por Deus” (Lc 1, 26). ἀπεστάλη – essa é a forma como o verbo aparece

no texto em grego. Válido notar que, uma vez mais, nos deparamos com uma conjugação

32cf. OTTO, R. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. São

Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007.

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verbal no aoristo. No entanto, não estamos, nesse caso, diante de uma ação ocorrida em um

tempo indeterminado, pois temos uma marcação temporal evidente no início do versículo, a

saber, “no sexto mês”. Sendo assim, o que evidencia essa escolha de conjugação?

Swetnam (2002) afirma que esse tempo verbal além de exprimir um passado narrativo,

ou um momento indeterminado, configura-se, também, como ferramenta para depositar a

atenção narrativa sobre um momento particular, isto é, lançando luz sobre uma ação completa.

Pode-se notar, desse modo, que ao ser enviado ou mandado para aquele lugar, o anjo

Gabriel estava engajado em uma ação completa, plenamente dotada de sentido.

Deus, contudo, não o envia a um lugar sagrado, porém a um lugar profano, donde não

havia saído nenhum profeta e donde se dizia que não podia sair nada de bom (cf. Jo 1, 46).

O anúncio angélico, aquele que marcaria o início da etapa definitiva da história (cf. Gl

4,4-5), acontece, como reconhece Garcia Paredes (1997), na marginalização e na pobreza

política e cultural33

. Sustentando sua análise nessa mesma direção, pode-se recordar da

afirmação de Descalzo (1994), para quem o artífice desse plano “escolhera um pobre pano de

fundo para uma grandiosa cena”34

.

Maria – a destinatária da mensagem a ser transmitida por Gabriel – é-nos revelada

como uma jovem mulher da Galiléia, região que era tida pelos judeus da época como mestiça

e pouco ortodoxa, desprezada pelos moradores da capital. Além disso, Nazaré, aparece como

um vilarejo obscuro, desconhecido quase totalmente nos registros e profecias vétero-

testamentários, no Talmud e para o historiador Flávio Josefo35

.

De mais a mais, Maria nos é apesentada como uma Virgem. O autor lucano opta pelo

termo παρθένον (cf Lc 1, 27), isto é, uma mulher além da puberdade, mas que nunca teve

relações sexuais e que ainda não está casada.

Sobre essa peculiaridade da caracterização mariológica, Garcia Paredes (1997)

clarifica que para “sensibilidade hebreia, torna-se ainda mais estranho que o grande

mensageiro escatológico de Deus, seja enviado a uma mulher virgem, a uma mulher na sua

impotência”36

.

33

GARCIA PAREDES, 1997, p.58. 34

DESCALZO, 1994, p.101. 35

cf. BOFF, 2004, p. 47. 36

GARCIA PAREDES, 1997, p.58.

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45

O mesmo verso 27, no capítulo 1, do terceiro evangelho, prossegue narrando que “o

nome da Virgem era Maria”.

É importante lembrar que, entre os hebreus, os nomes próprios são indicativos da

missão de seus portadores. Posto isto, deve-se buscar compreender o que “Μαρία” pode

revelar.

Sabe-se que Maria - a forma latina dos nomes gregos Μαριαμ (Mariam) e Μαρία

(Maria) - derivou do hebraico ימ o nome da irmã de Moisés, no Pentateuco. O ,(Miryam) מי

seu significado, entretanto, não é conhecido com certeza, mas existem várias possibilidades,

as quais tendem a incluir "mar de amargura" e "rebelião". No entanto, provavelmente era, em

origem, um nome egípcio, derivado, em parte, de mry "amado" e, também, de mr "amor".37

Maria, essa jovem nazarena, parece, de fato, ter sido amada sem igual e, também,

arrancada do curso normal da História e de uma existência ordinária para ser transformada em

protagonista da “aventura” da salvação. Sabendo, pelo Arcanjo, da elevada missão que lhe

fora confiada, compreendeu que lhe era oferecida uma muito alta dignidade: vir a ser a mãe

do Filho de Deus. A convite divino, então, ela colocou-se a serviço do plano salvífico com

esmero de serva e toda a afeição de mãe38

.

