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Este volume mostra os perigos que Coração de Fogo, agora um guerreiro do Clã do Trovão, terá de enfrentar na floresta. Com o inverno chegando, os gatos rivais do Clã do Rio estão cada vez mais inquietos, enquanto o fraco Clã do Vento sofre ameaças de todos os lados.O clima de tensão caminha para um desdobramento explosivo, e Coração de Fogo tem de lidar com a batalha iminente com os clãs rivais e a suspeita de traição dentro do próprio clã.
ASALIANÇAS
clãdotrovãoLÍDER ESTRELAAZUL–gataazul-acinzentada,defocinho
prateado
REPRESENTANTEGARRADETIGRE–gatãomarrom-escuro,depelomalhado,comgarrasdianteirasexcepcionalmentelongas.
CURANDEIRA PRESAAMARELA–velhagatadepeloescuroecaralargaeachatada,queantesfaziapartedoClãdasSombras.
GUERREIROS (gatosegatassemfilhotes)
NEVASCA–gatãobranco.APRENDIZ,PATADEAREIA
RISCADECARVÃO–gatodepelomacio,malhadodepretoecinza.APRENDIZ,PATADEPOEIRA
RABOLONGO–gatodepelodesbotadocomlistaspretas.APRENDIZ,PATALIGEIRA
VENTOVELOZ–gatomalhadoeveloz.
PELEDESALGUEIRO–gatacinza-claro,comexcepcionaisolhosazuis.
PELODERATO–pequenagatadepelomarrom-escuro.
CORAÇÃODEFOGO–belogatodepeloavermelhado.APRENDIZ,PATADECINZA
LISTRACINZENTA–gatodelongopelocinza-chumbo.APRENDIZ,PATADESAMAMBAIA
APRENDIZES (comidadesuperioraseisluas,emtreinamentoparasetornaremguerreiros)
PATADEAREIA–gatadepeloalaranjado.
PATADEPOEIRA–gatomalhadoemtonsmarrom-escuros.
PATALIGEIRA–gatopretoebranco. PATADECINZA–gatacinza-escuro.
PATADESAMAMBAIA–gatomalhadoemtonscastanhos.RAINHAS (gatasqueestãográvidasouamamentando) PELEDEGEADA–combelíssimopelobrancoeolhosazuis. CARARAJADA–bonitaemalhada. FLORDOURADA–peloalaranjadoclaro.
CAUDASARAPINTADA–malhada,corespálidas,arainhamaisvelhadoberçário.
ANCIÃOS (antigosguerreiroserainhas,agoraaposentados)
MEIORABO–gatãomarrom-escuro,semumpedaçodacauda.
ORELHINHA–gatocinza,deorelhasmuitopequenas;gatomaisvelhodoClãdoTrovão.
RETALHO–pequenogatodepelopretoebranco.
CAOLHA–gatacinza-claro,membromaisantigodoClãdoTrovão,praticamentecegaesurda.
CAUDAMOSQUEADA–gataatartarugada,belíssimaemoutrostempos,combonitopelosarapintado.
clãdassombrasLÍDER MANTODANOITE–gatopreto.REPRESENTANTE PELOCINZENTO–gatocinzaemagro.CURANDEIRO NARIZMOLHADO–pequenogatodepelocinzaebranco.
GUERREIROS CAUDATARRAXO–gatomalhado,marrom.APRENDIZ,PATAMARROM
PÉMOLHADO–gatomalhadodecinza.APRENDIZ,PATADECARVALHO
NUVENZINHA–gatobempequeno,malhado.RAINHAS NUVEMDAAURORA–pequenagatamalhada. FLORDOANOITECER–gatapreta.
PAPOULAALTA–gatamalhadaemtonsdemarrom-claro,delongaspernas.
ANCIÃOS PELODECINZAS–gatocinzentoemagro.
clãdoventoLÍDER ESTRELAALTA–gatobrancoepreto,decaudamuito
longa.REPRESENTANTE PÉMORTO–gatopretocomumapatatorta.CURANDEIRO CASCADEÁRVORE–gatomarrom,decaudacurta.
GUERREIROS GARRADELAMA–gatomalhado,marrom-escuro.APRENDIZ,PATADETEIA
ORELHARASGADA–gatomalhado.APRENDIZ,PATAVELOZ
BIGODERALO–jovemgatomalhado,marrom.APRENDIZ,PATAALVA
RAINHAS PÉDECINZAS–gatadepelocinza. FLORDAMANHÖgataatartarugada.
clãdorioLÍDER ESTRELATORTA–gatoenorme,depeloclaroemandíbula
torta.
REPRESENTANTE PELODELEOPARDO–gatadepelodouradoemanchasincomuns.
CURANDEIRO PELODELAMA–gatodepelolongo,cinza-claro.
GUERREIROS GARRANEGRA–gatonegro-acinzentado.APRENDIZ,PATAPESADA
PELODEPEDRA–gatocinzacomcicatrizesdebatalhasnasorelhas.APRENDIZ,PATADESOMBRA
VENTRERUIDOSO–gatomarrom-escuro.APRENDIZ,PATADEPRATA
ARROIODEPRATA–gatamalhadadeprateado,bonitaeelegante.
GARRABRANCA–gatodepeloescuro.
gatosquenão
pertencemaclãs
BORRÃO–gatinhoroliçoesimpático,depelopretoebranco,quemoranumacasaàbeiradafloresta.
CEVADA–gatopretoebranco,quemoranumafazendapertodafloresta.
ESTRELAPARTIDA–gatomalhadodemarrom-escuro,pelolongo,antigolíderdoClãdasSombras.
PÉPRETO–gatãobranco,comenormespataspretasretintas,antigorepresentantedoClãdasSombras.
CARARASGADA–gatomarrom,comcicatrizesdebatalhas.
ROCHEDO–gatomalhadodeprateado.
PATANEGRA–gatonegro,magro,comcaudadepontabranca.
PRINCESA–gatamalhadaemtonsmarrom-claro,compeitoepatasbrancos.Gatinhadegente.
FILHOTEDENUVEM–oprimeirofilhotedePrincesa;brancoedepelolongo.
ÍNDICE
Prólogo
Capítulo1
Capítulo2
Capítulo3
Capítulo4
Capítulo5
Capítulo6
Capítulo7
Capítulo8
Capítulo9
Capítulo10
Capítulo11
Capítulo12
Capítulo13
Capítulo14
Capítulo15
Capítulo16
Capítulo17
Capítulo18
Capítulo19
Capítulo20
Capítulo21
Capítulo22
Capítulo23
Capítulo24
Capítulo25
Capítulo26
Capítulo27
Capítulo28
Capítulo29
Capítulo30
PRÓLOGO
CHAMAS ALARANJADAS SE ELEVAM no ar frio, lançando fagulhas no céu escuro.Seu clarão dança no descampado de grama maltratada, projetando oscontornosdosDuas-Pernasreunidosemvoltadafogueira.Umpardeluzesbrancasapareceadistância,anunciandoaaproximação
deummonstro.ElerugeaopassarpeloCaminhodoTrovão,queseelevarumoaocéu,eencheoarcomvaporesacres.Nabeiradodescampado,umgatosemovimenta,osolhosbrilhandonas
sombras. As orelhas empinadas se mexem, depois se abaixam com obarulho.Seguem-semaisgatos,umaum,invadindoagramasuja.Trazemascaudasabaixadasenquantofarejamoaramargocomoslábioscrispados.–EseosDuas-Pernasnosvirem?–perguntaumdeles.Umgatãoresponde,comosolhoscordeâmbarrefletindoaluzdofogo.–
Não vão conseguir. Os Duas-Pernas enxergammal à noite. – Quando eleavança, as chamas iluminam a pelagem branca e preta de seus ombrosfortes.Elemantémaltaacauda longa,enviandoaseuclãumamensagemdebravura.Mas os outros felinos se agacham na grama, tremendo. É um lugar
estranho.Obarulhodosmonstrosgolpeia-lhesosensívelpelodasorelhaseofedorácidoirritasuasnarinas.– EstrelaAlta? –Uma rainha cinza agita a cauda, irrequieta. – Por que
viemosaqui?Ogatopretoebrancoresponde:–Fomosexpulsosde todosos lugares
onde tentamos nos estabelecer, Pé de Cinzas. Talvez encontremos umpoucodepazaqui.– Paz?Aqui? – ela repete, incrédula, puxando o filhote para protegê-lo
sobabarriga.–Comfogoemonstros?Meusfilhotesnãovãoestarseguros!–Masnãoestávamossegurosemcasa–miaoutravoz.Umgatopretose
adianta,mancandopesadamentenumapatatorta.Elesustentaoolharcorde âmbar de Estrela Alta. – Não conseguimos protegê-los do Clã dasSombras–dispara.–Nemnonossopróprioacampamento!Ao se lembrarem da terrível batalha que os expulsara do planalto, na
fronteira da floresta, alguns felinos deixam escapar uivos nervosos. Umjovemaprendizsequeixa:–EstrelaPartidaeseusguerreirosaindapodemestarnonossoencalço!
OruídoalertaumdosDuas-Pernas,queselevantainquietoeolhafirmenorumodassombras.De imediatoosgatos fazemsilêncio,agachando-seaindamais;atémesmoEstrelaAltaabaixaacauda.OsDuas-Pernasgritamnaescuridãoeatiramalgumacoisanadireçãodeles.OmíssilpassaacimadesuascabeçaseexplodeempedaçosafiadoscomoespinhosnoCaminhodoTrovão.PédeCinzasseesquiva,masumfragmentoroça-lheoombro;semnada
dizer,elaenroscaocorpoàvoltadofilhoteapavorado.–Fiquemencolhidos–sibilaEstrelaAlta.ODuas-Pernaspertodafogueiracospenochão,depoisvoltaasesentar.OsgatosaguardamatéqueEstrelaAltaselevantenovamente.Pé de Cinzas também se ergue, retraindo-se ao sentir o ombro doer. –
EstrelaAlta, temopelanossa segurançaaqui.Eoquevamoscomer?Nãofarejopresaalguma.EstrelaAltaesticaopescoçoegentilmenterepousaofocinhonacabeça
darainha.–Seiquevocêestácomfome–elemia.–Masestaremosmaisseguros aqui do que no nosso antigo território, nos campos dos Duas-Pernasounafloresta.Olheparaeste lugar!NemosguerreirosdoClãdasSombrasnosseguiriamatéaqui.NãohácheirodecãeseessesDuas-Pernasnãoseaguentamempé.–Ele seviraparaogatopretocomapata torta,ordenando:–PéMorto,vácomBigodeRaloe tentemacharalgumacoisaparacomer.SeháDuas-Pernas,devehaverratos.– Ratos? – dispara Pé de Cinzas enquanto Pé Morto e o jovem gato
malhadoseafastam.–Éomesmoquecomercarniça!–Quieta!–sibilaumagataatartarugadaaoseu lado.–Comercarnede
ratoémelhordoquemorrerdefome!PédeCinzasfranzeassobrancelhaseinclinaacabeçaparalamberatrás
dasorelhasmalhadasdofilhote.– Precisamos encontrar um lugar para nos instalar, Pé de Cinzas –
observaagataatartarugada,acrescentandoemseguida,commaisternura:–FlordaManhãprecisadescansarecomer.Osbebêslogovãonascer.Elaprecisaestarforte.AsformasesguiasdePéMortoeBigodeRalosurgemdassombras.–Você tem razão, EstrelaAlta – diz PéMorto. –Há cheirode ratopor
todocanto,eachoqueencontramosumlugarondenosabrigar.–Mostre-nos–ordenaEstrelaAlta, convocandoo restodoclã comum
rápidomovimentodecauda.Comcuidado,osgatosseguempelodescampadoatrásdePéMorto.Ele
osconduzrumoaoCaminhodoTrovão,queseelevaacimadeles,comaluzda fogueira agigantando suas sombras contra enormes pernas de pedra.Ummonstroruge lánoaltoeochãotreme.Masatémesmoomenordosfilhotes percebe que é necessário fazer silêncio e, embora tremendo,contémochoro.–Aqui–miaPéMorto,parandoaoladodeumburacoredondo,daaltura
dedoisgatos.Umtúnelnegrodescepelochão,abrigandodentrodeleumfluxodeáguacontínuo.–Éáguapotável–PéMortoacrescenta.–Podemosbebê-la.–Nossaspatasvãoficarmolhadasdiaenoite!–reclamaPédeCinzas.–Estive ládentro–dizo gatopreto. –Háumaárea longedaágua.Ao
menosestaremosasalvodosDuas-Pernasedosmonstros.EstrelaAltadáumpassoà frente, elevaoqueixoedeclara: –OClãdo
Ventojáviajousuficiente.JáfazquaseumaluaqueoClãdasSombrasnosexpulsou de casa. O tempo está esfriando, a estação sem folhas logochegará.Nossaúnicaopçãoéficar.PédeCinzasestreitaosolhos.Emsilêncio,junta-seaoclãe,umatrásdo
outro,osgatosentramnotúnelsombrio.
CAPÍTULO1
CORAÇÃODEFOGOTIRITAVA.Seupelocordechamaaindaestavaraloporcausada estação das folhas verdes; só depois de algumas luas estaria espessosuficiente para protegê-lo de um frio assim. Pisou na terra dura com aspatas dianteiras. Com a aproximação da aurora, o céu, finalmente,começava a clarear. Mesmo com as patas geladas, não podia evitar asensaçãodeorgulho.Depoisdemuitasluascomoaprendiz,era,afinal,umguerreiro.Repassava na lembrança a vitória da véspera no acampamento do Clã
das Sombras: os olhos coruscantes de Estrela Partida, líder do Clã dasSombras, ao recuar, sibilando ameaças, antes de fugir rumo às árvoresatrás de seus companheiros traidores. Os gatos que restaram do Clã dasSombrasficaramagradecidosaoClãdoTrovãoporajudá-losaselivrardolíder cruel e por prometer que os deixariam em paz enquanto serecuperavam.EstrelaPartidanãoapenas levaraocaosaopróprioclã;eleexpulsara todo o Clã do Vento do próprio acampamento, tirando-os doterritório dos clãs. Ela era uma sombra negra na floresta desde antes deCoraçãodeFogoterdeixadosuavidadegatinhodegenteparasejuntaraoClãdoTrovão.Mas outra sombra também lhe perturbava a mente: Garra de Tigre, o
representante do Clã do Trovão. Coração de Fogo tremia ao pensar nogrande guerreiro, que tinha aterrorizado seu próprio pupilo, Pata Negra.No final, Coração de Fogo e seu melhor amigo, Listra Cinzenta, haviamajudadooassustadoaprendizaescaparparaoterritóriodosDuas-Pernas,além do planalto. Depois disso, Coração de Fogo dissera ao clã que PataNegraforamortopeloClãdasSombras.SefosseverdadeoquePataNegradisseraarespeitodeGarradeTigre,
era melhor que o representante do Clã do Trovão acreditasse que seuaprendizestavamorto,poiselesabiaumsegredoqueGarradeTigrefariaqualquer coisa para ocultar. PataNegra dissera a Coraçãode Fogoque opoderoso guerreiromalhado havia assassinado Rabo Vermelho, o antigorepresentante do Clã do Trovão, na esperança de se tornar o novorepresentante…oqueacabouacontecendo.Coraçãode Fogo balançou a cabeça para se livrar desses pensamentos
sombriosesevirouparaListraCinzenta,cujopeloespessoegrossoestavaencrespado por causa do frio. Imaginou que o amigo também estivesse
ansiosopelosprimeirosraiosdesol,masnadacomentou.Atradiçãodoclãexigia silêncio nessa noite. Estavam na vigília, a noite em que um novoguerreiroguardaoclãerefletesobreseunovonomeesuanovasituação.Atéavéspera,CoraçãodeFogoeraconhecidopeloseunomedeaprendiz,PatadeFogo.MeioRabofoiumdosprimeirosaacordar.CoraçãodeFogoviuovelho
gatosemexendoentreassombrasnatocadosanciãos.Olhouparaatocadosguerreiros,dooutroladodaclareira.Entreosgalhosqueprotegiamatoca,reconheceuosombroslargosdeGarradeTigre,quedormia.Aos pés da Pedra Grande, a cortina de líquen na entrada da toca de
EstrelaAzulseagitou,eCoraçãodeFogoviualíderdoclãsair.Elaparouefarejou o ar. Depois, sem ruído, saiu da sombra da Pedra Grande; o pelolongoazul-acinzentadocintilavaà luzdoamanhecer.Tenhodealertá-laarespeitodeGarradeTigre,pensouCoraçãodeFogo.EstrelaAzulestiveradelutopelamortedeRaboVermelho,assimcomoorestodoclã,acreditandoqueeleforamortoembatalhaporCoraçãodeCarvalho,orepresentantedoClãdoRio.CoraçãodeFogotinhahesitadoantes,porsaberdaimportânciadeGarradeTigreparaela,masoperigoeragrandedemais.EstrelaAzulprecisavasaberqueoclãestavaabrigandoumassassinodesangue-frio.GarradeTigresaiudatocadosguerreiroseencontroualídernoslimites
da clareira. Ele lhedisse alguma coisabaixinho, balançando a cauda comansiedade.Coração de Fogo sufocou um instintivo miado de saudação. O céu
clareava,masaté tercertezadequeosolestavaacimadohorizonte,nãoousavaquebrarosilêncio.Aimpaciênciaseagitavaemseucoração,comoumpássaro numa armadilha. Precisava falar comEstrela Azul assim quepossível. Mas naquele momento, tudo o que pôde fazer foi saudar comrespeitoosdoisgatosquandopassaramporele.Aoseulado,ListraCinzentacutucou-oe,comonariz,apontouparacima.
Umbrilholaranjaacabaradesetornarvisívelnohorizonte.– Estão felizes com o amanhecer? – o miado grave de Nevasca
surpreendeu Coração de Fogo, que não percebera a aproximação doguerreiro branco. Os dois amigos acenaram a cabeça ao mesmo tempo,dizendoquesim.– Tudo bem, vocês podem falar agora. A vigília terminou. – A voz do
gatãobrancoerabondosa.Navéspera,ele lutara ladoa ladocomosdoisjovensguerreirosnabatalhacontraoClãdasSombras.Demonstravaagora
umnovorespeitoaoobservá-los.–Obrigado,Nevasca–CoraçãodeFogomiou,agradecido.Levantou-see
alongouaspernasenrijecidas,umadecadavez.ListraCinzentatambémselevantou.–Brrrrrrrrrr!–miou,sacudindo-se
paralivraropelodofrio.–Penseiqueosolnuncairiaaparecer!Ummiadodebochadosefezouvirdeforadatocadosaprendizes:–Falou
ograndeguerreiro!Era Pata de Areia, com o pelo laranja-claro todo arrepiado,
demonstrando hostilidade. Pata de Poeira estava a seu lado. De pelomalhadoeescuro,elepareciaasombradajovem.Estufouopeitocomaresdeimportânciaezombou:–Ficosurpresoqueessesheróissintamfrio!–PatadeAreia,divertida,
ronronou.Nevascalançou-lhesumolharsevero:–Vãoprocuraralgumacoisapara
comer,depoisdescansem–ordenouaCoraçãodeFogoeListraCinzenta.Oguerreiromaisvelhocaminhounadireçãodatocadosaprendizes:–Venham,vocêsdois–miouparaPatadeAreiaePatadePoeira.–Está
nahoradotreinamento.–Esperoqueeleosfaçacaçaresquilosazuisodiatodo!–ListraCinzenta
sibilou para Coração de Fogo enquanto se dirigiam para um canto, onderestavamalgumaspresasfrescasdanoiteanterior.–Masnãoexistemesquilosazuis–miouCoraçãodeFogo,confuso.–Exatamente!–disseogatocinza,comosolhosbrilhando.–Nãosepodeculpá-los,afinal.Elescomeçaramotreinamentoantesde
nós – Coraçãode Fogo lembroude forma gentil. – Se tivessem lutadonabatalhadeontem,provavelmentetambémteriamsidofeitosguerreiros.–É…podeser–disseListraCinzenta,encolhendoosombros.–Veja!–
Haviamchegadoàpilhadepresa fresca.–Háumcamundongoparacadaumeumpintassilgoparadividirmos!Os dois amigos pegaram a refeição e se fitaram. Os olhos de Listra
Cinzenta repentinamente brilharam, cheios de prazer: – Acho que agoradevemoslevarissoparaoladodoacampamentodestinadoaosguerreiros.– Acho que sim – ronronou Coração de Fogo, seguindo o amigo até o
campodeurtigas,onde tantasvezes tinhamobservadoNevasca,GarradeTigreeoutrosguerreirosdividirpresasfrescas.–Eagora?–perguntouListraCinzenta,engolindoaúltimabocada.–Não
seiquantoavocê,masachoqueeudormiriapormeialua.–Eutambém.Os dois amigos se levantaram e tomaram o caminho da toca dos
guerreiros. Lá chegando, Coração de Fogo enfiou a cabeça através dosgalhosbaixos.PelodeRatoeRaboLongoaindadormiamdooutroladodatoca.Esgueirou-se para dentro e encontrou no canto uma cama de musgo.
Pelocheiro,verificouquenenhumoutroguerreirohaviadormidoaliantes.ListraCinzentainstalou-seaseulado.CoraçãodeFogopercebeuarespiraçãoregulardeListraCinzentapassar
a roncos longos e abafados, à medida que relaxava. Embora igualmenteexausto,elecontinuavaansiosoparafalarcomEstrelaAzul.Deondeestavadeitado, com a cabeça na terra, via apenas a entrada do acampamento.Fixoualioolhar,esperandopelavoltadalíder,masaospoucosseusolhoscomeçaramafechar,eeleseentregouaosono.CoraçãodeFogoouviuumrugidoao seu redor, comooventobatendo
em árvores altas. O fedor acre do Caminho do Trovão atingiu-lhe asnarinas, trazendo também um cheiro novo, mais agudo e maisaterrorizante. Fogo! Chamas lambiam o céu negro, atirando cinzasreluzentesparaumcéusemestrelas.Parasuasurpresa,silhuetasdegatossemovimentavamemfrenteaofogo.Porquenãofugiam?UmdelesparoueencarouCoraçãodeFogo.Osolhosnoturnosdogato
brilharam no escuro, e ele levantou a cauda, longa e reta, como numcumprimento.Coração de Fogo tremeu ao se lembrar, de repente, das palavras que
FolhaManchada,antigacurandeiradoClãdoTrovão, lhedisseraantesdemorrerprematuramente:“Ofogovaisalvaroclã!”Issoteriaalgumacoisaavercomosestranhosfelinosquenãomostravammedodofogo?–Acorde,CoraçãodeFogo!Ele levantou a cabeça depressa, despertado do sonho pelo rugido de
GarradeTigre.–Vocêestavamiandoenquantodormia!Aindatonto,CoraçãodeFogoselevantouesacudiuacabeça.–Si…sim,
GarradeTigre!–Meioassustado,imaginouseteriarepetidoemvozaltaaspalavrasdeFolhaManchada.Ele játiverasonhosassimantes, tãovívidosque poderia tocá-los, e que, mais tarde, se realizaram. Com certeza nãoqueria que o representante suspeitasse que ele tinha poderes que,
normalmente,oClãdasEstrelasconcedeapenasacurandeiros.A luz da lua brilhava através da parede de folhas da toca. Coração de
Fogopercebeuquedeviaterdormidoodiainteiro.–VocêeListraCinzentavãosejuntaràpatrulhanoturna.Apressem-se!–
disse-lheGarradeTigre,saindoemseguida.Coraçãode Fogo relaxou os ombros. Era evidente que o representante
nãosuspeitaradenadaestranhonoseusonho.Seusegredocontinuavaasalvo, mas ele estava determinado a revelar a perigosa verdade sobre aparticipaçãodeGarradeTigrenamortedeRaboVermelho.
CoraçãodeFogolambeuoslábios.ListraCinzenta,deitadoaseulado,selavava. Tinham acabado de partilhar uma refeição na clareira doacampamento.OsolsepuseraeCoraçãodeFogoolhavaalua,agoraquasecheia, brilhando num céu frio e claro. Os dias anteriores tinham sidoagitados.Pareciaquetodavezqueelessedeitavamparadescansar,Garrade Tigre os enviava emmissão de patrulha ou de caça. Coração de Fogopermanecera alerta, procurando uma oportunidade de falar a sós comEstrelaAzul;masquandoelenãoestavanumadasmissõesdesignadasporGarradeTigre,alíderdoClãdoTrovãosemprepareciaterorepresentanteporperto.Coração de Fogo começou a limpar a pata, enquanto passava os olhos
peloacampamento,esperandoencontrarEstrelaAzul.–Oquevocêestáprocurando?–miouListraCinzenta,nomeiodeuma
lambida.–EstrelaAzul–respondeuCoraçãodeFogo,abaixandoapata.–Paraquê?–Ogatocinzaparoudeselavareolhouparaoamigo.–Você
nãotirouosolhosdeladesdenossavigília.Oqueestáplanejando?–PrecisodizeraelaondePataNegraestáealertá-laarespeitodeGarra
deTigre.– Você prometeu a PataNegra que diria que ele estavamorto! – disse
ListraCinzenta,comtomdesurpresa.–Apenas prometi dizer aGarradeTigre que ele estavamorto. Estrela
Azul deve conhecer toda a história. É preciso que ela saiba de que seurepresentanteécapaz.Listra Cinzenta abaixou a voz, até se tornar um sibilo sobressaltado. –
Mas temos apenas apalavradePataNegradequeGarradeTigrematou
RaboVermelho.–Vocênãoacreditanele?–perguntouCoraçãodeFogo,chocadocomas
dúvidasdoamigo.–Veja,seGarradeTigrementiusobreofatodetermatadoCoraçãode
Carvalho para vingar a morte de Rabo Vermelho, isso significa que opróprio Rabo Vermelho deve ter liquidado Coração de Carvalho. E nãoposso acreditar que Rabo Vermelho tivesse deliberadamentematado umrepresentantedeclãnumabatalha.IssovaicontraoCódigodosGuerreiros;lutamosparaprovarnossaforçaedefendernossoterritório,nãoparanosmatar.– Não estou tentando levantar acusações contra Rabo Vermelho! –
protestouListraCinzenta.–OproblemaéGarradeTigre.–RaboVermelhotinha sido o representante do Clã do Trovão antes de Garra de Tigre.Coração de Fogo não chegou a conhecê-lo, mas sabia que eraprofundamenterespeitadoportodooclã.Listra Cinzenta não encarou o amigo. – O que você está dizendo pode
manchar a honra de Rabo Vermelho. E nenhum dos outros gatos teveproblemascomGarradeTigre.ApenasPataNegraotemia.Um tremor desconfortável percorreu a espinha de Coração de Fogo. –
EntãovocêachaquePataNegrainventouessahistóriaporquenãosedavabemcomomentor?–miou,sarcástico.– Não – murmurou Listra Cinzenta. – Eu só acho que devemos tomar
cuidado.Coração de Fogo fitou os olhos preocupados do amigo e começou a
refletir. Listra Cinzenta não deixava de ter razão. Fazia poucos dias quetinham se tornado guerreiros, portanto, não estavam em situação decomeçaralançaracusaçõesaomaisantigodosguerreirosdoclã.–Tudobem–CoraçãodeFogomioufinalmente.–Vocêpodeficar fora
disso. – Sentiu na barriga uma fisgada de arrependimento quando ListraCinzenta concordou e voltou a se lavar. Coração de Fogo achava que oamigo estava errado empensar que apenas PataNegra tivera problemascomGarradeTigre.OsseusinstintoslhediziamqueorepresentantedoClãdoTrovãonão eradignode confiança. Precisavapartilhar suas suspeitascomEstrelaAzul,paraasegurançadelaedetodooclã.Umlampejodepelocinzadooutro ladodaclareira indicouqueEstrela
Azultinhasaídodatoca,esozinha.CoraçãodeFogoselevantoudepressa,masalíderpuloudiretoparaaPedraGrandeeconvocouoclã.Oguerreiro
avermelhadobalançouacauda,impaciente.As orelhas de Listra Cinzenta se agitaram de empolgação quando ele
ouviu a convocação. – Uma cerimônia de nomeação? –miou. – Deve serRaboLongorecebendoseuprimeiroaprendiz.Fazdiasqueeleesperaporisso. – Saltou e foi se juntar aos gatos que se reuniam nos limites daclareira;aindacoçandodefrustração,CoraçãodeFogooseguiu.Umfilhotepretoebrancoentrounaclareira.Aspatasmaciasnãofaziam
barulho na terra dura. Ele se dirigiu à Pedra Grande com os olhosdesbotadosmirandoochão,eCoraçãodeFogoquaseesperouvê-lotremer;haviaalgumacoisanainclinaçãodosombrosdofilhotequeofaziaparecerjovem e tímido demais para um aprendiz. Rabo Longo não vai ficarimpressionado!pensouCoraçãodeFogo,lembrando-sedodebochedeRaboLongo quando ele, Coração de Fogo, fora recebido no acampamento. Oguerreirooprovocaramaldosamentenoseuprimeirodianoclã,zombandodesuasorigensdegatinhodegente.PorissoCoraçãodeFogonãogostavadele.– A partir de hoje – miou Estrela Azul, abaixando o olhar e fitando o
jovem –, até que receba seu nome de guerreiro, esse aprendiz seráchamadoPataLigeira.Nãoseviaumpingodedeterminaçãonosolhosdofilhotepretoebranco
quando ele fitou a líder. Ao contrário, os olhos cor de âmbar estavamarregalados,cheiosdeansiedade.Coração de Fogo virou a cabeça quando Rabo Longo se aproximou do
novoaprendiz.EstrelaAzulvoltoua falar.–RaboLongo,vocêfoiaprendizdeRiscade
Carvão.Ele foibomprofessorevocêse tornouumguerreiro feroze leal.EsperoquepasseessasqualidadesparaPataLigeira.Coração de Fogo procurou no olhar de Rabo Longo uma expressão de
desprezo por Pata Ligeira. Mas os olhos do guerreiro se suavizaram aoencontrarosdopupiloe,gentilmente,elesroçaramonarizumdooutro.–Muitobem,vocêestásesaindobem–murmurouRaboLongo,encorajador.Éissoaí,muitobem,CoraçãodeFogopensoucomamargura.Sóporqueelenasceunoclã.Não foiassimqueRaboLongomerecebeu.Olhouosdemaisgatosdoclãesentiuumapontadaderessentimentoquandocomeçaramamurmurarcongratulaçõesaonovoaprendiz.–Oquehácomvocê?–sussurrouListraCinzenta.–Umdiaseráanossa
vez.
Coração de Fogo concordou, de súbito animado com a ideia de ter opróprioaprendiz,eafastouamágoa.EleagorafaziapartedoClãdoTrovãoe,certamente,eratudooqueimportava.
A noite seguinte trouxe a lua cheia. Coração de Fogo sabia que deviaestaransiosoporsuaprimeiraReuniãocomoguerreiro,masaindaestavadeterminadoaconseguirumaoportunidadeparacontaraEstrelaAzultudooquesabiasobreGarradeTigre;eessepensamentopareciaumapedrafriasobreseuestômago.–Vocêestácomvermeoucoisaparecida?–miouListraCinzentaaseu
lado.–Estáfazendoumascaretasmuitoesquisitas!CoraçãodeFogoolhouparaoamigo,desejandopoderconfiarnele,mas
tinhaprometidodeixá-loforadesseassunto.–Estoubem–miou.–Venha.OuviEstrelaAzulchamar.Osdois sedirigiramaté o grupo reunidona clareira.A líder abaixou a
cabeça,mostrandoqueosvirachegar.Então,conduziuosfelinosparaforadoacampamento.CoraçãodeFogoparouenquantoosoutrosintegrantesdoclãpassavam
porelerumoàtrilhaescarpadaquelevavaàfloresta.Essajornadapoderiadar-lhetemposuficienteparafalarcomEstrelaAzul,eelequeriaorganizarospensamentos.–Vocêvem?–chamouListraCinzenta.– Claro! – Coração de Fogo dobrou as poderosas patas traseiras e
começouapulardepedraempedra,saindodoacampamento.No alto, paroupara recuperar o fôlego, as laterais do corpo arfando.A
florestaseespalhavaàsuafrente.Sobaspatas,elesentiaasfolhasrecém-caídassequebrando, ressecadas.OTuledePratabrilhavanocéucomooorvalhodamanhãsalpicadonumpelonegro.Recordou-sedesuaprimeirajornadaatéQuatroÁrvores,comGarrade
TigreeCoraçãodeLeão,dequemselembroucomumapontadetristeza.Omentor de Listra Cinzenta e representante do Clã do Trovão entre RaboVermelhoeGarradeTigrehaviasidoumguerreirotalentosoedecoraçãobondoso.Mortoembatalha,foisubstituídoporGarradeTigre.Naprimeiravisita de Coração de Fogo a Quatro Árvores, Coração de Leão levara osaprendizesaumpasseiopelosarredores,passandopelosPinheirosAltos,pelas Rochas Ensolaradas e ao longo das fronteiras do Clã do Rio. Estanoite,EstrelaAzulosfariapassardiretamentepelocentrodoterritóriodo
ClãdoTrovão.Aovê-ladesaparecernavegetação,CoraçãodeFogocorreuparaacompanharogrupo.Estrela Azul ia à frente, perto de Garra de Tigre. Ignorando o miado
surpreso de Listra Cinzenta, Coração de Fogo alcançou a líder. – EstrelaAzul–chamou,colocando-seaseulado.–Possofalarcomvocê?Elaoolhoueassentiu. –Lidereogrupo,GarradeTigre–miou.Agata
diminuiu o passo e o representante se adiantou. Os outros felinos oseguiramsemquestionarquandoeledisparouporentreavegetação.EstrelaAzul eCoraçãodeFogo trotavamagoranumpasso cadenciado.
Emuminstanteficaramsozinhos.O caminho que saía das espessas samambaias dava em uma pequena
clareira.Alíderpulounumaárvorecaídaesesentou,enrolandoacaudaàfrentedaspatas.–Oqueé,CoraçãodeFogo?Ojovemguerreirohesitou,repentinamentetomadopeladúvida.Estrela
Azul é que o tinha encorajado a abandonar a vida de gatinho de gente eunir-se ao clã. Desde então, várias vezes demonstrara confiança nelequandooutrosgatosquestionavamsua lealdadeaumclãcujosangueelenãopartilhava.OqueeladiriaquandoelelhecontassequetinhamentidoarespeitodePataNegra?–Fale–EstrelaAzulordenouenquantoaspassadasdosoutrosfelinosdo
clãsumiamnadistância.CoraçãodeFogorespiroufundo:–PataNegranãoestámorto.–Acauda
de Estrela Azul movimentou-se com a surpresa, mas a gata continuou aouviremsilêncio,eo jovemguerreirocontinuou:–ListraCinzentaeeuolevamos ao território do Clã do Vento. Eu… eu acho que ele pode ter-sejuntado ao Cevada – Cevada vivia isolado; não era um gato da floresta,tampoucoumgatinhodegente.MoravanumafazendadosDuas-Pernas,nocaminho para as Pedras Altas, um lugar sagrado para todos os gatos dafloresta.A líderdoClãdoTrovãoolhoupara alémdeCoraçãodeFogo,para as
profundezas da mata. O gato, ansioso, tentou decifrar sua expressão.Estariazangada?Maselenãoviaraivanosseusgrandesolhosazuis.Depoisde longomomento,EstrelaAzul falou:–Fico felizemsaberque
PataNegraaindaestávivo.EsperoqueestejamaisfelizcomCevadadoqueestavanafloresta.–Ma…mas ele nasceu no Clã do Trovão – Coração de Fogo gaguejou,
surpresocomacalmareaçãodalíderaosaberdapartidadePataNegra.
–Issonãosignificanecessariamentequeestivesseadaptadoàvidadoclã–elaobservou.–Afinal,vocênãonasceunoclã,masmesmoassimtornou-seumótimoguerreiro.PataNegrapodeencontrarseuverdadeirocaminhoemoutrolugar.–MaselenãodeixouoClãdoTrovãoporquequis–protestouCoraçãode
Fogo.–Elenãopodiaficar!–Nãopodia?–alíderpousouneleosolhosazuis.–Oquevocêquerdizer
comisso?CoraçãodeFogoolhouparaochão.–Eentão?–elaperguntou,esperandoumaresposta.Oguerreiroestavacomabocaseca.–PataNegraconheciaumsegredoa
respeito de Garra de Tigre – falou com a voz rouca. – Eu… eu acho queGarradeTigreestavaplanejandomatá-lo.Outalvezcolocaroclãcontraele.AcaudadeEstrelaAzulbalançoudeumladoparaooutro,eCoraçãode
Fogopercebeuqueosombrosdelaenrijeceram.–Porquevocêachaisso?QuesegredoeraessequePataNegraconhecia?CoraçãodeFogorelutouaoresponder,encarandoaexpressãoseverada
líderdamaneiramaiscorajosaquepôde.–QueGarradeTigrematouRaboVermelho na batalha com o Clã do Rio. – Rabo Vermelho tinha sido orepresentantedoClãdoTrovãoantesdeCoraçãodeLeão.CoraçãodeFogonãooconheceu,massabiaqueRaboVermelhomereciaoprofundorespeitodetodooclã.OsolhosdeEstrelaAzulseestreitaram.–Umguerreiro jamaismataria
um companheiro de clã! Até você devia saber disso, já está conosco hátempo suficiente. – Coração de Fogo retraiu-se ante essas palavras,abaixandoasorelhas.Eraasegundaveznaquelanoitequeelasereferiaàssuasraízesdegatinhodegente.–GarradeTigrerelatouquefoiorepresentantedoClãdoRio,Coração
deCarvalho,quematouRaboVermelho.PataNegradeveestarenganado.Ele realmente viu Garra de Tigre matar Rabo Vermelho? – a líderquestionou.CoraçãodeFogo,nervoso,balançouacauda,agitandoasfolhasatrásde
si.–Eleafirmouquesim.– E você sabe que, dizendo isso, está colocando emdúvida a honra de
Rabo Vermelho, que seria o responsável pela morte de Coração deCarvalho?Umrepresentantejamaismatariaoutroembatalha;nãoseissopudesseserevitado.ERaboVermelhofoiomaishonradoguerreiroquejá
conheci.–Osolhosdagatanublaramdedor,eCoraçãodeFogosentiuumapontadedesalento,pois,mesmosemintenção,tinhaofendidoalembrançaquealídertinhadoantigorepresentante.–NãopossoresponderpelasaçõesdeRaboVermelho–elemurmurou.–
SóseiquePataNegrarealmenteacreditaqueGarradeTigreéoculpado.EstrelaAzuldeuumsuspiroerelaxouosombros.–Todossabemosque
PataNegra temuma imaginação e tanto – elamiou, gentil, com simpatianosolhos.–Elefoigravementeferidonabatalhaedeixoualutaantesqueterminasse.Temcertezadequeelenãofantasiouaspassagensqueperdeu?Antes que Coração de Fogo pudesse responder, um grito ecoou pela
florestaeGarradeTigresurgiudavegetação.Seusolhos,agitadosecheiosdesuspeita,pousaramemCoraçãodeFogoporuminstanteantesdeelesedirigiraEstrelaAzul.–Estamosesperandoporvocêsnafronteira.– Estaremos lá em ummomento – respondeu a líder. O representante
abaixouacabeçaevoltoucorrendoporentreassamambaias.Coração de Fogo observou Garra de Tigre desaparecer enquanto as
palavras de Estrela Azul ecoavam-lhe na mente. Ela estava certa: PataNegra tinhamesmoumagrande imaginação.Lembrou-sedesuaprimeiraReunião, quando aprendizes de todos os clãs ficaram fascinados pelaspalavrasdePataNegraaoouvi-lodescreverabatalhacomoClãdoRio.E,naocasião,elenãomencionaraGarradeTigre.QuandoEstrelaAzulselevantou,eledeuumpulo.–VocêvaitrazerPata
Negra de volta para o clã? – perguntou, temendo, de súbito, ter causadoaindamaisproblemasparaoamigo.A gatamirou fundo os olhos de Coração de Fogo. – Provavelmente ele
estámaisfelizondeseencontra–miou,tranquila.–Porora,vamosdeixarqueoclãcontinueaacreditarqueestámorto.O guerreiro fitou-a de volta, com os olhos arregalados de surpresa.
EstrelaAzuliamentirparaoclã!– Garra de Tigre é um grande guerreiro,mas émuito orgulhoso – ela
continuou.–Serámais fácilparaeleaceitarqueseuaprendizmorreuembatalhaemvezdeterfugido.EissoserámelhorparaPataNegratambém.–PorqueGarradeTigrepoderiairatrásdele?–CoraçãodeFogoousou
perguntar. SeriapossívelqueEstrelaAzul acreditassenele, aomenosumpouquinho?Agatabalançouacabeça,comcerta impaciência.–Não.GarradeTigre
pode ser ambicioso, mas não é um assassino. É melhor Pata Negra ser
lembradocomoumheróimortodoquecomoumcovardevivo.Garra de Tigre chamoumais uma vez. Estrela Azul saltou do tronco e
desapareceuentreassamambaias.CoraçãodeFogolançou-separaochãodeumsaltoedisparouatrásdalíder.Alcançou-a na beira de um riacho. Observou-a chegar ao outro lado,
saltando de pedra em pedra, e seguiu-a com cuidado, os pensamentosgirando.SabersobreamortedeRaboVermelho foraumpesosobreseusombrosdurantedias.AgoraelefinalmentecontaraaEstrelaAzul,masnadahaviamudado.A líderdoclã,estavaclaro,nãoachavaqueGarradeTigrefossecapazdematarasangue-frio.Piorainda,opróprioCoraçãodeFogocomeçouaduvidardoquePataNegradissera.Pulouparaamargemopostaecorreupelavegetação.Coração de Fogo estacou bruscamente atrás de Estrela Azul ao
alcançaremosoutrosgatosdoClãdoTrovão.Ogrupohaviaparadonoaltoda encosta que levava atéQuatroÁrvores, os carvalhos gigantes onde osquatroclãsdaflorestasereuniamempazacadaluacheia.CoraçãodeFogosentiuseuspelosarrepiaremaoperceberqueGarrade
Tigreoobservava.SeráquesuspeitavadaconversaquetiveracomEstrelaAzul?Balançouacabeçaparacolocarasideiasemordemetentoupensarcomoalíder.Naturalmente,GarradeTigreteriainteressenoqueCoraçãode Fogo dissera a ela: ele era o representante do clã; haveria de querersaberqualquercoisaquepudesseafetarogrupo.CoraçãodeFogovoltouaolhar para Garra de Tigre; o guerreiro malhado olhava para baixo daencosta,comasorelhasempinadasealertas.Osgatosàsuavolta,ansiosos,agitavam as patas. O representante fitou cada um dos felinos, zombandodelessilenciosamentecomseuolharcordeâmbar.Estrela Azul farejou o ar. Coração de Fogo sentiu os músculos se
retesaremeopeloeriçar.Entãoa líder fezummovimentodecaudaeosintegrantes do Clã do Trovão dispararam encosta abaixo, a caminho daReunião.
CAPÍTULO2
ESTRELAAZULPAROUNAextremidadedaclareira,comoclãemfilaaseulado.Alguns dos felinos do Clã do Rio e do Clã das Sombras se viraram,registrandoachegadadogrupo.–Porondevocêandou?–ListraCinzentaperguntou,aproximando-sede
CoraçãodeFogo.O jovem guerreiro balançou a cabeça. – Não importa. – Ainda estava
confusocomaconversacomEstrelaAzuleficoualiviadoquandooamigo,desistindodeindagá-lo,virouacabeçaparaolharàvoltadaclareira.–Ei,olhe–miouListraCinzenta.–OsgatosdoClãdasSombrasparecem
mais fortes do que eu imaginava. Afinal, Estrela Partida os deixou quasemortosdefome.CoraçãodeFogoseguiuoolhardeListraCinzentaatéumguerreirobem
nutridodoClãdasSombraseconcordou,surpreso:–Vocêtemrazão.– Imagine você, nós praticamente lutamos por eles! – Listra Cinzenta
brincou.OronronardivertidodeCoraçãodeFogofoiinterrompidoporNevasca.–
Os gatos do Clã das Sombras lutaram tão bravamente quanto nós paraexpulsar Estrela Partida. Devemos reverenciar a determinação quedemonstramemserecuperar–miou,severo,antesdesedirigiraumgrupodeguerreirosreunidossobumdosgrandescarvalhos.–Opa! –miou Listra Cinzenta, comumolhar culpado para Coração de
Fogo.Os jovens guerreiros ficaram na extremidade da clareira. Coração de
Fogo não teve dificuldade para distinguir os aprendizes dos outros clãs;tinham o pelomacio como o de um filhote, os rostos redondos, as patasgordinhasedesajeitadas.Dois guerreiros se aproximaram, seguidos por um pequeno aprendiz
marrom.CoraçãodeFogoreconheceuogatocinzentodoClãdasSombras,masnãoofelinonegro-acinzentadoqueoacompanhava.–Olá!–miouogatocinza.– Olá, PéMolhado – respondeu Coração de Fogo, olhando para o gato
marrom-escuro.PéMolhadooapresentou:–EsseéGarraNegra,doClãdoRio.
ListraCinzentaeCoraçãodeFogoosaudaram.Oaprendiz, tímido,deuumpassoàfrente.–Eesseémeuaprendiz,PatadeCarvalho–acrescentouPéMolhado.Pata de Carvalho fitou Coração de Fogo, com os olhos arregalados e
ansiosos, e miou: – O… Olá, Coração de Fogo. – O jovem guerreiro ocumprimentou.–SoubequeEstrelaAzulosnomeouguerreirosdepoisdabatalha–miou
PéMolhado.–Parabéns!Anoitedavigíliadevetersidofria!–Foimesmo!–concordouListraCinzenta.–Quemé?–interrompeuCoraçãodeFogo.Umagatadepelobrilhante,
malhada em tons de marrom, tinha chamado a sua atenção. EstavaconversandocomGarradeTigreaoladodaPedradoConselho,queficavanocentrodaclareira.–ÉPelodeLeopardo,nossarepresentante–rugiuoguerreirodoClãdo
Rio.Coração de Fogo ficou com o pelo eriçado ao se lembrar do antigo
representantedoClãdoRio,CoraçãodeCarvalho,edecomoelemorreranabatalhacomoClãdoTrovão.Porsorte,naquelemomento,EstrelaAzulpulouparaoaltodarochapara iniciarareunião, livrando-odaobrigaçãodecomentaralgumacoisa.Outrosdoisfelinossejuntaramaelae,umdeles,umgatopretoemaisvelho,conclamoutodososdemaisasereuniremaospésdarocha.CoraçãodeFogooreconheceu,surpreso.SeráqueMantodaNoite passara a ser o líder do Clã das Sombras com a fuga de EstrelaPartida?Com os felinos instalados em frente à Pedra do Conselho, Estrela Azul
falou: – O Clã do Trovão traz a esta Reunião sua nova curandeira, PresaAmarela – anunciou formalmente. Fez uma pausa e todos os olhos seviraramparaavelhagatadepelagemespessaefocinhoachatado.Coraçãode Fogo percebeu que, agitada, ela não parava de semexer. Quando elachegara ao acampamento do Clã do Trovão, ele estava no início de seuaprendizado e passara quase uma lua inteira cuidando dela para querecuperasse a saúde. E agora ele podia perceber, pela maneira como aorelha direita da gata se torcia levemente, que ela não estava à vontadeanteoolhardosoutrosclãs.PresaAmarelatinhasidoacurandeiradoClãdas Sombras e era raro um gato deixar um clã para se juntar a outro.Devagar, ela passou os olhos pela multidão até encontrar os de NarizMolhado, o novo curandeiro do Clã das Sombras. Depois de uma breve
pausa,trocaramumcumprimentorespeitoso.AorelhadePresaAmarelaseempinoueCoraçãodeFogorelaxou.EstrelaAzulvoltoua falar:–Tambémtrazemosdoisguerreirosrecém-
nomeados,CoraçãodeFogoeListraCinzenta.CoraçãodeFogolevantouacabeçacomaltivez,masaosentirquetodos
osolharesconvergiamparaele,sentiu-seumpoucoconstrangido,oquefezsuacaudaseagitarnervosamente.Manto da Noite deu um passo à frente e, roçando em Estrela Azul,
colocou-senapartemaisaltadapedra:–Eu,MantodaNoite,fuiindicadolíder do Clã das Sombras. Nosso antigo líder, Estrela Partida, quebrou oCódigodosGuerreirosefomosforçadosaexpulsá-lo–anunciou.– Nem sequer mencionou que nós os ajudamos a fazer isso – Listra
CinzentacochichouparaCoraçãodeFogo.Manto daNoite continuou: –Os espíritos de nossos ancestrais falaram
comNarizMolhadoemeindicaramcomolíder.AindanãofuiatéaBocadaTerraparareceberodomdasnovevidasconcedidopeloClãdasEstrelas,masfareiajornadaamanhãànoite,quandoaluaaindaestarácheia.DepoisdavigílianaPedradaLua,sereiconhecidocomoEstreladaNoite.–OndeEstrelaPartidaestáagora?–umavozsedestacounamultidão.
EraPeledeGeada,arainhabrancadoClãdoTrovão.– Acho que podemos considerar que deixou a floresta, com outros
guerreirosbanidos.Sabequeseriaperigosoretornar–respondeuMantodaNoite.–Esperoquesim–CoraçãodeFogoouviuPeledeGeadamurmurarpara
avizinha,umaroliçarainhamarrom.OlíderdoClãdoRio,EstrelaTorta,adiantou-se.–EsperemosqueEstrela
Partida tenha tido o bom-senso de deixar a floresta para sempre. Suacobiçaporterritóriosameaçouatodosnós.Estrela Torta esperou que os gritos de anuência cessassem para
continuar.–QuandoEstrelaPartidaeraolíderdoClãdasSombras,permitiquecaçassememnossorio.Masagoratêmumnovo lídereoacordonãopodepermanecer.AspresasnonossoriopertencemapenasaoClãdoRio.Miados de triunfo se ergueram entre os felinos do Clã do Rio, mas
CoraçãodeFogo,alarmado,viuqueMantodaNoiteestavaarrepiado.–OClãdasSombrascontinuacomasmesmasnecessidadesdaépocade
EstrelaPartida.Temosmuitasbocasparaalimentar,EstrelaTorta.VocêfezumacordocomtodooClãdasSombras!–disseMantodaNoite,elevandoa
voz.EstrelaTortadeuumpulo e se virouparaMantodaNoite.Abaixou as
orelhasesibilou.Osfelinos,aopédarocha,fizeramsilêncio.Comrapidez,EstrelaAzulsecolocouentreosdoislíderesemiou,gentil:
–OClãdasSombrassofreumuitasperdasultimamente.Commenosbocasparaalimentar,MantodaNoite,vocêrealmenteprecisadospeixesdoClãdoRio?EstrelaTortacicioudenovo,masMantodaNoitemanteveoolhar,sem
seintimidar.Estrela Azul voltou a falar, dessa vez com mais veemência: – Vocês
acabaramdeexpulsarseulídereváriosdosseusguerreirosmaisfortes!EEstrelaPartidaquebrouoCódigodosGuerreirosaoforçarEstrelaTortaaconcordarempartilharorio.CoraçãodeFogo,desconfortável,engoliuemsecoaoperceberqueManto
daNoitemostravaasgarras,masEstrelaAzulnãopiscou.Seuolhar,azulegelado,brilhouaoluarquandoelagrunhiu:–Lembre-sedequevocênemsequerrecebeusuasnovevidasdoClãdasEstrelas.Estáconfianteapontodefazeressasexigências?–CoraçãodeFogoficoutensoesentiuopeloseeriçar.Todosficaramesperandopelaresposta.Manto daNoite, zangado, desviou o olhar. Sua cauda balançava de um
ladoparaoutro,maseleficoucalado.EstrelaAzulvencera.Suavozestavamaisbrandaquandovoltouafalar.–
TodossabemosqueoClãdasSombrassofreumuitonessesúltimosmeses.O Clã do Trovão aceitou deixar vocês em paz até se recuperarem. – ElaolhouparaolíderdoClãdoRio.–TenhocertezadequeEstrelaTortavaiconcordaremdemonstraravocêsomesmorespeito.EstrelaTortaestreitouosolhoseacenouquesimcomacabeça.–Mas
somenteenquantoocheirodoClãdasSombrasnãoforpercebidoemnossoterritório–grunhiu.CoraçãodeFogorelaxou,deixandoopeloabaixarnosombros.Agoraque
sabia como era lutar numa batalha de verdade, admirava ainda mais acoragem da líder em desafiar os dois grandes guerreiros. Ouviram-se namultidãomiadosabafadosdealívioeanuência,acalmando-se,desúbito,atensãonaPedradoConselho.–Vocênãosentiráonossocheiro,EstrelaTorta–miouMantodaNoite.–
Estrela Azul está certa, não precisamos dos seus peixes. Afinal, temos oplanaltoparacaçar,agoraqueoClãdoVentoabandonouoterritório.
Estrela Torta olhou paraManto da Noite, com os olhos brilhando. – Éverdade–concordou.–Issosignificapresasextrasparatodosnós.EstrelaAzullevantouacabeçaderepente.–Não!OClãdoVentoprecisa
voltar!EstrelaTortaeMantodaNoiteolharamparaela:–Porquê?–perguntou
EstrelaTorta.–Separtilharmosos territóriosdecaçadoClãdoVento, teremosmais
comidaparatodososnossosfilhotes!–observouMantodaNoite.–Aflorestaprecisadequatroclãs–insistiuEstrelaAzul.–Assimcomo
temosQuatroÁrvoresequatroestações,oClãdasEstrelasnosdeuquatroclãs.PrecisamosencontraroClãdoVentoomaisdepressapossíveletrazê-lodevolta.Ouviram-seasvozesdosgatosdoClãdoTrovãoemapoioà líder,mas,
impaciente,EstrelaTortasubiuotomdevoz,gritando:–Seuargumentoéfraco, Estrela Azul. Precisamos mesmo de quatro estações? Não seriamelhorsenãohouvesseaestaçãosemfolhaseafomeeofrioqueelatraz?Calma,agatafitouosguerreirosaseulado.–OClãdasEstrelasnosdeua
estação sem folhasparadeixar a terra se recuperar e seprepararparaorenovo. Esta floresta e o planalto sustentaram quatro clãs por diversasgerações.NãonoscabedesafiaroClãdasEstrelas.Pelo de Leopardo, a representante do Clã do Rio, falou: – Por que
devemos enfrentar a fome por causa de um clã que não pode sequerdefenderopróprioterritório?–grunhiu.– Estrela Azul tem razão! O Clã do Vento tem de retornar! – Garra de
Tigreretrucou, levantando-separa ficarmaisaltodoqueos felinosàsuavolta.EstrelaAzulvoltouafalar:–EstrelaTorta–miouvirando-separaolíder
doClãdoRio–,aszonasdecaçadoClãdoRiosãoconhecidaspelariqueza.Vocêstêmorioetodososseuspeixes.Porqueprecisamdemaispresas?–EstrelaTortadesviouoolharenãorespondeu.CoraçãodeFogopercebeuque os felinos do Clã do Rio, ansiosos,murmuravam entre si. Ele tentouimaginarporqueaperguntadeEstrelaAzuldeixaraosgatoscomopeloarrepiado.Elacontinuou:–MantodaNoite, foiEstrelaPartidaqueexpulsouoClã
doVentodoterritóriodeles.–Agatadeombroslargosfezumapausa.–FoiporissoqueoClãdoTrovãoosajudouabani-lo.Coração de Fogo estreitou os olhos. Sabia que Estrela Azul, com
delicadeza,estavalembrandoaMantodaNoiteadívidaquetinhacomoClãdoTrovão.O líderdoClãdasSombrassemicerrouosolhos.Depoisdeumsilêncio
que pareceu durar um século, tornou a abri-los e miou: – Muito bem,EstrelaAzul.VamospermitirqueoClãdoVentoretorne.–CoraçãodeFogoviuquandoEstrelaTortavirouorosto,zangado,osolhospretoscontraídosemfendas.EstrelaAzul acenou coma cabeça emiou. –Doisdenós concordamos,
EstrelaTorta.PrecisamosencontraroClãdoVentoetrazê-loparacasa.Atélá,nenhumclãdevecaçarnoterritóriodeles.A Reunião começou a se desfazer quando os gatos começaram a se
prepararparavoltaraseusacampamentos.CoraçãodeFogoficouparadoum instante, observando os líderes na Pedra do Conselho. Estrela AzulroçouseunariznofocinhodeEstrelaTortaepulouparaochãodafloresta.Na rocha, Estrela Torta virou-se para Manto da Noite. Alguma coisa noolharque trocaramfezopelodeCoraçãodeFogoarrepiar.Seriaporque,afinaldecontas,EstrelaAzulnão tinha,naverdade,oapoiodeMantodaNoite? O jovem guerreiro mirou rapidamente à volta. Pela expressãozangada de Garra de Tigre, podia afirmar que o representante do Clã doTrovãotambémperceberaatrocadeolhares.Pela primeira vez, Coração de Fogo e Garra de Tigre partilhavam a
mesma preocupação. Aquela virada nas alianças entre os clãs, ele nãoesperava.DepoisdeoClãdoTrovãoter-searriscadoparaajudaroClãdasSombrasaexpulsarEstrelaPartida,comopodiam,agora,estardoladodoClãdoRio?
CAPÍTULO3
ESTRELAAZUL,NUMPASSORÁPIDO, liderouavoltaaoacampamento.Obarulhoqueosfelinosfizeramaochegaracordouosquetinhamficado.Enquantoogrupopassavapelaentradadetojos, figurassonolentascomeçaramasairdastocas.–Quaissãoasnovas?–perguntouMeioRabo.–OsgatosdoClãdasSombrasestavamlá?–perguntouPeledeSalgueiro.–Estavam, sim–EstrelaAzul respondeu, séria.ElapassouporPelede
Salgueiro e saltou para a Pedra Grande. Não foi necessário fazer aconvocaçãohabitualdoclã;osgatosjáestavamreunidosaospésdarocha.GarradeTigre,numpulo,colocou-seaoladodalíder.–Houvemuita tensãoentreosclãsestanoite–elacomeçou.–E fiquei
sabendodeumapossívelnovaaliançaentreEstrelaTortaeMantodaNoite.ListraCinzenta se espremeunopequenoespaçopróximoaCoraçãode
Fogo e perguntou. – O que estão dizendo? Pensei que Manto da NoiteestivessedoladodeEstrelaAzul.–MantodaNoite?–Caolhaperguntou,detrásdamultidão,comsuavoz
velhaerouca.– Ele foi nomeado o novo líder do Clã das Sombras – explicou Estrela
Azul.–Masseunome…eleaindanãofoiaceitopeloClãdasEstrelas?–Caolha
perguntou.–ElepretendefazerajornadaatéaPedradaLuaamanhãànoite–disse
GarradeTigre.–NenhumlíderpodefalaremnomedoclãnumaReuniãosemprimeiro
receberaaprovaçãodoClãdasEstrelas–disseCaolhaaltosuficienteparaquetodosouvissem.–EletemoapoiodoClãdasSombras,Caolha–EstrelaAzulrespondeu,
acenando para a velha gata. –Não podemos ignorar o que ele disse estanoite.–Caolha,descontente,farejouoar,ealíderlevantouacabeçaparasedirigiratodooclã.–NaReunião,sugeriqueencontremososfelinosdoClãdoVentoparatrazê-losparacasa.MasEstrelaTortaeMantodaNoitenãodesejamquevoltem.– No entanto, é pouco provável que queiram juntar forças, não? –
observouListraCinzenta.–Quasetiveramumadiscussãosobreosdireitosdecaçanorio.CoraçãodeFogovirou-separaoamigo.–Vocênãopercebeuosolhares
que trocaram no final do encontro? Ambos estão loucos para colocar aspatasnoterritóriodoClãdoVento.–Porquê?–perguntouPatadeAreia,queestavaaoladodeseumentor,
Nevasca.–SuspeitoqueoClãdasSombrasnãosejatãofracoquantopensávamos.
E Manto da Noite parece ter mais ambição do que qualquer gato podiaesperar–ofelinobrancorespondeu.–MasporqueoClãdoRioquercaçarnoterritóriodoClãdoVento?Eles
sempreengordaramàcustadospeixesdeseupreciosorio!–uivouPeledeSalgueiro. – O planalto fica muito longe para irem caçar alguns míseroscoelhos!CaudaMosqueada,arainhaqueforabelíssimaemoutrostempos, falou
comavozenfraquecidapelaidade:–NaReunião,algunsdosanciãosdoClãdoRio comentaramquealgunsDuas-Pernasestão seapossandodepartedaságuas.–Éverdade–acrescentouPeledeGeada.–DizemqueháDuas-Pernas
vivendoemabrigosaoladodorio,perturbandoospeixes.OsgatosdoClãdoRiosãoobrigadosaficarescondidosnomato,debarrigavazia,olhandoparaeles!Estrela Azul estava pensativa. – No momento, precisamos ter cuidado
paranãofazernadaquepossaaproximaroClãdasSombraseoClãdoRio.Agoravãodescansar.VentoVelozePatadePoeira,ocupem-sedapatrulhadoamanhecer.Umabrisafriafezcrepitarnasárvoresasfolhasprestesacair.Osgatos,
aindaconfabulandobaixinho,foramparaastocas.Pelasegundanoiteseguida,CoraçãodeFogosonhou.Estavanoescuro.
Bemperto,oruídoeofedordeumCaminhodoTrovão.Teveasensaçãodeestar sendo atingido pelosmonstros que rugiampara cima e para baixo,deixando-ocegocomseusolhosreluzentes.Desúbito,nomeiodobarulho,distinguiu o gemido queixoso de um filhote. O lamento desesperadocortavaoestrondodosmonstros.CoraçãodeFogoacordouderepente.Porum instantepensouque fora
aquele choro que o acordara. Mas só se ouviam os roncos abafados dosguerreiros próximos. Um rugido veio de algum lugar do meio da toca.
PareciaserGarradeTigre.Sentindo-sepordemais inquietoparavoltaradormir,CoraçãodeFogosaiusemfazerbarulho.Lá foraestavaescuro,easestrelaspontilhandoocéu lhediziamqueo
amanheceraindademorava.Comoqueixumedofilhoteecoandonamente,CoraçãodeFogodirigiu-seaoberçário, comasorelhasempinadas.Ouviupassosalémdomurodoacampamento.Farejouoar.EramapenasRiscadeCarvão e Rabo Longo, que guardavam o território do Clã do Trovão.CoraçãodeFogosentiuocheirodeles.O silêncio do acampamento o tranquilizou. Todos os gatos devem ter
pesadelos com o Caminho do Trovão, pensou. Voltou à toca e, depois derodar em círculos, instalou-se confortavelmente em seu ninho. ListraCinzenta ronronou um pouquinho em seu sono enquanto o amigo sealojavaaseuladoefechavaosolhos.
Listra Cinzenta o despertou, cutucando-o com o nariz. – Não meperturbe!–CoraçãodeFogoresmungou.–Acorde!–sibilouListraCinzenta.–Porquê?Nãoestamosempatrulha–CoraçãodeFogoreclamou.–EstrelaAzulquerfalarcomagente.Agora.Tonto,CoraçãodeFogopôs-sedepéeseguiuoamigo,quesaíadatoca.O
sol começava a deixar o céu cor-de-rosa, e as árvores à volta doacampamentoestavamrecobertasdegelo.Os dois felinos atravessaram a clareira até a toca de Estrela Azul e
anunciaramachegadacommiadosabafados.– Entrem! – respondeu Garra de Tigre por trás da cortina de líquen.
