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CRISTIANE IRINÉA SILVA O ACESSO DAS CRIANÇAS NEGRAS À EDUCAÇÃO INFANTIL: UM ESTUDO DE CASO EM FLORIANÓPOLIS FLORIANÓPOLIS 2007

(D) O Acesso Das Crianças Negras à Educação Infantil - Cristiane Silva(1)

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O texto busca compreender como, sob o peso do racismo, crianças negras são educados nos sistemas educacionais.

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  • CRISTIANE IRINA SILVA

    O ACESSO DAS CRIANAS NEGRAS EDUCAO INFANTIL:UM ESTUDO DE CASO EM FLORIANPOLIS

    FLORIANPOLIS2007

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINACENTRO DE CINCIAS DA EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    CRISTIANE IRINA SILVA

    ACESSO DAS CRIANAS NEGRAS EDUCAO INFANTIL:UM ESTUDO DE CASO EM FLORIANPOLIS

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da UniversidadeFederal de Santa Catarina, Linha deInvestigao Educao e Infncia, comorequisito parcial para a obteno do grau deMestre em Educao.

    Orientadora: Prof Dr. Elosa Acires Candal Rocha

    FLORIANPOLIS2007

  • CRISTIANE IRINA SILVA

    O ACESSO DAS CRIANAS NEGRAS EDUCAO INFANTIL:UM ESTUDO DE CASO EM FLORIANPOLIS

    Esta dissertao foi julgada adequada para obteno do ttulo de Mestre em Educao eaprovada em sua forma final pela Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Educaoda Universidade Federal de Santa Catarina.

    Banca Examinadora:

    Orientadora: Dr Elosa Acires Candal RochaUFSC

    Membro: Dr. Eliane dos Santos CavalleiroUNB

    Membro: Dr. Vnia Beatriz Monteiro da SilvaUFSC

    Suplente: Dr. Joo Josu da Silva FilhoUFSC

    Florianpolis, 28 de setembro de 2007.

  • Aos meus filhos, Bruno e Lucas

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo inicialmente aos meus pais, Belmiro e Maria, pelo dom da vida e por seremmeu porto seguro diante de tudo o que me propus alcanar sem me deixar desistir e porvibrarem com as minhas conquistas.

    Aos meus filhos, Bruno e Lucas, por seu amor e carinho e pela compreenso ante

    minha ausncia constante.

    s minhas irms, irmo e sobrinhos, pelo carinho e pelo orgulho que tm de mim. professora e orientadora Dr Elosa Acires Candal Rocha, pelo carinho, confiana,

    apoio intelectual e, principalmente, pelo estmulo para a ampliao dos meus conhecimentos eseu esforo em tornar-me uma pesquisadora.

    Aos professores doutores Joo Josu da Silva Filho e Vnia Beatriz Monteiro da Silva,pelas observaes no exame de qualificao, que contriburam decisivamente para asreflexes que fui construindo ao longo da pesquisa.

    A agencia financiadora CAPES, pelos sete meses de pagamento de bolsa, que foramimprescindveis para dar continuidade pesquisa.

    Ao amigo Gilson, que contribuiu em meus estudos e incentivou-me a conhecer eaprender uma lngua estrangeira, requisito imprescindvel para adquirir o ttulo de mestre.

    minha amiga Andra Alzira, que me mostrou ser possvel ingressar no mestrado,pelas colaboraes, crticas e indicaes fundamentais no processo de construo da pesquisa.

    s amigas Elaine, Janaina, Moema, Mrcia, que fiz no perodo do Mestrado, pelascolaboraes, indicaes e crticas fundamentais no processo de construo desta pesquisa. snovas amigas Pricilla e Rosi, que fiz ao final do mestrado, mas que trouxeram contribuiessignificativas para a concluso deste trabalho.

    Ao Rudimar, pelo carinho, companheirismo e serenidade de estar ao meu lado nosmomentos finais da escrita da dissertao.

    A todos os funcionrios da unidade pesquisada, pelo acolhimento que me permitiudesenvolver a pesquisa. s colegas de trabalho, pelo incentivo e respeito formaocontinuada.

    A essas pessoas e s que no foram nomeadas, o meu agradecimento sincero.

  • RESUMO

    Este trabalho de pesquisa teve por objetivo investigar o processo de Acesso das CrianasNegras na Educao Infantil na Rede Municipal de Florianpolis, buscando conhecer asrelaes sociais nele envolvidas, os fatores que o determinam e os critrios utilizados pelosistema pblico para a matrcula das crianas em suas unidades educacionais. Da baixa taxade cobertura de vagas na Educao Infantil para a populao na faixa etria de 0 a 6 anos noBrasil decorre a efetivao de processos seletivos para ingresso. Neste estudo, interroga-se emque medida as crianas negras sofrem excluso nesse processo de seleo. Para seudesenvolvimento, optou-se pela realizao de um estudo de caso, enfatizando conhecer emprofundidade o singular de uma instituio municipal de Educao Infantil. Utilizaram-secomo instrumentos metodolgicos a anlise dos documentos de fichas de matrculas, asobservaes, os registros no ato das inscries para ingresso e as entrevistas no-estruturadas.Tomou-se tambm como base uma anlise demogrfica realizada a partir de um cruzamentoentre dados da populao infantil com recortes raciais na cidade, no bairro e na instituiode Educao Infantil. Observou-se que os principais excludos so as crianas cujos pais estodesempregados, os que no conseguem comprovar sua renda ou ainda os que no apresentamoutros documentos exigidos, tais como comprovantes de endereo. Prevalece nesse processo aconcepo de direito Educao Infantil para filhos de mes trabalhadoras, no sendoatendido o preceito constitucional de direito a todas as crianas de 0 a 6 anos. Concluiu-se quea prioridade estabelecida para as famlias de menor renda no exclui apenas as famlias demaior renda, o processo de seleo acaba por no permitir o ingresso de famlias mais pobres,que, por exemplo, apresentam dificuldade com a documentao exigida, principalmente coma comprovao de emprego. Tal fato pode resultar numa excluso marcada pelo cruzamentopobreza/raa, historicamente construda no Brasil. Evidenciou-se que o acesso s vagas naEducao Infantil no tem se efetivado como um direito da criana, uma vez que se pautanum processo de seleo rigoroso e seletivo/excludente, e que, ainda que no haja umaevidente excluso do ponto de vista quantitativo/percentual de acesso das crianas negras nasinstituies de Educao Infantil (se comparados os ndices populacionais nessa faixa etria),o total de crianas negras um pouco menor que o das crianas brancas declaradas. Noprocesso de inscrio para seleo evidenciaram-se nas entrevistas com as famlias algumassituaes relacionadas principalmente compreenso da Educao Infantil com um favor eno como um direito da criana e outras que envolveram constrangimento e hesitaoenvolvendo as relaes raciais.

    Palavras-chave: Crianas Negras. Educao Infantil. Acesso.

  • ABSTRACT

    This research work had for objective to investigate the process of Access of the BlackChildren in the Infantile Education in the Municipal Net of Florianpolis, looking for to knowthe social relationships involved in it, the factors that determine it and the criteria used by thepublic system for the children's registration in your educational units. The low rate ofcovering of vacancies in the infantile education for the population in the age group from 0 to 6years in Brazil becomes responsible for the placement of selective processes for entrance. Inthe present study, it is interrogated in that measured the black children suffer exclusion in thatselection process. For development of the same it was chosen the strategy of case study withthe objective of knowing in depth singular aspects of a municipal institution of InfantileEducation. The analysis of the documents, of the records of registrations, observations andregistrations done during the registrations for entrance and not structured iterviews were usedas methodological instruments. It was used a demographic analysis also accomplished in acrossing among data of the infantile population with racial cuttings - in the city, in theneighborhood and in the institution of Infantile Education. It was possible to observe that theexcluded principal are the children whose parents are unemployed, those that don't get proveyour income or the ones that don't still present the demanded documents, such as addressvoucher, etc. It prevails in that process the conception that the right to the vacancy in theInfantile Education is hard-working mothers' privilege, the one that finishes not assisting theconstitutional precept of all the children's right in the age group between 0 and 6 years. Theconclusion is that the established priority for the families of smaller income doesn't justexclude the families of larger income, the selection process ends, also, for not allowing theentrance of poorer families, the ones which, for instance, they present difficulty with thedemanded documentation, mainly with the employment proof. Such fact can result in anexclusion marked by the crossing poverty - race, historically built in Brazil, although a greatexclusion of the quantitative point of view has not been verified - percentile in the access ofthe black children to the institutions of Infantile Education (if compared the populationindexes in that age group in that the black children's total is a little smaller that the one of thedeclared white children). In spite of that observation, in the registration process for selectionand in the interviews with the families appeared some discrimination situations, mainly thoserelated with the understanding of the Infantile Education as a favor and I don't as a right of thechild. Other situations involved embarrassment and hesitation related to racial subjects.

    Key-Words: Black children. Infantile education. Access.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ..................................................................................................................82 A POPULAO NEGRA: MARCAS DE UMA HISTRIA......................................142.1 INFNCIA NO BRASIL E POPULAO NEGRA INFANTIL ...............................2112.2 INFNCIA NO BRASIL: AS CRIANAS E SEUS DIREITOS ................................2442.3 POBREZA E INFNCIA: A EXCLUSO SOCIAL E RACIAL ...............................3222.4 SISTEMA EDUCACIONAL E POPULAO NEGRA .............................................3553 OS PERCURSOS DA PESQUISA.................................................................................4O3.1 O CONTEXTO DO CAMPO DE ESTUDO: A EDUCAO INFANTIL MUNICIPAL

    .........................................................................................................................................413.2 O PROCESSO DA PESQUISA: CAMINHOS PERCORRIDOS ..................................433.3 CARACTERIZAO DA UNIDADE ESTUDADA ....................................................453.4 OS CRITRIOS DE MATRCULA E A ORGANIZAO DAS CRIANAS EM

    GRUPOS .........................................................................................................................464 O ACESSO DAS CRIANAS NEGRAS EDUCAO INFANTIL.......................494.1 A SITUAO DO ATENDIMENTO: POPULAO INFANTIL, ACESSO E

    RECORTE RACIAL. ......................................................................................................504.2 PROCESSO DE MATRCULA: OS CRITRIOS DE SELEO E O DIREITO

    EDUCAO INFANTIL................................................................................................574.3 AS RELAES FAMLIA VERSUS UNIDADE DE EDUCAO INFANTIL NO

    PROCESSO DE MATRCULA......................................................................................614.3.1 O no reconhecimento do direito educao infantil .........................................634.3.2 A classificao de raa/cor no processo de seleo ..............................................665 CONSIDERAES FINAIS...........................................................................................72REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................................78ANEXO A FICHA DE INSCRIO DE MATRCULA DA EDUCAO INFANTIL

    DA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DE FLORIANPOLIS .................84ANEXO B CADASTRO DE USURIOS DA SECRETARIA MUNICIPAL DE

    SADE DE FLORIANPOLIS .....................................................................87ANEXO C PORTARIA N. 091/2006 DA SECRETARIA MUNICIPAL DE

    EDUCAO DE FLORIANPOLIS............................................................88

  • 81 INTRODUO

    Um fato inquestionvel na atualidade que no h universalizao da oferta de vagaspara a populao na faixa etria de 0 a 6 anos em todo o pas.