Com afirma Jean Galot (2014) desde aquele “sim”, em Nazaré, a tarefa de servir a

Deus, para a Virgem Maria, ganhara uma amplitude e solicitude incomparavelmente

agigantadas. Podemos admitir com Murad (1996), que o favor de Deus lhe pertence a partir de

dentro. Ela foi envolvida, enriquecida e recriada em gratuidade. Deus fixou-se,

amorosamente, nela, colocando-a, pela imensidade de seu favor, ao lado das grandes figuras

do Antigo Testamento e a desempenhar um papel ativo e insubstituível na história de seu

povo39

.

Assim como o nome de Maria, o filho por nascer já tem, também, seu nome

determinado pelo mensageiro angelical. O texto lucano coloca em suas palavras: “Tu lhe

porás o nome de Jesus (Ἰησοῦς)” (Lc 1, 31)

Ἰησοῦς é a forma grega do nome aramaico י עוש (Yeshu'a). Yeshu'a é, por sua vez, uma

contração de Yehoshu'a, isto é, Josué, que significa "YAHWEH é salvação". No Antigo

37

cf. https://www.behindthename.com/name/mary. Acesso em 02/01/2018. 38

cf. GALOT, 2014, p. 33. 39

cf. MURAD, 1996, p.98.

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46

Testamento, Josué (cujo nome original era Hoshea) foi um companheiro de Moisés e,

também, quem liderou a conquista de Canaã, sucedendo Moisés40

.

Maria foi, desse modo, agraciada por Deus com a maternidade messiânica e,

recebendo do anjo a incumbência de dar nome ao Filho, ela assume, contra os costumes da

época, uma responsabilidade que era tarefa paterna. Vede, quanto a isso, a controvérsia no

processo de nomeação do de João, o batista, cujo nascimento também fora fruto de uma

intervenção divina, em Lc 1, 57-63.

Dessa forma, pode-se notar que no processo da anunciação angélica aqueles que

acompanham a narrativa lucana são defrontados com muito mais do que a simples

apresentação de um nascimento extraordinário.

Apresentam-se, nesse momento, a Maria, referências explícitas de que seu filho viria a

ser o Messias-rei, segundo 2Sm 7 e, por isso, participaria da grandeza de Deus e, por ele

próprio, seria chamado de filho.

Nesse sentido, a experiência da Anunciação revela o ponto culminante de adesão de

figura de Maria a Deus e, por conta disso, toda a transformação da expectativa salvífica para a

História.

A seção seguinte tratará de como a virgem de Nazaré responde a essa apresentação.

7.2.3 Segundo anúncio e resposta de Maria (Lc 1, 34-38)

“Como se fará isso, se não conheço homem”? (Lc 1, 34)

Depois da apresentação do anjo e de sua exposição acerca da concepção daquele que

viria a ser o Filho do Altíssimo (cf. Lc 1, 32), a posição de Maria é questionar o mensageiro

angelical.

Interessante notar, contudo, que a pergunta da Virgem de Nazaré não indaga pelo

porquê, ou seja, seu interesse não repousa sobre a razão que sustenta esses possíveis

acontecimentos; mas, sim, está buscando compreender o processo através do qual isso pode

dar-se.

40

cf. https://www.behindthename.com/name/jesus. Acesso em 02/01/2018.

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47

O “de qual modo” interrogativo da Virgem é um sinal indicativo de uma personalidade

reflexiva e atenta. Maria não se mostra uma jovem ingênua. Daí a sua pergunta repleta de

franqueza.

De certa maneira, pode-se entender que com esse questionamento já nos encontramos

diante de um assentimento mariano, pois ela reconhece que Deus almeja realizar, através do

intermédio dela, uma maternidade maravilhosa.

A atitude de disponibilidade e responsabilidade de Maria levam-na a perguntar pelo

“como”. Porquanto para que Deus possa engendrar seu plano, a Virgem dá-se conta que nela

própria não se encontram a energia, o vigor e a substância suficientes para que isso venha a se

concretizar.

Maria pergunta a Deus – por meio de Gabriel – não para procurar desviá-lo de seu

intento, nem para lhe impor obstáculos, mas quer apresentar-se diante dele como ela é, na

realidade: uma pobre mulher e, além disso, uma virgem.