CoraçãodeFogosobressaltou-seao lembrara conversa comEstrelaAzulnocaminhoparaaReunião.SeráqueelamencionaraaGarradeTigresuasacusações?ListraCinzentaentrounatocadalíder.Desconfortável,CoraçãodeFogoentroulogoatrás.Estrela Azul estava no seu ninho, com a cabeça elevada e os olhos
brilhando.GarradeTigre,nomeiodochãolisodearenito.CoraçãodeFogotentou decifrar-lhe a expressão, mas os olhos do gatomalhado estavam,comosempre,friosefirmes.A líder logocomeçoua falar:–CoraçãodeFogo,ListraCinzenta, tenho
umamissãoimportanteparavocês.–Umamissão?–CoraçãodeFogorepetiu.Alívioeempolgaçãovarreram
suaansiedade.–QueroqueencontremosgatosdoClãdoVentoeostragamdevolta–
anunciou.–Antesqueseempolguemdemais,tenhamemmentequeissopodeser
muitoperigoso–GarradeTigrerugiu.–NãoseiparaondeforamosfelinosdoClãdoVento.Assim,vocêsterãodeseguiroquerestoudocheirodeles,provavelmenteemterritóriohostil.–Mas vocês estiveramno território do Clã doVento, quando viajaram
comigoatéaPedradaLua–EstrelaAzulobservou.–Ocheirodelesseráfamiliar,comoseráoterritóriodosDuas-Pernasalémdoplanalto.–Vamossónósdois?–perguntouCoraçãodeFogo.– Precisamos dos outros guerreiros aqui – miou o representante. – A
estação sem folhas está chegando e será necessário reunir omáximo depresasfrescasquepudermos.Teremosmuitasluasdeescassezpelafrente.EstrelaAzulconcordou.–GarradeTigrevaiajudá-losaseprepararpara
a jornada. – As patas de Coração de Fogo pinicaram, numa sensação dedesconforto. A líder mantinha, como sempre, a confiança em seurepresentante.PorqueeleeraoúniconoClãdoTrovãoquenãoconfiavanasintençõesdeGarradeTigre?– É indispensável que partam o mais depressa possível – continuou
EstrelaAzul.–Boasorte.–Vamosencontrá-los–ListraCinzentaprometeu.Voltando seus pensamentos para a jornada que tinha pela frente,
CoraçãodeFogoconcordou.Garra de Tigre os seguiu ao saírem da toca de Estrela Azul. – Vocês
lembramcomochegaraoterritóriodoClãdoVento?–Claro,GarradeTigre,estivemosláháapenas…CoraçãodeFogointerrompeuarespostaapressadadeListraCinzenta:–
Háapenasalgumasluas–miourapidamente, lançandoumolhardealertaparaoamigo.ListraCinzentaporpouconãorevelaraaviagemquetinhamfeitocomPataNegraalgumasnoitesantes.GarradeTigrehesitou.CoraçãodeFogoprendeuarespiração.Teriaele
notadoafalhadeListraCinzenta?– E vocês se lembram do cheiro do Clã do Vento? – perguntou o
representante.CoraçãodeFogoagradeceuemsilêncioaoClãdasEstrelas.
Os jovensguerreiros fizeramquesim,eCoraçãodeFogocomeçouaseimaginar correndo entre as folhas pontiagudas dos tojos no planalto àprocuradoclãdesaparecido.–Vocêsvãoprecisardeervasquelhesdeemforçasequeosdeixemsem
apetite. Peguem comPresaAmarela antes departir. –Garra deTigre fezumapausa.–EnãoesqueçamqueMantodaNoiteplanejairatéaPedradaLuaestanoite.Mantenham-selongedocaminhoqueelevaipercorrer.–Certo,GarradeTigre–disseCoraçãodeFogo.–Elenuncavaisaberqueestamosporali–ListraCinzentagarantiu.–Éexatamenteoqueespero–miouGarradeTigre.–Agora,vão!–Sem
maisumapalavra,orepresentantesefoi.–Elepodiater-nosdesejadoboasorte–reclamouListraCinzenta.–Provavelmenteachaquenãoprecisamosdesorte–brincouCoraçãode
Fogo ao atravessarem a clareira rumo à toca de Presa Amarela. Mas aomesmo tempo, pensava, Garra de Tigre parecia tratá-los com o mesmorespeitodispensadoaoutrosguerreiros;seriapossívelqueelenãofosseotraidor que Pata Negra imaginava? Ainda estava frio, apesar do sol quedespontava,masnenhumdosdoistremia;CoraçãodeFogosentiaopeloseespessando,àmedidaqueosdiassetornavammaiscurtos.A toca de Presa Amarela ficava na extremidade de um túnel sob
samambaias.Umagranderochapartidaaomeioavultavanocantodeumapequenaclareiracobertadesombra.FolhaManchada tinhamoradoali.Alembrançadadelicada gata atartarugada,mortaporumguerreirodoClãdas Sombras, tocou os sentimentos deCoraçãode Fogo. Ele sentiamuitafaltadela.–PresaAmarela!–ListraCinzentachamou.–Viemosbuscarervaspara
levarnaviagem!Osdois felinosouviramummiado fracovindodasombranocentroda
rocha,deondesurgiuPresaAmarela:–Aondevocêsvão?–perguntou.–Temosqueencontraros gatosdoClãdoVentoe trazê-losdevolta –
explicouCoraçãodeFogo,semconseguiresconderoorgulho.–Suaprimeiramissãocomoguerreiros!–disseacurandeira,comavoz
rouca.–Parabéns!Vouapanharaservasnecessárias.–Retornoudepoisdealguns instantes, trazendo na boca umpequenomolho de folhas secas. –Sirvam-se!–ronronou,colocandoaservasnochão.CoraçãodeFogoeListraCinzentamascaramobedientementeas folhas
nadasaborosas.–Eca!– reclamouListraCinzenta.–Tãoruinsquantoda
última vez. – Coração de Fogo concordou, fazendo uma careta. FolhaManchada lhes dera as mesmas ervas na viagem que tinham feito comEstrelaAzulatéaPedradaLua.ListraCinzentaengoliuaúltimaporçãoecutucoucomonarizoombro
deCoraçãodeFogo:–Vamos,seumolengão!Pénaestrada!Adeus–disseaPresa Amarela por sobre o ombro, enquanto se apressava para fora daclareira.–Esperepormim–miouCoraçãodeFogo,correndoatrásdoamigo.–Adeus!Boasorte,jovens–miouacurandeira.Ao passarem pelo túnel, Coração de Fogo ouviu as samambaias
farfalhando na brisa da manhã. Pareciam sussurrar: – Boa sorte! Façamumaboaviagem!
CAPÍTULO4
AO SAÍREM DO ACAMPAMENTO, os dois jovens guerreiros quase atropelaramNevasca, que conduzia Pata de Areia e Vento Veloz à floresta, para seocuparemdapatrulhadoamanhecer.– Desculpe! – arfou Coração de Fogo, detendo-se bruscamente e
obrigandoListraCinzenta,quevinhalogoatrás,adeter-setambém.Ogatobrancoabaixouacabeçaemiou:–Soubequevãosairemmissão.–Éverdade–respondeuCoraçãodeFogo.–QueoClãdasEstrelasosproteja–miou,sério,Nevasca.– Qual é amissão? – Pata de Areia perguntou com ares de deboche. –
Vocêsvãocaçarratossilvestres?MasaexpressãodagatamudouquandoVentoVeloz,umgatomagroe
malhado,murmurou-lhe alguma coisa no ouvido. O desprezo contido noolharverdedePatadeAreiadeulugar,então,aumacuriosidadevelada.A patrulha abriu passagem para Coração de Fogo e Listra Cinzenta. A
duplaseapressou,escalandoalateraldaravina.Os jovensguerreiros trocarampoucaspalavrasao seguirematravésda
floresta até Quatro Árvores, querendo economizar fôlego para a longajornada que tinham pela frente. Pararam no alto da encosta íngreme, naextremidadedaclareirasombreadapeloscarvalhos,arfandoporcausadasubida.–Sempreventaassimaquinoalto?–resmungouListraCinzenta,opelo
espessosearrepiandocomarajadadearfrioquecortavaoplanalto.– Suponho que seja porque não há árvores para bloquear o vento –
observou Coração de Fogo, apertando os olhos. Estavamno território doClãdoVento.Aofarejaroar,eledetectouumodorque,peloquelhediziamtodos os sentidos, não era para estar ali. – Está sentindo o cheiro dosguerreirosdoClãdoRio?–perguntou,desconfortável.ListraCinzentaelevouonariz.–Não.Vocêachaquepodehaveralguns
delesporaqui?–Talvez.ElespodemquerertirarvantagemdaausênciadoClãdoVento,
principalmenteporsaberemqueseusfelinoslogovoltarão.–Aindanãosintocheirodenada–murmurouListraCinzenta.Os dois amigos caminharam com cuidado por uma trilha de turfas
congelada,protegidaporurzes.Umodor fresco fezCoraçãodeFogopararde repente. –Está sentindo
essecheiro?–sibilouparaoamigo.–Estou–respondeuListraCinzenta,colandoocorpoaochão.–OClãdo
Rio!Coração de Fogo se agachou,mantendo as orelhas sob as urzes. A seu
lado,ListraCinzentalevantouacabeçaparaolharporcimadosarbustos.–Consigovê-los–murmurou.–Estãocaçando.CoraçãodeFogoseesticoucomcuidadoparaolhar.QuatroguerreirosdoClãdoRioperseguiamumcoelhoporumtrechode
tojos.CoraçãodeFogoreconheceuGarraNegra,queestiveranaReunião.Oguerreiro negro-acinzentado, com as garras àmostra, deu um pulo, masvoltou a se sentar sem conseguir pegar a presa. O coelho provavelmenteconseguirachegaràsegurançadesuatoca.CoraçãodeFogoeListraCinzentavoltaramaseabaixar,comprimindoa
barriganaturfa.–Nãosãobonscaçadoresdecoelhos–ListraCinzentadebochou.–AchoqueoClãdoRioestámaisacostumadoapegarpeixes–disseo
amigo,baixinho.Seunarizpinicoucomocheirodecoelhoapavoradoqueseaproximava.Comumapontademedo,CoraçãodeFogoouviuospassosdosguerreirosdoClãdoRioseacercandorapidamentedapresa.–Estãovindoparacá.Precisamosnosesconder!–Siga-me.Estousentindoocheirodetexugosporaqui.– Texugos? – repetiu Coração de Fogo. – É seguro prosseguir? – Ele
ouviraahistóriadecomoMeioRaboperderaacaudanuma lutacomumtexugovelhoemal-humorado.– Não se preocupe. O cheiro é forte, mas rançoso – Listra Cinzenta
assegurou.–Devehaverumaantigatocadelesaqui.Coração de Fogo farejou o ar. Suas glândulas olfativas perceberamum
cheiro forte, parecido com o de uma raposa. – Tem certeza de que estáabandonado?– Já, já vamos saber. Mexa-se, precisamos sair daqui – respondeu o
amigo, logo tomando a frente entreos arbustosbaixinhos.O farfalhardeurzes indicou a Coração de Fogo que os guerreiros do Clã do Rio seaproximavam.– Aqui – Listra Cinzenta colocou-se ao lado de um tufo de urzes que
deixava àmostra um buraco arenoso no chão. – Entre aqui! O cheiro dotexugovaidisfarçaronosso.Podemosesperaratéquesevão.Coração de Fogo rapidamente deslizou no buraco escuro, seguido por
ListraCinzenta.Ofedordetexugoerainsuportável.Osdoisgatosouvirampegadasnochãoacima.Prenderamarespiração
quandoobarulhocessouderepenteeumdosguerreirosdoClãdoVentogritou:–Tocadetexugos!–Pelotomrouco,CoraçãodeFogoreconheceuGarraNegra.Uma segunda voz perguntou: – Está abandonada?O coelho pode estar
escondidoaí.CoraçãodeFogosentiuopelodeListraCinzentasearrepiaraseulado,
no escuro. Pôs as garras de fora e fixou o olhar na entrada do buraco,prontoparalutarseosguerreirosavançassem.–Espere;ocheiroindicaaquelecaminho–miouGarraNegra.Ouviu-se
um movimento de patas acima, quando os guerreiros do Clã do Rio seafastaram.Devagar, Listra Cinzenta soltou a respiração. – Você acha que foram
embora?–Talvezsejamelhoresperarmosumpoucomais,paratercertezadeque
nenhumdelesficouparatrás–sugeriuCoraçãodeFogo.Nãoseouviammaisruídosnoexterior.ListraCinzentacutucouoamigo
emiou:–Vamos.Com cuidado, os dois gatos saíram à luz do dia. Não havia sinal da
patrulha do Clã do Rio. A brisa fresca limpou das glândulas olfativas deCoraçãodeFogoofedordetexugo.–DevemosprocurarpeloacampamentodoClãdoVento–miouparaListraCinzenta.–Vaiseromelhorlugarparasentirocheirodeles.–Tudobem.Devagar, caminharamatravésdasurzes,mantendoaboca ligeiramente
aberta para perceber o odor de algum outro guerreiro do Clã do Rio.Pararam ao pé de uma rocha grande e achatada, que se erguia, íngreme,acimadosarbustosdetojos.–Vousubirparaterumavisãogeral–ofereceu-seListraCinzenta.–Meu
peloseconfundemelhorcomapedra.–Certo.Masmantenhaacabeçabaixa.Coração de Fogo observou o amigo subir na rocha. Listra Cinzenta se
agachounoaltoepercorreuoplanaltocomosolhos,deslizandodevoltaatéondeestavaCoraçãodeFogo.–Háumburacoaliadiante,acho–bufou,movimentandoacauda.–Vejoumafalhanasurzes.–Vamosverificar.Podeseroacampamento.– Foi o que pensei. Provavelmente é o único lugar aqui protegido do
vento.Aoseaproximaremdadescida,CoraçãodeFogodisparouna frentede
ListraCinzentae,ládecima,observou.PareciaqueumguerreirodoClãdasEstrelas tinha descido do céu e tirado uma porção de turfa do planalto,substituindo-aporumespessoemaranhadodetojosquecresciamdosdoislados,quaseatéochão.CoraçãodeFogo farejouoar.Sentiadiferentesodores, todosdoClãdo
Vento,velhosejovens,demachoedefêmea,e,aofundo,ocheirofracodepresa fresca que havia muito se tornara carniça. Tinha de ser ali oacampamentoabandonado.Desceu a encosta e enfiou-se nos arbustos. O tojo repuxava seu pelo e
arranhava-lheonariz,deixando-ocomosolhoscheiosdeágua.Atrásdele,ouvia Listra Cinzenta esbravejar porque os espinhos machucavam suasorelhas.Finalmente,chegaramaumaclareiraprotegida,cujochãoarenosomostrava asmarcas feitas por gerações de patas. Num canto da clareirahaviaumarocha,polidapelosventosconstantesdemuitasluas.–Esteémesmooacampamento–murmurouCoraçãodeFogo.–NãoacreditoqueEstrelaPartida tenha conseguidoexpulsaroClãdo
Ventodeumlugartãobemprotegido!–miouListraCinzenta,esfregandocomumapataonarizmachucado.–Parecequealutafoiboa–observouCoraçãodeFogo,dando-seconta,
chocado, de como o acampamento estava devastado. Chumaços de pelocobriam o chão e a areia estava manchada de sangue seco. Ninhos demusgo tinham sido arrancados das tocas e destruídos. Por todo lado,odores rançosos do Clã das Sombras semisturavam ao cheiro dos gatosapavoradosdoClãdoVento.CoraçãodeFogolevantouosombrosemiou:–Vamosencontraratrilha
decheiroquelevaparaforadaqui.–Começouafarejaroarcomcuidado,movendo-seàfrente,napistadoodormaisforte.ListraCinzentaoseguiuatéumvãoestreitonostojos.–OsfelinosdoClãdoVentodevemseraindamenoresdoquemelembro!
– resmungou ao tentar se espremer entre a vegetação, para ir atrás do
amigo.Divertido,CoraçãodeFogolançouumolharparaocompanheiro.Atrilha
estavamuitoclaraagora;realmentesetratavadoClãdoRio,maseraumodormisturadoepungente,comoseexaladopormuitosgatosempânico.Gotas de sangue seco salpicavam o chão. – Estamos no caminho certo –miou,sombrio.Duasluasdechuvaeventonãotinhamconseguidolavarasmarcasdoquehaviamsofrido.Era fácilparaCoraçãodeFogovislumbrarosgatosdoclã,derrotadoseferidos,fugindodecasa.Tomadoderaiva,deuumsaltoesaiuatrásdeListraCinzenta.A trilha os levou à extremidade do planalto, onde pararam para
recuperarofôlego.Emfrente,umaencostalevavaatéafazendadosDuas-Pernas.Aolonge,ondeosolcomeçavaasepôr,viam-seasformaselevadasdasPedrasAltas.–FicoimaginandoseMantodaNoitejáestálá–murmurouCoraçãode
Fogo.EmumtúnelabaixodasPedrasAltas,ficavaasagradaPedradaLua,ondeoslíderesdecadaclãdividiamsonhoscomoClãdasEstrelas.–Masnãoqueremosdardecaracomele,nãoé?–miouListraCinzenta,
balançandoacaudaaovergrandeextensãodeterrasdosDuas-Pernas.–Jávai ser bem difícil driblar os Duas-Pernas, os ratos e os cachorros semencontraronovolíderdoClãdasSombras!CoraçãodeFogoconcordou.Lembrou-sede suaúltimaviagemàquelas
terras, comEstrela Azul e Garra de Tigre. Quasemorreram atacados porratos;sóachegadadeCevada,o isolado,ossalvara.Mesmoassim,a lídertinhaperdidoumadesuasvidas;essa recordaçãopicouCoraçãodeFogocomoumaformigavermelha.–Achaque vamos encontrar algumvestígiodePataNegrapor aqui? –
miouListraCinzenta,virandoorostolargoparaoamigo.–Esperoquesim–respondeu, solene,CoraçãodeFogo.Aúltimacoisa
quetinhavistodePataNegraforaapontabrancadacaudadesaparecendona tempestadenoplanalto.Teriao aprendizdoClãdoTrovão chegadoasalvoaoterritóriodeCevada?Osdoisguerreiroscomeçaramadesceraencosta,farejandocomcuidado
cadamontedegrama,paratercertezadequecontinuavamnatrilhadoClãdoVento.– Não parece que rumaram para as Pedras Altas – observou Listra
Cinzenta. A trilha os conduziu para um campo largo e gramado, quebordearam, ficando perto da cerca viva, como fizera o Clã do Vento. O
cheiro os guiou, através de um pequeno bosque, até um caminhopertencenteaosDuas-Pernas.–Veja!–miouListraCinzenta.Pilhasdeossosdepresas,desbotadospelo
sol, estavam espalhadas pela vegetação. Camadas de musgo tinham seformadosobostrechosmaisfechadosdasamoreiras.– O Clã do Vento deve ter tentado se instalar aqui – Coração de Fogo
miou,surpreso.–Oqueosteráfeitopartir?–perguntouListraCinzenta,farejandooar.–
Oodoréantigo.CoraçãodeFogoencolheuosombroseosdois gatos seguirama trilha
atéumacercavivacompacta.Depoisdecertadificuldade,contorcendo-se,conseguiramalcançaramargemgramada.Alémdeumavalaestreita,via-seumatrilhalarga,deterra.Oguerreirocinzarapidamentepulouavalaatéapistavermelha.Coração
de Fogo olhou à volta, retesando o corpo ao reconhecer a distância umasilhuetadistorcida.–ListraCinzenta,pare–sibilou.–Oquefoi?Com o nariz, ele apontou: – Olhe ali aquele Lugar dos Duas-Pernas!
DevemosestarpertodoterritóriodeCevada.AsorelhasdeListraCinzentapinicavamnervosamente.–Éondemoram
aquelescachorros!Mascomcerteza foiporaquiqueos felinosdoClãdoVentovieram.Vamosterdenosapressar.PrecisamosultrapassaroninhodosDuas-Pernasantesdeosolsepôr.CoraçãodeFogolembrou-sedeCevadatercontadoqueosDuas-Pernas
deixavam os cachorros soltos à noite; e o sol já mergulhava no cumeescarpado das Pedras Altas. Ele assentiu: – Talvez os cachorros tenhamexpulsado da floresta o Clã do Vento. – Com um espasmo de ansiedade,pensou em Pata Negra. – Você acha que ele encontrou o Cevada? –perguntou.– Quem? Pata Negra? Por que não? Nós conseguimos chegar até aqui!
Nãoosubestime.LembraquandoGarradeTigreoenviouatéaRochadasCobras?Elevoltoucomumaserpente!Coração de Fogo ronronou com a recordação e Listra Cinzenta saltou
sobreatrilha,atravésdacercaviva,seguidopeloamigo,queseapressouaacompanhá-lo,passoapasso.UmcachorrolatiafuriosamentenoninhodosDuas-Pernas,maslogoseu
terrível ladrar enfraqueceu na distância. A temperatura diminuiu com o
cairdosoleageadacomeçouaseformarnagrama.–Continuamosounão?–perguntouListraCinzenta.–Eseatrilhaacabar
noslevandoàsPedrasAltas?MantodaNoite,comcerteza,jáestáporláaessaaltura.Coração de Fogo farejou as copas amarronzadas de algumas
samambaias.SentiunasnarinasocheirodoClãdoVento,acreporcausadomedo. – É melhor continuarmos – miou. – Vamos parar quando fornecessário.Abrisafriatrouxeoutroodoratéogato;haviaporpertoumCaminhodo
Trovão. Pata Cinzenta crispou o rosto. Também sentira o cheiro. Osguerreirostrocaramumolhardedesânimo,mascontinuaram.Ofedorficoucadavezmaisforte,atéqueouviramorugidodosmonstrosdoCaminhodoTrovão a distância. Quando chegaram à cerca viva que acompanhava ocaminholargoecinza,ficoudifícildiscerniratrilhadoClãdoVento.Listra Cinzenta parou e olhou à volta, com a incerteza estampada no
rosto. Mas Coração de Fogo identificava apenas o cheiro de medo.Percorreuassombrasqueladeavamasárvoresatéchegaraumlugarondea vegetação era menos fechada. – Eles se refugiaram aqui – Coração deFogo miou, imaginando os felinos do Clã do Vento apavorados, olhandoatravésdacercaoCaminhodoTrovão.– Foi provavelmente a primeira vez que a maior parte deles viu o
CaminhodoTrovão–observouListraCinzenta,aproximando-sedoamigo.CoraçãodeFogoolhouparaelesurpreso.Jamaisencontraraumfelinodo
ClãdoVento;tinhamsidoexpulsosdopróprioterritórioquaseaomesmotempoqueelesetornaraumaprendiz.–Elesnãopatrulhamasfronteiras?–perguntou,confuso.– Você viu o território deles; é bastante selvagem e árido, não é fácil
pegar presas. Acho que jamais pensaram que outros clãs fossem querercaçarali.Afinal,oClãdoRiotemseurioe,numbomano,nossasflorestasficamcheiasdepresas;nenhumgatoprecisadoscoelhosmagrelasdeles.Ummonstrorugiudooutroladodacercaviva,comosolhosbrilhando.
Os dois gatos se encolheram quando o vento atingiu-lhes o pelo,conseguindo penetrar o muro de folhas. Quando o barulho se perdeu,levantaram-secomcuidadoefarejaramàvoltadasraízesdavegetação.– A trilha parece levar até aqui embaixo – disse Coração de Fogo,
espremendo-se pela grama que beirava o Caminho do Trovão. ListraCinzentaoseguiu.
Mas do outro lado da cerca viva, a trilha de cheiro desapareceu derepente.–DevemtervoltadoatrásouatravessadooCaminhodoTrovão–miou
CoraçãodeFogo.–Olheporaquiquevouverificarooutrolado.–Esforçou-se para manter a voz calma, mas a exaustão começava a deixá-lodesesperado.Nãoerapossívelquetivessemperdidoatrilhaagora,depoisdechegartãolonge!
CAPÍTULO5
CORAÇÃO DE FOGO ESPEROU até ouvir apenas o som latejante do sanguepulsando nas orelhas. Foi até a beira do Caminho do Trovão, que seestendia à sua frente largo e fétido, porémsilencioso.O gatodisparou.Ochãosobsuaspataserageladoeliso.Elesóparouaoalcançaragramadooutrolado.OarestavacontaminadopelocheiroacredoCaminhodoTrovãoeseus
monstros;assim,CoraçãodeFogotomouadireçãodacercaviva.Nãohavia,ainda, nenhum vestígio dos gatos do Clã do Vento. Seu coração seentristeceu.Derepente,ummonstropassou,fazendo-odarumpulonoar,empânico.
Eleseenfiounafolhagemeseagachou,tremendo,semsaberoquefazer.Foi quando farejou um vestígiomuito tênue, trazido pelo vento que o
monstroprovocaraaopassar.OClãdoVentoestiveraali!Coração de Fogo gritou o mais alto que pôde para chamar Listra
Cinzenta. Depois de uma pausa, ouviu o som de patas atravessando oCaminhodoTrovãoatéele.–Vocêosencontrou?–perguntouoamigo,arfando.–Nãotenhocerteza.Sentiumrestodecheiro,masnãopudelocalizá-lo
exatamente – Coração de Fogo dirigiu-se até a cerca viva, com ListraCinzenta logo atrás. Farejouo campoaberto à frente. –Você temalgumaideiadoqueháalém?–Não.Nãoachoquealgumgatodeclãjátenhachegadotãolonge.–AnãoserosgatosdoClãdoVento–murmurou,sério,CoraçãodeFogo.
Longe dos odores confusos do Caminho do Trovão, a trilha, de repente,ficouevidente.ComcertezaoClãdoVentopassarapor ali.Osdois gatossaíramemdisparadapelagramaalta,atravessandodiretoocampo.–CoraçãodeFogo!–gritou,assustado,ListraCinzenta.–Oquê?–Olhe!Oamigoparouelevantouacabeça.ViuumCaminhodoTrovãoàfrente
deles fazendo um arco no ar sobre maciças pernas de pedra, iluminadopelos olhos dosmonstros que nele passavam. Outro Caminho do Trovãocorriaabaixodoprimeiro,indoemsentidocontrárionaescuridão.
Com a cabeça, Listra Cinzenta apontou um cardo. – Cheire isso! –murmurou,incrédulo.CoraçãodeFogoaspirouoodor.Umamarcarecém-deixadapeloClãdo
Vento!–Devemterseinstaladopertodaqui!–disse,baixinho,ogatocinza,sem
acreditar.CoraçãodeFogo sentiuo estômagodoer.Osdois gatos seolharamem
silêncio por um instante. Então, sem nada dizer, rumaram para osmalcheirososCaminhosdoTrovão.Porfim,ListraCinzentafalou:–PorqueoClãdoVentoviriaaumlugar
comoeste?–AchoquenemEstrelaPartida iriaquerersegui-losaqui–respondeu,
commalícia,CoraçãodeFogo.Dizendoisso,parou.Umpensamentonãolhesaíadacabeça.ListraCinzentaparouaseulado.–Oqueé?– Se o Clã do Vento está se escondendo tão perto dos Caminhos do
Trovão–miou,devagar,CoraçãodeFogo–,devemestardispostosatudopara não serem encontrados. É mais provável que acreditem em nós sechegarmosàluzdodia,nãodemodosorrateiro,naescuridão.– Isso quer dizer que podemos descansar? – perguntou o amigo,
despencandonochão.– Só até o amanhecer. Vamos encontrar um lugar para nos esconder e
tentar dormir um pouco. Você está com fome? – Listra Cinzenta fez quenão.–Nemeu–disseCoraçãodeFogo.–NãoseiseéporcausadaservasouporqueofedordoCaminhodoTrovãomedeixounauseado.–Ondevamosdormir?–perguntouListraCinzentaolhandoàvolta.Coração de Fogo já tinha percebido uma sombra escura no chão,mais
acima.–Oqueéisso?– Uma toca? – perguntou Listra Cinzenta, demonstrando surpresa. – É
grandedemaisparaumcoelho.Comcertezanãoéumatocadetexugo!–Vamosver–sugeriuoamigo.Oburacoeramaiorqueumatocadetexugo,lisoerevestidocompedra.
Coração de Fogo farejou o lugar e colocou na borda as patas dianteiras,olhandoparadentrocomcuidado.Umtúneldepedralevavaaofundo,atéochão.–Sintooarpassandoporaqui–miou,avozecoandonassombras.–Tem de haver uma saída adiante. – Inclinou-se para trás para sair e
apontouonarizparaoemaranhadodeCaminhosdoTrovão.–Estávazio?–perguntouListraCinzenta.–Pelocheiro,sim.–Vamos,então.–Ogatocinza foina frenteeentrouno túnel.Passado
um trecho que media o comprimento de algumas raposas, a encosta senivelava.CoraçãodeFogoparouefarejouoarúmido.Conseguiasentirapenaso
cheiro dos vapores do Caminho do Trovão. Acima, um rugidoensurdecedor.Quandoochãovibrava, sentiaaspatas tremer.OCaminhodoTrovãoestavaacimadeles?Seupeloarrepiouporcausadacorrentezade ar que não parava de soprar, e sentiu a pelagemde Listra Cinzenta aroçá-lode leve–oamigoestavagirandonomesmo lugar,preparando-separadormir.CoraçãodeFogoagachou-se, encolhendo-seao ladodogatocinza.Fechouosolhosqueardiamepensounasbrisasdelicadasdaflorestaenofarfalhardasfolhas.Aexaustãolutouumpoucocomcertavontadedeestar em casa, em sua toca, antes que se entregasse à escuridão que lheinundouamente.Quandovoltouaabrirosolhos,umaluzcinzabrilhavanofimdotúnel.O
amanhecerdeviaestarpróximo.Seusossosdoíamporcausadochãoduroefrio.CutucouListraCinzenta,queresmungou:–Jáamanheceu?– Quase – respondeu o amigo, pondo-se de pé. Listra Cinzenta se
espreguiçouetambémselevantou.–Achoquedevemosseguirporali–miouCoraçãodeFogo,desviandoa
cabeçada luz.–Provavelmenteesse túnelpassadiretamenteembaixodoCaminhodoTrovão.Podenoslevarmaispertode…–Suavozvacilou;nãotinhapalavrasparadescreveroemaranhadodeCaminhosdoTrovãoquevira na noite anterior. A seu lado, Listra Cinzenta concordou; juntos,começaramacaminharemsilêncio,naescuridão.NãodemorouparaCoraçãodeFogovislumbrarluz.Apressaramopasso
até subirem uma pequena encosta escarpada, que os levou a ummundobanhadopelaluzcinzadamadrugada.Tinham chegado perto de um trecho de grama árida e suja, onde uma
fogueiraardia.HaviaCaminhosdoTrovãodosdoislados,eoutrofaziaumarco no alto. Alguns Duas-Pernas estavam à volta do fogo. Um deles seespreguiçoueviroudelado;outroresmungou,zangado,enquantodormia,masobarulhoeofedordosCaminhosdoTrovãonãopareciamincomodá-los.
Coração de Fogo observou-os com cuidado; depois, congelou quandooutra coisa lhe chamou a atenção: silhuetas escuras que se moviamrapidamente,paraafrenteeparatrás,anteaschamas.Gatos!SeriamdoClãdoVento?Olhouparaofogoeparaosfelinos,esuamenteinundou-secoma lembrança do sonho, o barulho do Caminho do Trovão, a visão daslabaredasedosgatos,eavozdeFolhaManchadamurmurando:“Ofogovaisalvaroclã.”Umaondadeemoçãoenfraqueceu-lheaspernas.Aquilosignificavaqueo
destino do Clã do Trovão estava inexoravelmente ligado ao do Clã doVento?–CoraçãodeFogo?CoraçãodeFogo!A voz de Listra Cinzenta o trouxe violentamente de volta à realidade.
Respiroufundoparaseacalmaremiou:–PrecisamosencontrarEstrelaAltaefalarcomele.–EntãovocêachaqueéoClãdoVento?–Vocêsentiuocheirodeles;quemmaispoderiaser?Listra Cinzenta o fitou, os olhos brilhando em triunfo. – Nós os
encontramos!Coração de Fogo concordou, sem mencionar que encontrar o Clã do
Vento era apenas a metade da missão. Ainda precisavam convencer osfelinosdequeerasegurovoltarparacasa.ListraCinzentapreparou-separadarumpuloparaafrente.–Vamos!–Espere–advertiuCoraçãodeFogo.–Nãoqueremosafugentá-los.FoiquandoumdosDuas-Pernaslevantou-secomummovimentobrusco
e começou a gritar com os gatos esfarrapados que rodeavam o fogo. Obarulho acordou os outros Duas-Pernas, que, zangados, tambémcomeçaramaesbravejar.Os felinos do Clã do Vento se espalharam. Sem nenhuma precaução,
CoraçãodeFogoeListraCinzentacorreramatrásdeles.CoraçãodeFogosentiuapeleformigardemedoquandoseaproximaramdafogueiraedosDuas-Pernas. O instinto lhe dizia para ficar longe, mas ele não ousavaperderdevistaosgatosdoClãdoVento,quefugiam.UmdosDuas-Pernassepôsempé,colocando-sedesúbitoàfrentedele.
Coração de Fogo escorregou, levantando uma nuvem de poeira. Algumacoisaexplodiuaseulado,cobrindo-ocomestilhaçospontiagudos,que,noentanto,nãoconseguirampenetrar-lheopeloespesso.Eleolhouparatrás,
procurandoListraCinzenta.Ficoualiviadoaovê-lo logoali, comosolhosarregaladosdesusto,opeloeriçado.Correramparaasegurançadassombras,soboCaminhodoTrovãoque
ficavanoalto.Maisàfrente,CoraçãodeFogoobservouosfelinosdoClãdoVentopararempertodeumadasgrandespernasdepedradoCaminhodoTrovão.Umporum,osgatossumiramnochão.–Paraondeforam?–miou,surpreso,ListraCinzenta.– Será que há outro túnel? – imaginou Coração de Fogo. – Vamos
descobrir.Com cuidado, os dois amigos se aproximaram do lugar onde os gatos
tinhamdesaparecido.Ao chegarem, viramumburacona terra.A entradaeraredondaerevestidacompedras,comoadolugarondetinhamdormidonavéspera,edavanumacompletaescuridão.Coração de Fogo ia à frente, com todos os sentidos alertas para a
aproximaçãode algumapatrulhadoClãdoVento.O chão sob suaspatasestavamolhadoeescorregadio,eosomdeáguapingandoecoavaaoredordeles.Quandootúnelsenivelou,eleempinouasorelhaseabriuaboca.Oarúmidotinhaumcheirodesagradáveleacre,piordoqueoodordotúnelondehaviamdormido.OsvaporesdoCaminhodoTrovãosemisturavamcomocheirodemedodosfelinosdoClãdoVento.Estava escuro demais e não conseguiam enxergar coisa alguma, mas
depoisdealgunspassos,osbigodesdeCoraçãodeFogoperceberamumacurvanotúnel.Elebalançouapontadacauda,quetocoulevementeListraCinzenta.Nãoviaoamigonaescuridão,maseledeveterentendidoosinal,poisparouaseuladoe,juntos,vasculharamaquelecanto.À frente, o túnel era iluminado por um buraco estreito no teto, que
levava ao terreno abandonado que ficava acima. Coração de Fogo viumuitos gatos amontoados sob a luz cinza, guerreiros e anciãos, rainhas efilhotes, todos terrivelmentemagros. Uma brisa fria soprava, inclemente,do buraco no teto, agitando a pelagem fina nos corpos esqueléticos. Eleencolheuosombrosaosentiro fedordedoençaedecarniçatrazidopelabrisa.De repente, o túnel balançou ao rugido de um monstro acima deles.
Tensos,ListraCinzentaeCoraçãodeFogosesobressaltaram,masosgatosdoClãdoVentonãoesboçaramreação.Simplesmenteseaninharam,comosolhossemicerrados,indiferentesaoqueacontecia.Obarulhocessou.CoraçãodeFogorespiroufundoecolocou-senocanto,
sobaluzfraca.UmgatocinzadoClãdoVentorodopiou,comopeloarrepiado,esoltou
umguinchodealarmeparaorestodoclã.Nummovimentoharmônico,osguerreirossepuseramemfilaaolongodotúnel,colocando-seàfrentedasrainhasedosanciãoscomascostasarqueadasesibilandoferozmente.Apavorado, Coração de Fogo viu o brilho das garras à mostra e dos
dentes afiados como espinhos. Aqueles gatos, quase mortos de fome,estavamprontosparaatacar.
CAPÍTULO6
CORAÇÃODEFOGOENCOSTOUOCORPOemListraCinzenta,quesaltaraparaoladodele.Sequisessemsairvivosdali,precisavammostrarquenãoeramumaameaça.Os guerreiros do Clã do Vento mantiveram a posição, semmover um
músculo.CoraçãodeFogosedeucontadequeesperavamporumsinaldolíder! Ainda seguiam o Código dos Guerreiros, mesmo tendo que vivernaquelascondições.Um felino preto e branco saiu de trás da fila de guerreiros, abrindo
caminho.CoraçãodeFogoseassustouaoreconhecerogatodecaudalongaqueviraemseussonhos.DeviaserEstrelaAlta,olíderdoClãdoVento.EstrelaAltafarejouoar,masCoraçãodeFogoeListraCinzentaestavam
na direção do vento, que soprava constantemente, levando embora seusodores. Quando o gato preto e branco se aproximou, Coração de Fogosentiu o fedor de carniça que exalava de seu pelo. ComoListra Cinzenta,permaneceutotalmenteimóvel,olhandoparabaixo,enquantoEstrelaAltaosrodeava,farejando-lhesapelagemdeperto.Finalmente o líder se pôs ao ladode seus guerreiros. Coraçãode Fogo
ouviu-o murmurar “Clã do Trovão”. Os felinos abaixaram o pelo, mascontinuaramemformaçãodefensiva,protegendoosdemais.Estrela Alta voltou o rosto para os visitantes e se sentou, enrolando a
cauda com cuidado à volta das patas. – Esperava o Clã das Sombras –grunhiu,comosolhosqueimando,hostis.–Porqueestãoaqui?–Viemosprocurá-los–miouCoraçãodeFogo, comavoz trêmulapela
tensão. – Estrela Azul e os outros líderes dos clãs querem que retornemparacasa.AvozdeEstrelaAltaaindademonstravasuspeita:–Aquelasterrasnão
sãomais seguras para meu clã – miou. Seu olhar apreensivo revelava otormento da perseguição, transmitindo a Coração de Fogo uma ponta detristeza.–OClãdasSombrasexpulsouEstrelaPartida–oguerreiroexplicou. –
Elenãoémaisumaameaça.Os guerreiros atrás de Estrela Alta se entreolharam. Murmúrios de
surpresapercorreramogrupodefelinos.–Éprecisoquevocêsvoltemomaisdepressapossível–CoraçãodeFogo
insistiu. –OClã das Sombras e o Clã doRio estão começando a caçarnoplanalto.Quandovínhamosparacá,vimosumapatrulhadecaçadoClãdoRiopertodaantigatocadostexugos.EstrelaAltaeriçou-sederaiva.– Mas eles são péssimos caçadores de coelhos – acrescentou Listra
Cinzenta.–Devemtervoltadoparacasadebarrigavazia.Estrela Alta e seus guerreiros ronronaram, satisfeitos. A animação dos
felinosencorajouCoraçãodeFogo,maseraevidentequeosgatosestavammuitofracosparaalongaeárduaviagemdevolta.–Podemosacompanhá-losnotrajeto?–sugeriu,deformarespeitosa.Osolhosdo líderbrilharam.Sabiaqueaquelaperguntadisfarçavauma
ofertadeajuda.Comoolharfirme,finalmente,respondeu:–Obrigado.CoraçãodeFogosedeucontadequenãotinhaseapresentado:–Esseé
ListraCinzenta–miou,comumareverência.–EeusouCoraçãodeFogo.SomosguerreirosdoClãdoTrovão.–CoraçãodeFogo– repetiuEstrelaAlta, pensativo.A luzdo sol agora
inundava o recinto através do buraco no teto, fazendo brilhar o pelo dojovemguerreironotúnelescuro.–Onomelhecaibem.Outromonstro rugiu acima de suas cabeças. Coração de Fogo e Listra
Cinzenta se encolheram. Estrela Alta observou-os, divertido, e sacudiu acauda.Foi comoumsinal,poisa filadeguerreirosatrásdele sedesfez. –Devemospartirimediatamente–anunciou,pondo-sedepé.– Estão todos prontos para a viagem? – o líder perguntou quando os
guerreiroscomeçaramasemovimentarentreasrainhaseosanciãos.–Todos,menosofilhotedeFlordaManhã–respondeuumguerreirode
manchasmarrom.–Eleénovodemais.–Entãodevemosnosrevezarparacarregá-lo–replicouolíder.Os felinos do Clã do Vento avançaram com dificuldade; seus olhos
traduziamdoreexaustão.Umarainhaatartarugadalevavadelicadamenteumfilhotepelanuca.Apequenacriaturamalabriaosolhos.–Estãoprontos?–perguntouEstrelaAlta.Umgatopretocomumapatadeformadapassouosolhosentreosfelinos
erespondeuporeles:–Prontos.Os amigos se viraram e partiram na direção da entrada do túnel, e ali
esperaramatéqueosgatosdoClãdoVentosaíssem,ofuscadospelaluzdodia. Alguns anciãos, com o rosto contraído pelo sol fraco, levaram tanto
tempo para se acostumar à claridade que Coração de Fogo deduziu quefazia um bom tempo que estavam no túnel. O líder foi o último a sair ecolocou-seàfrentedoclã.–Queremvoltarpelocaminhoquefizemos?–perguntou-lheCoraçãode
Fogo.–Acreditoserumatalho.–Éseguro?–replicouEstrelaAlta.CoraçãodeFogonotounovamentea
apreensãoemseuolhar.–Nãotivemosproblemasparachegar–miouListraCinzenta.Resoluto, Estrela Alta balançou a cauda, como para dissipar qualquer
dúvida.–Ótimo–declarou.–Vocêvemcomigo,ListraCinzenta.Mostre-meo caminho. Coração de Fogo viajará ao lado do clã. Fale com meurepresentante,sehouveralgumproblema.–Queméele?–perguntouCoraçãodeFogo.EstrelaAltaindicoucomacabeça:–PéMorto.–Oguerreirosevirouao
ouvirseunomeeempinouasorelhas.CoraçãodeFogoinclinouacabeçaparacumprimentá-loe,afastando-se
deListraCinzentaedolíder,juntou-seaosdemais.Quandooclã fezavoltasoboarcodoCaminhodoTrovão,Coraçãode
Fogo ainda sentia o odor das chamas, mas quando chegaram ao campodevastado,osDuas-Pernasnãoestavamàvista.ListraCinzentafoidiretoaotúnelondetinhapassadoanoitecomoamigo.EstrelaAltafoioprimeiroaentrar; Coração de Fogo esperou, até que todos os gatos tivessemdesaparecidonotúnel.Sóorepresentanteficoudefora.– Tem certeza de que o túnel leva à luz do dia? – miou o gato preto,
precavido.– Ele passa debaixo do Caminho do Trovão. Vocês nunca usaram esse
túnel?–perguntou,surpreso,CoraçãodeFogo.–QuandonossosguerreiroscruzamoCaminhodoTrovão,preferemver
paraondeestãoindo–grunhiuPéMorto.CoraçãodeFogoaquiesceu.–Vánafrente–acrescentouorepresentante.O guerreiro desceu pelo buraco escuro. Quando saiu, encontrou os
felinosdoClãdoVentoolhando fixamenteocampoque levavaaoúltimoCaminho do Trovão. Estrela Alta consultou rapidamente Listra Cinzentaantes de começarem a atravessar a grama, extensa e coberta de gelo.CoraçãodeFogoseguiucomorestodoclã,protegendoumladodogrupo,enquantoPéMorto,mancando,seguiafirmedooutrolado.
Antesmesmode chegaremàmetadedo campo, ficou claroquemuitosestavam tendo dificuldade para acompanhar o ritmo. – Estrela Alta! –gritouPéMorto.–Precisamosirmaisdevagar!Coração de Fogo olhou sobre o ombro e viu que alguns gatos ficavam
cada vez mais para trás. Um deles era Flor da Manhã, com o filhotependurado na boca. Dirigiu-se até ela, que mal conseguia respirar. Nãodeviafazermuitotempoquederaàluz.–Deixequeeuolevo–eleofereceu.–Sóatévocêrecuperarofôlego.FlordaManhã,emboradesconfiada,tranquilizou-sequandoencontrouo
olhardoguerreiro.ColocouofilhotenochãoeCoraçãodeFogooapanhoucomcuidado, caminhandoao ladoda jovemmãe, para elanãoperderdevistaofardoprecioso.Estrela Alta diminuiu o passo, mas não muito. Apesar da evidente
exaustãoedofatodesuascostelasseremvisíveissobopelo,umaenergiaferozdavarapidezasuaspatas.CoraçãodeFogoentendiaaurgênciadolíder.Osolcontinuavaasubirno
horizonte.AlgunsdosgatosdoClãdoVentoestavamdoentes,outroseramvelhos, e todos sofriam por causa da fome. Se pretendiam atravessar oCaminhodoTrovãosemsofrerbaixas,teriamdeseapressar,antesqueosmonstroschegassemembandos.QuandoCoraçãodeFogoeFlordaManhãatingiramacercaviva,oClãdo
Ventoestavareunidoàvoltadolíder.–VamosatravessaroCaminhodoTrovãoaqui–anunciouEstrelaAlta,
elevandoavoz,poisummonstroacabavadepassar.OlíderdoClãdoVentoespremeu-se soba folhagem, seguidoporPéMorto,ListraCinzentaeumguerreiromaisjovem.FlordaManhãinclinou-separaCoraçãodeFogoparapegarseufilhote.Já
não estava mais arfando e, agradecida, esfregou sua bochecha na doguerreiroquandoele lheentregouopequenofelino.Ele inclinouacabeçaparaarainhaatartarugadaeseguiuListraCinzentasobacercaviva.Estrela Alta e Pé Morto, sem nada dizer, fixaram o olhar no caminho
largo e cinza. Listra Cinzenta, ao lado deles, apontou com a cauda oguerreiromaisjovem,apresentando-oaCoraçãodeFogo:–EsseéBigodeRalo.Um monstro passou correndo, quase abafando suas palavras e
levantandoumapoeiramalcheirosa.Comosolhosmarejados,CoraçãodeFogocumprimentouBigodeRaloe
dirigiu sua atenção ao Caminho do Trovão. – É melhor tentarmosatravessarempequenosgrupos–sugeriu.–ListraCinzentaeeuficaremoscomquemprecisardeajuda.–Olhouparaolíderdoclãeacrescentou:–Sevocêestiverdeacordo,EstrelaAlta.Olíderaquiesceu:–Ogrupomaisfortevaiprimeiro.OsoutrosgatosdoClãdoVentocomeçaramasurgirdacercaviva.Logo
estavamtodosreunidosatrásdeles,espremidoscontraosgalhossecos,omaislongepossíveldoCaminhodoTrovão.CoraçãodeFogoeListraCinzentachegaramatéabeira,procurandouma
brecha na fila de monstros. O Caminho do Trovão estava muito maismovimentadodoquenanoiteanterior.BigodeRalolideravaoprimeirogrupo.– Quer que atravessemos com vocês? – ofereceu Coração de Fogo, ao
farejar omedo do jovem. O gato demanchasmarrons concordou com acabeça. Os felinos que o seguiam olharam para um lado do Caminho doTrovão, depois para o outro. Tudo estava calmo, e o grupo atravessoucorrendo,emsegurança.Em seguida vieram dois guerreiros, junto com uma dupla de anciãos
macérrimos.–Já!–CoraçãodeFogoordenou,assimqueseviramsegurosdepoisquemaisummonstropassouporeles.OsquatrogatosdoClãdoVentopisaramnoCaminhodoTrovão,então
vazio.Osanciãossecontraíramdedoraoatravessar,poistinhamaspatasesfoladasdotúnelúmido.Comarespiraçãopresa,CoraçãodeFogotorciapara que chegassem logo ao outro lado. Um monstro barulhento seaproximava.– Cuidado! – Listra Cinzenta gritou. Os dois anciãos deram um pulo à
frente,comopeloarrepiado,jogando-separaaoutramargemumsegundoantesdeomonstropassaratodavelocidade.Dois gruposmaiores fizeram a travessia, sobrando apenas um. Estrela
AltaePéMortosóiriamquandotodosestivessemasalvo.FlordaManhãeseubebêficaramaoladodeCoraçãodeFogo.Atrásdela,trêsgatosmuitoidosostremiam.– Vamos atravessar com vocês –miou Coração de Fogo, olhando para
Listra Cinzenta, que concordou. – Diga-nos quando for seguro, ListraCinzenta.–CoraçãodeFogo inclinou-separaapanharo filhotedeFlordaManhã,mas ela se retraiu, com as orelhas abaixadas. O gato fitou-lhe osamedrontadosolhoscordeâmbarecompreendeu.Elaeobebêiamviver
oumorrerjuntos.– Já! – Ao grito do guerreiro cinza, Coração de Fogo e Flor da Manhã
puseram os pés no Caminho do Trovão. Os anciãos moveram-sevagarosamenteatrásdeles,aoladodeListraCinzenta.Otempopareciaterparado enquanto os anciãos avançavam, lentos, com as pernas rijas emarcadaspelasbatalhas.Seummonstro vieragora, todosnos tornaremospresas frescas, pensou Coração de Fogo. O outro lado ainda estava adiversospulosdecoelhodedistância.–Vamos–apressouListraCinzenta.Osanciãos tentaramacelerar,mas
umdeles tropeçou, e o guerreiro tevede empurrá-lo como focinhoparaajudá-loaficardepé.CoraçãodeFogoouviuaolongeorugidodeummonstro.–Nãopare!–
sibilouparaFlordaManhã.–Nóstraremososanciãos.Agatatropeçou.Obebêgritouaocairnochãoduro.CoraçãodeFogoe
ListraCinzentacolaram-seaoscorposdosmacilentosanciãos, fazendo-osavançar.Oruídodomonstrosófaziaaumentar.CoraçãodeFogoseguroupelanucaoanciãomaispróximoeoarrastou,
antes de se virar para rebocar o segundomais para perto da beirada. Omonstro se avizinhava, veloz. Coração de Fogo fechou os olhos e sepreparou.Ouviu-se um guincho, e um cheiro acre atingiu a garganta do jovem
guerreiro;emseguida,omonstropassoua todavelocidade, levandoparalongeoseurugido.CoraçãodeFogoabriuosolhoseolhouàvolta.ListraCinzentaestavaagachadonomeiodoCaminhodoTrovão, incólume,mascom os olhos arregalados como luas cheias. Um ancião estava encolhidoentreeles;osoutrosdoistremiampertodamargem,enquantoomonstroseafastavavelozmente, fazendocurvasnoCaminhodoTrovão.Obrigado,ClãdasEstrelas!Nenhumdosfelinosforaatingido.Coração de Fogo respirou fundo, chegando a tremer, e miou para o
últimoancião:–Vamos,estamosquaselá.EstrelaAltacontoucomPéMortoparareuniràsuavolta,namargem,os
felinosdoclã,quetremiam.Bigode Ralo esfregou seu nariz no focinho de Coração de Fogo e
murmurou:–Vocêteriamorridopornós.Nossoclãjamaisesqueceráisso.Atrás deles ouviu-se a voz de Estrela Alta: – Bigode Ralo está certo;
honraremos vocês dois em nossas histórias. Precisamos prosseguir –continuou.–Aindatemosumalongaviagempelafrente.
Quando os gatos se preparavam para a caminhada, Coração de Fogoaproximou-sedeFlordaManhã,queestavaocupada,lambendoofilhote.–Eleestábem?–perguntouoguerreiro.–Está,sim.–Evocê?Elanadadisse.Coração de Fogo virou-se para uma rainha cinza, que respondeu à
pergunta que ele silenciara: – Não se preocupe. A partir de agora eumeencarregodobebê.OclãseguiuacercavivaaolongodoCaminhodoTrovão,antesdevirar
parapegaratrilhadafloresta.Osodoresalipareciamconfortarosfelinos,mas a viagem tinha cobrado seu preço; eles estavam caminhando maisdevagar que nunca. Quando atingiram o final da cerca, Coração de Fogotevedeusartodaasuaforçaparaajudarosmaisfracosnatravessia.OsoljátinhapassadodoseupontomaisaltoquandoeleavistouosDuas-
Pernasadistância.Esperançoso,farejouoar,masnãohavianenhumcheirode Pata Negra. Sentiu uma pontada de tristeza e tentou ignorar opensamentoperturbadordequejamaisdeveriaterenviadooamigoparalásozinho.As nuvens sobre as Pedras Altas se tornavam cada vezmais escuras à
medidaqueencobriamosolpoente.Umventofrioeriçouopelodosgatos,trazendoasprimeirasgotasdechuva.Coração de Fogo olhou os felinos do Clã do Vento. Eles não tinham
condiçõesdeviajarnumanoitelongaechuvosa.Tambémestavacansadoe,pelaprimeiravezdesdequecomeraaservasdePresaAmarela,sentiaosefeitos da fome. Olhou para Listra Cinzenta e percebeu que o amigoencontrava-senamesmasituação.Suacaudaestavacaídadeexaustão;asorelhasabaixadasporcausadasgotasdachuva.– Estrela Alta – Coração de Fogo chamou. – Talvez devêssemos parar
logoeprocurarabrigoparaanoite.Olíderdiminuiuopasso,esperouqueoguerreirooalcançasseedisse:–
Concordo.Háumavalaaqui,ondepodemosnosabrigaratéonascerdosol.Os dois amigos trocaram olhares. – Talvez seja melhor ficarmos
escondidos na cerca viva – sugeriu Coração de Fogo. – Há ratos nessasvalas.Estrela Alta concordou: – Está bem, então – voltou-se para o clã e
anunciouquepassariamanoiteali.Asrainhaseosanciãosimediatamentesedeixaramcairnochão,apesardachuva;osguerreiroseosaprendizessereuniramparaplanejarpatrulhasdecaça.CoraçãodeFogoeListraCinzentajuntaram-seaeles.–Nãoseiseaquié
umbomlugarparacaçar–miouoguerreirodepelagemcordechama.–ÉumaregiãocheiadeDuas-Pernas.OestômagodeListraCinzentaroncou,comoseestivessedeacordo.Os
outros guerreiros o olharam comumolhar divertido,mas simpático. Emseguida,paralisaram,aoouviragramaatrásdelesfarfalhar.Comospelosarrepiadoseascostasarqueadas,osguerreirosdoClãdoVentocolocaramsuasgarrasafiadasàmostra,masosdoisgatosdoClãdoTrovãoseviraramcomalegria.Oventotraziaumcheirotãofamiliarquantoodesuastocas.–PataNegra!–CoraçãodeFogoengasgouaoverogatopretoedepelo
brilhantesurgirdagramaalta.Correu até o velho amigo e o tocou com o nariz. – Graças ao Clã das
Estrelasvocêestávivo!–murmurou.Deuumpassoparatráseexaminou-o,surpreso. O que tinha acontecido com o aprendiz magrela e assustado?Aquelegatoeraroliçoedeótimaaparência;opelo,antestãoopaco,agoraresistiaàchuvacomoumafolhadeazevinho.–PatadeFogo!–PataNegramiou,deliciado.–CoraçãodeFogo–corrigiuListraCinzenta,dandoumpassoàfrentee
tocandoonarizdePataNegracomoseu.–Agorasomosguerreiros!EusouListraCinzenta.–Vocêsconhecemessegato?–grunhiuPéMorto.OtomhostilnavozdogatofezCoraçãodeFogoseretrair.Olhouparaos
eriçadosfelinosdoClãdoVentoe,emsilêncio,serecriminouporterditoemvozaltaonomedePataNegra.EsperavaqueosguerreirosdeEstrelaAlta estivessem por demais distraídos para escutar. Se o Clã do VentomencionasseonomedelenaReunião,anotíciaseespalhariaentreosclãscomofogonafloresta.Paratodososefeitos,PataNegraestavamorto!–Eleéumisolado?–perguntouBigodeRalo.– Ele pode nos ajudar a encontrar comida – Coração de Fogo miou
rapidamente,olhandoparaPataNegra.Ogatopretoconcordou:–Conheçoosmelhores lugaresparacaçarpor
aqui! –miou. Seupelonem sequer se arrepiou sob tantosolhareshostis.Comomudara!,pensouCoraçãodeFogo.–Porqueumisoladonosajudaria?–perguntouPéMorto.
–Osisoladosjánosajudaramantes–disseListraCinzenta.–Umdeles,umavez,nossalvoudeumataquederatosaquiperto.PataNegraseadiantoue,respeitoso, inclinouacabeçaaosedirigiraos
guerreirosdoClãdoVento.–Permitam-meajudá-los!DevominhavidaaCoraçãodeFogoeaListraCinzenta;eseelesestãoviajandocomvocês,éporque os consideram amigos. – O gato levantou os olhos, mirando osdemais felinos do Clã do Vento, que lhe devolveram o olhar, agoramaisfatigadoquehostil.Achuvaapertarae,comopelomolhado,elespareciammaismagrosdoquenunca.–VouatrásdeCevada–miouPataNegra.–Eletambémvaiajudar.–E,
dizendoisso,desapareceunagramaalta.Osolhosdolíderqueimavamdecuriosidade,mastudooqueperguntou
aCoraçãodeFogofoi:–Podemosconfiarnele?–Totalmente.Estrela Alta acenou para seus guerreiros, que abaixaram o pelo e se
acomodaram,esperando.Coração de Fogo estava molhado até os ossos quando Pata Negra
reapareceu, dessa vez com Cevada. O guerreiro cumprimentou o isoladopretoebrancocomummiadoamigável.Erabomtornaravê-lo.Cevadaolhouosgatosencharcadosemiou:–Precisamosencontrarum
abrigoadequadoparavocês.Venhamcomigo!Coração de Fogo imediatamente deu um pulo à frente, feliz por
movimentaraspernasenrijecidas.ListraCinzentasaltoulogodepois,masos gatos do Clã do Vento não se mexeram, com medo e desconfiançaestampadosnosolhos.EstrelaAltapiscouparaoclã:–Temosdeconfiarnele–grunhiu,antes
deseguiroisolado.Umaum,osfelinosmarcharamatrásdolíder.Cevada e Pata Negra os conduziram pela cerca viva até outro campo.
Numpontodevegetaçãomaisdensa,entreamoreiraseurtigas,ficavaumninho abandonado dos Duas-Pernas. As paredes tinhammuitos buracos,porqueaspedrastinhamcaído,erestavaapenasmetadedotelhado.Atemorizados,osgatosdoClãdoVentofitaramaconstrução.–Ninguém
mefazentraraí!–murmurouumdosanciãos.–OsDuas-Pernasnãovêmmaisaqui–Cevadaassegurou.–Aquiestaremosprotegidosdachuva–acrescentouCoraçãodeFogo.Um dos aprendizes provocou em voz alta: – Não me espanta que ele
queiraseescondernumninhodosDuas-Pernas.Umavezgatinhodegente,sempregatinhodegente.CoraçãodeFogosearrepiou.Faziamuitasluasquenãoouviauminsulto.
Masahistóriadequeumgatinhodegentesejuntaraaumclãdevetersidomotivo de fofoca em todas as Reuniões. Naturalmente o Clã do Vento aconhecia.Eleseviroubruscamenteeencarouojovem:–VocêpassouduasluasmorandonumtúneldosDuas-Pernas.Issofezdevocêumrato?O aprendiz do Clã do Vento se aprumou, eriçou o pelo, mas Listra
Cinzenta colocou-se entre os dois felinos: – O que é que há, pessoal?Paradosaqui,sóvamosficarmaismolhados.EstrelaAltamiou:–Nessasúltimasluas,jáenfrentamoscoisaspioresdo
queumabrigodosDuas-Pernas.Umanoitenãovainosfazermalalgum.Ummurmúrio nervoso percorreu o clã, evidentemente relutante. Mas,
lançandoumolharparaCoraçãodeFogo,FlordaManhãpegouseubebêeentrou no abrigo. A rainha cinza a seguiu, empurrando o próprio filhotepara tirá-lo da chuva.Os outros gatos, aos poucos, fizeramomesmo, atéquetodosestavamládentro.CoraçãodeFogoexaminouoabrigosombrio.Excetoemalgunstrechos
ondeervasdaninhas tinham forçadoo caminhosobasparedesdepedra,nãohaviavegetaçãonochão.Oventoeachuvapenetravampelosorifíciosdas paredes e do telhado, mas ainda assim estariam mais secos eprotegidosdoqueemqualquerlugarláfora.Observouenquantoosfelinos,cautelosos, farejavam tudo.Quando começarama se instalar, evitando asgoteiraseosvãosporondeentravamcorrentesdear,eleolhouparaListraCinzenta,aliviado.ApenasEstrelaAltaePéMortocontinuavamdepé.–Eacomida?–perguntouPéMorto.Cevadafalou:–Émelhorvocêstodosdescansarem.Pata…Coração de Fogo o interrompeu antes que dissesse o nome de Pata
Negra: – Por que vocês dois nãomostram amim e a Listra Cinzenta osmelhoreslugaresdecaçaporaqui?–PéMortoeBigodeRalovãocomvocês–miouEstrelaAlta.Coraçãode
Fogonãosoubeaocertoseolíderaindadesconfiavadosdoisestranhosousequeriamostrarqueseuclãpodiacuidardesimesmo.Osseisfelinosseaventuraramdenovonachuva.Seriadifícilcaçar,mas
Coração de Fogo estava faminto. A fome sempre o tornava um caçadormelhor.Naquelanoite,ratossilvestresecamundongosnãoteriamamenorchance. – Bastamemostrar onde estão! –mioupara Cevada e para Pata
Negra.Os dois gatos os levaram para um pequeno bosque. Coração de Fogo
inspiroucomvontadeocheirofamiliar.Agachou-se,então,emposiçãodecaça,ecomeçouaespreitarassamambaiasàprocuradepresas.