    Assim, mesmo que no Brasil as crianas tenham conquistado seus direitosefetivamente, em forma de lei (CF/1988, ECA/1990, LDBEN 9.394/96, etc.), esses direitosnem sempre so respeitados e assegurados socialmente. Desse modo, as crianas, sobretudo ascrianas negras, so as principais vtimas de constantes constrangimentos preconceitos,maus-tratos, marginalizao, invisibilidade, indiferena e racismo.

    Em suma, a educao das crianas no Brasil, especialmente a das crianas pobres,delineia um quadro de diferentes nuances que refletem as precrias condies sociais s quaisso expostas constantemente.

    Rocha1 (1999, p. 48) afirma que:

    No mundo moderno, a inocncia infantil (vista como um momento de preservao) ea violncia contra a criana (como reflexo de uma extrema imposio) convivem nomesmo espao. O direito de compartilhar o mundo adulto representa de fato aprpria ausncia de direitos da criana, sobretudo da criana pobre. As mazelas docapitalismo compartilham com as crianas as condies de existncia adversas aomundo infantil e estas tm sua infncia furtada do exerccio do sonho e da liberdade,substitudos pela voracidade do mercado e do consumo. Para uma imensa maioriaresta a misria e, na melhor das hipteses, a conformadora insero no mundo dotrabalho, quase sempre como membro desqualificado, conforme ocorre no Brasil,em cujo pas a insero precoce da criana no trabalho no novidade.

    Os estudos de Sarmento e Pinto (1999) sobre a situao das crianas do sculo XXIvm elucidar ainda a maneira como as crianas so tratadas: encontram-se numa situao deexcluso, mortas pela fome, vtimas de conflitos armados, perseguies tnicas, abandono,maus-tratos, pr-delinqncia, explorao de trabalho infantil, pobreza ou catstrofes naturais.Elas so consideradas como o futuro do mundo, mas esto vivendo um presente de opresso.

    As pesquisas cientficas nas diferentes reas do conhecimento (Antropologia,Sociologia, Histria, Psicologia, etc.) que contemplam as crianas tm como objeto quasetodos os segmentos da sociedade nas diferentes classes sociais, mas a invisibilidade das

    1 A professora Dra. Elosa Candal Rocha, pesquisadora integrante do Ncleo de Estudos e Pesquisa da

    Educao da Pequena Infncia (NUPEIN) da Universidade Federal de Santa Catarina, a qual essa investigaofaz parte.

  • 9crianas negras ainda permanece e constitui um ponto a ser analisado, tanto no que se refereao acesso educao quanto sua permanncia nas instituies de Educao Infantil.

    Durante o curso de Pedagogia da Universidade do Vale do Itaja (Univali)2, realizei,em conjunto com colegas de graduao, um projeto sobre discriminao racial, no qual foramfeitas observaes do cotidiano das prticas pedaggicas em Centros de Educao Infantil(CEIs) dos municpios de Florianpolis, So Jos e Biguau. Essas observaesevidenciaram um tratamento diferenciado das professoras em relao s crianas negras,constatado inclusive na resistncia em pentear os cabelos delas, sob a alegao de que tinhamdificuldade para faz-lo.

    E foi no universo da Educao Infantil, nas vrias situaes vivenciadas comoprofessora, que descobri, talvez por tambm ser negra, que essa discriminao entreprofessores e crianas, no to ingnua e inofensiva como pensava. No entanto, apesar deserem ainda poucas as pesquisas que analisam as questes tnicas na Educao Infantil noBrasil, Cavalleiro3 (2005, p. 36) constata em seu estudo que

    [...] as pesquisas realizadas apontam para a existncia da problemtica tnica naEducao Infantil. Essas pesquisas, porm, sinalizam a existncia de prticasdiscriminatrias na relao interpessoal entre adultos e adultos/crianas, mas noevidenciam a existncia de discriminao entre as crianas.

    Outra situao vivenciada foi quando, certa vez, fui convidada para trabalhar em umCentro de Educao Infantil, que fica mais distante do centro da cidade de Biguau, paradesempenhar a funo de Auxiliar de Direo. Era uma comunidade em que predominavamos descendentes de alemes; eu era a nica negra entre os professores e funcionrios e stnhamos uma criana negra na turma do berrio. O interessante foi que, ao chegar, me tornei sensao do CEI, principalmente para as crianas, que vinham falar comigo, me tocavam,me cheiravam e mexiam no meu cabelo, roupas, brincos, at que uma menina loura (de 3anos) chegou perto de mim, sentou no meu colo e, para minha surpresa, lambeu meu rosto,tentou colocar meus dedos em sua boca e, me olhando bem de perto, disse: Voc no dechocolate!

    Atuando como professora em outra instituio do municpio de Florianpolis,conversava com uma menina branca (de 4 anos) que me observava trocar as fraldas de seu2 Ingressei no curso de Pedagogia em julho de 1999. Em 2000, realizei um projeto sobre discriminao racial na

    Educao Infantil, na disciplina de Metodologia de Pesquisa em Educao, em parceria com as acadmicas AnaMargarete de Faria, Eliane Maria Guedes Fagundes, Isabel Eiko Kodama, Rosinete de Faria Schappo.3 Eliane dos Santos Cavalheiro formada em letras e pedagogia, com especializao em educao do pr-escolar,

    mestre e doutora formada pela Faculdade de Educao USP.

  • 10

    irmo menor, atravs de uma janela. Perguntou meu nome respondi que era Cris, e ela mecontou que sua tia tambm se chamava Cris. Ento, brincando com a menina, eu disse: Sua tia pode ter o nome igual ao meu, mas garanto que no to linda quanto eu, e sua

    resposta foi a seguinte: Minha tia bem mais linda, pois ela no nega, como tu. Naquele

    momento fiquei sem saber o que dizer. E foram essas situaes do cotidiano infantil, entreoutras, que me instigaram ainda mais a querer entend-las melhor.

    Alm das discriminaes vivenciadas e observadas ao longo da minha trajetriaprofissional, um fato importante e instigante percebido nas instituies pelas quais passei foi ainvisibilidade das crianas negras; em outras palavras, o nmero de crianas negras atendidasnessas instituies parecia sempre menor que o de crianas no-negras, o que poderia nocorresponder realidade da comunidade local, levando-se em considerao que se tratava deuma comunidade que predominantemente se encontra na faixa da pobreza.

    As observaes nesses contextos pelos quais passei foram determinantes paradespertar meu interesse pela pesquisa e, principalmente, para querer mergulhar ainda mais nastemticas raciais, no s mbito educacional, mas permeado por toda a sociedade brasileira.

    Partilho das idias de Cruz4 (2005, p. 25), quando advoga que:

    [...] no parece arbitrrio que afro-brasileiros desenvolvam estudos que contemplamsua prpria histria, tanto porque os estudos nas cincias sociais possuem umaobjetividade marcada por elementos de subjetividades, quanto porque h atualmenteuma imensa necessidade de estudos voltados para a realidade afro-descendentebrasileira.

    A presente pesquisa busca, sobretudo, aprofundar questes em torno das crianasnegras, principalmente no que se refere questo do seu acesso ou no nas instituiesmunicipais de Educao Infantil de Florianpolis, observando o processo de matrcula,fazendo levantamento de dados nas respectivas fichas e os resultantes do cruzamento com osdados estatsticos do censo demogrfico do IBGE.

    Assim, aps o exame de qualificao, a pesquisa foi redefinida, tendo como questesnorteadoras:

    - acompanhar o processo de matrcula, conhecendo como se d o processo de acessodas crianas negras Educao Infantil Municipal de Florianpolis;

    4 Marilia dos Santos Cruz apresenta um estudo que visa refletir sobre a histria da educao dos negros e a sua

    invisibilidade na disciplina de Histria da Educao Brasileira. Procura chamar a ateno para a necessidade daproduo de pesquisa nessa rea e de incorporao de contedos e temticas dessa natureza na disciplinaHistria da Educao Brasileira.

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    - identificar os fatores determinantes e que podem restringir ou at mesmo impediro acesso das crianas negras Educao Infantil Municipal de Florianpolis;

    - analisar a representatividade do acesso das crianas negras nas instituiesmunicipais de Educao Infantil de Florianpolis;

    - investigar os critrios utilizados na classificao tnica das crianas(autodeclarao dos pais, documentao, fentipo5, afetividade) pelas instituiesde Educao Infantil municipal e em outras fontes de informao tendo como baseos critrios utilizados pelo IBGE (2000);

    - analisar os critrios de seleo utilizados pela Secretaria Municipal de Educao epela instituio investigada que permitem o acesso ou no das crianas negras Educao Infantil.

    Portanto, busca-se com esta pesquisa conhecer o processo de acesso das crianasnegras Educao Infantil na Rede Municipal de Educao de Florianpolis, observando nomomento da matrcula os fatores e critrios que podem ser determinantes e/ou que restringemou at mesmo impedem esse acesso. Realizou-se um estudo de caso que tomou como campode investigao uma instituio de perodo integral (creche) localizada na regio continentaldo municpio de Florianpolis. Utilizaram-se como critrios iniciais de escolha a maior oumenor presena de crianas negras nos grupos atendidos pela instituio escolhida, aproximidade da instituio e a possibilidade de uma insero acolhedora numa comunidade jconhecida.

    Encaminhou-se o estudo no sentido de dar visibilidade s crianas negras, pois, deacordo com Qvortrp (1999), que se refere a mais uma das problemticas da sociologia dainfncia precisa-se dar visibilidade s crianas. Nesse caso, estatsticas oficiais buscadas nosdados do IBGE forneceram os subsdios necessrios ao processo de coleta de dados epermitiram, por meio do confronto com outras fontes, uma aproximao com o quadro doacesso das crianas negras Educao Infantil.

    Brando (apud WOOD, 1991, p. 93) afirma que o censo demogrfico do IBGE anica fonte de informao, em nvel nacional, sobre a composio racial da populao

    brasileira.

    5 De acordo com o Dicionrio das Relaes tnicas e Raciais (2000, p. 217), fentipo a aparncia visvel ou

    mensurvel de um organismo quanto a um ou mais traos; o que se v, a aparncia externa dos humanosquanto cor da pele, tipo de cabelo, estrutura ssea, etc.

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    Por isso nesta pesquisa procedeu-se ao cruzamento dos dados nacionais e locaisrecolhidos pelo IBGE com os coletados nas instituies de Educao Infantil pelos rgosmunicipais, buscando estabelecer um paralelo entre eles. Segundo Osrio (2004 p. 85),

    A despeito das muitas crticas, as pesquisas existentes que permitem avaliar, sobalguns aspectos, o sistema de classificao empregado pelo Instituto Brasileiro deGeografia e de Estatstica (IBGE) para identificar grupos raciais sugerem suaadequao investigao emprica das desigualdades raciais na sociedade brasileira.

    interessante destacar que os estudos de Osrio sobre o sistema classificatrio de corou raa do IBGE evidenciam que a classificao feita por este rgo sria, com basehistrica e, como conclui o autor, reflete em grande grau a prpria histria das relaes

    raciais brasileiras nos ltimos dois sculos (OSRIO, 2004, p. 132).Desse modo, nesta pesquisa busca-se conhecer melhor como se d o acesso das

    crianas negras na Educao Infantil, observando todo o processo de matrcula paraidentificar possveis fatores determinantes que impedem ou no esse acesso.

