19
1 Curso: Direito Constitucional Teoria da Constituição Aula: Poder Constituinte Originário - Parte 1 Professor: Marcelo Tavares Resumo 1. Estrutura do Poder Constituinte Nesta aula será estudada a estrutura do Poder Constituinte. Como visto em aulas pretéritas, há uma ligação da Ciência Política com a Teoria do Poder Constituinte, posteriormente foi desenvolvido um conceito amplo do Poder Constituinte, cuja classificação era igualmente ampla. Neste bloco de aula será iniciada a discussão a respeito do Poder Constituinte Originário. Conforme visto, o Poder Constituinte pode se dividir em Poder Constituinte Originário e Poder Constituinte Derivado, sendo que no Originário foi vinculado ao núcleo verbal “criar o Estado”. Dentro desta ideia, deve-se agora definir o Poder Constituinte Originário de forma específica: “O Poder Constituinte Originário é uma força política consciente de si, capaz de organizar as instituições estatais através da tomada de decisão a respeito dos princípios de regência da sociedade”. Dendo uma “força política”, o Poder Constituinte Originário pré existe à própria existência do Estado. Então, primeiro surge o Poder Constituinte e depois vem o contrato social, concretizado através da Constituição. O Poder Constituinte Originário, então, é uma força política que pré existe ao Estado, é um poder “consciente de si” (logo, ele tem consciência da sua força), “ capaz de organizar as instituições estatais através da tomada de decisão a respeito dos princípios de regência da sociedade” (assim, há uma manifestação de Poder Constituinte na criação de cada Estado dentro da comunidade de nações). Esse é o conceito do Poder Constituinte Originário, que pode ser inserido no seguinte esquema: Poder Executivo Poder Judiciário Constituição Poderes Constituídos Poder Legislativo

Curso: Direito Constitucional Teoria da Constituição Aula ......1 Curso: Direito Constitucional – Teoria da Constituição Aula: Poder Constituinte Originário - Parte 1 Professor:

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • 1

    Curso: Direito Constitucional – Teoria da Constituição

    Aula: Poder Constituinte Originário - Parte 1

    Professor: Marcelo Tavares

    Resumo

    1. Estrutura do Poder Constituinte

    Nesta aula será estudada a estrutura do Poder Constituinte.

    Como visto em aulas pretéritas, há uma ligação da Ciência Política com a Teoria do Poder

    Constituinte, posteriormente foi desenvolvido um conceito amplo do Poder Constituinte, cuja

    classificação era igualmente ampla.

    Neste bloco de aula será iniciada a discussão a respeito do Poder Constituinte Originário. Conforme

    visto, o Poder Constituinte pode se dividir em Poder Constituinte Originário e Poder Constituinte

    Derivado, sendo que no Originário foi vinculado ao núcleo verbal “criar o Estado”. Dentro desta

    ideia, deve-se agora definir o Poder Constituinte Originário de forma específica:

    “O Poder Constituinte Originário é uma força política consciente de si, capaz de organizar as

    instituições estatais através da tomada de decisão a respeito dos princípios de regência da sociedade”.

    Dendo uma “força política”, o Poder Constituinte Originário pré existe à própria existência do

    Estado. Então, primeiro surge o Poder Constituinte e depois vem o contrato social, concretizado

    através da Constituição.

    O Poder Constituinte Originário, então, é uma força política que pré existe ao Estado, é um poder

    “consciente de si” (logo, ele tem consciência da sua força), “ capaz de organizar as instituições

    estatais através da tomada de decisão a respeito dos princípios de regência da sociedade” (assim, há

    uma manifestação de Poder Constituinte na criação de cada Estado dentro da comunidade de nações).

    Esse é o conceito do Poder Constituinte Originário, que pode ser inserido no seguinte esquema:

    Poder Executivo

    Poder Judiciário

    Constituição

    Poderes Constituídos

    Poder Legislativo

  • 2

    Neste esquema há a Constituição, depois dela, há os poderes constituídos (ou seja, poderes previstos

    na Constituição sendo, no caso, os Poderes Legislativos, Executivos e Judiciários, conforme teoria de

    Montesquieu), sendo esta a teoria que prevalece no Brasil. Então, o funcionamento institucional

    desses órgãos de poder deve observar a Constituição, porque se tratam de poderes constituídos, que

    encontram fundamento jurídico na Constituição.

    2 Natureza Jurídica do Poder Constituinte Originário

    Sendo o Poder Constituinte uma força política anterior à Constituição, logo, uma força política que

    pré existe à Constituição, estaria o Poder Constituinte subordinado à Constituição? Não, uma vez que,

    justamente por existir antes da própria existência da Constituição, ele não pode estar subordinado a

    ela. Assim, qual seria a natureza jurídica do Poder Constituinte Originário?

    Há duas escolas que buscam explicar este fenômeno:

    - Para a escola de Hans Kelsen, o Poder Constituinte Originário é um poder de fato, não encontrando

    fundamento jurídico em nenhuma ordem jurídica, pois pré existe à Constituição. Essa é a teoria que

    prevalece.

    - Para a escola do abade Emmanuel Sieyès, o Poder Constituinte é um poder de direito, porque deve

    observar o direito natural. Então, haveriam regras estruturais pré existentes ao Estado, que fariam

    uma constrição jurídica ao Poder Constituinte Originário. Então, o abade Emmanuel Sieyès trabalha

    ainda com o conceito de direito natural anterior ao Estado, com normas que, na realidade, seriam de

    comunhão de todos os homens em qualquer lugar do planeta, Sieyès entende que exista uma ordem

    natural (um direito natural) não escrito, e que esse direito serviria como fundamento jurídico ao Poder

    Constituinte Originário, e por isso que o Poder Constituinte Originário é um poder de direito fundado

    na ordem jurídica do direito natural.