Autran (1998) considera essa cena lucana a partir do contexto constitucional de uma

experiência teofânica. Buscando precisar a apreensão desse autor recorremos à contribuição

de Eliade (1987), quem concebe que toda teofania é, fundamentalmente, uma hierofania, isto

é, uma manifestação do sagrado. A particularidade da teofania encontra-se, na medida em

que, essa amostra do sagrado dá-se através da revelação da presença de um ser divino.

Para além dessas distinções conceituais, apropriámo-nos da elaboração de Eliade

(1987), visto que, para além das particularidades da experiência hierofânica, esse autor aponta

que esses eventos “afetam diretamente a situação da existência humana, a condição pela qual

os seres humanos compreendem sua própria natureza e abarcam seu destino”41

.

As hierofanias, então, podem transbordar em uma experiência epifânica, ou seja, uma

experiência repentina e impressionante de percepção, pela qual um aclaramento permite que

uma situação seja compreendida a partir de uma perspectiva nova ou talvez mais profunda.

As emoções – que o texto do terceiro evangelho permitem entrever em Maria – não

parecem ser, portanto, fatos psicológicos, tampouco temor de natureza moral. Todo o relato

da Anunciação, através do registro lucano, apresenta a experiência mariana como imagem de

uma vivência por parte de uma crente em perfeição.

41ELIADE, 1987, p. 315. No original: “[Hierophanies] directly affect the situation of human existence, the

condition by which humans understand their own nature and grasp their destiny”.

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48

A atenção da virgem de Nazaré, por conseguinte, aparece – para o interlocutor do

texto – toda voltada para aquilo que as palavras do Anjo representam, isto é, o anúncio de

algo que vem da parte de Deus. A perturbação de Maria é, nesse caso, aquela de quem é

convidado a interpretar o mundo e seus acontecimentos de maneira diferente da que sempre o

fez.

E aquilo que Gabriel revela parece estar longe do que é facilmente compreensível: “o

Espirito Santo virá sobre ti e o Poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra”. (cf. Lc 1, 35).

Este é o vértice do relato da intervenção do Espírito na geração do Messias. No

entanto, muitas das traduções em língua portuguesa parecem não fazer justiça àquilo que a

opção literária do texto lucano nos evidencia.

O termo – que foi nessa perícope traduzido por “cobrir com a [sua] sombra” – é um

daqueles pouco, frequentemente, utilizados pelos autores neotestamentários, dessa forma

pode-se compreender o que a opção por esse termo deseja transmitir. O verbo grego

ἐπισκιάζω ocorre apenas cinco vezes em todo o Novo Testamento, sendo que dessas é

utilizado três vezes no registro de um mesmo evento nos evangelhos sinóticos, a saber, o

relato da “Transfiguração”.

Em Mc 9, 7; em Mt 17, 5; e, no próprio texto lucano (9, 34), defrontamo-nos com a

presença desse verbo designando o resultado da ação da “nuvem” sobre o monte, onde

estavam Jesus e os discípulos que ele escolhera. Vale lembrar que esses textos concordam que

foi da própria nuvem que saiu a voz, que autorizava Jesus. Interessante notar, também, que a

opção vocabular para traduzir esse uso do termo nesse contexto narrativo não é, em todas as

vezes, “cobrir com sombra”; mas, sim, “envolver”.

O quarto uso do verbo ἐπισκιάζω está no segundo texto do complexo Lucas-Atos – 5,

15 – e registra o seguinte: “a ponto de transportarem os enfermos para as ruas, e os porem em

leitos e macas, para que ao passar Pedro, ao menos sua sombra se projetasse sobre alguns

deles”.

Nesse caso, a tradução optou por uma aproximação mais etimológica do termo,

fazendo com que nos apropriemos do seu sentido mais próprio. Dessa forma, o relato da

Anunciação, talvez, viesse a revelar mais plenamente seu significado se a opção de tradução

não viesse de “cobrir”, mas, sim, de “ensombrar” ou “eclipsar”. Compreendendo, todavia, que

algo permanece como resultado natural, isto é o plano ou deliberação de Deus para as

circunstâncias históricas, sua βουλή.

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49

Diante disso, tem-se que perceber que a apresentação de Gabriel evoca a nuvem

misteriosa, que ensombreando, transforma o real em morada de Deus. Eclipsar, portanto, a

virgem com a sombra é meio para torná-la fecunda do Filho.