    O restante deste trabalho est organizado nas seguintes sees:

    Na seo 2, inicialmente ser apresentado um histrico da evoluo da populaonegra no Brasil, identificando algumas marcas de sua histria como um processodiscriminatrio social e racial que viveu e ainda vive essa populao, sua busca para se situardentro dessa miscigenao marcada por uma falsa democracia racial6 e tambm algumas dassuas atuais conquistas polticas e educacionais. Fala-se tambm das crianas negras e no-negras, que, a priori identificadas como crias da escravido, foram abandonadas prpriasorte, sem qualquer direito. Mostra-se que a maioria das crianas negras no Brasil, mesmodiante das atuais conquistas que as tornaram sujeitos de direitos , continuam sendo vtimasde maus tratos e vivem uma infncia pobre que as mantm excludas social e racialmente.

    Na seo 3 apresento os passos para a delimitao da pesquisa, o contexto do campode estudo, a caracterizao da unidade estudada e os critrios de inscrio para seleo damatrcula na rede municipal estudada.

    6 Gilberto Freire, antroplogo e parlamentar brasileiro, conhecido pelo seu trabalho Casa Grande e Senzala (

    primeira edio em 1933), uma anlise detalhada da sociedade colonial, a qual restabeleceu a contribuiopositiva dos africanos para a criao do carter e da cultura brasileira. O livro disseca o mito da democraciacordial brasileira, ou o cadinho de raas, pelo qual os grupos e as classes tnicas dissolveram o racismo e opreconceito (CASHMORE, 2000, p. 217-218). O mito da democracia racial difundido por Gilberto Freire constantemente contestado pelos pesquisadores e militantes do movimento negro, que, em suas pesquisas,revelam a grande e histrica desigualdade racial existente em nosso pas e devem ter vivido essa discriminaona prpria pele.

  • 13

    Na quarta parte, fao uma anlise dos procedimentos de acesso das crianas negras Educao Infantil a partir do quadro estatstico da populao infantil e da ofertas de vagas,procurando evidenciar as relaes estabelecidas no processo de inscrio para matrcula,especialmente na classificao raa/cor da seleo das crianas, e identificar algunsdeterminantes da excluso de algumas nesse processo, ainda que seu direito EducaoInfantil seja estabelecido por lei.

    Na ltima parte, a concluso, apresenta-se uma reviso sinttica dos resultados e dadiscusso do estudo realizado, algumas consideraes referentes aos objetivos ou hiptesestraados para o trabalho e as contribuies que se acredita ter dado para o estudo do tema.Apontam-se tambm as possibilidades de se lidar com o que foi estudado.

  • 14

    2 A POPULAO NEGRA: MARCAS DE UMA HISTRIA

    A histria da populao negra brasileira7 tem seu incio com sua vinda forada deafricanos para o Brasil; eles eram seqestrados na frica e trazidos em condies subumanasnos pores de navios denominados negreiros, as primeiras levas chegaram aqui por volta de1532, na primeira metade do sculo XVI.

    Entre os cativos que chegavam ao Brasil predominavam os adultos, os quais, devidoao trabalho escravo a que eram submetidos, raramente chegavam aos 50 anos de idade. Haviaum forte desequilbrio entre o nmero de homens e de mulheres, que variava conforme asflutuaes do trfico, mas, em grandes desembarques chegavam a ser 7 homens para cada 3mulheres.

    A escravido8 no Brasil teve como mo-de-obra principal a populao negra trazida dafrica, mas tambm se utilizou dos ndios, os primeiros habitantes encontrados aqui.

    Segundo Gorender (2000, p. 32), o Brasil se distingue por ter sido o maiorreceptador de africanos escravizados, em toda histria mundial, devido grande necessidadede mo-de-obra para trabalhar nas lavouras de cana-de-acar e nas minas de ouro. Portantoa mo-de-obra da populao negra, que foi trazida para o Brasil e forada a trabalhar comoescrava por mais de quatro sculos, foi a base da economia principalmente no perodocolonial.

    Diante das formas de dominao exercidas pelos proprietrios dos negrosescravizados, cabe ressaltar o surgimento de um movimento de resistncia construda (vivida)por tal populao com a criao dos quilombos. Na tradio historiogrfica brasileira fala-seda escravido e (no se aprende) esquece de contar a histria da resistncia e da luta constantedo povo negro.

    Contudo, dispomos de estudos que possibilitam lanar elementos importantes paraoutra leitura da populao negra, como em Cunha Jr. (1992, p. 16) que afirma que o negronunca aceitou as condies que lhes eram impostas, ele se rebelava, quando podia, fugia e seorganizava em quilombos. A resistncia da populao negra um smbolo histrico que

    7 De acordo com o Dicionrio Brasileiro o Globo (1995), populao significa habitantes de um pas, de uma

    regio, de uma localidade; conjunto de indivduos da mesma condio ou profisso. Com base em tal conceitodenomino assim os descendentes de africanos que foram trazidos para o Brasil na condio de escravos.8 A escravido o status ou a condio de uma pessoa sobre quem todo e qualquer poder de propriedade exercido, de acordo com a Conveno Americana sobre Escravido [I (1), Genebra, 1926]. Essa condioenvolve invariavelmente o trabalho forado e no-remunerado da pessoa tida como propriedade e a sua exclusode qualquer tipo de participao poltica ou direitos civis (CASHMORE, 2000, p. 188-193).

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    marca e reconta uma outra histria sobre esse seguimento da populao brasileira. Aexistncia do movimento dos quilombos evidencia veementemente a no-passividade diantede sua situao de escravo.

    Paixo (2006) afirma que houve muitas formas de lutas9 e de resistncia da populaonegra, no de maneira passiva como sugerida pela historiografia brasileira, mas comoparticipantes ativos da histria nacional. Ao analisar alguns historiadores10, o autor evidenciaque

    (...) onde houve escravido, houve resistncia. As modalidades de resistncia forammuito variadas, e cada qual teve sua importncia histrica. Passou pela negociao dosescravizados com seus opressores, visando a ampliar seus espaos de autonomia, peloboicote aos instrumentos de trabalhos e ao ritmo da produo; s agresses aosfeitores e as mltiplas formas de rebeldia individual e coletiva. Do mesmo modo, osescravizados encontraram nas fugas e na formao de quilombos e mocambos nosmeios rurais e nas cidades notveis formas de resistncia. (PAIXO, 2006, p. 31)

    Segundo Aranha (1996), foi no Quilombo dos Palmares (1630-1694), organizado naSerra da Barriga, em Alagoas, um dos maiores e mais importantes (mas no a nica), formade revolta e organizao social de luta pela liberdade da populao negra escravizada, echegou a abrigar cerca de 20 a 30 mil escravos fugidos.

    Para a antroploga Ana Lcia Valente11 (1994), em seu livro Ser Negro no BrasilHoje, as grandes transformaes mundiais que aconteceram no sculo XIX, dentre elas aRevoluo Industrial, impuseram novas maneiras de produo de mercado. Destaca ainfluncia da Inglaterra, que se transformava em um pas capitalista e que precisava deconsumidores, e o trfico de escravos causava problemas que prejudicavam seus interesses,pois j em 1833 tinha abolido a escravido de seus territrios. Assim por presso daInglaterra, que defendia seus interesses a todo custo, o Brasil viu-se obrigado a acabar com otrfico de escravos; mesmo relutando, os governantes acabaram cedendo e, em 1888, a Leiurea foi assinada, marcando o fim da sustentao da produo da riqueza no trabalhoescravo. Vale destacar que o Brasil foi o ltimo pas a abolir o trabalho escravo.

    De acordo com Paixo (2006, p. 37), a abolio da escravatura no Brasil foi umverdadeiro golpe s aspiraes da populao afro-descendente, pois no trouxe mudanas

    9 Ibidem , p. 32-33

    10 Marcelo Paixo, em seu livro Manifesto Anti-Racista: idias em prol de uma utopia chamada Brasil, cita os

    historiadores Joo Jos Reis e Flvio Gomes, em Liberdade por um fio, refletindo sobre a trajetria dos afro-descendentes que conduz constatao de que sua histria coincide com o prprio significado da palavraliberdade (2006, p.31).11

    Ana Lucia E. F. Valente, doutora em Antropologia Social pela Universidade de So Paulo (USP).

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    significativas nos aspectos polticos, econmicos para esta populao. O que deveria ter sidouma revoluo democrtica plena na vida dos descendentes de escravos, com direito aincorporao destes no mercado de trabalho, a educao, a moradia e a posse de terra, tornou-se uma farsa, continuando a elite da poca hegemnica no poder.

    Entretanto ao temer revoltas por parte da populao negra liberta, com a exaltao dosnimos na busca por reconhecimento de seus direitos, e protestos em razo dos danoscausados durante a escravido, a elite brasileira comea a dar importncia a estes, criandoestratgias de controle sobre os hbitos e seu modo de vida. Alguns membros da elite daPrimeira Repblica se tornam partidrios da teoria racialista12, enquanto medida utilizada namanuteno das hierarquias sociais.

    Outra medida adotada pela elite de eurodescendentes para diminuir a presena dapopulao negra no Brasil, foi o projeto de branqueamento, com a imigrao macia deeuropeus, estimulando a mestiagem.

    Nesse contexto Paixo (2006) afirma que(...) o projeto branqueador, no que tange aos afro-descendentes,ocorreu de forma apenas parcial. Os atuais 75 milhes de negros enegras que vivem no pas fazem com que o Brasil seja a maior naonegra do mundo fora do continente africano. tambm o segundocontingente populacional afro-descendente do planeta. Esses

    expressivos indicadores somente podem ser lidos como sinnimo de

    resistncia material, fsica e espiritual dos descendentes de

    escravizados e escravizadas (ibidem, p. 41).

    Apesar da poltica de imigrao, adotada no final do sculo XIX, que carregava, entreoutras, a expectativa de branqueamento da populao, o Brasil se destaca por ter o segundomaior contingente de populao negra do mundo, o primeiro da Nigria. Dessa forma, apopulao negra representa cerca de 44,6%13 da populao brasileira, quase metade dela, poisaproximadamente 75 milhes de pessoas tm ascendncia africana.

    12 Vale salientar que as teses racialista apontavam para o carter especialmente degenerado do mestio, sendo

    que alguns pseudotericos, como o Conde de Gobineau, acreditavam que esse tipo fosse pura e simplesmenteestril. Nunca demais lembrar que a aplicao dessas teses, ao p da letra, realidade brasileira simplesmentelevava concluso de nossa invisibilidade como povo. (PAIXO, 2006, p. 38)13

    Dados do IBGE, de acordo com o censo demogrfico de 2000, sobre as caractersticas da populao brasileira.De acordo com esses dados, optou-se por utilizar o critrio de dimensionamento compartilhado nas analisesatuais para designar o seguimento negro da populao, o qual integra os autodeclarados pretos e pardos, doIBGE.