    Mesmo não sendo esta a escola que prevalece, é importante conhecer esta estrutura porque nela pode-

    se ver o Poder Constituinte como algo que pré existe ao Estado e que, em princípio, a Constituição

    não tem como constranger o funcionamento do Poder Constituinte. Depois que existe a concretização

    do contrato social através da Constituição, passam a existir poderes constituídos, que têm suas ações

    subordinadas à Constituição.

    Os atos do Poder Legislativo são subordinados à Constituição, podendo deste modo ser objeto de

    controle de constitucionalidade (pela aceitação de que a Constituição, sendo pré existente ao Poder

    Legislativo, teria seu fundamento jurídico acima do ato legal produzido pelo Poder Legislativo). Se a

    lei contraria a Constituição, ela pode ser invalidada. O mesmo fenômeno ocorre em relação aos atos

    do Poder Executivo e Judiciário.

    Logo, em relação aos poderes constituídos, eles têm natureza de poder de direito fundado na

    Constituição (a Constituição, tendo supremacia, serviria de paradigma para o funcionamento dessas

    três ordens de poderes constituídos).

    Isso não acontece, por outro lado, quando se vê o Poder Constituinte como sendo anterior à

    Constituição, uma vez que este não teria como constrangê-la, e é por isso que prevalece a ideia de

    Hans Kelsen de que o Poder Constituinte é um poder de fato, ou seja, é uma manifestação política

    consciente de si, capaz de criar o próprio Estado.

  • 3

    3 Revolução Francesa: as raízes do Poder Constituinte

    Deve-se, agora, tratar de importante contribuição da Revolução Francesa para a estrutura do Poder

    Constituinte.

    No século XVIII, século da Revolução Francesa, despontaram os filósofos franceses mais

    importantes da teoria política: Montesquieu, Jean Jaques Rosseaut, dentre outros. Além disso, foi o

    século do desenvolvimento teórico do iluminismo, do enciclopedismo e, principalmente, da filosofia

    política francesa. Assim, enquanto os grandes teóricos ingleses pertenceram ao século XVII,os

    grandes teóricos políticos franceses são do século XVIII.

    Nesse contexto, Montesquieu e Jean Jaques Rosseau foram filósofos políticos que, através de seus

    estudos, “prepararam o terreno” para a eclosão da Revolução Francesa.

    O fato é que no final do século XVIII, a França estava exaurida em suas finanças pelo apoio dado

    para a guerra de independência norte-americana. Era muito importante para a França fazer com que o

    Reino Unido perdesse suas colônias na América do Norte (as 13 Colônias), de forma que elas pudesse

    comercializar livremente com a França, assim, a França deu um apoio muito forte aos colonos que

    fizeram a Guerra de Independência Norte Americana, e os gastos públicos provenientes deste apoio à

    guerra de independência norte-americana, exauriram os cofres franceses no reinado de Luis XVI.

    Assim, o rei Luis XVI estava com graves problemas financeiros, e resolveu convocar um órgão

    consultivo denominado “Estados Gerais” (não era um órgão legislativo, não tendo, deste modo,

    nenhum poder constituinte, até porque a França naquele momento vivia um absolutismo, com o rei

    sendo o representante de Deus na Terra), por isso que a coroa era sempre atribuída ao rei através do

    papa ou do seu representante durante a cerimônia de coroação, demarcando o rei como representante

    de Deus na Terra. A França vivia um momento absolutista, muito forte no reinado de Luis XIV, porém

    no reinado de Luis XVI também prevalecia a visão do poder absolutista de origem divina.

    Como dito, devido aos graves problemas financeiros, em 1789, o rei da França convocou os

    chamados “Estados Gerais”, órgão consultivo do rei, sem poder deliberativo. A última vez que os

    Estados Gerais foram convocados foi em 1642. A manifestação destes Estado Gerais era feita através

    dos Estados (também chamados “estamentos”) que representavam os grupos sociais predominantes

    na França. O 1° Estado era representado pelo Alto Clero (ex: bispos da França), o 2° Estado era

    representado pela nobreza, e o 3° Estado era representado pela burguesia (composto social formado

    pelos comerciantes, produtores agrícolas, baixo clero), em sua, a burguesia representava a “massa

    popular” francesa.

    A seguir, é possível ver a composição dos Estados Gerais1:

    1https://pt.slideshare.net/JooMedeiros3/o-fim-do-antigo-regime-revoluo-francesa-e-era-napolenica-27386031

    https://pt.slideshare.net/JooMedeiros3/o-fim-do-antigo-regime-revoluo-francesa-e-era-napolenica-27386031

  • 4

    A burguesia sabia que a manifestação dos Estados Gerais (representados pelos 1° e 2° Estados), seria

    favorável ao aumento dos tributos, porque o alto clero era imune à tributação e a nobreza também

    detinha diversas imunidades tributárias. Então a burguesia tinha a consciência de que, se os Estados

    Gerais se manifestassem cada um com 1 voto, ela (burguesia), sempre perderia por 2 a 1, até porque

    havia interesse do alto clero e da nobreza em apoiar o aumento de tributos para que as finanças da

    França de Luis XVI pudessem “respirar”, e quem pagaria esta conta seria o 3° Estado (representado

    pelo povo, comerciantes, produtores agrícolas e baixo clero).

    4 A importância da obra de Emmanuel Sièyes

    Através da obra do abade Emmanuel Sièyes (representante da burguesia como membro do baixo

    clero), o 3° Estado começa a se rebelar dentro da organização dos Estados Gerais. Sièyes escreveu

    um pequeno panfleto chamado “Qu'est-ce que le tiers état?” (“O que é o 3° Estado?”), que no Brasil

    foi traduzido como “A constituinte burguesa2”.