O Espírito Santo – com poder e sombra – transformaria Maria na casa de Deus. Ela

viria a ser o novo tabernáculo do encontro, onde a humanidade pode entrar em comunhão com

seu Deus (cf. BOFF, 2004, p. 51).

A resposta do anjo acerca da maternidade, portanto, indica como Deus se empenha e

compromete com Maria para realizar seu desígnio – sua βουλή. Antecipa-se ao Pentecostes,

como se, vindo sobre a Virgem de Nazaré, já estivesse irrompendo-se sobre a comunidade de

fé. O Espirito Santo, como dínamo criador, para o qual não há impossível, indica nela uma

nova criação.

Quanto a esse ponto, podemos acompanhar as considerações do padre Francisco

Fernández-Carvajal (1992), quem mostra que:

A partir desse momento, o Verbo de Deus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade

fez-se carne nas entranhas puríssimas de Maria. Foi o que de mais admirável e

assombroso aconteceu desde a criação do mundo. E aconteceu num pequeno

povoado desconhecido, na intimidade de Maria. A Virgem compreendeu a sua

vocação, os planos de Deus a seu respeito42

.

Desde então, todos os pequenos episódios que constituiriam a trama da existência de

Maria, viriam a ganhar um novo relevo. Ao som das palavras do anjo tudo ganhou uma

explicação sobrenatural. De súbito, Maria de Nazaré foi colocada – e, também, colocou-se –

no centro da História, para além do tempo e do espaço.

“Ele será santo e será chamado Filho de Deus” (Lc 1, 35). Diante dessa afirmação do

mensageiro divino, pode-se questionar: que sabia a Virgem de Nazaré da identidade do Filho?

Ela poderia, por essas palavras, intuir de um modo geral e atemático, mas não de

forma clara. Segundo a Constituição dogmática Lumen Gentium (58), Maria avançava em

uma peregrinação de fé. Como toda comunidade dos féis, ela também caminhou da penumbra

para a luz, em direção à verdade plena.

42

FERNÁNDEZ-CARVAJAL, 1992, p.239.

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50

É a potência divina, portanto, que imediata e unicamente constitui Maria em autêntica

mãe; por isso, o filho nascido viria a ser santo, isto é, pertencente ontologicamente ao divino e

reconhecido com autêntico Filho de Deus (cf. Lc 1, 35: Υἱὸς Θεοῦ).

O texto lucano, desse modo, patenteia Maria e Deus como empenhados na mesma

maternidade. Deus como criador e a Virgem de Nazaré como criatura agraciada.

“A Deus nada é impossível” (Lc 1,37). Essa afirmação de Gabriel, tanto afirma a

experiência de Isabel, quanto sustenta, em esperança, a perplexidade de Maria. A encarnação

e a transposição da virgindade de Maria são portentos que se opõem, apenas, na esfera das

possibilidades divinas são conciliáveis. Fora disso, são incompreensíveis.

Não se podem medir esses mistérios com os parâmetros das possibilidades humanas,

desvendadas pela razão natural. A virgindade de Maria torna-se espaço oferecido à

fecundidade do Espírito Criador. Clodovis Boff (2006) argumenta nesse sentido afirmando

que:

A virgindade pode ser o espaço onde brota a “vida nova”. Deus é, de fato, poderoso

para tirar da impotência a vida. Para isso a Virgem irrompe na cena do mundo com a

realização da potência vivificante do Espírito: ela concebe “pelo poder do

Altíssimo”, que a investe e a fecunda (Lc 1, 35). Assim, a virgindade emerge como

fonte de vida nova: vida que não procede “da carne e do sangue”, mas “do alto”, a

saber, do Espírito Santo (cf. Jo 3, 3.7). A virgindade aparece então como possuidora

de uma fecundidade propriamente divina.43

“Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Diante

desse “espaço” de fecundidade, essa resposta, encontrada no versículo citado anteriormente,

mostra-se prodigiosa e admirável. No entanto, isso está em concordância com a apresentação

lucana da Virgem nazarena. No complexo Lucas-Atos, Maria é uma jovem mulher centrada.