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    Entretanto, a populao negra brasileira, que carrega no seu passado uma histria desofrimento, desgraas e atrocidades causadas por um perodo longo sob regime de escravido,vive hoje, aps 119 anos da abolio, em pssimas condies de vida, pelas quais submetida, vivendo sob profundas desigualdades sociais e raciais.

    Nesse sentido, Valente (1994, p. 12) advoga que:

    Durante a escravido no Brasil, o negro era uma mercadoria, era considerado no-humano, e no tinha com quem competir nessa situao. Depois que os negros setornaram livres e passaram a disputar posies com os imigrantes e outros brancos,numa situao de igualdade de direito, o preconceito e a discriminao racialpassaram a ser utilizadas como armas da competio, estabelecendo a desigualdadede fato (Grifos do autor).

    Cunha Jr. (1992 p. 17) ressalta que a simples abolio do cativeiro no foi suficientepara dar total liberdade populao negra, j que depois da libertao esse povo foiesquecido, marginalizado e ignorado, sofrendo constantes preconceitos e discriminaes,mesmo aps tantos sculos de trabalhos rduos sem remunerao e tendo seu reconhecimentototalmente negado.

    No Brasil a populao negra ainda vista descendente de escravo e no dedescendncia africana, idia essa presente no imaginrio coletivo tanto de brancos quanto dosprprios negros. Dessa maneira, para os negros permanece a imagem negativa dos seusantepassados e de si mesmos, de um passado sem glrias, de tristeza, sofrimento esubservincia.

    Por essa razo a populao negra tem dificuldades em se assumir como negra e notem orgulho do seu passado, que de resistncia e de muito trabalho. Sua cultura vasta, rica ede grande valor foi resgatada atualmente pela Lei 10.639/03, que torna obrigatrio o ensino daHistria e da Cultura dos afro-brasileiros. A ministra Matilde Ribeiro14 (2004, p. 8) destaca aimportncia dessa lei, considerando-a positiva principalmente para a afirmao dos direitoshumanos bsicos e fundamentais da populao negra brasileira.

    Ribeiro (2004, p. 8) ainda afirma que:

    [...] o governo federal sancionou em maro de 2003, a Lei n. 10639/03 - MEC, quealtera a LDB (Lei de Diretrizes e Bases) e estabelece as Diretrizes Curriculares paraa implementao da mesma. A 10.639 institui a obrigatoriedade do ensino da

    14 Matilde Ribeiro, Ministra Chefe da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial

    (SEPPIR) que foi criada em 21 de maro de 2004. rgo de assessoramento direto e imediato do presidente darepblica, tendo como objetivo acompanhar e coordenar polticas governamentais para a promoo da igualdaderacial. (SEPPIR, 2004)

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    Histria da frica e dos africanos no currculo escolar do ensino fundamental emdio. Essa deciso resgata historicamente a contribuio dos negros na construoe formao da sociedade brasileira. Criou, em 21 de maro de 2003, a Seppir(Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial) e instituiu aPoltica Nacional de Promoo da Igualdade Racial. Desta forma, recolocou aquesto racial na agenda nacional e a importncia de se adotarem polticas pblicasde ao afirmativa de forma democrtica, descentralizada e transversal. O principalobjetivo desses atos promover alterao positiva na realidade vivenciada pelapopulao negra e trilhar rumo a uma sociedade democrtica, justa igualitria,revertendo os perversos efeitos de sculos de preconceito, discriminao e racismo .

    Segundo Dias (2005), o projeto de lei apresentado pelos deputados federais EsterGrossi e Ben-Hur Ferreira e sancionado pelo governo Lula altera a Lei 9394/96 nos seusartigos 26 e 79, tornando obrigatria a incluso no currculo oficial de ensino da temticaHistria e Cultura Afro-brasileira e tambm altera o calendrio escolar, incluindo o dia 20 denovembro como Dia da Conscincia Negra.

    A lei 10.639/03 visa concretizar o reconhecimento da contribuio da populao negrana construo da sociedade brasileira, respondendo s antigas reivindicaes do Movimento

    Negro (DIAS, 2005, p. 59). Essa lei no contexto atual mais um amparo legal recente no

    campo da educao.

    Na sociedade brasileira, inmeras questes so suscitadas em relao a cor ou raa15

    das pessoas e que so evidenciadas constantemente no cotidiano. De acordo com informaesdo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatsticas (IBGE) no censo demogrfico de 2000quanto s caractersticas gerais da populao, na investigao quanto cor ou raa feitaconforme a autodeclarao da pessoa, e a declarao da cor ou raa do seguimentopopulacional de 0 a 14 anos de idade, geralmente, fornecido pelos adultos, e na maioria dasvezes pelos pais, que tendem a informar a sua prpria cor ou raa (IBGE 2000, p. 36).

    As categorias usadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatsticas socomplexas e no muito claras, pois no se resumem a um conceito e/ou definio, mas sim

    passam por uma questo fenotpica, de sentimento, de identidade, de como eu me vejo, mepercebo, me sinto, me identifico socialmente. Efetivamente, est em jogo, tambm, a questodo pertencimento racial de cada sujeito e isso remete a processos bastante complexos nointerior da sociedade miscigenada e que carrega conflitos em relao a sua auto-representao.

    Destacam-se no Censo Demogrfico do IBGE (2000, p. 26) as seguintes opesquanto cor/raa:

    15 Ver Ellis Cashmore Dicionrio de Relaes tnicas e Raciais (2000).

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    Branca - para a pessoa que se enquadrou como branca;Preta - para a pessoa que se enquadrou como preta;Amarela - para a pessoa que se enquadrou como de raa amarela de origemjaponesa, chinesa, coreana, etc.Parda - para a pessoa que se enquadrou como parda ou se declarou mulata, cabocla,cafuza, mameluca ou mestia; ouIndgena - para a pessoa que se enquadrou como indgena ou ndia.

    Para compreender as relaes raciais no Brasil, faz-se necessrio um estudo dos dadosdivulgados nos censos demogrficos do IBGE, que quantificam e caracterizam a populaosegundo sua cor e raa, um dado fundamental para o conhecimento das suas diversidades.

    No censo demogrfico de 2000, de acordo com o IBGE, a populao brasileira estavadimensionada segundo sua autodeclarao com os seguintes resultados:

    Tabela 1 - Populao Brasileira categorias do IBGE

    BRANCOS PRETOS PARDOS AMARELOS INDIGENAS91 milhes 10 milhes 65 milhes 761 mil 734 mil

    53 % 6,2% 38,4% 0,4% 0,4%Fonte: IBGE - Censo Demogrfico 2000, resultados sobre as caractersticas gerais dapopulao (comentrios dos resultados).

    Nota-se que, se juntarmos os declarados pretos e pardos, teremos um contingente de75 milhes de negros, perfazendo um total 44,6% da populao brasileira.

    Tocar na questo de cor e raa no Brasil um assunto bastante complexo, pois numpas que tem a formao inicial com presena de ndios (populao nativa), brancos(populao que veio para colonizar) e negros (populao trazida da frica para trabalharcomo escrava), compreend-la e analis-la no tarefa simples, sendo importante dialogarcom outros autores na tentativa de entender e refletir sobre alguns termos e conceitos quanto aessa questo.

    Maggie (1997) afirma que foi no perodo de escravizao que as pessoas passaram ater as suas caractersticas fsicas como objeto de classificao, o que gerou novas formas derepresentao da diferena e serviu a novos mecanismos de produo de desigualdade ehierarquizao.

    As reflexes feitas pela autora quanto a cor e raa como matria de pensamentoevidencia que a cor das pessoas foi e tem sido, no Brasil, um dos lados da cultura ou dasociedade escolhido para ser focado. Aparece, no cotidiano, um nmero excessivo de termos

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    sobre a cor das pessoas, desde o diminutivo at a gradao de cor, de claro a escuro, enchemas frases, e aquilo que dito encobre ou escurece termos para ns quase indizveis: preto e

    branco (MAGGIE, 1997, p.226).

    Alm disso, para a autora, tais usos so construdos em uma sociedade que se baseiaem mitos que falam de raa e cor; apoiando-se estudos de Da Matta (1980), traz inicialmenteo mito de origem que conta que viemos de trs raas: negros, brancos, ndios. Outro mito, oqual ela chama de bsico, o mito da democracia racial, do paraso dos mestios, em quese afirma que o racismo e a segregao no existem. Finaliza citando o mito dobranqueamento, que fala do ideal de branqueamento e evita a oposio preto versus branco.Assim, fundar-se-ia uma sociedade povoada de claros e escuros que deveriam ser um diatotalmente de brancos, sem diferenas. Considera por fim que, no Brasil, os termos usados naclassificao da cor designam tambm o lugar social, a origem, a dimenso dobranqueamento, da metonmia, da contigidade.

    Nesse contexto, Gomes (2005) faz uma breve discusso sobre os termos e conceitos-chave utilizados para se referir populao negra brasileira, evidenciando mais do que adefinio deles, pois revela no s as diferentes teorizaes sobre a temtica racial, mas asdiferentes interpretaes que a sociedade brasileira e os atores sociais realizam a respeitodessas relaes. Traz como possibilidade a aproximao de articulao entre a reflexoterica, a prtica social e o campo educacional.

    O antroplogo Kabengele Munanga16 (2003), no seu artigo intitulado Uma abordagemconceitual das noes de raa, racismo identidade e etnia, faz um resgate histrico mostrandoque os conceitos, medida que vo sendo construdos, vo tomando cunhos ideolgicos dehierarquizao.

    O autor discute a direo tomada por naturalistas dos sculos XVIII e XIX aohierarquizarem esses conceitos, estabelecendo uma escala de valores entre as raas econstruindo uma relao de correspondncia entre o biolgico (cor da pele, traosmorfolgicos) e as qualidades psicolgicas, morais, intelectuais e culturais. Para ele, decretou-se a superioridade dos indivduos da raa branca face s raas negra e amarela, o que, noimaginrio e na representao coletiva de diversas populaes contemporneas, orienta a

    16 O Professor Dr. Kabengele Munanga (USP), artigo proferido em palestra do 3 Seminrio Nacional das

    Relaes Raciais e Educao (PENESB - RJ, 05/11/03). professor titular do departamento de Antropologia daUSP desde 1975. Nasceu no Congo, naturalizando-se brasileiro dez anos depois de sua chegada. Nessas trsdcadas, o antroplogo especialista em processos polticos e culturais da frica, tornou-se a principal refernciaacadmica em relaes raciais e intertnicas entre negros e brancos no Brasil.

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    apreenso e o uso de raas fictcias a partir de diferenas como a cor de pele, e de outroscritrios morfolgicos, como o formato do nariz e a textura do cabelo. a partir dessas raasfictcias ou raas sociais que se reproduz e se mantm o racismo.

    Munanga (2003) a todo o momento evidencia e desmistifica os conhecimentoscientficos produzidos ao longo da histria na definio de termos e conceitos que outrorapareciam muito verdadeiros, mas que caram por terra inclusive no campo dos debatescientficos ao longo do sculo XX.