Quandoogrupodecaçaretornou,cadagatotraziaumabocadadepresasfrescas. Os felinos do Clã do Vento, naquela noite, fizeram um banquetecom os novos aliados. Todos, do mais velho ao mais novo, tiveram suaporção;depois,juntaram-separatrocarlambidasepentearunsaosoutros,enquanto, do lado de fora, o vento e a chuva castigavam as paredes doabrigo.Quando se fez noite, Cevada se levantou. – Vou cair fora! Há ratos a
seremcaçados!–miou.CoraçãodeFogoseergueuetocoucomseunarizofocinhodoisolado:–
Denovo,muitoobrigado–murmurou.–Essa foia segundavezquevocênosajudou.– Obrigado porme enviar Pata Negra – replicou Cevada. – Ele está se
tornandoumótimocaçadorderatos,eébomdividirumarefeiçãocomumgatoamigodevezemquando.–Eleéfelizaqui?–quissaberCoraçãodeFogo.–Pergunte-lhevocêmesmo–miouCevada,que,dizendoisso,virou-see
desapareceunanoite.Ao se aproximar de EstrelaAlta, que lavava as patas, Coração de Fogo
percebeu que elas estavam inchadas e pareciam doloridas. – Se quiser,podemosnosrevezarparamontarguardaestanoite–ofereceu,apontandoListraCinzentaePataNegracomacabeça.Com os olhos nublados pela exaustão, o líder fitou-o, agradecido. –
Obrigado–miou.CoraçãodeFogopiscou-lhe,respeitoso,e foi tercomosamigos.Aofertaforagenuína,mastambémsignificavaqueostrêspoderiamficar
sozinhos.OguerreiroestavaansiosoparafalaràvontadecomPataNegra,longedosouvidosdoClãdoVento,eperguntar-lheoqueandavafazendoda vida. Listra Cinzenta e Pata Negra se juntaram a ele, assim que oschamou.Coração de Fogo levou-os para um canto do ninho dos Duas-Pernas,
pertoobastantedaentradaparaquecontinuassememguarda,maslongesuficiente dos outros felinos para poderem conversar em particular. – E
então?Oqueaconteceudepoisqueodeixamos?–perguntouaPataNegraassimqueseajeitaram.–RumeiparaoterritóriodoClãdoVento,comovocêsugeriu.– E os cachorros dos Duas-Pernas? – Listra Cinzenta perguntou. –
Estavamsoltos?–Estavam,masfoifácilevitá-los.Coração de Fogo ficou surpreso; agora o amigo desconsiderava os
cachorros.–Fácil?–repetiu.– De muito longe eu já sentia o cheiro deles. Bastou esperar até
amanhecer; tão logo os prenderamdenovo, fui atrás deCevada. Ele temsidoótimo.Achoquegostademeterporperto.–Desúbito,seurostoficousério.–BemmaisdoqueGarradeTigre–miou,amargo.–Oquevocêdisseaele?CoraçãodeFogopercebeuoolharapreensivodePataNegraquandoele
mencionou o antigo mentor. – Dissemos que você foi morto por umapatrulhadoClãdasSombras–respondeutranquilamente.DoisaprendizesdoClãdoVentoseaproximavam.CoraçãodeFogoempinouasorelhasparaalertarosamigosdequetinhamplateia.–Claro–miouPataNegra,elevandoavoz.–Nós,isolados,comemosos
aprendizesdosclãsquandoosapanhamos.Osjovensoolharamcomdesdém,miando:–Vocênãonosassusta.–Émesmo?–ronronouPataNegra.–Poisgarantoqueacarnedevocês
deveserduraefibrosa.– Como é que são tão amigos de um isolado? – perguntou um dos
aprendizesaCoraçãodeFogo.–Um guerreiro sábio faz amigos em todo lugar – respondeu. – Se não
fosseesseisolado,aindaestaríamosgeladosefamintos,emvezdesecosebemalimentados.–Estreitouosolhosnumaadvertência,eosaprendizes,envergonhados,foramembora.– Então o Clã do Trovão pensa que estou morto – miou Pata Negra,
depoisdeosjovenssaírem.Olhandoparaasprópriaspatas,disse:–Bem,talvezsejamelhorassim.–Levantouosolhos,fitandoosamigos.–Ficofelizporrevê-los–disse,amável.CoraçãodeFogoronronoueListraCinzenta,comcarinho,cutucouoamigocomapata.–Masvocêsparecemcansados–continuouPataNegra.–Precisamdormirumpouco.Montareiguardaestanoite;possodescansaramanhã.–Eleselevantoue,comdelicadeza,lambeuacabeçadosamigos.Dirigiu-seàentradadoabrigoesentou-se,fixandoo
olharnachuva.CoraçãodeFogoperguntouaListraCinzenta:–Vocêestácansado?–Exausto–eleadmitiu,descansandoacabeçanaspatase fechandoos
olhos.OguerreiroavermelhadoolhoumaisumavezparaPataNegra,sozinho
naentradadoabrigo.Sabiaagoraquetomaraadecisãocerta,ajudando-oadeixaroClãdoTrovão.TalvezEstrelaAzul tivesserazãoaodizerqueeleestariamelhorlonge.Cadagatotemseuprópriodestino,pensou.PataNegraestavafeliz,eraoqueimportava.
Quando Coração de Fogo acordou, Pata Negra não estava mais lá. Jápassavadoamanhecer.Asnuvenscinzentasdechuvatinhamcomeçadoaseafastar.Tingidaspelobrilhorosadodosolnascente,pareciambotõesdeflor boiando em um lago. Ele se pôs a observá-las por um buraco notelhado,enquantoosfelinosdoClãdoVentocomeçavamasemovimentar,procurandoassobrasdecaçadanoiteanterior.Umgatomarromdecaudacurtajuntou-seaeleparaadmirarasnuvens.
Oguerreiropulouquando,desúbito,umgritocuriosoescapoudagargantadogato,atraindooutrosfelinosdoClãdoVento,queseaproximaram,entremurmúriosansiosos.–O que foi, Casca deÁrvore? – perguntou Flor daManhã. –O Clã das
Estrelas falou com você? – Coração de Fogo deduziu que o gato era ocurandeiro do Clã do Vento. Instintivamente se retesou ao ver Casca deÁrvoredepeloarrepiado.–Asnuvensestãomanchadasdesangue!–eledissecomavozrascante,
os olhos arregalados. – É um aviso dos nossos ancestrais. Teremosproblemasaenfrentar.Odiadehojetraráumamortedesnecessária.
CAPÍTULO7
POR UMMOMENTO, nenhumdos gatos falouou semoveu.AtéquePéMortogrunhiu:–Todososclãsviramessasnuvens.Nãopodemostercertezadequeamensageméparanós.Miados de esperança se espalharam pelo Clã do Vento. Depois de
examinarseusfelinos,EstrelaAltamiou,calmo:–SejaoqueforqueoClãdasEstrelas tenhaplanejadopara nós, voltaremoshoje para casa. Farejoquehaverámais chuva, está na horadepartir. – Coraçãode Fogo sentiualíviocomotompragmáticodolíder.Aúltimacoisadequenecessitavameramdemonstraçõesdehisteriaporcausadeumaprofeciaameaçadora.EstrelaAltaliderouamarchanoargeladodamanhã.CoraçãodeFogoe
ListraCinzentavinhamatrás.OlíderdoClãdoVentoestavacerto:oventotraziaapromessademaischuva,quechegariaembreve.–Émelhorirmosnafrenteparareconheceroterreno–CoraçãodeFogo
sugeriu.–Seriaumfavor–respondeuEstrelaAlta.–Avisemseviremcachorros,
Duas-Pernas ou ratos. Meu clã está mais forte esta manhã, mas tivemosproblemascomcães,quandopartimos.Éprecisoestaralerta.–CoraçãodeFogoviu,peloolharpreocupadodolíder,queoavisodeCascadeÁrvoreoperturbaramaisdoquesuaspalavrasconfiantesdavamaentender.Oclãpodiaestarmaisforte,masnãoemcondiçõesderechaçarataques.Coração de Fogo correu, seguido de perto por Listra Cinzenta. Eles se
alternavam voltando até o clã, para relatar a Estrela Alta que o caminhoadianteestavalivre,oualertá-loparanãoavançaratéqueumDuas-Pernaspassasse com seu cachorro. Os felinos, em silêncio, obedeciam ao líder,caminhandocomdificuldade,apesardanoitededescanso.No sol alto, nuvens escuras voltaram a se juntar, fazendo cair as
primeirasgotasdechuva.Oterrenotornou-seumaclivee,quandoCoraçãode Fogo se colocou em uma das margens, reconheceu a pista de terravermelhaqueiadoterritóriodosDuas-PernasàszonasdecaçadoClãdoVento. Exultante, ele procurou o olhar de Listra Cinzenta com um ar detriunfo.Quaselá!Ao ouvir o som de passos pesados e abafados por trás da cerca viva,
CoraçãodeFogogirouocorpoedisparoudevoltaaocampo.OsfelinosdoClãdoVentotinhamacertadomarchacomeles.PéMortovinhaàfrentedo
grupoeficouassustadoquandooviusurgirrepentinamente.– Por aqui – Coração de Fogo miou, mostrando-lhe a brecha entre as
folhas,querespingavamchuva.Estavaansiosoparaverareaçãodoclãaoolhar para o planalto do outro lado. Com Pé Morto à frente, os gatoscomeçaram,devagar,amarcharemfila.CoraçãodeFogocolocou-selogoatrásdoúltimofelino,masPéMortoe
dois guerreiros já tinham ultrapassado a vala e atravessado a trilha;estavamlevandoogrupoatéaoutramargematravésdacercaviva.Tinhamaceleradoopasso;eraevidentequesabiamondeestavam.CoraçãodeFogoteve de correr para alcançá-los. Seguiu-os pela vegetação, mantendo oritmo,quandorumaramparaagrandeencostaqueoslevavaaoplanaltoeparacasa.Ao pé da encosta, PéMorto e seus guerreiros pararam para esperar o
resto do clã. Fecharam os olhos por causa da chuva,masmantiveram ascabeças erguidas. Coração de Fogo via o peito dos felinos subindo edescendo,respirandoosodoresfamiliaresquevinhamdoplanalto.VoltoucorrendoatéorestodogrupoeprocurouporFlordaManhã.Ela
caminhavaaoladodeumguerreiromalhado,quecarregavaseufilhotenaboca. A cada poucos passos, a rainha espichava a cabeça para cheirar opequenofardomolhado.NãodemorariamuitoeelapoderiainstalarobebênoberçáriodoClãdoVento.CoraçãodeFogocolocou-seaofinaldafila,aoladodeListraCinzenta.Os
dois se olharam felizes, mas nada disseram, por demais tocados com aempolgaçãodoclãemretornarparacasa.Mesmoosanciãoscaminhavamrapidamente,mantendooscorposbaixoseosolhosapertadosporcausadachuva. Quando o clã reuniu-se a Pé Morto na raiz da encosta, orepresentantelevantou-seeEstrelaAltatomouafrente.Semparar,olídercomeçouaseguirumaestreitatrilhadecarneirosentreagramamaltratadaeasurzes.Quandooclãseaproximoudocume,algunsdosguerreirosaceleraramo
passomais uma vez, ganhando a frente.No alto damontanha, formaramsilhuetas orgulhosas contra o céu carregado, o pelo ondulando ao vento.Maisadiante,espalharam-seemsuasantigaszonasdecaça.Desúbito,doisaprendizes passaram rapidamente por Coração de Fogo, lançando-se nasurzestãoconhecidas.Estrela Alta retesou-se: – Esperem! – gritou. – Pode haver grupos de
caçadoresdeoutrosclãsaqui!
Assimqueoouviram,osjovenspararamderepenteevoltaramcorrendoasejuntaraoclã,comosolhosaindabrilhandodeanimação.Do alto de uma pedra, Coração de Fogo viu no chão o recôncavo que
escondiaoacampamentodoClãdoVento.Ronronandodeprazer,FlordaManhãpegouseufilhotedabocadoguerreiromalhadoedisparouparaovale. Estrela Alta balançou a cauda e três guerreiros se adiantaram paraacompanharagata,quedesapareceudamargem,rumoaoacampamento.O líderparou e osdemais felinos correramaté os arbustosprotetores.
Com os olhos brilhando, ele se dirigiu a Coração de Fogo e a ListraCinzenta:–Meuclãestáagradecidopelaajudadevocês,queprovaramserguerreirosdignosdoClãdasEstrelas.OClãdoVentovoltouparacasa;estánahoradefazeremomesmo.CoraçãodeFogo sentiu certodesapontamento.Gostariade ver Florda
Manhã instalada no berçário com o bebê. Mas o líder estava certo: nãohavianecessidadedeficaremmaistempo.Estrela Alta voltou a falar: – Pode haver grupos de caça hostis por aí.
BigodeRaloePéMortovãoescoltarvocêsatéQuatroÁrvores.CoraçãodeFogoinclinouacabeça.–Obrigado,EstrelaAlta.O líder chamou seus guerreiros e os instruiu. Depois, mais uma vez,
voltou os olhos cansados para o gato de pelagem vermelha. – Vocêsprestaramuma grande assistência ao Clã doVento.DigamaEstrelaAzulquenãovamosesquecerquefoioClãdoTrovãoquenostrouxeparacasa.PéMortorumouparaQuatroÁrvores.CoraçãodeFogoeListraCinzenta
o seguiram, ladeados por Bigode Ralo. Caminhavam próximos, seguindoporumcaminhoestreitoemmeioaumespessoemaranhadodetojos,queforneciaumaboaproteçãocontraachuva.Derepente,BigodeRaloparouefarejouoar.–Cheirodecoelho!–gritou,
feliz,antesdedispararentreostojos.PéMortoparoueesperou.Coraçãode Fogo percebeu um brilho nos olhos do exaurido representante. Adistância,ouviu-seobarulhodepassoseo farfalhardavegetação; então,silêncio.Um momento depois, Bigode Ralo voltou com um coelho taludo
penduradonaboca.ListraCinzentainclinou-separaCoraçãodeFogo.–Umpoucomelhordo
queosguerreirosdoClãdoRio,nãoé?Oamigoronronou,concordando.BigodeRalodeixoucairapresanochão.–Alguémaíestácomfome?
Agradecidos, comeram o coelho. Quando tinha terminado sua parte,CoraçãodeFogosentou-seelambeuoslábios.Sentia-serevigoradocomarefeição,masumfriodesagradávelcomeçavaa incomodar-lheosossos,esuaspatasdoíam.SeeleeListraCinzentarefizessemocaminhodavinda,passandoporQuatroÁrvores,aindatinhamumlongopercursopelafrente.EsepegassemumatalhopelaszonasdecaçadoClãdoRio?Afinal,estavamemumamissãoacertadaportodososclãs,aomenosnaReunião.SeráqueoClãdoRioseoporiaaqueelespassassemporseuterritório?Afinal,nãoiamroubarpresas.CoraçãodeFogoolhouoscompanheirosearriscou:–Sabem,seriamais
rápidoseguirorio.ListraCinzenta,quelavavaapatanaquelemomento,levantouosolhos.–
MasassimcruzaríamosoterritóriodoClãdoRio.–Seguiríamosodesfiladeiro–CoraçãodeFogoexplicou.–OClãdoRio
nãocaçaporali;émuitoíngremeparachegarematéorio.Listra Cinzenta pousou a pata úmida no chão, devagar. – Até minhas
garrasdoem–murmurou.–Paramim,seriaótimofazerumcaminhomaiscurto.–Esperançoso,voltouosolhosamarelosparaorepresentantedoClãdoVento.PéMortoestavapensativo.–EstrelaAltanosdeuordensparairmoscom
vocêsatéQuatroÁrvores–miou.– Senãoquiseremvir conosco, entenderemos–CoraçãodeFogodisse
depressa.–FicaremosnoterritóriodoClãdoRioporapenasumpiscardeolhos.Nãoachoquehaveráproblemas.Listra Cinzenta concordou,mas PéMorto balançou a cabeça emiou: –
Nãopodemosdeixá-losentrarsozinhosnoterritóriodoClãdoRio.Vocêsestãoexaustos.Sehouverqualquercontratempo,nãoestarãoemcondiçõesdelidarcomosfelinos.–Nãovamosencontrarninguém!–CoraçãodeFogoestavaconvencidoe
determinadoaconvencerPéMorto.O representante fitou-o com olhos sábios. – Se formos por aquele
caminho–ponderou–,oClãdoRiosaberáqueoClãdoVentovoltou.CoraçãodeFogoempinouasorelhas,sinalizandoquehaviaentendido.–
Se sentirem o cheiro fresco do Clã do Vento, talvez desistam de caçarcoelhosnoseuterritórionovamente.Bigode Ralo lambeu dos lábios os últimos vestígios de presa fresca e
observou:–Issosignificaqueestaremosemcasaantesdonascerdalua!
–Suaúnicapreocupaçãoéassegurarqueteráumninhoconfortávelnatoca–PéMortoreplicou.Suavozeragrave,mashaviaumbrilhoamigávelemseusolhos.–EntãovamosatravessaroterritóriodoClãdoRio?–CoraçãodeFogo
perguntou.–Vamos, sim–decidiuPéMorto. Elemudoudedireção e conduziuos
gatos por uma velha trilha de texugos, que os afastava do planalto. LogoestavamnoterritóriodoClãdoRio.Mesmocomoventoeachuva,Coraçãode Fogo ouvia o barulho das águas que caíam e ressoavam como trovãomaisacima.Os felinosseguirama trilhaatéoruído.Ocaminhoseestreitavaatése
tornarapenasumafaixadegrama,bemnabeiradeumdesfiladeiro.Deumlado, o terreno se espalhava para cima, íngreme e cheio de pedras; dooutro,mergulhavadiretonoabismo.CoraçãodeFogomirouooutro ladodo precipício, à distância de apenas algumas raposas. Ali eraassustadoramenteestreito;eleseperguntavaseconseguiriapular.Talvezse não estivesse tão cansado e faminto… As patas formigaram de medoquandoelepensounaqueda,maseraimpossíveldesviaroolhar.Sob seus pés, o chão descia num penhasco íngreme. Samambaias
pendiamdeescarpaspequeninas,comasfolhasbrilhantes,nãoporcausadachuva,maspelorespingodatorrentecaudalosaquefaziaespumanopédodesfiladeiro.Coração de Fogo se afastou da borda, com o pelo ao longo da espinha
eriçado de medo. Adiante dele, Pé Morto, Bigode Ralo e Listra Cinzentaseguiamcomdificuldade,decabeçabaixa.Teriamdefazeraquelecaminhoaté poder cortá-lo, passando pelo pequeno trecho de floresta que ficavaentreeleseoterritóriodoClãdoTrovão.CoraçãodeFogocorreuaostropeçosparaalcançarosoutrosfelinos.As
orelhasdePéMortoestavamempinadas;suacauda,abaixada,quasetocavao chão. Bigode Ralo estava também evidentemente nervoso; a qualquerruído,olhavadesconfiadoparaaencostaaolado.Ansioso,CoraçãodeFogoespiouporsobreosombros,osolhosagitadosindodeumladoparaoutro.OestadodealertadosgatosdoClãdoVentoodeixavadesconfortável.A encosta íngreme começou a se tornar plana, permitindo que se
afastassemdabeiradadoprecipício.Achuvamolhavaseusrostoseocéuescuro dizia a Coração de Fogo que o sol estava se pondo, mas faltavapouco para alcançarem a floresta, onde encontrariam mais proteção.
Pensaremcomidaeemumninhosecoanimavaojovemguerreiro.Derepente,umgritodealertaecooudagargantadePéMorto.Coração
deFogoretesou-seefarejouoar.UmapatrulhadoClãdoRio!Ouviramumguinchoquevinhade trásdeles;aosevoltarem,viramseisguerreirosdoClãdoRioseaproximando.OpelodeCoraçãodeFogoeriçou-sedepavor.Odesfiladeirodeáguasfuriosasaindaestavaperigosamentepróximo.Umgatomarrom-escurodoClãdoRioaterrissousobreele.Coraçãode
Fogo rolou para longe do precipício, agitando furiosamente as pernastraseiras.Sentiuumamordidanosombroselutousobopesodoguerreiro,que sibilava. Debateu-se, desesperado, no chão encharcado, tentando sesoltar.OguerreirodoClãdoRioarranhou-ocomgarrasafiadas.CoraçãodeFogo se contorceu e cravou os dentes na pelagem do atacante. Fechou amandíbula com vontade e ouviu o grito do guerreiro; mas isso só fez oinimigo investircommais fúria:–ÉaúltimavezquevocêcolocaopénoterritóriodoClãdoRio–sibilouogatomarrom.Coração de Fogo percebeu que, em volta, seus companheiros lutavam
ferozmente. Como ele, estavam exaustos da longa jornada. Ouviu ListraCinzentagritando,bravio.BigodeRalosibilavadedoreraiva.Foiquando,dafloresta,outrosomchegou-lheaosouvidos.Umsomfuriosoque,mesmoassim,encheu-odeesperança.OgritodeguerradeGarradeTigre!SentiuocheirodeumapatrulhadoClãdoTrovão se aproximando, prontapara abatalha–GarradeTigre,PeledeSalgueiro,NevascaePatadeAreia.Gritandoecuspindo,osfelinosdoClãdoTrovãosaltaramparaaluta.O
gatomarromsoltouCoraçãodeFogo,que logo se colocouemposiçãodeataque.ViuquandoGarradeTigreimobilizounochãoumgatomalhadodecinza, dando-lhe uma mordida de advertência na pata traseira. O gatocorreuparaosarbustos,aosgritos.GarradeTigrevirou-seefixouosolhossembrilhoemPelodeLeopardo.ArepresentantedoClãdoRiolutavacomPéMorto.Oguerreiromanconãoerapáreoparaaquelagataferoz.CoraçãodeFogosepreparouparapulareajudá-lo,masGarradeTigreseadiantou,jogando-separaafrente,eagarrouosombroslargosdePelodeLeopardo.Comumgritoassustador,eleaseparoudocombalidorepresentantedoClãdoVento.Coração de Fogo ouviu um grito agudo. Ao se virar viu Pata de Areia
engalfinhada com uma gata do Clã do Rio. Contorcendo-se e lutando, aduplaroloudiversasvezesnagramaúmida,sibilandoearranhando-secomviolência.CoraçãodeFogosufocouumgrito.Elasestavamchegandopertodabeiradodesfiladeiro!Maisumpoucoecairiam.
Elepulou.ComumgolpeforteafastouaguerreiradoClãdoRiodePatade Areia e do penhasco. A aprendiz escorregou, aproximando-se dabeirada. Coração de Fogo atirou-se para a frente e, com os dentes,conseguiu agarrá-la pela nuca. Enquanto ele a arrastava para longe doperigo,elaguinchoucomraiva,esperneandonochãolamacento.AssimqueCoraçãodeFogoparou, a aprendiz ficoudepénumpuloe, comosolhosenfurecidos,sibilou:–Possovencerminhaslutassemsuaajuda!Ogatoabriuabocaparaseexplicar,masumbradoterrívelfezcomque
ambosvirassemacabeça.ListraCinzentaestavaperigosamentedebruçadona lateral do abismo, com as pernas traseiras de todo esticadas. Ao ladodele,umapatabrancaseagarravanabordadopenhasco.Inclinadoecomaboca aberta, Listra Cinzenta se esforçava para segurá-la,mas ela acaboudesaparecendonummovimentorápido.Oguerreirocinzasoltouumgritodolorido.Todososfelinospararamdelutaraoouvirogritodeagoniaecoarpelo
desfiladeiro. Coração de Fogo ficou paralisado, arfando de choque eexaustão.OsgatosdoClãdoRiocorreramatéabeiradoabismo.CoraçãodeFogoaproximou-se lentamenteeesticouoolharporsobreaborda.Láembaixo,entreoborrifobarulhentodaságuas,viuacabeçaescuradeumguerreirodoClãdoRioafundarsobasborbulhas.Com um sentimento frio de horror, lembrou-se das palavras do
curandeirodoClãdoRio:–Odiadehojetraráumamortedesnecessária.
CAPÍTULO8
PELODELEOPARDOLEVANTOUACABEÇAegritouaovento:–GarraBranca!Não!Listra Cinzenta arrastou-se para trás, até colocar as quatro patas em
terra firme. Seu pelo molhado estava todo arrepiado e, em estado dechoque, ele tinha os olhos arregalados. – Tentei agarrá-lo… ele perdeu opé…nãotiveaintençãode…–Aspalavrasescapavamemdesordem,entrerespirações ofegantes. Coração de Fogo foi ter com o amigo e apertou onarizcontraseucorpo,oferecendoconforto;masListraCinzenta,àscegas,recuou.Umaumosdemaisfelinosseafastaramdabeiradadoabismoeolharam
paraogatocinza.Os felinosdoClãdoRio tinhamosolhoscontraídosderaiva e os ombros tensos. Pele de Salgueiro e Nevasca, por instinto,ladearamListraCinzenta,emposiçãodedefesa.Pelo de Leopardo uivou do fundo da garganta,mas foi um alerta para
seus companheiros. Deviam se afastar. A representante do Clã do Rioencarou Garra de Tigre: – Isso foi além de uma luta de fronteira –murmurou.–Vamosvoltaraonossoclã.Essaquestãodeveráserresolvidaemoutraocasiãoedeoutramaneira.Garra de Tigre retribuiu o olhar, com ar desafiador. Sem demonstrar
medo algum, limitou-se apenas a um discreto aceno de cabeça. Pelo deLeopardobalançouapontadacaudaeseafastou,seguidapeloclã;todaapatrulhadesapareceuentreosarbustos.AspalavrasameaçadorasdePelodeLeopardofizeramCoraçãodeFogo
tremer.Aoperceberqueaquelabatalhapodiateriniciadoumaguerra,umpressentimentoinstalou-seemseupeito,comoumasombragelada.– Devemos partir –miou PéMorto, dando um passo à frente com seu
andarmanco.–Seusdois jovensguerreirosnos forammuitoúteis,emeuclã lhe agradece. – Mas as palavras formais de gratidão pareciam semsentido depois da tragédia que tinham acabado de presenciar. Garra deTigre concordou, e os dois guerreiros do Clã do Vento se puseram emmarcha,devoltaparacasa.CoraçãodeFogomioubaixinhoumadespedidaparaBigodeRalo,quandoestepassouporele.Ogatooolhouderelanceecontinuouseucaminho.CoraçãodeFogonotouquePatadeAreiaestavanabeiradoprecipício,
fitandoatorrentedeágualáembaixo.Suaspataspareciamcoladasnochão,
e ela não conseguia desviar o olhar. Só agora ela se dera conta de queestiveramuitopertodepartilharodestinodeGarraBranca.Quandoeleiaseaproximardaaprendiz,GarradeTigrerugiu:–Sigam-
me!Oguerreiromalhadodisparouporentreasárvores, seguidopelo resto
da patrulha, mas Coração de Fogo hesitou ao lado de Listra Cinzenta. –Vamos – apressou. – Precisamosmanter o passo! –O amigo encolheu osombros, com os olhos opacos e nublados de dor, e começou a seguir osdemais,arrastandoaspatascomosefossemdepedra.Logoosgatosqueestavamàfrenteseperderamdevista,masCoraçãode
Fogo era capaz de rastreá-los pelo odor. Garra de Tigre os conduzia devoltaaoterritóriodoClãdoTrovão,diretopelotrechodeflorestadoClãdoRio. Coração de Fogo entendeu que não havia razão para se preocuparnaquelemomentocomaspatrulhasdoClãdoRio.Omaljáestavafeito.Nãotinhasentidofazerocaminhomaislongo,porQuatroÁrvores.Garra de Tigre fez a patrulha parar e esperar por Coração de Fogo e
ListraCinzentanafronteiradoterritóriodoClãdoTrovão.–Penseiterditoquemeseguissem–elerugiu.– Listra Cinzenta estava… – começou Coração de Fogo. – Quantomais
depressa ele retornar ao acampamento, melhor – o representante ointerrompeu.ListraCinzentanadadisse,masCoraçãodeFogosearrepioucomotom
rude.–AmortedeGarraBrancanãofoiculpadele!GarradeTigrevirou-seemiou:–Eusei.Masaconteceu.Vamose,desta
vez, acompanhem o passo! – disse, cruzando, de um salto, asmarcas decheiroquedelimitavamoterritóriodoClãdoTrovão.CoraçãodeFogoansiavaporaquelemomentodesdequedeixaraatoca
doClãdoVentoentreosCaminhosdoTrovão.Agora,mantendoosolhosemListraCinzenta,malpercebiaasmarcasaopassar.Achuvadiminuíaàmedidaqueseguiampelaconhecidatrilhaquelevava
aoacampamento.Quandoapatrulhasurgiudotúneldetojos,algunsgatossaíramdastocas,comascaudaselevadasemsaudação.– Vocês acharam o Clã do Vento? Eles estão a salvo? – Pelo de Rato
perguntou. Coração de Fogo fez um gesto indefinido; estava se sentindomuito vazio para responder. Pelo de Rato abaixou a cauda. Os outrosfelinosficaramnabeiradadaclareira.Aexpressãodosqueretornavamlhesdiziaquealgosérioacontecera.
–Venhamcomigo–GarradeTigreordenouaCoraçãodeFogoeaListraCinzenta, dirigindo-se para a toca de Estrela Azul. Coração de Fogocaminhava tão perto do amigo que lhe roçava o pelo. Listra Cinzentasimplesmenteseguiaemfrente,semsechegarmaisnemseafastar.Das sombras além da cortina de líquen, um miado afetuoso os
recepcionou.Ostrêsgatosentraramnacavernaaconchegante.–Bem-vindos!–EstrelaAzulpulou,ronronando.–EncontraramoClãdo
Vento?Trouxeramosfelinosdevolta?– Trouxemos sim, Estrela Azul – Coração de Fogo respondeu
tranquilamente.–Estãoasalvo,noacampamentodeles.EstrelaAltapediu-mequelhedissesseobrigado.– Ótimo, ótimo – ela miou. Seus olhos escureceram ao perceber a
expressãoseveradeGarradeTigre.–Oqueaconteceu?–CoraçãodeFogodecidiuvoltarparacasapeloterritóriodoClãdoRio–
grunhiuGarradeTigre.Listra Cinzenta levantou o rosto pela primeira vez. – Coração de Fogo
nãotomouadecisãosozinho…–começouafalar.GarradeTigreointerrompeu:–Foramdescobertosporumapatrulhado
Clã do Rio. Seminha patrulha não tivesse ouvido os gritos a tempo, nãoteriamconseguidochegaremcasa.–Entãovocêossalvou–miouEstrelaAzul,maiscalma.–Obrigada,Garra
deTigre.– Não é tão simples assim – bufou o representante. – Eles estavam
lutandoaoladodoprecipício.UmguerreirodoClãdoRio,quebrigavacomListra Cinzenta, caiu da beirada. – Coração de Fogo percebeu o amigoencolher-seaoouviraquelaspalavras.Os olhos de Estrela Azul se arregalaram. – Morreu? – perguntou,
horrorizada.Coração de Fogo logo respondeu. – Foi um acidente! Listra Cinzenta
jamaismatariaumgatonumalutadefronteira!–DuvidoquePelodeLeopardovejaassim.–GarradeTigrevirou-separa
Coração de Fogo, balançando a cauda de um lado para o outro. – O quevocês estavampensando? Passar pelo território do Clã do Rio! E com osgatosdoClãdoVento.Vocêsdeixaramclaroatodosquesomosaliados,oquesófazuniroClãdoRioeoClãdasSombras.–OClãdoVentoestavacomvocêsnoterritóriodoClãdoRio?–Alíder
pareciaaindamaissobressaltada.–Apenasdoisguerreiros.EstrelaAltamandou-oscomonossaescoltaaté
emcasa;estávamoscansados…–murmurouCoraçãodeFogo.– Vocês não deviam ter passado pelo território do Clã do Rio – o
representanterosnou.–PrincipalmentecomosfelinosdoClãdoVento.–Nãosetratavadeumaaliança.Elesestavamnosescoltando!–Coração
deFogoprotestou.–OClãdoRioestáapardisso?–disparouGarradeTigre.–SabiamqueestávamosàprocuradoClãdoVentoparatrazerosfelinos
devolta.IssofoiacordadonaReunião.Elesnãodeviamter-nosatacado;eraumamissãoespecial,comoajornadaatéPedrasAltas.–Elesnãoconcordaramemdeixarvocêspassarempeloterritóriodeles!
–GarradeTigreralhou.–Vocêaindanãoentendeucomoagemosclãs,nãoé?EstrelaAzulselevantou.Seusolhosfaiscavamaofitarostrêsgatos,mas
suavozestavacalma.–VocêsnãodeviamterentradonaszonasdecaçadoClãdoRio.Foiumaatitudeperigosa.–SeuolharseveropassoudeCoraçãode Fogo a Listra Cinzenta. Coração de Fogo procurou na líder um ar dereprovação,masnãoencontrounadaparecido.Sentiuummistodegratidãoeculpa,poiscausaraumarupturacomoClãdoRioquepoderiaameaçarasegurançadeseuclãpormuitasluas.A líder continuou, balançando a cauda, nervosa. – Ao mesmo tempo
fizerambememencontraroClãdoVentoetrazê-losdevolta.MasvamosprecisarnosprepararparaumataquedoClãdoRio.Énecessáriocomeçaratreinarmaisguerreiros.CoraçãodeFogoeListraCinzenta,PeledeGeadamedissequehádois filhotesquaseprontosparacomeçaro treinamento.Queroquecadaumdevocêstomeumcomoaprendiz.CoraçãodeFogoficouestupefato.Quantahonra!Nãoconseguiaacreditar
que Estrela Azul tivesse sugerido aquilo – especialmente agora. OlhoufurtivamenteparaGarradeTigre,queestavarígidocomoumarocha.ListraCinzentaergueuacabeça.–MasosfilhotesdePeledeGeadaainda
nãotêmseisluas!– Mas logo terão. As divisões na última Reunião me deixaram
preocupada, e hoje…. – A voz de Estrela Azul tornou-se mais fraca, eCoraçãodeFogopercebeuqueListraCinzenta,maisumavez,fixouoolharnasprópriaspatas,abaixandoacabeça.Garra de Tigre a encarou com dureza nos olhos cor de âmbar e
perguntou:–Nãoseriamelhorescalarguerreirosmaisexperientesparaatarefa, comoRaboLongoouRisca deCarvão?Esses dois sãopoucomaisqueaprendizes!–Considereiesseaspecto.MasRaboLongoestarábastanteocupadocom
PataVeloz,eRiscadeCarvãoestápreparandoPatadePoeiraparasetornarumguerreiro.–EVentoVeloz?–Eleéumótimocaçadoreumguerreiro leal.Masnãoachoque tenha
paciência para ser mentor. O Clã do Trovão pode usar melhor suashabilidades.– E você acha que esses dois têm a bagagem necessária para treinar
guerreirosdoClãdoTrovão?–miou,debochado,orepresentante.CoraçãodeFogoseencolheu.GarradeTigre,aofalar,olharaapenaspara
ele.Seráqueelepensaqueumgatinhodegentenãoestáaptoparatreinargatosnascidosnoclã?–perguntou-se,zangado.A líder devolveu o olhar do representante. – Vamos descobrir. Não se
esqueçadequetrouxeramoClãdoVentoparacasa.E,naturalmente,Garrade Tigre, conto com você para supervisionar o treinamento. – Orepresentante concordou. Estrela Azul voltou-se para Coração de Fogo eListra Cinzenta e ordenou: – Comam alguma coisa. Depois, descansem.Faremosacerimôniadenomeaçãoparaosfilhotesnaluaalta.CoraçãodeFogolevouListraCinzentaparaforadatoca,deixandoGarra
deTigrecomEstrelaAzul.Achuvatinhasetornadoumagaroa.– Estoumorrendode fome –miouCoraçãode Fogo, sentindo o cheiro
morno de presa fresca na clareira. – Vamos buscar alguma coisa paracomer?Oamigo,atrásdele,tinhaosolhosdistantesetristes.Balançouacabeça
devagaremurmurou:–Tudooquequeroédormir.Com o estômago cheio, Coração de Fogo dirigiu-se para a toca dos
guerreiros.ListraCinzentaestavaenroladocomoumabola,comacabeçasob as patas. Os olhos de Coração de Fogo estavam pesados,mas com apelagem ainda encharcada, teve de se lavar com cuidado antes de seinstalarnoninhoaconchegante.
***
Pele de Salgueiro acordou Coração de Fogo com um toque delicado,
murmurando:–Estánahoradacerimônia.Ogatolevantouacabeçaepiscou.–Obrigado,PeledeSalgueiro–miou,
quandoagatasaiudatoca.ElecutucouListraCinzenta,sibilando:–Cerimônia.–Entãoselevantou,
espreguiçando-se na ponta dos dedos, até as pernas tremerem. Estavaprestesasetornarmentor!Suaspatasformigavamdeempolgação.Listra Cinzenta desenrolou o corpo devagar, como um gato velho. De
repente, as patas de Coração de Fogo pareceram se lembrar da longajornadaquetinhamfeitoevoltaramadoer.Pelomenos,achuvatinhaparado.Emsilêncio,osdoisamigosentraram
naclareira.Aluabrilhavasobreasárvores,prateandoosgalhosmolhados.–ParabénsporteremtrazidooClãdoVentoparacasa!–Avozalegrefez
CoraçãodeFogopular.Voltou-seeviuMeioRabosecolocandoaseulado.–Vocêsdevemsereunircomosanciãosumanoiteparacontaressahistória.Eleconcordou,comoolharperdido;depoisvoltouafitaraclareira.Pele
deGeadajáestavaaospésdaPedraGrande,ladeadapordoisfilhotes,umagata acinzentada e umgato alaranjado.A rainhabranca virou a cabeça elambeu atrás das orelhas dos filhotes. A jovem balançou a cabeça,impaciente,quandoamãelhefezocarinho.Mais uma vez, com a empolgação, a pelagem de Coração de Fogo se
eriçou.Aoladodele,ListraCinzentamantinhaosolhosnochão.–Vocênãoestá
entusiasmado?–perguntouCoraçãodeFogo.Oamigodeudeombros.–ListraCinzenta–elemiou,abaixandoavoz–,amortedeGarraBranca
nãofoiculpasua.Aqueleeraopiorlugarparaumataque,eosgatosdoClãdoRio,certamente,sabiamdisso.PatadeAreiaquasecaiutambém.Pousourapidamenteosolhosnaaprendiz,aliperto.Aoladodela,Patade
Poeira o fitava com evidente inveja. Coração de Fogo não podia culpá-lo.Estava prestes a se tornar um mentor e Pata de Poeira nem sequerrecebera seu nome de guerreiro. Mas logo se encolheu quando o jovemmurmurouparaPatadeAreia,altosuficienteparaeleouvir:–TenhopenadoaprendizdeCoraçãodeFogo.Imagineumgatodeclãtreinadoporumgatinhodegente!Pela primeira vez, Pata de Areia não reagiu; apenas lançou um olhar
desconfortávelparaCoraçãodeFogo.
Oguerreirovirou-seeinsistiucomListraCinzenta:–EstrelaAzulnãooculpa. Ela sabe que você é um bom guerreiro. Está-lhe dando aoportunidadedetreinarumaprendiz.O amigo levantouos olhos e comentou, comvoz amarga: – Ela só está
fazendoissoporqueoClãdoTrovãoprecisademaisaprendizes.Eporqueprecisamos?PorqueeudeiaoClãdoRioumadesculpaparanosodiar!CoraçãodeFogoficouchocadocomotomgravedessaspalavras.Estrela
Azulosconvocouantesqueeledissessemaisalgumacoisa.Ambosforamatéalíder.Quandochegaramaocentrodaclareira,agataolhouparaaassembleia.–
Nestaluaalta,estamosaquireunidosparanomeardoisnovosaprendizes.Aproximem-seosdois.Ajovemgatacinzadisparoudoladodamãeparaaclareira,comacauda
felpuda erguida e os olhos azuis arregalados. O filhote alaranjado, maisdevagar,tambémseaproximou.Tinhaasorelhasempinadase,aocaminharatéabasedaPedraGrande,franziuatesta,sério.Coração de Fogo sentiu a respiração acelerar. De que filhote ficaria
encarregado?Seriamaisfácil treinaroalaranjadodearsolene,mashaviaalguma coisa no entusiasmo desajeitado da jovem cinza que o fazialembrar-sedesimesmo,quandochegaraaoclã.– De hoje em diante – miou Estrela Azul, fitando a gata cinza – até
receberseunomedeguerreira,essaaprendizseráconhecidacomoPatadeCinza.– Pata de Cinza! – a jovem repetiu o próprio nome em voz alta. Uma
ordemdesilênciochegounosibilardePeledeGeada;aaprendizabaixouacabeça,desculpando-se.–CoraçãodeFogo–mioua líder. –Vocêestáprontopara receber seu
primeiroaprendiz.VaiseencarregardotreinamentodePatadeCinza.–Oorgulhofezopeitodogatoestufar.–Vocêtevesorte,CoraçãodeFogo,portertidomaisdeummentor.Esperoquepasseparaessajovemtudooquelhe ensinei. – De súbito, o guerreiro começou a se sentir um tantosobrecarregado, pois as palavras da líder lhe passavam umaresponsabilidadeparaaqualnãotinhacertezadeestarpreparado.–Equepartilhe com ela as habilidades que aprendeu comGarra de Tigre e comCoraçãodeLeão–acrescentouEstrelaAzul.ÀmençãodeCoraçãodeLeão,CoraçãodeFogolembrou-sedoguerreiro
dourado encorajando-o com carinho do alto do Tule de Prata. Elevou a
cabeçaeretribuiuoolhardalídertãofirmementequantoconseguiu.–Eesseaprendiz–disseEstrelaAzulolhandoparaogatoalaranjado–
será conhecido comoPatade Samambaia. –O jovem ficou imóvel e nadadisse.–ListraCinzenta,vocêvaitreinarPatadeSamambaia.VocêteveCoração
deLeãocomomentor.Esperoquepasseaseuaprendizashabilidadeseasabedoriaquerecebeudoamigoquejánãoestáentrenós.Ogatocinzaergueuacabeçaaoouviressaspalavras;porummomento,
um brilho de orgulho perpassou seu olhar. Ele deu um passo à frente etocou, com o nariz, o focinho do jovem. Pata de Samambaia retribuiueducadamente o cumprimento. Somente seus olhos, faiscantes comoestrelas,denunciavamqueestavatãoempolgadoquantoairmã.Aoveraquelegestodecarinho,CoraçãodeFogopercebeuquedeviater
feitoamesmacoisa.Rapidamenteseadiantou;PatadeCinzaarremeteuacabeçaparacimaeosdoisacabarambatendodolorosamenteosfocinhos.Aaprendiz tentou tocar novamente o nariz do mentor, agora menosatrapalhada,mas os olhos de Coração de Fogo começaram amarejar. Aonotar o esforço da jovem para evitar que seus bigodes se mexessem,divertida que estava com a situação, ele foi tomado por um súbitosentimentodevergonha.Souummentor,pensou.CoraçãodeFogoobservouorestodoclã.Todospareciamaprovar.Então
seus olhos encontraram os de Garra de Tigre. Da beirada da clareira, oolharcordeâmbardorepresentantepareciazombardele.RapidamenteCoraçãodeFogoabaixouacabeçaeviuqueaaprendizo
encaravacomindisfarçávelorgulho.Suapelagemavermelhada,derepente,começouaeriçar.Maisdoquetudo,elequeriaserumgrandeguerreiroeum bom mentor; mas com pesar constatou que Garra de Tigre estavaapenasesperandopeloseufracasso.
CAPÍTULO9
CORAÇÃODEFOGOACORDOUeviuListraCinzentaaseulado,agachadocomoumcoelho,comosombrosretesadoseopeloeriçado.–ListraCinzenta?–mioubaixinho.ListraCinzentapuloudesusto.–Tudobemcomvocê?O gato cinza endireitou o corpo. – Estou bem. – Coração de Fogo
suspeitouqueomiadoanimadonãoerasincero,masaomenoseleestavatentandosermaispositivo.– Parece que está fazendo frio – miou Coração de Fogo, ainda
aconchegadoentreoscorposmornosdosoutrosguerreiros.AspalavrasdeListraCinzentatinhamprovocadonuvensdevapor.– Está frio mesmo! – Listra Cinzenta exclamou, inclinando-se para
lamberopeito.Coração de Fogo se levantou e balançou a cabeça. O ar tinha gosto de
gelo.–OquevocêvaifazercomPatadeSamambaiahoje?–perguntouaoamigo.–Mostrar-lheafloresta.–EupodiatrazerPatadeCinzaeiríamosjuntos.–Achomelhorirmossozinhoshoje.Coração de Fogo se ressentiu. Quando eram aprendizes, tinham
conhecidojuntosaszonasdecaçadoClãdoTrovão.Gostariaquefizessemomesmopercurso,agora,comomentores.MasseListraCinzentapreferiairsemele,nãopodiaculpá-lo.–Tudobem–miou.–Vejovocêmaistarde.Podemospartilharumcamundongoecompararosaprendizes.–Issoseriabom.CoraçãodeFogorastejouparaforadatoca,ondeestavaaindamaisfrio.
Oarquelhesaíadonarizpareciafumaça.Eletremia,apelagemondulava;esticou as pernas, uma de cada vez. O chão sob as patas pareceu-lhe depedra no caminho até a toca dos aprendizes. Pata de Cinza dormiaprofundamente, um monte acinzentado e felpudo que subia e desciaquandorespirava.–PatadeCinza–chamoubaixinho.Elaimediatamentelevantouacabeça.
Coração de Fogo recuou e, num instante, a aprendiz saiu da toca, já
despertaeentusiasmada.–O que vamos fazer hoje? – ela perguntou, olhando-o, com as orelhas
empinadas.–PenseiemlevarvocêparaconheceroterritóriodoClãdoTrovão.–VamosveroCaminhodoTrovão?–ajovemperguntou,ansiosa.– Ah… hã… vamos – respondeu o mentor, pensando como ela ficaria
decepcionadaaoverquesetratavadeumlugarsujoemalcheiroso.–Vocêestá com fome? – perguntou, imaginando se eramelhor dizer-lhe que sealimentasseprimeiro.–Não!–elaexclamou,balançandoacabeça.–Tudobem,comeremosmaistarde.Então,siga-me.– Certo, Coração de Fogo – disse a pupila, com os olhos brilhando. A
ponta de tristeza que incomodava o coração domentor desde que falaracomListraCinzenta foi afastadaporum sentimento afetuosodeorgulho.Elerumouparaaentradadoacampamento.Pata de Cinza correu e, no túnel de tojos, ultrapassou o mentor, que
precisouaceleraropassopara alcançá-la. –Pensei terditoparavocêmeseguir!–gritouquandoaaprendiz,apressada,subiaaravina.–Maseuqueriaolharládecima–elaprotestou.Com um pulo, Coração de Fogo a alcançou com facilidade. Subiu até o
topo e se sentou para lavar uma pata, sempre de olho na aprendiz, quepulavaderochaemrocha.Quandoelachegouaocume,estavaarfando,mastinhaomesmoentusiasmo.–Olheasárvores!Parecemserfeitasdepedradalua–ajovemmiou,ofegante.Estavacerta.Asárvoresabaixocintilavam,brancas,àluzdosol.Coração
de Fogo inspirou fundo o ar frio – É melhor economizar energia –aconselhou.–Temosumlongocaminhoapercorrerhoje.– Claro, tudo bem. Para que lado vamos agora? – Ela arranhou o chão
comaspatas,impaciente,prontaparacorrerparaafloresta.–Venhaatrásdemim–miouCoraçãodeFogo.E, estreitandoosolhos
comarbrincalhão,acrescentou:–Destavez,atenção,eudisseatrásdemim!–Eleaguiouporumatrilhapelabeiradadaravinaatéovalearenosoondeaprenderaacaçarealutar.– Aqui é que vai acontecer a maioria das sessões de treinamento –
explicou. Durante o renovo, as árvores que circundavam a clareirafiltravamos raiosde solnuma luzmornae cheiadematizes.Agoraa luz
friadosoldesciadiretoatéaterravermelhaegelada.–Umriopassavapor aquimuitas luas atrás.Aindaháumriachoalém
daquelapequenaelevação–miouCoraçãodeFogo,apontandocomonariz.–Ficasecoamaiorpartedoverão.Foiondepegueiminhaprimeirapresa.– O que você pegou? – perguntou a aprendiz, que, sem esperar a
resposta,continuou.–Oriachoestarácongelado?Vamosversehágelo!–Elacorreuparaovale,subindoaelevação.– Você verá em outra hora! – o mentor exclamou. Mas Pata de Cinza
continuou a correr e ele teve de fazer o mesmo. Alcançou-a no alto daelevação e, juntos, observaram o riacho. Havia gelo nas beiradas, mas avelocidade da água deslizando sobre o leito arenoso impedira quecongelassedetodo.–Vocênãoconseguiriacaçarmuitacoisaagoraporaqui–miouajovem.
–Talvezsópeixe.A visão do lugar onde apanhara a primeira presa trouxe lembranças
felizes a Coração de Fogo. Ele observou a aprendiz, na margem do rio,esticaracabeçaparaolharaáguanegra.–Seeufossevocê,deixariaapescaparaoClãdoRio–advertiuomentor.–Segostamdemolharopelo,queofaçam.Euprefirominhaspatasbemsecas.Agatacaminhavaemcírculos,semcessar.–Eagora?A empolgação da jovem e suas próprias lembranças de aprendiz
encheram Coração de Fogo de energia. Ele pulou, gritando sobre osombros:–AÁrvoredaCoruja!–PatadeCinzaoseguiu,elevandoacaudacurtaedepelofofo.AtravessaramoriachocaminhandosobreumaárvorecaídaqueCoração
deFogotinhausadocomopassarelamuitasvezes.–Maisadiantehápedrasonde podemos pisar, mas por aqui é mais rápido. Tenha cuidado! – Otroncobrancoestavadescascado.–Ficaescorregadioquandoestámolhadoougelado.Eleadeixoupassarprimeiro,mantendo-selogoatrásparaocasodeela
escorregar. O riacho não era especialmente fundo,mas estaria frio comogeloeajovemeraaindamuitopequenaparalidarcomopeloencharcado.Ela atravessou o tronco com facilidade, e Coração de Fogo sentiu uma
ponta de orgulho ao observá-la pular para o chão no outro extremo. –Muitobem–ronronou.OsolhosdePatadeCinzabrilharam.–Obrigada–miou.–Então;ondeéa
talÁrvoredaCoruja?
–Poraqui!–eledisse,entrandopelavegetação.Assamambaiastinhamsetornadomarronsdesdeorenovo.Nofinaldaestaçãodasfolhascaídas,seriamachatadaspelachuvaepelovento;porora, aindaestavamaltasefrescas.Omentoreaaprendizavançaramsobafolhagememarco.Mais adiante, um grande carvalho se destacava. Pata de Cinza jogou a
cabeçaparatrásparaolharotopoeperguntou:–Temmesmoumacorujamorandoaí?–Tem,sim.Estávendooburaconaqueletroncolá?A jovemestreitouosolhosparaverentreosgalhos.–Comovocêsabe
quenãoéumburacodeesquilo?–Sintaocheiro!Pata de Cinza farejou ruidosamente, mas balançou a cabeça; era de
curiosidadeseuolhar.–Vou lhemostrar comoéocheirodeesquilosemoutra hora –miou omentor. – Você não vai perceber nenhumdeles poraqui.Nenhumesquiloousaria fazerseuninho tãopertodeumburacodecoruja.Olheparaochão.Oquevê?Confusa,PatadeCinzaabaixouorosto.–Folhas?–Tenteescarafuncharporbaixodelas.Ochãoda florestaestava forradocom folhasdecarvalhomarrons,que
estalavamporcausadageada.PatadeCinzameteuonariznomeiodelas,enfiandoorostoatéasorelhas.Quandoo levantou, tinhanabocaalgodotamanhoedoformatodeumapinha.–Eca,cheiracomocarniça–disparou.CoraçãodeFogoronronou,divertido.–Vocêsabiaqueaquiloestavalá,nãosabia?–EstrelaAzulmepregouamesmapeça,quandoeueraaprendiz.Você
nuncavaiesquecerofedor.–Oqueéisso?–Pelotadecoruja–eleexplicou.Lembrouoquealíderlhedissera.–Ascorujascomemasmesmaspresas
que nós, mas não conseguem digerir os ossos e o pelo; assim, em suasbarrigas as sobras são enroladas em pelotas, que elas regurgitam.Encontrarumadelassobumaárvoresignificaqueencontrouumacoruja.–Porquevocêiaquererencontrarumacoruja?–perguntouaaprendiz,
assustada,comavozesganiçada.OsbigodesdeCoraçãodeFogomexeramquandoele fitou-lheosolhosarregalados, azuis comoosdamãe.PeledeGeadacertamente lhe contaraa lendadosanciãos sobre comoas corujas
carregavamfilhotesdegatoqueseafastavamdamãe.– As corujas, na floresta, enxergam melhor do que nós. Em noite de
vento,quandoédifícilseguirosodores,presteatençãonascorujasesiga-as para encontrar caça. – Os olhos da jovem ainda estavam arregalados,mas agora sem medo. Ela concordou com um aceno de cabeça. Elarealmenteprestaatençãoàsvezes!,pensou,aliviado,CoraçãodeFogo.–Eagora?–miouaaprendiz.– O Grande Plátano – decidiu o mentor. Caminharam pela floresta
enquanto o sol surgia no céu azul-pálido, atravessando um caminho dosDuas-Pernaseoutroriachopequenino.Finalmentechegaramaoplátano.–Éenorme!–arfouPatadeCinza.–Orelhinhacontaque,quandoeraaprendiz,chegouaogalhomaisalto–
miouCoraçãodeFogo.–Dejeitonenhum!– Imagino que, na época em que Orelhinha era aprendiz, essa árvore
provavelmente era apenas um arbusto! – brincou o mentor. Ele aindaolhava para cima quando um farfalhar lhe indicou que a gata tinhadisparado de novo. Suspirou e seguiu-a pelas samambaias. Seu narizdetectouumcheirofamiliarqueodeixounervoso.PatadeCinzasedirigiaparaasRochasdasCobras.Serpentes!Omentorapressouopasso.Eleseafastoudasárvoreseolhouàvolta,ansioso.Ajovemestavanuma
pedranabasedaencostaíngremeerochosa.–Vamosapostarumacorridaatéoalto!–elamiou.Coração de Fogo parou, horrorizado, ao vê-la se agachar, pronta para
pularparaapedraseguinte.–PatadeCinza!Desçadaí!Prendeuarespiraçãoaovera jovemseviraredescer,atrapalhada.Ela
tremia,comopeloarrepiado,quandoomentorcorreuaoseuencontro.–EstelugarsechamaRochasdasCobras–eledisse,arfando.PatadeCinzaarregalouosolhosaofitá-lo.–RochasdasCobras?–Háserpentesaqui.Umapicadadeumadelasmatariaumgatopequeno
comovocê!–CoraçãodeFogodeuumarápidalambidanoaltodacabeçadaaprendiz.–Venha.VamosolharoCaminhodoTrovão.Elaparouimediatamentedetremer.–OCaminhodoTrovão?–Isso!Atrásdemim!–CoraçãodeFogoaconduziuentreassamambaias
porumatrilhaquebeiravaasRochasdasCobras, levandoaumtrechodafloresta cortado pelo Caminho do Trovão, duro e cinza como um rio de
pedra.Enquantoolhavamdabeiradadafloresta,eleobservavaaaprendiz.Pelo
balançarde sua cauda, percebeuque ela estava ansiosapara ir adiante efarejaroCaminhodoTrovão,ali tãoperto.Umrugidofamiliarcomeçouaeriçar-lhe o pelo da orelha, e ele sentiu o chão tremer-lhe sob os pés. –Fiqueondeestá!–advertiu.–Ummonstrovemaí.Pata de Cinza entreabriu a boca. – Eca! – miou, torcendo o nariz e
abaixandoasorelhas.Obarulho tonitruante se aproximava, euma formasurgiunohorizonte.–Aquiloéummonstro?–ajovemperguntou.CoraçãodeFogofezquesim.Ela colocou as garras de fora e cravou-as na terra quando o monstro
rugiumaisperto.Apertouosolhosquandoelepassou,agitandooarnumatempestade de vento e trovão, e os manteve fechados até o barulho seperdernadistância.CoraçãodeFogobalançouacabeçaparalimparasglândulasolfativas.–
Fareje o ar. Você consegue distinguir algum cheiro além do fedor doCaminho do Trovão? – Esperou a aprendiz levantar a cabeça e inspirardiversasvezes.Depoisdealgunsmomentos,elamiou:–Essecheiromefazlembrardo
dia em que Estrela Partida atacou nosso acampamento. Quando vocêtrouxedevoltaosfilhotesqueelepegou,elesestavamcomessecheiro.ÉoClãdasSombras!OterritóriodelesficaalémdoCaminhodoTrovão?– Isso mesmo – respondeu o mentor, sentindo o pelo eriçar ao se
imaginartãopertodoterritóriodoclãhostil.–Émelhorsairmosdaqui.Decidiu levar Pata de Cinza no longo percurso de volta passando pelo
LugardosDuas-Pernas,paraqueelavisseosPinheirosAltoseoPontodeCortedeÁrvores.Ao caminharem sobospinheiros, os odoresdoLugardosDuas-Pernas
deixaramCoraçãodeFogodesconfortável, apesarde tervividopertodaliquandofilhote.–Fiquealerta.OsDuas-Pernas,àsvezes,passeiamporaquicomcachorros.Os dois felinos se agacharam sob as árvores para olhar as cercas que
marcavamoterritóriodosDuas-Pernas.OarfrescotrouxeatéCoraçãodeFogo umodor que lhe despertou um estranho sentimento de aconchego,maselenãosabiaporquê.–Veja!–PatadeCinzaapontoucomonarizumagataqueatravessavaa
floresta. Era malhada de marrom-claro, com peito e patas
caracteristicamente brancos. A barriga estava inchada, pesada por causadosbebêsqueesperava.– Gatinha de gente! – disse, com desprezo, Pata de Cinza, com o pelo
eriçado.–Vamosexpulsá-la!CoraçãodeFogo esperava sentir omesmo ímpetode agressãoque lhe
vinhaaoverumestranhonoterritóriodoseuclã,masopelodesuanucapermaneceu baixo. Por algum motivo que não compreendia, sabia queaquela gata não era uma ameaça. Antes que Pata de Cinza atacasse, elepropositadamenteseencostounumtroncodesamambaia,querangeu.A desconhecida levantou o rosto, atraída pelo barulho. Seus olhos se
estatelaramdesusto;girounoprópriocorpoeseafastoudasárvoresnumpassoatrapalhado.Empoucos instantesestavasobreumadascercasdosDuas-Pernas.–Ratos!–reclamouPatadeCinza.–Queroiratrásdela!ApostoquePata
deSamambaiadevetercaçadocentenasdecoisashoje.–É,masprovavelmenteelenão foiquasemordidoporumaserpente–
observou Coração de Fogo, balançando a cauda para a aprendiz. – Agoravamos;estouficandocomfome.ApupilaoseguiupelosPinheirosAltos,reclamandodosespinhosquelhe
machucavam as patas. O mentor mandou-a ficar quieta, pois não havianenhuma vegetação onde pudessem se esconder, e ele sentia o mesmodesconfortoquequalquergatodeclãquandoestavaacéuaberto.Seguiramumadas trilhasmalcheirosasdomonstroCortadordeÁrvoresepararamna beira do Ponto de Corte deÁrvores. Não havia barulho, e Coração deFogo sabia que isso duraria até o próximo renovo. Até então, apenas asmarcasda trilha,profundas, largasecongeladasnochão, lembrariamaosfelinosdoClãdoTrovãodomonstroquevivianasuafloresta.De volta ao acampamento, Coração de Fogo estava exausto, com os
músculos cansados da longa jornada com o Clã do Vento. A aprendiztambém estava esgotada. Segurou um bocejo e foi procurar Pata deSamambaia.Coração de Fogo localizou Listra Cinzenta, que lhe acenava ao lado da
moitadeurtigas.– Ei, consegui umas presas frescas para você – o gato cinza miou.
Agarrouumcamundongomortoeolançouparaoamigo.Coração de Fogo o apanhou com a boca e deitou-se perto de Listra
Cinzenta.–Comofoiodia?–perguntoucomabocacheia.
–Melhordoqueontem.CoraçãodeFogooolhou,preocupado,maselecontinuou:–Naverdade,
gosteimuito.PatadeSamambaiaestáanimadoparaaprender,issologosevê!–PatadeCinzatambém–replicouCoraçãodeFogo,voltandoamastigar.–Imagine–continuouListraCinzenta,comumbrilhonoolhar–,acabo
esquecendoquesouomentor,nãooaprendiz!–Eutambém.Trocaramlambidasatéaluasurgireofriodanoiteosfezvoltaràtoca.
ListraCinzentaempoucotempojáestavaroncando,masCoraçãodeFogosentia-seestranhamentedesperto.Aimagemdagatagrávidavoltava-lheàmente; embora cercadopelosodores familiaresdoClãdoTrovão, aquelecheirosuavedegatinhadegentepermanecia-lhenasnarinas.Finalmenteeledormiu,mastodososseussonhostraziamomesmoodor,
atéquesonhoucomaépocaemqueeraapenasumfilhote.Lembrou-sedeestardeitadojuntoàbarrigadamãe,enroscadonumacamamaismaciaquequalquermusgode floresta, comseus irmãose irmãs.Eo cheirodagatapermanecia.Coração de Fogo abriu os olhos, de súbito sacudido do sono. Claro! A
gatinhaqueviranafloresta…erasuairmã!
CAPÍTULO10
CORAÇÃODEFOGOACORDOUjuntocomodia,comaimagemdairmãaindaclaranamente.Saiudatoca,esperandoquearotinaodistraísse.Eramaisumamanhãfria,deorvalhocongelado.NevascaeRaboLongoesperavampertodaentradadoacampamento,preparando-separasairempatrulha.PelodeRatoocumprimentoucomummiadocalorosoquandopassouporeleparase juntar ao grupo.Nevasca chamouPatadeAreia, que saiu correndodatoca,atempodeseguirapatrulhaquemarchavacompassosvigorosos.EraumacenaqueCoraçãodeFogotinhavistomuitasvezes,maspelaprimeiraveznãotevevontadedeacompanharaturmaquepartia,comestardalhaço,rumoàflorestaquetinhaofrescordamanhã.Atravessou a clareira, perguntando-se se Pata de Cinza já estaria
acordada. Cara Rajada acabava de se espremer pela porta estreita doberçário.Atrásdelavinhaum filhotemalhado,depoisoutro.Umterceiro,tambémcinza-clarocommanchasmaisescuras,chegoutropeçandoecaiunochão.CaraRajadaolevantoupelanuca,carinhosamente,colocando-odenovo
em pé. A ternura da gata fez com que as imagens do sonho inundassemCoraçãodeFogo. Suamãeprovavelmenteo trataradamesma forma.ElesabiaqueoquartobebêdeCaraRajadamorreralogoapósonascimento,eelapareciaagoraamardeformaaindamaisintensaosqueficaram.Oguerreirofoitomadoporumsentimentorepentinodeinvejaaopensar
que todos os gatos ali partilhavam alguma coisa,mas não com ele; todostinhamnascidonoclã.Elesempreseorgulharadesualealdadeaoclãqueoacolheraelhederaumavidaquejamaisconheceriacomogatinhodegente.Aindasentiaaquelalealdade;morreriaparaprotegeroClãdoTrovão,masninguém do grupo compreendia ou respeitava suas raízes de gatinho degente.Tinhacertezadequeagataqueviranavésperaofaria.Comdornocoração,pôs-seaimaginaraslembrançasquepoderiampartilhar.Coração de Fogo ouviu os passos pesados de Listra Cinzenta. Virou-se
para cumprimentar o amigo, esticando a cabeça para tocar-lhe o nariz, eperguntou:–VocêpoderiaseocupardePatadeCinzahoje?ListraCinzentaolhou-ocomcuriosidade.–Porquê?–Ah,nadaimportante–respondeu,damaneiramaisnaturalpossível.–
Apenas quero verificar algo que vi ontem. Mas fique alerta com Pata de
Cinza;elanãodámuitaatençãoàsordens.Fiquedeolho,ouelavaicorreremtodasasdireções.OsbigodesdeListraCinzentasemovimentaram,divertidos.–Elaparece
sermesmo levada!Mesmoassim, serábomparaPatadeSamambaia.Elenuncavaiparacantoalgumsemantespensarcuidadosamente.– Obrigado, Listra Cinzenta! – Coração de Fogo foi aos pulos para a
entrada do acampamento antes que o amigo se lembrasse de perguntaraondeia.Ao vislumbrar entre as árvores o Lugar dos Duas-Pernas, Coração de
Fogo se agachou. Abriu a boca e inspirou o ar frio damanhã. Não haviasinaldeumapatrulhadoClãdoTrovãonemcheirodosDuas-Pernas.Elerelaxouumpouco.Devagar, aproximou-se da cerca dos Duas-Pernas onde vira a gata
desaparecer.Hesitoueolhouàvolta, farejandooarmaisumavez.Entãopulou,aterrissandonumadasestacasdacercacomapenasummovimento.NãosevianenhumDuas-Pernasporali;apenasumjardimvazio,comsuasplantasdecheiroforte.Ele se sentiu exposto na cerca. O galho de uma árvore se pendurava
sobresuacabeça.Asfolhastinhamcaído,masseriamaisfácilseesconderali.Sembarulho,aproximou-seedeitou-separaesperar,achatandoocorpocontraacascaáspera.Viu a pequenapassagem recortadana entradapara o Lugar dosDuas-
Pernas. Tivera uma daquela no seu tempo de filhote. Fixou o olhar napassagem,esperandoqueorostodairmãaparecesseaqualquermomento.Osolnascialentamentenocéudamanhã,masojovemguerreirocomeçoua sentir frio.Ogalhoúmidosugava-lheo calordo corpo.TalvezosDuas-Pernas estivessemmantendo sua irmã presa. Afinal, ela logo daria à luz.Coração de Fogo lambeu uma pata e se perguntou se deveria voltar aoacampamento.Derepente,ouviuumbarulhomaisalto.Levantouo rostoeviua irmã
sairpelapassagemdaporta.Aansiedadefezeriçaropeloaolongodasuaespinha do gato, e ele teve que fazer um esforço para não pularimediatamente no jardim. Sabia que a assustaria, como na véspera. Eleagoracheiravacomoumgatode floresta,nãocomoumamigávelgatinhodegente.CoraçãodeFogoesperouaté a irmãalcançar a extremidadedagrama;
entãoseaproximousilenciosamentedapontadogalho,escorregandopara
acerca.Semfazerbarulho,pulounosarbustosabaixo.Oodordagata lhetrouxedevoltaalembrançadosonho.Comochamarsuaatençãosemamedrontá-la?Desesperado,procurouna
mente a solução, tentando lembrar como a irmã se chamava. Só serecordavadeseupróprionomedegatinhodegente.Baixinho,falou:–Soueu,Ferrugem!Agataparou,imóvel,olhandoàvolta.CoraçãodeFogorespiroufundoe
saiudedentrodosarbustos.Os olhos da gatinha se esbugalharam; estava aterrorizada. Coração de
Fogosabiacomqueaparênciasemostravaaela:magroeselvagem,comoscheirosagudosda florestanapelagem.Opelodanucadagataeriçou;elasibilou,feroz.Suacoragemnãodeixoudeimpressioná-lo.De repente, recordou o nome dela: – Princesa! Sou eu, Ferrugem, seu
irmão!Vocêselembrademim?Princesacontinuava tensa.CoraçãodeFogo imaginouqueelaestivesse
seperguntando comoaquele estranhopoderia saber essesnomes. Ele seagachou,humilde, comopeitocheiodeesperança,enquantoobservavaaexpressãodairmã,aospoucos,passardemedoacuriosidade.–Ferrugem?–Princesa farejouoar,comosolhosarregaladosealerta.