Ela ouve, é surpreendida, questiona (especialmente, o “como”), confia e assume as

consequências de seus posicionamentos.

Maria de Nazaré, mostra-se, portanto, como uma mulher que diz “sim”, de modo livre

e determinado. Sua fé foi ativa e obediente. O título de “serva”, que ela se deu, não marca

uma condição social inferiorizada, mas revela uma posição ideológico-teológica. Tal

posicionamento patenteia, sobretudo, uma disposição particular em direção daquele com

quem se estabelece um vínculo. Com o fiat, Maria se mostra a primeira e mais perfeita

discípula de Cristo, aquele que viria a nascer através dela.

43

cf. BOFF, 2006.

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51

Essa compreensão – importa ressaltar – depende de uma apreensão consciente do

termo pelo autor lucano. Mais uma vez, pode-se questionar aquilo pelo que as traduções

optam e, também, aquilo que o hábito popular consagra. “Serva” e “escrava” são, por certo,

termos vinculados a conceitos densamente carregados de significação. Especialmente, no

contexto, brasileiro – no qual estamos – visto que o Brasil foi o último país americano a

proibir a escravidão.

O autor lucano, então, elege o termo δούλη. A princípio, essa palavra designa, sim,

alguém que pertence a outro, portanto, sem nenhum direito de propriedade próprio. No

entanto, ainda que os autores neotestamentários, especialmente, os autores evangélicos, façam

uso desse conceito a partir de seu sentido mais primário, o uso do autor do terceiro evangelho,

nesse caso particular, mimetiza, fundamentalmente, uma apropriação paulina do termo. Leve-

se em consideração, para essa afirmação, a aproximação Lucas-Paulo já evidenciada

anteriormente.

Tomemos, desse modo, três amostras retiras da produção do epistolário paulino, a

saber: Gálatas, 1Coríntios e Filipenses. Optamos por buscar exemplos nessas cartas,

porquanto, encontram-se entre as mais antigas no corpus paulino – com produção estendendo-

se entre os anos 53-55 EC – o que as posiciona entre duas e três décadas antes da escrita do

terceiro evangelho (garantindo, assim, uma assimilação de seu uso terminológico e conteúdo

teológico). Além do mais, essas três peças têm o entendimento de sua autoria garantido pela

comunidade de especialistas.

Observe-se, isto posto, o quadro abaixo.

GÁLATAS 1CORÍNTIOS FILIPENSES

1, 10c 7, 22b 1, 1a

Nestle, 1904.

εἰ ἔτι ἀνθρώποις

ἤρεσκον, Χριστοῦ

δοῦλος οὐκ ἂν ἤμην

ὁ ἐλεύθερος κληθεὶς

δοῦλός ἐστιν Χριστοῦ

Παῦλος καὶ Τιμόθεος

δοῦλοι Χριστοῦ Ἰησοῦ

se estivesse ainda

agradando aos homens,

não seria servo de

Cristo.

e assim também o que

foi chamado sendo

livre, escravo é de

Cristo.

Paulo e Timóteo,

servos de Cristo Jesus.

Quadro 2: Esquema comparativo de exemplos do uso do termo δοῦλος e suas variantes em três epístolas

paulinas.

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52

A partir desses exemplos, portanto, podemos ver que o texto paulino apropria-se dos

termos a partir de um mecanismo metafórico, tomando, para tanto, o sentido aristotélico

atribuído a essa figura de linguagem, para quem, com a metáfora tem-se a ação que “[...]

consiste no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da

espécie para o gênero, ou da espécie de uma para a espécie de outra, ou por analogia”44

.

O δοῦλος, assim, é transportado de seu uso corriqueiro para significar outra forma de

relação, a qual, desde essa percepção paulina, representa o vínculo entre o aderente/fiel e

Cristo. Pode-se notar, desta forma, que se reverte, nesse uso metafórico, ao sentido mais

primitivo da raiz do termo, isto é, “atar, ligar e atrair”.

A vinculação, portanto, que o autor lucano parece pretender transparecer, com a

afirmação da virgem – em Lc 1, 38 – é essa mesma oriunda da apresentação dos exemplos do

corpus paulino.

Maria é “serva”, não por inferioridade ou submissão, mas – metaforicamente – por

atração. Uma atitude lúcida motivada pelo seu encontro com o mistério de Deus.