    Ainda assim, h que se reafirmar a resistncia negra:

    [...] luta histrica dos negros organizados pelo reconhecimento de seu direito, aodesenvolvimento humano como todas as demais pessoas, o que est implicado como reconhecimento e a valorizao de seu trabalho, sua histria, sua(s) cultura(s) eseus processos identitrios. A trajetria negra no Brasil, se examinada criticamente,expe a resistncia a toda sorte de foras de opresso, desde as formas coloniais decoisificao de que o corpo negro foi objeto, passando pelas leis de interdio aodireito de propriedade, de educao e alando as atuais formas de excluso ancoradana condio desigual de acesso aos bens bsicos de produo e reproduo da vida(SILVA, 2006, p.02) 17

    As condies de vida das crianas negras tambm so marcadas por interdies, talcomo a dos adultos negros, ao longo de historia do Brasil. Que meios de sobrevivncia asmes escravizadas utilizavam para criar seus filhos pequenos, j que no possuam direitoalgum? A sua condio feminina no lhe conferia nenhuma valorizao social especial, nemtampouco criana, que tinha como desafio sobreviver para ser logo, aceita pelos adultos(PARDAL, 2005).

    2.1 INFNCIA NO BRASIL E POPULAO NEGRA INFANTIL

    O registro da presena de crianas negras no Brasil historicamente se inicia noperodo da escravido. Segundo dados obtidos a partir dos estudos de Ges e Florentino(1997), as crianas negras com menos de dez anos de idade que eram trazidas da frica para oBrasil representavam, na poca da escravido, apenas 4% dos africanos que aqui chegavam.Os autores, aps anlise dos inventrios post-mortem dos proprietrios falecidos nas reasrurais do Rio de Janeiro entre 1789 e 1830, descobriram que no existia propriamente um

    17 Trabalho apresentado em Mesa Redonda: Racismo e as Aes Afirmativas no 7 Seminrio Internacional

    Fazendo Gnero.Vnia Beatriz Monteiro da Silva atua no campo da formao docente e na articulao poltico-pedaggica em redes pblicas de educao como professora-pesquisadora do Cento de Cincias daEducao/UFSC. membro efetivo do Programa de Educao do Ncleo de Estudos Negros/NEN-SC..

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    mercado de crianas cativas algumas eram doadas ao nascer, enquanto outras, ao chegar aofim da infncia, eram comercializadas, ou seja, compradas e vendidas.

    A criana negra, cria da escravido, tinha seus direitos cerceados at o mais completoabandono18. A escrava, ao parir, tinha apenas trs dias para se restabelecer e voltar aotrabalho, e seu filho, para sobreviver, era incorporado ao trabalho da me (PARDAL, 2005).Dessa forma, as mes escravas, na tentativa desesperada de conseguir a sobrevivncia dosfilhos, criavam estratgias, como a de carreg-los amarrados nas costas ou eram obrigadas aouso do tejupado19 como forma de mant-los assim durante o trabalho, conciliando-o com oscuidados a criana.

    Pardal (2005, p. 34) afirma que nem todas as crianas negras tinham o mesmo destino,alguns, os filhos das escravas escolhidas como amas-de-leite, [o destino] era muitas vezes aRoda, outras, freqentar a casa-grande, o que poderia parecer um privilgio, pois ascondies de vida eram melhores do que na senzala. Entretanto, as crianas eramconsideradas como espcie de bichinhos domsticos. A autora ainda salienta que:

    [...] as diferenas [eram] encontradas entre a criana negra e a criana branca e entremeninos e meninas. Na primeira infncia at os seis anos, a criana branca erageralmente entregue ama-de-leite. O pequeno escravo sobrevivia com grandedificuldade, precisando para isso adaptar-se ao ritmo de trabalho materno. Aps esseperodo, brancos e negros comeavam a participar das atividades de seus respectivosgrupos. Os primeiros, dedicando-se ao aprimoramento das funes intelectuais, e ossegundos, iniciando-se no mundo do trabalho ou no aprendizado dos ofcios(PARDAL, 2005, p. 55-56).

    Para o comrcio das crianas escravas, elas eram adestradas e, por volta dos 12 anos,j estavam prontas para entrar no mundo dos adultos e, conseqentemente, no trabalhoescravo. Tais adestramentos as caracterizavam, de tal forma que passavam a trazer a profissocomo sobrenome: Chico da Roa, Joo Pastor, Ana Mucama (GES; FLORENTINO, 1997).

    Essa ocorrncia tambm foi detectada por Mott (apud PARDAL,1979, p.54) queobserva:

    18O abandono das crianas recm-nascidas tem razes antigas, nos leva at a Europa, no final da Idade Mdia napoca em que foi devastada pela Peste Negra (1348). Multiplica-se assustadoramente ento o nmero deabandono de bebs e rfos, sendo necessria a interveno organizada de instituies dos burgos. Em Portugal,antes da colonizao do Brasil, as crianas abandonadas comearam a receber atendimento mediante aorganizao e mobilizao das cmaras municipais e hospitais (REVISTA DE HISTRIA ..., 2003, ano1, n. 4,p.31).19

    Ver: O cuidado s crianas pequenas no Brasil escravista, de Maria Vitria de Carvalho Pardal (2005, p. 53).Para a autora, [...] o hbito de levar os filhos amarrados nas costas durantes viagens ou pequena parte do dia eraamplamente utilizado na frica, como tambm entre nossos ndios. O tejupado buraco cavado na terra, onde acriana era colocada at metade do corpo, inveno engenhosa de um fazendeiro do Maranho, que obrigava asescravas a deixarem [nele] seus filhos, crianas de mama.

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    [...] nos relatos dos viajantes, a idade de cinco a seis anos parece encerrar uma fasena vida da criana escrava. De seis a doze anos ela aparece desempenhado algumaatividade, geralmente pequenas tarefas auxiliares. Dos doze em diante as meninas emeninos escravos eram vistos como adultos, no que se refere ao trabalho e sexualidade.

    A partir da Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 187120, pode-se dizer que seinaugura um perodo importante no s para as crianas negras, que passavam a ser livres,mas para o processo rumo abolio.

    Fonseca (2004, p. 28) advoga que:

    A liberdade das crianas nascidas livres de mes escrava foi uma de suas principaisdimenses e o fato de ter ficado com o nome de Lei do Ventre Livre, j por si s,uma indicao da importncia dessa resoluo. Mas, alm da libertao das crianasnascidas livres de me escrava, havia outros elementos que foram importantes para asociedade brasileira no processo de abolio do trabalho escravo. Porm, como aabolio foi durante muito tempo, analisada como um marco poltico, somente aliberdade das crianas nascidas de me escrava era valorizada. [...] podemos dizerque as outras dimenses da lei foram durante muito tempo, desprezadas, e sserviam para demonstrar como ela havia sido um arranjo parlamentar para defenderos interesses dos senhores de escravos.

    Dessa forma, pode-se dizer que as crianas negras receberam alguma ateno legal apartir da Lei do Ventre Livre21, quando foi exigido dos senhores de escravos os devidoscuidados para com as crianas negras nascidas livres, at completarem 8 anos de idade, casocontrrio elas deveriam serem entregues ao Estado. Acreditava-se que cerca de um sexto dosingnuos seriam entregues, o que no aconteceu. A maioria dos senhores optou por ficar comelas e utilizar os servios dos menores at os 21anos. Entretanto, como o trfico havia sidoproibido desde 1850, por presso da Inglaterra, era cada vez menor a mo-de-obra escrava nopas, fazendo com que fosse mais vantajoso criar as crianas libertas, e utiliz-las at os 21anos. Essa lei teve pouca eficcia ou quase nenhuma na vida criana nascidas livres, poiscontinuou favorecendo aos senhores, que ficaram com as crianas sob seu domnio. Dessaforma, elas recebiam a mesma educao dispensada aos demais escravos (FONSECA, 2004).

    No entanto, a sntese feita por Fonseca (2004, p. 34) evidencia outros pontos da lei,que:

    20 Lei do Ventre Livre, Lei n. 2.040.

    21 Alm da libertao dos filhos da mulher escrava, a Lei do Ventre Livre tinha outras trs dimenses:

    estabelecia novas condies para a libertao de escravos, criava um fundo de emancipao e ainda determinavaa matricula de todos os escravos do Imprio (Fonseca, 2004, p. 31).

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    [...] deixou de ser um documento exclusivamente avaliado pelo seu sentido poltico,para adquirir valor em outras abordagens, como a histria da infncia, a histria dafamlia e da resistncia dos negros no processo de abolio do trabalho no Brasil.

    No final do sculo XIX, o Brasil passava por transformaes; a escassez de mo-de-obra escrava fez com que os senhores mantivessem no s as crianas nascidas livres, comoamparassem rfos para educ-los em suas fazendas, buscando na infncia desamparada umaforma promissora de se resolver os problemas relativos falta de mo-de-obra (FONSECA,2004). E mesmo aps a abolio, a questo das crianas negras nascidas livres passou a serdiluda em meio questo dos problemas da infncia pobre.

    Nesse contexto, as atenes e as preocupaes voltadas para as crianas escravas e suaeducao ganham um carter mais institucional e normalizador, tendo sua base em princpioscientficos voltados para o enquadramento e o controle social (ROCHA, 1999). Assim, ascrianas negras ganharam sua liberdade, mas nunca foram livres efetivamente, pois osmeandros polticos as envolveram, mantendo-as cativas, elevando-as, mais tarde, categoriasde crianas pobres, desvalidas, desamparadas, carecendo de cuidados e de controle.

    2.2 INFNCIA NO BRASIL: AS CRIANAS E SEUS DIREITOS

    Historicamente a infncia brasileira era vista somente no mbito do cuidado e daassistncia, sua educao no era considerada como um dever do Estado22 e nem tampoucocomo um direito das crianas23. Os problemas da infncia e o descaso para com ela no temsido um privilgio brasileiro; por vrios sculos as situaes enfrentadas pelas crianas nomundo no tm sido um assunto novo, nem mais trgico neste ou naquele tempo, pois oabandono e os infanticdios foram deliberadamente praticados por todos os povos,independente de etnia, camada social ou econmica e credo religioso.

    As concepes de criana mudam historicamente (FERREIRA, 2004), os vriosolhares que se lanaram em direo s diferentes infncias, traduziram as concepes de sercriana em cada poca, evidenciando que o processo de construo social da infncia no esttico e tambm espelham as mudanas ocorridas no mundo dos adultos atravs dos tempos.

    22 Ver: Educao Infantil como Direito, Cury, em Subsdios para Credenciamento e Funcionamento de

    Instituies de Educao Infantil, V.II, 1998.23

    Ver: A infncia no sculo XIX segundo memrias de viagem, Histria Social da Infncia no Brasil, 1997.

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    Desse modo, na formao social brasileira podem se reencontradas diversas vises deinfncia, construdas a partir das relaes de poder e das diferenas sociais e tnicasexistentes em cada contexto social e histrico.

    Sacristn (2003, p. 26) salienta que as imagens atravs das quais vemos as crianasso variadas e mutveis nas culturas e nos diferentes grupos sociais. Tais vises podem

    determinar a importncia que lhe damos, nosso comportamento frente a elas, os sentimentosque desenvolvemos, as atitudes pedaggicas com as quais trabalhamos para o seu bem-estar,at mesmo o que achamos que falta e sobra para elas. Estudos e pesquisas trazem dadosreveladores do descaso e do descrdito que algumas sociedades tm em relao infncia e scrianas, e este breve descortinar desses contextos, independentemente das metodologiasutilizadas na coletas dos dados, busca fazer uma tentativa rpida e no linear de mostrar aevoluo histrica, os ganhos e o reconhecimento da infncia contempornea em contrapontocom as evidenciadas nos trabalhos apontados.