CoraçãodeFogodeuumpassoàfrente,cauteloso.Agatinhanãosemexeu;ele chegou mais perto. Ela se manteve imóvel até o gato estar a umcamundongodedistância.–VocênãotemocheirodoFerrugem–elamiou.– Não moro mais com os Duas-Pernas. Vivo na floresta com o Clã do
Trovão.Agoratenhoocheirodeles.–Provavelmenteelajamaisouvirafalardos clãs, ele se deu conta, lembrando a própria inocência antes deencontrarListraCinzentanafloresta.Princesa se esticou e, com cuidado, esfregou o nariz na bochecha do
irmão.–Masocheirodanossamãeaindapermanece–murmurou,quaseparasimesma.Essaspalavrasoencheramdefelicidade,atéqueosolhosdagataseestreitarameelarecuou,desconfiada,comasorelhasabaixadas.–Porqueestáaqui?–Vivocêontemnafloresta.Tinhadevoltarparafalarcomvocê.–Porquê?CoraçãodeFogoolhouparaela,surpreso:–Porquevocêéminhairmã.–
Seráqueelanãosentianadaporele?
Princesa o examinou por um instante. Para alívio dele, a expressãocautelosadagatadesaparecera.–Vocêestámuitomagro–miou,crítica.–Talvezmaismagroqueumgatinhodegente,masnãoparaumgatode
clã,da floresta.Senti seucheironosmeussonhosnaúltimanoite.Sonheicomvocêecomnossosirmãos…–Fezumapausa.–Ondeestánossamãe?–Aindanamesmacasa.–Eos…?Princesaadivinhouoqueeleiaperguntar.–…nossosirmãoseirmãs?A
maioriamorapertodaqui.Devezemquando,euosvejoemseusjardins.Osdoissesentaramemsilêncioporummomento;entãoeleperguntou:
–Vocêselembradoforromaciodacestadanossamãe?–Sentiuumapontadeculpaportersaudadedaquelamaciezdegatinhodegente,masPrincesamurmurou:–Claro;quemmederaeutivesseumaigualparaquandomeusbebêschegarem.OdesconfortodeCoraçãodeFogosedesfez.Erabompoderfalardeuma
lembrançatãoternasemtervergonha.–Ésuaprimeiraninhada?Elaconcordou,mascomcertainsegurançanoolhar.Oguerreirosentiu-
se invadirporumaondade compaixão.Apesarde teremamesma idade,ela lhe pareciamuito jovem e ingênua. – Você vai ficar bem – elemiou,lembrandoopartodeCaraRajada.–Vê-sequeosDuas-Pernascuidambemde você. Tenho certeza de que seus bebês serão saudáveis e estarãoseguros.Princesachegoumaisperto,estreitandoopelocontraodele.Coraçãode
Fogo sentiu o peito se encher de emoção. Pela primeira vez desde ainfância,tevenoçãodoqueeranaturalparaosgatosdeclã:aintimidadedafamília,umelocomumdeterminadopelonascimentoepelaherança.De repente, o guerreiro quis que a irmã conhecesse umpoucoda vida
quelevavaagora.–Vocêsabearespeitodosclãs?Perplexa,Princesaoolhou.–VocêmencionouumClãdoTrovão.CoraçãodeFogo fezquesim.–Háumtotaldequatroclãs–continuou
aos borbotões. – No clã, um toma conta do outro. Os gatos mais jovenscaçamparaosanciãos,osguerreirosprotegemdosoutrosclãsaszonasdecaça. Treinei durante todo o renovoparame tornar umguerreiro. Agoratenho meu próprio aprendiz. – Coração de Fogo via, pela expressãoespantada da irmã, que ela não entendia tudo o que ele estava dizendo,emboraseusolhosbrilhassemdeprazeraoescutá-lo.–Parecequevocêgostadavidaqueleva–elamiou,admirada.
De dentro da casa ouviu-se um Duas-Pernas chamar. ImediatamenteCoraçãodeFogocorreuparaseescondersoboarbustomaispróximo.–Tenhodeir–Princesamiou.–Ficarãopreocupadosseeunãovoltar,e
tenhomuitasboquinhasparaalimentar.Sintoosbebêssemovimentandodentrodemim.–Comternura,olhouparaabarrigainchada.Debaixo do arbusto, Coração de Fogo disse: – Vá, então. De qualquer
forma,precisoretornaraomeuclã.Masvoltareiparavê-la.– Claro, vou adorar! – ela disse por sobre o ombro, já retornando ao
ninhodosDuas-Pernas.–Adeus!–Atébreve–respondeuoguerreiro.Emseguida,airmãdesapareceude
vista,eeleouviubaterapequenapassagemdaportadacozinha.Com o jardim em silêncio, rastejou pelos arbustos e pulou a cerca,
correndoparaamata.Tinhaamentecheiade lembrançasda infância,desúbitomaisreaisdoqueosodoresdaflorestaàsuavolta.Parounoaltodaravina,observando,abaixo,oacampamentodoClãdo
Trovão.Aindanãosesentiaprontoparavoltar.Tinhamedoque tudo lheparecesse estranho. Vou caçar, pensou. Pata de Cinza ficaria bem comListraCinzentapormaisumpouco,eoclãbemquegostariadeterpresasfrescasamais.Rumoudevoltaàfloresta.Quando finalmente retornou ao acampamento, trazia na boca um rato
silvestreeumpombotorcaz.Osolsepunha,eosgatosdoclãsereuniamparaarefeiçãodanoite.ListraCinzentaestavasozinhoaoladodamoitadeurtigas, com um gordo pintassilgo entre as patas. Coração de Fogo ocumprimentou,aoatravessaraclareiraparacolocarsuapresanapilha jáformada.GarradeTigre,comosolhosestreitados,estavaaospésdaPedraGrande.
–ViquePatadeCinzapassouodiacomListraCinzenta–miouquandooguerreirodepositousuapresa.–Ondevocêestava?O gato devolveu o olhar do representante. – Parecia um bom dia para
caçar, bom demais para desperdiçar – respondeu, com o coraçãodisparandonopeito.–Nomomento,oclãprecisadetodapresafrescaquepudercaçar.GarradeTigreconcordou,comosolhossombriosdesuspeita:–Sim,mas
precisamos igualmente de guerreiros. O treinamento de Pata de Cinzatambémésuaresponsabilidade.–Temrazão,GarradeTigre–mioudevoltaCoraçãodeFogo,inclinando
acabeça,respeitoso.–Vouocupar-medelaamanhã.
– Ótimo. – O representante virou o rosto e observou o acampamento.CoraçãodeFogopegouumcamundongoparacomerefoiseinstalarpertodeListraCinzenta.–Encontrouoqueestavaprocurando?–oamigoperguntou,distraído.–Encontrei–CoraçãodeFogosentiuumapontadadetristezapelador
queviunosolhosdogatocinza.–VocêestápensandonaqueleguerreirodoClãdoRio?–Tentonãopensar–respondeu,baixinho,ListraCinzenta.–Masquando
estou só, fico lembrando a previsão de Casca de Árvore de uma mortedesnecessáriaedosproblemasqueviriam…– Olhe – Coração de Fogo o interrompeu, empurrando o camundongo
para o amigo. – Esse pintassilgo parece termais penas que carne, e nãoestoucomtantafomeassim.Quertrocar?–ListraCinzentalançou-lheumolhar agradecido, e os dois amigos trocaram de presa e começaram acomer.Enquantomastigava,CoraçãodeFogoexaminouaclareira.ViuPatade
Areia e Pata de Poeira do lado de fora da toca dos aprendizes. O jovemestava ocupado, despedaçando um coelho. Coração de Fogo encontrou oolhardePatadeAreia,maselaevitouencará-lo.PatadeCinzaestavadeitadaaoladodovelhotroncodeárvoreondeele
partilhara muitas refeições quando aprendiz. Conversava animadamentecom Pata de Samambaia, que de vez em quando balançava a cabeçaenquantoarrancavaaspenasdeumpardal.Avisãodosdoisjovens,irmãoeirmã,ali juntos,tãoàvontade,fezCoraçãodeFogolembrar-se,denovo,de Princesa; pela primeira vez ficou desconfortável ao testemunhar umquadrofamiliaremseuclã.Tiveraocuidadodelamberopeloparaeliminaro cheiro da irmã, antes de voltar ao acampamento, mas era o odor dePrincesa que permanecia em suas narinas quando o sol desapareceu nohorizonte distante. Ele encontrara o aconchego perdido, mas isso lhetrouxera tambémuma sensaçãode solidão, até ali umsentimentovagoesem nome no peito. Seriam as lembranças fortemente enraizadas quepartilhavacomPrincesamaisfortesquesualealdadeaoclã?
CAPÍTULO11
– OUTRO DIA DE SOL! – Coração de Fogo ronronou para Listra Cinzenta,sentindoapelagemcordechamabrilharnosolfracodamanhã.Graçasaotempo bom, ele visitara Princesa quase todos os dias, escapulindo entreperíodosdepatrulhas,caçadasesessõesdetreinamento.Agoracaminhavacomoamigopelapequenatrilhaatéovalearenoso,ondePatadeCinzaePatadeSamambaiaestariamesperando.–Tomaraqueotempofiquebompelorestodaestaçãosemfolhas–miou
Listra Cinzenta. Coração de Fogo sabia que o amigo, por causa de suapelagem espessa, detestava chuva; quando molhado, o pelo de ListraCinzentagrudavanapeleeficavaúmidopormuitotempo,aocontráriodoqueaconteciacomoseu,maiscurto.Os dois guerreiros chegaram à beirada do vale arenoso exatamente
quandoPatadeCinza jogavaparao altoumapilhade folhas congeladas,que se espalharam em todas as direções. Ela pulou e se contorceu, natentativadepegarumadelasaindanoar.Osamigostrocaramolhares,divertidos.–AomenosPatadeCinzavaiseaquecereestaráprontaparaatarefade
hoje–observouListraCinzenta.PatadeSamambaiaficoudepénumpuloeolhouparaomentor,comos
olhosarregalados.–Bom-dia,ListraCinzenta–oaprendizmiou.–Qualéatarefadehoje?– Umamissão de caça – ele respondeu, entrando no vale, seguido por
CoraçãodeFogo.– Onde? – perguntou Pata de Cinza correndo até eles. – O que vamos
caçar?–VamosparaasRochasEnsolaradas– respondeuCoraçãodeFogo,de
súbitopartilhandoseuentusiasmo.–Evamoscaçartudooquepudermos.–Gostariadeapanharumratosilvestre.Nuncaprovei.– Tenho para mim que tudo o que caçarmos hoje vai direto para os
anciãos–advertiuListraCinzenta.–Masestoucertodeque,sevocê lhespedircomdelicadeza,terãoprazerempartilharacaça.– Está bem. Qual o caminho para as Rochas Ensolaradas? – ela saltou
paraumladodovaleeolhouparaafloresta,comacaudaesticada.
–Poraqui!–miouCoraçãodeFogo,pulandoparaooutrolado.– Certo – a jovem desceu correndo a encosta e atravessou o vale, até
chegarpertodomentor,fazendoasfolhasdochãovoaremparatodocanto.ListraCinzentasaltouepegouumadasfolhasquepassavampertodeseu
nariz.Prendeu-anochão,ronronando,satisfeito,eviuPatadeSamambaiaolhando-o firme. – Nunca perca a oportunidade de praticar suashabilidadesdecaça–disse-lherapidamenteomentor.Os quatro gatos percorreram as familiares trilhas de odores até as
RochasEnsolaradas.Osolestavaacimadasárvoresquandochegaramaocampoaberto.À frente,umarocha inclinadasurgiadaterramacia,comasuperfícielisa,masmarcadadefissuras.Osfelinosprecisaramestreitarosolhos para olhá-la. Atrás da sombra da floresta, o lado plano da pedrarefletiaosolcomumbrilhoestonteante.– Eis as Rochas Ensolaradas – anunciou Coração de Fogo, piscando. –
Vamos!–Mrrrrrrrr!Quegostoso!–miouPatadeCinzaaosegui-lonasubidana
pedra.CoraçãodeFogopercebeuqueelaestavacerta.Asuperfíciepareciaconfortavelmentequenteelisadepoisdaflorestagelada.Descansaram no alto de uma encosta que descia verticalmente até a
floresta. Coração de Fogo prestou atenção no borbulhar suave do riachoque seguia a fronteira do Clã doRio, descendopara o planalto. As águastocavam as Rochas Ensolaradas antes de entrarem no território do clã,ondecorriammaisprofundas.Ogatoquasenãoconseguiaouvi-las;talvezaságuasestivessembaixasdepoisdaestaçãodaseca.Ele se espreguiçou, aproveitando o calor da rocha sob o corpo e o sol
morno no pelo. Fechou os olhos, orgulhoso de estar ali, um lugar onde,havia gerações, felinos do Clã do Trovão vinham se aquecer, e pelo qualtinhamlutadoferozmente.ListraCinzentaseaproximou.–Venham–miouparaosdoisaprendizes.
–Aproveitemosolenquantoestáporaqui.Temospelafrentemuitosdiasfrioseúmidos.–Osjovensdeitaramaoladodosmentoreseronronaramaosentirocalorpenetrar-lhesopelo.–FoiaquiqueRaboVermelhomorreu?–perguntouPatadeSamambaia.–Foi–respondeuCoraçãodeFogo,cauteloso.–EondeGarradeTigrevingousuamortematandoCoraçãodeCarvalho?OpelodeCoraçãodeFogoseeriçoucomalembrançadadescriçãoque
PataNegrafizeradaluta;segundoeleRaboVermelhoforaresponsávelpela
morte de Coração de Carvalho e, então, Garra de Tigre matara RaboVermelho,orepresentantedeseupróprioclã.Eleafastouospensamentosqueoperturbavamesimplesmenterespondeu:–Foisim,nestelugar.–Osaprendizessecalarame,assombrados,olharamparabaixodaencosta.De repente, Coração de Fogo ouviu um barulho. Empinou as orelhas e
sibilou:–Psiu!Oquevocêsestãoouvindo?Osdoisjovensapontaramasorelhasparaafrente.–Achoqueouçopatasarranhando–PatadeSamambaiadissebaixinho.– Pode ser um rato silvestre – murmurou Listra Cinzenta. – Você
conseguedizerdeondevem?–Delá!–miouPatadeCinza,comumpulo.Oarranharsetornoumais
furioso,depoisdesapareceu.– Acho que ele ouviu você – observou Coração de Fogo. Pata de Cinza
ficou desapontada. Pata de Samambaia ronronou, divertido com atrapalhadadairmã.–Nãofazmal–miouListraCinzenta.–Agoravocêssabemqueémelhor
rastejar devagar, especialmente quando se trata de ratos silvestres. Elessãorápidos!–Fiquemquietoseprestematenção–CoraçãodeFogoaconselhou.–Da
próximavezqueouvirmosalgumacoisa,descubramdeondevemoruídoeseaproximembemdevagar.Umcamundongoprovavelmenteouviriaatéofarfalhardapelagemdevocês;assim,deixemquepensequesetrataapenasdoventosoprandopelarocha.Osgatospermaneceramondeestavam,semousarsemexer,atéouvirem
omesmosomdearranhar.Comasorelhasempinadas,CoraçãodeFogoselevantou e rastejou para a frente, uma pata atrás da outra, sem fazerbarulho,atéalcançarabeiradadapequenafissuraquemarcavaafrentedarocha. Então, parou. O barulho continuava. Ele se inclinou até alcançar afissuracomumapatadianteira.Conseguiuapanharumgordoratosilvestrequeseescondianassombraseojogounapedrabrilhante.Oratoguinchouaoaterrissar,masdesmaiounochãoduro,eoguerreiro logoacaboucomele.–Uau!–miouPatadeCinza.–Tambémquerofazerisso!– Não se preocupe; você terá muitas oportunidades. Por ora, vamos
voltaràfloresta–miouListraCinzenta.–Nãovamoscaçarmaisnada?–protestouaaprendiz.
–Vocêouviuo guinchadodaquele rato? –perguntouCoraçãodeFogo.PatadeCinzafezquesim.–Poisbem,todasasoutrascriaturasqueandamporaquitambémouviram.Aspresasagoravãoseesconderporumtempo.Eudeviatê-loapanhadoeliquidadoantesqueeleguinchasse–ronronou.OsbigodesdeListraCinzentasemexeram,divertidos.–Eunãoiadizer
nada.CoraçãodeFogopegoucomabocaocorpodoratosilvestree,juntos,os
gatoscomeçaramadesceraencosta,rumoàfloresta.DepoisdocalordasRochasEnsolaradas,amatapareciagelada,mesmocomaaproximaçãodosol alto. Ele sentiu que felinos haviam recentemente marcado com seusodores a fronteiradoClãdoRio.Adiantedasmarcas, o terreno faziaumdecliveparaencontraraságuas.Uma folha caiu, flanando perto de Pata de Samambaia. O jovem
imediatamente pulou, apanhando-a entre as patas. Ao aterrissar, pareciaorgulhoso.–Muitobem!–exclamouListraCinzenta.–Vocênãoteráproblemaspara
apanharratossilvestres.–Oaprendizficouduplamentesatisfeito.–Belapegada,PatadeSamambaia–miouPatadeCinza,fazendocomo
narizumcarinhonoombrodoirmão,antesdesevirarparaolhar,abaixo,aencostacheiadeárvores.–Orioestácalmohoje–murmurouCoraçãodeFogoentreosdentes,por
causadapresaquetrazianaboca.– É porque está congelado – disse, empolgada, Pata de Cinza. – Estou
vendoentreasárvores!Coração de Fogo deixou cair a presa. – Congelado? Totalmente? –
perguntou, abaixandoos olhospara a encosta.O riobrilhava lá embaixo,gelado, imóvel. Será que a aprendiz estava certa? Os pés de Coração deFogoformigavamdeempolgação.Jamaisviraoriototalmentecongelado.– Podemos dar uma espiada? – pediu Pata de Cinza. Sem esperar
resposta, ela passou pelasmarcas de odores. A animação de Coração deFogo transformou-seempânicoaovera jovemdesaparecerno territóriodoClãdoRio.Elenãopodiachamá-la,nãoqueriaalertarnenhumapatrulhadoClãdoRioquepudesseestarnaárea.Mastambémprecisavatrazê-ladevolta.Deixouoratosilvestrenochãoecorreuatrásdela,seguidodepertoporListraCinzentaeporPatadeSamambaia.Alcançaram a aprendiz na beira do rio, quase totalmente congelado,
exceto por um canal estreito de água escura, que corria depressa entre
duaspontasdegelo.CoraçãodeFogosentiuumtremorao lembrar-sedeGarraBranca. Ia sugerirque saíssemdali quandopercebeuasorelhasdeListraCinzentaretesadas.– Rato-de-água – sibilou o guerreiro cinza. E, sem dúvida, ali estava o
pequenoanimal,correndopelogelo,pertodamargem.Coração de Fogo olhou para os aprendizes, temendo que tentassem
apanharapequenapresa.Masnenhumdosdoispupilossemexeu.Eleficoualiviado por um instante;mas logo seu coração se apertou, ao ver ListraCinzentaprecipitando-sesobreogeloemvelocidadedecaça.–Volte!–sibilou.Tardedemais.Ogelosobaspatasdoamigosequebroucomumterrível
barulho. O gato caiu na água com um grito de alarme. Debateu-seloucamenteporuminstanteantesdedesaparecernasprofundezasfriaseescurasdorio.Pata de Samambaia olhava horrorizado e Pata de Cinza miou com
desespero. Coração de Fogo não se virou para acalmá-la. Estava estático,morto demedo, fitando a água à procura do amigo. Estaria preso sob ogelo?Pisouna superfície fria e escorregadia; era impossível correr sobreela. Voltou para a margem com um pulo. Tomado de pânico, sentiu umrepentino alívio quando viu uma cabeça cinza e encharcada aparecer naágua,bemmaisadiante.Mas o alívio se transformou em alarme quando se deu conta de que
ListraCinzenta estava sendo carregado rio abaixoenquanto se retorcia edebatianaságuasgeladas.Suaspatassemovimentavaminutilmente;todooseuinstintodenadarforaanuladopelacorrentezaferoz.CoraçãodeFogocorreupelamargem,forçandocaminhoentreassamambaias,masoamigo,levadopelorio,seafastavacadavezmais.Derepente,oguerreiroouviuumgritodaoutramargemeparou.Uma
gata esguia, malhada de prateado, tinha pulado no gelo mais abaixo, nadireçãodacorrente.Pisandode levesobreacamadadegelo,eladeslizouatéumpontoàfrentedeListraCinzenta.Impressionado,CoraçãodeFogoobservou-a nadar com firmeza contra a corrente, mantendo-se sobre aágua gelada, confiante, agitando as patas. Quando Listra Cinzenta passoulevadopelorio,agatamalhadaagarrou-lheapelagemcomosdentes.Mas,parapavordeCoraçãodeFogo,opesodeListraCinzentapuxouos
dois gatos para o fundo. Ele começou a correr novamente, com os olhosfixosnorio.Ondeestariam?Foiquandoumacabeça listradadeprateado
apareceuentreaságuasrevoltas,rompendoasondas.Agatanadavacontraacorrente,arrastandocomelaListraCinzenta.CoraçãodeFogomalpodiaacreditarque, tãomagra,pudessenadar carregandoaquelepeso.Comaspatasdianteiras,elasesegurounogelo,namargemondeestavaCoraçãodeFogo, e içou o pescoço para fora, com dificuldade, trazendo o guerreiropreso entre os dentes. Aos tropeços, resvalando, conseguiu sair do rio.Pendurado dentro da água, o corpo mole de Listra Cinzenta virava-se econtorcia-se ao ser atingido pela correnteza,mas a gata o segurava comdeterminação.Coração de Fogo escorregou pela margem, correu pelo gelo e parou
repentinamenteaoladodagata.Semnadadizer,esticou-seeabocanhouoamigo. Juntos, os dois felinos tiraram da água o corpo encharcado,arrastando-oparaabeiradorio.Coração de Fogo inclinou-se sobre o amigo para conferir se estava
respirando. Ficou tonto de alívio ao ver o pelo cinza e lustroso de ListraCinzenta subindo e descendo.O gato tossiu, engasgou e por fim cuspiu aáguadorio.Entãoaquietou-se.–ListraCinzenta!–CoraçãodeFogomiou,aflito.– Estou bem – disse ele com dificuldade. Seu miado era arfante, mas
tranquilizador.CoraçãodeFogosuspirouesentou-se.Olhoubemparaagataprateada.
Ela tinha o odor do Clã do Rio. Depois de vê-la nadar, o guerreiro nãoestavasurpreso.Agatadevolveu-lheoolharcomfrieza,sacudiuocorpoesentou-se,recuperandoofôlegoemmovimentosritmados.Aáguaescorriadeseupelobrilhantecomoseelafosserecobertadepenasdepato.Listra Cinzenta virou-se para sua salvadora. –Obrigado! – disse coma
vozrascante.–Seuidiota–eladisparou,abaixandoasorelhas.–Oqueestáfazendono
meuterritório?–Meafogando?–eleretrucou.Agataprateadamovimentouasorelhas,eCoraçãodeFogoviuumbrilho
de diversão em seus olhos. – Não dá para se afogar no seu próprioterritório?OsbigodesdeListraCinzentarepuxaram.–Ah,masquemiriamesalvar
lá?–devolveuele,rouco.Ouviu-seumlevemiadoatrásdeCoraçãodeFogo.EleseviroueviuPata
deCinzaagachadapertodeumamoitadegrama,maisadiantenamargem.
–OndeestáPatadeSamambaia?–perguntou.– Já vem aí – a jovem respondeu, apontando com o nariz. O irmão se
aproximava,rastejandonervosamente.CoraçãodeFogosuspirouedirigiu-seaoamigo:–Precisamossairdaqui.–Seidisso.–ListraCinzenta fezumesforçoe levantou-se;emseguida,
virou-separaagataprateada:–Obrigado,maisumavez.Ela inclinou a cabeça graciosamente, mas sibilou: – Depressa, vão
embora.–Eolhandosobreoombroacrescentou:–SemeupaisouberquesalveiuminvasordoClãdoTrovão,elemerasgaopeloparafazermantadefilhote!–Então,porquemesalvou?–provocouListraCinzenta.Eladesviouoolhar.–Instinto.Nãopodiaficarolhandoumgatoseafogar.
Agoravão!CoraçãodeFogoselevantou.–Obrigado.Eusentiriaafaltadessabolade
peloseeleseafogasse–disse,cutucandooamigo,queaindanãosacudiraaágua gelada do corpo e estava encharcado até a pele. – Vamos voltar aoacampamento.Vocêestácongelando!–Certo,estouindo!–ListraCinzentamiou,masantesdesubiraencosta
atrásdoamigovirou-separaagata. –Comoé seunome?OmeuéListraCinzenta.– Arroio de Prata – ela respondeu, saltando de volta para o gelo e
atravessandoparaooutroladodocanaldeágua.Os mentores conduziram seus aprendizes pelas samambaias, rumo à
fronteira.CoraçãodeFogonotouqueListraCinzentaolhousobreoombromaisdeumavez.PatadeCinzatambémpercebeu.Aaprendiz levantouorosto,comuma
expressãomaliciosanosolhos.–ComoerabonitaagatadoClãdoRio!Listra Cinzenta deu-lhe um tapinha de brincadeira na orelha e ela se
adiantou,correndo.– Fiquepertodenós –CoraçãodeFogo advertiu, sibilando alto.Ainda
estavamnoterritóriodoClãdoRio.LançouumolharzangadoparaPatadeCinzaquandoaaprendizparouparaesperá-los.Senão fosseporela,nãoestariam ali, e Listra Cinzenta não teria quase se afogado. Olhou para oamigo encharcado. Embora tivesse sacudido o pelo ao máximo, a águaaindapingavaecomeçavaaformargelonapontadeseusbigodes.CoraçãodeFogoapressouopasso:–Vocêestábem?–perguntou.
–Ót…t…timo!–respondeuoamigo,batendoosdentes.–Desculpe–miouPatadeCinzaternamente,quandoacertouopassoe
colocou-seatrásdeCoraçãodeFogo.Ele suspirou: – A culpa não é sua. – O guerreiro sentiu o peso da
preocupação.Comoexplicaraquiloparaoclã?Nenhumapresafrescaparaosanciãos(nãohaviamaistempoparavoltareapanharoratosilvestre)eListraCinzentaencharcado.CoraçãodeFogotremeuaopensarquequaseperderaomelhoramigo.DeugraçasaoClãdasEstrelasporArroiodePrataestaraliparasalvá-lo.–Oriachopertodovaledetreinamentoaindatemáguacorrente–Pata
deSamambaiamiou,pensativo,ládetrás.– O quê? – perguntou Coração de Fogo, acordando dos pensamentos
sombrios.– O clã provavelmente vai deduzir que Listra Cinzenta caiu ali –
continuouojovem.– Podemos dizer que ele estava nos mostrando como pegar peixes –
acrescentouPatadeCinza.–Achoquenenhumgatovai acreditarqueListraCinzentamolharia as
patasdepropósitocomessetempo–CoraçãodeFogoobservou.–MasnãoqueroqueorestodoclãsaibaqueumagatadoClãdoRioteve
quemesalvar!–miouListraCinzenta,comumtoquedoseuvelhohumor.–EnãopodemosdeixarquesaibamqueestávamosdenovonoterritóriodoClãdoRio.Coração de Fogo concordou: – Venham. Vamos correr o resto do
caminho;issovaiajudarListraCinzentaaseaquecer.OsfelinoscorrerampelafronteiradoClãdoRio,passandopelasRochas
Ensolaradas. Quando o sol começou a mergulhar atrás das copas dasárvores,alcançaramnovamenteoacampamento.O pelo de Listra Cinzenta secara um pouco, mas ele tinha gotas
congeladasnosbigodesenacauda.CoraçãodeFogoconduziuogrupopelaentradadetojos.Seucoraçãose
entristeceuaoverGarradeTigrenaclareira,observando-os.O representante fixou o olhar agudo no jovem guerreiro. – Nenhuma
presa fresca? – grunhiu. –Achei que vocês hoje iam ensinar esses dois acaçar.Vocêparecequeandouseafogando,ListraCinzenta.Devetercaídoem algum rio para ficarmolhado assim. – Suas narinas se abriram e ele
esticou o corpo o máximo que pôde. – Não me digam que estiveramnovamentenoterritóriodoClãdoRio!
CAPÍTULO12
CORAÇÃODEFOGOLEVANTOUACABEÇA,prontopara falar,masPatadeCinzaseadiantou.–Aculpaéminha,GarradeTigre.–Audaciosa,encarouograndefelino.–
Estávamoscaçandonoriachocongelado,pertodovaledetreinamento,nacurva do lago profundo. Até aquele pedacinho estava congelado.EscorregueieListraCinzentaveiomeajudar,masogelonãoaguentouseupeso;quebroueelecaiunaágua.–GarradeTigrefitouosolhoslímpidosebrilhantesdagataquandoelaacrescentou:–Ébastantefundo.CoraçãodeFogotevedepuxá-lo.O guerreiro se encolheu ao lembrar que ficara paralisado de terror
quandoviuoamigodesaparecernorio.GarradeTigreassentiucomacabeçaeolhouparaListraCinzenta.–É
melhor você ir verPresaAmarela antesquemorra congelado. –Dizendoisso,levantou-seefoiembora.CoraçãodeFogosuspirou,aliviado.ListraCinzentanãohesitou.Alongacaminhadaparacasanãofizeraseus
dentes parar de tremer. Rumou para a toca da curandeira. Pata deSamambaiaolhouparaPatadeCinzae foiparaoseuninho,comacaudapenduradadeexaustão.CoraçãodeFogoolhouparaaaprendiz:–Vocênãotevenemumpingo
demedodeGarradeTigre?–perguntou,curioso.–Porqueteria?Eleéumgrandeguerreiro.Euoadmiro.Naturalmente,porquenão?pensouCoraçãodeFogo.–Vocêmentemuito
bem–grunhiu,severo,tentandodamelhorformaagircomomentor.–Tentonãomentir.Sópenseiqueaverdadenãoseriamuitoútilnesse
caso.Omentor teve de admitir que ela estava com a razão. Ele balançou a
cabeçadevagar:–Váseaquecer.–Estábem!–PatadeCinzaabaixoua cabeçae saiu correndoatrásdo
irmão.CoraçãodeFogodirigiu-seàtocadosguerreiros.Estavapreocupadocom
afacilidadecomquePatadeCinzainventaraaquelahistóriaparaexplicarporqueListraCinzenta chegaraencharcado.Mas tambémacreditavaqueela fosse honesta e de boa-fé. Pensou em Pata Negra, outro gato de boa
índole.SeráqueahistóriaqueelecontarasobreGarradeTigretermatadoRabo Vermelho também fora inventada dessa maneira, no calor domomento?CoraçãodeFogoafastoua ideia.PataNegraestavaapavoradoquandofaloucomele.Eraevidentequeacreditavanaprópriahistória.Porqueoutromotivoteriatantomedo,apontodeabandonaroclã?O guerreiro escolheu algumas peças de presa fresca e levou-as para a
moitadeurtigas. Instalou-sealido ladoe,pensativo,começouamastigarumcamundongo.AadmiraçãonavozdePatadeCinzaaofalardeGarradeTigre o preocupava. Pelo visto, ele era o único a suspeitar que orepresentantedoClãdoTrovãonãoerabemoqueaparentava.AatitudedeEstrelaAzulparacomGarradeTigrecomcertezanãomudara.Elaotratavacom a mesma confiança e o mesmo respeito de sempre. Com certafrustração,CoraçãodeFogomordeucomvontadeoutropedaçodacomida.Umespirroaltoofezlevantarorosto.ListraCinzentaseaproximava.–Comovocêestá?–CoraçãodeFogoperguntouquandooamigochegou,
cheirandoaumadasmisturasdeervadePresaAmarela.ListraCinzentasentou-sepesadamenteetossiu.– Guardei um pouco de comida para você – Coração de Fogo miou,
empurrando-lheumtordoroliçoeumratosilvestre.–PresaAmareladissequepreciso ficarnoacampamento. Segundoela,
estouresfriado–miouoamigocomavozrouca.–Nãomesurpreende.Oquefoiqueelalhedeu?–Camomilaelavanda–ListraCinzentasedeitouecomeçouamordiscar
otordo.–Issobastaparamim.Nãoestoucommuitafome.Coração de Fogo ficou surpreso. Jamais pensou que o ouviria dizer
aquilo.–Temcerteza?Hámuitoaqui.ListraCinzentafitouotordoenãorespondeu.–Temcerteza?–Oquê?–ListraCinzentafitouoamigocomoolhardistante.–Ah,tenho.Eledeveestarcomfebre,concluiuCoraçãodeFogo,balançandoacabeça.
Bem,aomenoseleaindaestavaali,graçasàgatadoClãdoRio.
***
Alguns dias depois, Coração de Fogo acordou e viu dentro da toca aprimeira neblina da estação sem folhas. Quando saiu, se arrastando,malconseguia ver o outro ladoda clareira.Ouviupassos apressados; Pelode
Ratosurgiudassombras.–GarradeTigrequerfalarcomvocê–elamiou.–Certo,obrigado–elerespondeu,comumsobressaltopercorrendo-lhe
o corpo. Na véspera, escapulira para visitar Princesa. Será que orepresentantetinhapercebido?–Oquefoi?–ouviu-seavozarfantedeListraCinzentaatrásdele.Ogato
cinzasentou-seaoladodoamigo;espirrouebocejou.Coração de Fogo o olhou: – Garra de Tigre querme ver. E você devia
estardormindo.–ElecomeçavaasepreocuparcomListraCinzenta.Jáeratempodeestarrecuperado.–Vocêdescansouontem?–Quantoconsegui,entretosseseespirros.– Então por que não estava no ninho quando voltei do… (Coração de
Fogohesitou, lembrandoquepassaraa tardeconversandocomPrincesa)treinamento?– Você acha que eu consigo algum lugar de paz e silêncio aqui? – ele
apontouatocacomacabeça.–Osguerreirosentramesaemodiainteiro!Descobriumlugarmaiscalmo,sóisso.O gato de pelagem avermelhada ia perguntar onde era, mas Listra
Cinzentafalouprimeiro.–OqueseráqueGarradeTigrequer?AspatasdeCoraçãodeFogoformigavam.–Émelhoreuirdescobrir.Através da bruma, ele via apenas as formas de Garra de Tigre e de
Nevasca, sentados aos pés da Pedra Grande. Quando se aproximou,pararamdefalareGarradeTigregrunhiu.–EstánahoradePatadeCinzaePatadeSamambaiaseremavaliados.– Já?–miou,surpreso,CoraçãodeFogo.Não faziamuito tempoqueos
aprendizestreinavam.–EstrelaAzulquerverificaroprogressodeles.EspecialmentecomListra
Cinzenta estando doente demais para treinar Pata de Samambaia. Se eleestiveratrasado,elaprecisasaber,paraindicaroutromentor.AcaudadeCoraçãodeFogoseagitoupeloaborrecimento.Comcerteza
ListraCinzentalogoestariarecuperado.Seriainjustoconfiarseuprimeiroaprendiz a outro gato. – Tenho levado Pata de Samambaia para treinarcomigoePatadeCinzatodososdias–elerapidamentemiou.Garra de Tigre olhou para Nevasca e concordou: – Sim, mas é sua
primeira vez comomentor. Émuita responsabilidade, e o Clã do Trovãoprecisadeguerreirosbemtreinados.
Eusei,esouapenasumgatinhodegente,nãoumguerreironascidonoclã,Coração de Fogo pensou, amargo. Abaixou o olhar para as patas, queformigavam de ressentimento. Ninguém lhe pedira para tomar conta dePata de Samambaia, e ele estava se dedicando com afinco aos doisaprendizes.GarradeTigrecontinuou:–Mandeosaprendizesnumamissãodecaça
passandopelosPinheirosAltos,distantecomonoLugardosDuas-Pernas.Fiquedeolhoneles,observe-oscaçaremefaçaumrelatório.Meuinteresseésaberquantapresafrescavãosomarànossapilha.–SeashabilidadesdePatadeCinzaempataremcomoentusiasmoque
ela demonstra, haverá muito para comer essa noite. Soube que é umaaprendizentusiasmada–acrescentouNevasca.– É, sim – concordou Coração de Fogo, embora quase não estivesse
ouvindo.Aspalavrasdorepresentantetinham-lheaceleradoocoração.PorqueGarradeTigreoestavaenviandoaoLugardosDuas-Pernas,maisumavez?Suaprópriaavaliaçãoaconteceraexatamentenamesmarota,eGarrade Tigre o vira conversando com um velho amigo gatinho de gente; elecontaraaEstrelaAzul,quequestionaraa lealdadedeCoraçãodeFogoaoclã. O jovem guerreiro sentiu a pelagem ao longo da espinha começar aformigar.EraessaamaneiradeGarradeTigreavisá-lodeque foravistofalandocomPrincesa?Coração de Fogo virou a cabeça e lambeu rapidamente as costas,
abaixando, com a língua, os pelos eriçados. Voltou a retesar o corpo e,calmo,sugeriu:–AsRochasEnsolaradasseriamigualmenteumbomlugarpara testar as habilidades dos aprendizes. Além disso, lá o sol pode terdissipadoumpoucodessabruma.–Não–grunhiuGarradeTigre.–Apatrulhadoamanhecerrelatou ter
sentido odores do Clã do Rio nas Rochas Ensolaradas. Eles podem terrecomeçadoacaçarporlá.–Seusolhosqueimaramderaiva,eelecrispouaboca, revelando dentes afiados. – Precisam ser advertidos para sair daliantesquepossamosusarolugarparatreino.Porora,émaissegurofazeraavaliaçãonosPinheirosAltos.Nevasca concordou com um aceno; as orelhas de Coração de Fogo se
mexeram com a novidade; ele se sentiu desconfortável. O Clã doRio nasRochas Ensolaradas! Que sorte não terem sido localizados por patrulhasinimigasquandoListraCinzentacaiunaágua.– Quanto à bruma – o representante continuou, tranquilo –, caçar em
condiçõesdifíceisvaideixarotestemaisinteressante.–Certo,GarradeTigre–miouCoraçãodeFogo,abaixandoacabeçaem
respeito aos dois guerreiros. – Vou falar com eles. Vamos começarimediatamente.
***
Quando Coração de Fogo explicou a avaliação aos aprendizes, Pata deCinza agitou a cauda e correu em círculos, empolgada. – Uma avaliação!Vocêachaqueestamosprontos?–Claroquesim–elerespondeu,escondendosuaincerteza.–Vocêstêm
trabalhadoduroeaprendemrápido.–Masaneblinanãovaitornaracaçadamaisdifícil?–perguntouPatade
Samambaia.–Hávantagensporcausadoarparado–respondeuomentor.O jovem ficou pensativo; depois seus olhos começaram a brilhar e ele
miou: –Vai sermais difícil farejar a presa,mas também serámais difícilparaapresasentironossocheiro.–Exatamente–concordouCoraçãodeFogo.–Vamosagora?–perguntouPatadeCinza.– Assim que quiserem. Mas vão com calma, não é uma corrida… – As
palavras foram em vão; Pata de Cinza já disparava até a entrada doacampamento.–Vocêstêmatéopôrdosol–lembrouàaprendiz.PatadeSamambaiaolhouparaomentorevirou-separaseguira irmã,dandoumpequenosuspiro.Coraçãode Fogo seguiu os pupilos pelos PinheirosAltos. A camadade
espinhos sob as patas parecia estranhamente macia perto do chãocongelado do resto da floresta. Ele seguiu a trilha de Pata de Cinza atéencontrá-la,ansiosa,detocaianamata.EntãoreconheceuocheirodePatade Samambaia e foi atrás do aprendiz. As trilhas se cruzavam aqui e ali.Percebia,peloodor,ondeosjovensgatostinhamcorridovelozmente,ondehaviamsentado,mesmoondetinhamficadojuntosporcertotempo.LogoCoraçãodeFogoencontrouolugarondePatadeCinzamatarauma
presa,quelevaracomela.Aoseguiratrilhadaaprendiz,sentiaoodordapresamisturadocomodagata.EntãodescobriuondePatadeSamambaiapegara um tordo; havia penas espalhadas por todo lado. Os pupilosestavamcaçandobem.Eletevecertezaquandodetectouumodorfortede
presa fresca. Cavou entre os espinhos nas raízes de um pinheiro. AliencontroupresasenfurnadasporPatadeCinza,queaspegariadepois.Omentor sentiu-se orgulhoso com o trabalho da aprendiz. Ela apanharamuitaspresaseagorasedirigiaparaaflorestadecarvalhosatrásdoLugardosDuas-Pernas.Ele prosseguiu. Um pouco além da beira da floresta de pinheiros,
percebeuocheirodePatadeSamambaia.Era forte,oquesignificavaqueele estava perto. O mentor avançou, sorrateiro, e olhou perto de umcarvalhonovo.Opupiloestavaagachadosobumamoitadeamoreiras,bemdisfarçado entre suas sombras. O guerreiro via-lhe apenas a cauda semovendodeumladoparaooutro,comoseformigasse.Ojovemtinhaoolharfixoemumratodocampo,quesemexiapertodas
raízesdeumaárvore.Esperava,paciente.Ótimo,pensouCoraçãodeFogo,observando-o avançar, um pé de cada vez. As folhas em que pisavamalfaziambarulho.Eleestavatãosilenciosoquantoopróprioratodocampo,quecontinuavaaprocurarcomida,semdenadasuspeitar.Omentorolhavaacenacomarespiraçãosuspensa,lembrando-sedesuaprimeiramissãodecaça.PatadeSamambaiachegoumaisperto.Osuavefarfalhardasfolhassob
aspatasmisturou-se aos outros sons da floresta. Coraçãode Fogo se viutorcendo pelo aprendiz. O jovem, deitado no chão da floresta, estava aapenasumcoelhodedistânciadapresa.Oratodocampocorreuparaumaraiz e olhou à volta. Então, congelou. Percebeu que alguma coisa estavaerrada.Agora!pensouCoraçãodeFogo.PatadeSamambaiapuloueaterrissou
sobreorato,agarrando-ocomaspatasdianteiras.Nãohouvetempoparaapresalutar.Tudoacaboucomumaúnicamordida.O aprendiz levantou a cabeça. O mentor viu a expressão satisfeita no
rosto do jovem ao sentir o odor da presa que fizera. Pata de Samambaiadisparou em seguida, sumindo entre as árvores. Coração de Fogo se deuconta de que estava ansioso por relatar a Garra de Tigre os feitos dosjovens.–Olá!–Avoz fininhaatrásdeleo fezdarumpulonoar.Ele sevoltou
paraela.– Como estamos indo? – perguntou Pata de Cinza, olhando-o de baixo
comacabeçainclinadaparaolado.–Vocênãodeviameperguntarisso!–ralhouomentor,lambendoopelo
arrepiado.–Nãodeviasequerestarfalandocomigo.Nãoestálembradadequeeuaestouavaliando?–Ah!Desculpe.CoraçãodeFogosuspirou.ElejamaisteriaousadoseaproximardeGarra
de Tigre durante sua avaliação. Não desejava assustar Pata de Cinzaexigindoobediência,comoorepresentantefizeracomPataNegra,masumpouquinhoderespeitodevezemquandonãofariamalalgum.Àsvezes,elenemsesentiacomomentordajovem.PatadeCinza fitouo chãoporum instante, depois olhoupara ele com
umaexpressãoconfusa:–Ondeexatamentevocênasceu,aquinoLugardosDuas-Pernas?Aperguntaopegoudespreparado.Eleolhou,nervoso,paraacercados
Duas-Pernas, rezando para que os odores estranhos dos aprendizesmantivessem Princesa em seu próprio jardim naquele dia. – Por que apergunta?–miou,procurandoganhartempo.–GarradeTigremencionouofato,sóisso.–Ajovempareciarealmente
curiosa, mas Coração de Fogo sentiu um quê sombrio de ameaça com amençãodonomedorepresentante.OquemaisGarradeTigreteriafaladosobreeleaPatadeCinza?– Nasci gatinho de gente – ele miou, seguro. – Mas agora sou um
guerreiro.Minha vida é com o clã. Minha antiga vida não era ruim,masacabou;eestoufeliz.– Ah, está bem –miou Pata de Cinza, parecendo não ligar. – Atémais
tarde!–Elagirouocorpoeembrenhou-seentreasárvores.Oguerreiroficousozinhonafloresta;aoolharfixamenteparaacercados
Duas-Pernas,seucoraçãodisparou.Umaluaatrás,suaspalavrasaPatadeCinzaarespeitodeestarcontenteporsuaantigavidaterterminadoseriaminteiramente verdade. Agora não tinha tanta certeza. A pele comichouquando se deu conta de que seus momentos mais felizes nos últimostempostinhamacontecidoaopartilharlembrançascomsuadelicadairmãgatinhadegente.
CAPÍTULO13
OSOLSEPUNHANAFLORESTAeCoraçãodeFogoesperavaaoladodopinheiroonde Pata de Cinza enterrara seu primeiro lote de presa fresca. Ouviupassadas; os pupilos se aproximavam. Traziam na boca as presas,penduradas. Pata de Samambaia mal conseguia carregar a sua, de tãogrande.Omentorsentiu-sealiviado.NemGarradeTigrepoderiacriticarosesforçosdosaprendizes.–Vouajudá-losacarregarolote–ofereceu-seoguerreiro,removendoa
coberta de espinhos de pinheiros do esconderijo de Pata de Cinza. Elecavou,apanhouapresaentreosdentesevoltouaoacampamento.Quandochegaramàclareira,algunsdosfelinosjápegavamsuaporçãode
presas. Garra de Tigre devia estar prestando atenção na volta dosaprendizes, porque se dirigiu a eles assim que colocaram na pilha oresultadodacaçada.–Elespegaramtudoissosozinhos?–perguntou,cutucandoapilhacoma
pataenorme.–Pegaram,sim–respondeuCoraçãodeFogo.–Ótimo.Venha, junte-se amime aEstrelaAzul.Tragaalgumaspresas
paravocê;jáestamoscomendo.Pata de Cinza e Pata de Samambaia olharam com admiração para o
mentor; era um privilégio comer com a líder e o representante do clã.CoraçãodeFogonãopartilhavaaempolgação.TeriapreferidofalarsozinhocomEstrelaAzul.OúltimogatocomquemqueriadividirumarefeiçãoeraGarradeTigre.–Aliás,vocêviuListraCinzenta?–perguntouorepresentante.Coração
de Fogo ficou preocupado. O guerreiro continuou. – Resfriado, ele deviaficarnoacampamento,masnãoovejodesdeosolalto.CoraçãodeFogopassouopesodeumapataparaoutra.SeráqueListra
Cinzentaestavanovamenteprocurandosilêncioepaz?–Não–admitiu.–TalvezestejacomPresaAmarela.–Talvez–repetiuGarradeTigre,aproximando-sedolugarondealíder
comiaumpombogorducho.Coração de Fogo continuou, tentando afastar a preocupação com os
sumiços do amigo. Ao passar, pegou na pilha um pequeno pintassilgo;depois pensou que teria sido melhor um rato silvestre. Como faria o
relatóriocomabocacheiadepenas?–Bem-vindo,CoraçãodeFogo–miouEstrelaAzulquandooguerreiro
sentou-seàsua frente.Ele largouapresanochão,masdecidiuqueaindanãoerahoradecomeçaracomer.–GarradeTigre falouque seusaprendizespegarammuitaspresas–o
olhar era amigável. O representante, ao lado da líder, o observava comolhosmaiscríticos,fazendosuacaudaseagitar.–Éverdade.Elesjamaistinhamcaçadonabruma,masissonãopareceu
desencorajá-los–miouomentor.–ObserveiPatadeSamambaiaenquantocaçavaumratodocampo.Fezumaexcelentetocaia.–EPatadeCinza?–perguntouEstrelaAzul.CoraçãodeFogopercebeuumbrilhode açonosolhosda gata. Estaria
preocupada com as habilidades da aprendiz? Ele respondeu: – Ela estádesenvolvendobemsuaaptidão.Émuitoentusiasmada, issoéevidente,eparecenãotermedodenada.–Vocênãotemequeissopossadeixá-ladescuidada?–Elaérápidaegostadefazerperguntas,oqueatornaumaboaaluna.
Acho que isso acaba por compensar sua… – (Coração de Fogo procurou,ansioso,pelapalavracerta)–avidez.EstrelaAzulbalançouacauda.–Essaavidez,comovocêdiz,mepreocupa
–observou,olhandorapidamenteparaGarradeTigre.–Elavaiprecisarserorientadacomcuidadonotreinamento.–CoraçãodeFogosedesanimou.Alíderestariadescontentecomsuaatuaçãocomomentor?Os olhos de Estrela Azul se suavizaram: – Ela seria um desafio para
qualquer um.Mas é evidente que será ótima caçadora. Você fez umbomtrabalhocomela,CoraçãodeFogo.Comambos,naverdade.–Osolhosdogatobrilharam imediatamente,ea líderprosseguiu:–Vicomoseocupoudo treinamento de Pata de Samambaia sem que isso lhe fosse pedido, equeroquecontinueresponsávelpelotreinamentodosdois,porenquanto.Garra de Tigre desviou o rosto,mas a Coração de Fogo não escapou a
raivaemseuolhar.–Obrigado,EstrelaAzul–miou.– Vejo que seu amigo desaparecido voltou – o representante grunhiu,
semviraracabeça.CoraçãodeFogogirouocorpoeviuListraCinzentaaparecerportrásdo
berçário. – Provavelmente estava apenas procurando paz e sossego –sugeriu. – Ainda está com febre, e não é fácil ficar o dia todo noacampamento.
–Fácil ounão, eledeveria estar concentrado emmelhorar.Não é bomficardoentenaestaçãosemfolhas.PelodeRatoestavatossindonahoradapatrulhahoje demanhã. Só esperoque o Clã dasEstrelas nos proteja datosse verde nessa estação. A doença nos roubou cinco filhotes no anopassado.Estrela Azul concordou, solene, balançando a cabeça cinza. – Vamos
rezar para que essa estação sem folhas não seja tão longa ou tão dura.Nunca é um período fácil para os clãs. – Por um instante, mostrou-semelancólica; então disse a Coração de Fogo: – Pegue esse pintassilgo epartilhecomListraCinzenta.ElevaiquerersabercomoPatadeSamambaiasesaiunaavaliação.–Estábem,obrigado,EstrelaAzul–miouoguerreiro,pegandoaavee
rumandoparaamoitadeurtigas,ondeoamigoseinstalaracomumgranderato do campo. Listra Cinzenta já tinha comidometade da presa quandoCoraçãodeFogochegou.Talvezjáestivesserecuperadodoresfriado.Quandoelecolocouaaveaoladodoamigo,ListraCinzentaespirrou.–Nãomelhorou?– Que nada! – respondeu, de boca cheia. – Acho que vou ter que ficar
maistemponoacampamento.CoraçãodeFogoachouqueeleestavamuitomaisanimadodoqueantes,
mas não quis demonstrar a suspeita, cada vez maior, de que ele estavaaprontandoalgumacoisa.–PatadeSamambaiaestevemuitobemnaavaliaçãodehoje.–Verdade?–ListraCinzentadeuoutramordidanorato.–Issoébom.– É sim; é ótimo caçador. – Coração de Fogo começou a comer o
pintassilgo.Depoisdeumlongosilêncio,perguntou:–Vocêseausentoudoacampamentonosúltimosdias?ListraCinzentaparoudemastigar.–Porqueapergunta?Desconfortável, Coração de Fogo balançou a cauda. – É que você não
estavaaquiquandovolteidapatrulha,ontemànoite,eGarradeTigredissequenãooviadesdeosolaltodehoje.–GarradeTigre?–avozdeListraCinzentademonstravapreocupação.– Eu disse que provavelmente você estava procurando um lugar de
silêncio e paz, ou talvez estivesse com Presa Amarela – miou o amigo,dando outramordida no pintassilgo. – E aí, estavamesmo? – perguntouentreaspenas,desúbitodesesperadoparaqueooutrogatodissesseque
sim,acabandocomadesconfiançadequelheescondiaalgumacoisa.–Bem,obrigadopormeacobertar–ListraCinzentaretrucou,ignorando
apergunta,econtinuouamastigar.Coração de Fogo nada mais falou, embora estivesse morrendo de
curiosidade. Continuava sem saber o que passava pela cabeça do amigoquandoListraCinzentaselevantou,dizendoqueiaparaatoca.–Estábem–miou.–Achoquevouficarmaisumpouco.–ListraCinzenta
acenou coma cabeça e se foi. CoraçãodeFogo roloude lápara cánumalongaespreguiçada; comasgarras, arranhouo chãoedeitoude ladoporuminstante,pensando.ListraCinzentatomaraumbombanhohaviapouco;percebia-sepelocheiro.Estariatentandoesconderalgumodor?CoraçãodeFogo se deu conta de que o amigo admitira abertamente ter saído doacampamento.Mas aonde teria ido, sem poder ou querer lhe contar? Derepentesuaspatasformigaram;esuasprópriasvisitasàPrincesa,logonoterritóriodosDuas-Pernas?Eletambémtinhatomadoumbanhocompletoantesdevoltaraoacampamento,semnadadizeraomelhoramigosobreosencontros.CoraçãodeFogodeuumsaltoesesentou.Haviaalgumacoisasobuma
desuasgarras.Levantouapataeusouosdentesparatirarumamentilho.Velhoemurcho,massemdúvidaumamentilho.Oqueestavafazendoali?SalgueirosnãocrescemnapartedaflorestadoClãdoTrovão;naverdade,osúnicosquejáviracresciampertodorio,noterritóriodoClãdoRio.Eleprendeu a respiração ao sentir o coração acelerar. Aquilo teria caído dopelodeListraCinzenta?Rastejando,entrounatocadosguerreirosedeitou-seaoladodoamigo,
que já dormia. Indagava-se se ele tinhamesmo sido tolo o bastante paravoltarao territóriodoClãdoRio.OolhardePelodeLeopardodepoisdamorte de Garra Brancamostrara que havia contas a acertar. Coração deFogo levantou os ombros e resolveu descobrir exatamente aonde ListraCinzentaestavaindoeporquê.
Quando Coração de Fogo acordou, a toca estava úmida e fria. Umafarejada no ar lhe disse que a chuva estava a caminho. Arrastou-se parafora, ainda bocejando. Não tinha dormido bem, preocupado com ListraCinzenta.Mesmo agora, pensar no amigo sozinhono território doClã doRiofaziaseucorpotremer.–Quefrio,nãoé?–aperguntadeVentoVelozoassustou.Eleolhousobre
o ombro,movimentando a cauda. O guerreiromalhado estava saindo datoca.–Émesmo.–Tudobemcomvocê?Nãopegouoresfriadodoseuamigo,pegou?Pelo
deRato estava lutando comos sintomas hoje demanhã, e Rabo Longo ePataLigeiraespirraramdurantetodootreinamento,ontem.CoraçãodeFogo fezquenão.–Estoubem.Sócansadodaavaliaçãode
ontem.– Ah, Estrela Azul imaginou que isso poderia acontecer. Por isso me
pediu para ajudá-lo com o treinamento de Pata de Cinza e Pata deSamambaiahoje.Vocêseimporta?–Não,atéagradeço.– Então está certo. Encontro vocês no vale depois de comer. Se Pata
Ligeira estiver gripado, o lugar ficará só para nós. Está com fome? –CoraçãodeFogonegou,eVentoVelozsaiuparapegarassobrasdepresasfrescasdavéspera.CoraçãodeFogofoidiretoparaovaleeesperoupelosoutros.Suacabeça
nãoestavalá,masnoamigoque,tinhacerteza,escapariadenovonaqueledia.Umventodechuvacomeçavaabalançarosgalhossemfolhasacimado
valequandoosaprendizeschegaram,seguidosdeVentoVeloz.– O que vamos fazer hoje? – perguntou Pata de Cinza, descendo em
disparadaparaovale.CoraçãodeFogo fitou-acomolhossemexpressão.Elenãopensaraemnada.–Caçar?–PatadeSamambaiaperguntou,cheiodeesperança,seguindoa
irmã.Vento Veloz atravessou o vale e juntou-se a eles. – Que tal praticar
técnicasdetocaia?–sugeriu.–Boaideia–CoraçãodeFogologoconcordou.–Nadaderepetiraquelalição“ocoelhosenteseucheiroantesdevê-lo,
masumcamundongosente seuspassosnochão, antesde farejarvocê”–PatadeCinzachoramingou.VentoVelozasilencioucomumolharevirou-separaCoraçãodeFogo.Ao perceber que o guerreiro esperava que ele tomasse a iniciativa,
Coração de Fogo deu um pulo: – Er… vou começarmostrando amelhormaneira de tocaiar um coelho – gaguejou. Agachou-se e começou a se
moverparaafrente,rápidoepisandodeleve,atéchegaràextremidadedovale.Parouevirou-se,descobrindoqueosoutrostrêsgatosofitavam,semnadaentender.–Temcertezadeque isso enganaumcoelho? –perguntou a aprendiz,
comosbigodesformigando.Omentor ficou confuso por um instante, até perceber que acabara de
demonstrarsuamelhortécnicadetocaiarpássaros.Umcoelhoteriaouvidoseupeloroçarnavegetaçãoatrêsraposasdedistância.Semgraça,olhouparaVentoVeloz.Oguerreiromalhadofranziuocenho.
–Quetaleulhesmostrarcomocaçarummorganho?–PatadeCinzapassouoolharbrilhantedeCoraçãodeFogoparaVentoVeloz.Omentorsuspirouefoiobservar.Osoljáestavaalto,eCoraçãodeFogoaindaachavadifícilseconcentrar
notreinamento.NãoparavadepensarqueListraCinzentaiaescapulirdoacampamento, e estava louco para segui-lo. Finalmente sua inquietude ovenceu.FoiatéVentoVeloze faloubaixinhoemseuouvido:–Estoucomdor de estômago. Você pode assumir o treinamento pelo resto do dia?QueroversePresaAmarelatemalgumacoisaparameajudar.– Achei mesmo que você estava um pouco distraído. Volte para o
acampamento.Levoessaduplaparacaçar.– Obrigado, Vento Veloz – miou, com certa vergonha pelo fato de o
guerreiroteracreditadonelecomtantafacilidade.Atravessou o vale mancando, tentando fingir dor. Assim que se viu a
salvo entre as árvores, disparou rumo ao acampamento. Quando ListraCinzenta voltara na véspera, tinha surgido atrás do berçário. Coração deFogosabia,porexperiência,queaqueleeraomelhor lugarparaescapulirpelafronteirasemsernotado;poraliPresaAmarelaescaparaquandooclãsuspeitouqueelafosseaassassinadeFolhaManchada.Oguerreirorodeouaparteexternadoacampamentoefarejouomurode
samambaia.Seucoraçãoseentristeceuquandosentiuoodordoamigo.Eraporondeelevinhaescapulindo;e,pelocheiro,comfrequência.Pelomenoserarançoso,oquesignificavaqueelenãopassarapelomuronaqueledia.Agachou-se atrás de uma árvore e esperou. A floresta estava ficando
maisescura,poisnuvensdechuvacomeçavamacruzarocéu.Assombrasoescondiamperfeitamente, ele tomouo cuidadode ficarnumaposiçãoemque o vento não o denunciasse. Seu estômago estava realmente doendo,tensodeculpaepreocupação.PartedeleesperavaqueListraCinzentanão
aparecesse; aoutra, queele apenaso conduzisse a algum lugar calmonafronteiradoClãdoTrovão.Seu coração deu um pulo quando ele ouviu um farfalhar no muro de
samambaia.Umfocinhocinza forçavaa folhagem.QuandoListraCinzentaolhou à volta, cauteloso, Coração de Fogo abaixou a cabeça. Depois dealgunsmomentos,ogatoamigopulou,dirigindo-seaovaledetreinamento.A esperança flamejou no peito de Coração de Fogo. Talvez Listra
Cinzentaestivessemelhordoresfriadoetivessedecididoiràsessão.Saiuatrásdoamigo,mantendoumadistânciasegura,confiandomaisnoolfatoquenavisãoparalocalizá-lo.Masquandoatrilhasedesvioudocaminhoquelevavaaovale,soubeque
aesperançaforavã.Comumsentimentodemedo,viuoconhecidomaciçocinzento avultar mais à frente entre as árvores: as Rochas Ensolaradas.Empinouasorelhaseabriuaboca,testandoabrisa,àprocuradecheirosdeinimigos. À beira das árvores, vislumbrou um gato de ombros largosescorregandopelasrochas,rumoàfronteiradoClãdoRio.NãohaviamaisdúvidasobreolugarparaondeListraCinzentasedirigia.Assimqueperdeuoamigodevista,CoraçãodeFogoseadiantoueolhou
encostaabaixo,paraorio.Pelomovimentodavegetação,sabiaondeListraCinzentaestava.EsperavaapenasquenãohouvessealgumguerreirodoClãdoRioobservandotambém.CoraçãodeFogodesceupelavegetação.Orionãoestavamaiscongelado;
eleouviaomovimentodaáguanamargem,batendonaspedras.Diminuiuopassoaochegaràbeiradassamambaiaseolhouparaamargemaberta.ListraCinzentaestavasentadonaspedrasdorio.Olhavaàvolta,comas
orelhas retesadas,mas ao perceber-lhe os ombros relaxados, Coração deFogoentendeuqueoamigonãoestavaàespreitadecaça.Ouviu-seadistânciaochamadodeumgatoestranho.Umapatrulhado
ClãdoRio?OpelodeCoraçãodeFogoarrepiou;porinstinto,seusmúsculosficaramtensos,masListraCinzentanãosemexeu.EntãoCoraçãodeFogoouviuumfarfalharadiantenorio.Prendeuarespiraçãoquandoumrostoapareceunamargemextrema.Quasesembarulho,agataprateadasurgiudavegetaçãoedeslizouparaaágua.Ocoraçãodoguerreiroquaseperdeuumtique-taque.EraArroiodePrata,agataquesalvaraseuamigo!Ela nadava sem dificuldade. Listra Cinzenta se levantou e miou,
encantado, movimentando as pedrinhas com as patas, de ansiedade.Mantendoacaudaalta,foirecebê-lanamargem.
ArroiodePratasacudiuasgotasdapelagem,eosdoisgatoscinza,comdelicadeza, trocaram toques de nariz. Listra Cinzenta esfregou o focinhopeloqueixodaamigaeela,contente,levantouorosto.Agataficounapontadospéseenroscouocorpomagronodofelino.Pelaprimeiravez,elenãoparecia se importar nemumpoucode ficarmolhado, pois ronronou altosuficiente para Coração de Fogo ouvir quando Arroio de Prata apertoucontraeleapelagemúmida.
