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10/02/2015 Cutucaram a Constituição Superinteressante data:text/html;charset=utf8,%3Ch1%20style%3D%22fontfamily%3A%20'Trebuchet%20MS'%2C%20Tahoma%2C%20Verdana%2C%20Arial%3B%20margin… 1/3 Cutucaram a Constituição Enquanto no Brasil manifestantes saíram do Facebook e foram para a rua, na Islândia eles saíram às ruas e depois voltaram para reescrever a Constituição no próprio Facebook. O cientista político islandês Eiríkur Bergmann conversou com a SUPER sobre o processo. por Reportagem: Valquíria Vita Edição: Cristine Kist Até cinco anos atrás, a Islândia é que parecia estar deitada em berço esplêndido: todo mundo sabia ler, 95% da população tinha acesso à internet, a economia ia muito‐bem‐obrigado e não existia desemprego. Só que durante a crise financeira que tomou conta do mundo em 2008, o pequeno país nórdico (pequeno mesmo, 82 vezes menor que o Brasil) passou por uma barra tão pesada que a situação chegou a ser descrita pelo FMI como uma "crise financeira de proporções catastróficas". Os maiores bancos da região faliram e a moeda local sofreu uma desvalorização de 80% em relação ao euro. A taxa de desemprego

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10/02/2015 Cutucaram a Constituição ­ Superinteressante

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Cutucaram a ConstituiçãoEnquanto no Brasil manifestantes saíram do Facebook e foram para a rua, na Islândia eles saíram àsruas e depois voltaram para reescrever a Constituição no próprio Facebook. O cientista políticoislandês Eiríkur Bergmann conversou com a SUPER sobre o processo.

por Reportagem: Valquíria Vita Edição: Cristine Kist

Até cinco anos atrás, a Islândia é que parecia estar deitada em berço esplêndido: todo mundo sabia ler,95% da população tinha acesso à internet, a economia ia muito‐bem‐obrigado e não existia desemprego.Só que durante a crise financeira que tomou conta do mundo em 2008, o pequeno país nórdico (pequenomesmo, 82 vezes menor que o Brasil) passou por uma barra tão pesada que a situação chegou a serdescrita pelo FMI como uma "crise financeira de proporções catastróficas". Os maiores bancos da regiãofaliram e a moeda local sofreu uma desvalorização de 80% em relação ao euro. A taxa de desemprego

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10/02/2015 Cutucaram a Constituição ­ Superinteressante

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aumentou nove vezes, a dívida do país chegou a 900% do PIB e, bom, as pessoas começaram aempobrecer.

Os islandeses deram uma de argentinos e foram às ruas protestar batendo panelas quando o governo quisaplicar medidas exigidas pelo FMI em troca de uma ajuda financeira bilionária. Bateram tanta panela queo primeiro ministro foi obrigado a renunciar, e novas eleições foram convocadas. Mesmo assim, eles nãoficaram satisfeitos. De repente, os protestos já não eram mais contra as medidas de austeridade, mascontra tudo que parecia errado no país (parece familiar?). No caso da Islândia, o que o povo realmentequeria era uma nova Constituição. Foi aí que o Facebook entrou na jogada.

A rede social foi a principal plataforma escolhida pelos islandeses para recolher contribuições para a novaConstituição. O processo foi mediado por um conselho de 25 voluntários apartidários, que postava ostextos no Facebook depois de cada reunião para que o resto da população pudesse debater a respeito. Efoi assim que a Islândia ficou conhecida mundialmente por ter elaborado a primeira Constituiçãocrowdsourced da história. O texto final passou por referendo e foi aprovado por dois terços dosislandeses em 2012. Está até agora aguardando aprovação do Parlamento (Brasil e Islândia também têmsuas semelhanças), mas já serviu de exemplo para destacar a força das redes sociais na construção deuma nova forma de democracia.

Um daqueles 25 conselheiros, o cientista político Eiríkur Bergmann, diretor do Centro de EstudosEuropeus da Bifröst University, enfrentou uma viagem de 24 horas da Islândia para o Brasil para fazer umapalestra sobre o futuro dos Estados democráticos. Aproveitou para falar sobre o uso da tecnologia pelademocracia e para dar sua opinião sobre a viabilidade de um processo parecido por aqui.

Como vocês receberam sugestões para a nova Constituição?Por alguma razão, todos na Islândia estão no Facebook, então esse foi o principal portal. Criamos umapágina onde as pessoas podiam mandar sugestões e comentar, e nos dividimos em comitês para analisaros assuntos. As pessoas também mandaram sugestões pelo Twitter, e‐mail, correspondências, ligaram evieram pessoalmente até nós. A decisão que tomamos foi que não importava de que maneira elas viriam,só queríamos que participassem. Se quisessem mandar um pombo com uma mensagem, podiam fazer issotambém. Recebemos 3.600 sugestões formais.