    Aris (1979), em seus estudos sobre crianas, descortina, por meio de pesquisaiconogrfica, dados histricos quanto postura dos adultos ante as crianas. A partir dosculo XVIII, a criana passou a ter considerao no mundo dos adultos, inaugurando dessamaneira a posio do ser criana. O autor salienta o desinteresse anterior pela infncia, asaltas taxas de mortalidade, os infanticdios, mas mesmo assim a natalidade era alta. Foi nessesculo que foi estabelecida uma diferena entre os adultos e crianas, mas elas eram retiradasdo convvio social e colocadas em instituies marcadas pelo rigor disciplinar.

    As contribuies da histria da infncia e da sociologia permitem considerar aconcepo atual da infncia como uma construo histrica e social, que, ao longo do tempo,rompeu com a idia de infncia nica e passou a encar-la como marcada pelasespecificidades de suas vivncias, reais, concretas, de diferentes classes, gnero, tnicas, etc.

    Sarmento e Pinto (1997) dizem que os estudos sobre a situao social das crianas dosculo XXI devem elucidar ainda a maneira como as crianas so tratadas, pois muitascrianas encontram-se numa situao de excluso, so vtimas de morte pela fome, conflitosarmados, perseguies tnicas, abandono, maus-tratos, pr-delinqncia, explorao detrabalho infantil, pobreza ou catstrofes naturais. E elas so consideradas como o futuro domundo, mas vivem um presente de opresso.

    Percebe-se um paradoxo: os adultos, na atualidade, desejam que as crianas sejameducadas para a liberdade e a democracia, esquecendo-se de que os servios para a infncia

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    esto calcados no controle e na disciplina, no reconhecendo as contribuies das crianas naproduo do conhecimento.

    Sarmento e Pinto (1997) evidenciam que, no discurso pblico, seja ele o da linguagemcorrente ou o de sistemas periciais, a natureza paradoxal da infncia reflete diferentesperspectivas, imagens e concepes de infncia. Existem diferentes perspectivas nessaquesto: os limites etrios da infncia, a definio dos direitos das crianas, o reconhecimentodas culturas da infncia, os fatores de homogeneidade e heterogeneidade social entre ascrianas, entre outras.

    As pesquisas que contemplam as crianas em quase todos os segmentos da sociedadeno so suficientes para conhec-las mais profundamente, e o fato de terem seus direitosconquistados no lhes garante que eles sejam respeitados e que estejam assegurados, h que sefazer mais.

    As crianas no Brasil so as principais vtimas das mazelas sociais, sendo pior para ascrianas negras, que passam por constantes constrangimentos, sofrem maus-tratos,

    marginalizao, invisibilidade, indiferena, preconceito e at mesmo racismo.

    Para Almeida (2000), o conceito de infncia era calcado na negatividade, a criana eraconsiderada como um dado universal, uma categoria natural, cpia do adulto, tbua rasa, umprojeto de adulto, e a infncia como uma primeira etapa de um curso linear, na qualinevitavelmente a criana passar da irracionalidade para a racionalidade, da imaturidade paraa maturidade.

    Kuhlmann Jr. (1999) apresenta algumas reflexes sobre a histria da infncia e de suaeducao, a partir de um levantamento das pesquisas feitas sobre a temtica. Reconhece que osentido genrico da infncia est ligado s transformaes sociais, culturais, econmicas, etc.,e que o conjunto das experincias vividas por elas em diferentes lugares histricos,geogrficos e sociais vai muito alm das representaes dos adultos sobre essa fase da vida.

    Sarmento (2004) refere-se criana como ser social que ocupa um lugar de atorsocial, portando consigo a novidade inerente sua pertena, sua gerao, permitindo acontinuidade e o renascimento do mundo. O autor afirma que sempre houve crianas, masnem sempre houve infncia. A modernidade elaborou um conjunto de procedimentosconfiguradores da administrao simblica da infncia, mas eles ainda condicionam econstrangem a vida da criana.

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    Cerisara (2004) refere-se s constantes preocupaes de vrios pesquisadores eeducadores que atuam diferentes setores tendo a infncia como ponto em comum, pois, para aautora, no suficiente saber quem so as crianas, preciso, sobretudo saber o que elasfazem e como vivem suas diferentes infncias.

    A autora se refere no seu texto a trabalhos que tentaram romper com o tipo depesquisas que eram feitas at ento, sobre as crianas, e buscaram faz-las com as crianas.Nessas pesquisas, o foco passou a ser as crianas no mais subordinadas ao adulto, assimbuscando chegar a uma melhor compreenso sobre a infncia e as diferenas eparticularidades do ser criana.

    Como a histria no esttica nem neutra, ou seja, os conceitos de criana e infnciaforam e so construdos e modificados ao longo do tempo, a maneira como as crianaspassaram a ser vistas na atualidade trouxe mudanas nas formas de assisti-las e de resguard-las.

    De acordo com Marcilio (1997), a roda dos expostos24 foi criada na Idade Mdia eganhou notoriedade na Itlia do sculo XVII, da sendo copiada e exportada para outroscontinentes nos sculos seguinte. Cabe dizer que a roda dos expostos surge com a apariodas confrarias de caridade, ou seja, surge a partir da ao da igreja, chocada com o abandonoe morte das crianas. O mecanismo da roda dava total anonimato para os que as entregavam.

    Marcilio (1997, p. 55) relata:

    O nome da roda provm do dispositivo onde se colocavam os bebs que se queriamabandonar. Sua forma cilndrica, dividida ao meio por uma divisria, era fixada nomuro ou na janela da instituio. No tabuleiro inferior e em sua abertura externa, oexpositor depositava a criancinha que enjeitava. A seguir, ele girava a roda e acriancinha j estava do outro lado do muro. Puxava-se uma cordinha com umasineta, para avisar a vigilante ou rodeira que um beb acabava de ser abandonado e oexpositor furtivamente retirava-se do local, sem ser identificado.

    Vale lembrar que essa roda era usada inicialmente nos mosteiros e conventosmedievais para receber doaes, evitando qualquer contato dos doadores com os religiosos emregime de clausura; tambm nessa poca j eram recebidas crianas como doao dos paispara servir a Deus (MARCILIO, 1997). A roda, usada indevidamente nos mosteiros, passou aser empregada exclusivamente para receber crianas abandonadas, tornando-se a roda dosexpostos.

    24 Ver: A roda dos expostos e a criana abandonada na histria no Brasil, Histria Social da Infncia no Brasil,

    1997.

  • 28

    A roda dos expostos chegou ao Brasil no sculo XVIII e mais tarde tornou-se uma dasinstituies que sobreviveram durante trs regimes: o colonial, o imperial e o republicano(MARCILIO, 1997).

    A presso dos governantes da poca foi para que se instalasse inicialmente uma rodana Santa Casa de Salvador, Bahia o que ocorreu em 1726 , pois achavam que o abandonode bebs era crescente na cidade (MARCILIO, 1997). No s essa como as demais rodasinstaladas em outros locais de diversas cidades tornaram-se praticamente as nicasinstituies de assistncia criana abandonada no pas, tendo papel importante efundamental por quase um sculo.

    Para manter os locais onde haviam sido instaladas as rodas dos expostos, osreligiosos contavam com a ajuda do rei, da Santa Casa de Misericrdia, da Cmara, doSenado e das Cmaras Municipais.

    A respeito da roda dos expostos, Marcilio (1997, p.64) ainda afirma que havia

    [...] treze casas no Brasil: trs criadas no sculo XVII (Salvador, Rio de Janeiro,Recife), uma no incio do Imprio (So Paulo); todas as demais criadas no rastro daLei dos Municpios que isentava a Cmara da responsabilidade pelos expostos,desde que na cidade houvesse uma Santa Casa de Misericrdia que se incumbissedesses pequenos desamparados. Neste caso estiveram as rodas dos expostos dascidades de Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas (RS), de Cachoeira (BA), de Olinda(PE); de Campos (RJ), Vitria (ES), Desterro (SC) e Cuiab (MT). Estas oitoltimas tiveram vida curta; na dcada de 1870 essas pequenas rodas praticamente jhaviam deixado de funcionar. Subsistiram apenas as maiores.

    Em alguns casos, a roda era utilizada apenas para recolher as crianas abandonadas,entregues em seguida a amas-de-leite, que recebiam alguma remunerao para desempenhartal funo. As crianas expostas morriam quase na sua totalidade, dificilmente chegava idade adulta (MARCILIO, 1997).

    Para Leite (1997, p. 18), os problemas da infncia eram esquecidos e confinados obra literria de escritores europeus e americanos e documentao de asilos, instituiesreligiosas e leigas de proteo aos despossudos, vindo tona posteriormente com a

    industrializao e a urbanizao, conseqncia da exploso demogrfica nas mdias e grandescidades.

    A visibilidade dada infncia aconteceu no s com a revoluo industrial, masprincipalmente com a ida das mulheres para o mercado de trabalho. Esse movimentoimpulsionou a preocupao das mes trabalhadoras e sua procura de um lugar adequado para

  • 29

    deixarem seus filhos pequenos. Vale ressaltar que historicamente a Educao Infantil, que hoje um direito das crianas, por um longo perodo foi oferecida pelo clero, como caridade;mais tarde assume um carter de filantropia, que surgiu fundamentada no modeloassistencial, substituindo o de caridade assistncia filantrpica, particular, e pblica

    (MARCILIO, 1997, p. 76).

    No incio do sculo XX, o Brasil apresentava novas exigncias sociais, econmicas,polticas e morais, e as entidades filantrpicas tinham a tarefa de organizar-se para darassistncia infncia desvalida.

    Cury (1998), em seus estudos, buscou nas constituies federais, ao longo da histria,a expresso assistncia referindo-se infncia; encontrou-a somente na Constituio Federalde 67 e na Junta Militar de 69 que a noo de lei prpria providenciar a Assistncia Infncia.

    Dessa forma constata-se que a histria da Educao Infantil relativamente recenteno pas 25, e foi ganhando espao sob forma de lei26, inicialmente de maneira muito discreta:as empresas eram responsveis pela educao das crianas menores de 7 anos cujas mestrabalhadoras, deveriam ser organizadas e mantidas em cooperao com o poder pblico.

    A Educao Infantil teve o seu melhor momento na Constituio 88, pois a partir delapassou a ser um direito das crianas e principalmente um dever do Estado, respondendo assimaos anseios dos vrios movimentos sociais preocupados com a educao das crianas.

    O Artigo 227 da Constituio diz que:

    dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar a toda criana e aoadolescente, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de todaforma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso.

    Pelo artigo citado, toda a sociedade institucionalizada passou a ser tambm co-responsveis pelo bem-estar das crianas e pela sua educao, podendo sofrer penalidades se

    25 Barreto (1998, p. 23) afirma que, embora iniciativas na rea existam h mais de um sculo, foi nas ltimas

    dcadas que o atendimento a crianas menores de 7 anos em creches e pr-escolas apresentou maior significao,acompanhando as tendncias internacionais.26

    Lei de Diretrizes e Bases de 1961 (4.024/61) Lei 5.692/71; ambas mantm e reforam que as empresasdeveriam organizar e manter essa ligao com as mes trabalhadoras que tivessem filhos menores de7 anos(CURY, 1998, p. 10-11).