Essa vinculação como nos relata Garcia Paredes (1997) chega, deste modo, ao seu

ponto culminante, quando ela aceita esse chamamento de ordem divina e manifesta a vontade

de que se cumpra o que o Senhor anunciara através do mensageiro celestial.

Nessa resposta final, em vista disso, tem-se Maria dando o seu assentimento e a sua

colaboração de “serva do Senhor”. A promessa começa a se realizar a partir do momento em

que Maria aceita a efetivação da Palavra anunciada. Ela é a primeira crente a entrar no plano

de Deus mediante a entrega total de sua pessoa, a obediência alegre e uma confiança tranquila

na atividade divina.

Por isso, diante dessas considerações, desenvolveremos, na seção, a seguir, alguns

apontamentos acerca da perfeição do discipulado mariano.

7.3 MARIA, PERFEITA DISCÍPULA

Alcançando este estágio deste trabalho de pesquisa, pode-se afirmar, com bastante

segurança, que a fé de Maria foi dinâmica, sujeita ao tempo, de modo que foi interpretada

como tendo positivamente se transformado, ao longo da sua peregrinação da fé45

.

44

ARISTÓTELES, 1996, p. 92.

45cf. Constituição dogmática Lumen Gentium, n. 58

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53

De maneira simbólica, é possível atestar que a experiência mariana – sobretudo, a

partir desse evento narrado no contexto do terceiro evangelho – configurou-se como uma

passagem do contexto vétero-testamentário da fé para um território marcado pela prática

neotestamentário e cristológica, na qual a Virgem de Nazaré revela-se como verdadeira

discípula de Jesus, fazendo o caminho do discipulado desde a Anunciação até o Pentecostes.

Os cristãos católicos, comumente, admitem a importância de Maria, porquanto foi a

mãe de Jesus. O autor lucano, no entanto, mostra que não reside, exclusivamente sobre esse

dado, seu principal atributo. Penetrar a estrutura de pensamento do complexo Lucas-Atos e

compreender seus posicionamentos mariológicos, demanda olhar a trama, as costuras e os

detalhes do seu aparato narrativo, percebendo o que ele apresenta sobre Maria.

Esse, de fato, tem sido o objetivo deste trabalho.

Para o texto evangélico lucano a Virgem nazarena não só é a primeira discípula cristã;

mas, sim, a perfeita seguidora de Jesus, porquanto foi a partir das condições concretas de seu

cotidiano que ela aderiu – total e responsavelmente – à vontade de Deus. Esse modelo

mariano de adesão viria a tornar-se padrão para os demais seguidores de Jesus46

.

Desse modo, como peregrina na fé e discípula, Maria foi convocada a vivenciar

intensa e intimamente a mudança, que, sem dúvidas, lhe afligiria, mas não lhe confundiria,

porque a graça – da qual é plena – ajudar-lhe-ia a olhar a realidade. E qual seria essa mudança

experimentada por Maria de Nazaré?

Candiotto (2011), refletindo sobre a experiência mariana, na perspectiva da narrativa

do terceiro evangelho, aponta que a vivência de Maria tem o caráter de ser uma experiência de

síntese. Assim, pode-se reiterar que essa mudança vivida pela jovem de Nazaré assume essa

maneira sintetizadora das múltiplas vivências femininas, a saber, a virgindade, a

conjugalidade e a parentalidade. Segundo a autora, Maria “é uma figura de síntese, (...). (...)

integra ao mesmo tempo a condição de Virgem, Esposa e Mãe, algo inaudito na história

humana. A simultaneidade dessa tríplice condição é, (...), subversiva para a sociedade de seu

tempo”47

.

Não se pode deixar de lado, ainda, que para essa Virgem o resultado dessa experiência

de síntese foi surgindo lentamente. Bem como para outros aprendizes de Jesus, ela não tinha,

de imediato, clareza de tudo. Precisou fazer descobertas na trajetória de seu caminho

46

Vejam-se, também, as narrativas vocacionais em Lc 5, 1-11 e Lc 5, 27-28. 47

cf. CANDIOTTO, 2011, p. 204.