    Este pequeno livro de 90 folhas foi um panfleto explosivo, porque nele Emmanuel Suèyes coloca

    algumas perguntas que vão sendo respondidas nos capítulos posteriores. No primeiro capítulo,

    pergunta-se: “O que é o terceiro Estado?”, e ele mesmo responde: “O terceiro Estado, politicamente,

    não é nada, porque ele está apto a ser vencido pelos outros dois estamentos da sociedade” (1° e 2°

    Estados, respectivamente). No 2° capítulo, ele pergunta “O que é, de fato, o terceiro Estado?”), e ele

    mesmo responde: “tudo na França, se a França tem 6 milhões de pessoas na época, 90% é de

    representados do Terceiro Estado, o Terceiro Estado movimenta a economia francesa. O Terceiro

    Estado é o único que é tributado para as finanças francesas, então o Terceiro Estado é tudo”. O que

    coopera com o Estado Francês o Alto Clero? O que coopera a Nobreza? Ele mesmo responde:

    “Nada”.

    E no terceiro capítulo, ele pergunta “o que tem que ser o Terceiro Estado?” E ele responde: “Aquilo

    que é de fato, ou seja, a própria França”. Então, Sièyes sugere que aquela manifestação por Estados

    seja dissolvida e que todos os membros façam a manifestação unicameral, os membros do Alto Clero

    e da Nobreza abandonam a formação dos Estados Gerais, então o Terceiro Estado continua a

    funcionar e proclama que o poder de organizar a França pertence à própria burguesia.

    2 Edição UNB e da editora Lumen Juris

  • 5

    Este é o momento inicial da Revolução Francesa, ou seja, o deslocamento do Poder Constituinte do

    rei (de origem divina) para o povo. Então, quando o abade Emmanuel Sièyes, através do livro “O que

    é o Terceiro Estado?” propõe que quem tem o direito de dizer qual é a base de organização da

    sociedade francesa é a burguesa, ele está querendo dizer que o rei não é mais o fundamento de

    organização da França, ou seja, o rei não tem poder absoluto vindo de Deus, quem organiza a França

    é o povo (e esse povo tem consciência de que ele é capaz de organizar o Estado), então o momento

    inicial da Revolução Francesa, na primavera de 1789, ocorre exatamente a partir da obra do abade

    Emmanuel Suèyes, que era um profundo conhecedor da obra do Jean Jacques Rosseaut e de outros

    cientistas políticos do século XVIII.

    Então, a Revolução Francesa ocorre através dessa convocação dos Estados Gerais, que foi um “tiro

    no próprio pé” dado pelo rei Luis XVI.

    5. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

    O primeiro ato da Revolução Francesa foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,

    através deste, a burguesia foi capaz de, independentemente do rei, fazer a elucidação de quais eram os

    direitos do cidadão à revelia do rei. Há um conflito então do poder real e a manifestação do Terceiro

    Estado, que se denominava agora “Assembleia Constituinte”. O Terceiro Estado delibera, então, que

    cabe a ele redigir a Constituição da França, e essa Constituição é redigida em 1791, e essa foi uma

    constituição monarquista, mas de uma monarquia constitucional.

    Este é, então, um importante traço da Revolução Francesa: a monarquia deixa de ser uma monarquia

    absolutista (na qual o Rei tem o poder de organizar as instituições francesas), e passa a ser uma

    monarquia constitucional onde o povo detem o poder de dizer o que a França é, através da

    representação da burguesia na formação do Terceiro Estado.

    Há um agravamento da relação com o rei. Em 1782, o rei francês tenta fugir da França para, ainda em

    seu país, procurar apoio na Áustria, para que a Áustria possa invadir a França e reestabelecer a

    monarquia absolutista francesa. Nessa tentativa de fuga, o rei é capturado na fronteira, sendo tal ato

    visto como uma traição pela Assembleia Constituinte (Terceiro Estado), o rei é, então, trazido de

    volta, preso e posteriormente é condenado à guilhotina, ocorrendo assim o chamado “regicídio” (a

    morte do rei) com o estabelecimento da república em 1793, período em que a Revolução Francesa

    passa pelo seu período mais sanguinário especialmente a partir da proeminência do Robespierre e

    Danton. O que só acaba em 1799 com a ascensão de Napoleão.

    Então, o período revolucionário francês durou 10 anos (de 1789, com a Declaração dos Direitos do

    Homem e do Cidadão, até a ascensão de Napoleão em 1799). Houve aqui um período de 2 anos de

    muito derramamento de sangue, em que a guilhotina “trabalhou bastante”, inclusive para tirar a

    cabeça do seu principal radical que era o Robespierre que, ironicamente, foi o inventor da guilhotina.

    Depois, vem um período menos sanguinolento, através da formação do Diretório e da existência de

    um colegiado para o governo da França, e no dia do 18 Brumário (data do calendário revolucionário),

    Napoleão aplica um golpe de Estado, tornando-o o único governante da França, terminando assim a

    revolução francesa, dando início ao período de Ouro de Napoleão (que vai de 1799 até 1815), e que

    tem uma influência muito importante no Brasil, porque foi o período da fuga da família real de

    Portugal. Isso ocorreu porque Napoleão pretendia invadir Espanha e Portugal querendo desta forma

    “cortar os laços” da Inglaterra com a Europa Continental, buscando assim estrangulá-la

    economicamente.

  • 6

    Então, não é possível estudar a teoria do Poder Constituinte sem fazer referência a esses fatos tão

    agudos na Revolução Francesa.

    Na próxima aula, será dada continuidade ao desenvolvimento da ideia do Poder Constituinte

    Originário.