  • 30

    tais determinaes no fossem cumpridas. Alm disso, esses direitos foram estendidos aosadolescentes e reafirmados no Estatuto da Criana e do Adolescente27.

    Segundo Barreto (1998, p.23), alguns fatores contriburam para a expanso daEducao Infantil no Brasil, tais como:

    [...] a urbanizao, a industrializao, a participao da mulher no mercado detrabalho e as modificaes na organizao e estrutura da famlia contempornea,demandando a instalao de instituies para o cuidado e a educao das crianas.[...] o reconhecimento pela sociedade, da importncia das experincias da infnciapara o desenvolvimento da criana e as conquistas sociais dos movimentos pelosdireitos da criana [...] marcos importantes, nesta histria, a Declarao Universaldos Diretos da Criana de 1959, e a Conveno Mundial dos Direito da Criana de1989.

    A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, pode ser citada como um marcohistrico para a educao das crianas de 0 a 6 anos, j que apresenta pela primeira vez aexpresso Educao Infantil, cunhada na lei nacional de educao com base em outro artigoconstitucional que afirma, no seu inciso IV: O dever do Estado com a educao serefetivado mediante garantia de [...] atendimento em creches e pr-escolas s crianas de zero aseis anos de idade (BARRETO, 1998, p. 23).Barreto (1998, p. 24), diz que a lei queestabelece a Educao Infantil no diferencia a creche da pr-escola, mesmo dizendo queser oferecida em creches para crianas de at trs anos de idade e em pr-escola, para

    crianas de quatro a seis anos, esta fazendo parte da educao bsica.

    Um dos fatores, evidenciados por esse autor, que a LDB afirma que a ao daEducao Infantil complementar da famlia e da comunidade, mostrando a importnciados demais mbitos da educao e referindo-se talvez aos servios oferecidos pelasinstituies de Educao Infantil, um lugar de direitos, de cuidados e educao, organizadopara que as crianas possam ampliar suas experincias e conhecimentos.

    Outro fator bastante relevante na lei o da avaliao, pois se afirma que na EducaoInfantil a avaliao far-se- mediante acompanhamento e registro do seu desenvolvimento (dacriana), sem o objetivo de promoo. Foi uma posio tomada na LDB na tentativa de coibiralgumas instituies que retinham as crianas na pr-escola at estarem alfabetizadas,impedindo seu acesso ao ensino fundamental aos 7 anos.

    27 Lei 8.069/90 Estatuto da Criana e do Adolescente.

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    Nesses destaques fica explicitada a importncia conquistada pela Educao Infantil aoser reconhecida como direito de todas as crianas, sem distino de raa, gnero ou credoreligioso.

    Fllgraf28 (2001, p. 27), afirma, no entanto, que os problemas da infncia nestarealidade social no encontram solues somente na publicao de normas jurdicas. Suasoluo depende do compromisso poltico dos governantes, aliado ao entendimento de comoso concebidas as responsabilidades na garantia de seus direitos fundamentais.

    Nesse distanciamento entre os documentos legais, o direito proclamado e o caminhode sua efetivao, apresentam-se muitos obstculos, dentre os quais a prpria interpretao dalei e a vontade poltica em efetiv-la. A disputa de responsabilidades entre os diferentesnveis governamentais um dos entraves nessa efetivao. O artigo 211 define que AUnio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios organizaro, em regime de colaborao,seus sistemas de ensino. II Os Municpios atuaro prioritariamente no ensino fundamental ena Educao Infantil.Da resultam diferentes compreenses sobre a lei, tais como asdefinidas por Barreto (1998) e Fllgraf (2001).

    Para Barreto (1998), a Educao Infantil, enquanto dever, de responsabilidade no sdos municpios, mas tambm das outras instncias da federao, cada uma com atribuies ecampos de competncia especficos; h um compromisso mtuo entre as instncias dogoverno, ou seja, a Educao Infantil tambm um dever dos Municpios, dos Estados e daUnio.

    Fllgraf (2001, p. 32) evidencia que:

    [...] a Constituio instaura o princpio de descentralizao da educao,evidenciando uma desarticulao poltica entre as esferas de governo e a indefiniodos papis no atendimento aos diferentes nveis de ensino para os entes federados,ou seja, a Constituio indicou para a esfera federal o atendimento prioritrio aoEnsino Superior; para os Estados, o atendimento ao Ensino Mdio e Fundamental;para os Municpios, o atendimento Educao Infantil e ao Ensino Fundamental.

    A interpretao do Artigo 211 da lei pode sugerir uma ambigidade no sentido dedescentralizao; coloca em risco claramente o papel de cada uma das esferas do governo nasua atuao de atendimento s polticas pblicas para a educao das crianas pequenas. AEducao Infantil passou a fazer parte da educao bsica, mas, por no ser obrigatria, no

    28 Ver Fllgraf A Infncia de Papel e o Papel da Infncia, dissertao de mestrado, 2001.

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    teve garantia de fontes de financiamento e passou a sofrer um mnimo de expanso; em

    alguns casos, sofreu uma diminuio da oferta.

    Na seqncia da implementao dos documentos legais e governamentais, no entanto,percebe-se um movimento de afirmao e construo de estratgias de cumprimento dosdireitos. O documento A Poltica Nacional de Educao Infantil: pelo direito das crianas de0 a 6 anos educao apresenta, nessa direo, as diretrizes, objetivos, metas e as estratgiaspara a rea. Esse documento foi elaborado pelo MEC, em parceria com o Comit Nacional deEducao Infantil, com as secretarias municipais de educao e com a Unio Nacional dosDirigentes Municipais de Educao (UNDIME), tendo como objetivo de propiciar ocumprimento do preceito constitucional da descentralizao administrativa e a participaodos diversos atores da sociedade para as polticas pblicas voltadas para as crianas de 0 a 6anos.

    O documento, na sua introduo, afirma que:

    O panorama geral de discriminao das crianas e a persistente negao de seusdireitos, que tem como conseqncia o aprofundamento da excluso social, precisamser combatidos com uma poltica que promova incluso, combata a misria ecoloque a incluso de todos no campo dos direitos (MEC, 1993, p. 5).

    No entanto, uma anlise da situao da infncia brasileira reafirma um quadro dediscriminao e negao dos direitos das crianas, inclusive do direito Educao Infantil.

    2.3 POBREZA E INFNCIA: A EXCLUSO SOCIAL E RACIAL

    [...] a pobreza no Brasil tem cor. A pobreza no Brasil negra. Nascer negro29 noBrasil est relacionado a uma maior probabilidade de crescer pobre(HENRIQUES30, 2002, p. 29).

    Essa afirmao evidencia o resultado de muitas pesquisas, mas expressa, sobretudo oretrato da situao social e econmica da populao negra no Brasil, que tambm pode serencontrado no Atlas Racial Brasileiro (2005)31. Nesse Atlas, mostra-se que a pobreza e a

    29 Termo usado pelo autor designando a populao negra composta por pretos e pardos.

    30 Ricardo Henriques economista, com mestrado pelo Instituto de Economia Industrial da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro e doutorado pela Universidade de Paris X Nanterre. Afirmao feita em seu livro: Raa &Gnero nos Sistemas de Ensino. Os Limites das Polticas Universalistas na Educao.31De acordo com o PNUD - Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento, o Atlas Racial Brasileiro banco de dados eletrnico que rene a mais ampla serie histrica de indicadores sociais sobre raa e cor jproduzida no Brasil, foi lanado em 01/12/2004.

  • 33

    indigncia so marcadas pela raa: [...] 65% dos pobres e 70% dos indigentes so negros32,evidenciando o que no mais novidade, principalmente para a populao negra brasileira,pois ela sente diariamente na pele os efeitos dessa realidade (ATLAS RACIALBRASILEIRO, 2007)33.

    Falar de pobreza no Brasil falar da populao negra, que tem vivido situaes dedesigualdade que so encaradas com naturalidade pela sociedade. Resultante do processohistrico construdo ao longo do tempo e de um acordo excludente social, poltico eeconmico que no reconhece a cidadania para todos (HENRIQUES, 2002, p. 13).

    Ainda segundo as informaes do Atlas Racial Brasileiro (2004):

    A proporo das pessoas que vivem abaixo de linhas de pobreza (nacionais ouinternacionais) um dos principais indicadores para monitoramento do progresso doObjetivo do Milnio de se reduzir a pobreza pela metade at 2015. No Brasil, aproporo de pobres na populao revela uma importante dimenso da persistnciada desigualdade racial brasileira.

    A preocupao para com as pessoas que vivem em situao de pobreza no privilegio s do Brasil, mas uma preocupao mundial. Entre essa populao, as crianasso as principais vtimas da pobreza.

    A esse respeito, frisa o socilogo Bruno da Costa (2004) 34:

    Os efeitos da pobreza so devastadores e afetam metade das crianas no mundo(mais de mil milhes): mata-as; impede-as de crescerem de forma saudvel; potenciao aparecimento de doenas; tira-lhes o ensino; tornando-as vitimas do trficohumano e diminui a capacidade das famlias e das comunidades de se ocuparem deseus filhos. O alerta da UNICEF, que apresentou o relatrio de 2005. Em cadatrs segundos, morre uma criana devido pobreza.

    No Brasil, h muito tempo a infncia pobre passou a ser um problema, uma ameaa aopas. No final do sculo XIX e incio do sculo XX, ou seja, na poca da passagem do regimemonrquico para o regime republicano, deu-se um debate entre mdicos e juristas com ainteno de discutir essa situao. Salvar as crianas salvar a nao eram as palavras deordem implcitas nos discursos salvacionistas da elite (RIZZINI, 1997).

    32 O termo negro tambm utilizado no Atlas Racial Brasileiro.

    33 http://www.pnud.org.br/publicacoes/atlas_racial/ARB-Pobreza_e_Indigencia.doc34

    Bruno da Costa socilogo, professor universitrio, consultor da UNESCO e relator do Programa de Lutacontra a Pobreza Infantil da EU. Artigo publicado no site:http://dn.sapo.pt/2004/12/10/sociedade/emcadatresegundosmorrecrianca.html

  • 34

    De acordo com Rizzini (1997, p. 18-19), em sua pesquisa histrica, que compreende operodo 1870 a 1930 sobre a infncia pobre, essa parcela da populao era vista como umaameaa para o pas. Portanto, merecia a ateno de

    [...] um aparato complexo mdico-jurista-assistencial, cujas metas foram definidaspelas funes de preveno (vigiar a criana), educao (moldar a criana pobre aohbito do trabalho), recuperao (reabilitar o menor vicioso) e represso (conter omenor delinqente).

    Para esta autora a histria da criana no Brasil pautou-se numa viso ambivalente emrelao criana, pois, ao mesmo tempo em que se reconhecia que estava em perigo, era vista

    como perigosa para a sociedade. Essa criana, considerada filha da pobreza, caracterizava-secomo um problema social grave, pois estava abandonada material e moralmente. Assim,tornava-se uma ameaa ao futuro da nao.