CAPÍTULO14
OS PELOS DA NUCA de Coração de Fogo arrepiaram de pavor. Como ListraCinzentapodiasertãoidiota?EstavaquebrandotodososartigosdoCódigodosGuerreirosaoencontrarumgatodeoutroclã.–ListraCinzenta!–CoraçãodeFogosibilouaopulardosarbustos.Ocasalgirouocorpoparaencará-lo.Zangada,ArroiodePrataabaixouas
orelhas.ListraCinzentalimitou-seafitá-lo,surpreso:–Vocêmeseguiu!CoraçãodeFogo ignorouomiadoperplexo.–Oqueestá fazendo?Não
sabecomoissoéperigoso?Arroio de Prata falou: – Está tudo bem. A patrulha só passa por aqui
depoisdopôrdosol.– Como pode ter certeza? Até parece que você sabe de todos os
movimentosdoclã!–CoraçãodeFogogrunhiu.Agatalevantouoqueixo:–Naverdade,eusei.MeupaiéEstrelaTorta,o
líderdoClãdoRio.Coração de Fogo congelou: – Que brincadeira é essa? – disparou para
ListraCinzenta.–Nãopodiaterfeitoescolhapior!OgatocinzaencarouCoraçãodeFogoporuminstante;depois,virou-se
paraArroiodePrata:–Émelhoreuir.A jovem pestanejou e esticou a cabeça, tocando a bochecha do amigo.
Eles fecharam os olhos e ficaram parados por ummomento. Coração deFogo observava, com as patas formigando de medo. Arroio de PratacochichoualgumacoisaparaListraCinzentaecadaumfoiparaumlado.Agataergueuacabeça,encarandoCoraçãodeFogocomardedesafio,antesdeescorregardevoltaparaaágua.Listra Cinzenta pulou para o lado do amigo. Nada disseram enquanto
corriam para fora do território do Clã do Rio, passando pelas RochasEnsolaradas.Jápertodoacampamento,ogatocinzadiminuiuopasso.Coração de Fogo fez o mesmo. – Você precisa parar de vê-la – arfou,
menosapavorado,poisjátinhamsedistanciadodafronteiradoClãdoRio;masaindaestavazangado.– Não consigo – respondeu Listra Cinzenta, com voz rouca. E tossiu,
arfando.–Nãocompreendo.Nomomento,oClãdoRioédetodohostilaoClãdo
Trovão.VocêouviuPelodeLeopardodepoisdamortedeGarraBranca.–CoraçãodeFogoretesouocorpo,sabendoquealembrançaseriadoloridapara o amigo, mas agora não podia parar. – Como você sabe que podeacreditarnessagatadoClãdoRio?–VocênãoconheceArroiodePrata–retrucouListraCinzenta,parandoe
sesentando.Tinhaosolhosvidradosdedor.–EnãoprecisamelembrardeGarraBranca.Vocêachaqueéfácilsaberquesouresponsávelpelamortedeumcompanheirode clãdeArroiodePrata? –CoraçãodeFogobufou,impaciente.GarraBrancaeraumguerreiro inimigo,nãoumcompanheirodeclã!MasListraCinzentacontinuou:–ArroiodePratacompreendequefoi um acidente. A garganta do precipício não era lugar para uma luta.Qualquergatopodiatercaídoali!Coração de Fogo circulou o amigo quando Listra Cinzenta começou a
lamberopelo,paraeliminarocheirodeArroiodePrata.–Nãoimportaoqueelapensa!EsualealdadeaoClãdoTrovão?–cobrou.–Aovê-la,vocêestáquebrandooCódigodosGuerreiros!Listra Cinzenta parou de se lamber e sibilou: – Você acha que não sei
disso?DuvidadaminhalealdadeaoClãdoTrovão?–Oquemaispossopensar?Vocênãopodevê-lasemmentiraoclã.Ese
travarmosumabatalhacomoClãdoRio?Jápensounisso?–Vocêsepreocupademais.Issonãovaiacontecer.AgoraEstrelaPartida
sefoi,eoClãdoVentovoltou;haverápazentreosclãs.–OClã doRio nãoparece estar agindodemaneira pacífica. Você sabe
queestãocaçandonasRochasEnsolaradas,nossoterritório.– Eles caçam ali desde antes de eu nascer – disparou Listra Cinzenta,
virando-separalamberabasedacauda.Coração de Fogo não parava de andar de um lado para o outro. Listra
Cinzenta parecia não entender o que estava fazendo. – Certo. E se umapatrulhadoClãdoRioapanhavocê?–ArroiodePratanãovaideixarissoacontecer–ogatocinzarespondeu,
entrelongaslambidasnacaudapeluda.– Pelo amor do Clã das Estrelas! Você não está nem um pouco
preocupado?–CoraçãodeFogoexplodiu,furioso.Listra Cinzenta parou de se lavar e olhou para o amigo. – Você não
compreende?O Clã das Estrelas deve ter planejado isso. Arroio de Pratadesejamever,mesmodepoisdoqueaconteceucomGarraBranca.Pensamosdamesmaforma;écomosetivéssemosnascidonomesmoclã.
CoraçãodeFogopercebeuqueerainútilcontinuaradiscutir.–Vamos–miou,comavozpesada.–Émelhorvoltarmosantesquesintamnovamenteasuafalta.ListraCinzentaselevantou.Ladoalado,osamigoschegaramaoaltoda
ravinaeobservaramoacampamentoabaixo.Umpensamentoecoavasemparar na cabeça de Coração de Fogo: comoListra Cinzenta podia amar afilhadeEstrelaTortaepermanecerlealaoClãdeTrovão?OlhouparaListraCinzentaecomeçaramadesceraencostaíngreme,de
voltaparacasa.Entraramfurtivamentenoacampamento,damesmaformaqueListraCinzentahaviasaído.CoraçãodeFogoprendeuarespiraçãoaoseespremerpelomuroda fronteira, zangadocomoamigopor fazê-lo seesconderassim.SeucoraçãoseentristeceuquandorodearamoberçárioeviramNevascaseaproximando.–ListraCinzenta,vocêdeviaestardescansando,nãoandandoporaí.Sua
tosse já começoua seespalhar.Nãoqueremosquechegueaoberçário!–advertiu o guerreiro. O gato cinza concordou, dirigindo-se à toca dosguerreiros. –Evocê– (asorelhasdeCoraçãodeFogo semovimentaram,nervosas,quandoogatãobrancofaloucomele)–nãodeviaestartreinandoseusaprendizes?– Voltei para pegar alguma coisa com Presa Amarela para dor de
estômago–gaguejou.– Bem, então vá e pegue. E, assim que terminar, seja útil e consiga
algumaspresas frescas.Estamosnaestaçãosem folhas;nãopodemos terjovensguerreirosandandopeloacampamentosemfazernada!– Certo, Nevasca. – Coração de Fogo se virou, aliviado de escapar de
outrasperguntas,edirigiu-separaatocadePresaAmarela.A curandeira estava ocupada,misturando ervas. À sua frente, diversas
pilhas de folhas. Coração de Fogo a observou por um instante, semnadadizer.Estavatriste,arrasadodepoisdadiscussãocomoamigo.DesejouquefosseFolhaManchadaqueestivessealimisturandoervas.Presa Amarela levantou o olhar. – Meus estoques estão baixos. Posso
precisardeajudaparacompletá-los.Coração de Fogo não respondeu. Estava se perguntando se devia
confidenciar suas preocupações a respeito de Listra Cinzenta, quando agatainterrompeu-lheospensamentos.–Parecequehá tossebrancanoacampamento–grunhiuacurandeira,
cutucando,impaciente,umafolhaseca.–Doiscasosnestamanhã.
–PataLigeira?Avelhacurandeirabalançouacabeçanegativamente.– Ele teve apenas um resfriado. É o filhote de Cauda Sarapintada. E
Retalho. No momento não é sério, mas precisamos nos concentrar emfortaleceroclã.Aestaçãosemfolhassempretrazaameaçadatosseverde.–Oguerreirocompreendeuapreocupaçãodagata.Atosseverdematava.PresaAmarelavoltouaolharparaele:–Oquevocêtem?–Ah,nada,ésóumadordeestômago,masnãofazmalsevocêestiver
ocupada.–Dóimuito?–Não–eleadmitiu,incapazdeenfrentarseuolhar.–Entãoretornequandodoermuito.–Acurandeiravoltouàsuamistura
deervas.CoraçãodeFogovirou-separasair,maselaochamou:–Porfavor,assegure-se de que Listra Cinzenta permaneça na toca. Ele é um jovemforte.Seestivessedescansando,atossejáestariamelhor.Acaudadoguerreiroagitou-se,nervosa.TeriaelaadivinhadoqueListra
Cinzentaandavaescapulindodoacampamento?Eleesperou,comocoraçãoaospulos,queacurandeirafalassemaisalgumacoisa,maselavoltouaseconcentrarnaservas;então,elesefoi,semfazerbarulho.Estavaescurecendo, eCoraçãodeFogosabiaque restavapouco tempo
paracaçar.Logopegouummorganho,umpintassilgoeumcamundongo,mashesitouantesdevoltaraoacampamento.Seus temoresemrelaçãoaListraCinzentaerammaisimportantesquearepreensãodeNevascaseelenãolevassemaispresasatempodojantar.Tomouumadecisão:seoamigonãoouviaarazão,talvezArroiodePrataouvisse.Escondeuacaçasoba raizdeumaárvore, cobrindo-acom folhas.Pela
segunda vez naquele dia, dirigiu-se às Rochas Ensolaradas. A chuva queameaçara durante todo o dia, finalmente, começou a cair. As gotasretumbavamcomforçanassamambaiasquandoCoraçãodeFogorastejoupelaencostasombriarumoaorio.Mesmonachuva,erafácilperceberoodordeArroiodePrata.Eleseguiu
a trilha até onde encontrara o casal. Alerta, foi para a margem. A águaescura semovimentando semparardava-lhe calafrios.Nãoqueria entrarnorio.SeupelonãotinhaaproteçãooleosadosfelinosdoClãdoRio,eaestaçãosemfolhasnãoeraumaboahoraparaseencharcar.Derepente,ficouestático.SentiaoodordosguerreirosdoClãdoRio!Agachou-se e olhou para a outra margem; Arroio de Prata caminhava
entreosgalhosdeumsalgueiro.Atrásdela,doisfelinosdeseuclã,umdelesumguerreirodeombrosenormeseorelhascomcicatrizesdebatalhasque,desconfiado,farejavaoar,vasculhandoaoredor.CoraçãodeFogoouviuosanguelatejarnasorelhas.Seráqueoguerreiro
tinhapercebidoseucheiro?
CAPÍTULO15
MUITO, MUITO SILENCIOSAMENTE, Coração de Fogo recuou e entrou pelassamambaias.OguerreirodoClãdoRiotinhaparadodefarejar,masaindaolhavaaoredor.Mantendo-se agachado, Coração de fogo se virou e começou a rastejar
para longe dali. Ouviu uma pancada na água. Um gato tinha escorregadoparaorio.CoraçãodeFogoolhousobreoombro,comocoraçãoacelerado.Atravésdafolhagem,viuumacabeçaprateadacaminhandonasuadireção.ArroiodePrata!Mas e os outrosdois gatos?Comcuidado, caminhou emcírculos,farejandooarcomabocaaberta.Nenhumcheirodelesporperto.Deviam ter continuado. Voltou a olhar para a gata prateada, quenadava,determinada, pelo rio. Por um instante, pensou que podia ser umaarmadilha e que talvez fossemelhor correr,mas estava preocupado comListraCinzenta,porissodecidiuficar.Agataprateadasubiunamargemesibiloubaixinho:–CoraçãodeFogo,
sei que está aí. Sinto seu cheiro! Está tudobem.PelodePedra e PatadeSombrajáforam.Oguerreironãosemexeu.–CoraçãodeFogo,eunãodeixarianadaacontecercomomelhoramigo
deListraCinzenta.–Elaestavaimpaciente.–Acredite,peloamordoClãdasEstrelas!Devagar,elesaiudoesconderijo.ArroiodePrataofitou,comacaudaagitada:–Oqueestáfazendoaqui?–Procurandovocê–elemurmurou,desconfortavelmentecientedeque
estavaemterritórioinimigo.Assustada,elamexeuasorelhas.–ListraCinzentaestábem?Piorouda
tosse?CoraçãodeFogoficouirritadocomapreocupaçãodela.Nãoqueriasaber
quantoaquelagataseimportavacomseumelhoramigo.–Eleestábem!–grunhiucomraiva,esquecendo-sedaprudência.–Masvaideixardeestarsecontinuarseencontrandocomvocê!ArroiodePratasearrepiou.–Nãopermitireiquenadaderuimaconteça
comele.– Émesmo? – Coração de Fogo bufou. – E o que você pode fazer para
protegê-lo?–Soufilhadeumlíderdeclã.–Issolhedáopoderdecontrolarosguerreirosdoseupai?Vocêépouco
maisqueumaaprendiz!–Comovocê!–elasibilou,indignada.– É verdade. E por isso não tenho certeza de poder proteger Listra
Cinzentadaraivadonossoclã,oudoseu,sedescobriremquevocêsestãoseencontrando.Arroio de Prata tentou encará-lo, mas tinha os olhos nublados de
emoção. –Não posso parar deme encontrar com ele –miou. Sua voz sesuavizounummurmúrio:–Estouapaixonada.–Masasituaçãoentrenossosclãsjáétensabastante!–CoraçãodeFogo
estavazangadodemaisparasentirqualquercompaixão.–SabemosqueoClãdoRioestácaçandoemnossoterritório…Obrilho desafiador voltou aos olhos deArroio de Prata. – Se o Clã do
Trovão compreendesse a razão, permitiria que caçássemos em seuterritório!–Qualéomotivo?–oguerreiroperguntou,devolvendooolhar.–Meuclãestáfaminto.Nossosfilhoteschoramporqueasmãesnãotêm
leite.Osanciãosestãomorrendoporfaltadepresas.Coração de Fogo fitou-a, surpreso. –Mas vocês têmo rio! – protestou.
TodososgatossabiamqueoClãdoRiodesfrutavadamelhordascaças:ospeixesdorio,alémdaspresasdasflorestasnoscamposmaisadiante.–Nãoésuficiente.OsDuas-Pernastomaramnossoterritóriorioabaixo.
Construíram um acampamento durante o renovo e lá ficaram enquantohavia peixes.Quando foramembora, a pesca se tornou escassa. E, comodano que causaram à floresta, é difícil conseguir até mesmo as presassilvestres.Coração de Fogo sentiu pena, apesar da raiva. Podia imaginar as
dificuldadesqueoClãdoRioestavaenfrentando.Estavamacostumadosauma dieta rica em peixes, sempre engordando durante o renovo, parapoderresistiràsluasdifíceisdaestaçãosemfolhas.Fitouagatacomnovosolhos. Ela não era elegante, percebeu; estava magra. Com a pelagemmolhada grudada no corpo, suas costelas se tornavam bem salientes. Derepente, entendeu a hostilidade de Estrela Torta para com o plano deEstrela Azul na Reunião. – Por isso vocês não queriam que o Clã do Riovoltasseparacasa!
–Há coelhos aosmontes na charneca o ano todo – explicouArroio dePrata. – Eles eram nossa única esperança de sobreviver à estação semfolhassemperderfilhotes.–Elabalançouacabeçadevagar,antesdeolharnovamenteparaoguerreiro.–ListraCinzentasabedetudoisso?ArroiodePrata assentiu. CoraçãodeFogoolhoupara ela, sem saber o
que dizer por um instante. Mas nem ele nem o amigo podiam deixaraqueles sentimentos interferirem no Código dos Guerreiros. – Quaisquerquesejamosproblemasdoseuclã,vocêaindaprecisaparardeverListraCinzenta.–Não–elaretrucou,levantandooqueixo.Seusolhosbrilharam.–Como
podeonossoamorcausaralgummal?Coração de Fogo devolveu-lhe o olhar. Outro tremor percorreu-lhe a
espinhaquandoachuvafriapenetrouemsuapelagemespessa.Derepente,agatasilvou,fazendoojovemguerreiropular:–Vocêprecisa
irembora,apatrulhavemaí.CoraçãodeFogoouviuumlevefarfalhardooutroladodorio.Seriainútil,
eperigoso,ficarmaistempo.Obarulhoseaproximava.Semsedespedir,elevoltouaseenfiarpelassamambaiasmolhadas,rumoaoacampamento.Antes,porém,precisavabuscaraspresasqueesconderasobocarvalho.
Nomeiodocaminho,ocheirodeumatrilha frescadosDuas-Pernaso fezparar, lembrando-se de Princesa. Será que haveria tempo para seguir atrilhaatéoLugardosDuas-Pernas?Queriasaberseelajátiveraosbebês.Mas provavelmente, àquela altura, Princesa estaria segura em seu ninhodos Duas-Pernas, e o clã precisava das presas. Com um espasmodesconfortável,CoraçãodeFogosedeucontadequeListraCinzentanãoeraoúnicofelinodivididoemsualealdade.Achuvacomeçouapingardapontadeseusbigodes.Elesacudiuasgotas
erumouparapegaraspresasescondidas.O acampamento estava silencioso quando chegou, os gatos protegidos
nastocas.CoraçãodeFogoatravessouaclareiralamacentaecolocouacaçanapilha.Pegouumapeçaefoiparaatocadosguerreiros.Nãohaviacomocomerdoladodeforanaquelanoite.Enfiou a cabeça para dentro da toca. Para seu alívio, Listra Cinzenta
dormia. O amigo poderia realmente melhorar se não estivesse rodandopelaflorestaatrásdeArroiodePrata.–PresaAmarelaaindanãopegounenhumapresa–ouviu-sedassombras
omiadodeNevasca. –Esteveocupadademais.Achoqueela apreciariaocamundongoquevocêestálevando.Coração de Fogo concordou e voltou a sair. Se a curandeira estava
ocupada demais para ir atrás de comida, isso só podia significar que adoençaestavaseespalhandonoacampamento.CoraçãodeFogoatravessoua clareira correndo, parando apenas para apanhar da pilha outrocamundongo,antesdeseenfiar,apressado,pelotúneldetojos.Umfilhotemalhadorepousavanumninhodemusgonassamambaias,na
beiradadaclareira.PresaAmarela,ajoelhadaaseulado,tentavapersuadi-loacomeralgumaservas.Ogatocheiravaaservas,dolorido,piscandocomolhosmarejadosenarizescorrendo.CoraçãodeFogopercebeuqueaqueledeviaserofilhotecomtossebranca.PresaAmarelasevirouaoouviroguerreirochegar.–Paramim?–miou,
olhando para os camundongos que ele trazia pendurados na boca. Oguerreiroassentiuesoltouaspresasnochão.–Obrigada.Jáquevocêestáaqui,porquenãotentaconvenceressefilhoteatomaroremédio?–Elafoipegar os camundongos, movimentando-se com dificuldade por causa daantigalesãonoombro;faminta,começouamorderumdeles.Coração de Fogo se aproximou do filhote. O pequeno ergueu os olhos
para ele, abrindo a boca pequenina numa tosse rouca e dolorida. Comdelicadeza,CoraçãodeFogoempurrou-lheumaervaverdeemiúda. – Sequiser ser um guerreiro, terá de se acostumar a engolir essas coisashorríveis.QuandofizeraviagemàPedradaLua,terádecomerervasmuitopiores.Ofilhoteoencaroucomarinterrogativo,osolhossemicerrados.–Considereissocomoaprendizado–CoraçãodeFogoincentivou.–Para
quandosetornarumguerreiro.Ofilhoteseaproximoue,fazendoumatentativa,abocanhouaerva.Oguerreiroronronou,encorajando-o.PresaAmarelasurgiu.–Muitobem–elamiou.Comonariz,acurandeira
sinalizouparaCoraçãodeFogoquequeriafalarcomele,queaseguiuatéoabrigonapedraaltaondeeladormia.Achuvacontinuava,eapelemalhadadecinzadePresaAmarelaestavaencharcada;acaudapesadaarrastavanochão.–EstrelaAzulestácomatossebranca–acurandeiramiou,séria.–Masatossebrancanãoémuitograve,é?A gata balançou a cabeça: – Chegou muito depressa e a afetou
seriamente. – O estômago de Coração de Fogo se contraiu quando elelembrouquesobravampoucasvidasàlíder.–Euaaconselheiaficarlongedos gatos doentes,mas ela queria vê-los – a curandeira continuou. – Elaestádormindoemsuatoca.PeledeGeadaestálá.OmedonosolhosdePresaAmarelafezCoraçãodeFogoseperguntarse
ela sabia a verdade sobre as vidas da líder. O guerreiro presumira ser oúnico felino no acampamento com quem a líder partilhara o segredo. Oresto do clã pensava que lhe restavam três vidas, mas talvez umacurandeirasoubesseessascoisasporinstinto.Averdadeeraque, seEstrelaAzulperdesseessavida, sobrariaapenas
uma.
CAPÍTULO16
ACHUVA CONTINUOU PELA NOITE, até amanhã seguinte.No sol alto, asnuvenscomeçaramaseespalhar.Havianaclareiraumar lúgubreenquantooclãesperavanotíciasdalíder.Coração de Fogo rastejou pelo trecho de amoreiras da fronteira, onde
estavaabrigadodesdeoamanhecer,edirigiu-seàtocadeEstrelaAzul,aoladodaPedraGrande.Nãoouviunenhumruídovindoládedentro.Quandosevirouparairembora,encontrouPeledeSalgueirolevandocomidaparaoberçário.Elainclinouacabeçaparaolado,comarinquiridor.O guerreiro sabia que ela esperavanotícias deEstrelaAzul. –Nadade
novo,sintomuito–disseele,encolhendoosombros.CoraçãodeFogoderaaPatadeCinzaeaPatadeSamambaiaumdiade
descansodotreinamento.Eleosviaagora,deitadosdoladodeforadatoca,comexpressãoaborrecida. Sabiaqueestavamdecepcionados,masqueriapermanecernoacampamentoenquantoEstrelaAzulestivessedoente.Pelomenos Garra de Tigre não estava ali para criticar a decisão. O granderepresentantesaíracomapatrulhadoamanhecer.De repente, o líquen na toca da líder semovimentou e Pele de Geada
surgiu. Ela atravessou a clareira correndo até a toca de Presa Amarela evoltouemalgunsmomentos,seguidapelacurandeira.CoraçãodeFogosaltouparaatocadeEstrelaAzulnoexatomomentoem
quePeledeGeadaePresaAmarelaultrapassaramacortinadelíquen.Ficousentadonaporta,comocoraçãoaospulos.PeledeGeadacolocouorostoparafora.–Oquefoi?–CoraçãodeFogoperguntou,comavoztremendo.Pele deGeada fechouos olhos, desolada. – Ela está coma tosse verde.
Fiquedeguardaenãodeixeninguémentrar.–Agatavoltouparadentro.Oguerreiroficouimóvel,tomadopelochoque.Tosseverde!EstrelaAzul
corriamesmooriscodeperderoutravida.Um grito agudo no exterior do acampamento atraiu seu olhar para o
túneldetojos.PatadePoeira irrompeunaclareiraeparouderepenteaoseulado.–VimdapartedeGarradeTigre–arfou.–TenhoumamensagemparaEstrelaAzul.–Elaestádoente.Vocênãopodeentrar–CoraçãodeFogomiou.
PatadePoeirabalançouacauda,impaciente:–GarradeTigreprecisavê-lanoCaminhodoTrovão.Éurgente.–Qualéoproblema?Ojovemoencarou:–GarradeTigrechamouEstrelaAzul–debochou.–
Nãoumgatinhodegentefingindoserguerreiro!Numareaçãodefúria,CoraçãodeFogomostrouasgarras.–Elanãopode
sair do acampamento – grunhiu, abaixando as orelhas e bloqueando aentradadatocadalíder.– Coração de Fogo está certo. – Ouviu-se o miado severo de Presa
Amarela,quesaíradatocadalíder.PatadePoeiraolhouparaacurandeira,encolhendo-sesoboolharcorde
laranja.–GarradeTigreencontrousinaisdeguerreirosdoClãdasSombrasnonossoterritório–miou.–Invadiramnossaszonasdecaça!Apesar de temer por Estrela Azul, Coração de Fogo sentiu o lábio se
crispar de raiva. Como ousavam? Depois de tudo o que o Clã do Trovãofizeraporeles?MasPresaAmarelanãoestavainteressadanorelatóriodePatadePoeira.
Voltou-separaoguerreiro,comosolhosassustados:–CoraçãodeFogo,medigasehágatárianoLugardosDuas-Pernas.–Gatária?–PrecisodelaparaEstrelaAzul.Éumaervaquenãousohámuitasluas,
masachoquevaiajudá-la.–CoraçãodeFogoconcentrouaatençãonagata,quecontinuou.–Éumaervacomfolhasmaciasecheiroirresistível…Elea interrompeu:–Claro, seiondeencontrar! – Jamaisviraaervana
floresta,mas,quandofilhote, tinhabrincadoemumaplantaçãodegatárianacasadosDuas-Pernasondevivia.–Ótimo.Precisodomáximoquevocêpudertrazer,erápido.–EGarradeTigre?–perguntouPatadePoeira.– Nomomento, ele vai ter que cuidar do assunto sozinho! – disparou
PresaAmarela.PatadeCinza,queosobservavadotocodeárvore,aproximou-secomum
pulo. – Cuidar de que assunto sozinho? – miou, empolgada. Coração deFogoagitouacauda,sinalizandoparaqueelasecalasse.PatadePoeiraaignorou:–OClãdasSombraspodeestaragoranonosso
território–ciciou.PatadeCinzaarregalouosolhos,masseguroualíngua.
A curandeira fez uma pausa para pensar. – Onde está Nevasca? –perguntou.–PatrulhandoasRochasEnsolaradascomPatadeAreiaePelodeRato–
respondeuPatadePoeira.PresaAmarelabalançouacabeça.–ComEstrelaAzuldoenteeCoração
de Fogo apanhando ervas, não podemos nos arriscar a mandar maisguerreirosparaforadoacampamento.SeoClãdasSombrasestánonossoterritório,podemnosatacaraqui. Já fizeram issoantes– lembrou, comosemblantesério.– Se eu conseguir a gatária rapidamente – Coração de Fogo opinou –,
posso encontrar Garra de Tigre depois e trazer a mensagem dele paraEstrelaAzul.OsolhosdePatadePoeirachisparam:–MaselequerqueEstrelaAzul
vejaossinaiscomseusprópriosolhos.OClãdasSombrasdeixourestosdepresasfrescasnonossoladodoCaminhodoTrovão!PresaAmarelasilenciouoaprendizcomumgrunhido.–EstrelaAzulnão
precisa ver os sinais – ralhou. – A palavra de seu representante tem debastar.–GarradeTigresóprecisasaberqueelanãopodeir–miouCoraçãode
Fogo.–Levareiamensagemaeledepoisdecolheragatária.Ondeeleestá?–Eumesmo levo!–PatadePoeiradisparou, lançando-lheumolharde
puro ódio. – Você acha que émelhormensageiro do que eu por ser umguerreiroeeuumaprendiz?MasPresaAmarelanãotinhatempoparadiscussões.–Oclãvaiprecisar
deproteçãoenquantoCoraçãodeFogoestiver fora!–ciciouparaPatadePoeira,abaixandoasorelhas.–Essatarefanãoéimportantesuficienteparavocê?OndeestáGarradeTigre?– Ao lado do freixo queimado que fica sobre o Caminho do Trovão –
respondeuPatadePoeira,mal-humorado.–Certo–grunhiuPresaAmarela.–Agoravá,CoraçãodeFogo!Depressa!Aoatravessaraclareiraemdisparada,ofelinoouviupequenaspassadas
apressadas.–CoraçãodeFogo,espere!–Volteparasuatoca,PatadeCinza–miousobreoombro,semdiminuir
opasso.– Mas eu poderia levar a mensagem a Garra de Tigre enquanto você
colheagatária!
Ogatoparouevirou-separaajovem:–PatadeCinza,seháguerreirosdoClã das Sombras por aí, você precisa ficar no acampamento. – Ela ficouarrasada,mas Coração de Fogo não tinha tempo para se preocupar commelindres. – Volte para sua toca – grunhiu. Sem esperar pela reação daaprendiz,saiudoacampamento.CorreupelosPinheirosAltoseseembrenhoupelavegetaçãoqueficava
portrásdoLugardosDuas-Pernas.Aosubirnacercaquedemarcavasuaantiga casa, o cheiro familiar do jardim entrou-lhe pelas narinas. Aslembranças inundaram-lhe amente, deixando-o tonto por ummomento.Pensou nas tardes ensolaradas em que se divertia no jardim com osbrinquedos que os Duas-Pernas ofereciam a ele. Quase esperou ouvi-lossacudir a caixa de ração e chamá-lo por seu nome de gatinho de gente.Pensou,então,emEstrelaAzul,lutandocontraatosseverde.CoraçãodeFogopuloudacercaparaojardim,atravessandoagramaaté
o lugar onde ficava a gatária. Inalou o ar comvontade, de boca aberta, erespiroualiviado.Ocheiroatraenteaindaestavaporali,emalgumlugar.Andouaolongodafileiradeplantas,farejandooar.Nãoviaagatária,e
se aproximava cada vez mais do seu antigo ninho dos Duas-Pernas.Diminuiu o passo. Odores da infância se misturaram com o cheiro daplanta,deixando-oconfuso.Elebalançouacabeçaparacolocarasideiasemordemeseconcentrou
nocheirodagatária.Foiatéumgrandearbusto,deondeaindapingavamgotas da chuva da noite, e encontrou uma plantação da erva macia echeirosa.Ageadarecentemataraalgumasfolhas,masgraçasàproteçãodoarbusto,aindahaviasuficienteparaPresaAmarelausar.CoraçãodeFogopegouquantopôdecarregar.Osaborseespalhava,delicioso,emsuaboca,maseleteveocuidadodenãomastigar,pormaisqueodesejasse.EstrelaAzulprecisariadecadagotadopreciososuco.Comabocarepletadeerva,saiucorrendodojardim.Pulouacercaese
enfiou pela floresta, ignorando as amoreiras que lhe arranhavam o pelo.Pareciaqueseuspulmõesiamexplodir;comabocafechadapara levarasfolhas,sópodiarespirarpelonariz.PresaAmarelaoesperavanotúneldetojos.Ogatodeixouaservasaos
pés da gata e, arfando, precisou aspirar uma boa quantidade de ar.Agradecida, a curandeira disparou com as folhas para a toca de EstrelaAzul.Ao se sentar para tomar fôlego, Coração de Fogo sentiu o cheiro de
empolgação de Pata de Cinza no túnel de tojos. Farejou o chão ao redor.Será que a pupila deixara o acampamento, mesmo depois de ele tê-laadvertidosobreosguerreirosdoClãdasSombras?Coração de Fogo saiu correndo para a toca dos aprendizes e meteu a
cabeçaládentroparaolhar;PatadeSamambaiadormia,sozinho.–OndeestáPatadeCinza?–eleperguntou.Ojovem,sonolento,levantouacabeça.–Hã?Oquê?–PatadeCinza!Ondeelaestá?–Nãosei–oaprendizrespondeu,confuso.O guerreiro passou os olhos pela clareira. Pele de Geada andava de lá
paracádoladodeforadatocadeEstrelaAzul,opeloencrespadodetantaagitação.Coração de Fogo ficou pensando no que fazer. Não tinha tempo para
procurarPatadeCinzaenãoqueriacontaraosoutrosguerreirosqueelaestavadesaparecida.ListraCinzenta!,pensou,derepente.Oamigopoderiaprocurá-laenquantoeleiaencontrarGarradeTigre.Correuparaatocadosguerreiros.O ninho de Listra Cinzenta estava vazio. Uma onda de raiva invadiu
CoraçãodeFogo.Ondeestavaoamigoquandoprecisavadele?Comosenãosoubesse!Bufou, zangado.PatadeCinza teriade sedefender sozinhaatéque ele encontrasse o representante para lhe contar que Estrela Azulestavadoente.Coração de Fogo atravessou de volta o túnel e começou a caminhada
rumoaoCaminhodoTrovão.Seguindoatrilhapelalateraldaravina,rumoàfloresta,identificounoarocheirodePatadeCinza.Eladeviaterpassadopor ali. Claro! Fora sozinha se encontrar com Garra de Tigre. O pelo naespinhadogatosearrepioudeangústiae frustração.Comopodiaser tãotola?QuandocontornouasRochasdasCobras, começouasentirocheirodo
CaminhodoTrovãoeaescutarorugidodeseusmonstros.Derepente,umguinchoalto,ensurdecedor,vindodolimitedasárvores,
fezseusanguegelarnasveias.Eraomesmogritoqueeleouviraemsonhos.Saiucorrendoeparouderepentenagramaque ladeavaoCaminhodo
Trovão.Desesperado, olhouparaum lado eparao outro e viuum freixoqueimadoporumraio.Deviasero lugarondePatadePoeiradisseraqueGarra de Tigre estaria esperando por Estrela Azul. Mas o representanteaindavinhaaolonge,caminhandosempressaatéofreixo.
CoraçãodeFogocomeçouacorrer.Agramaali eramuitoestreita,malcabia um coelho, mas ele continuou. Sem diminuir o passo, gritou paraGarradeTigre:–Vocêouviuaquilo?–Masorugidodeummonstroqueseaproximava
abafousuaspalavras.CoraçãodeFogoseencolheu, esperandoobarulho sumirparavoltara
chamarGarradeTigre.Entãopercebeualgumacoisaaoladodofreixo,umaforma escura na estreita faixa de grama. Sentiu um tremor nauseante aoreconhecer o pequeno corpo imóvel ao lado do Caminho do Trovão. EraPatadeCinza.
CAPÍTULO17
CORAÇÃODEFOGOOLHOU,ESTARRECIDO.GarradeTigretinhachegadoantesdeleao corpo imóvel e o fitava; seus ombros maciços se enrijeceram com ochoque. Coração de Fogo se aproximou. Relutante, esticou a cabeça efarejouopequenocorpodePatadeCinza.CheiravaaCaminhodoTrovão.Umadaspatas traseiras estava torcidaebrilhava, sangrenta.Oguerreirotremiatantoquemalconseguiaficarempé.Foiquandoviuagatasemexer.Elaaindarespirava!Aliviadoesempalavras,olhouparaGarradeTigre.–Estáviva–orepresentantegrunhiu,fixandooolharcordeâmbarem
CoraçãodeFogo.–Oqueelaestavafazendoaqui?–Veioprocurarvocê–CoraçãodeFogofalouemvozbaixa.–Vocêestádizendoqueamandouaqui?CoraçãodeFogoarregalouosolhos, surpreso. SeráqueGarradeTigre
pensava que ele seria tão idiota assim? – Disse a ela para ficar noacampamento!–protestou.–Veioporquequis.–Porquenãoconseguifazercomquemeouvisse,pensou,desanimado.GarradeTigrebufou:–Precisamoslevá-laparacasa.–Inclinou-secoma
boca aberta, para pegar o corpo pequeno emachucado, mas Coração deFogo abaixou a cabeça e apanhou a aprendiz pela nuca antes que orepresentanteconseguissetocá-la.ArrastouPatadeCinzapelafloresta,daformamaisdelicadapossível, como corpo inerteda aprendizpenduradoentresuaspatasdianteiras.Listra Cinzenta se aproximou aos pulos. – Voltei às Pedras das Cobras
maisumavez,GarradeTigre.NãohásinaldoClã…–Ele secalouaoverPatadeCinzapendendodabocadoamigo.–Oqueaconteceu?Oguerreironãoesperoupela respostadeGarradeTigre.Foientrando
pelasárvorescomofardoprecioso.Elepodiaterevitadoesseacidente!Setivesse conseguido fazer com que Pata de Cinza o obedecesse, se tivessesidoummentormelhor.Agora a aprendiz estavamachucada, sangrando;balançandoentreseusdentes,elanãoemitiasomalgum.CoraçãodeFogocarregou-acomcuidadoparacasa,deixandoatrássiumatrilharasaentreasfolhas,marcadaspeloarrastodaspatastraseirasdagata.
Presa Amarela não estava em sua clareira. Os dois filhotes com tossebranca, enroscados,dormiamprofundamentenoabrigo.CoraçãodeFogo
colocouPatadeCinzanochãofrio;depois,rodandoemcírculos,preparou-lheumninhonassamambaias.Quandoacabou,pegouaaprendizpelanucaeempurrou-aparadentrocomdelicadeza.– Coração de Fogo? – Presa Amarelamiou da clareira. Garra de Tigre
certamentelhecontarasobrePatadeCinza.CoraçãodeFogosaiudoninhodeumpulo.–Elaestáaquidentro–falouemvozbaixa,trêmulodealívioaoveracurandeira.–Deixe-mever–PresaAmarelaordenou,passandoporeleesubindonas
samambaias para examinar a aprendiz. Coração de Fogo sentou-se eesperou.Finalmente a gata saiu do ninho. – Está muito ferida – declarou,
preocupada,comosolhossombrios.–Masachoquepossosalvá-la.Era um fio de esperança, como uma única e brilhante gota de orvalho
penduradanapelagemdeCoraçãodeFogo.ElesentiuagotabrilharporuminstanteantesdePresaAmarelacontinuar:–Nãopossoprometernada.–Elafixouosolhosnosdoguerreiroemurmurou:–EstrelaAzulestámuitodoente e nada mais posso fazer por ela. Agora cabe ao Clã das Estrelasdecidirseudestino.CoraçãodeFogosentiuosolhosnublaremdeemoção;malviaorostode
PresaAmarela,masouviu-avoltarafalarcomele,comvozgentil.–VáficaraoladodeEstrelaAzul.Maiscedoelaperguntouporvocê.TomareicontadePatadeCinza.Cegadopelador,elefezquesimesefoi.EstrelaAzulforasuamentorae,
maisdoqueisso,haviaumeloentreelesdesdequeseconheceram.Maseleestavaarrasado.DeviaficarcomPatadeCinzatambém.Uma sombra surgiu na extremidade do túnel de tojos. Garra de Tigre
estavasentadonaentradadatocadePresaAmarela,comacabeçaelevada,comosempre.OsombrosdeCoraçãodeFogoseenrijeceramderaiva.Porque o grande guerreiro não podiamostrar um pouco de tristeza? Afinal,PatadeCinzaestavaprocurandoporele.Eparaquê?CoraçãodeFogonãoperceberanenhumsinaldepresasfrescasdoClãdasSombras!PassouporGarradeTigresemnadadizer,dirigindo-seàtocadeEstrelaAzuldepoisdeatravessaraclareira.RaboLongoestavadeguarda,doladodefora.Olhoudeumladoparao
outro,masnãotentoudeterCoraçãodeFogo,queultrapassouacortinadelíquen.FlorDourada,umadasrainhas,seencontravanatoca.CoraçãodeFogo
viaosolhosdagatabrilharemnaescuridão,eapelagempálidadeEstrelaAzul, enroscada no ninho. FlorDourada se inclinou e, delicada, lambeu acabeçadalíderpararefrescá-la,comoumamãecuidandodofilho.OpeitodeCoraçãodeFogodoeuquandoelepensou emPatadeCinza. SeráquePeledeGeadaestavaaoladodafilhaagora?–PresaAmareladeuaelagatáriaecamomila–faloubaixinhoarainha.–
Agorasópodemosobservareesperar.–Elase levantouetocou,comseunariz, o do jovem guerreiro. – Você ficará bem aqui, ao lado dela? –perguntou,gentil.Elefezquesim,eagatasaiudatocasemfazerbarulho.O guerreiro abaixou-se, estendendo as patas à frente, demaneira que
apenastocassemorostodalíder.Ealificou,imóvel,comosolhosfixosnocorpo parado. A líder não tinha sequer força para tossir. No escuro, eleouvia a respiração da gata, curta e arfante, e prestava atenção no ritmoirregular,enquantoanoitepassavalentamente.Ela expirou pouco antes do amanhecer. Coração de Fogo estava quase
dormindo quando se deu conta do silêncio da caverna. Tampouco haviabarulhonoacampamento, apenasumsilênciomortal, comose todoo clãprendessearespiração.O corpodeEstrelaAzul estava inerte,masCoraçãodeFogo sabiaque,
juntocomoClãdasEstrelas,elasepreparavaparasuaúltimavida.Eleaviraperderumavidaantes.Sentiuopeloarrepiarcomapazestranhaqueparecia envolver o corpo da gata, mas não havia nada que ele pudessefazer;entãoesperou.Desúbito,EstrelaAzulsuspirou.–CoraçãodeFogo,évocê?–miounuma
vozrouca.–Sim,EstrelaAzul.Estouaqui.– Perdi outra vida. – Sua voz estava fraca,mas o alívio fez Coração de
Fogoquererseaproximarelambê-lanacabeça,comofizeraFlorDourada.–Quandoperderestaaqui,nãotereicomoretornar.Ele engoliu emseco.Pensarno clãperder a grande líder lhedoía,mas
doíamais ainda pensar emperder sua amiga ementora. – Como está sesentindo?DevoirbuscarPresaAmarela?Devagar,EstrelaAzulabanouacabeça:–Afebrepassou.Estoubem.Só
precisodescansar.–Quebom–elemiou.Aluzcomeçavaaatravessarolíquen;acabeçado
jovemguerreiropareciagirarpelanoitepassadaemclaro.–Vocêdeveestarcansado.Vádormirumpouco.
–Vou,sim.–Elese levantoucomdificuldade.Tinhaaspernasrijasporterficadotantotempodeitado.–Precisadealgumacoisa?– Não. Apenas conte a Presa Amarela o que aconteceu – respondeu
EstrelaAzul.–Obrigadaporficarcomigo.CoraçãodeFogo tentou ronronar,mas suagarganta travou.Mais tarde
haveriatempoparamaispalavras.Elesaiupelacortinadelíquen.Doladodefora,umaclaridadeintensaofezpiscar.Havianevadodurante
anoite.Surpreso,elenãoconseguiaparardeolhar.Jamaisviraneveantes;quando filhote, seus donos omantinham em casa sempre que fazia frio.Mas ouvira os anciãos do clã falarem a respeito. Cumprimentou ListraCinzenta,quesubstituíraRaboLongoguardandoa tocadeEstrelaAzul,episounapoeiraestranha.Eramolhadaefria,eestalavaaltosobsuaspatas.GarradeTigreestavanaclareira.Aindanevava,eosflocospermaneciam
nopeloespessodoguerreirosemderreter.CoraçãodeFogooouviudandoordens para que se isolasse com folhas a parede do berçário, para nãodeixarentrarofrio.–Façamumburacoparaquepossamosestocarpresas– instruiuorepresentante.–Usemanevepara forrá-loe,quandoestivercheiodepresas,cubramcommaisneve.Jáqueestáaí,podemosfazerbomusodela.OsguerreiroscorriamàvoltadeGarradeTigre,seguindo-lheasordens.
– Pelo de Rato! Rabo Longo! Organizem grupos de caça. Precisamos domáximo de presas frescas que conseguirmos antes que a caça entre nosabrigosparasempre.–GarradeTigreviuCoraçãodeFogoatravessandoaclareira.– Coração de Fogo, espere – chamou. – Pelo que vejo, você precisa
descansar.Nãocreioquepossaserútilnogrupodecaçaestamanhã.Coração de Fogo encarou o representante, com um sentimento hostil
amargandonagarganta:–AntesvouvercomoestáPatadeCinza–grunhiu.GarradeTigre sustentouoolharporum instante. –ComoestáEstrela
Azul?AdesconfiançaencrespouapelagemdeCoraçãodeFogocomoumabrisa
fria. Ele ouvira a líder mentir a Garra de Tigre uma vez a respeito dequantasvidas lherestavam.–Nãosoucurandeiro–respondeu.–Nãoseidizer.Garra de Tigre bufou, impaciente, depois se virou e continuou a dar
ordens. Coração de Fogo foi para a toca de Presa Amarela, aliviado porescapardamovimentaçãofrenéticanoacampamento.Seucoraçãoacelerou
ao imaginar emqueestadoencontrariaPatadeCinza. –PresaAmarela –chamou.– Psiu! – ela pulou do ninho de samambaias de Pata de Cinza. –
Finalmente ela dormiu. A noite foi difícil. Só pude lhe dar sementes depapoulaparaacalmaradorquandoserecuperoudochoque.–Mas ela vai sobreviver? – as pernas de Coração de Fogo tremiamde
alívio.–Sópossotercertezadepoisdealgunsdias.Elatemferimentosinternos,
eumadaspatastraseirasestáseriamentequebrada.–Masdáparaconsertarapata,nãodá?–ogatosuplicou,desesperado.–
Elaestaráprontaparatreinarnaépocadorenovo?PresaAmarela balançou a cabeça, com os olhos amarelos expressando
compaixão: – Coração de Fogo, aconteça o que acontecer, Pata de Cinzanuncaseráumaguerreira.Acabeçadofelinogirou.Eleestavatontopornãodormir,eessanotícia
arrasadoraminou-lhe o resto de energia. Pata de Cinza lhe fora confiadapara que a treinasse para ser guerreira. As lembranças da cerimônia denomeaçãoomachucavamcomoespinhoscruéis;aempolgaçãodePatadeCinza,oorgulhomaternaldePeledeGeada…–PeledeGeadasabe?–elemiou,sentindo-sevazio.– Sabe, sim. Ela ficou aqui até o amanhecer. Agora está de volta ao
berçário; há outros filhotes para cuidar. Voupedir a umdos anciãos quefiquecomPatadeCinza.Elaprecisasemanteraquecida.– Posso fazer isso. – Coração de Fogo foi até o ninho onde a jovem
dormia.Aaprendizestavainquieta,eopeito,manchadodesangue,subiaedescia,comoseelaestivessenumabatalhaduranteosono.PresaAmarelacutucouCoraçãodeFogocarinhosamentecomonariz.–
Você precisa dormir um pouco – zangou. – Deixe que cuido de Pata deCinza.Elenão semexeu. –EstrelaAzulperdeuoutravida–dissede repente.
PresaAmarelapiscouporummomento,depois levantoua cabeçaparaoClã das Estrelas. Não emitiu uma só palavra, mas Coração de Fogo viaangústianosolhoscordelaranja.–Vocêsabe,nãosabe?–elemurmurou.Agataabaixouoqueixo,fitandoCoraçãodeFogonosolhos.–Quefoia
últimavidadeEstrelaAzul?Sei,sim.Umacurandeiraécapazdeveressascoisas.–Osdemais felinosdoclã tambémterãocomosaber?–eleperguntou,
pensandoemGarradeTigre.Presa Amarela estreitou os olhos. – Não. Ela será tão forte nesta vida
quantofoinasoutras.CoraçãodeFogo,agradecido,piscouparaela.–Agora,vocêquerumassementesdepapoulaparaajudá-loadormir?Ogato fezquenão.Partedeleansiavapelosonoprofundoe fácilquea
papoula traria. Mas se Garra de Tigre estava certo, e o Clã das SombrasrealmentefosseatacarasfronteirasdoClãdoTrovão,CoraçãodeFogonãoqueria ter os sentidos alterados. Podiam precisar dele para defender oacampamento.
***
ListraCinzentavoltaraàtocadosguerreiros.CoraçãodeFogonãofaloucom ele; a raiva que sentira por não encontrá-lo na noite anteriorpermanecia como uma ferida aberta. Em silêncio, caminhou até o ninho,deuumavoltaemtornodeleeseinstalouparaselavar.O gato cinza levantou o rosto: – Ah, aí está você. – O tom era ríspido,
comoseelequisessefalarmais.CoraçãodeFogoparoudelamberapataefitouoamigo.–Você tentou fazerArroiodePrataseafastar–ListraCinzentasibilou,
furioso.PeledeSalgueiro,quedormiadooutroladodatoca,abriuumolhoe,emseguida,voltouafechá-lo.ListraCinzentaabaixouavoz:–Fiqueforadisso,certo?–disparou.–Vou
continuaravê-la,nãoimportaoquevocêfaçaoudiga.Coração de Fogo bufou, lançando um olhar ressentido ao amigo. A
conversacomArroiodePratapareciatersidomuitotempoatrás;elequaseesquecera. Mas não tinha esquecido que Listra Cinzenta estavadesaparecido quando ele precisara de ajuda para encontrar a aprendiz.Zangado,colocouacabeçasobreaspatascheiasdelamaefechouosolhos.PatadeCinza lutavacontraseus ferimentoseEstrelaAzulestavaemsuanonavida.NoquediziarespeitoaCoraçãodeFogo,ListraCinzentapodiafazeroquequisesse.
CAPÍTULO18
LISTRACINZENTAJÁTINHASAÍDOdoninhoquandoCoraçãodeFogoacordounodia seguinte. Sabiaqueera sol altopela luzquebrilhavaentreos galhos.Levantou-se;comocorpoaindaexaustopelatristeza,colocouacabeçaforada toca. A neve devia ter caído durante toda amanhã, pois estava alta ecorrerapela toca adentro.O jovemguerreiro seviuolhandopor cimadeumaparedebrancadaalturadeseuombro.Nãosepercebiaamovimentaçãonormaldoacampamento.EleviuPele
deSalgueiroeMeioRabocochichandonoextremodaclareira.PelodeRato,empenhadaemsuatarefa, iaparaapilhadepresafresca,comumcoelhopenduradonaboca.Nomeiodocaminho,elaparoueespirrou,depois foiadiante.CoraçãodeFogo levantouumapataepisoude levenaneve.No início,
sentiu-a dura,mas quando fez força, a fina camada de gelo rachou, e elearfouquandoapernaafundou.Bufouaoseverenfiadonaneveatéonariz.Balançandoacabeçaelevantandooqueixo,deuumpuloparaafrente,sóparaafundaraindamais.Debateu-se, já começandoa ficarassustado.Eracomo se estivesse se afogando!Então, de súbito, achou chãoduro sob aspatas.Chegaraàbordadaclareira.Anevealitinhaapenasumcamundongodeprofundidadeeelesesentoualiviado,produzindoumleveestalido.Ficou tenso quando viu Listra Cinzenta se aproximar, lutando contra a
neve.Mas o guerreiro cinza parecia não se incomodar, protegido do friopelapelagemespessa.Tinhaorostosombriodetristeza.–VocêsoubedeEstrelaAzul?–perguntou.–Elaperdeuumavidaporcausadatosseverde.CoraçãodeFogomovimentouasorelhas, impaciente.Podiatercontado
issoaoamigonanoiteanterior.–Sei,sim–disparou.–Euestavacomela.–Porquenãomecontou?–miou,chocado,ListraCinzenta.– Você não estavamuito amigável na noite passada, deve lembrar. De
qualquer forma, se não estivesse sempre quebrando o Código dosGuerreiros,poderiasaberoqueacontecenoseupróprioclã–elegrunhiu.AsorelhasdeListraCinzenta seagitaram,desconfortáveis. –Acabeide
verPatadeCinza–miou.–Lamentoqueestejatãodoente.–Comoelaestá?–Pareciamal,masPresaAmareladissequevaisobreviver.Coraçãode
Fogo,ansioso,olhoupelaclareiraeselevantou.Queriaveraaprendizcom
seusprópriosolhos.ListraCinzentamiou.–Elaestádormindoagora.PeledeGeadaestálá,e
PresaAmarelanãoquerninguémmaisporperto,incomodando-a.CoraçãodeFogoseencolheu,demodo involuntário.ComodizeraPele
de Geada que a jovem fora ao Caminho do Trovão por culpa dele?Instintivamente, virou-se para Listra Cinzenta, procurando apoio. Mas ogato cinza atravessava comdificuldade a clareira cheiadeneve, rumoaoberçário. Foi ver Arroio de Prata, imaginou, ressentido, mostrando eguardandoasgarrasaoobservá-lodesaparecer.Coração de Fogo só viu Cauda Sarapintada, a rainha mais velha do
berçárioemãedofilhotecomtossebranca,quandoelaparoubemnasuafrenteeperguntou,apontando,comonariz,paraa tocadosguerreiros:–GarradeTigreestáaídentro?CoraçãodeFogobalançouacabeça.Agatamiou.–Hátosseverdenoberçário.Dois filhotesdeCaraRajada
estãodoentes.–Tosseverde!–CoraçãodeFogoengasgou, tremendodemedo.–Eles
vãomorrer?– Talvez. Mas a estação sem folhas sempre traz tosse verde – ela
observou,comdelicadeza.–Devehaveralgoquepossamosfazer!–protestouCoraçãodeFogo.–PresaAmarelafaráoquepuder.Masemúltimainstância,adecisãoé
doClãdasEstrelas.Umnovorasgode fúria irrompeunopeitodeCoraçãodeFogoquando
CaudaSarapintadacaminhouatéoberçário.Como podia o clã suportar essas tragédias? Sentiu uma tremenda
necessidade de deixar o acampamento, de escapar do ar sombrio que orestantedoclãpareciasatisfeitoemrespirar.Puloueatravessoucorrendo,àscegas,aclareiracheiadeneve,passando
pelo túnel de tojos até a floresta. Ficou surpreso ao perceber que seusinstintosolevavamaovaledetreinamento.Opensamentodequedeveriaestarali,ensinandoPatadeCinza,era insuportável.Aomudardedireçãoparaevitarovale,ouviuasvozesdeNevascaedePatadeSamambaia.Oguerreiro branco deve ter se ocupado do treinamento do aprendizenquanto Coração de Fogo estava dormindo. Nenhum gato havia paradopara lamentaraperdadavidadeEstrelaAzul?AgargantadeCoraçãodeFogo se apertou, lutando contra a raiva que sentia; saiu correndo,
desesperadoparaficaromaisdistantepossíveldoacampamento.Finalmente parou sob os Pinheiros Altos, arfando com o esforço de
correr na neve. Ali era sossegado, ia se acalmar. Atémesmo os pássarostinhamparadode cantar. Ele se sentia como se fosse aúnica criaturanomundo.Não sabia aonde estava indo; apenas caminhava, deixando a floresta
tranquilizá-lo.Andando,suamenteseacalmava.NadapodiafazerporPatadeCinzaeListraCinzentaestava foradealcance,maspodiaajudarPresaAmarelaacombateratosseverde,colhendoumpoucomaisdegatária.Coração de Fogo dirigiu-se à sua antiga casa de gatinho de gente,
ziguezagueandoentreasamoreirasnaflorestadecarvalhoqueficavaatrásdoLugardosDuas-Pernas.Pulouparaoaltodacercanoslimitesdacasa,derrubando ummontinho de neve no jardim. A neve caiu comum ruídosuave.Olhoupara o jardim e viu trilhas de patasmenores que as de umgato.Umesquiloestiveraaliatrásdenozes.Nãodemoroumuitoparaogatoapanharumaboaquantidadedegatária.
Queria colher quanto conseguisse. As folhas macias poderiam nãosobreviveràquelatemperatura;talvezfosseaúltimachancedeapanhá-las.Encheuabocadeervaefitouapassagemrecortadanaporta,queusava
quando filhote.Perguntou-se seosmesmosDuas-Pernas aindamorariamporali.Tinhamsidobondososcomele,quepassarasuaprimeiraestaçãosemfolhasprotegidononinhodacasa,aquecidoeasalvodascrueldadesdosCaminhosdoTrovãoedatosseverde.O cheiro dessa gatária deve estarme subindo à cabeça, apressou-se em
explicar.Rumouao jardim,chegandoàcercacomumsimplespulo.FicounervosoaovercomoalembrançadacasadosDuas-Pernasoafetava.Seráque desejava mesmo a segurança e a previsibilidade de uma vida degatinho de gente? Claro que não! Afastou o pensamento. Mas a ideia devoltaraoacampamentotampoucooatraía.Derepente,pensouemPrincesa.Correu pela beirada da floresta até onde ficava o jardim da irmã, no
Lugar dos Duas-Pernas. Quando conseguiu ver a cerca, cavou na neve eenterrouaerva sobumacamadade folhas secas,paraprotegê-lado frio.AindaestavaarfandoporcausadacorridaquandopulounacercaechamouPrincesa.Então,rastejoudevoltaàflorestaparaesperá-la.Enquanto ele caminhava, inquieto, sob um carvalho, a neve fazia suas
patasdoerdefrio.Talvezairmãestivessedandoàluz,outrancadaemcasa.
Quandofinalmenteseconvenceudequenãoiriavê-lanaqueledia,ouviu-lheomiadofamiliar.Elaestavanoaltodacerca.CoraçãodeFogotremeudeansiedade.AbarrigadePrincesadesinchara.Deviaterdadoàluz.Sentiu-lhe o odor quando ela se aproximou e isso o confortou. – Os
filhotesnasceram!Princesatocou-lhegentilmenteofocinhocomonariz.–Nasceram,sim–
miou,delicada.–Foitudobem?Elesestãobem?Princesaronronou:–Correutudobem.Tivecincobebês,todossaudáveis
– disse, com os olhos brilhando de prazer. Coração de Fogo lambeu acabeçadairmãeelamiou.–Nãoesperavavervocêcomessetempo.–Vimcolherumpoucodegatária.Hátosseverdenoacampamento.Preocupada,Princesafechouosolhos.–Hámuitosgatosdoentesnoseu
clã?–Trêsatéagora.–Elehesitouporuminstante;depoismioucomtristeza:
–Nossalíderperdeuoutravidananoitepassada.–Outravida?Oquevocêquerdizer?Penseiqueessahistóriadegatos
teremnovevidaseraapenasumavelhalendacontadapornossasavós.–EstrelaAzulrecebeunovevidasdoClãdasEstrelasporseralíderdo
nossoclã–eleexplicou.–Entãoéverdade!–Princesaseespantou.–Sóvaleparaoslíderesdeclã.Orestodosfelinostemapenasumavida,
comovocêeeu,ecomoPatadeCinza.–AvozdeCoraçãodeFogohesitou.–PatadeCinza?–Princesadeveterpercebidoatristezanavozdele.Coração de Fogo fitou-a nos olhos e, sem se conter, falou dos
pensamentosqueomortificavam:–MinhaaprendizseferiunoCaminhodoTrovãonanoitepassada –miou, abatido, ao se lembrardomomento emqueencontrouocorpo,machucadoesangrando.–Estágravementeferida.Podeatémorrer.E,mesmoquesobreviva,jamaissetornaráumaguerreira.Princesachegoumaispertoeotocoucomonariz.–Vocêfaloudelacom
tantaadmiraçãodaúltimavezqueesteveaqui.Pareciacheiadealegriaeenergia.–Oacidentenãoeraparateracontecido–elegrunhiu.–Eutinhaqueir
encontrarGarradeTigre.ElequeriaverEstrelaAzul,maselaestavadoenteeme ofereci para ir no lugar dela.Mas antes eu precisava conseguir umpouco de gatária, e Pata de Cinza foi no meu lugar. – Princesa ficou
assustada,eCoraçãodeFogologoacrescentou.–Eulhedisseparanãoir.Seeufosseummentormelhor,talvezelativessemeouvido.–Estoucertadequevocêéumbommentor–Princesatentouacalmá-lo,
masoguerreiromalaescutava.–NãoseiporqueGarradeTigrequeriaqueEstrelaAzuloencontrasse
numlugartãoperigoso!–disparou.–EledissequehaviaindíciosdequeoClã das Sombras tinha invadido nosso território,mas quando cheguei lá,nãohavianenhumodordoclã!–Eraumaarmadilha?–Princesasugeriu.Coração de Fogo fitou os olhos indagadores da irmã e, de repente,
começouapensar.–PorqueGarradeTigreiriaquererferirPatadeCinza?–ElequeriaverEstrelaAzul–Princesaobservou.O pelo do gato se arrepiou. Será que sua irmã estava certa? Garra de
Tigreconvocara Estrela Azul para ir à partemais estreita da beirada doCaminhodoTrovão.Seráqueo representantecolocariaa líderdoclãemperigodepropósito?CoraçãodeFogoafastouessepensamento.–Nã…nãosei–gaguejou.–Tudoestámedeixandomuitoconfuso.AtéListraCinzenta,quemalestáfalandocomigo.–Porquê?CoraçãodeFogodeudeombros.–Écomplicadodemaisparaexplicar.–
Princesaaconchegouaoirmãoapelagemmacia.–Eumesintoumestranhonestemomento–elecontinuou,tristonho.–Nãoéfácilserdiferente.–Diferente?–Princesaestavasurpresa.–Ternascidogatinhodegente,quandotodososoutrosgatosnasceram
noclã.–Paramim,vocêpareceternascidonoclã–miouPrincesa.Coraçãode
Fogopiscou,agradecido.Ela continuou: –Mas se não está feliz no clã, pode sempre voltar para
casacomigo.Meusdonosvãocuidardevocê,tenhocerteza.O guerreiro se imaginou levando sua antiga vida de gatinho de gente,
confortável, aconchegante e segura. Mas então se lembrou de todas asvezesque,doseujardimdosDuas-Pernas,observaraafloresta,sonhandoestarali.Umabrisaarrepiousuapelagemespessa,trazendo-lheoodordeum camundongo até o nariz. O gato balançou a cabeça, resoluto: –Obrigado,Princesa–miou.–Maspertençoaomeuclã,agora.JamaisseriafeliznumninhodosDuas-Pernas.Sentiria faltadosodoresda floresta,de
dormirsoboTuledePrata,decaçarminhaprópriacomidaparadividi-lacommeuclã.Os olhos da gata brilharam: – Parece ser uma vida boa – ronronou.
Tímida,baixouoolharparaasprópriaspatas.–Àsvezesatéeuespreitoaflorestaemeperguntocomoseriaviverali.CoraçãodeFogoronronou,selevantando.–Entãovocêcompreende?Princesafezquesim.–Jáestáindo?–Estou, sim.Preciso levar a gatáriaparaPresaAmarela enquantoestá
fresca.Princesaesticouacabeçaparaafrenteeroçouonariznoirmão.–Quem
sabemeusfilhotesestarãofortesbastanteparaencontrarvocêdapróximavez?CoraçãodeFogoficouempolgado:–Esperoquesim!Quandoele se virouparapartir, Princesao chamou: –Cuide-se, irmão.
Nãoquerovoltaraperdê-lo.–Issonãovaiacontecer–eleprometeu.
– Boa ideia, Coração de Fogo – ronronou Nevasca, que vira o jovemguerreirovoltaraoacampamentocomabocacheiadeerva.Coração de Fogo salivara durante todo o percurso de volta, embora
começasse a achar que ficaria feliz em nunca mais ver um arbusto degatária.Masestavamaiscontentedoquequandosaíradoacampamento.Airmãtiveraumpartotranquiloeelesentiaacabeçamaisleve.Dirigia-separaatocadePresaAmarelaquandoGarradeTigreapareceu.–Maisgatária?–eleobservou,desconfiado.–Fiquei imaginandoaonde
vocêteriaido.PatadeSamambaiapodelevarissoparaPresaAmarela.Oaprendizestavaajudandoaremoveranevealiperto.–Venha,leveessaservasparaPresaAmarela–GarradeTigreordenou.PatadeSamambaiafezquesime,deumpulo,seaproximou.CoraçãodeFogosoltounochãoomaçodefolhas.–EuqueriavisitarPata
deCinza–miouparaGarradeTigre.–Mais tarde–grunhiuo representante,esperandoPatadeSamambaia
pegaraervaelevarparaatocadacurandeira.Voltou-senovamenteparaojovemguerreiro.–QuerosaberondeListraCinzentatemido.Coração de Fogo sentiu o calor sob a pelagem. –Não sei – respondeu,
sustentandooolhardorepresentante.GarradeTigretambémofitava,comosolhosfriosehostis.–Quandoo
vir–sibilou–,digaquedeveráficarconfinadonocarvalhocaído.– A antiga toca de Presa Amarela? – Coração de Fogo olhou para os
galhos emaranhados onde a curandeira vivia quando chegou ao Clã doTrovão,naépocaemqueaindaachavamqueelatinhasidoexpulsadoClãdasSombras.PataLigeiraestavalá,deitadoaoladodofilhotemalhadodeCaudaSarapintada.–Osgatoscomtossebrancaficamconfinadosaliatémelhorar.–MasListraCinzenta temapenasumresfriado–protestouCoraçãode
Fogo.– Um resfriado já é bastante ruim. Ele deve ficar no carvalho caído –
repetiuGarradeTigre.–OsfelinoscomtosseverdedevempermanecernoninhocomPresaAmarela.Precisamosimpedirqueadoençaseespalhe.–Os olhos do representante faiscaram, endurecidos. Coração de Fogo seperguntouseoguerreiroachavaquedoençaerasinaldefraqueza.–Éparaobemdoclã–GarradeTigreacrescentou.–Estábem,direiaListraCinzenta.–EfiquelongedeEstrelaAzul–orepresentanteadvertiu.–Maselajáficouboadatosseverde–reclamouCoraçãodeFogo.– Sei disso, mas a toca da líder ainda fede à doença. Não posso ter
guerreirosdoentes.NevascamedissequehaviacheirodoClãdoRioaindamais perto do acampamento. Também falou que teve de treinar Pata deSamambaiahoje.Esperoquevocêseocupedotreinamentodeleamanhã.CoraçãodeFogofezquesim.–PossoirverPatadeCinzaagora?GarradeTigreoolhou.–DuvidoquePresaAmarelaatenhacolocadopertodosgatoscomtosse
verde – Coração de Fogo acrescentou, com certa irritação. – Não sereiinfectado.–Muitobem–GarradeTigreconcordou,afastando-se.Coração de Fogo encontrou Pata de Samambaia nomeio da clareira. –
PresaAmarelaestámuitoagradecidapelagatária–oaprendizcomentou.–Quebom.Porfalarnisso,amanhãvoulheensinaraapanharpássaros.