  • 7

    Curso: Direito Constitucional – Teoria da Constituição

    Aula: Poder Constituinte Originário - Parte 2

    Professor: Marcelo Tavares

    Resumo

    1. Revisão da última aula Nesta aula se dará continuidade ao curso de teoria do poder constituinte e teoria das constituições, com o terceiro ponto dedicado à teoria do poder constituinte, dando continuação à teoria do poder constituinte originário. Na aula passada, foi visto o conceito do poder constituinte originário e estudada a contribuição dada pela obra do abade Emmanuel Sièyes para a eclosão da revolução francesa. Viu-se importante conceito de o poder constituinte originário ser colocado antes da Constituição é por isso que, então, ele é um poder político consciente de si, capaz de organizar o Estado através da adoção dos princípios que vão estruturar a formação daquela sociedade. Logo, o poder constituinte originário é algo que pré existe à própria organização do Estado. Ainda na aula passada, foi vista a questão da natureza jurídica, que existem duas escolas sobre a natureza jurídica do poder constituinte originário: a primeira escola (de Hanz Kelsen), que é a que prevalece, aponta que o Poder Constituinte Originário é um poder de fato, ou seja, ele não tem um fundamento jurídico, isso está dentro de uma lógica, porque ele pré existe à própria Constituição. E a outra escola, que é a escola do abade Emmanuel Sièyes, que foi muito importante na Revolução Francesa, coloca o Poder Constituinte Originário como um poder de direito, que deve observar a estrutura do direito natural. Lembrando que o direito natural, por não ser positivado, não tem uma afirmação de quais são exatamente suas normas jurídicas, mas é importante essa contribuição do abade Emmanuel Sièyes quanto à natureza do Poder Constituinte Originário, apesar dela não prevalecer. O que prevalece realmente é a ideia de Hanz Kelsen, de que o Poder Constituinte Originário é um poder de fato.

    2. Titularidade do Poder Constituinte Originário 2.1 “Povo” vs “Nação”: as escolas de Kelsen e Sièyes Vista essa natureza, é importante que seja agora discutida a titularidade do Poder Constituinte Originário. Em relação a essa questão, existem também duas escolas: a escola do Hanz Kelsen e a escola do abade Emmanuel Sièyes. Para Hanz Kelsen, a titularidade do Poder Constituinte Originário é do povo, e para o abade Emmanuel Sièyes, é a nação e, nesse aspecto, qual a diferença entre “povo” e “nação”? O conceito de “povo” de Hanz Kelsen é um conceito de coletividade dos indivíduos que tem relação jurídica com aquele Estado. Então, o conceito de “povo” do Kelsen é um conceito subjetivo do conjunto de pessoas e indivíduos que tem relação de cidadania com aquele Estado. Por sua vez, o conceito de Sièyes é um conceito mais restrito, porque o Sièyes tinha o interesse em limitar o exercício da democracia, a visão da democracia de Sièyes é de uma democracia censitária, cujo poder deve

  • 8

    ser entregue à burguesia. Hanz Kelsen, por sua vez, acredita que o poder constituinte é um poder do povo baseado na ideia de “manifestação geral” de Jean Jacques Rosseau, então, Kelsen e Rosseau dão o poder constituinte ao povo para organizar o Estado (o povo como uma coletividade de cidadãos), o Emmanuel Sièyes, por sua vez, não. Ele conceitua nação como “os valores morais mais importantes do Estado” e, para ele, quem tem a capacidade de demonstrar quais são esses valores morais é exatamente a burguesia. Quer dizer, com isso, havia um interesse do Emmanuel Sièyes em fazer com que a democracia francesa não fosse uma democracia universal, como propunha Jean Jacques Rosseau, mas sim uma democracia limitada e censitária. Então, dentro da estrutura inicial da revolução francesa (queda da Bastilha, participação popular), em um segundo momento, o abade Emmanuel Sièyes tenta dar um “golpe” dentro da Revolução Francesa, dando proeminência à própria existência da burguesia, como um conjunto de comerciantes, dentro da manifestação popular. Então, a ideia de democracia de Emmanuel Sièyes não é uma ideia de democracia universal, mas sim uma democracia limitada e, por isso, ele coloca a titularidade do Poder Constituinte na nação, e quem representa a nação é a burguesia e, por isso, ele afirma que só quem pode manifestar-se como cidadão são as pessoas que tem um determinado volume, de propriedade, com isso ele exclui as pessoas mais humildes do povo. A ideia do Kelsen é a ideia de Jean Jacques Rosseau, da coletividade do povo, independentemente de haver propriedade ou não, o direito é o direito de todas as pessoas. Acaba prevalecendo aqui também a ideia do Hanz Kelsen, inclusive é importante colocar que o artigo 1°, p.ú. da Constituição brasileira reconhece isso:

    “Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

    Esse trecho da Constituição prevê que “todo o poder emana do povo”, então a Constituição brasileira adota a teoria popular do Poder Constituinte (e não a teoria nacional do Poder Constituinte). A Constituição Brasileira adota a teoria do Kelsen e do Jean Jacques Rosseau, ou seja, o poder é do povo e a democracia é universal (não deve ser uma democracia censitária, como era a ideia do Poder Constituinte Nacional do abade Emmanuel Sièyes).

    3. Manifestação do Poder Constituinte Originário E quais são as formas de manifestação que o povo tem, como titular, para exercer o Poder Constituinte Originário? O Poder Constituinte Originário pode se manifestar através da: 1) Revolução: a revolução é conceituada tecnicamente como “uma forma aguda de manifestação do Poder Constituinte”, a revolução é um momento agudo em que há uma quebra institucional em que se modificam as estruturas principais do Estado por outras estruturas com aprovação popular. Então o que vai caracterizar a revolução é o apoio popular. A Revolução é representativa daquele povo e daquela sociedade, então quando o povo tem as rédeas desse movimento agudo de quebra institucional, tecnicamente esse movimento agudo é chamado de revolução. 2) Assembleia Constituinte: é uma forma importante e bastante comum de manifestação do Poder Constituinte Originário, através de uma escolha de representantes para que eles debatam como será feita a estrutura do Estado, e depois redijam a Constituição. Então a Constituição de 1988 do Brasil foi o fruto da manifestação de uma assembleia constituinte.