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54

espiritual. Quando transpassada pela aguda profecia de Simeão (Lc 2, 34-35), precisou calar e

perscrutar, quando interpelada pelo Filho, no Templo, ficou a meditar (Lc 2,41-51).

A vida de Maria desenrolou-se amparada pelas urdiduras da fé, as quais são pouco

visíveis e compreensíveis a primeira vista, mas que dependem da confiança nos desígnios

impenetráveis de Deus48. Com seu “sim”, ela avançou na peregrinação de fé e se transformou

na máxima realização da existência cristã. Como atesta González (1990):

O sim de Maria não se refere a um chamado de Deus para uma transformação

individual ou para uma santidade privada. (...) dizendo sim à maternidade, Maria

disse sim à obra de seu Filho. E essa obra de seu Filho nada mais é que a salvação

coletiva de toda a humanidade49

.

O serviço, por excelência que Maria presta a Deus, na história, é acolher e escutar sua

Palavra, torná-la carne em sua vida e oferecê-la ao mundo como salvação e vida. Como tal é

tipo ideal daquele que adere à revelação e da Igreja como um todo; daquele que aceita a

Palavra e a encarna na vida para logo a dar ao mundo como testemunho e Palavra de vida50

.

Maria alcançou a distinção por cooperar, incansavelmente, com os favores divinos.

Quando testada pelo sofrimento, aceitou despojar-se de si para se transformar num composto

de força e fé. Ela passou pelo crivo da espada da Palavra, e cresceu mediante cada uma de

suas feridas.

Sua vida inteira foi marcada pelas duras exigências da confiança, de uma fé que

desabrocha através de meditações profundas e do contato íntimo com o divino que cresce –

como seu Filho. Como lembra o carmelita Gabriel de Santa Maria Madalena (2008):

O apostolado de Maria é todo interior: apostolado de oração e, sobretudo, de

imolação oculta pela qual adere com grande amor à vontade de Deus que lhe pede a

separação do Filho depois de trinta anos de doce intimidade com ele, para pôr de

parte, como que deixando aos Apóstolos e às multidões, aquele lugar que, como

Mãe, lhe compete junto de Jesus. Assim, no escondimento e no silêncio, participa

Maria do apostolado e do sofrimento de Jesus51

.

Maria, tem-se de concluir, é, desde o princípio, a discípula ideal de Jesus. Ela soube

escutar, reter e dar frutos a partir da Palavra que acolhe. Ela não se apegou ao privilégio de

48

cf. SCHILLEBEECKX, 1968, p.13. 49

cf. GONZÁLEZ, 1990, p. 81. 50

cf. ÁLVAREZ, 2005, p. 63. 51

cf. GABRIEL DE SANTA MARIA MADALENA, 2008, p. 403.

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sua maternidade, mas fez a caminhada – interna e externa – do discipulado. Soube melhor que

todos colocar em prática o que ouvira.

Segundo a consideração de Fonseca (2013), o “seguimento de Jesus tem, na

experiência de Deus como Pai, a pedra basilar”52

. E tem-se de confirmar – como a perícope da

Anunciação garante – que a Virgem de Nazaré foi quem mais intensamente provou e realizou

esse atributo constitucional da divindade.

Segundo a Constituição dogmática Lumen Gentium, em seu número 56,

Deus adornou-a [Maria] com dons dignos de uma tão grande missão; (...). (...). Deste

modo, Maria, filha de Adão, dando o seu consentimento à palavra divina, tornou-se

Mãe de Jesus e, não retida por qualquer pecado, abraçou de todo o coração o

desígnio salvador de Deus, consagrou-se totalmente, como escrava do Senhor, à

pessoa e à obra de seu Filho, subordinada a Ele e juntamente com Ele, servindo pela

graça de Deus omnipotente o mistério da Redenção. Por isso (...) Maria não foi

utilizada por Deus como instrumento meramente passivo, mas que cooperou

livremente, pela sua fé e obediência, na salvação dos homens.

Pode-se testemunhar, desse modo, a partir dessas considerações que a grandeza e a

gravidade do discipulado de Maria de Nazaré encontram-se na ação mariana de render-se ao

Autor do chamado; no entanto, não de uma forma marcada pela imobilidade ou passividade,

mas ativamente por meio da fé, da escuta e do serviço ao “mistério da redenção”.