Esperoqueestejaprontoparasubiremalgumasárvores.Os bigodes do jovem se agitaram, empolgados. – Com toda certeza.
Encontrovocênovaledetreinamento.
CoraçãodeFogoaquiesceuerumouparaatocadePresaAmarela.Logoencontrou os pobres filhotes de Cara Rajada. Estavam quietinhos numninhodesamambaias,tossindo,comosolhoseosnarizesescorrendo.PresaAmarelaocumprimentou.–Obrigadapelagatária;vamosprecisar
dela.AgoraéRetalhoquemestácomatosse.–Comonariz,indicououtroninho nas samambaias. Dentro, Coração de Fogo viu a pelagem preta ebrancadovelhogato.– Como está Pata de Cinza? – perguntou, voltando o olhar para a
curandeira.Elasuspirou:–Esteveacordadamaiscedo,masporpouco tempo.Tem
uma infecção na perna. O Clã das Estrelas sabe que tentei de tudo, masagoraelaterádelutarsozinha.CoraçãodeFogoolhouparaoninhodePatadeCinza.Apequenatinhao
sono agitado; a pernamachucada estava virada de lado, desajeitada. Eleestremeceu,comumsúbitomedodequeelaperdesseaquelaluta.Virou-separa Presa Amarela, procurando palavras de encorajamento; mas acurandeira,comacabeçabaixa,pareciaexausta.–VocêachaqueFolhaManchadateriasidocapazdesalvaressesgatos?–
elamiou,deformainesperada,levantandoacabeçaàprocuradoolhardojovemguerreiro.CoraçãodeFogoagitou-se.AindasentiaapresençadeFolhaManchada
ali na clareira. Lembrava-se de como ela cuidara bem do ombro de PataNegradepoisdabatalhacomoClãdoRio,ecomquezelooaconselharaacuidar de Presa Amarela quando a velha gata chegara ao Clã do Trovão.Olhouentãoparaacurandeira,cujosombrospesavampelaexperiência,edisse: – Estou certo de que Folha Manchada não teria feito de outramaneira.Umdosfilhotesgritou,ePresaAmareladeuumsalto.Quandoelapassou
porele,CoraçãodeFogoinclinou-separaafrentee,comgentileza,tocou-lheocorpocomonariz.Elaagradeceumexendooombro.Então,cheiodetristeza,elerumouparaotúneldetojos.A pelagem branca de Pele de Geada apareceu do outro lado.
Provavelmente estava indo ver Pata de Cinza. Quando se aproximou darainha, Coração de Fogo levantou a cabeça e olhou dentro de seus olhosazuis.Atristezaqueviufezdoer-lheocoração.–PeledeGeada!–chamou.Arainhaparou.–Eu….eusintomuito–elefalou,tremendo.
PeledeGeadaestavaconfusa:–Porquê?–PornãoterconseguidoevitarquePatadeCinzafosseatéoCaminhodo
Trovão.Pele de Geada o fitou, mas sua expressão era só melancolia. – Não o
culpo,CoraçãodeFogo–murmurou,abaixandoacabeça,econtinuouseucaminho.
ListraCinzentaestavadevolta,mastigandoumratosilvestreaoladodomontedeurtigas.Coração de Fogo foi até ele. – Garra de Tigre diz que você precisa se
mudarparaocarvalhocaído,ficarcomosgatoscomtossebranca–miou.Comcerto ressentimento, lembrou-sede comoo representante lhe fizeraperguntas sobre o amigo. – Isso não será necessário – respondeu ListraCinzenta,alegre.–Jáestoumelhor.PresaAmarelamedeualtaessamanhã.CoraçãodeFogoolhouoamigodeperto.Seusolhosestavambrilhantes
denovo,eonarizqueescorriatinhaviradoumacrostanadaatraente.Emqualqueroutraocasião,CoraçãodeFogoteriamexidocomele,dizendoqueestavaparecidocomNarizMolhado,ocurandeirodoClãdasSombras.Masagoradisparou,áspero:–GarradeTigrepercebeuseussumiços.Deviatermais cuidado.Porquenãopode ficar longedeArroiodePrataaomenosporenquanto?ListraCinzentaparoudemastigare,zangado,devolveuoolhar.–Epor
quevocênãosemetecomasuavida?CoraçãodeFogo fechouosolhosebufou, frustrado.Seráquenão iase
entender com o velho amigo? Então se perguntou se ainda se importavacomisso.Afinal,ListraCinzentanemperguntarasobrePatadeCinza.OestômagodeCoraçãodeFogoroncou,avisandoqueestavacomfome.
Ele também devia comer. Pegou um pardal da pilha de presas e o levouparaumcantodesertonoacampamento,para comer sozinho.Quando seinstalou,pensouemPrincesa,tãolongenoLugardosDuas-Pernas,comosfilhotes recém-nascidos. Solitário e ansioso, o guerreiro passou os olhospeloacampamentoedesejouvê-lanovamente.
CAPÍTULO19
NOS DIAS SEGUINTES, Coração de Fogo lutou contra a enorme vontade devisitar Princesa. Seu desejo de estar comos familiares gatinhos de genteestava começando a deixá-lo desconfortável. Ele se manteve ocupado,caçandonaflorestanevadaparasupriroacampamento.Aquela tarde fora produtiva; voltou com dois camundongos e um
pintassilgo quando o sol mergulhava atrás das árvores. Enterrou oscamundongosnadespensadeneveelevouopintassilgoparaseujantar.Estava terminando de comer quando percebeu que Nevasca se
aproximava: – Quero que vá com Pata de Areia fazer a patrulha doamanhecer – miou o guerreiro branco. – Farejamos o cheiro do Clã dasSombraspertodaÁrvoredaCoruja.–ClãdasSombras?–ecoouCoraçãodeFogo,assustado.TalvezGarrade
Tigrerealmentetivesseencontradosinaisdeumainvasão,afinal.–EstavaplanejandolevarPatadeSamambaiaparatreinaramanhã.–ListraCinzentanãoestámelhor?–perguntouNevasca.–Elepodefazer
isso.Claro! CoraçãodeFogopensou. E talvez treinar o aprendizmantivesse
Listra Cinzenta longe deArroio de Prata de uma vez por todas.Mas issosignificavaqueteriadesairempatrulhacomPatadeAreia.ECoraçãodeFogonãoesqueceraoolharfuriosoqueaaprendizlhelançaraquandoeleinterrompeu a luta entre ela e o guerreiro do Clã do Rio, ao lado doprecipício.–SóPatadeAreiaeeu?–perguntou.Nevasca o olhou, surpreso. – Ela é quase uma guerreira, e você pode
tomarcontadesimesmo–respondeu.O guerreiro branco compreendera mal a preocupação de Coração de
Fogo.Elenãoestavacommedodeseratacadoporgatos inimigos;estavacommedodePatadeAreia odiá-lo tantoquantoPatadePoeira.Mas elenãoocorrigiu.–PatadeAreiasabe?–Vocêmesmopodelhedizer.A orelha de Coração de Fogo semexeu.Não achava que Pata deAreia
fosseficarmuitoanimadacomaideiadeircomeleempatrulha,masnãodiscutiu.Nevascaocumprimentouesedirigiuàtocadosguerreiros.Coraçãode
Fogosuspirouerumouparaolugarondeaaprendizestavasentadacomos
outrospupilos.–PatadeAreia –CoraçãodeFogo semexia, desconfortável –,Nevasca
querquevocêsaiaempatrulhacomigoamanhã,bemcedinho.Eleesperavaumsibilarzangado,maselasimplesmenteoolhouemiou:–
Tudobem.–AtéPatadePoeiraficousurpreso.– Certo, então – disse Coração de Fogo, atônito. – Encontro você ao
nascerdosol.–Aonascerdosol.CoraçãodeFogoresolveupartilharcomListraCinzentaaboanotíciade
que Pata de Areia já não estava mais hostil com ele. Talvez fosse umachanceparavoltaremasefalar.OgatocinzaestavatrocandolambidascomVentoVeloznamoitadeurtigas.–Olá,CoraçãodeFogo–VentoVelozmiouaovê-lo.– Olá – ele respondeu, olhando esperançoso para o amigo. Mas Listra
Cinzentajátinhaseviradoeestavafitandoomurodafronteira.CoraçãodeFogoseentristeceu.Abaixouacabeçaerumouparaseuninho.Malpodiaesperar para sair em patrulha no dia seguinte e ficar longe doacampamento.
Océubrilhavacomomaispálidocor-de-rosaquandoCoraçãodeFogosaiudatocanamanhãseguinte.PatadeAreiaoesperavadoladodeforadotúneldetojos.–Ah…olá–CoraçãodeFogomiou,meiodesajeitado.–Olá–aaprendizrespondeu,calma.O gato se sentou. – Vamos esperar que a patrulha noturna volte –
sugeriu.Ficaram em silêncio até ouvirem o farfalhar conhecido dos arbustos
anunciandooretornodeNevasca,RaboLongoePelodeRato.–AlgumsinaldoClãdasSombras?–CoraçãodeFogoperguntou.–Nósrealmentedetectamosalgunsodores–Nevascarespondeu,sério.–Éestranho–miouPelodeRato,franzindoocenho.–Ésempreocheiro
do mesmo grupo. O Clã das Sombras deve estar mandando os mesmosguerreiros.– Émelhor vocês dois verificarem a fronteira do Clã do Rio – sugeriu
Nevasca. – Não tivemos oportunidade de fazer patrulhas ali. Tenhamcuidadoelembrem-sedequenãoqueremcomeçarumaluta.Estãoapenas
procurandoindíciosdequeelesvoltaramacaçaremnossasterras.– Certo, Nevasca – miou Coração de Fogo. Respeitosa, Pata de Areia
aquiesceu.Coração de Fogo foi na frente. – Vamos começar emQuatro Árvores e
continuarpelafronteiraatéosPinheirosAltos–elemiouenquantosubiamparasairdaravinadoacampamento.– Parece uma boa ideia – Pata de Areia comentou. – Nunca estive em
QuatroÁrvorescomneve.–CoraçãodeFogoprocuroualgumsarcasmonavozdaaprendiz,maselapareciasincera.Chegaram ao alto da ravina. – Para onde agora? – o guerreiro decidiu
testá-la.–VocêachaquenãoconheçoocaminhoparaQuatroÁrvores?–Patade
Areia protestou. Coração de Fogo já começava a lamentar estar agindocomoummentorquandopercebeuumbrilhobem-humoradonosolhosdagata. Ela saiu correndo pelas árvores semnada dizer, e Coração de Fogodisparouatrás.Era bom correr novamente pela floresta com outro felino. Tinha de
admitir que a jovem era veloz. Ela ainda estava duas raposas à frentequandosaltousobreumtroncodeárvorecaídaedesapareceu.CoraçãodeFogocontinuou.Assimqueultrapassouotronconumúnico
movimento, algoo atingiupor trás.Ele escorregounaneve, roloue ficouempénumpulo.PatadeAreiaoolhava,comosbigodessemovimentando:–Surpresa!Coração de Fogo sibilou, divertido, e saltou sobre ela. Estava
impressionado com a força da aprendiz, mas era dele a vantagem dotamanho. Quando, enfim, a imobilizou, ela protestou: – Caia fora, seugorducho.–Certo,certo–elemiou,soltando-a.–Masfoivocêquepediu!PatadeAreiaselevantou,comapelagemalaranjadarespingadadeneve.
–Parecequevocêficounomeiodeumanevasca!–Vocêtambém!–Osdoissacudiramdopeloosflocosdeneve.–Vamos.
Émelhorcontinuarandando.Correram ladoa ladoatéQuatroÁrvores.Quandochegaramaoaltoda
encosta que dominava o vale, o céu estava azul leitoso. O sol pálidoiluminavatudo.Osquatrocarvalhossemfolhasestavamabaixo,brilhandoporcausadogelo.
PatadeAreia, comosolhosarregalados,olhouparaovale.CoraçãodeFogoesperou, emocionado comoentusiasmodaaprendiz, atéqueela sevirouparairembora.–Nãosabiaqueanevemudavatantoassimaaparênciadascoisas–ela
miouquandocomeçaramaseguirafronteiradoClãdoRioatéoriacho.Oguerreiroconcordoucomumacenodecabeça.Caminhavammaisdevagar,marchandoemsilêncioaolongodalinhade
odoresdeixadospelosfelinos,alertasaqualquerodorfrescodoClãdoRiodaqueleladodafronteira.CoraçãodeFogoparavadevezemquandoparadeixarmarcasdoClãdoTrovão.De repente Pata de Areia parou e perguntou baixinho: – Que tal uma
presafresca?–Ele fezquesim.Aaprendizagachouemposiçãodecaçaefezummovimentoparaafrente,emmeioàneve,umpassoatrásdooutro.CoraçãodeFogoseguiu-lheoolhareviuumfilhotedecoelhopulandosobalgumas amoreiras. Com um rápido sibilar, a jovem pulou,mergulhandonosarbustoseimobilizando-ocomumafortepatada.Comummovimentoleve,elaopuxouparaterminaroserviço.Coração de Fogo se aproximou de um pulo. – Grande pegada, Pata de
Areia!A aprendiz, satisfeita, deixou cair a presa morna no chão. – Vamos
dividir?–Obrigado!– Essa é uma dasmelhores coisas nas patrulhas – ela observou, entre
umabocadaeoutra.–Oquê?–Podercomeroquesecaçaemvezde terde levarparaoclã.Perdia
contadasmissõesdecaçaemquequasemorridefome!CoraçãodeFogo,divertido,ronronou.Puseram-se em marcha novamente, rodeando as Rochas Ensolaradas
para seguir a trilha de volta à floresta, perto da fronteira do Clã do Rio.Quandochegaramaoaltodaencosta cobertade samambaias sobreo rio,Coração de Fogo fez uma prece silenciosa ao Clã das Estrelas para nãoencontraremListraCinzenta.– Veja! – miou Pata de Areia de repente. Seu corpo enrijeceu com a
empolgação.–Orioestácongelado.OpeitodeCoraçãodeFogodoeuquandoeleselembroudePatadeCinza
dizendo asmesmas palavras antes do acidente de Listra Cinzenta. – Nãovamosdescerparaolhar!–miou,decidido.–Nãoprecisamos.Dáparaverdaqui.Vamosvoltarecontaraoclã.–Porquê?–ogatonãocompreendiaaempolgaçãodajovem.–Umapatrulhadosnossosguerreirospoderiaatravessarorioagora!–
elamiou.–PodemosinvadiroterritóriodoClãdoRioepegardevoltaumpoucodaspresasquetomaramdenós.CoraçãodeFogosentiuumcalafrio.OqueListraCinzentapensaria?Será
queelepróprioconseguirialutarcontraofamintoClãdoRio?PatadeAreiaorodeou,impaciente:–Vocêvem?–Vou–elerespondeu,sério,pulandoatrásdaaprendiz,quecorreupela
floresta,devoltaaoacampamento.Pata de Areia atravessou correndo o túnel de tojos pouco à frente de
Coração de Fogo. Garra de Tigre levantou o olhar quando chegaram àclareira.Coração de Fogo ouviu um barulho. Era Listra Cinzenta chegando à
entradadoacampamentocomPatadeSamambaia.Alguém chamou aos pés da Pedra Grande. – Coração de Fogo, Pata de
Areia,comofoiapatrulha?Coração de Fogo sentiu-se aliviado ao ver Estrela Azul em seu estado
normal,sentadacomoqueixoelevadoeacaudaàfrentedaspatas.PatadeAreiafoiatéaPedraGrande.–Orioestácongelado–eladeixou
escapar.–Poderíamosatravessá-locomfacilidadeagora!Alíder,pensativa,olhouparaaaprendiz.CoraçãodeFogohesitouaover
osolhosdeEstrelaAzulbrilhar.–Obrigada,PatadeAreia!–elamiou.Oguerreiroseinclinouemurmurounoouvidodajovem:–Venha,vamos
contaraosoutros.–EleimaginouqueEstrelaAzulquisessediscutirsobreoriogeladocomosguerreirosmaisvelhos.PatadeAreiaentendeuorecadoeoseguiudevoltaaocentrodaclareira.
–Foiumdiatãobacana!–elamiou.CoraçãodeFogoapenasfezquesimeolhou,ansioso,paraListraCinzenta.–Parecequevocêssedivertiram!–dissePatadePoeira,saindodatoca
dos aprendizes. – Afogaram outro gato do Clã do Rio? – perguntou,debochado,paraCoraçãodeFogo, lançandoumolhardeexpectativaparaPatadeAreia.Coração de Fogo adivinhou que o aprendiz esperava que ela, como
sempre,concordasse,masagatanãoestavaprestandoatenção.CoraçãodeFogosentiuumquêdeprazeraoverairritaçãonorostodePatadePoeiraquando Pata de Areia miou, arfando: – Descobrimos que o rio estácongelado.AchoqueEstrelaAzulestáplanejandoumataqueaoClãdoRio!Naquele momento, ouviu-se a líder chamar da Pedra Grande, e o clã
começouasereunirnaclareira.Osolalcançaraopontomaisalto,oque,naestação sem folhas, significava que mal chegara acima das copas dasárvores.– Pata deAreia e Coração de Fogo trouxeramboas notícias. O rio está
todo congelado – Estrela Azul anunciou. – Vamos aproveitar aoportunidade para atacar as zonas de caça do Clã do Rio, mandando amensagemdequedevempararderoubarnossaspresas.Nossosguerreirosvão rastrear uma das patrulhas inimigas e dar-lhes um aviso do qual selembrarãopormuitotempo!CoraçãodeFogoseencolheuaorecordarqueArroiodePratalhefalara
sobreafomedeseuclã.Àvoltadele,osoutrosfelinoslevantaramasvozesemgritosansiosos.Haviamuitasluasquenãoviaoclãtãoagitado.– Garra de Tigre! – Estrela Azul chamou elevando a voz. – Nossos
guerreirosestãopreparadosparaumataqueaoClãdoRio?Orepresentantefezquesim.–Excelente–alíderlevantouacauda.–Entãodevemospartirnopôrdo
sol. – O clã, deliciado, uivou. Coração de Fogo sentiu uma comichão naspatas.EstrelaAzuliriatambém?Arriscariasuaúltimavidanumataquedefronteira?Coração de Fogo olhou por sobre o ombro para Listra Cinzenta, que
fitavaaPedraGrande,mexendoapontadacaudanervosamente.Findososgritos, o amigo falou: – Hoje estámais quente. Se o gelo derreter, ficaráperigosodemaisatravessar.Coração de Fogo prendeu a respiração e os outros felinos, curiosos,
viraram-separaListraCinzenta.Garra de Tigre o encarou com o olhar cor de âmbar, confuso. –
Normalmente vocênão fogeda luta –miou, devagar, o guerreirodepelomarrom-escuro.RiscadeCarvãolevantouacabeçaedisse:–Éverdade,ListraCinzenta…
Você não está commedo daqueles guerreiros pulguentos do Clã do Rio,está?O gato cinza se mexia desconfortável, enquanto o clã esperava uma
resposta.–Parecequeestácommedo–ciciouPatadePoeira,aoladodePatade
Areia.A cauda de Coração de Fogo se movimentava com irritação, mas ele
conseguiumanteravozcalmaaodizer:–Eleestácommedo,sim,masdemolharaspatas!ListraCinzentacaiuumaveznogeloduranteestaestaçãosemfolhas;nãoestádispostoacairnovamente.Atensãosedissolveu,transformando-seemronronaresdivertidos.Listra Cinzenta olhou para o chão, com as orelhas abaixadas. Apenas
GarradeTigremanteveocenhofranzido,desconfiado.Estrela Azul esperou o burburinho desaparecer. – Preciso discutir o
ataque com meus guerreiros mais experientes. – Ela pulou da PedraGrande,aterrissandodeformatãolevequeeradifícilacreditarqueestiveralutandopelaprópriavidaapenasalgunsdiasatrás.GarradeTigre,NevascaePeledeSalgueiroaseguiramatéatocadalídereorestantedoclãdividiu-seemgrupos,paradiscutiroataqueproposto.– Imagino que espere que eu agradeça porme deixar constrangido! –
CoraçãodeFogoouviudepertoosibilarzangadodeListraCinzenta.–Dejeitonenhum–disparou.–Masvocêpodiaaomenosagradecerpor
euaindaencobri-lo!–Furioso,afastou-serumoàbeiradadaclareira,comopeloarrepiado.PatadeAreiacorreuatéele.–Estánahorademostraraessesgatosdo
ClãdoRioquenãopodemcaçarnonossoterritórioquandoquiserem–elamiou,comosolhosbrilhantes.– É, acho que sim – Coração de Fogo respondeu, sem prestar muita
atenção.Nãoconseguia tirarosolhosdeListraCinzenta. Seria impressãoouoguerreirocinzaestavaseafastandocadavezmaisrumoaoberçário?EstariaplanejandoescaparparaavisarArroiodePrata?Coração de Fogo se levantou devagar e foi na mesma direção. Listra
Cinzenta olhou-o quando se aproximou, mas antes que um deles falasseouviu-se,maisumavez,ochamadodeEstrelaAzuldaPedraAlta.CoraçãodeFogoparou,aindafitandooamigo.–PeledeSalgueiroconcordacomo jovemListraCinzenta–declaroua
líder. – O degelo está a caminho. – Listra Cinzenta levantou o queixo,lançandoumolhardesafiadorparaCoraçãodeFogo,quenãoseimportou.EstrelaAzul ia cancelar o ataque! ListraCinzentanãoprecisaria escolherentreoclãeArroiodePrata,eCoraçãodeFogonãoteriadefazerpartede
umgrupodeataquecontraumclãque,elesabia,jáestavasofrendo.Mas Estrela Azul não tinha terminado. – Assim, vamos atacar
imediatamente!CoraçãodeFogoolhouparaolado;oartriunfantedeListraCinzentase
transformaraemtotalpavor.Alídercontinuou:–Vamosdeixarumapatrulhadeguerreirosaquipara
guardar o acampamento. Precisamos nos lembrar da possível ameaça doClãdasSombras.Cincoguerreirosvãoatacar.Euficareiaqui.Ótimo,pensouCoraçãodeFogo.Afinalelanãoestavaplanejandoarriscar
sua última vida. – Garra deTigre vai liderar o grupode ataque. Risca deCarvão,PeledeSalgueiroeRaboLongovãocomele.Com isso, sobraumlugar.–Possoir?–CoraçãodeFogoperguntouderepente.Emborasentisseo
peitoapertar-sediantedaideiadeatacarosfelinosfamintosdoClãdoRio,pelomenosListraCinzentanãoteriadefazerumaescolha.–Obrigada, CoraçãodeFogo.Vocêpode se juntar àpatrulha. –Estrela
Azul estava claramente satisfeita com a ansiedade do jovem guerreiro.GarradeTigrenãoficoutãocontente.EstreitouosolhosparaCoraçãodeFogo,comardeclarasuspeita.–Nãohátempoaperder–alídergritou.–Eumesma sintoos ventosquentes.GarradeTigreos instruirádurante aviagem.Agoravão!RiscadeCarvão,RaboLongoePeledeSalgueirocorreramatrásdeGarra
deTigre.CoraçãodeFogoseguiu-osquandomarcharamruidosamentepelotúneldetojos,ravinaacima,rumoaoterritóriodoClãdoRio.Já tinham passado pelas Rochas Ensolaradas e chegado à fronteira
inimigaquandoosolbaixodaestaçãosemfolhascomeçouamergulharnafloresta.CoraçãodeFogo farejouoar.ListraCinzentaePeledeSalgueiroestavamcertos;elesentiucheirodeventosmaisquentes,ejáseavistavamnuvensdechuvaacimadascopasdasárvores.Quando corriam encosta abaixo até o rio, Coração de Fogo sentiu-se
inquieto. A história desesperada de Arroio de Prata não saía de seusouvidos;lutouparaafastarosentimentodecompaixão.Os guerreiros do Clã do Trovão saíram das samambaias e pararam na
beiradadorio.AvisãoqueossaudoudeixouCoraçãodeFogoaliviado.Acamada fina de gelo que vira mais cedo com Pata de Areia tinha sequebrado,tornando-seumacorrentedeáguageladaenegra.
CAPÍTULO20
GARRADETIGREVIROU-SEparaosguerreiros;seusolhospálidosfaiscavamdefrustração.–Vamosterqueesperar–rosnou.Apatrulhadeumeia-volta e começoua retornarpara casa.Coraçãode
FogoagradeceuaoClãdasEstrelasnumaoraçãosilenciosa,massentianabocaumgostoamargo.Nuncasaberiaseteriaidoatéofimnaquelamissão.NãoeraapenasemListraCinzentaquenãoconfiava; jánãoconfiavanememsimesmo.Feztodoocaminhoderegressosemnadadizer.Detempoemtempo,via
GarradeTigrelançar-lheumrápidoolharporcimadosmaciçosombrosdepelomarrom.Ajornadafoilenta.Aluzdodiacurtodaestaçãosemfolhasjáseapagavaquando, afinal, alcançaramo topoda ravina.CoraçãodeFogodeixou os outros guerreiros passarem à sua frente; quando atravessou otúneldetojos,GarradeTigrejáestavaexplicandoaodesapontadoclãqueoriodegelara.Coração de Fogo contornou a beirada da clareira, à procura de Listra
Cinzenta. Precisava saber se o amigo tinha escapulido do acampamento.Porinstinto,dirigiu-seaoberçário;aoseaproximardamoitadeamoreiras,ouviuummiadofamiliar.–CoraçãodeFogo!Sentiuumaluzdeesperança.Talvezoamigoestivesseagradecidoporele
ter ficado como último lugar na tropa de assalto. Seguiu a voz de ListraCinzentaatéassombrasportrásdoberçário.CoraçãodeFogochamoubaixinhonapenumbra,masnãoconseguiuvê-
lo.Derepente,umgolpeviolentooatingiuemcheionoladodocorpo.Elerodopiou,comtodosossentidosemalerta.Viu,então,ListraCinzentacomocangotearrepiado,asilhuetarecortadanaescuridão.O gato cinza arremessou-se de novo; Coração de Fogo abaixou-se a
tempodeevitarumapatadanaorelha.–Oquevocêestáfazendo?–disparouCoraçãodeFogo.Comasorelhasabaixadas,ListraCinzentasibilou:–Vocênãoconfiouem
mim!PensouqueeufossetrairoClãdoTrovão!–Desferiu-lheoutrogolpe,queacertouapontadaorelhadeCoraçãodeFogo.Tomadodedorefúria,CoraçãodeFogodisparou:–Sóqueriapoupar-lhe
umaescolha.Emboraeudefatonãosaibacomcertezaaquemvocêélealnestemomento.
Listra Cinzenta voou para cima do amigo, derrubando-o para trás. Osdoisseatracaram,todasasgarrasdefora.–Façominhasprópriasescolhas–rugiuListraCinzenta.CoraçãodeFogoconseguiuselibertarepulounascostasdogatocinza.–
Sóestavatentandoprotegê-lo!–Nãoprecisodeproteção.Cegoderaiva,CoraçãodeFogoenterrouasgarrasnapelagemdeListra
Cinzenta,quesereviroucomummovimentobruscoe,embolados,rolaramparaaclareira.Os gatos que lá estavam abriram caminho quando viram os jovens
guerreiros engalfinhando-se na sua direção. Coração de Fogo urrou deraiva quando Listra Cinzenta mordeu-lhe a pata dianteira. Com a garra,feriuoamigoacimadoolho.ListraCinzentasevingoucravandoosdentesnapernadoguerreiroavermelhado.–Paremcomissoimediatamente!–OmiadoseverodeEstrelaAzulfezos
doiscongelarem.CoraçãodeFogosoltouListraCinzentaearrastou-separaolado,comdor.Ogatocinzaseafastou,opeloeriçado.Pelocantodoolho,CoraçãodeFogoviuGarradeTigrecomoslábioscrispados,mostrandoosdentes,malconseguindodisfarçaroprazer.–CoraçãodeFogo,querovê-lo imediatamentenaminha toca; agora!–
repreendeuEstrelaAzul, os olhos faiscando. –E você, ListraCinzenta, váparaoseuninhoefiquelá!O resto do clã se dispersou na escuridão. Coração de Fogo,mancando,
seguiuEstrelaAzul.Mantinhaosolhosbaixosesentia-seexaustoeconfuso.Agatasentou-senochãoarenosoe,incrédula,encarouporummomento
ojovemguerreiro.Entãoperguntoufuriosa:–Masoquefoiaquilo?Elebalançouacabeça.Apesardaraiva,nãopodiarevelarosegredodo
amigo.Alíderfechouosolhoserespiroufundo.–Perceboqueosânimosandam
bem exaltados no acampamento, mas nunca esperei ver você e ListraCinzentabrigando.Vocêestáferido?Oguerreirosentiaaorelhaeapernaqueimando,masdeudeombrose
murmurou:–Não.–Vaimedizeroqueaconteceu?Ele sustentou o olhar firme da gata. – Sinto muito, Estrela Azul, não
posso.–Aomenosistoéverdade,elepensou.
–Muitobem–elamiou,porfim.–Acertemessahistóriaentrevocês.Oclã está enfrentando tempos difíceis e não vou tolerar nenhuma disputainterna.Ficouclaro?–Sim,EstrelaAzul.Possoiragora?AlíderaquiesceueCoraçãodeFogosaiu,conscientedeterdecepcionado
aantigamentora.Masnãopodiaseabrircomela.Daúltimavezquefizeraisso,aocontar-lhedasacusaçõesdePataNegraaGarradeTigre, elanãoacreditara.Eagora,seacreditasse,eleestariatraindoseumelhoramigo.Doentedepreocupação,esgueirou-seatéaclareiraefoiparaatocados
guerreiros. Instalou-se em seu ninho, ao lado de Listra Cinzenta, eenroscou-senumabolabemapertada.Ali ficou, imóvel,apenasprestandoatençãoaocorpotensodoamigo,atéosonofinalmentechegar.
Coração de Fogo acordou cedo namanhã seguinte. O sol ainda não selevantaraeaclareiraestavavaziaquandoeleaatravessouparairàtocadePresaAmarela.QueriaverPatadeCinza.A curandeira dormia enrodilhada perto dos filhotes doentes de Cara
Rajada. Com os olhinhos ainda fechados,mexiam-se no ninho, sem fazerbarulho.PresaAmarelaroncavaruidosamente.Comonãoqueriaacordá-la,CoraçãodeFogoesgueirou-sesilenciosamenteatéoninhodePatadeCinzaeespiou.A jovem também dormia. O sangue do pelo fora lavado, e o gato se
perguntouseelamesmaselimparaouseteriasidotrabalhodacurandeira.Agachou-se do lado dela e observou-a respirar. Havia algo detranquilizadornomovimentoconstantedeseupeito.Ela tambémpareciamuitomaiscalmadoquenaúltimavisita.Ali permaneceuaté a luzda aurora infiltrar-sepelas samambaias e ele
começar aouviros ruídosdo clã semovimentando.Debruçou-se sobreoninhodajovemetocou-asuavementecomonariz.Quandoestavasaindo,PresaAmarelaabriuosolhos,espreguiçou-seeo
chamou:–CoraçãodeFogo?–VimverPatadeCinza–elesussurrou.–Elaestámelhorando–disseacurandeira,levantando-se.Osolhosdogatoseencheramdealívio.–Obrigado,PresaAmarela.Quandoalcançouaclareira,viuqueGarradeTigrefalavaaumgrupode
guerreiros e aprendizes. O representante logo o viu. – Que gentil de sua
parte aparecer – rosnou. – Listra Cinzenta também acabou de chegar.EstavatendoumaconversacomEstrelaAzul–CoraçãodeFogoolhouparao amigo, que, no entanto, mantinha o olhar baixo. Os outros guerreirosobservaramemsilêncioenquantoCoraçãodeFogoapressou-seasentaraoladodePatadeAreia.–Duranteodegelo,aflorestavaifervilhardepresas–começouGarrade
Tigre–eafomeasempurraráparaforadastocasdepoisdahibernação.Vaisernossaoportunidadedecaçaromáximoquepudermos.–Masaindatemospresasfrescasarmazenadasnaneve…–miouPatade
Poeira.– Em breve serão carniça – disse o guerreiro. – Temos de aproveitar
qualquer oportunidade de caçar. À medida que a estação sem folhasavançar,aspresasvãocomeçaradesaparecer,easquesobraremestarãomagrinhasdemais.–Osguerreirosconcordaram.–RaboLongo–GarradeTigrevoltou-separaoguerreiroamarelo-pálido
–, quero que organize as expedições de caça. – O gato aquiesceu. OrepresentanteselevantouefoiparaatocadeEstrelaAzul.CoraçãodeFogoobservou-odesaparecernacortinadelíquen,imaginandosediscutiriamabrigaentreeleeListraCinzenta.RaboLongoarrancou-odospensamentos:–CoraçãodeFogo,vocêePata
deAreiavãosaircomPelodeRato.ListraCinzentapodecaçarcomNevascaePatadeSamambaia.Émelhornãocolocarvocêsdoisnomesmogrupo.Osguerreirosronronaram,divertidos,masCoraçãodeFogosemicerrou
osolhos,zangado.Consolou-seobservandoocortequefizeranaorelhadeRaboLongo,quezombaradelenodiadesuachegadaaoacampamento.– Grande luta, a de ontem – disse, travessa, Pelo de Rato, os olhos
brilhandodemalícia.–Quasevaleupelabatalhaquenãohouve.CoraçãodeFogo fechouacaraquandoPatadePoeiraacrescentou:–É
mesmo,grandetécnica…paraumgatinhodegente.–Oguerreirorangeuosdenteseabaixouosolhos,mostrandoasgarrase,emseguida,escondendo-as.Osdoisgruposdeixaramjuntosoacampamento.Enquantooscaçadores
subiamatrilhaparaforadaravina,CoraçãodeFogoolhouocéu.Asnuvensde chuva da noite anterior cobriam o sol agora, e a neve sob as patascomeçavaavirarlama.PelodeRatoguiouPatadeAreiaeCoraçãodeFogoatravésdosPinheiros
Altos. – Levarei Pata de Areia comigo – disse Pelo de Rato. – Você pode
caçarsozinho.Encontre-nosnoacampamentonosolalto.Coração de Fogo sentiu-se aliviado por estar sozinho. Vagou entre as
árvores,aindasemacreditarqueeleeListraCinzentahaviambrigadocomtanta ferocidade. Sentia-se perdido e solitário sem o velho companheiro,mesmoquequasenãooreconhecessemais. Imaginavasevoltariamaseramigos.Sóquandosentiuamaciezdas folhas sobaspatas,percebeuque tinha
feito todoocaminhoatéa florestadecarvalho,atrásdoLugardosDuas-Pernas.NomesmomomentopensouemPrincesae seperguntou se suaspatasnãoocarregaramatéaliporalgummotivo.Foi direto à cerca e, baixinho, chamou a irmã. Depois, saltou para a
florestaeesperouqueelaaparecesse.Nãodemorouatéouvirumarranharnacercaesentirocheirofamiliarde
Princesa. Estava prestes a pular na sua direção quando percebeu, derepente,outroodor,desconhecido.As samambaias farfalharam e, do meio delas, Princesa apareceu.
Carregavanabocaumminúsculogatinhobrancopelo cangote.Quandooguerreiro saiu ao encontro da irmã, ela o cumprimentou com ummiadocalorosoentreosdentes,queseguravamabolinhadepelo.Ofilhoteeramuitopequeno.Comcertezaaindasepassariaoutraluaaté
serdesmamado.Comapata,Princesaafastouumpoucodanevederretidae delicadamente colocou o bebê sobre as folhas. Depois, sentou-se e oenvolveucomacaudadepelomuitoespesso.CoraçãodeFogosentia-sesufocardeemoção.Aquelefilhoteeradoseu
sangue, nascido gatinho de gente como ele! Aproximou-se devagar ecumprimentou Princesa com um afago de nariz. Abaixou-se e farejou ofilhote. Tinha um cheiro bom de calor e leite; estranho, mas de algumaforma também familiar. Deu-lhe uma lambida carinhosa na cabeça e ogatinho miou, abrindo a boquinha rosa, que revelou minúsculos dentesbrancos.Princesa fixou no irmão os olhos brilhantes. – Trouxe-o para você,
CoraçãodeFogo–mioudevagar.–Queroqueoleveparaoclã,paraqueelesetorneseunovoaprendiz.
CAPÍTULO21
CORAÇÃO DE FOGO OLHOU para o minúsculo gatinho. – Nunca imaginei… –Depois,emsilêncio,fitouairmã.–Opessoaldacasavaiescolherondevaiviverorestodaninhada–disse
Princesa –, mas esse é meu primogênito e quero eu mesma decidir seufuturo. – Ergueu o queixo e continuou: – Faça dele um herói, por favor.Comovocê!OsentimentosufocantedesolidãoquedevastavaCoraçãodeFogohavia
tanto tempo começou a desaparecer. Imaginou o gatinho branco no clã,aprendendo com ele a viver na floresta, caçando a seu lado emmeio àssamambaiasespessas.Enfim,outrogatonoClãdoTrovãoparadividircomeleasraízesdegatinhodegente.Princesainclinouacabeça:–Seiquevocêestámuitoabaladoporcausa
de Pata de Cinza. Quem sabe se você tomasse outro aprendiz, um domesmosangue,nãosesentiriatãosolitário.–Esticouopescoçoeencostouo focinhono irmão.–Seiquenãoconheçotodososcostumesdoclã,masvendo você e ouvindo-o falar sobre sua vida, achei que seria uma honrameufilhosereducadocomoumgatodeclã.Assimqueaalegriaseacalmoudentrodele,CoraçãodeFogopensouno
clã e em quanto precisavam de guerreiros. Pata de Cinza nunca maispoderialutar.Eseatosseverdelevasseoutrasvidas,alémdaquetomaradeEstrelaAzul?Talvezoclãprecisassedaquelefilhote.De repente, deu-se conta da chuva molhando-lhe o pelo. Precisava
abrigarosobrinhoomaisrápidopossível,pois,emboraparecesseforte,eraaindapequenodemaisparasuportarofrioeaumidadepormuitotempo.– Vou levá-lo – miou. – É um presente inestimável que você está
oferecendoaoclã.Evoutreiná-loparaseromelhorguerreiroquejáseviu.–Inclinouacabeçaepegouogatinhopelocangote.Os olhos de Princesa brilharam de gratidão e orgulho. – Obrigada,
CoraçãodeFogo–ronronou.–Quemsabeelese tornaum lídererecebanovevidas!O guerreiro observou com ternura a expressão confiante e cheia de
esperança da irmã. Será que ela realmente acreditava que isso pudesseacontecer?Sentiunascerumapontadedúvida.Estavalevandoosobrinhoparaumlugarinfectadopelatosseverde;eseelenãoresistissesequeraté
o renovo? Mas o cheiro gostoso do filhote em seu nariz o acalmou. Iriasobreviver, sim. Era forte, e tinham o mesmo sangue. Coração de Fogorespiroufundoeresolveuseapressar,poisogatinhojácomeçavaaterfrio.Deu uma piscadela de adeus para Princesa e precipitou-se através dosarbustos.O bebê era mais pesado do que parecia e reclamava com gritinhos
quandoseucorpobatianaspatasdianteirasdoguerreiro.QuandoCoraçãode Fogo chegou ao topo da ravina, sua nuca doía muito. Desceu até oacampamento,umapatadepoisdaoutra,tomandotodoocuidadoparanãoescorregarnaneve,quederretiarapidamente.Coração de Fogo hesitou. Pela primeira vez tentou imaginar que
explicação daria ao clã para a presença do filhote. Teria de admitir quevisitara a irmã. Mas era tarde demais. Sentia o pequeno tremer. Então,endireitouosombroseatravessouotúneldetojos.Umespinhoespetouobebê,quemioualto.Diversosparesdeolhos,surpresos,voltaram-separaelesquandosurgiramnaclareira.As duas patrulhas já tinham voltado. Pele de Geada, Nevasca, Pata de
AreiaePatadeSamambaiaestavamtodoslá.SófaltavaListraCinzenta.Uma um, os gatos saíram das tocas, atraídos pelo ruído e pelo cheirodesconhecido.Ninguémfaziabarulho;olhavamparaoguerreiro,cheiosdesurpresaehostilidade,comosefosseumestranho.Do centro da clareira, o filhote ainda balançando entre os dentes,
Coração de Fogo olhava o círculo de olhares indagadores. Tinha a bocaseca.Porqueimaginaraqueoclãacolheriaumfelinoquenemsequertinhanascidonafloresta?QuandoEstrelaAzul deixou a toca dePresaAmarela, Coraçãode Fogo
suspiroualiviado.Elaarregalouosolhos,surpresa,eperguntou:–Oqueéisso?Um arrepio de apreensão correu pela espinha do jovem guerreiro.
Colocouosobrinhoentreaspatasdafrenteeenvolveu-ocomacaudaparamantê-loaquecido.–Éoprimogênitodeminhairmã.–Suairmã?–GarradeTigreoolhou,acusador.–Vocêtemumairmã?–indagouCaudaSarapintada.–Onde?– No mesmo lugar onde ele nasceu, claro – disse Garra de Tigre com
desagrado.–NoLugardosDuas-Pernas!– É verdade? – perguntou Estrela Azul, os olhos cada vez mais
arregalados.
–É,sim–admitiuCoraçãodeFogo.–Minhairmãmepediuparacriá-lonoclã.– E por que ela faria isso? – perguntou a líder, com uma calma
ameaçadora.–Conteisobreavidanoclã,comoéfantástica…–suavoztremiasobo
olharincrédulodeEstrelaAzul.–HáquantotempovocêvisitaoLugardosDuas-Pernas?–Nãomuito.Desdeocomeçodaestaçãosemfolhas,masapenasparaver
minhairmã.MinhalealdadeaindapertenceaoClãdoTrovão.–Lealdade?–ogritodeRiscaNegraressoounaclareira.–Evocêainda
trazumgatinhodegente?–Seráqueumjánãoébastante?–grunhiuumdosanciãos.–Nada comoumgatinhode gente para encontrar outro! – resmungou
PatadePoeiracomindignação,opeloarrepiado,cutucandoPatadeAreiacom o nariz. A gata, desconfortável, olhou para Coração de Fogo e, emseguida,pôs-seafitarasprópriaspatas.–Porquevocêotrouxeaqui?–repreendeuGarradeTigre.– Precisamos de guerreiros… – O filhote se contorcia sob sua barriga
enquantoCoraçãodeFogo falava,eelesedeucontadecomodeviaestarparecendoridículo.Abaixoua cabeçadiantedosmiadosdedesprezoquevieramemrespostaàssuasexplicações.Assimqueaondade insultos cessou,VentoVeloz falou: –O clã já tem
problemasdemaiscomquesepreocupar!– Vai sermais um fardo! – reforçou Pelo de Rato. – Serão pelomenos
cincoluasatéestarprontoparacomeçaratreinar.Nevasca concordou comPelodeRatoe completou: –Vocênãodeveria
tertrazidoessegatinhodegente.Eleédelicadodemaisparaavidadeclã.OpelodeCoraçãodeFogoseeriçou:–Eunascigatinhodegente.Será
quetambémsoumuitodelicado?–perguntou.Achavaquesuapresençanoacampamentotinhacomeçadoabaniropreconceitocontraosgatinhosdegente,masestavaerrado.Nãovianemumrostoamigávelentreosfelinos.Derepente,portrásdeNevasca,ergueu-seumavoz:–Seofilhotetemo
mesmosanguedeCoraçãodeFogo,comcertezaseráumgrandeguerreiro.EraListraCinzenta!UmaondadealíviopercorreuCoraçãodeFogo,que
sentiuumacentelhadeesperançabrotarnoseupeitoquandoNevascadeuumpassoparao ladoeosgatospuderamveroguerreirocinzento.Listra
Cinzentapasseouosolhospelo círculode felinos, encarando-osumaumcomolharfirmeefranco.–Mudatudoouvirvocêdefenderoamigoaquemontemànoitequeria
fazerempedaços–zombouRaboLongo.Listra Cinzenta fitou o gato de pelo desbotado. Depois virou-se para
RiscaNegra. Este o desafiava: – É verdade! Como é que você sabe que osanguedeCoraçãodeFogoédignodoClãdoTrovão?Sentiuogostoontemquandotentouarrancarumpedaçodapernadele?Estrela Azul avançou, os olhos azuis embaçados de preocupação: –
CoraçãodeFogo,creioquevocênãopensavaemserdeslealquandovisitousua irmã,masporqueaceitou trazero filhote?Não lhecabeesse tipodedecisão,poisafetaoclãinteiro.CoraçãodeFogoolhouparaListraCinzentaesperandomaisapoio,maso
amigo desviou o rosto. Procurou, então, amparo em volta, mas todos osdemaisfelinosfizeramomesmo.Opânicotomoucontadele.SeráquetertrazidoofilhotedePrincesacomprometerasuaposiçãonoclã?EstrelaAzulvoltouafalar:–Oqueacha,GarradeTigre?–Oqueeuacho?–miouorepresentante,comavozcarregadadeuma
satisfação arrogante que fez o coração do guerreiro gelar – Acho quedeveriaselivrardeleagoramesmo.–FlorDourada?– Com certeza parece pequeno demais para sobreviver até o renovo –
observouarainhaalaranjada.–Jávaiestarcomatosseverdeamanhãdemanhã–acrescentouPelode
Rato.– Ou comerá nossas presas frescas até a próxima nevasca e depois
morrerádefrio–disparouNarizMolhado.A líder abaixou a cabeça: – Chega! Preciso refletir sobre o assunto. –
Entrouemsua tocaedesapareceu.Orestodoclãdispersou,sussurrandodemodosombrio.Coraçãode Fogopegouo filhote ensopado e o carregou até a tocados
guerreiros.Opequeno tremiaemiavadedardó.Enroscouseucorpoemtornodaquelepedacinhodegatoefechouosolhos,masosrostoshostisdoclãvagavamemsuamente,enchendo-odepavor.Antesseachavasolitário;agora,porém,pareciaqueoclãinteiroorenegara.ListraCinzentaentrounatocaeacomodou-senoninho.CoraçãodeFogo
olhou para ele, nervoso. O amigo tinha sido o único a tomar sua defesa;queria agradecer-lhe. Depois de uma pausa bastante desconfortável, emqueofilhotechorousemparar,murmurou:–Obrigadoportermeapoiado.ListraCinzentadeudeombros:–Tudobem–miou.–Ninguémmaisfaria
issoporvocê.–Virouacabeçaecomeçoualavaracauda.O filhote continuava miando cada vez mais forte. Alguns dos outros
guerreirosentraramnatocaparaescapardachuva.PeledeSalgueiroolhourapidamenteparaCoraçãodeFogoeobichano,masnadadisse.–Veja se fazessacoisacalaraboca!– reclamouRiscaNegraenquanto
afofavaoninho.Coração de Fogo lambia o bebê desesperadamente, imaginando-o
faminto. Um ruído na parede da toca fez o jovem guerreiro levantar acabeça. Era Pele de Geada. Ela se aproximou e olhou o pobre filhote. Derepente,abaixouacabeçaecheirou-lheapelagemmacia.–Émelhorlevá-loparaoberçário–murmurou.–CaraRajadatemleitedesobra.Voupediraelaqueoalimente.Surpreso,CoraçãodeFogoolhouparaarainha.Ela devolveu o olhar, calorosa: – Não esqueci que você resgatoumeus
filhosdoClãdasSombras.O guerreiropegouobebê e a seguiu.A chuva estavamais forte, e eles
tiveram que correr. A gata desapareceu pela porta estreita do berçário,enquanto Coração de Fogo se espremia para entrar também. Parou namoitade amoreiras, piscando atéqueos olhos se acostumassemàpoucaluz.Dentrodocasulosecoeescuro,CaraRajadaestavaenroscadaàvoltados
doisfilhotessaudáveis.Olhoucomdesconfiança,primeiroparaoguerreiro,depoisparaominúsculoanimalentreseusdentes.PeledeGeadasussurrouparaCoraçãodeFogo:–UmdosfilhotesdeCara
Rajada morreu ontem à noite. – O guerreiro lembrou-se dos bebês secontorcendo perto de Presa Amarela e, penalizado, tentou imaginar qualteria sido. Colocou o filhote de Princesa no chão e voltou-se para CaraRajada:–Sintomuito–murmurou.Arainhapiscouparaele,adorestampadanosolhos.– Cara Rajada – começou Pele de Geada –, posso apenas imaginar o
tamanhodasuador.Masesse filhoteestámorrendode fome,evocê temleite.Seráquepodealimentá-lo?A rainha balançou a cabeça e fechou bem os olhos, como se quisesse
negarapresençadeCoraçãodeFogonatoca.PeledeGeadaesticouopescoçoeafagou-lheabochechacomonariz.–
Sei que ele não substituirá o filho que você perdeu – sussurrou –, masprecisadeseucalorecuidado.Coração de Fogo aguardava ansiosamente. O filhote chorava cada vez
mais alto. Sentindo o cheiro do leite da gata, começou a se contorcer àscegas,nadireçãodabarrigamacia,abrindocaminhoentreosoutrosdoisfilhotes com o focinho. Cara Rajada ficou observando-o, enquanto eleavançava,seguindooodordoleite.E,semoferecerresistência,deixouqueele se aninhasse em suabarriga e começasse amamar.O guerreiro ficoualiviadoeagradecidoaoveraexpressãodarainhaseabrandareogatinhobrancoronronar,apertandooventreinchadocomasminúsculaspatinhas.PeledeGeadabalançouacabeça:–Obrigada,CaraRajada.Possodizera
EstrelaAzulquevocêvaicuidardele?–Pode– replicoua rainhacalmamente, semafastarosolhosdo filhote
branco.Comumadaspatastraseiras,aproximou-odabarriga.CoraçãodeFogo ronronoue tocouoombrodagata. –Muitoobrigado.
Prometoquevoutrazertodososdiaspresasfrescasemdobroparavocê.–VoucontaraEstrelaAzul–miouPeledeGeada.CoraçãodeFogoolhouparaarainhabranca,comovidocomsuabondade.
–Muitoobrigado–miou.–Nenhumfilhotemerecemorrerdefome,nascidonoclãounão–disse
PeledeGeada;emseguida,saiudasamoreiras.– Você pode ir agora – disse Cara Rajada. – Seu filhote estará seguro
comigo.Coração de Fogo aquiesceu e saiu na chuva, seguindo Pele de Geada.
Pensouemvoltarparaatoca,massabiaquenãoconseguiriadescansaratéouviradecisãodeEstrelaAzul.Enquanto andavana clareira, comopelo todo encharcado, viu Pele de
GeadasairdatocadeEstrelaAzulecorrerparaoberçário.PeledeSalgueirosepreparavaparatomarafrentedapatrulhadanoite
quandoalídertambémsaiu.CoraçãodeFogoparou;seucoraçãobatiacomtantaforçaqueeleachouqueaspernasnãoiamaguentar.AlídersubiunaPedraGrandeecomeçouaconclamarosfelinos.–QuetodososgatoscomidadesuficienteparacaçaraprópriacomidasereúnamaospésdaPedraGrande.
Apatrulha,jánaentradadoacampamento,deumeia-voltaeseguiuPelede Salgueiro até a rocha. Os outros gatos começaram a deixar os ninhosquentinhos, reclamandoda chuva. Comar sombrio,GarradeTigrepulouparaapedraecolocou-seaoladodalíder.Eles vão me fazer levá-lo de volta, pensou Coração de Fogo. Sua
respiração tornou-se ofegante. Pensamentos sombrios o incomodavam.Ese Estrela Azul pedir que Garra de Tigre o abandone na floresta? Jamaissobreviverá.Ah,ClãdasEstrelas,oquedireiaPrincesa?Quando todos estavam acomodados, a líder falou: – Gatos do Clã do
Trovão, ninguémpode negar que precisamos de guerreiros. Já perdemosumcompanheiroparaa tosseverdeemuitas luasdevem-sepassarantesdorenovo.PatadeCinzafoigravementeferidaenãocreioquevenhaaserumaguerreira.ComoListraCinzentatãobemobservou…Coração de Fogo voltou-se e encarou Pata de Poeira quando o ouvir
sussurrar: – Listra Cinzenta também está virando gatinho de gente! –Porém,omiadodeumdosanciãosfezojovemcalar-seantesqueCoraçãodeFogopudesserevidar.–ComoListraCinzentatãobemobservou–repetiualíder–,essegatinho
degentecarregaosanguedeCoraçãodeFogo.Temboapossibilidadedevir a ser também um grande guerreiro. – Alguns membros do Clã sevoltaramparaCoraçãodeFogo,quemalouviraoelogiodalíder.Começavaasentiresperançanopeito,eissoodeixoumeiozonzo.EstrelaAzulfezumapequenapausaparaobservarogrupoàsuafrente.–
Decidiqueacolheremosessefilhotenoclã–declarou.Nenhumfelinosemanifestou.CoraçãodeFogoquisagradecerbemalto
aoClãdasEstrelas,masseconteve.Respiroufundopelaprimeiravezdesdeosolalto.AlguémdesuaprópriafamíliaiafazerpartedoClãdoTrovão!–CaraRajadaseofereceuparacuidardele–continuouEstrelaAzul–e
CoraçãodeFogoteráaincumbênciadefornecer-lhepresas.–Osolhosdalíder encontraram os do antigo aprendiz,mas ele nada conseguiu ler naexpressãodagata.–Finalmente,eletemqueterumnome.SeráchamadoFilhotedeNuvem.–Haveráumacerimôniadenomeação?–perguntouPelodeRato.CoraçãodeFogoolhou, ansioso,paraaPedraGrande.O sobrinho teria
esseprivilégio,assimcomoele,aoseraceitonoclã?EstrelaAzullançouumolhargélidoparaPelodeRato:–Não.
CAPÍTULO22
OSDIASATÉALUACHEIApareciamsearrastar.ParaCoraçãodeFogoeracomose séculoshouvessem transcorridodesdeaReunião.Asnuvensde chuvahaviam coberto a lua, e os clãs tinham ficado longe de Quatro Árvores.Desdeentão,umapatrulhadepoisdaoutrarelatavaterfarejadoodoresdosguerreiros do Clã do Rio nas Rochas Ensolaradas, e o cheiro do Clã dasSombras,maisumavez,forasentidopertodaÁrvoredaCoruja.Quandonãoestavacaçandoouempatrulha,CoraçãodeFogosedividia
entreFilhotedeNuvem,PatadeCinzaePatadeSamambaia.EmboraListraCinzenta tivesse reassumido o papel de mentor de Pata de Samambaia,CoraçãodeFogopercebeuqueojovem,muitasvezes,ficavaàtoa,jáqueomentordesaparecia.–Estácaçando–eratudooqueoaprendizrespondiaquandoCoraçãodeFogoqueriasaberdeListraCinzenta.–Porquevocênãofoijunto?–Elemedissequepossoiramanhã.A obstinação do amigo sempre despertava em Coração de Fogo certa
raiva,maseleacabavadeixandoparalá.Tinhadesistidodetentarchamá-loàrazão.Desdequetrouxeraosobrinhoparaoacampamento,malhaviamse falado,maseleprocurava levarPatadeSamambaia semprequeListraCinzentasumia,deformaamanterojovemforadevista.SabiaqueGarradeTigrenãoaceitariatãofacilmenteasrespostasdoaprendiz.Finalmentealuacheiaapareceunumcéusemnuvens.CoraçãodeFogo
voltoucedodacaça.Passouemfrenteaocarvalhocaído,abandonadodesdeque Pata Ligeira e o filhote de Cauda Sarapintada tinham se recuperado.DeixounapilhaaspresasquetrouxeraefoivisitarPatadeCinzanatocadePresa Amarela. Até mesmo a ameaça da tosse verde tinha deixado oacampamento.Apenassuaantigaaprendizpermaneciacomacurandeira.Noquepassoupelotúnel,CoraçãodeFogopercebeuagatacinzentano
meio da clareira ajudando Presa Amarela a preparar algumas ervas. Seucoraçãoestremeceuaovê-lamancandomuito,indoparaarochapartida,abocacheiadefolhassecas.– Coração de Fogo! – a jovem soltou as folhas e voltou-se para
cumprimentá-lo. – Quase não farejei você por causa dessas coisasmalcheirosas!– Pois essas coisasmalcheirosas ajudaram a curar sua perna – ralhou
PresaAmarela.– Então, você deveria ter usado mais – retorquiu Pata de Cinza. Um
brilhotravessoiluminavaosolhosdajovem,causandoalívioaomentor.–Olhe só! – ela disse, balançando a perna torta. – Mal consigo alcançarminhasgarrasparalavá-las.–Achomelhorpassaralgunsoutrosexercíciosdealongamento…–miou
PresaAmarela.–Nempensar, obrigada – a jovem se apressou em responder. –Doem
muito!– São feitosparadoermesmo! Issomostraque estão funcionando. –A
curandeiravoltou-separaCoraçãodeFogo:–Talvezvocêtenhamaissortedo que eu para convencê-la a fazer os exercícios. Vou à floresta pegaralgumasraízesdeconfrei.–Voutentar–respondeuojovemguerreiroquandoagatapassou.– Você vai saber se ela está se exercitando direito; se estiver, vai
reclamar!–disseacurandeiraporcimadoombro.PatadeCinzafoimancandoatéCoraçãodeFogoe,comonariz,tocouo
focinhodomentor.–Obrigadapelavisita.–Sentou-see,escondendoapatamachucadadebaixodocorpo,fezumacaretaporcausadador.– Gosto de vir aqui para vê-la. Sinto falta das nossas sessões de
treinamento.–Malacaboudefalar,searrependeu.Um ar nostálgico anuviou os olhos da aprendiz. – Eu também.Quando
achaquepoderemosrecomeçar?Oguerreiroafitoucomocoraçãoapertado.ComcertezaPresaAmarela
ainda não contara a Pata de Cinza que ela nunca seria uma guerreira. –Quemsabe, se tentarmosmais algunsexercícios, talvez ajude– elemiou,evasivo.–Estábem.Massóumpouquinho.Aaprendizsedeitoudeladoeesticouapataatéorostosecontorcerde
dor.Depois, devagar, cerrou os dentes e começou amover a pata para afrenteeparatrás.– Você está indo muito bem – miou Coração de Fogo, escondendo a
tristezaquepesavacomopedraemseupeito.Pata de Cinza deixou cair a perna, ficando deitada, imóvel, e depois se
levantou.Omentoraobservavaemsilêncio.Elasacudiuacabeçaemiou:–Nuncasereiumaguerreira,nãoé?
Ele não podia mentir. – Não – balbuciou. – Sinto muito, mesmo. –Aproximou-seedeu-lheumalambidanacabeça.Passadosalgunsminutos,ajovemsoltouumlongosuspiroedeitou-sedenovo.–Jásabia–miou–,mas,àsvezes,sonhoqueestounafloresta,caçando
comPatadeSamambaia;acordoeadornapernamefazlembrarquenuncamaiscaçarei.Édemaisparasuportar.Então,finjoacreditarque,talvez,umdia,issoaconteça.Ele não aguentou vê-la tão deprimida. – Vou levá-la para a floresta
comigo–prometeu. –Encontraremoso ratomaisvelhoemais lentoquehouver.Elenãovaiteramenorchancecomvocê.Aaprendizolhouparaeleeronronou,agradecida.CoraçãodeFogoretribuiuocumprimento,mashaviaumaperguntaque
o incomodava desde o acidente: – Pata de Cinza, você lembra o queaconteceuquandoomonstrobateuemvocê?GarradeTigreestavalá?Os olhos dela se anuviaram, confusos: – Não… não sei – titubeou. O
guerreirosentiucertaculpaaovê-laseencolherporcausadaslembranças.– Fui direto ao freixo queimado onde Pata de Poeira disse que Garra deTigreestaria,eaíapareceuomonstro…realmente,nãolembro.–Vocênãotinhacomosaberqueeratãoestreitoali.–CoraçãodeFogo
balançouacabeçadevagar.–VocêdevetercorridodiretoparaoCaminhodo Trovão. – Por que Garra de Tigre não estava onde disse que estaria?pensou, com uma ponta de raiva. Poderia ao menos ter impedido que semachucasse!AspalavrasfataisdePrincesavoltaramàsuamente.Seráquefoi uma armadilha? Pensou em Garra de Tigre agachado de forma que oventonãoodenunciasse,entreasárvores,observandoabeiradafloresta,esperando…–ComovaiFilhotedeNuvem?–omiadodePatadeCinzacortouo fio
dos pensamentos do guerreiro. Estava claro que ela queria mudar deassunto.CoraçãodeFogoficoufelizporfalarnosobrinho:–Estácadavezmaior–
miou,orgulhoso.–Estouloucaparaconhecê-lo.Quandoeleviráaqui?–AssimqueCaraRajadapermitir.Achoque,porenquanto,elanãovai
deixá-loirmuitolonge.–Entãoelagostadele?–GraçasaoClãdasEstrelas,elaotratacomoaosoutrosfilhotes.Paraser
honesto,não tinhacertezaseela ficaria comele, jáqueé tãodiferente.–
Nemopróprio guerreiropoderianegarqueopelo fofo e cordenevedosobrinhopareciadestoardosdemais, depelo curto e sarapintado. –Pelomenoselesedábemcomoscolegasdeberçário…–AvozdeCoraçãodeFogohesitoueeleabaixouosolhos,ansioso.–Oquefoi?–PatadeCinzaperguntou,gentil.CoraçãodeFogodeudeombros:–Équeficoaborrecidocomamaneira
comoosoutrosgatosoolham,comoseelefossetoloouinútil.–Elepercebeosolhares?CoraçãodeFogofezquenão.–Então,nãosepreocupe.–MasFilhotedeNuvemnemsabequenasceugatinhodegente.Imagino
quepensequeédeoutroclã.Sóqueseosoutroscontinuaremaolhá-lodemodoenviesado,vaiacharqueháalgoerradocomele.–CoraçãodeFogoolhouparaasprópriaspatas,contrariado.–Algo errado comele? – a aprendiz repetiu, espantada. –Você nasceu
gatinhodegenteenãohánadaerradocomvocê!QuandoFilhotedeNuvemsouberdeondeveio,comcertezajáserácapazdeprovarqueumgatinhode gente pode ser tão bom quanto qualquer guerreiro nascido no clã…comovocêfez.–Esealguémcontarparaeleantesqueestejapronto?–Seeleforcomovocê,jánasceupronto!– Quando é que você ficou tão esperta? – perguntou Coração de Fogo,
surpresocomtantaperspicácia.Pata de Cinza rolou, deitando de barriga para cima, depois respondeu
fazendodrama: –O sofrimento faz isso comos gatos! –CoraçãodeFogocutucoucomapataabarrigadaaprendiz,quesoltouumgritinho,voltandoarolareadeitar-sedelado.–Quenada,brincadeira–miou–,masvejabemcomquemtenhopassadootempoultimamente!CoraçãodeFogoinclinouacabeça,semresposta.–ComPresaAmarela,seubobo!–brincouajovem.–Elaébastantesábia
e tenho aprendidomuito. – A gata sentou-se. – Presa Amarela disse quehaveráumaReuniãoestanoite.Vocêvai?–Nãosei.MaistardevouperguntaraEstrelaAzul.Vocêsabeque,neste
momento,minhapopularidadenoclãandameiobaixa.–Vaipassar–elaprometeu,cutucando-lheoombrocomonariz.–Nãoé
melhorvocêiremboraedescobrirsevaiàReunião?Elesdevemsairdaqui
apouco.–Temrazão.VocêvaificarbematéavoltadePresaAmarela?Querque
eupegueumapresafrescaparavocê?–Vouficarbem.EPresaAmarelametraráalgumacoisa.Elasempretraz.