  • 9

    3) Forma Cesarista (ou Bonapartista): como o próprio nome indica, essa forma de manifestação do Poder Constituinte Originário foi utilizada por Napoleão Bonaparte, que redigia a Constituição através de juristas de sua escolha, e depois essa Constituição era colocada à aprovação popular. Obviamente essa aprovação popular era precedida de uma grande vitória militar, em que o Napoleão era bajulado, e obviamente o povo aprovaria qualquer coisa que ele propusesse, depois de vencer austríacos, russos, ingleses, italianos. Então, vindo de vitórias militares, o Napoleão depois de ter uma Constituição escrita em um gabinete por juristas que eram favoráveis às suas ideias, ele oferecia o texto à aprovação popular e a Constituição era aprovada sem o debate amadurecido através de uma Assembléia Nacional Constituinte. Quem se utilizou dessa forma de aprovação de Constituição foi a Venezuela (através de Hugo Chavez), e também Maduro. 4) Outorga: pode ser precedida ou não de um golpe de Estado, é uma imposição de uma Constituição por uma pessoa ou por uma elite. A outorga tem sempre um caráter “aristocrático impositivo”. Já ocorreu esta manifestação na história constitucional brasileira, algumas constituições que vieram através de outorga (Constituição Brasileira de 1824, de 1937, que foi outorgada pelo Getúlio Vargas). 5) Golpe de Estado: é uma quebra das instituições de forma aristocrática (na América Latina, principalmente através do apoio das forças armadas). Então, quando essa quebra das instituições não é representativa da vontade popular, da legitimação daquela sociedade, quando esse movimento não tem o apoio da legitimação da sociedade, ele é denominado como “golpe de Estado”. No Brasil, pode-se citar a Constituição de 1977 (que foi uma Constituição aprovada pelo Congresso Nacional, mas um Congresso Nacional expurgado da sua liderança de oposição, já tinha havido uma depuração do Congresso Nacional, uma imposição de um projeto pelo Poder Executivo que deveria ser discutido em 30 dias por um Congresso que não foi eleito para funcionar como uma Assembléia Nacional Constituinte). 6) Manifestação externa: ocorre muitas vezes em países vencidos, em que os países vencedores acabam ou redigindo ou tendo grande influência na redação da Constituição do país vencido. A Constituição Alemã hoje ainda é chamada de “Lei Fundamental de Bonn” (nem é denominada formalmente de Constituição). Ela é de 1949, com a Alemanha ocupada pelos Aliados ainda, então a Constituição da Alemanha foi redigida e influenciada pelos Aliados, sendo aprovada pelos alemães, mas dentro de uma Alemanha ocupada. Da mesma forma, a Constituição japonesa foi imposta pelos norte-americanos, principalmente pelo Gal. MacArthur, que fez a transição do Japão para a democracia, então os Estados Unidos basicamente escreveram a Constituição Japonesa. Então, essas formas de manifestação do Poder Constituinte Originário aparecem ou de forma pura ou elas se mesclam, assim, é possível ter uma Revolução que preceda a formação da Assembleia Nacional Constituinte; é possível se ter um Golpe de Estado e depois a Outorga de uma Constituição (como ocorreu com o Golpe de Estado brasileiro em 1930, e dessa Constituição veio até uma Constituição de Assembleia Constituinte). Então, no caso do Vargas foi: Golpe de Estado com Assembleia Constituinte em 1934 e depois, quando o regime se radicaliza, Vargas dá um “auto-golpe” e outorga a Constituição de 1937. Então, essas formas de combinação não são incomuns. O que se viu ao longo do século XX foram manifestações de Poder Constituinte através de revoluções, de guerras de independência, então é muito comum se ter uma constituição a partir de uma guerra de independência (que, para este fim, equivale a uma Revolução). Eventualmente são convocadas Assembleias Nacionais Constituintes ou não ou guerras, ou com países depois de um período de guerra (como aconteceu com o Japão e Alemanha). Com colapsos de determinados blocos de países, como aconteceu depois da desfiguração da União Soviética e a perda de poder da União soviética em países do leste europeu (antigamente havia Tchecoeslováquia, hoje há a República Tcheca e a Eslováquia), a Iugoslávia também se desmembrou em vários países, a Croácia, a Sérvia, e vários outros países.

  • 10

    Esses momentos de separação, de independência e de guerra são momentos importantes em que há a manifestação do Poder Constituinte Originário. Assim, o Poder Constituinte Originário, no que se refere à titularidade, o que prevalece é a teoria popular, e as formas de manifestação são essas que acabaram de ser vistas. Na nossa próxima aula, serão trabalhadas as características do Poder Constituinte Originário e serão tratados determinados assuntos que vão influir na existência do Poder Constituinte Originário

  • 11

    Curso: Direito Constitucional – Teoria da Constituição

    Aula: Poder Constituinte Originário - Parte 3

    Professor: Marcelo Tavares

    Resumo

    1 Teoria do Poder Constituinte

    A Teoria do Poder Constituinte é uma teoria sobre a legitimação do poder, e que desde a formação primitiva das organizações humanas, sempre houve o exercício do poder. Contudo, antes não preocupava-se com a teorização racional do exercício deste poder. Uma coisa é a existência do exercício do poder, outra é teorizar-se sobre ele. Assim, a Teoria do Poder Constituinte vem com a modernidade, com o término da Idade Média e início da Época Moderna. Essa teorização começa dentro da ciência política a partir do século XVI, mas principalmente nos séculos XVII e XVIII, exatamente com o término da estrutura feudal e o início da formação dos Estados Nacionais, dos quais um dos primeiros foi Portugal, e depois essa estrutura espalhou-se por países da Europa, como a França, inclusive com alguns países sendo unificados tardiamente, já no século XIX (como aconteceu com a Alemanha e Itália). A teorização do Poder Constituinte torna-se mais forte com o Iluminismo, e foi visto que no século XVIII, houve duas grandes revoluções marcantes para a teorização do Poder Constituinte: a Guerra de Independência Norte Americana e a Revolução Francesa, foi vistos os traços de diferenças entre elas.