Como foi tomada a decisão de criar um canal no Facebook para que a população se manifestasse?Existiram muitos motivos para isso. Um foi que existia alguma animosidade entre o conselho eleito e oParlamento, e sabíamos que isso poderia ser uma estratégia para ter o apoio do público. E como ter oenvolvimento do público? Botando no Facebook. Entre os 25 conselheiros representantes, houve quemdissesse que devíamos desligar o celular, fechar a internet e apenas escrever o texto e trazer ao públicoquando estivesse completo. Mas decidimos fazer completamente o oposto. Nosso time técnico cuidoude todas as portas de entrada de opinião. Invocamos toda a população a participar. Postamos até nossostelefones particulares para as pessoas ligarem se quisessem. Postávamos todo o nosso trabalho onlineimediatamente para as pessoas debaterem. E desse debate tirávamos a vontade do público eintegrávamos no próximo round de postagens.

E as pessoas levaram isso a sério?Essa foi a parte maravilhosa disso. Normalmente, na Islândia, temos discussões acaloradas sobre tudo, aspessoas atacam as gargantas umas das outras nos comentários, temos discursos muito negativos ecomentários muito duros e pessoais. O que as pessoas já postaram sobre mim, meu deus! E issoacontece com todo mundo. Mas, com esse assunto, por alguma razão, ninguém fez comentáriosnegativos. A questão é que todos queriam causar impacto. Quando você convida as pessoas, tem deescutar o que elas têm a dizer. E elas levaram a sério porque sabiam que o que dissessem também seria

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levado a sério. Deixamos claro para elas que seus comentários realmente importavam, e como resultadotivemos comentários muito mais responsáveis. Quando você dá poder às pessoas, e diz a elas que suasvozes realmente importam, elas tomam mais cuidado com o que dizem. Eles sentiram que estavamparticipando de verdade, não apenas assistindo à recuperação da Islândia. Isso teve efeito de cura nasociedade. Foi um jeito construtivo de avançar, em vez de ficar nos protestos.

Se o povo não tivesse sido parte desse processo, você acha que a Constituição teria sido diferente?Sim. Por exemplo: capítulos importantes sobre recursos naturais e direitos humanos sofreram grandeimpacto com a participação do público. Se a Constituição tivesse sido criada pelos parlamentares, teriasido mais conservadora.

O quanto a crise econômica que afetou a Islândia influenciou esse movimento?Em 2008, a Islândia foi a primeira a entrar em colapso. Nossos bancos foram à falência em apenas umasemana. Isso foi um choque e houve um grande senso de crise. E crises abrem espaço para discursospolíticos, fazem surgir novos pensamentos. Além disso, tivemos uma sociedade receptiva, homogênea osuficiente para compreender algo assim, e tecnológica o bastante para que as pessoas participassem.

Além da crise, o que mais colaborou para que esse projeto desse certo na Islândia?Foi uma vantagem sermos um país pequeno, onde é fácil conseguir que as pessoas se envolvam. Somospoucos, mas o suficiente para causar impacto, se quisermos. Fora isso, mais de 95% da população teminternet e 100% é alfabetizada. Os islandeses são educados, têm acesso à mídia.

Uma iniciativa como essa poderia funcionar em um país maior?O processo aconteceria de um jeito diferente, mas poderia funcionar, sim. Acho que o que vale é oconvite para que as pessoas participem, que é quase mais importante do que elas participarem de fato.Também é fundamental saber que as necessidades são diferentes em lugares diferentes. Você não podeforçar uma mudança em uma sociedade que não precisa dela. Tem de haver uma demanda por mudanças.

Isso daria certo no Brasil?Sim, talvez mais certo do que em outros países, porque vocês têm uma herança muito interessante departicipação popular. Claro que a maioria não participaria, mas uma parte, sim. Eu acredito que esse tipode exercício vai ser cada vez mais comum.

Há quem chame essa de uma nova forma de democracia direta por meio da internet. Você concorda?A nova Constituição foi criada por 25 pessoas, que foram impactadas pelo público em geral. Então houveum filtro, isso não é democracia direta.

Mas o senhor acredita que esse é o caminho? Transformar pela internet?Estamos em um ponto de virada no que diz respeito ao desenvolvimento da democracia. Agora, estamosnos movendo para uma forma mais participativa de democracia. Eu sinto que essa é a primeira vez que atecnologia pode ser usada democraticamente. Temos essa tecnologia há anos, mas não tínhamos umapopulação pronta para isso. Até agora. Quando começarmos a ver esses exemplos se acumulando, vai sermais fácil dar um passo para frente e realmente integrar mecanismos participatórios na tomada dedecisão. Eu acredito que organismos participativos são importantes para aumentar processosdemocráticos representativos tradicionais, trazendo a tomada de decisões de volta para as pessoas. Asmudanças estão vindo, quer você goste ou não, concorde ou não. O desafio é se organizar para queessas mudanças sejam construtivas. Não sabemos o que vai acontecer. E isso pode ser usado para o bemou para o mal.