Quandomederalta,vouseragatamaisgordadoclã.CoraçãodeFogosealegrouaoveraantigaaprendizrecuperandoobom
humor.Aindaficoutentadoapermaneceralilhefazendocompanhia,masagataestavacerta:tinhaqueverificarsepoderiaircomosoutros.–Então,vejovocêamanhã–miouoguerreiro.–ComcertezaaReuniãotrarámuitasnovidades.–Émesmo,evouquerersaberdetudo.TomaraqueEstrelaAzuldeixe
vocêir.Válogo!–Jávou,jávou–retorquiuele,levantando-se.–Atémais,PatadeCinza!–Até!Aochegaràbeiradadaclareira,CoraçãodeFogoparoueolhouemvolta
àprocuradeEstrelaAzul.AlíderconversavacomPeledeSalgueiroforadatoca.Quandooguerreiroasalcançou,aeleganterainhajáselevantavaparapartir.Elaocumprimentouesefoi.EstrelaAzulolhouparaCoraçãodeFogocomoquemjásabiadoquese
tratava. – Você quer ir à Reunião, não é? – ela miou. O guerreiro iaresponder,masalíderointerrompeu.–Todososguerreirosquerem,masnãopossolevartodoomundo.CoraçãodeFogoficoudesapontado.–QueriareverosfelinosdoClãdo
Ventodenovo–explicou.–Parasabercomoestãosesaindodesdequeoslevamosdevoltaparacasa.–OsolhosdeEstrelaAzulseestreitaram:–Nãoprecisa me lembrar do que você fez pelo Clã do Vento – miou, ríspida,fazendo o jovem guerreiro se encolher. –Mas você está certo emquerersaber–continuouagata.–VocêeListraCinzentapodemiràReunião.–Obrigado,EstrelaAzul.–VaiserumaReuniãobeminteressante–avisou.–OClãdoRioeoClã
dasSombrastêmmuitoaexplicar.Coração de Fogo sentiu as orelhas se contraírem de nervoso, mas, ao
mesmo tempo, não podia evitar certa empolgação. Estrela Azul pareciadeterminadaaexigirexplicaçõessobreas incursõesdeEstrelaTortaedeEstreladaNoite ao territóriodoClãdoTrovão.Ele inclinoua cabeçaemsinalderespeitoeseafastou.
O guerreiro pegava dois ratos silvestres para Cara Rajada na pilha depresasquandopercebeuPresaAmarelachegar.Tinhaaspatasenlameadase,naboca,traziaraízesgrossasenodosas,oqueindicavaqueabuscaporconfreitinhasidobem-sucedida.Coração de Fogo levou a caça para o berçário. Cara Rajada lá estava,
enroladacomoumabola,alimentandoFilhotedeNuvem.Osoutrosbebêsjá tinham deixado de mamar, e logo o sobrinho também provaria umapresafrescapelaprimeiravez.Quandoo jovemguerreiroentrou,arainha levantouosolhoscheiosde
preocupação:–AcabeidemandarchamarPresaAmarela.Namesma hora Coração de Fogo se apavorou: – Alguma coisa errada
comFilhotedeNuvem?–Eleestámeiofebrilhoje.–CaraRajadaseinclinoue lambeuacabeça
dogatinhoqueacabarademamareestavaagitado.–Provavelmentenãoénada,masacheimelhorconsultarPresaAmarela.Eu…n…nãoquerocorrernenhumrisco.Oguerreirolembrouquearainhatinhaacabadodeperderumfilhotee
esperavaqueaquilofosseapenasumexcessodezelo.MastinhadeadmitirqueFilhotedeNuvempareciarealmenteinquieto.–VireivervocêdepoisdaReunião–prometeu.Coração de Fogo voltou à pilha de presas para pegar comida. Aquela
notíciatinhaestragadoseuapetite,massabiaqueprecisavacomeralgumacoisaantesdajornadaqueteriapelafrenteatéQuatroÁrvores.EncontrouRaboLongoePatadePoeiraaoladodapilha.Achoumelhor
sentar-seeesperarquesefossem.–Não vi Bebê Chorão deNuvemhoje –miou Rabo Longo. Coração de
Fogosentiuumaondadefrustraçãodiantedocomentáriomalicioso.– Provavelmente percebeu que parece bobo e decidiu se esconder no
berçário–miouPatadePoeira.–Gostariadeestarláparavê-locaçarpelaprimeiravez.Comtodoaquele
pelofofoebranquinho,aspresasvãopercebê-lodelonge,aumaárvorededistância–RaboLongodebochou.–Amenosqueoconfundamcomumcogumelogigante!–osbigodesde
Pata de Poeira semexeram e ele olhou para Coração de Fogo com ar detroça.Comasorelhasabaixadas,oguerreiroavermelhadodesviouoolhar.Viu
Presa Amarela correr para o berçário com a boca cheia de camomila.
Infelizmente,osdois felinos tambémperceberam.–Parecequeogatinhodegentepegouumresfriado.Puxa,quesurpresa–miouRaboLongo.–FlorDourada tinha razão. Ele não vai sobreviver à estação sem folhas! –EncarouCoraçãodeFogo,esperando,emvão,queooutroreagisse;masogatooignorouefoiparaapilhadepresasfrescas.Escolheuumtordoeseafastou,cansadodaquelerancorsemfim.ListraCinzentaestavapertodasurtigas,dividindoarefeiçãocomVento
Velozque, aoveroCoraçãodeFogopassar,perguntou:–Então, fezumaboacaçada?–Fiz,sim.ListraCinzentanãolevantouosolhos.–EstrelaAzuldissequevocêpodeiràReunião–falouCoraçãodeFogo
aoamigo.–Jásei–elerespondeu,aindamastigando.–Vocêtambémvai?–perguntouCoraçãodeFogoaVentoVeloz.–Claroquesim!NãoperderiaessaReuniãopornadanomundo!CoraçãodeFogocontinuouseucaminhoeencontrouumlugartranquilo
nabeiradadaclareira.AspalavrasdeRaboLongoecoavamemsuacabeça.Seráquealgumdiaofilhotebrancoseriaaceitopeloclã?Fechouosolhosecomeçouaselavar.Quando se virou para lamber o lado do corpo, seus bigodes tocaram
algumacoisa.Abriuosolhos; eraPatadeAreia. Soba luzdo luar, opeloalaranjadodagatapareciafeitodeprata.–Acheiquetalvezvocêquisessecompanhia–miou.Elasesentouecomeçoualavarascostasdoguerreiro,comlambidaslongas,queoacalmaram.Com os olhos semicerrados, Coração de Fogo percebia Pata de Poeira
olhandodeforadatocadosaprendizes,incapazdedisfarçarasurpresaeodespeito.Oaprendiznãofoioúnicoaficarsurpresocomogesto.OpróprioCoração de Fogo nunca esperara tamanha demonstração de amizade dajovemcorajosa,maso carinhoerabem-vindoeelenão iaquestioná-lo. –VocêvaiàReunião?–oguerreiroperguntou.Apósumapausa,elarespondeu:–Vousim.Evocê?–Eutambém.AchoqueEstrelaAzulvaipedirexplicaçõesaEstrelaTorta
eEstreladaNoitearespeitodasincursõesdecaçaquefizeram.–Esperouqueagatarespondesse,maselaestavaobservandoocéuqueescurecia.– Gostaria de ir como guerreira – murmurou. Coração de Fogo se
contraiu, mas, pela primeira vez, não havia nem uma gota de inveja ouamarguranomiadodaaprendiz.Ficou um pouco sem jeito. Ele começara o treinamento havia menos
tempoquePatadeAreia,ejáfaziamaisdeduasluasqueeraguerreiro.–Não vai demorarparaEstrelaAzul dar a você o nomede guerreira – elemiou,tentandoencorajá-la.–Porqueseráqueestádemorandotanto?–elaperguntou,voltando-lhe
osolhosverdes.–Nãosei–admitiu.–EstrelaAzulestevedoenteeoClãdoRioeoClãdas
Sombras estão criandoproblemas. Achoque ela está commuita coisa nacabeça.–Maisdoquenunca,elaprecisadeguerreiros!CoraçãodeFogosentiuumaondadesimpatia.–Suponhoquesóesteja
esperando…pelomomentocerto.–Suaspalavrasnãoajudavammuito,masfoitudooqueachouparadizer.– Talvez no renovo – ela suspirou. – Quando é que você vai ter outro
aprendiz?–EstrelaAzulaindanãomedisse.–TalvezdesigneFilhotedeNuvemquandoeleficarmaisvelho.– Tomara. – Coração de Fogo olhou para o berçário do outro lado da
clareira, tentandoimaginarsePresaAmarela játinhaterminadodetratardofilhote.–Seelesobreviveratélá.–Comcertezaelevaisobreviver!–miouPatadeAreia,confiante.–Masestácomfebre–disseCoraçãodeFogo,preocupado,deixandocair
osombros.–Todososfilhotestêmfebre!–elaretorquiu.–Comaquelepeloespesso,
certamente vai se recuperar rápido. E a pelagem vai ser muito útil naestação sem folhas, quando caçar na neve. As presas não vão perceberquandoeleseaproximar;alémdoque,vaipoderficarmuitomaistempodoladodeforadoqueosgatosquasesempelo,comoRaboLongo!CoraçãodeFogoronronouerelaxou.Ajovemtinhaconseguidolevantar
seuânimo.Ele ficoudepéedeu-lheuma lambidinhanacabeça.–Vamosembora.EstrelaAzulestáchamandoparaaReunião.Encontraramosdemaisfelinosnaentradadoacampamento.Formavam
umgruposilenciosoedeterminado.EstrelaAzul fezumsinalcomacaudaparaqueaseguissematravésdo
túnel de tojos para fora da ravina. A floresta reluzia sob o luar frioenquantoseencaminhavamparaQuatroÁrvores.DonarizdeCoraçãodeFogo a respiração saía em nuvens, e o chão parecia congelado sob suaspatas.Pelaprimeiravezdesdequeojovemguerreirosejuntaraaoclã,alíder
nãohesitou ao chegar ao cumedo recôncavodeQuatroÁrvores, para sepreparar para a reunião. Os gatos a seguiram em silêncio quando eladesceuaencostarumoàclareira.
CAPÍTULO23
OCLÃDORIO E O CLÃ DAS SOMBRAS nãohaviamchegadoainda,masoClãdoVento já estava lá. Estrela Alta cumprimentou EstrelaAzul comum sinalrespeitosodecabeça.Coraçãode Fogo avistouBigodeRalo e apressou-se ao seu encontro. –
Olá – miou. Havia mais de duas luas que não via o pequeno guerreiromarromque lutara a seu ladonoprecipício. Pela primeira vez depois demuitotempo,CoraçãodeFogorecordouamortedeGarraBrancaesentiuumarrepiodehorroraolembraroguerreirodoClãdoRiodesaparecendonaságuasagitadas.–OndeestáListraCinzenta?–perguntouBigodeRalo.–Eleestábem?Pela preocupação nos olhos do guerreiro do Clã do Vento, Coração de
FogopercebeuqueeletambémestavapensandonamortedeGarraBranca.–Elevaibem–respondeu.–Estáali,comosoutros.–CoraçãodeFogoselembroudarainhadoClãdoVentocujobebêajudaraacarregar.–ComovaiFlordaManhã?–Felizporestaremcasa.Ofilhoteestácrescendorápido.–Coraçãode
Fogoronronou,satisfeito.–Todooclãestábem–BigodeRaloacrescentou,olhando,divertido,paraoguerreirodoClãdoTrovão.–Éfantásticopodercomercoelhodenovo.Esperonuncamaisterdecomeroutroratonavida!CoraçãodeFogopercebeuumodordiferentenoardanoite.OClãdoRio
estavachegando.TambémfarejouoClãdasSombras.Perscrutouaencostaemtornodovale.Comtodacerteza,oClãdoRiovinhaporumdoslados.Do outro lado da encosta, avistou os felinos do Clã das Sombrasequilibrando-se no topo, com a pelagem reluzindo ao luar. À frente dogrupo,destacava-seafiguraesguiadeEstreladaNoite.–Finalmente–grunhiuBigodeRalo,quetambémosavistara.–Estáfrio
demaisparaficaraorelento.Coração de Fogo concordou, distraído. Quando os gatos do Clã do Rio
entraram, o guerreiro procurou Arroio de Prata. Reconheceu-a semdificuldade. Ela parou na base da encosta, depois seguiu o pai, quecumprimentavaformalmenteosguerreirosdosoutrosclãs.Nervoso, Coração de Fogo procurou Listra Cinzenta na multidão. Será
queoamigoousariafalarcomArroiodePrata?Decostasparaela,ogatocinzaconversavacomumguerreirodoClãdoVento.
Entretido observando Listra Cinzenta, Coração de Fogo não ouviu PéMortoseaproximar.–Boa-noite,CoraçãodeFogo–miouorepresentantedoClãdoVento.–
Comovai?–Olá.Estoubem,obrigado–respondeu,sevirando.Pé Morto fez um aceno de cabeça. – Ótimo – disse, e foi embora
mancando.BigodeRalocutucouoamigo.–Vocêéumsortudo!–CoraçãodeFogo
sentiuumapontadeorgulho.Naquele momento, da Pedra do Conselho, soou o chamado de Estrela
Azul. Coração de Fogo se virou, surpreso. Normalmente, os líderes nãocomeçavam a reunião tão cedo. Estrela Torta e Estrela daNoite estavamlado a ladonapedra. Perto deEstrelaAlta, EstrelaAzul esperavaque osoutrosgatosseaproximassem.Comumsobressalto,o jovemguerreirosedeucontadequeeraaprimeiravezqueviaolíderdoClãdoVentonumaReunião.Coração de Fogo e Bigode Ralo seguiram os outros gatos, que se
instalavam aos pés da pedra. O gato avermelhado levantou os olhos,curioso,esperandoverEstrelaAzuldarasboas-vindasaEstrelaAltaeaoClãdoVento,masalídernãopareciaestarcomhumorparaperdertempocompalavrasamáveis.–OClãdoRiotemcaçadonasRochasEnsolaradas–eladisse,zangada.–
Nossas patrulhas sentiram muitas vezes o cheiro dos seus guerreiros,EstrelaTorta.EasRochasEnsolaradassãonossas!EstrelaTortaencarou-acomfirmeza:–Vocêesqueceuquerecentemente
umdosnossosguerreiros foimortodefendendonosso territóriocontraoClãdoTrovão?– Você não precisava defender o seu território. Meus guerreiros não
estavam lá caçando, apenas voltavam para casa depois de teremencontrado o Clã do Vento. Nós todos tínhamos concordado quanto àmissão e, segundo o Código dos Guerreiros, eles não deveriam ter sidoatacados.–VocêestáfalandodoCódigodosGuerreiros?Oquetemadizersobreo
guerreirodoseuclãquevemnosespionandodesdeentão?EstrelaAzulfoipegadesurpresa.–Guerreiro?Vocêoviu?– Ainda não. Mas frequentemente sentimos o cheiro dele, o que quer
dizerquelogooencontraremos.
CoraçãodeFogo,apavorado,olhouparaListraCinzenta.ConheciamuitobemaidentidadedoguerreirodetectadonoterritóriodeEstrelaTorta.Esealgumgatoreconhecesseseucheiroaquelanoite?Imóvel, Listra Cinzenta encarava os líderes reunidos na Pedra do
Conselho.DomeiodamultidãosoouavozpossantedeGarradeTigre.–Háumalua
quesentimosocheirodoClãdasSombrasemnossoterritório,assimcomoodoClãdoRio.Enãofoiapenasumguerreiro,masumapatrulhainteira,sempreosmesmosgatos.Osolhosdo líderdoClãdasSombras faiscaramde indignação.–Nosso
clãnãoesteveemseuterritório.Provavelmenteseusguerreirosnãosabemdiferenciarosodoresdosfelinosdosoutrosclãs.Trata-se,comcerteza,degatosvadios.Elestêmandadoatrásdecaçaemnossoterritório,também.Garra deTigre rosnou, incrédulo, e Estrela daNoite o encarou. – Você
duvida da palavra do Clã das Sombras, Garra de Tigre? – Ummurmúriodesconfortávelpercorreuamultidãoquandooveteranodevolveuoolhar,comclaradesconfiança.Pelaprimeiravez,EstrelaAltafalou.Suacaudatremia:–Meusguerreiros
também detectaram odores estranhos no território do Clã do Vento.PareciamserdoClãdasSombras.–Eusabia!–rosnouGarradeTigre.–OClãdoRioeoClãdasSombrasse
uniramcontranós!–Nós?Oquequerdizernós?–disparouEstrelaTorta.–Achoquefoio
seuclãeoClãdoVentoqueformaramumaaliança!Éporissoqueestavamtãoempenhadosemtrazê-losdevolta?Parausá-losparainvadirorestodafloresta?O pelo de Estrela Alta se eriçou: – Você sabe que não foi por isso que
voltamos. Sabe, também, que não saímos das nossas zonas de caça nasúltimasluas.– Então por que sentimos odores de guerreiros estranhos no nosso
território?–retorquiuEstrelaTorta.–NãoeramdoClãdoVento!–sibilouEstrelaAlta.–Devemvirdosgatos
vadios,comodisseEstreladaNoite.– Gatos vadios seriam uma desculpa bem conveniente para invadir
nossosterritórios,nãoé?–murmurouEstrelaAzul,encarando,emdesafio,oslíderesdoClãdoRioedoClãdasSombras.Estrela Torta se arrepiou e Estrela da Noite arqueou as costas.
Assustado,CoraçãodeFogoviuGarradeTigreselevantareseaproximarda Pedra do Conselho, com todos os músculos contraídos. Será que oslíderesiriamlutarnumaReunião?Nesse instante, uma sombra se abateu sobre o vale. Quando tudo
mergulhounaescuridão,osgatossecalaram.CoraçãodeFogo,tremendo,olhou para o céu. Uma nuvem havia coberto completamente a lua cheia,escondendo-lhealuz.–OClãdasEstrelasnosenviouastrevas!–CoraçãodeFogoreconheceu
omiadodeMeioRabo,umdosanciãosdoClãdoTrovão.OcurandeirodoClãdasSombrasconcordou.–Nossosancestraisestão
muitozangados.Asreuniõesdeveriamacontecerempaz.– Nariz Molhado está certo! – Era Presa Amarela que falava. – Não
deveríamosestarbrigandoentrenós,especialmenteduranteaestaçãosemfolhas.Antesde tudo, deveríamosnospreocupar emmanter a segurançadosnossosclãs.–Avozdacurandeiraecoounosilêncioaterrador.–TemosqueescutaroquenosdizoClãdasEstrelas.
CAPÍTULO24
ESTRELAALTA,umasilhuetasombrianotopodaPedradoConselho,tomouapalavra:–PelavontadedoClãdasEstrelas,estaReuniãoestáencerrada.–Amultidãoaprovou.Oarestavapesadoporcausadosodoresdemedoedehostilidade.– Venham comigo, gatos do Clã do Trovão! – disse a líder. Coração de
Fogomal percebeu quando ela saltou da Pedra do Conselho e se dirigiuparaabeiradada clareira.Oguerreiro abriu caminhoentre amultidãoecorreuparaalcançá-la.Viu, também,a silhuetamaciçadeGarradeTigre,quedesceuesecolocouaoladodagata.Atrásdosdoisguerreirosviam-seas sombras pálidas e acinzentadas dos demais felinos do Clã do Trovão.Enquanto caminhavam solenemente para casa, ninguém falou. O jovemguerreiro,porcimadoombro,viuqueosoutrosclãstambémseretiravam.Quandochegouaoaltodaencosta,QuatroÁrvoresestavadeserta.Em silêncio, o clã atravessou a floresta, seguindo a trilha de odores
conhecidos.CoraçãodeFogoviuListraCinzentanofimdafilaediminuiuopasso.TalvezoamigoestivessemaisdispostoafalardeArroiodePrata,jáqueoclimadetensãoentreosclãseraevidente.Seuodorforadetectadonoterritório do Clã do Rio! Listra Cinzenta arriscava a si e ao clã com osencontrossecretos.Coração de Fogo procurou as palavras certas, mas Listra Cinzenta
adiantou-se:–Seioquevocêvaidizer,masnãovoudeixardevê-la!– Você temmesmo o cérebro de um camundongo bobo! – disparou o
guerreiro avermelhado. –Vão logodescobrirqueé você.EstrelaAzul vaiadivinhar, ou um gato do Clã doRio vai reconhecer seu cheiro. Garra deTigre,provavelmente,jádescobriu!ListraCinzentalançou-lheumolharansioso.–Vocêacha,mesmo?–Não sei – admitiuCoraçãodeFogo, aliviadoporperceber, enfim, um
tomdemedonavozdoamigo,atéalisecomportandocomosenãotivesseideiadoquepoderiaacontecerseoclãdescobrisseoromance.–Masjáqueelecomeçouapensarnoassunto…–Está bem, está bem! – disparou Listra Cinzenta. Ele se calou por um
instante.–EseeuprometerquesóvamosnosencontrarpertodeQuatroÁrvores? Assim será difícil detectar nosso cheiro e não terei de ir aoterritóriodoClãdoRio.Você,então,vaimedeixarempaz?
CoraçãodeFogosentiuopeitoapertar.OamigonãodesistiriafacilmentedeArroiodePrata.Acabouconcordando.Emtodocaso,eramelhordoqueterdeseesgueiraremterritórioinimigoparaencontrá-la.– Satisfeito? – os olhos do gato cinza brilhavam, mas a voz estava
trêmula. Coração de Fogo sentiu uma pontada de tristeza ao pensar naamizadeperdida,masaomesmotempotinhamuitacompaixãopeloamigo.Com o focinho, tentou tocar Listra Cinzenta, mas o gato se adiantou,deixando-osozinhonofimdafila.Apesardo cansaçode todos,EstrelaAzul convocouuma reuniãoassim
que chegaram. De qualquer modo, a maior parte do clã ainda estavaacordada. A Reunião tinha sido muito mais breve do que de hábito, e anuvemquede repente encobrira a luzda lua apavorara atéos gatosquehaviamficadonoacampamento.EnquantoEstrelaAzuleGarradeTigreseacomodavamnaPedraGrande,
Coração de Fogo correu até o berçário, para ter notícias de Filhote deNuvem.Colocouacabeçanaporta.Estavamuitoescuroequenteládentro.– Olá, Coração de Fogo – sussurrou Cara Rajada, uma simples sombra
naquelaescuridão.–FilhotedeNuvemestámuitomelhor.PresaAmarelalhedeucamomila.Erasóumresfriado–arainhapareciaaliviada.–OqueaconteceunaReunião?– O Clã das Estrelas enviou nuvens para cobrir a lua. Estrela Azul
convocouumareuniãoagora.Vocêpodevir?OguerreiroouviuCaraRajadacheirandoosbebês.–Achoquesim.Meus
filhosaindavãodormirporalgumtempo.Juntos,osdoisfelinosforamencontrarosoutrosnaclareira.Coraçãode
Fogosentiuumapelagemroçandoasua.EraPatadeCinza,quelhevoltouosolhosarregalados,cheiosdepreocupação.EstrelaAzuljáhaviacomeçado:–AmaiordasameaçasparecevirdoClã
do Rio e do Clã das Sombras. Devemos estar preparados para apossibilidadedeessesdoisclãsseuniremcontranós.Miadosperplexosecoaram.–Vocêachamesmoqueelesseuniram?–perguntouPresaAmarela.–O
ClãdoRiodispõedasmelhores fontesdepresa fresca,masnãomepassapelacabeçaquequeiradividi-lascomoClãdasSombras.–CoraçãodeFogose lembrou das palavras de Arroio de Prata sobre a fome no Clã do Riodepois da invasão dos Duas-Pernas, mas calou-se, com medo de EstrelaAzulquerersaberondeescutaraaquelahistória.
–Elesnãonegaramasacusações–observouGarradeTigre.Alíderconcordou:–Qualquerquesejaaverdade,temosdeficaralertas.
De hoje em diante, cada patrulha contará com quatro gatos, sendo pelomenostrêsguerreiros.Aspatrulhasserão,também,maisfrequentes,duaspor noite e uma durante o dia, além da patrulha do amanhecer e a doanoitecer. Precisamos pôr um fim nas incursões dos inimigos no nossoterritório e, já que escolheram ignorar nossas palavras, temos de estarprontosparaaluta.Oclãaprovou,aosgritos.CoraçãodeFogotambém,emborapreocupado
comasconsequênciasqueaquelahostilidadeabertapoderiaacarretarparaListra Cinzenta. Olhou para os gatos à sua volta. Todos tinham os olhosbrilhando,menosoamigo,queestavanoescuro,nabeiradadaclareira,decabeçabaixa.Quando o barulho arrefeceu, Estrela Azul acrescentou: – A primeira
patrulha sairá antes do amanhecer. – Dizendo isso, desceu da PedraGrande,seguidaporGarradeTigre.OrestodoClãsedividiuempequenosgrupos.Quandosedirigiaàtocadosguerreiros,CoraçãodeFogoouviuosgatosdiscutindo,nervosos.O jovemguerreiro seajeitounoninhoe, comaspatas, afofouomusgo
paradeixá-lomaisconfortável.Umacorujapiounoaltodaravina.Elesabiaque não conseguiria dormir logo, pois as acusações feitas na Reuniãorodavamemsuamente.MascompreendiaaraivadoClãdoRio,quehaviadetectado o odor do Clã do Trovão em seu território, logo agora queandavam famintos, pois a caça estava escassa desde a invasão dosDuas-Pernas.MaseoClãdasSombras?EstavareduzidodesdequeoClãdoTrovãoo
ajudara a banir o líder tirânico e seus seguidores. Estrela Partida atémesmoadmitiratermatadoEstrelaAfiada,seuprópriopai,parasetornarlíder. Porém, o clã fora deixado em paz para se recuperar do domíniosanguináriodeEstrelaPartida.CoraçãodeFogodeduziuque,commenosbocasparaalimentar,oClãdasSombrasnãoprecisavadaszonasdecaçadoClãdoTrovão,nemdemaisnenhumaoutra.QuandoNevascaeRiscadeCarvãoentraramnatoca,essespensamentos
ainda lhe reviravam a mente. Antes de se dirigir ao ninho, Nevasca seaproximou:–Nosolalto,vocêsairánumapatrulhacomigo,PatadeAreiaePelodeRato–disse.– Tudo bem, Nevasca – respondeu Coração de Fogo, descansando o
queixo sobre as patas. Tinha de dormir um pouco; o clã precisava queestivesseprontoparaaluta.
Namanhãseguinte,asnuvensquecobriramaluanavésperajátinhamdesaparecido.Naclareira,CoraçãodeFogoapreciavaocalorsuavedosolaquecendo-lhe as costas enquanto se lavava. Do outro lado, Filhote deNuvempulouparaforadoberçário,parecendodispostoefeliz.CoraçãodeFogoagradeceuaoClãdasEstrelas,poisogatinhohaviase
restabelecidodepressa.PatadeAreiaestavacertoquantoàsuacapacidadederecuperação.OguerreiroolhouemvoltaparaverseRaboLongoePatade Poeira também estavam por ali para ver o filhote, mas não havianinguémnaclareira.Elefoiatéoberçário.–Olá,FilhotedeNuvem.Estásesentindomelhor?–Estou–respondeu,girandoemcírculos,tentandopegaracaudacomos
dentinhos.Umabolademusgopresaemseupelocaiue roloupelochão.Ele saltou sobre ela e a lançou no ar. A bola quicou no solo, do lado deCoraçãodeFogo.Oguerreirodevolveuabola,eobichanodeuumsalto,tentandoagarrá-la
comosdentes.–Muitobem!–Otioestavaimpressionado.Comumadaspataslançoua
bolademusgobemalto,paraooutroladodaclareira.FilhotedeNuvemcorreueaagarrou.Roloudebarrigaparacima,atirou
a bola para o alto com as patas da frente e chutou-a com as de trás. Abolinha foipararpertodoberçário.Elesaiucorrendoeseagachou,aumpulodecoelhodedistância,seconcentrando,comoquadrillevantado.CoraçãodeFogoobservavaofilhote,quesepreparavaparaoataque.De
repente,seupelosearrepiou.Detrásdoberçáriosurgiuumapatalongaeescura,queseestendeuparapegarabolinhademusgo.– Filhote de Nuvem – chamou Coração de Fogo –, espere! – Imagens
sombriasdegatosvadiosaindaestavamemsuamente.Opequenosentou-seeolhouàvolta,perplexo.GarradeTigreapareceuportrásdofilhote,segurandoabolademusgo
comosdentes.Levou-aparaogatinho, soltando-ana frentedaspatinhaspeludas ebrancas. –Tomecuidado.Vocênãoquerperderumbrinquedopreciosocomoesse–disse,encarandoCoraçãodeFogoporcimadacabeçadeFilhotedeNuvem.
CoraçãodeFogotremeu.OqueGarradeTigrequeriadizercomaquilo?Pareciaestar falandodabolademusgo,masnaverdadeobrinquedonãoseriaFilhotedeNuvem?A imagemdePatadeCinzapassou-lhenamente:ummontinhodepeloensanguentadoaoladodoCaminhodoTrovão.Outrobrinquedo que perdera? Um sentimento gélido demedo tomou conta docoração do jovem guerreiro, que se perguntou, mais uma vez, se orepresentantedoClãdoTrovãotinhasido,dealguma forma,responsávelpeloacidentedaaprendiz.
CAPÍTULO25
–FILHOTEDENUVEM!Coração de Fogo ouviu Cara Rajada chamando de dentro do berçário.
GarradeTigrevirou-seefoiembora.Ofilhotedeuaindaumúltimotapanabolademusgoecorreuparaaentradadoberçário.–Atélogo,CoraçãodeFogo–miou,entrando.Oguerreiroolhouparaocéuepercebeuqueeraquasesolalto,tempode
se juntar à patrulha. Estava faminto, mas ainda não havia presa fresca.Talvez encontrasse alguma caça enquanto estivessem fora. Atravessou aclareiracorrendoesaiupelotúnel,sentindoasfolhascongeladasrangendosobsuaspatas.PatadeAreiaePelodeRatojáesperavamaopédaencosta.Coraçãode
Fogolevantouacaudanumcumprimento,surpresoefelizporveragata.–Olá–miouajovem.PelodeRatolhefezumacenodecabeça.Nevascasurgiudotúneldetojos.–Apatrulhadoamanhecerjávoltou?– Nenhum sinal ainda – respondeu Pelo de Rato. Nesse momento,
Coração de Fogo ouviu a folhagem se mexer, e Pele de Salgueiro, VentoVeloz,RiscadeCarvãoePatadePoeirasaíramdosarbustos.– Esquadrinhamos toda a fronteira do Clã do Rio – relatou Pele de
Salgueiro.–Nenhumsinaldegruposdecaça.ApatrulhadeEstrelaAzulvaiverificaraáreadenovoestatarde.–Ótimo–respondeuNevasca.–VamosficarcomafronteiradoClãdas
Sombras.– Tomara que eles tenham o mesmo bom-senso que o Clã do Rio e
fiquem longe – miou Risca de Carvão. – Depois de ontem à noite, comcertezasabemqueestaremosdeolho.–Esperoquesim–grunhiuNevasca.Voltou-separaapatrulha:–Estão
prontos?–CoraçãodeFogofezquesim.Nevascamovimentouapontadacaudaepulouparaassamambaias,seguidodePelodeRatoeCoraçãodeFogo.Osfelinossubiramaravinacompassosrápidos.PatadeAreiavinhalogo
atrás de Coração de Fogo, que sentiu o hálito quente da gata quando elagalgouaspedras.NemsequerhaviamchegadoàsRochasdasCobrasquandoelepercebeu
umodorsinistro, familiar.Chegouaabrirabocaparaprevenirosoutros,masPelodeRatoseadiantou:–OClãdasSombras!Osquatropararamparafarejaroterrívelfedor.–Nãoacreditoquejátenhamvoltado–PatadeAreiamurmurou,como
pelodaespinhaeriçado.– O odor é recente – disse Nevasca, os olhos faiscando de cólera. –
EsperavaqueEstreladaNoite trouxesse algumahonrapara seu clã,masachoqueosventosfriosquesopramdooutroladodoCaminhodoTrovãocongelamocoraçãodosgatosdoClãdasSombras.Coração de Fogo virou-se e começou a abrir caminho entre os tufos
espessosdesamambaia.Esfregouosdentesnafolhagemparareconhecerocheiro.Semdúvida,eraoClãdasSombras,umodorfamiliar.Muitofamiliar.Ele fez uma pausa. Aquele odor pertencia a um guerreiro a quem jáencontraraantes,masquem?Avançou,naexpectativadequemaismarcas lheavivassemamemória.
Começou,então,afarejaroutracoisa.Abaixouacabeçae,nochão,entreashastesdassamambaias,encontrouummontedeossosdecoelho.Gatosdeclã,normalmente,enterramosossosdacaçaemsinalderespeitopelavidaque tiraram. De repente entendeu o que aquilo podia significar. Pegoualguns ossos e voltou através das samambaias, colocando-os aos pés deNevasca.O guerreiro branco ficou furioso. – Ossos de coelho? Os gatos que
deixaram issoaquiqueriamque soubéssemosqueestiveramcaçandoemnossasterras!PrecisamoscontaraEstrelaAzulimediatamente.– Será que ela vai mandar uma patrulha para lutar com o Clã das
Sombras? – perguntou Coração de Fogo, que nunca vira Nevasca tãozangado.– Deveria! E, se pudesse, eu guiaria a patrulha. Estrela da Noite traiu
nossaconfiançaeoClãdasEstrelassabequedeveserpunido.–EstrelaAzul!–Nevascalançouosossosdecoelhonomeiodaclareira.–Elajásaiucomapatrulha–disseGarradeTigre,saindodassombras.Meio Rabo e Pele de Geada saíram da toca apressados para ver o que
estavaacontecendo.Nevasca, ainda furioso, olhou para o representante – Veja isso! –
disparou.GarradeTigrenãoprecisavademaioresexplicações.Ocheironosossos
diziatudo.Seusolhosseinflamaramderaiva.Tendoficadoparatrásnabeiradadaclareira,CoraçãodeFogoobservava
os dois grandes guerreiros. As provas erambastante inquietantes,mas adescoberta o enchera muito mais de dúvidas do que de rancor. FaziaapenastrêsluasqueoClãdasSombrasbaniraseulídercruel,comaajudadoClãdoTrovão.Como,então,aqueleclãsearriscavaafazereclodirumaguerra?GarradeTigre,naturalmente,nãotinhadúvidasdaqueletipo.Jáchamara
Risca de Carvão e Vento Veloz. – Pele de Salgueiro e Pelo de Rato sejuntarãoanóstambém!–anunciou.–EncontraremosapatrulhadoClãdasSombrasevamosdeixá-loscomferimentosqueosfarãolembrar-sede,nofuturo,ficarlongedenossosterritórios.Nevascaconcordou.–Posso ir?–miouPatadeAreia,que,empolgada,nãoparavadeandar
atrásdoguerreirobranco.Agora,oencaravacomoolharbrilhante.–Dessavez,não–respondeuNevasca.Uma onda de frustração se abateu sobre ela. – E Coração de Fogo? –
miou.–Eleachouosossos.GarradeTigreestreitouosolhos,comopeloeriçado.–Elepodeficare
avisarEstrelaAzul–sibilou,comtomdedesprezo.–Vocêsvãosairantesqueelavolte?–perguntouCoraçãodeFogo.– Claro que sim – disparou Garra de Tigre. – Precisamos acertar isso
agora! – Virou-se para Nevasca e balançou a cauda. Coração de Fogo osobservou partir, seguidos por Risca de Carvão, Pele de Salgueiro, VentoVelozePelodeRato.Ouviuosomdaspatasnosologeladoquandosaírampelalateraldaravina.Derepente,ojovemguerreirosedeucontadequeoacampamentoficara
vazio.QuandoPeledeGeadaeMeioRaboseaproximaramparafarejarosossosdecoelho,eleperguntou:–QuemfoicomEstrelaAzul?–ListraCinzenta,RaboLongoePataLigeira–PeledeGeadarespondeu.UmventogeladoencrespouapelagemdeCoraçãodeFogo;eleesperava
que essa fosse a causa de seu tremor. Não havia nenhum guerreiro noacampamento. – Você pode verificar na toca dos aprendizes se Pata dePoeiraestálá?–pediuaPatadeAreia.Elaconcordou.Atravessouaclareiraecolocouacabeçadentrodatoca.–
Eleestáaqui–disse.–Dormindo.PatadeSamambaiatambém.
PresaAmarelasaiudatocaelevantouacabeça.CoraçãodeFogorelaxouumpouco ao ver a figura familiar da curandeira. Estreitou os olhos paracumprimentá-la,masPresaAmarelafarejouoareseusolhosseanuviaramdemedo.Compassoslentosefirmes,aproximou-sedosossosdecoelhoe,comtodoocuidado,farejouumaum.CoraçãodeFogoaobservava,perguntando-seporqueelaseinteressava
tantopelosossosvelhos.Por fim, ela encarou Coração de Fogo. – Estrela Partida! – exclamou,
sufocadadehorror.– Estrela Partida? – repetiu o jovemguerreiro. Então compreendeudo
quesetratava.Porissoocheironassamambaiaspareciatãofamiliar.Eraocheiro de Estrela Partida. – Tem certeza? – miou apressado. – Garra deTigrejáfoiparaoterritóriodoClãdasSombras.–DessavezoClãdasSombrasnãotemculpa–gritouPresaAmarela.–
Foi Estrela Partida que fez isso; ele e seus amigos guerreiros. Eu era acurandeiradoclãeestavaláquandonasceram;conheçoocheirodelestãobem quanto conheço o meu. – Fez uma pausa – Você tem de encontrarGarradeTigreeimpedi-lodecometerumerrolamentável,atacandooClãdasSombras.OsangueretumbavanasorelhasdeCoraçãodeFogo,deixando-otonto.O
que deveria fazer? – Mas sou o único guerreiro aqui – miou para PresaAmarela quase sem fôlego. – E se Estrela Partida atacar o acampamentoenquantoeuestiver fora?Ele já fez issoantes.Pode terdeixadoosossoscomoarmadilha,parapegaroacampamentosemdefesa.– Você precisa dizer a Garra de Tigre antes que… – Presa Amarela
implorou,masojovemguerreirobalançouacabeça.–Nãopossodeixá-lossozinhos.–Entãovoueu–sibilouacurandeira.–Não!Quemvaisoueu–protestouPatadeAreia.Coração de Fogo olhou para uma gata, depois para a outra. Não podia
enviarnenhumadasduasnessamissão.Eramindispensáveisparaprotegero acampamento, fortes e treinadas. Mas a curandeira estava certa; nãopodiamderramarsangueinocente.EraEstrelaPartidaoinvasor,nãooClãdas Sombras. Teria mesmo de mandar outro gato à floresta. Fechou osolhos,pensoumuito,earespostaveioemseguida.–PatadeSamambaia!–sibilouoguerreiro,arregalandoosolhos.Elegritoupeloaprendiz.Ojovemsaiudatocaeatravessouaclareiraatéoguerreiro.–Oquefoi?–
perguntou,piscandoosolhosdesono.–Tenhoumamissãourgenteparavocê.Oaprendizsesacudiueesticou-separaparecermaior.–Diga,Coraçãode
Fogo.–Vocêprecisa encontrarGarra deTigre, que está à frente dapatrulha
quevaiatacaroClãdasSombras.Detenha-oedigaquefoiEstrelaPartidaque invadiu nosso território! – Os olhos do aprendiz se arregalaramassustados,masoguerreirocontinuou–TalvezvocêtenhadeatravessaroCaminhodoTrovão;seiquenãorecebeutreinamento…–ImagensdocorpoferidodePatadeCinza lhevieramàmente,maselese forçouaafastaralembrança.OlhoufirmeparaPatadeSamambaia:–VocêprecisaencontrarGarra de Tigre – repetiu – ou haverá guerra entre os dois clãs semnenhumarazão!Pata de Samambaia fez que sim. – Eu o encontrarei – prometeu o
aprendiz,comumolharcalmoedeterminado.– Que o Clã das Estrelas o acompanhe – murmurou Coração de Fogo,
aproximando-separatocá-locomonariz.Pata de Samambaia deu meia-volta e disparou pelo túnel de tojos.
CoraçãodeFogooobservou,tentandomanter-secalmo.PatadeCinza…oCaminho do Trovão… as imagens voltavam. Ele sacudiu a cabeça paracolocarasideiasemordem.Nãohaviatempoparapreocupações.SeEstrelaPartida estava no território do Clã do Trovão, o acampamento precisavapreparar-separaumataque.–Oqueestáacontecendo?–perguntouPatadePoeirasaindodatocados
aprendizes. Coraçãode Fogo olhoupara ele, correupara o outro ladodaclareiraesubiunaPedraGrande.Ochão,abaixo,pareciamuitodistantedesuas pernas trêmulas. Engoliu em seco e começou a convocar os outrosgatos,comodecostume.–Quetodososgatoscomidadesuficientepara…–Mas estava perdendo tempo com palavras. – O acampamento está emperigo.Venhamtodosaqui,agora!–chamoucomurgência.Osanciãoseasrainhassaíramdastocas,seguidospelosfilhotes.Ficaram
assustados ao ver o jovem guerreiro no topo da Pedra Grande. Pata deCinza chegoumancandoe lançouparao antigomentorumolhar firme eluminoso.QuandoCoraçãodeFogoaviu,oacampamentoparouderepentedesemovimentar.–Oqueestáacontecendo?–perguntouCaolha,omembromaisantigodo
ClãdoTrovão.–Oquevocêpensaqueestáfazendoaíemcima?
Coração de Fogo não hesitou: – Estrela Partida está de volta.Provavelmenteestáemnossoterritórioagora.Osoutrosguerreirosestãoforadoacampamento.Seeleatacar,temosdeestarpreparados.Filhoteseanciãosdevemficarnoberçário.Osdemaisdevemseprepararparaaluta…Um grito ameaçador vindo da entrada do acampamento cortou o
discurso do guerreiro: um gato magro e marrom, de pelo sarapintado eorelhas rasgadas,marchavanadireçãoda clareira. Sua caudaeriçadaerapartidaaomeiocomoumgalhoquebrado.–EstrelaPartida!–arfouCoraçãodeFogo,instintivamentecolocandoas
garrasdeforaeretesandocadapelodocorpo.Quatroguerreirosesquálidossurgiramatrásdolíder,osolhosfaiscando
deódio.– Então, você é o único guerreiro que ficou por aqui! – rosnou Estrela
Partida, os lábios retraídos num esgar. – Vai sermuitomais fácil do queimaginei!
CAPÍTULO26
PRESAAMARELA,PATADEPOEIRAePatadeAreia formaramrapidamenteumalinhadedefesa,easrainhassecolocaramnaretaguarda.CoraçãodeFogoviu Pata de Cinza se aproximar, mancando, mas Pata de Poeira cuspiu,zangado, ao vê-la chegar. Sem jeito, a jovem voltou para a toca de PresaAmarela,comasorelhasabaixadas.Os anciãos agarraram os filhotes e os empurraram pela porta do
berçário,espremendo-separadentrojuntocomeles.CaraRajadasegurouFilhote de Nuvem entre os dentes e o fez entrar por último. Puxou asamoreiras com as patas e, insensível aos espinhos, cobriu a entrada doberçário,antesdejuntar-seaosdemaisfelinos,naclareira.CoraçãodeFogopuloudaPedraGrandee correuparao ladodePresa
Amarela. Com as costas arqueadas, silvou para Estrela Partida. – Vocêperdeudaúltimavezquelutamos,evaiperderhojedenovo!–Nunca!–foiarespostafuriosa.–Talvezvocêtenhatiradooclãdemim,
masnãoconseguirámematar…Tenhomaisvidasdoquevocê!– Uma vida do Clã do Trovão vale dez das suas! – rosnou Coração de
Fogo. Gritou, então, o brado dos guerreiros e, um segundo depois, ocombateexplodiunaclareira.CoraçãodeFogo saltoudireto sobreEstrelaPartida e cravouas garras
nele. A vida de fora da lei tinha sido dura com o antigo líder. O jovemguerreiro sentia as costelas do gato pulguento sob a pelagem marrom-escura.Masapesardosmaus-tratos,elecontinuavaforte.Comumgirodocorpo, conseguiu afundar os dentes na pata traseira deCoraçãode Fogo,quegritouesilvouraivosamente,massemafrouxarasgarras.Comesforço,EstrelaPartida arrastou-separa a frente, agarrando-se ao chão gelado.OguerreirodoClãdoTrovão sentiu as garras rasgandoo corpoossudodoinimigo quando ele conseguiu se soltar. Disparou atrás dele, mas outrasgarrasjáseafundavamemsuapernatraseira.OlhouporcimadoombroeviuCaraRasgadaagachado,osolhossemicerrados,zombandodele.CoraçãodeFogooencarou, incrédulo.Nãoesperavaveraquelegatode
novo. Imediatamente esqueceu Estrela Partida. Fora Cara Rasgada quemmataraFolhaManchada, seismesesatrás.Eleaassassinaraa sangue-frioparaEstrelaPartidaroubarosfilhotesdePeledeGeada.AraivaretumbavanosouvidosdeCoraçãodeFogo.Quandorodopiouparaseatirarsobreo
gato marrom, percebeu com o canto do olho um pedaço de peloatartarugadoeocheirodocedeFolhaManchadatocou-lheocéudaboca.Sentiuoespíritodelaaseulado,comoparaajudá-loavingarsuamorte.CoraçãodeFogomalsedeucontadadorlancinantenaperna,dilacerada
ao se soltar de Cara Rasgada; atirou-se sobre o gato, que se ergueu naspatas traseiras e desferiu-lhe um golpe com as imensas patas da frente.Garras afiadas como espinho o acertaram atrás da orelha. A dor seespalhou por seu corpo como fogo, fazendo-o cambalear. Um segundodepois,CaraRasgadalançou-sesobreojovemguerreiroeoimobilizounochão,cravando-lheosdentesnanuca.CoraçãodeFogogritouemagonia.–Ajude-me,FolhaManchada!Nãovou
conseguirsozinho!De repente,opesodoadversário foi-lhearrancadodas costas.Coração
de Fogo se ergueu com um salto e rodopiou. Listra Cinzenta! O felinoacinzentado estava imóvel, os olhos cheios de terror. O corpo de CaraRasgadapendiadesuaboca.ListraCinzentasoltou-o,eo inimigocaiunochão,morto.Coração de Fogo deu umpasso à frente. – Elematou FolhaManchada,
ListraCinzenta!–Nãoeraumbommomentoparasentirremorso.–EstrelaAzulveiocomvocê?–perguntouapressado.Listra Cinzenta fez que não. – Ela memandou de volta para procurar
GarradeTigre–disse. –Encontramosossos eEstrelaAzul reconheceuofedor de Estrela Partida. Deduziu que ele estava liderando os gatostraidores.Ouviu-se um silvo bem próximo e dois felinos se chocaram contra
Coração de Fogo, que, de um salto, saiu do caminho. Era Pele de Geadalutandocomuminvasor.ElapareciainvestidadetodoopoderdoClãdasEstrelas.Aquelesgatostinhamroubadoseusfilhotes.Oódioiluminava-lheos olhos. Coração de Fogo ficou de fora; ela não precisava de ajuda. Uminstantedepois,ovilão,aosgritos,foilançadopelomurodesamambaias.PeledeGeadaaindacorreuatrásdele,masCoraçãodeFogoachamou.–
Elejátemferimentossuficientesparaselembrardevocê!–Arainhaparoupertodomuroevirou-se,comarespiraçãodescompassada.Opelobrancoexibiamanchasdesanguedoinimigo.OutrovilãopassouporCoraçãodeFogoaosgritos,rumoaomuro.Pata
dePoeiraoperseguiaeconseguiulhedarumadentadaferozantesqueelesearrastasseparaforadoacampamento.SobraramapenasEstrelaPartida
eumguerreiro,pensouCoraçãodeFogo.SobPatadeAreiajazia,inerte,uminimigoqueelaimobilizara.Cuidado!–
pensouCoraçãodeFogo, lembrando-sedo seu truque favoritode fazeroinimigo acreditar-se vencedor. Mas a aprendiz não se deixou enganar.Quando o gato se levantou num pulo, estava pronta. Afastou-se, depoissaltou, segurou-o com as garras, virou-o e arranhou-lhe o ventre com aspatastraseiras.Sóoliberouquandoelecomeçouagritarcomoumfilhote.O vilão se precipitou para a entrada do acampamento, ainda uivando dedor.Houve um momento de horripilante imobilidade. Os gatos do Clã do
Trovãopermaneceramemsilêncioolhandoparaosangueeparaos tufosdepeloespalhadospelochão,emvoltadaclareira.NocentrojaziaocorpodeCaraRasgada.Onde estava Estrela Partida? Coração de Fogo rodopiou inquieto,
perscrutandooacampamento.Seráqueinvadiraoberçário?Estavaprestesa correr para a toca de amoreiras quando um grito desesperado veio datocadePresaAmarelaecortouoar.Disparouparaotúneldesamambaias.PatadeCinza!Arremeteu-separadentrodatoca,esperandoopior,masoque viu foi Estrela Partida deitado no chão, com a velha curandeiradebruçadasobreele.Os olhos de Estrela Partida estavam fechados e cheios de sangue.
Coração de Fogo viu o gato se mexer uma vez, depois parar. Pelaimobilidadetotaldocorpo,percebeuqueoforadaleiestavaperdendoumadesuasvidas.Asgarrasdacurandeiraestavamàmostra,brilhantesevermelhas.Tinha
afisionomiacrispadadedor,osolhosvidrados.De repente Estrela Partida arfou e recomeçou a respirar. Coração de
Fogo pensou que Presa Amarela daria no traidor uma nova mordidamortal,maselahesitou.EstrelaPartidanãoseergueu.CoraçãodeFogocolocou-seaoladodacurandeira.–Ésuaúltimavida?
Porquenãoacabacomeledeumavez?Eleassassinouopai,baniuvocêdoclãetentoumatá-la.–Essanãofoisuaúltimavida;e,mesmoquefosse,eunãopoderiafazer
isso.–Porquenão?OClãdasEstrelashonrariavocêpor isso.–Coraçãode
Fogo não conseguia acreditar no que ouvia. O nome de Estrela Partidasemprefizeraavelhagatasearrepiarderaiva.
PresaAmareladesviouorostodeEstrelaPartidaeencarouCoraçãodeFogo.Osolhosestavamanuviadosdedoresofrimentoquandomurmurou:–Eleémeufilho.CoraçãodeFogosentiuochãoseabrir.–Mascurandeirassãoproibidas
deterfilhos–deixouescapar.–Eusei.Nuncativeaintençãodeterfilhos,masmeapaixoneiporEstrela
Afiada. – A voz era cheia de tristeza. O jovem guerreiro se lembrou dabatalha emqueEstrela Partida fora expulso do acampamentodoClã dasSombras. Um pouco antes de fugir, o perverso líder revelou a PresaAmarelaterassassinadoopai.Elaficarainconsolávele,agora,CoraçãodeFogoentendiaporquê.–Haviatrêsfilhotesemminhaninhada–acurandeiraprosseguiu–,mas
apenasEstrela Partida sobreviveu. Entreguei-o a umadas rainhas doClãdasSombrasparasercriadocomoumdeseusfilhotes.Penseiqueperderdois dos meus filhos fosse um castigo por ter quebrado o Código dosGuerreiros,masestavaerrada.Meucastigo,naverdade,foiestesobreviver!–Cheiadedesgosto, olhouo corpoensanguentado. –E, agora,nãopossomatá-lo. Tenho que aceitarmeu destino, conforme a vontade do Clã dasEstrelas.A curandeiravacilou, eCoraçãodeFogoachouqueela fossedesmaiar.
Aproximou-see,comocorpo,amparouagata.–Elesabequevocêéamãedele?–murmurou.Elafezquenão.Estrela Partida começou a soltar gemidos lancinantes. – Não consigo
enxergar!–Horrorizado,CoraçãodeFogopercebeuqueosolhosdovilãotinhamsofridoarranhõesimpossíveisdecurar.Com muita cautela, aproximou-se de Estrela Partida, que permanecia
imóvel.Tocou-ocomumadaspataseofilhodacurandeiravoltouagemer.–Nãomemate–choramingou.CoraçãodeFogorecuou.Tamanhacovardiaorepugnava.PresaAmarelarespiroufundo.–Voutomarcontadele.–Caminhouatéo
filho ferido, segurou-o pelo cangote e arrastou-o para o ninho antesocupadoporRetalho.O jovemguerreirodeixou-aasós.QueriasabersePatadeCinzaestava
bem. Viu uma silhueta escura se mexer dentro da pedra partida ondedormiaPresaAmarela.–PatadeCinza?–chamou.Elapôsacabeçaparafora.
–Vocêestábem?–Ostraidoresjáforam?–elasussurrou.–Sim,excetoEstrelaPartida,queestámuitoferido.PresaAmarelaestá
tratandodele.–Esperavaqueaaprendiz ficassechocada,maselaapenasbalançouacabeçadevagareolhouparaochão.–Vocêestábem?–repetiuoguerreiro.–Deveriaterlutadoaoseulado–avozdelaestavacheiadevergonha.–Teriammatadovocê!–FoioquePatadePoeiradisse.Mandoueumeescondercomosfilhotes.
–Osolhosdagataestampavamdesespero.–Nãomeimportariademorrer.Paraquesirvoassim?Souapenasumfardoparaoclã.CoraçãodeFogoencheu-sedepena.Procuravapalavrasparaconfortá-la,
masantesqueconseguissefalaromiadoásperodePresaAmarelasoouemmeioàssamambaias.–PatadeCinza,vábuscaralgumasteiasdearanha,rápido!A jovem imediatamente desapareceu dentro da pedra, voltando um
instante depois, com uma das patas embrulhada em teias. Tão rápidoquanto pôde, correu ao encontro de Presa Amarela e deixou as teias noninho.–Agora,traga-mealgumasraízesdeconfrei–ordenouacurandeira.Assim que ela se dirigiu, mancando, para a rocha partida, Coração de
Fogoseviroupara irembora.Nãohavianadamaisquepudesse fazerali.Precisavadescobrirondeestavaorestodoclã.Na clareira, quase nenhum gato se mexia. Coração de Fogo foi
diretamenteatéPatadePoeiraemiou:–PresaAmarelaestátratandodasferidas de Estrela Partida e Pata de Cinza está ajudando. – Ignorou oengasgodesurpresadoaprendiz.–Váefiquedeguardaaoladodele.–Ojovemcorreuparaotúneledesapareceu.CoraçãodeFogosaiuaoencontrodeListraCinzenta,queaindaolhava
paraocorpodeCaraRasgada.–Vocêsalvouaminhavida–murmurou.–Muitoobrigado.ListraCinzentalevantouosolhoseapenasdisse:–Eudariaaminhavida
porvocê.Com a garganta apertada, Coração de Fogo viu o amigo se virar e ir
embora.Talvezaamizadedelesnãotivesseacabado,apesardetudo.Umsomfortedepatasatravessandootúneldetojosinterrompeu-lheos
pensamentos. EstrelaAzul entrou correndo no acampamento, seguida deRaboLongoedePataLigeira.CoraçãodeFogosentiugrandealívioaoveralíder. Com os olhos arregalados, ela fitou a clareira ensanguentada, atéencontrarocorpodeCaraRasgada.–EstrelaPartidaatacou?–perguntou.CoraçãodeFogofezquesim.–Estámorto?–EstácomPresaAmarela–disseo jovemguerreiro,esforçando-sepor
responder,apesardaexaustão.–Foiferido…nosolhos.–Eosoutrosvilões?–Pusemostodosparafora.– Alguém do nosso clã ficou muito ferido? – perguntou Estrela Azul,
olhandomaisumavezparaaclareira.Osgatosfizeramquenão.–Ótimo–miou.–PatadeAreia,PataLigeira,tiremessecorpodoacampamentoeoenterrem. Os anciãos não precisam estar presentes, pois vilões nãomerecementerrocomashonrasdoritualdoClãdasEstrelas.Osdoisfelinoscomeçaramaarrastarocorpoparaotúnel.–Osanciãosestãoemsegurança?–perguntoualíder.–Estãonoberçário–respondeuCoraçãodeFogo.Malacaboude falar,
umtremorsacudiuatocadeamoreiraeMeioRaboapareceu,seguidodosanciãosedosfilhotes.CoraçãodeFogoviuosobrinhotropeçareatravessara clareira correndo até Cara Rajada. Ela deu-lhe uma lambida rápida e ofilhote se virou para observar o corpo de CaraRasgada, que desapareciaatravésdotúnel.–Estámorto?–eleperguntou,curioso.–Possoirver?–Shhh…–sussurrouCaraRajada,envolvendo-ocomacauda.–OndeestáGarradeTigre?–perguntouEstrelaAzul.– Levou um grupo para atacar os guerreiros do Clã das Sombras –
explicouCoraçãodeFogo.–DuranteanossapatrulhaencontramosossosquecheiravamaoClãdasSombras,eGarradeTigredecidiuatacar.MandeiPatadeSamambaiaimpedi-loquandoPresaAmarelasedeucontadequeoodoreradeEstrelaPartida.– Pata de Samambaia? – miou Estrela Azul, estreitando os olhos. –
MesmosabendoqueeleteriadeatravessaroCaminhodoTrovão?– Eu era o único guerreiro no acampamento. Não havia outro que
pudessemandar.Alíderbalançouacabeça.Apreocupaçãocedeulugaraoentendimento.–
Vocênãoquisdeixaroacampamentodesprotegido?Fezbem,CoraçãodeFogo. Acho que Estrela Partida queria atrair todos os nossos guerreirosparaforadoacampamento.Tambémencontramosossos.–ListraCinzentamecontou.–Oguerreiroprocuroupeloamigo,masele
tinhadesaparecido.– Mande Presa Amarela vir aqui quando tiver terminado com Estrela
Partida–ordenoualíder.Elaempinouaorelhaaopercebermaispatasnotúneldetojos.GarradeTigreentrounoacampamentocorrendo,seguidodeNevasca e do resto da patrulha. Coração de Fogo esticou o pescoço eprocurou entre os guerreiros até avistar Pata de Samambaia, que vinhalogoatrás.Oaprendizpareciaexausto,masnãoestavaferido.Oguerreiroavermelhadodeuumsuspirodealívio.–PatadeSamambaiaalcançouvocêantesqueencontrasseapatrulhado
Clã das Sombras? – perguntou Estrela Azul, caminhando até orepresentante.– Não tínhamos sequer entrado no território deles. Começávamos a
atravessar o Caminho do Trovão. – Os olhos de Garra de Tigre seestreitaram.–EraCaraRasgadaqueestavamenterrando?Alíderfezquesim.–EntãoPatadeSamambaiaestavacerto.Eleestavaplanejandoatacaro
acampamento.Estámorto,também?–Não,PresaAmarelaestátratandodosferimentosdele.–Nãoépossível!–exclamouPelodeRato,trocandoumolharcomVento
Veloz,aseulado.A fisionomia de Garra de Tigre se fechou. – Tratando dos ferimentos
dele? – rosnou. – Deveríamosmatá-lo, e não desperdiçar tempo curandosuasferidas.– Discutiremos esse assunto depois que eu falar com Presa Amarela –
mioualíder,calma.–Vocêpodefalarcomigoagora,EstrelaAzul.–Acurandeirachegoucom
acabeçabaixa,exausta.–VocêdeixouEstrelaPartidasozinho?–rosnouGarradeTigre,osolhos
cordeâmbarfaiscando.PresaAmarelalevantouacabeçaeolhouparaoguerreirodecorescura:
–PatadePoeiraestátomandocontadele.Eulhedeisementedepapoulaeele vai dormir por algum tempo. Ele está cego, Garra de Tigre. Não tem
como tentar escapar. Morreria de fome em uma semana; isso, se umaraposaouumbandodecorvosnãoomatasseantes.– Isso facilita as coisas – rosnouGarra deTigre. –Não vamosprecisar
matá-lo.Podemosdeixarqueaflorestaseencarreguedele.AcurandeirasevirouparaEstrelaAzul:–Nãopodemosdeixá-lomorrer
–miou.–Porquenão?Coração de Fogo prendeu a respiração, observando o olhar de Estrela
Azul irdacurandeiraparaorepresentanteevoltar.TentavaadivinharsePresaAmareladiriaàlíderqueEstrelaPartidaeraseufilho.–Seofizermos,nãoseremosemnadamelhoresdoqueele–replicoua
curandeira,serena.GarradeTigrebalançouacaudacomraiva.– O que você acha, Nevasca? – a líder perguntou antes que o
representantepudessefalar.–Tomarcontadeleseráumfardoparanossoclã–respondeuNevasca,
pensativo.–MasPresaAmarelatemrazão.Seomandarmosparaaflorestaoutirarmossuavidaasangue-frio,oClãdasEstrelassaberáquedescemostãobaixoquantoele.Caolhadeuumpassoàfrente.–EstrelaAzul–elamioucomsuavozum
poucorouca. –Nopassadomantivemosprisioneirosdurantemuitas luas.Podemosfazerissodenovo.–CoraçãodeFogolembrou-seentãodequeaprópriaPresaAmarela tinha sidoprisioneiraaochegaraoacampamento.Achou que a curandeira fossemencionar o fato a EstrelaAzul,mas ficoucalada.– Quer dizer, então, que você considera a possibilidade demantermos
essepatife no acampamento? –Os olhos deGarra deTigre brilhavamderaivaaointerpelaralíder.Comumapertonocoração,CoraçãodeFogotevedeadmitirqueconcordavacomorepresentante.A ideiadematarEstrelaPartida o fazia estremecer; sabia melhor do que ninguém o que issosignificariaparaPresaAmarela.Masmesmocego,eleerauminimigoasertemido.Mantê-lonoacampamentoseriadifícileperigosoparatodooclã.–Eleestárealmentecego?–perguntoualíder.–Está,sim.–Temoutrosferimentos?FoiCoraçãodeFogoquemrespondeu.–Craveiprofundamenteminhas
garrasnele–admitiu.OlhouparaPresaAmarelaesesentiualiviadoaovera curandeira inclinar ligeiramente a cabeça, dando-lhe a entender que operdoavaporterferidoseufilho.–Quantotemposeránecessárioparaeleficarbom?–perguntouEstrela
Azul.–Maisoumenosumalua–respondeuacurandeira.–Entãovocêpodetratardeleaté lá.Depoisdissovoltaremosadiscutir
seu futuro. E, de agora em diante, vamos chamá-lo Cauda Partida, nãoEstrelaPartida.NãopodemostirarasvidasqueoClãdasEstrelaslhedeu,mas esse gato não é mais um líder de clã. Estrela Azul olhouinterrogativamente para Garra de Tigre, que agitou a cauda, mas nadadisse.–Estádecidido–miouEstrelaAzul–,elefica.