    2 Conceito de Poder Constituinte

    Deve-se, assim, iniciar o estudo com um conceito genérico de Poder Constituinte, que englobe tanto o Poder Constituinte Originário e o Poder Constituinte Derivado, e depois se desenvolverá a ideia do Poder Constituinte Originário. Um primeiro conceito de Poder Constituinte é: O Poder Constituinte é o poder de criar o Estado (ou seja, de estabelecer como funciona o Estado) e de modificar suas instituições (ou seja, poder de alterar o funcionamento das instituições estatais); no Estado Federal, é também o poder de organizar os Estados federados. Esse conceito é inicial e bem abrangente de Poder Constituinte (englobando tanto o Poder Constituinte Originário quanto o Poder Constituinte Derivado). A parte final do conceito (“no Estado Federal, é também o poder de organizar os Estados federados”) só aplica-se aos Estados Federais, mas não ao modelo de Estado Unitário (seja um Estado Unitário Simples, Autonômico ou Regional), porque não existe o poder de auto-organização nem entidades federativas dentro de um Estado unitário. O Estado Federativo é uma forma de Estado composto em que existe uma descentralização do poder, com auto-organização das entidades federativas, logo, a parte final do conceito de Poder Constituinte é uma peculiaridade dos Estados Federais. Então quando se está diante de um Estado Unitário, há um conceito de

  • 12

    Poder Constituinte limitado à sua primeira parte (ou seja, “o poder de criar o Estado e modificar suas instituições”), por outro lado, diante de um Estado Federal, prossegue-se com conceito até seu final (“no Estado Federal, é também o poder de organizar os Estados federados”).

    3 Classificação do Poder Constituinte

    Feito isso, deve-se debruçar sobre uma classificação do Poder Constituinte para que depois seja possível desenvolver o que seria o Poder Constituinte Originário. O Poder Constituinte divide-se em categorias assim esquematizadas: O Poder Constituinte pode ser Originário ou Derivado. O Poder Constituinte Originário está ligado ao núcleo verbal “criar” o Estado. Por sua vez, o Poder Constituinte Derivado divide-se em Reformador e Decorrente, enquanto o Reformador é o poder de modificar as instituições estatais, o Decorrente é o poder de organizar os Estados Federados, sendo assim um poder próprio do Estado Federal. Assim, foi possível trazer na classificação o conceito inicialmente posto, para que ele possa ficar distribuído entre esses dois tipos de Poder Constituinte (Originário e Derivado), e na subdivisão do Constituinte Derivado em Reformador e Decorrente. No Brasil há ainda a peculiaridade do Poder Constituinte Derivado Reformador de Revisão e o Poder Constituinte Derivado Reformador através de emenda constitucional. O Poder Constituinte Originário, por sua vez, não tem previsão na CRFB. Isso se deve ao fato de que ele antecede a Constituição, se o Poder Constituinte Originário é o poder que cria o Estado, ele preexiste a ele, portanto, ele não tem uma fundamentação jurídica clara dentro da Constituição, por uma questão de lógica. Todavia, o Poder Constituinte Derivado (também chamado Poder Constituinte Secundário ou Constituído), é um poder nitidamente de direito, logo, tem previsão constitucional. Em relação à Constituição brasileira, o Poder Constituinte Derivado Reformador possui duas previsões: em relação à emenda, ele está previsto no art. 60 (ao enunciar a possibilidade de edição de emendas constitucionais) e o art. 3° do ADCT, que prevê a existência do Poder Constituinte Derivado Reformador por Revisão:

  • 13

    Art 60 - A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. (CRFB)

    Art 3° - A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral. (ADCT)

    É importante dizer que na Constituição de 1988, só houve a previsão da manifestação do Poder Constituinte Derivado Reformador de Revisão uma única vez, que ocorreu após a manifestação popular através de um plebiscito, que antecederia uma reforma através de Revisão, para a modificação do tipo de governo (da república para a monarquia ou a manutenção da república), e do sistema de governo (para a manutenção do presidencialismo, como de fato ocorreu, ou a modificação do presidencialismo para o parlamentarismo). Assim, ao abrir o ADCT, ele prevê no seu artigo 2°, a realização de um plebiscito, em que o povo foi convidado a manifestar-se sobre o tipo de governo e o sistema de governo:

    Art. 2º - No dia 21 de abril de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma e o sistema de governo que devem vigorar no País. (ADCT)

    O artigo 2° do ADCT possui uma espécie de “cola constitucional” em relação ao tipo de governo, ao fazer referência à monarquia ou república e em relação ao sistema de governo, ao mencionar o presidencialismo e o parlamentarismo. E logo em seguida, vem a previsão do art. 3° do ADCT (que faz referência ao Poder Constituinte de Revisão), porque havendo uma alteração do tipo de governo (do republicano para o monárquico), e alteração do sistema de governo (do presidencialista para o parlamentarista), haveria a necessidade, com alguma flexibilidade, de alteração das instituições, tal como elas foram previstas na redação original da CRFB: Esse plebiscito acabou sendo antecipado e realizado no dia 21 de abril de 1993, mantendo o tipo de governo republicano e o sistema de governo presidencialista, mas mesmo assim o Congresso Nacional se aproveitou da previsão do art. 3° da CRFB e chegou a aprovar seis emendas de revisão. Essas emendas poderiam ser aproveitadas por maioria absoluta, não havendo necessidade de aprovação através de uma maioria de 3/5, haverá um tópico específico para ver a manifestação desse Poder Constituinte Reformador através da Revisão e através da emenda também. No que se refere à emenda, existe sempre a possibilidade de alteração da Constituição através deste mecanismo constitucional, previsto no artigo 60 da CRFB. Então, de um lado, há a possibilidade constante de alteração da Constituição, exigindo-se para isso um processo legislativo mais rigoroso (uma vez que a Constituição brasileira é classificada como rígida), por outro lado, existe apenas uma possibilidade, já exercida, de revisão constitucional com aprovação através de maioria absoluta. Em tópico próprio será debatido a possibilidade de alterar a Constituição para prever, ou não, uma nova revisão, mas o fato é que da forma como está posta na Constituição, só houve uma possibilidade de revisão, já exercida, e em relação à emenda, há sempre a possibilidade de alteração constitucional, desde que observadas as formalidades do artigo 60. Por outro lado, ainda considerando o Poder Constituinte Derivado, Secundário ou Constituído, há uma subespécie, que é o Poder Constituinte Derivado Decorrente, trata-se da peculiaridade dos Estados Federais de organizar as entidades federadas. Nos Estados Federais, as entidades federadas devem ter a oportunidade de auto-organização (ou seja, cabe ao povo da região a feitura de escolhas políticas importantes através da Constituição da entidade federada), como ocorre no Brasil nas Constituições do Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, Pará, dentre outros. Então o art. 25 da Constituição prevê que os