    Entretanto, uma anlise da autora sobre a proposta de proteo infncia pobredefendida pela sociedade desse perodo revelou no apenas a magnnima preocupao com aeducao e reeducao da criana pobre, mas tambm que, longe de ser um gesto dehumanidade e de conscincia plena de cidadania, tais aes visavam educ-las moldando-aspara a mais pura submisso e subservincia. (RIZZINI, 1997).

    Na viso da autora, o Brasil um pas cheio de contradies desde seus primrdios eainda permanece assim. Mostra que as opes polticas adotadas pelos governantes tantodaquela poca como de hoje sempre vm ao encontro de seus interesses e dos grupos queesto no poder, deixando ao pobre a desigualdade social, e mantendo-os sempre margem dasociedade.

    De acordo com Rocha (1999, p. 45), a preocupao com a criana pobre era umaespcie de produo intelectual, objetivada na criao de instituies de educaoconstitudas cientificamente:

    As cincias que orientavam o nascimento das instituies de educao da infncia,sobretudo as cincias mdicas, sob a forma de Pediatria ou Higiene, pautavam-senuma orientao baseada na neutralidade e no estabelecimento de padreshegemnicos, universais e humanitrios, que nesta mesma direo aliavam-se Pedagogia, ao Direito e assistncia, e at mesmo Sociologia. O objeto depreocupao aqui era a infncia pobre sem distino de idade. A delimitao etriaparecia ser mais enfatizada apenas no caso do nitris/latente, mas a assistnciaapregoada era genrica e voltava-se para as crianas consideradas ameaadas,abandonadas, desvalidas, responsabilizadas por sua excluso.

  • 35

    As atenes voltadas s crianas passaram a ter na cincia alicerces que ganharamfora, e foram realizadas e divulgadas pesquisas em congressos35 no Brasil e exterior tomado-as como objeto de estudo, feitas por intelectuais preocupados com a preservao, prevenoe preparao da infncia (ROCHA, 1999). Os avanos dos anos 80 e 90 resultaram emconquistas sociais, entretanto muito ainda se tem que alcanar para a efetivao dos direitosde todas as crianas brasileiras e do respeito pela sua infncia.

    2.4 SISTEMA EDUCACIONAL E POPULAO NEGRA

    O sistema educacional brasileiro tem revelado um contnuo processo de excluso doacesso da populao negra educao e de sua permanncia nas instituies. O grandenmero de estudos que atualmente vm se dedicando ao tema revela um sistema educacionalcom carter discriminador, atingindo todos os nveis da educao (desde a Educao Infantilat o ensino superior). No entanto, acredita-se que atravs da educao que pode chegar igualdade racial. Entretanto, como a educao, como mecanismo complexo, pode acabar coma desigualdade racial e, ao mesmo tempo, pode ser excludente e discriminatria?

    A histria da educao da populao negra complexa e mostra ambigidades quedeterminaram sua trajetria, refletindo a prpria histria das relaes raciais no Brasil. Cruz(2005, p.230) afirma:

    A problemtica da carncia de abordagens histricas sobre a trajetria educacionaisdos negros no Brasil revela que no so os povos que no tm histria, mas h povoscujas fontes histricas, ao invs de serem conservadas, foram destrudas no processode dominao.

    Nesse vis, Fonseca (2004, p. 35) tambm advoga:

    Ao pensar a educao dos negros, o que fez a elite branca que chamou para si aresponsabilidade de construir a transio para a sociedade livre, foi projetar a prpriaexistncia que desejava para os negros nessa sociedade. Isso no ocorreu como umaruptura em relao escravido, mas como uma tentativa de continuidade daestrutura social originria daquele perodo. E um dos aspectos convocados para agarantia dessa continuidade foi educao como estratgia disciplinadora eracionalizadora do espao social.

    Pode-se dizer que, a partir da Lei do Ventre Livre, houve uma preocupao com aeducao dos negros. Ainda sob o regime escravido, eram poucas as prticas educativas

    35 De acordo com Rocha (1999, p. 46) Congressos de Proteo Infncia (1922 e 1923), de carter assistencial,

    pretendiam contribuir para amenizar a pobreza e divulgar pensamentos cientficos.

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    realizadas no mbito privado. Em defesa dos interesses dos senhores havia uma nicainteno: fazer deles seres ignorantes e embrutecidos, e a prtica educativa se concretizavapela fora do chicote (FONSECA, 2004, p. 46).

    Uma retrospectiva histrica da educao brasileira aponta no sistema educacionaldiferente formas de impedir o acesso e permanncia da populao negra. A prpria histriaapresenta fatos que evidenciam tais situaes, at houve leis que impediram e dificultaram apopulao negra de estudar. Havia uma ideologia por trs de toda ao com relao populao negra e sua educao, e tudo foi pensado e articulado para a manutenohegemnica:

    [...] O Decreto n 1.331, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecia que nas escolaspblicas do pas no seriam admitidos escravos, e a previso de instruo paraadultos negros dependia da disponibilidade de professores. O Decreto n 7.031-A, 6de setembro de 1878, estabelecia que os negros s podiam estudar no perodonoturno e diversas estratgias foram montadas no sentido de impedir o acesso plenodessa populao aos bancos escolares (SEPPIR, 2004, p. 7).

    Mesmo com a promulgao da Constituio de 1988, a populao negra brasileiraainda no tem seus direitos garantidos, pois o Estado levado condio democrtica aindapossui uma realidade marcada por posturas subjetivas e objetivas de preconceito, racismo ediscriminao, o que dificulta e at mesmo impede o acesso e a permanncia dos afro-descendentes nas escolas (SEPPIR, 2004).

    Entender os meandros histricos do sistema educacional permite discutir suasimplicaes na educao das crianas negras. Dessa forma esse entendimento mostra-sefundamental para a pesquisa, pois as expectativas depositadas e comprovadas porpesquisadores ao longo dos anos talvez possam elucidar as desigualdades sociais e raciais queainda permeiam nossa sociedade.

    Levin (1984, p. 63)36,afirma que [...] a educao pode proporcionar maior coesosocial, assegurar estabilidade, consolidar valores democrticos, desenvolver a participaopoltica e assim por diante, sendo considerada uma das principais possibilidades eimportantes alternativas para a populao pobre e negra.

    Munanga (2005) tambm advoga que por meio da educao, mas no apenas pormeio dela, que se podem superar os problemas raciais, ou seja, no basta superar os limites da

    36 Henry M. Levin Doutor (Ph.D.); Professor titular da Faculdade de Educao e do Departamento de

    Economia da Universidade de Stanford, Diretor do Institute for Research on Educacional Finance andGovernance, Stanford, EUA.

  • 37

    pura razo s com conhecimento, pois eles assumem tambm uma dimenso afetiva eemocional.

    O autor ainda afirma que:

    Quantas vezes ouvimos pronunciar, at por pessoas supostamente sensatas, a frasesegundo a qual as atitudes preconceituosas s existem na cabea das pessoasignorantes, como se bastasse freqentar a universidade para ser completamentecurado dessa doena que s afeta os ignorantes? Esquecem-se que o preconceito produto das culturas humanas que, em algumas sociedades, transformou-se em armaideolgica para legitimar e justificar a dominao de uns sobre outros. Essa maneirade relacionar o preconceito com a ignorncia das pessoas pe o peso mais nosombros dos indivduos do que nos da sociedade. Alm disso, projeta a sua superaoapenas no domnio da razo, o que deixaria pensar, ao extremo, que nos pases ondea educao mais desenvolvida o racismo se tornaria um fenmeno raro(MUNANGA, 2005, p. 18).

    O desafio da educao fica posto principalmente como estratgia de luta contra oracismo, mas sozinha no dar conta, apenas suficiente para acabar com as representaesque brotam e/ou so cultivadas no imaginrio coletivo da sociedade brasileira (MUNANGA,2005).

    Assim faz-se necessrio buscar medidas polticas que possam atender asreivindicaes dos muitos movimentos sociais negros. A Poltica Nacional de Promoo daIgualdade Racial atualmente uma dessas medidas, e tem um grande desafio: ao criar a umasecretaria (SEPPIR, 2004), compromete-se a desenvolver aes que contribuam de modosignificativo para a reduo e eliminao das desigualdades etnorraciais no Brasil. Apresentaalgumas metas imprescindveis para o sistema educacional quanto ao conhecimento e a

    importncia do papel que as matrizes das culturas africanas tm na formao do patrimniocultural e simblico da humanidade37. Alm disso, a j referida Lei n 10.639/03 evidencia opapel do Estado ao reconhecer e valorizar a contribuio da populao negra na construo danao brasileira.

    A SEPPIR (2004, s/p) acredita que:

    A Lei 10.639/02 vem ao encontro de uma verdadeira transformao social, poispretende desfazer os mitos e preconceitos criados pelo atual modelo de educao.Implementar essa lei reconhec-la como uma das mais importantes aes para apromoo da igualdade de oportunidades raciais conquistadas por todos aquelessonham com uma sociedade mais justa, fraterna e solidria. Um povo que noconhece seu passado, sua histria, no pode viver bem o presente e sequer pensar emter um futuro digno. Da a importncia da SEPPIR em valorizar, divulgar e estimularos estados e municpios para implementao da lei o mais rpido possvel,

    37 Metas apresentadas no 3 Frum Mundial da Educao, 2004, pela Secretaria Especial de Polticas Pblicas da

    Igualdade Racial (SEPPIR).

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    reconhecendo que a educao um importante caminho para a transformao dasociedade.

    As maneiras como preconceito e as discriminaes permeiam o interior dasinstituies de educao so evidenciadas diariamente nos livros didticos38, nos contedostrabalhados ou no, no silenciamento dos sujeitos pertencentes a essas instituies. Apesar daconstante negao do racismo, tanto pelos mecanismos legais, quanto pela maioria dapopulao, mesmo que sutilmente e de maneira velada, continua pairando no imaginriocoletivo o preconceito racial, que se reflete principalmente nas aes realizadas dentro dasinstituies educativas.

    As instituies de Educao Infantil tambm reproduzem o modelo excludente queexiste no mbito educacional brasileiro (ROSEMBERG, 1999).

    Para Rosemberg havia um desprestgio da Educao Infantil no Brasil, pois a crecheno foi pensada para a produo de qualquer ser humano, mas dos filhos recm-libertos demes escravas. A autora afirma: [...] categoricamente existe discriminao racial naeducao brasileira comprovada atravs de indicadores educacionais (1999, p. 12). Percebe-se, pois que no ser fcil a construo de uma prtica educacional que respeite as diferentesculturas como marcas estabelecidas nas relaes sociais de classe, de gnero, de etnia, etc.

    A contribuio de algumas pesquisas nessa rea vem mostrando que o sistemaeducacional, da forma como foi constitudo, ainda excludente, principalmente para apopulao negra brasileira.

    Para Cavalleiro (1999), as pesquisas acadmicas apontam que o sistema de ensino e osprofissionais de educao so reprodutores da discriminao e do racismo no espao escolarem todos os nveis de educao,

    [...] para a promoo de uma educao igualitria, compromissada com odesenvolvimento de todos os ci