A virgem de Nazaré, portanto, no evento da anunciação, despontou como modelo

completo de vocacionada e de discípula. Maria é a mulher que se torna ferramenta, que atua

livremente, através da posição de serva, para a realização dos desígnios de Deus no processo

de consumação da história da salvação.

Alexandre Awi oferece uma belíssima contribuição no tema do discipulado ao dizer

que:

Ser uma “perfeita discípula” não foi algo acidental na vida de Maria, algo

secundário que podia se dar ou não se dar. Ser discípula corresponde ao núcleo

central de sua vida e de sua missão, pois Deus ao pensar a encarnação de seu Filho a

pensou inseparavelmente unida ao sim e à pessoa de Maria. Ele ainda afirma que ela

poderia ter falhado na realização de sua missão, mas a sagrada escritura confirma

sua fidelidade a esta atitude discipular53

.

Na sequência, apresentaremos algumas considerações finais, que servem de arremate

para este trabalho.

52

cf. FONSECA, 2013, p. 143. 53

AWI, 2017, p. 37

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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fé de Maria, sua obediência à vontade de Deus, sua constante meditação da Palavra

e das ações de Jesus, esculpiram nela o perfeito discipulado do Senhor.

Isso é o que parece atestar-nos o texto evangélico lucano, especialmente a partir

daquilo que encontramos registrado na perícope da Anunciação, que foi objeto de nossa

atenção ao longo deste trabalho.

Esses caracterizadores da figura mariana encontram-se, por certo, em alguns casos,

ainda em estado germinativo. No entanto, a costura, a trama e os detalhes da narrativa lucana

indicam um caminho de desenvolvimento, isto é, um mapa para o crescimento da pessoa de

Maria, que podem evidenciar o surgimento de uma perfeita discípula de Jesus.

Este trabalho iniciou-se pretendendo encontrar nesse fragmento do terceiro evangelho

a delineação da Virgem de Nazaré como discípula do Messias. Para tanto, buscou-se

apresentar, de forma geral, as características marcantes do Evangelho de Lucas; explorar o

sentido e a trajetória do conceito de “discipulado”; e, por fim, apontar Maria como perfeita

discípula, segundo Lc 1, 26-38.

Faz-se pedagógico no contexto deste trabalho, aludir à canção “Anunciação”, de Alceu

Valença. Nessa música, o artista pernambucano canta “Tu vens chegando/ Pra brincar no meu

quintal/ (...)/A voz do anjo/ Sussurrou no meu ouvido/ Eu não duvido/ Já escuto os teus

sinais”.

O sujeito, que é a voz da canção, está longe da realidade do texto evangélico lucano.

Ainda assim, há algo de importante, para ressaltarmos, neste momento de considerações

finais.

Assim como com essa narrativa da letra de Alceu Valença, a perícope estudada,

apresenta um momento de preparação, isto é, um instante de atenção aos sinais daquilo que

está por vir.

Maria apreende todo o sentido do anúncio angélico e do empoderamento com a

potência do Espírito Santo e isso já a habilita e capacita para o discipulado. Da mesma forma

que o eu-lírico, na música, já se alegra com aquele que está por vir e brincar.

Nesse momento da narrativa evangélica, a Virgem de Nazaré vive o já, mas ainda não

do discipulado. “Já”, porquanto com seu “sim” encontra-se em plena abertura e total acolhida

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daquilo que nela é o agir divino. “Ainda não”, pois o discipulado implica em um mestre a ser

seguido e imitado e esse ainda estava por vir – mesmo que através dela.

Maria, então, assume a trama – a tessitura – do discipulado. Antevê os detalhes, antes

mesmo dos pontos serem dados nesse tecido, que está oferecendo livremente para o mover

divino, na composição da História da salvação. E esse tecido é sua própria vida.

Não podemos, por fim, é fato, imitar Maria na sua maternidade divina, pois só ela é a

Mãe de Jesus segundo a carne. Ainda assim, podemos imitá-la em seu discipulado ao Senhor,

que ela acolheu.

Dessa forma, a primeira e maior bem-aventurança de Maria foi ter acolhido a Palavra

de Deus e dela feito a prática de toda a sua vida. Isso pode tornar-se, também, a nossa bem-

aventurança.

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