  • 14

    Estados se auto-organizarão através de Constituições e leis próprias, observados os princípios da Constituição da República. Assim, a previsão do artigo 25 da Constituição é a previsão jurídica normatizada na Constituição Federal do exercício do Poder Constituinte Decorrente:

    Art. 25 - Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição. (CRFB)

    Não foi posta nenhuma referência constitucional ao funcionamento do Poder Constituinte Originário exatamente porque ele pré existe à organização estatal. Em relação ao Poder Constituinte Derivado (sendo, ele tem previsão constitucional no que se refere ao Poder Decorrente no artigo 25 da Constituição (de auto-organização dos Estados), e no que se refere ao Poder Constituinte Reformador, duas previsões (à do artigo 60 da Constituição e o artigo 3° do ADCT). Assim é feita uma ligação da classificação do Poder Constituinte em relação ao conceito genérico do Poder Constituinte.

  • 15

    Curso: Direito Constitucional – Teoria da Constituição

    Aula: Poder Constituinte Originário - Parte 4

    Professor: Marcelo Tavares

    Resumo

    1 Revisão da última aula

    Nos blocos anteriores foi consolidado o conceito, formas de manifestação e natureza jurídica da manifestação do Poder Constituinte Originário. No último bloco foram vistas as características do Poder Constituinte Originário e também questões institucionais importantes da manifestação do Poder Constituinte Originário, ainda foi vista a questão da filtragem constitucional, quer dizer, como que o advento de uma nova Constituição pode mudar o paradigma da proteção de princípios e qual é a potencialidade que isso tem para a interpretação do ordenamento jurídico conforme aqueles novos valores constitucionais que foram trazidos. Deve-se, dentro deste contexto, imaginar a capacidade libertadora que teve a Constituição de 1988, sucedendo um período de regime militar, quando a nova Constituição passa a defender princípios importantes (como o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da democracia, o princípio da redução da desigualdade social e regional no Brasil, dentre outros). Tais princípios passam a influenciar toda a interpretação da legislação que vem posteriormente, então, depois disso, foi vista a questão institucional da recepção (que, como visto, a recepção é a continuidade da vigência das normas anteriores à Constituição que não sejam incompatíveis materialmente com ela, e viu-se, ainda, que a recepção hoje envolve também uma abordagem de filtragem constitucional, ou seja, aquelas normas anteriores que não sejam incompatíveis com a Constituição, elas continuam em vigor, mas sofrem influxo principiológico da nova Constituição). O último ponto visto na aula passada foi a questão da recepção e a impossibilidade de se invocar um direito adquirido em face da Constituição.

    2 A Supremacia da Constituição

    Dando continuidade a este debate institucional, agora serão vistas que as alterações trazidas pela nova Constituição contribuirão com o ordenamento jurídico do país, será vista a questão da supremacia da Constituição. O que se entende por “supremacia da Constituição”? É a aceitação de que a Constituição seja o paradigma de controle da validade e inspiração dos atos dos poderes constituídos. É a aceitação (lembrando-se aqui da pirâmide de Kelsen) →*colocar imagem da pirâmide aqui!] de que a Constituição está acima da lei e que a lei está acima do ato administrativo. A pirâmide de Kelsen ilustra bem este conceito3:

    3https://macetemental.alboompro.com/portfolio/direito-constitucional/382192-macetes-mentais-de-direito

    https://macetemental.alboompro.com/portfolio/direito-constitucional/382192-macetes-mentais-de-direito

  • 16

    De acordo com a pirâmide, quem está acima, dentro do ordenamento jurídico, é a Constituição, que tem supremacia de aplicação no ordenamento jurídico. Os poderes constituídos devem pautar os seus atos de acordo com a Constituição, porque a Constituição está acima deles. A Constituição é o produto de uma manifestação livre de um Poder Constituinte Originário, ou seja, de um poder que não está limitado (a não ser por parâmetros de proteção aos direitos humanos), eles se manifestam também livres dos condicionamentos formais, então, o Poder Constituinte Originário, ao elaborar a Constituição, faz com que ela tenha supremacia em relação ao ordenamento jurídico. Mas existem uma característica importante baseada na supremacia da Constituição, que é a rigidez constitucional, então, Constituições que não adotam um modelo rígido (ou seja, que permitem sua alteração por normas que passam por um processo legislativo ordinário, o mesmo processo de aprovação das leis), têm dificuldade em fazer prevalecer essa supremacia. Então a supremacia da Constituição depende da rigidez constitucional. A Constituição Brasileira de 1988 é uma Constituição rígida, no sentido de que a aprovação de emendas constitucionais, na forma do artigo 60 da CRFB4, depende de um processo legislativo muito mais rigoroso do que o da aprovação das leis ordinárias. Isso faz com que a Constituição brasileira acabe tendo supremacia no ordenamento jurídico.

    3 Poder Constituinte e Modificação de Competência Federativa

    Outra questão que deve ser tratada além da supremacia da Constituição é: tendo em vista que o Brasil é um país de organização federativa, e que esse tipo de estado federal era também o modelo adotado na Constituição anterior, o que acontece quando há uma modificação na competência federativa?

    4 Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

    I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

  • 17

    Ex: As Constituições de cada período são, respectivamente, a Constituição de 1967 e a Constituição de 1988. Imagine que determinado tema, na Constituição de 1967, seja de atribuição da União, já na Constituição de 1988, esse mesmo tema seja de atribuição dos Estados. Assim, em 1967, a União editou a Lei federal “X” tratando de tema de atribuição da União, daí a Constituição de 1988 diz que esse mesmo tema passa a ser atribuição dos Estados, nesse cenário, o que acontece com a lei federal “X” da União? Essa lei federal “X” pode ser recepcionada pela Constituição de 1988? Em princípio, sim. Sendo essa uma questão formal (a questão da competência), a lei que estava em vigor até então pode ser recepcionada pela Constituição de 1988, e continua em vigor no território nacional. Nesse caso, o que acontece se os Estados, a partir de 1988, começarem a editar leis estaduais tratando deste tema que na Constituição de 1967 era atribuição da União (e que agora é atribuição dos Estados)? Resposta: A legislação estadual, sob a égide da nova Constituição, suspende a eficácia da lei da União no âmbito do território daquele Estado. Então, a partir do momento que um Estado edita lei estadual sobre aquele tema haverá, no território daquele Estado, suspensão da eficácia da lei da União, aplica-se a lei do Estado e, naquele território, é como se ficasse um “vazio” de eficácia da lei da União. A partir do momento que os outros Estados vão exercendo sua competência, ocorre uma suspensão de eficácia em todos esses Estados até que essa lei tenha uma aplicação residual na sua eficácia, uma vez que todos os Estados exercem sua competência de tratar a respeito daquele tema. E acontecendo o contrário? Ou seja, em 1967, um determinado tema, a competência pertencia aos Estados e, em 1988, a competência passa a ser da União. Logo, há várias leis estaduais abordando aquele tema, e na Constituição de 1988, aquele tema deve ser tratado pela União. Todas aquelas inúmeras leis Estaduais podem ser recepcionadas pela nova Constituição? Sendo leis diferentes, não. Então o fenômeno inverso, ou seja, quando o sistema constitucional de repartição de competências parte de uma competência menos abrangente (dos Estados em relação à União ou dos Municípios em relação aos Estados ou à União), para uma competência mais abrangente, não se tem como recepcionar uma multiplicidade de leis diferentes. O exemplo anterior (União → Estados) era diferente, porque havia na Constituição anterior uma lei de atribuição da entidade federativa mais abrangente (União), para as entidades federativas menos abrangentes (Estados). Como era uma lei só em todo território nacional (da União), era possível se recepcionar, no caso contrário (várias leis do Estado → uma lei da União), não se tem como recepcionar em cada território leis diferentes, uma vez que a Constituição quer que haja um tratamento uniforme nesses temas. Essas leis, então, são incompatíveis com a Constituição de 1988, e elas não tem mais como ser aplicadas a partir da Constituição, porque a Constituição de 1988 quer que haja uniformidade naquela matéria, não se podendo admitir então que se tenha legislação diferente em cada uma das entidades federativas.

    4 Repristinação Constitucional

    Há ainda um terceiro ponto a ser discutido: existe a possibilidade de repristinação constitucional? A resposta é: de forma implícita, não é possível. Por “implícita”, entende-se o seguinte: Imagine a existência da “Constituição 1” e, a partir de determinado momento, a “Constituição 2” entra em vigor, depois, uma “Constituição 3” entra em vigor. Nesse caso, sabendo que a Constituição atual revoga a Constituição anterior, então a defesa da repristinação constitucional em uma ocorrência explícita seria de que as normas da Constituição 1 voltassem a vigorar porque houve a “revogação da norma revogadora”, ou seja, se a Constituição 2 (que revoga a Constituição 1) foi revogada, e ela foi revogada inclusive na sua capacidade de revogar a Constituição 1, então ela (Constituição 1) voltaria a ter vigência [procurar esquema que mostre a repristinação constitucional].

  • 18

    O fenômeno pode ser melhor entendido pelo seguinte esquema5:

    Pois bem, no Brasil não se aceita a tese da repristinação implícita, que é justamente esta situação descrita. É importante dizer que, por exemplo, Jorge Miranda (autor português), defende a possibilidade de uma repristinação com desconstitucionalização, isso é, as normas da Constituição 1, que não fossem compatíveis com as normas da Constituição 3, elas retomariam sua vigência como normas infraconstitucionais. Porém esta tese não é adotado no Brasil. Então, o que Jorge Miranda acaba por fazer é combinar a tese da repristinação com a tese de um outro instituto jurídico que não é aceito no Brasil numa ocorrência implícita, que é a desconstitucionalização. Porque é ressaltada a ocorrência como sendo “implícita”? Porque o poder constituinte, que em tese é ilimitado, poderia repristinar, desde que o fizesse expressamente. Porém não é uma abordagem muito prática, não fazendo sentido uma Constituição mais recente mencionar que “o artigo ‘x’ da Constituição

    5https://blog.entendeudireito.com.br/2014/10/31/lei-de-introducao-as-normas-do-direito/

    https://blog.entendeudireito.com.br/2014/10/31/lei-de-introducao-as-normas-do-direito/

  • 19

    anterior volta a ter vigência”, se bastaria a nova Constituição repetir o conteúdo material da Constituição antiga sem fazer referência expressa a ela. Esse caso que está sendo explicado (a respeito da desconstitucionalização) é a mesma coisa: imagine que haja uma “Constituição 1” e uma “Constituição 2”. Até o momento atual, esteve em vigor a Constituição 1, mas agora está em vigor a Constituição 2. Qual seria, nessa situação, a tese da desconstitucionalização? Seria a seguinte: as normas da Constituição 1 que não sejam incompatíveis com a Constituição 2 passam a continuar em vigor como normas legais. Essa teoria também não é aceita no Brasil. Esses três institutos jurídicos devem ser tratados para fechar essa parte do Poder Constituinte Originário. Desenvolveu-se neste bloco tanto a parte conceitual (características e natureza jurídica), formas de manifestação, e os institutos jurídicos que são afetos ao Poder Constituinte Originário. Na próxima aula será desenvolvido os conceitos envolvendo o Poder Constituinte Derivado.