CAPÍTULO27
CORAÇÃODE FOGO,MANCANDO, foi até amoitadeurtigas e começoua lambersuas feridas. Mais tarde iria ver Presa Amarela, quando ela tivesseterminadodetratardosoutrosgatos.Os pálidos raios do sol poente lançavam sombras pela clareira. Rabo
Longo havia liberado Pata de Poeira de montar guarda. Garra de Tigrelevaraosgatosincólumesdatropaàcaçadepresasfrescas.Oestômagodojovem guerreiro roncava. Olhou para cima, ao ouvir passos, mas eramapenasPatadeAreiaePataLigeiraquetinhamacabadodeenterrarCaraRasgada.OsdoisaprendizesseaproximaramdeEstrelaAzul,queestavaaospés
daPedraGrandecomNevasca.CoraçãodeFogoselevantouefoiatéeles.Comummovimentodacauda,fezsinalparaPatadePoeira,quelambiaaspróprias feridas, ao ladodo tocodeárvore.O jovem lançou-lheumolhardesconfiado,maslevantou-se,exausto,eseguiuoguerreiro.–EnterramosCaraRasgada–miouPatadeAreia.– Obrigada – disse Estrela Azul. A líder olhou diretamente para Pata
Ligeira.–Vocêpodeir.–Oaprendizpretoebrancoseinclinouefoiparaatoca.CoraçãodeFogo fezsinaldenovoparaPatadePoeiraseaproximar.O
jovemestreitouosolhosesecolocouaoladodePatadeAreia.–EstrelaAzul–começouCoraçãodeFogo,hesitante–,PatadeAreiae
PatadePoeiralutaramcomoguerreirosquandoCaudaPartidanosatacou.Sema forçaeacoragemdeles, teríamostidomuitomaisproblemas.–Osolhos de Pata de Poeira se arregalaram, e Pata de Areia fitou o chãoenquantooguerreirofalava.Nevascadeixouescaparumronronado.–Timideznãocombinacomvocê
–miouparaaaprendiz.As orelhas de Pata de Areia semovimentaram com desconforto. – Foi
CoraçãodeFogoquesalvouoclã–disparouagata.–Foielequealertouoacampamento para que nos preparássemos para o ataque de CaudaPartida.Foiavezdeoguerreirosesentirsemgraça.FicoualiviadoquandoGarra
deTigreeapatrulhadecaça,carregadosdepresasfrescas,chegaram.EstrelaAzulacenouparaorepresentanteedepoissevirouparaPatade
PoeiraePatadeAreia.–FicoorgulhosadesaberqueoClãdoTrovãocontacomguerreirostãobons.Étempodeconcederavocêdoisseusnomesdeguerreiros.Acerimôniadenomeaçãoaconteceráagora,enquantoosolestásepondo.Podemosjantardepois.Os dois aprendizes se entreolharam, empolgados. Coração de Fogo
ergueuoqueixoe ronronou.EstrelaAzul convocouosmembrosdoclã, eCoraçãodeFogo ficouaindamais felizquandoviuListraCinzentasairdatocadosguerreiros.Elenãohaviadeixadooacampamento,afinal.Oclãsereuniuàvoltadaclareira.Anciãoserainhassesentaramcomos
aprendizese filhotesdeumlado;CoraçãodeFogo,comosguerreiros,dooutro.EleolhouparaFilhotedeNuvem,aninhadopertodeCaraRajada.Osolhosdo filhotebrilhavamde entusiasmo, eCoraçãodeFogo sentiuumaondadeorgulhoaopensarqueosobrinhooviajuntoaosguerreirosdoclã.EstrelaAzulficounocentro,comPatadeAreiaePatadePoeira.Os últimos raios de sol tingiam o horizonte de cor-de-rosa, e o clã
esperavaemsilêncioqueeledesaparecesse,deixandoemseulugarumcéusalpicadodeestrelas.EstrelaAzul fixouoolharnaestrelamaisbrilhantedoTuledePrata. –
Eu,EstrelaAzul, líderdoClãdoTrovão, invocomeusancestraisparaquedesçamoolharatéessesdoisaprendizes.ElestreinaramcomafincoparaentenderosditamesdoCódigoe,assim,recomendo-oscomoguerreiros.–Olhou os dois jovens à sua frente. – Pata de Areia, Pata de Poeira, vocêsprometemrespeitaroCódigodosGuerreiroseprotegeredefenderesteclã,mesmoacustodesuasvidas?PatadeAreia,radiante,respondeu:–Sim,prometo.AvozforteebaixadePatadePoeirafezecoàspalavrasdagata:–Sim,
prometo.– Então, pelos poderes do Clã das Estrelas concedo-lhes os nomes de
guerreiros.PatadeAreia,deagoraemdiante,seráchamadaTempestadedeAreia.OClãdasEstrelashomenageiasuacoragemesuaforça,elhedamosasboas-vindascomoguerreiradoClãdoTrovão.–Alíderdeuumpassoàfrenteeapoiouofocinhosobreacabeçainclinadadagata.TempestadedeAreialambeurespeitosamenteoombrodalíderantesde
sevirarparaNevasca.CoraçãodeFogonotouoolhardeorgulhoqueelalançouparaomentoraocolocar-seaoladodele,agoraentreosguerreiros.EstrelaAzulvoltou-separaogatomalhadoemmarrom-escuro.–Patade
Poeira, a partir destemomento você será chamadoPelagemdePoeira.O
Clã das Estrelas homenageia sua bravura e sua lealdade, e lhe damos asboas-vindascomoguerreirodoClãdoTrovão.–Alídertocou-lheacabeçacomo focinho,eele tambémlhe lambeuoombro,respeitoso,antesdesejuntaraosoutrosguerreiros.Asvozesdoclãseergueramnumtributo,desenhandonoarfrionuvens
de vapor. Cantaram em uníssono os nomes dos novos guerreiros. –TempestadedeAreia!PelagemdePoeira!TempestadedeAreia!PelagemdePoeira!–Seguindoatradiçãodenossosancestrais–miouEstrelaAzul,elevando
a voz –, os novos guerreiros devem fazer uma vigília silenciosa até oamanhecer e guardar o acampamento sozinhos enquantodormimos.Masantesquecomecemavigíliaoclãvaicompartilhararefeição.Foiumlongodia e temos razão de sentir orgulho desses gatos que defenderam nossoacampamento contra os vilões. Coração de Fogo, o Clã das Estrelasagradece por sua coragem. É um grande guerreiro, e estou orgulhosa depodercontarcomvocêcomomembrodomeuclã.Osgatosmiaramdenovo.CoraçãodeFogoronronouaoolharemvolta.
ApenasGarradeTigreePelagemdePoeiraofitavamcomhostilidade,maspela primeira vez o jovem guerreiro não se sentiu afetado por aquelainveja.EletinhasidoelogiadoporEstrelaAzul;issobastava.Umaumosgatosseadiantaramparapegaralgumasdaspresasfrescas
queapatrulhadeGarradeTigretrouxera.CoraçãodeFogo foi atéTempestadedeAreia. –Podemos jantar juntos
como guerreiros esta noite – miou, contente. – Se você concordar –acrescentou.Elaronronouparaele,oquelhedeuimensoprazer.– Escolha alguma coisa paramim – ela disse quando o gato se dirigia
paraapilhadepresas.–Estoumorrendodefome!Coração de Fogo escolheu para ela um camundongo apetitosamente
gorducho,apesardaestaçãosemfolhas.Pegouparasiumcanário-da-terrae se voltou para levar a presa para a gata. De repente seu coração seentristeceu.PelagemdePoeira,NevascaeRiscadeCarvãoestavamcomela.Que tolicepensarquepoderiamcomer sozinhos.Eraumaocasiãoparaoclãtodoseconfraternizar.EssepensamentofezoguerreiroselembrardePatadeCinza.Olhouem
volta e se deu contadequenão a vira na cerimôniadenomeação.DeviaestaraindanaclareiradePresaAmarela.PulouporcimadeTempestadedeAreiaedeixouapresaaoseulado.–Voltoemcincopulosdecoelho–miou.
–QuerolevaralgumacoisaparaPatadeCinza.–Claro–respondeuagata,dandodeombros.CoraçãodeFogorapidamentepegounapilhaumratosilvestreeolevou
paraooutro ladodaclareira.FicousurpresoaoverPresaAmarela jáemsuatoca.Elaprovavelmentevoltaradiretoparaládepoisdacerimônia.–Esperoquenãosejaparamim–elagrunhiuquandoeleseaproximou.
–Jácomiaminhaparte.Coração de Fogo largou o rato no chão. – Trouxe para Pata de Cinza.
Acheiquetalvezelaquisessealgumacoisa.Nãoavinacerimônia.–Dei a ela umpouco de carne de camundongo,mas você faz bem em
levar-lheessapresa.O guerreiro percorreu os olhos pela clareira sombreada pelas
samambaias.Mal se via apelagemmarromdeCaudaPartida atravésdosramosdoantigoninhodeRetalho.Elenãosemovia.–Aindaestádormindo–otomeraenérgico,maisdecurandeiradoque
demãe.CoraçãodeFogosentiu-sealiviado.QueriacrerquePresaAmarelapermaneceria leal aoClã doTrovão. Pegou a presa e foi para o ninhodaantigaaprendiz.–Ei,PatadeCinza–miousuavementeentreafolhagem.Agatasevirou,sentando-se.–CoraçãodeFogo…Oguerreiroentroupelavegetaçãoepôs-seaseulado,alidepositandoa
presaquetrouxera.–Tome.PresaAmarelanãoéaúnicaqueestátentandoengordarvocê!– Obrigada – miou a gata, sem tocar no rato silvestre, nem sequer se
inclinandoparafarejá-lo.–Vocêaindaestápensandonabatalha?Ela levantouosombros.–Sou apenasum fardo,não sou?–perguntou,
encarandooguerreirocomolhosredondosetristes.–Queméum fardo? –O rugidodePresaAmarela os interrompeu, e a
curandeiracolocouacabeçaparadentrodoninho.–Vocêestáaborrecendoaminhaajudante?Nãoseicomoteriaaguentadoodiadehojesenãofossepor ela – disse a gata, olhando para Pata de Cinza com carinho. – Atémisturouervasestanoite!A jovem abaixou os olhos, tímida, e inclinou a cabeça para dar uma
mordidanapresa.– Acho que vou mantê-la por mais algum tempo – continuou Presa
Amarela –, pois, a cada dia, se torna mais útil. Ainda mais, estou me
acostumandoàsuacompanhia.Pata de Cinza ergueu os olhos para a curandeira e seu ar agora era
travesso.–Sóporquevocêésurdademaisparaseincomodarcomaminhatagarelice!–PresaAmarelafingiucuspircomraivaeajovemdisseparaoantigomentor:–Bom,pelomenoséissooqueelavivemedizendo.Coração de Fogo ficou surpreso ao perceber que sentia um pouco de
invejados laços estreitosque asduashaviam criado entre si. Costumavapensar em si mesmo como o único amigo verdadeiro que a curandeiratinhanoclã.Masagorapareciaqueelaencontraraumanovaamizade.Pelomenos Pata de Cinza tinha um lugar para dormir; como não podiamaistreinarparaserguerreira,ficavadeslocadanatocadosaprendizes.Ogatoselevantou.ErahoradevoltareencontrarTempestadedeAreia.
–Vocêvaificarbem,aqui,comCaudaPartida?–perguntou.PresaAmarelaolhou-ocomdesdém.–Achoquepodemosnosarranjar,
nãoé,PatadeCinza?–Elenãoseatreveriaacriarproblema–agataconcordou,confiante.–E
RaboLongoestáaquiparaajudar.PresaAmarelaabaixouacabeçaparasairdoninhoeCoraçãodeFogoa
seguiu.–Atémais,PatadeCinza!–disseele.–Até,eobrigadapelacomida.–Denada–miou.Depoisvirou-separaPresaAmarela:–Vocêtemalgum
remédioparaessamordidanomeupescoço?Acurandeiraexaminouoferimento.–Estábemfeia.–FoiCaudaPartida–confessouogato.Ela balançou a cabeça. – Espere aqui. – Foi rápido até a toca e voltou
trazendoummolhodeervasembrulhadoemfolhas.–Vocêconseguefazerisso sozinho? Basta mastigar algumas ervas e colocar o suco nosmachucados. Vai arder, mas nada que um bravo guerreiro não consigasuportar!–Obrigado,PresaAmarela–disseele,pegandoomolhocomaboca.Acurandeiraoacompanhouatéaentradadotúnel.–Gosteidevocêter
vindo–eladisse,olhandoparaoninhodePatadeCinza.–Elaestavamuitodeprimida.Ficoumaldepoisdabatalhaedacerimôniadenomeação.Coração de Fogo acenou com a cabeça; entendia perfeitamente. Olhou
mais uma vez para o lugar onde estava deitado Cauda Partida. – Temcertezadequevocêestáseguraaqui?–perguntou,comaservasnaboca.
– Ele está cego –miou Presa Amarela. Deu um suspiro e, em seguida,acrescentoumaisalegre:–Eeunãosoutãovelhaassim!
Ao acordar na manhã seguinte, Coração de Fogo viu uma luz brancaofuscanteatravessandoaparededa toca.Adivinhouque tinhanevadodenovo. Pelo menos seus ferimentos tinham parado de doer. A curandeiraestavacerta:osucodaservastinhaardidomesmo,maselesesentiamuitomelhordepoisdeumanoitebemdormida.O jovem guerreiro ficou imaginando como Tempestade de Areia e
PelagemdePoeirateriampassadoavigília.Semdúvidadeviaestarmuitofrio, láfora,naneve.Levantou-seealongouaspatasdafrente,arqueandoascostaseerguendoacaudaacimadacabeça.OsdoisnovosguerreirosdoClãdoTrovão,enroscados,dormiamdooutroladodatoca.ProvavelmenteNevascaosmandaraentrarquandopartiunapatrulhadoamanhecer.CoraçãodeFogosaiunaclareiracobertadeneve.Maldistinguiaopelo
branco de Pele de Geada que, naquele momento, saía do berçário paraesticaraspernas.Haviadoispontossemneve,nocentrodaclareira,ondeTempestade de Areia e Pelagem de Poeira tinham passado a noite.Arrepiou-sesódepensarnisso,mastambémos invejouaose lembrardaempolgaçãodesuaprimeiranoitecomoguerreiro.Nemofriomaisintensopoderiaesfriarocalorqueoinundara.O céu estava coberto de nuvens de neve espessas. Ainda caíam flocos,
levesesilenciosos.Acaçaiaserintensanaqueledia,pensouoguerreiro.Oclãprecisariadeumareservadepresasfrescas,casootempopiorasse.OuviuEstrelaAzul chamandodaPedraGrande.Os gatos começarama
sair das tocas em direção à líder. Coração de Fogo se instalou num dospontosqueguardavaaindaocheirodeTempestadedeAreia.ViuqueListraCinzentaestavadooutrolado,comarcansado.ImaginavaseoamigoteriaescapulidonavésperaparaircontaraArroiodePratasobreosvilões.EstrelaAzul começoua falar: –Queria ter certezadeque todos sabem
queCaudaPartidaestánoacampamento.–Nenhumdosgatosfeznenhumbarulho.Todosjáestavamapar;anotíciaseespalharapeloacampamentocomofogonafloresta.– Ficou cego, inofensivo. – Alguns felinos bufaram, descontentes, e
EstrelaAzulmeneouacabeça,indicandoqueentendiaomedoquesentiam.–Estoutãopreocupadaquantovocêscomasegurançadoclã.MasoClãdasEstrelassabequenãopodemosdeixá-lomorrernafloresta.PresaAmarela
vai tratar dele até que seus ferimentos estejam curados. Depois,conversaremossobreoassuntodenovo.A líder olhou em volta, esperando protestos,mas ninguém falou nada.
Então, ela desceu da Pedra Grande. Enquanto os felinos se dispersavam,CoraçãodeFogopercebeuEstrelaAzulseaproximando.–CoraçãodeFogo–miou–,háumacoisaquemepreocupa.Vocêainda
nãoseacertoucomListraCinzenta.Nãoosvejocomendojuntoshámuitotempo. Como lhe disse antes, aqui não há espaço para brigas. Quero quesaiamjuntosparacaçarhoje.– Está bem, Estrela Azul. – Para ele, não havia problema. E, depois da
batalha da véspera, tinha esperança de que o amigo apreciasse a ideiatambém.A líderseafastoueeleolhouaclareira,àprocuradogatocinza,que,umpoucomaislonge,ajudavaalimparanevedaentradadoberçário.– Olá, Listra Cinzenta – disse Coração de Fogo. O outro continuou seu
trabalho.Oguerreiroavermelhadosaltousobreele.–Querircaçarhoje?ListraCinzenta fitou-o comolhos frios: –Vocêquer ter certezadeque
nãovoudesaparecerdenovo?–rosnou.Coração de Fogo ficou surpreso: – N… não, pensei que… depois de
ontem…CaraRasgada…–TeriafeitoamesmacoisaporqualquergatodoClãdoTrovão.Éoque
sechamalealdade–miouListraCinzentacomraiva,voltandoaempurraraneve.As esperanças de Coração de Fogo caíram por terra. Será que tinha
perdido a confiança do amigo para sempre? Deu as costas, a caudaabaixada, e começou a abrir caminho na neve até a entrada doacampamento. Disse por cima do ombro. – Na verdade, Estrela Azul memandouircaçarcomvocêestamanhã,entãovocêéquevaiexplicaraelaporquenãoquervir.– Ah, entendi, você quer apenas agradar Estrela Azul, como sempre! –
silvou Listra Cinzenta. Coração de Fogo deu meia-volta, pronto parareplicar,masparouquandoviuListraCinzentaatravessaraclareiranasuadireção,sacudindoosflocosdenevedosombroslargos.–Então,vamos–rosnouListraCinzenta,passandopelotúneldetojos.Sairdaravinaeraumaescaladadifícil,comaspedrascobertasdeneve.
Quandochegaramaotopo,avistaramdiantedelesaflorestagelada.Comardeterminado, Listra Cinzenta disparou na frente, e o amigo o seguiu.Coração de Fogo perseguia um camundongo em volta das raízes de um
carvalho quando viu o gato cinzento correr atrás de um coelho quecometeraatolicedeseafastardatoca.ListraCinzentaperseguiuacriaturaatécapturá-lacomumgolpecerteiro.DepoisfoiatéCoraçãodeFogo,queoobservava,elargouocoelhoaospésdoamigo.–Devedarparaalimentarumoudoisfilhotes–rosnou.–Vocênãotemquemeprovarnada.– Não? – perguntou, amargo, o gato cinza. Seu olhar frio e zangado
encontrou o de Coração de Fogo. – Talvez você devesse começar a agircomoseconfiasseemmim–disse,afastando-seantesqueCoraçãodeFogopudesseresponder.Nosolalto,ListraCinzentatinhamaispresasqueCoraçãodeFogo,mas
ambos haviam trabalhado bem. Voltaram para o acampamento com asmandíbulas pesadas de tanta caça. Entraram na clareira e deixaram aspresasfrescasnolugardecostume,vazionaquelemomento.CoraçãodeFogo seperguntava se teriade sairdenovo.Aneveestava
mais pesada agora, e um vento frio começara a soprar na ravina. Eleestudavaocéu,cadavezmaisescuro,quandoouviuomiadopreocupadodeCaraRajadapertodoberçário.Aproximou-secomumsaltoparaveroquetinhaacontecido.–Oquefoi?–VocêviuFilhotedeNuvem?Coração de Fogo fez que não. – Ele desapareceu? – Sentiu as patas
começaremapinicar;opânicocrescentedagataeracontagioso.– Sim, e meus outros filhotes também. Só fechei os olhos por um
segundo.Acabeideacordarenãoconsigoencontrá-losemnenhumlugar!Estámuitofrioparaquefiquemaífora.Vãomorrercongelados!–Arainhabalançavadeláparacásobreaspatas.O pânico tomou conta dele ao se lembrar da última vez que um felino
jovemdesapareceradoacampamento.TinhasidoPatadeCinza.
CAPÍTULO28
– VOU ENCONTRÁ-LOS – prometeu Coração de Fogo. Como por instinto,procurouemvoltaporListraCinzenta.Oventoestavaaumentandoeaneveficavacadavezmaisespessa;nãoqueriairsozinho.Correuparaatocadosguerreiros.Eletampoucoestavaali.Tempestade de Areia acabava de acordar. – O que foi? – miou ao ver
CoraçãodeFogoesquadrinhandoatoca.–OsfilhotesdeCaraRajadadesapareceram.– Filhote de Nuvem também? – perguntou a gata se levantando, já
desperta.–Também!EuestavaatrásdeListraCinzentaparaqueelefossecomigo
procurá-los,maselenãoestáaqui–miouCoraçãodeFogo,atropelandoaspalavras.Sentiuumapontaderaivaporqueoamigovoltaraadesaparecer,elogodepoisdetê-loacusadodenãoconfiarnele!–Voucomvocê–ofereceu-seTempestadedeAreia.Ogatopiscou.–Obrigado–miou,agradecido.–Vamos,então.Émelhor
avisarEstrelaAzulantesdesairmos.–PelagemdePoeirapodeavisar.Aindaestánevando?–Está, e cada vezmais. Émelhor corrermos. Coraçãode Fogo viu que
PelagemdePoeiraestavadormindo.–Enquantovocêoacorda,voudizeraCaraRajadaquevamossair.Encontrovocênaentrada.–Voltoucorrendoaoberçárioondeagataaindafarejavaàprocuradeodores.–Algumsinal?–Não,nada–avozdeCaraRajadatremia.–PeledeGeadafoicontara
EstrelaAzul!–Bem,não sepreocupe.Vouprocurá-los –disse o guerreiro, tentando
acalmararainha.–TempestadedeAreiavaicomigo.Vamosencontrá-los.CaraRajadafezquesimecontinuousuabusca.Coração de Fogo e Tempestade de Areia chegaram juntos ao túnel de
tojos e correram para o bosque. Fora do acampamento, o vento pareciaaindamaisferoz.Oguerreiroestreitouosolhosecurvouosombrosparaseprotegerdanevasca.–Vaiserdifícildetectarumodornaneve fresca–elealertou.–Vamos
começarverificandosesubiramparaafloresta.
–Estábem.–Vocêvaiparaaquelelado–eleapontoucomonariz–eeuvouparao
outro.Encontrocomvocêaqui;nãodemore.Tempestade de Areia se foi num pulo e Coração de Fogo saltou uma
árvorecaída,natrilhaqueoclãseguiacommaisfrequência.Acamadadenevequecobriaaslateraisdaravinaestavaaindamaisespessadoquepelamanhãe, ondeaneve tinhaviradogelo, escorregavabastante.Eleparou,levantouacabeça,abocaentreaberta,masnãoconseguiuperceberocheirodosfilhotes.Procurouemvãopormarcasdepatas;seráqueatrilhajáforacobertapelaneve?Seguiu pela base da encosta,mas nem sinal de gatos,menos ainda de
filhotesperdidos.Oventoeratantoqueelemalsentiaapontadasorelhas.Nenhum filhote conseguiria sobreviver naquela temperatura, e não iriademorarmuitoparaqueosolcomeçasseasepôr.Precisavaencontrá-losantesquecaísseanoite.Coração de Fogo correu para a entrada do acampamento onde
TempestadedeAreiaoesperava,comopelosalpicadodepequenosfiletesdeneve,queelasacudiuaovê-loseaproximar.–Algumsinal?–miouCoraçãodeFogo.–Não,nada.– Não podem ter ido longe. Venha, vamos tentar por aqui – ele disse,
rumandoparaovaledetreinamento.TempestadedeAreia lutavaparasegui-lo.Aneveestavacadavezmais
profundae,acadapasso,agataafundavaatéaalturadabarriga.Ovaleestavavazio.– Você acha que Estrela Azul se dá conta de como o tempo está ruim
aqui?–perguntouaguerreira,elevandoavozacimadovento.–Elavaisaber.– Deveríamos voltar e pedir ajuda, nos juntarmos a outra patrulha de
busca–miouagata.CoraçãodeFogoolhouparaaguerreiraquetremia.Osfilhotesnãoeram
osúnicosquecongelariamali.TalvezTempestadedeAreiaestivessecerta.–Concordo–elemiou–nãopodemosfazerissosozinhos.Ao se virarem para voltar, Coração de Fogo ouviu gritinhos baixos
trazidospelovento.–Escutouisso?–perguntou.Aguerreiraparouecomeçouafarejaroar,agitada.Derepente,levantou
acabeça.–Poraqui!–miouapontandocomonarizparaumaárvorecaída.CoraçãodeFogocorreunadireção indicada,comTempestadedeAreia
logoatrás.Osguinchadosficarammaisaltos,atéqueoguerreiroconseguiudiscernir outras vozes pequenas. Subiu no tronco e olhou do outro lado.Agarradinhos na neve, dois filhotes. Coração de Fogo sentiu um alívioenorme, até sedar contadequeo sobrinhonão estava comeles. –OndeestáFilhotedeNuvem?–grunhiu.–Caçando–chiouumdosfilhotes.Suavozsooutrêmuladefrioemedo,
mastambémcomumtomdedesafio.O gato levantou a cabeça – Filhote deNuvem! – chamou, tentando ver
atravésdosflocosdeneve.– Coração de Fogo, olhe! – Tempestade de Areia estava em cima do
troncodeárvore.Oguerreirogiroueviuumaformabrancaeencharcadaarremetendo-se contra a neve, na direção dele. Filhote de Nuvem! Cadapasso representavaumesforço imensoparao filhotinho, pois a neve eratão alta quanto ele. Entretanto, ele prosseguia, trazendo na boca umpequenoratosilvestrecobertodeneve.Uma onda de alívio e raiva se abateu sobre Coração de Fogo. Deixou
TempestadedeAreiacomosoutrosecorreuparaagarraropequenofelinopela nuca. Filhote deNuvem rosnou emprotesto e recusou-se a largar orato,quebalançavaentreosdentes.CoraçãodeFogoseviroueviuqueTempestadedeAreiaempurravaos
outros dois para perto dele. Tropeçavam e afundavam até as orelhas naneve,maselacontinuavaaempurrá-los.FilhotedeNuvemsecontorciaentreosdentesdeCoraçãodeFogo,que
finalmenteosoltounaneve.Opequenoolhouparaeletodoorgulhoso,comapresaaindanaboca.CoraçãodeFogoestavaclaramenteimpressionado;apesardaneveedovento,osobrinhoconseguiraaprimeirapresafresca!– Espere aqui – ordenou, correndo para ajudar Tempestade de Areia.
Pegou uma minúscula gatinha que miava, desesperada, e começou aempurrarooutrofilhotecomonariz.Ogrupoencharcadotevemuitadificuldadeparavoltaraoacampamento.
CaraRajadaesperavadoladodeforadotúneldetojos.EstrelaAzul,aseulado, estreitavaosolhospor causadanevasca.Assimqueviramogrupo,correram para ajudar. A líder pegou Filhote de Nuvem e Cara Rajadaagarrou o outro pequeno; depois, correram para a segurança doacampamento,seguidasdeCoraçãodeFogoeTempestadedeAreia.
Chegandoàclareira,os trêsgatossoltaramospequenos fardosgeladosnochão.OguerreirosacudiuanevedopeloeolhouparaFilhotedeNuvem,que,teimoso,continuavaaseguraracaçaentreosdentes.Estrela Azul olhou para os filhotes. – O que é que vocês pensam que
estavamfazendoláfora?NãosabemqueoCódigodosGuerreirosproíbeacaçaaosfilhotes?OsdoisfilhosdeCaraRajadaseencolheramdiantedoolharzangadoda
líder,masFilhotedeNuvemfixounelaosolhosredondoseazuis.Largouorato silvestre e miou: – O clã precisava de presas frescas; aí, decidimospegaralgumas.CoraçãodeFogoestremeceudiantedaquelaousadia.–Dequemfoiaideia?–perguntoualíder.–Minha–anunciouFilhotedeNuvem,semabaixaracabeça.EstrelaAzulfixouosolhosnofilhotepetulanteerosnou:–Vocêspodiam
termorridocongeladosláfora!FilhotedeNuvem,surpresocomotomzangado,seagachou.–Fizemos
peloclã–miouemsuadefesa.CoraçãodeFogoprendeuofôlego,àesperadareaçãodalíder.Filhotede
Nuvem quebrara o Código dos Guerreiros. Estrela Azulmudaria de ideiasobresuapermanêncianoclã?–Sua intenção–miou,devagar, a líder– foiboa,mas foi tambémuma
coisabastantetola.–CoraçãodeFogosentiuumapontadeesperança,massecontraiutodoaoouvirFilhotedeNuvemretrucar.–Maseupegueialgumacoisa.–Estouvendo–replicoualíderfriamente.Olhouparaostrêspequenos.
–Voudeixarqueamãedevocêsdecidaoquefazer,masnãoquerovê-losfazendonadaparecidodenovo.Entenderam?Coração de Fogo relaxou um pouco, ao vê-los concordar. – Filhote de
Nuvem, você pode colocar sua presa na pilha – acrescentou a líder. –Depois, vão direto para o berçário para se secarem e se aquecerem. – Ojovem guerreiro ficou surpreso. Será que detectara um tommaternal navozdalíder?Os filhotesdeCaraRajada foram tropeçandopara oberçário, seguidos
pelamãe;FilhotedeNuvempegouoratosilvestreparacolocarnapilhadepresas.OportealtivodesuacabeçafezpinicaremdepreocupaçãoaspatasdeCoraçãodeFogo,que,noentanto,teveaimpressãodenotarumbrilho
deadmiraçãonosolhosdalíder,queobservavaofilhoteseafastar.–Muito bem, vocês dois –miou Estrela Azul, voltando a atenção para
TempestadedeAreiaeCoraçãodeFogo.–VoumandarRaboLongobuscaraoutrapatrulha.Vãoparaatocaeaqueçam-se,também!–Sim,EstrelaAzul–respondeuCoraçãodeFogo.Estavasaindoquandoa
líderochamou.–Querofalarcomvocê.–Oguerreiroficouapreensivocomotom.Talvezeletivesserelaxadocedodemais.– Filhote de Nuvem demonstrou hoje grandes habilidades para caçar,
mas de nada valem todas as habilidades do mundo se não aprender aobedecer aoCódigodosGuerreiros.Agora se tratada segurançadele; nofuturo,dissovaidependerasegurançadetodooclã.Coração de Fogo fitou o chão. Sabia que ela estava certa,mas talvez a
líderesperassedemaisdeum filhote tão jovem.FilhotedeNuvemestavanoclãhaviapouco.CoraçãodeFogoengoliucertoressentimentoaopensaremListraCinzenta,quemesmotendonascidonoclãestavadesobedecendodescaradamente ao Código dos Guerreiros. Olhou para a líder e miou: –Sim,EstrelaAzul;voumeassegurardequeaprenda.–Ótimo–eladisse,comtomdesatisfação.Entãoelasevirouesaiuna
direçãodesuatoca.Emboranãoestivessemaiscomfrio,CoraçãodeFogofoiparaatocados
guerreiros. As palavras de Estrela Azul queimavam dentro dele. Entrou,arrumou o ninho e começou a se lavar. Permaneceu lá toda a tarde,cismado com Listra Cinzenta e com Filhote de Nuvem. Sabia que a líderestava certa. O orgulho e o olhar desafiador que percebera no filhotebranco fizeramoguerreiro refletir seo jovemseria capazdeseajustaràvidadoclã.Quandochegouanoite,afomeofezsairdorefúgio.Pegouumtordona
pilha e foi comê-lo perto damoita de urtigas. Já estava escuro, e a nevetinha parado. Quando seus olhos se acostumaram à escuridão, viuclaramenteaentradadoacampamento.PercebeuListraCinzentaassimqueoamigochegou;observou-oiratéa
pilha e ali despejar a caça. No final das contas, talvez estivesse apenascaçando.Ogatocinzentodeixounapilhaamaiorpartedoquetrouxera, ficando
apenas com um camundongo, que levou a um lugar protegido perto domurodoacampamento.AbreveesperançadeCoraçãodeFogoesmaeceu.Ojeitodistraídonoolhardoamigodiziaqueassuspeitaseramjustificadas:
estiveracomArroiodePrata.CoraçãodeFogofoiparaatocaonde,semnenhumadificuldade,caiuem
sonoprofundo.Voltouasonhar.Aflorestacobertadeneveseestendiadiantedeleebrilhavacordeprata
sobaluafria.CoraçãodeFogoestavadepénumarochaaltaeescarpada;aseulado,FilhotedeNuvem,jácomoguerreiro,comopelobrancoonduladopelovento.Sobsuaspatas,ogelocintilavanapedra.–Olhe!–elesilvouparaosobrinho.Umratodocampocorriaàvoltadas
raízescongeladasdeumaárvore.FilhotedeNuvemseguiuoolhardotioepuloudarocha,semfazerbarulho.CoraçãodeFogoobservouogatobrancorondaracaça.Derepente,sentiuumodormuitosuaveefamiliar,queofezestremecer. Sentiuumhálitomornopertodaorelha; virou-sedepressa eviuFolhaManchadaaseulado.O pelo sarapintado da gata brilhava ao luar, e ela tocou, com o nariz
rosadoe suave,o focinhodoguerreiro.–CoraçãodeFogo– sussurrou–,trago-lheumavisodoClãdasEstrelas.–Seutomerasombrio,seusolhosqueimavam.–Abatalhaestápróxima.Tomecuidadocomoguerreiroemquemnãopodeconfiar.Oguinchodeumcamundongo fezo guerreirodarumpulo eolhar em
volta.FilhotedeNuvem,comcerteza,pegaraacaça.Voltou-separaFolhaManchada,maselahaviadesaparecido.CoraçãodeFogoacordousobressaltado;virou-separaoninhoaolado,e
lá estava Listra Cinzenta todo enrolado, dormindo profundamente, ofocinhosobacaudadepeloespesso.AspalavrasdeFolhaManchadaaindaecoavam em sua cabeça. – Tome cuidado com o guerreiro em quemnãopodeconfiar!Ele estremeceu. O frio cruel da floresta parecia colar em seu pelo até
mesmoali,eodocecheirodeFolhaManchadacontinuavaemsuasnarinas.Ogato cinza seespreguiçou resmungandono sono, eCoraçãodeFogoseencolheudemedo.Sabiaquenãoconseguiriadormirdenovo,masficounoninho,observandooamigodormir,atéquea luzdoalvorecercomeçouabrilharatravésdasparedesdatoca.
CAPÍTULO29
ASSIMQUECLAREOU,PeledeSalgueiroacordou.CoraçãodeFogoobservou-aselevantar,seespreguiçar,depoissairdatoca.OlhouumaúltimavezparaListraCinzenta,quedormia,edepoisseguiuagata.–Paroudechover–miouofelino,desesperadoparaquebrarosilêncio
espectral que envolvia o acampamento cheiodeneve. Sua voz ecoouportodaaclareira,ePeledeSalgueirobalançouacabeça,concordando.UmfarfalharacompanhouoodordeGarradeTigreeVentoVeloz,que
saíam da toca. Os dois se acomodaram ao lado de Pele de Salgueiro ecomeçaram a se lavar. Prontos para a patrulha do amanhecer, pensouCoraçãodeFogo.Seráquedeveriaseoferecerparair junto?Afinal,assimpoderiacorrerpelafloresta.MasoutrapartedelequeriaficarevigiarListraCinzenta.AspalavrasdeFolhaManchadaaindapesavamemseucoração.Nãoconseguiaapagaraideiadequeeraoamigooguerreiroemquemnãopodia confiar.Ogato cinza insistiaemdizerquea relação comArroiodePrata não alterava em nada sua lealdade para com o clã;mas como issoseriapossível?Osimples fatodevê-la jáeraumaviolaçãodoCódigodosGuerreiros!De repente, Garra de Tigre ergueu a cabeça como se farejasse alguma
coisa. Coração de Fogo ficou tenso, suas orelhas se mexeram. Ao longe,ouviuorangerdepatasvelozesnaneve.AbrisatrouxeocheirodoClãdoVento.Osomdospassosaumentou.Comosefossemum,osguerreirosseretesaram;umgatocorreuatéelesatravésdotúneldetojos.GarradeTigrearqueouascostasesilvouquandoBigodeRaloirrompeunaclareira.O guerreiro do Clã do Vento derrapou, parando em frente dos felinos
com os olhos cheios de medo. – O Clã das Sombras e o Clã do Rio! –disparou. – Estão atacandonosso acampamento! Sãomais numerosos doque nós, e estamos lutando por nossas vidas. Estrela Alta se recusa a seretirardestavez.Vocêsprecisamnosajudar,ounossoclãserávarridodafloresta!EstrelaAzulsaltouparaforadatoca.Todososolharessedesviaramde
BigodeRaloparaela.–Ouviisso–mioualíder.SemsubirnaPedraGrande,ela deu o brado usual para reunir o clã. Bigode Ralo ficou observando,enquantoosfelinossaíamdastocasnaluzdamanhã.Oodordemedoqueeleexalavaencheuaclareira.
Reunido o clã, a líder começou a falar: – Não há tempo a perder.Aconteceu o que temíamos: o Clã das Sombras uniu-se ao Clã do Rio, eagoraestãoatacandooacampamentodoClãdoVento.Temosdeajudá-los.–Fezumapausaeolhouparaosguerreirosquea fitavam, consternados.BigodeRalopermaneceuemsilêncioaoladodela,ouvindo-acomosolhosarregaladosecheiosdeesperança.CoraçãodeFogoestavaestarrecido.Desdequeostraidorestinhamsido
descobertos, achou que podiam confiar em Estrela da Noite. Agora, pelovisto,o líderdoClãdasSombrasquebraraoCódigodosGuerreirosaoseuniraoClãdoRioparaexpulsaremoClãdoVentodecasa,maisumavez.–Masestamosnaestaçãosemfolhas.Esgotados!–protestouRetalho.–
JánosarriscamospeloClãdoVentoantes.Queelescuidemdesimesmosdestavez.–Algunsmurmúriosdeaprovaçãoseergueramdosanciãosedasrainhas.Foi Garra de Tigre quem respondeu, dando um passo à frente para se
colocaraoladodeEstrelaAzul:–Vocêestácertoemserprudente,Retalho.MasseoClãdasSombraseoClãdoRioseuniram,éapenasumaquestãodetempoatéquesevoltemcontranós.Émelhorlutarmosagora,juntocomoClãdoVento,doquemaistarde,sozinhos!EstrelaAzulolhouparaRetalho,quefechouosolhoselevantouacauda,
concordandocomGarradeTigre.PresaAmarelaabriucaminhoentreosgatose,commuitacalma,falouà
líder.–Achoquevocêdeveriapermanecernoacampamento,EstrelaAzul.A febreda tosseverdepode terpassado,masvocêaindaestá fraca. –AsduasgatastrocaramolharescujosentidoCoraçãodeFogoentendeumuitobem.EstrelaAzulestavavivendosuanonaeúltimavidae,pelobemdoclã,nãopoderiaarriscá-laembatalha.A líder concordou prontamente: – Garra de Tigre, quero que organize
doisgrupos,umparaconduziroataqueeoutroparacobriraretaguarda.Temosdechegarláomaisrápidopossível!– Sim, Estrela Azul. – Garra de Tigre se virou para os guerreiros. –
Nevasca,vocêvailiderarosegundogrupoeeumeocupodoprimeiro.RiscadeCarvão,PelodeRato,RaboLongo,PelagemdePoeiraeCoraçãodeFogovêm comigo. – O guerreiro avermelhado ergueu a cabeça ao ouvir seunome, sentindo um arrepio percorrer-lhe o corpo. Ele ia fazer parte dogrupodeataque!–Você!–falouGarradeTigreparaBigodeRalo.–Comoéseunome?–O
guerreirodoClãdoVentosobressaltou-secomotomdapergunta.FoiCoraçãodeFogoquemrespondeu:–BigodeRalo.GarradeTigrebalançouacabeça,quasesemolharparaCoraçãodeFogo:
–BigodeRalo,vocêvaicomomeugrupo.OsdemaisguerreirosdoClãdoTrovãovãoacompanharNevasca.Vocêtambém,PatadeSamambaia.–Todosprontos?–perguntouorepresentante.Osguerreiroserguerama
cabeça e soltaram um grito de guerra. Garra de Tigre subiu, veloz, emdireçãoaotúneldetojos,seguidopelosdemais.Escalaramaravinarumoàfloresta.IamparaQuatroÁrvores,delápara
oplanalto.Enquantocorriaentreasárvores,CoraçãodeFogoviu,porcimadoombro,ListraCinzentalánofimdogrupo,orostoimplacável,olhandoparaafrente,semexpressão.CoraçãodeFogoseperguntavaseArroiodePrata estaria na batalha. Sentiu pena do amigo,mas dessa vez não tinhadúvidassobresuaprópriadisposiçãoparaa luta.DepoisdereconduziroClãdoVentoparacasa,sentia-seresponsávelporeles.NãopermitiriaquenenhumclãosbanisseoutravezparaostúneisdoCaminhodoTrovão.OperfumedeFolhaManchadavoltou-lheàsnarinas;opelodogato se
eriçou. “Tomecuidadocomoguerreiroemquemnãopodeconfiar!”Estaseriaumabatalhadifícilpordiferentesmotivos.AgoraListraCinzentateriadedecidiraquemdedicarsualealdade.Mesmo tendo parado de nevar, o percurso era bastante árduo. Uma
crostadegelose formarasobreaneve,massequebravacomopesodosguerreiros,queafundavamnacamadamaismaciaqueficavaporbaixo.– Garra de Tigre! – o grito de Pele de Salgueiro soou lá de trás. O
representantesevirou.–Estamossendoseguidos!EssaspalavrasfizeramCoraçãodeFogoestremecer.Teriamcaídonuma
armadilha?Emsilêncio,ogruporefezospassos,alertaedesconfiado.Umgalhopesadodenevesequebrou,fazendoPatadeSamambaiadarumsalto.–Espere–silvouGarradeTigre.Os felinos se agacharam na neve profunda. Coração de Fogo ouviu
passos.Pareciamleves,pequenaspataspisandocomdelicadezanacrostagelada. Consternado, Coração de Fogo compreendeu quem estava ali umátimo antes que Filhote de Nuvem e os dois filhotes de Cara Rajadasurgissemdetrásdeumtronco.Orepresentanteergueu-senaspatastraseiraseospequenosguincharam
demedo.Oveteranoosreconheceunomesmoinstanteevoltouàsquatro
patas.–Masoqueéqueestãofazendoaqui?–disparou.–Queríamosparticipardabatalha–miouFilhotedeNuvem.Coraçãode
Fogoestremeceu.– Coração de Fogo! – chamou Garra de Tigre. O gato se aproximou
depressaeorepresentantedisparou,impaciente.–Vocêtrouxeessefilhoteparaoclã,agoraresolvaoproblema.O guerreiro fitou os olhos cintilantes de Garra de Tigre. Sabia que o
representante estava tentando forçá-lo a escolher: juntar-se ao grupo decombateelutarpeloclã,outomarcontadofilhotegatinhodegente.Todaapatrulhaesperavaemsilêncioqueeledissessealgumacoisa.CoraçãodeFogosabiaquesuaescolhaeralutarpeloclã,masnãopodia
sacrificar o sobrinho. Filhote de Nuvem e os pequenos companheirostinhamdeserlevadosdevoltaparacasaemsegurançaporoutrogato.Masqualdelesnãofariafaltanapatrulha?Coração de Fogo chamou o aprendiz de Listra Cinzenta: – Pata de
Samambaia, por favor, leve esses filhotes para casa. – Pensou que ListraCinzentafossefazeralgumaobjeção,maselecontinuouemsilêncio.CoraçãodeFogosentiuumapontadadeculpaaoveroaprendizbaixara
cauda.–Vocêaindaterámuitasbatalhasparalutar–prometeu.– Mas você disse que um dia lutaríamos lado a lado! – Ouviu-se o
protestodeFilhotedeNuvematravésdasárvores.GarradeTigre lançouum olhar de zombaria que fez o pelo de Coração de Fogo eriçar, emdesconforto, enquantoosoutros guerreiros sedivertiamcomaspalavrasdofilhote.Masoguerreiroserecusavaademonstrarembaraço.–Umdialutaremosjuntos.Masnãohoje!Os ombros do gatinho branco relaxaram e Coração de Fogo suspirou
aliviadoaovê-lose juntaraogrupodePatadeSamambaiaparavoltaraoacampamento.–Estousurpresocomasuaescolha,CoraçãodeFogo–zombouGarrade
Tigre.–Nãoimaginavaqueestivessecomtantapressadeparticipardestabatalha.Comosanguepulsandonasveias,ocorpovibrandoderaiva,Coraçãode
Fogo encarou o representante: – Se estivesse tão disposto quanto eu –retorquiu –, você daria o grito de guerra em vez de nos segurar aquienquantoosguerreirosdoClãdoVentomorrem!GarradeTigrelançou-lheumolhardeódio,depoisjogouacabeçapara
tráse rugiuparao céuantesdedispararparaoacampamentodoClãdo
Vento. Coração de Fogo e os outros o seguiram, passando por QuatroÁrvores e subindo a encosta íngremeque levava aoplanalto.Avançavamemgrandessaltos;aneveabafavaobarulhodaspatas.Quando alcançaram o topo, Coração de Fogo estava maltratado pelo
ventofurioso,queviravasuasorelhasdoavesso.AszonasdecaçadoClãdoVentopareciammaisáridasdoquenunca,otojocobertoporumacamadadeneve.–CoraçãodeFogo!VocêsabeocaminhoparaoacampamentodoClãdo
Vento!–urrouGarradeTigre.–Leve-nosatélá–disse,diminuindoopassopara que o jovem guerreiro tomasse a frente. Coração de Fogo seperguntavaseorepresentantenãoconfiavaemBigodeRalosuficienteparadeixá-lo guiar a patrulha.Olhoude novopara Listra Cinzenta, esperandoalguma ajuda, mas o amigo mantinha a cabeça baixa e os ombrosarqueados,infeliz,comopeloespessofustigadopelovento.Nãoviriamuitaajudadali.CoraçãodeFogoergueuosolhosparaoClãdasEstrelase fezumaprecepedindoorientação.Ficousurpresoaoperceberquereconheceraaformadoterrenomesmo
sob a neve. Lá estavam a toca do texugo e a pedra que Listra Cinzentaescalara para ter uma perspectiva melhor. Seguiu os contornos quelembravaterfeitonaquelediacomoamigoatéatingiradepressãonaterra,quemarcavaoacampamentodoClãdoVento.CoraçãodeFogoparounabeiradovale.–Aquiembaixo!–gritou.Num
tique-taquedecoração,oventoseacalmoue,aolonge,ouviramossonsdabatalha:gritoseurrosdegatoslutandofuriosamente.
CAPÍTULO30
GARRADETIGRESEDIRIGIUaosguerreiroscomumsilvoferozquetrespassouatempestade de neve. – Nevasca, espere até ouvir meu grito de guerra!BigodeRalo,vocênosguiarápelaentradadoacampamento;cuidaremosdoresto.BigodeRalodesceucorrendoaencostaemdireçãoaosarbustoscobertos
de neve. Garra de Tigre o seguiu como um raio; colado nele ia Risca deCarvão.CoraçãodeFogodisparouatrásdogatomalhadoatravésdotúnelestreitoquelevavaaoacampamentodoClãdoVento.Ostojoseramdensosecortantes,talcomoeleselembrava.ListraCinzentaeosoutrosguerreirosficaramnoaltodaencosta,comoumareservadecombatentesprontaparaatacardepoisdainvestidainicial.Coração de Fogo parou de repente e sobressaltou-se diante do que
vislumbrou na clareira do acampamento. Na última vez que estivera ali,procurandoatrilhadeodoresqueoconduziriaaoclãdesaparecido,olugarestavadesertoesilencioso.Agorafervilhavadefelinosqueseretorciamemgolpes,enfrentando-seentregritoseguinchos.BigodeRaloestavacerto:osgatosdoClãdoVentoeramclaramenteminoria.UmreforçodeguerreirosdoClãdasSombrasedoClãdoRioesperavanabeiradadaclareira,masoClãdoVentonãopodiadispordeumgrupodeapoio.Todooclãsejuntaraàbatalha:aprendizeseanciãos,guerreiroserainhas.CoraçãodeFogoviuFlordaManhãlutandocomumguerreirodoClãdas
Sombras. A rainha do Clã do Vento parecia exausta e amedrontada, apelagem em tufos desgrenhados. Mesmo assim, meio entorpecida,rodopiavaearranhavaoatacante,que,muitomaior, jogou-anochãosemdificuldadecomumtapaforte.Soltandoumurro,CoraçãodeFogosaltoueaterrissousobreosombros
dogatodoClãdas Sombras, agarrando-o com força.O inimigo, surpreso,girou e tentou se soltar. Flor da Manhã correu as garras pelo corpo doadversário enquanto Coração de Fogo o empurrava para o chão. Oguerreiro do Clã das Sombras soltou um guincho e se desvencilhou,correndoemseguidaparaomuroespinhadodoacampamento,porondefugiu.FlordaManhã lançouumolhardeagradecimentoparaCoraçãodeFogoevoltouàbatalha.Ojovemguerreiroolhouemvolta,sacudindodonarizalgumasgotasde
sangue.AspatrulhasdeapoiodosgatosdoClãdasSombrasedoClãdoRio
tinham se juntado à luta. A chegada do Clã do Trovão equilibrou osexércitosporummomento,masumanovapatrulhajásefazianecessária.CoraçãodeFogoouviuogritodeguerradeGarradeTigree,uminstantedepois,Nevascasurgiunaclareira,seguidoporListraCinzenta,VentoVelozeosdemaisguerreirosdoClãdoTrovão.CoraçãodeFogoagarrouumfelinodoClãdoRioedeu-lheumarasteira
comumadaspatas;comaoutra,segurou-onochão.Virouogatodebarrigaparacimaefincou-lheasunhasnoventre, lacerando-o.Oinimigodeuumpulo e chocou-se com um guerreiro do Clã do Vento, que se voltou,surpreso. Coração de Fogo imediatamente reconheceu Bigode Ralo e oobservouquandoeleseergueunaspatastraseiraseatacouofelinodoClãdo Rio, sem descanso. Viu que os olhos do guerreiro do Clã do Ventoflamejavam.Podiadeixá-loterminaraquelaluta.Um silvo familiar chamou a atenção de Coração de Fogo. Era Listra
CinzentalutandocomumgatocinzadoClãdasSombras.EraPéMolhado,umdosguerreirosqueos ajudaraa expulsarEstrelaPartida.A forçadosdois era equilibrada. ListraCinzenta empurrouPéMolhado comaspatastraseiraserodopiou,procurandooutrofelinoparaatacar.CoraçãodeFogoviu,então,umgatodoClãdoRiobematrásdoamigo.Acimadoclamordabatalha,ouviao sangueestrondearnosouvidos. SeráqueListraCinzentaatacariaumdoscompanheirosdeArroiodePrata?ListraCinzentapuloueCoraçãodeFogoprendeuarespiração.Emvezde
selançarsobreogatodoClãdoRio,ListraCinzentapassouporcimadeleeaterrissousobreascostasdeumguerreirodoClãdasSombras.Coraçãode Fogo ouviuGarra deTigre chamá-lo. Ao se virar, avistou o
representante do outro lado da clareira, onde a batalha era ainda maisárdua,comgatosdetodososclãsseengalfinhando.AocorreratéorepresentantedoClãdoTrovão,CoraçãodeFogosentiu
PelodeLeopardoagarrar-lheaperna,derrubando-o.–Você!–silvouarepresentantedoClãdoRio.Aúltimavezquetinham
seencontradoforaàbeiradoprecipício,quandoGarraBrancamorreu.CoraçãodeFogoatirou-alongeepôs-sedecostasnochão.Tardedemais,
percebeuqueexpuserasuabarrigamaciaaoperigo.PelodeLeopardo,semperdertempo,levantou-sesobreaspatastraseiraselançou-secomtodoopesosobreCoraçãodeFogo.Comarespiraçãosuspensa,oguerreirosentiuasgarrasafiadascravarememseuventre.Soltouumurrodedor.RevirouosolhoseviuGarradeTigredooutroladodaclareira,observando-ocom
olhosfrioseinexpressivos.–Ajude-me,GarradeTigre!–urrouojovemguerreiro.Masorepresentantenãosemoveu.ApenasobservavaPelodeLeopardo
cravar-lheasgarrasafiadasrepetidamente.Araivarestituiu-lheasforçasdequenecessitava.Lutandocontraador,
puxou as patas traseiras e, em seguida, chutou a barriga de Pelo deLeopardo com toda a força de que dispunha. Coração de Fogo notou osemblantedesurpresaquandoseuchuteaergueudochão,lançando-anomeiodaclareira.Eleselevantoucomdificuldadee,ardendodedoreraiva,encarouGarradeTigre,que lhedevolveuoolharumaexpressãodeódioindisfarçávelepuloudevoltaparaocentrodabatalha.UmgolpenanucatirouoequilíbriodeCoraçãodeFogo,quecambaleou
e, ao virar-se, deparou com Pelo de Pedra. O guerreiro do Clã do Rio sepreparava para acertar-lhe outro golpe. Coração de Fogo esquivou-se eempurrouo inimigodiretoparaNevasca,querodopioueagarrouPelodePedrapelocangote.CoraçãodeFogoquiscorrerparaajudaroguerreirodepelo branco,mas foi impedido por garras afiadas que o arrastaram peloquadril. Contorceu-se para ver quem o segurava e percebeu, de relance,umapelagemacinzentada.EraArroiodePrata.A guerreira se ergueu nas patas traseiras, com o rosto contorcido de
raiva.Corriasangueemseusolhos,eCoraçãodeFogosedeucontadequeela não o reconhecera. Então ela puxou a pata para trás, preparando-separa atacá-lo, e o guerreiro viu suas garras longas faiscarem. QuandoCoração de Fogo estreitou os olhos para esperar o golpe, ouviu um gritofamiliar.–ArroiodePrata!Não!ListraCinzenta,pensouCoraçãodeFogo.A gata hesitou, sacudiu a cabeça e, comumarquejomudo, reconheceu
CoraçãodeFogo.Voltouàsquatropatas,osolhosarregaladosdesusto.CoraçãodeFogo reagiu instintivamente; o sangue fervilhavapor causa
da batalha. Sem pensar, pulou nas costas da gata do Clã do Rio,imobilizando-anochão.Elanãoreagiuquandoeleseafastouparadesferir-lheumaterríveldentadanoombro.Masaolevantaracabeça,oguerreirosentiuoolhardeListraCinzentatrespassando-o.Dooutroladodocampodebatalha,oamigooobservava,horrorizado.Aexpressãodedore incredulidadedeListraCinzentachamouCoração
de Fogo de volta à razão. Ele parou, retraiu as garras e soltou Arroio dePrata,queescapuliuporentreostojosàvoltadaclareira.Chocado,ainda,
viuoamigocorreratrásdela.CoraçãodeFogosentiuqueestavasendoobservado.Olhouemvoltae,
dooutroladodaclareira,RiscadeCarvãoofitava.Eleseretraiu.Oromancede Listra Cinzenta o forçara afinal a ser desleal com o Clã do Trovão:acabaradedeixarumainimigafugir!OqueRiscadeCarvãoteriavisto?SóentãoCoraçãodeFogoouviuopedidodesocorrodeVentoVeloz.OgatomalhadoconfrontavaEstreladaNoite,operversolíderdoClãdasSombras.O jovem guerreiro cortou amultidão de felinos, colocando-se ao lado deVentoVeloz.Semhesitar,puloueagarrouEstreladaNoiteportrás.Oguerreironegro
urrouderaivaquandoCoraçãodeFogoopuxouparatráse fincou-lheasgarras na pelagem. Tinham combatido lado a lado havia apenas algumasluas, quando, juntos, expulsaram Estrela Partida. Entretanto, naquelemomento,oguerreiroavermelhadocravouosdentesnoombrodeEstrelada Noite com a mesma ferocidade que usara naquela ocasião contra oantigolíderdoClãdasSombras.Oguerreironegrourravae se contorciaentreosdentesdoadversário.
Aquele gato não chegara a líder à toa, pensava Coração de Fogo, lutandoparanãodeixá-loescapar.EstreladaNoiteconseguiu,enfim,sesoltar,masVento Veloz já estava pronto para outro golpe. Deu um salto e os doisguerreiros rolarampela clareira congelada.CoraçãodeFogoobservou-oslutare,escolhendoomomentocerto,aterrissoucomtodaaforçanascostasdo líder do Clã das Sombras, agarrando-o com mais firmeza dessa vez,prontopara impedirque se soltasse.MasVentoVeloz tambémoprendiacomforça;ambosarranharamemorderamolíderdoClãdasSombrasatéele guinchar bem alto. Então o soltaram, pulando para trás, mas aindamantendoasgarrasdefora.EstreladaNoiteselevantoudeumpuloerodopiousilvando;Coraçãode
Fogo viu o ódio em seus olhos, mas o guerreiro negro sabia que estavaderrotado. O líder recuou, perscrutando a clareira onde seus guerreirossofriam tratamento igualporpartedoClãdoTrovão.Ordenoua retiradacom um grito. No mesmo instante, os guerreiros pararam de lutar e,seguindoolíder,saíramdoacampamentoportrásdostojos.OClãdoRioteriadeconfrontarsozinhooClãdoTrovãoeoClãdoVento.CoraçãodeFogo fezumapausapararecuperaro fôlego,piscandopara
expulsarosanguequelheescorriadosolhos.ComPelodeRatoaoseulado,Nevasca se engalfinhava com Pelo de Leopardo. Tempestade de Areialutava com um guerreiro do Clã do Rio que tinha quase o dobro de seu
tamanho,masapenasametadedesuavelocidade.CoraçãodeFogoviu-asecontorcerparaadireitaeparaaesquerda, rodandoàvoltadoguerreiro,atéesgotá-lo.PelagemdePoeiraenfrentavaumgatopretoacinzentadoqueCoraçãode
Fogo reconheceu serGarraNegra, o guerreirodoClãdoRioque ele viracaçando coelhos no planalto. Pelagem de Poeira lutava com obstinação,semse intimidar comaspatadas emordidas ferozesdoadversário.Cadavez que ficava acuado, o jovem guerreiro conseguia se safarmuito bem.Parecianãoprecisardeajuda,eCoraçãodeFogoimaginouquePelagemdePoeirapreferiaqueelenãointerviessenaquelaluta.Onde estava Estrela Torta? Coração de Fogo procurou na clareira pelo
líder doClã doRio.Não foi difícil encontrá-lo.Depois da fugadoClã dasSombras, a clareira estavamais vazia. Logo viu o gatomalhado de coresclarasemandíbula torta.Estavaagachadobemrenteao chão, facea facecom Garra de Tigre. Os dois se encaravam, as caudas se agitando,desafiadoras. O sangue de Coração de Fogo lhe martelava nas veias,enquantoesperavaparaverqualdelesfariaoprimeiromovimento.EstrelaTortaatacouprimeiro,masGarradeTigrepulouparaolado,escapando.Osmovimentosdorepresentanteerammaisprecisos:elerodopiouesejogousobreascostasdeEstrelaTorta.Comasgarrasafiadas,orepresentantedoClã do Trovão segurou o líder inimigo, imobilizando-o com as longasgarras. Coração de Fogo observava a cena sem respirar. Garra de Tigrearreganhou os dentes e avançou, cravando as presas com vontade nopescoçodeEstrelaTorta.Oguerreiroavermelhadoengasgou.GarradeTigreteriamatadoolíder
do Clã do Rio? O guincho de dor de Estrela Torta indicou-lhe que orepresentantenãoacertaraaespinhadoinimigo,masaquelegolpeacabavadepôr fimàbatalha.GarradeTigre soltouo adversário, que correu, aosgritos,paraaentradadoacampamento.AssimqueacaudadeEstrelaTortadesapareceu,seusguerreirosabandonaramalutaedispararamatrásdele.Numtique-taquedecoração,osilêncioabateu-sesobreoacampamento
do Clã do Vento. Ouviam-se apenas os uivos do vento sobre os tojos.CoraçãodeFogoolhouemvolta.OsguerreirosdoClãdoTrovãoestavamcansadosemachucados,masosdoClãdoVentopareciamaindaempiorescondições.Todossangravamealgunsjaziamimóveisnosologelado.CascadeÁrvore,ocurandeiro,nãoperdeutempo.Foidegatoemgatotratando-lhesasferidas.Mancando, o sangue pingando do rosto, Estrela Alta aproximou-se de
Garra de Tigre. Olhando o líder do Clã do Vento, Coração de Fogo selembroudosonhodealgumasluasatrás,emqueviraasilhuetadeEstrelaAlta contra um fogo brilhante, como um guerreiro enviado pelo Clã dasEstrelas para salvá-los. “O fogo vai salvar o clã”, fora a profecia de FolhaManchada. Mas ao olhar para os gatos do Clã do Vento, exaustos earrasados,CoraçãodeFogoseperguntouseosonhonãoohaviainduzidoaerro. Como poderiam aqueles felinos representar o fogo que o Clã dasEstrelasprometeraqueossalvaria?Comcerteza,foraoClãdoTrovãoquesalvaraoClãdoVento…maisumavez.EstrelaAltamurmuravaalgumacoisaparaGarradeTigre,masCoração
deFogonãoconseguiaescutar,emboraimaginasse,pelacabeçabaixa,queEstrelaAltaestavareconhecendoadívidaparacomoClãdoTrovão.Garrade Tigre, sentado e ereto, aceitou o cumprimento de cabeça erguida. Ojovem guerreiro sentiu uma onda de revolta pela arrogância dorepresentante. Jamaisesqueceriaqueelesemantiveraadistância,apenasobservando,enquantoPelodeLeopardoquaseofaziaempedaços.– Aqui – a voz suave de Pele de Salgueiro sacudiu os pensamentos de
Coração de Fogo, oferecendo-lhe um punhado de ervas medicinais. Oguerreiroronronouemagradecimentoquandoagatacomeçouaespremerosucodaservasnasmarcasdemordidadeseusombros.Osucoardia,masocheiroolevoudevoltaaoutrotempo,comFolhaManchada.Acurandeiralhe dera a mesma erva para tratar Presa Amarela, muitas luas antes. Àmedidaqueoodorseespalhava,CoraçãodeFogoselembroudosonhodavéspera. “Tome cuidado com o guerreiro… ” Folha Manchada o alertara.Tomarcuidadocomumguerreiro?De repente, a verdade lhe surgiu como um vento gelado.Não era com
Listra Cinzenta que devia ter cuidado, mas com Garra de Tigre! Comopuderasuspeitardoamigo,quandosabiatãobemdoqueorepresentanteera capaz? Naquele momento teve a certeza de que Pata Negra falara averdade, fosse qual fosse a opinião de Estrela Azul. Considerando odesempenhodorepresentantenaqueledia,CoraçãodeFogosedeucontadequeGarradeTigrepoderiaterfacilmenteassassinadoRaboVermelhoepartido,semremorso.–Vocêlutoubem,CoraçãodeFogo–disseVentoVeloz,interrompendo-
lhe os pensamentos. O gato malhado de marrom piscava calorosamenteparaoguerreiro.–VoumeassegurardequeEstrelaAzulfiquesabendo–prometeu.– É verdade – concordou Pele de Salgueiro. – Você é um grande
guerreiro.OClãdasEstrelasvaihonrarasuabravura.–Ogatoolhouparaeles, as orelhas comichando de prazer. Era um alívio sentir-se de novopartedoclã.De repente, o pelo de Coração de Fogo se eriçou. Risca de Carvão
atravessavaaclareira, indonadireçãodeGarradeTigre.Sentou-seatrásde Estrela Alta e esperou o líder do Clã do Vento ir embora. Depois,inclinando-se, cochichou alguma coisa para o representante. Os doisguerreiros,então,puseram-seaolharparaogatoavermelhado.Eleviu,pensouCoraçãodeFogo,tontodehorror.ElemeviudeixarArroio
dePratairembora.–Vocêestábem?–perguntouPeledeSalgueiro.Ogatopercebeuqueestavatremendo.–S-sim,desculpe.Estavaapenas
pensando.–GarradeTigre,sorrateiro,seaproximava,osolhosbrilhandocomrancorosasatisfação.–Bom,sevocêtemcertezadisso,vouverosoutros.–Claro,tudobem,obrigado.PeledeSalgueiropegouaservasesefoi,seguidaporVentoVeloz.GarradeTigreabaixouasorelhas,crispouoslábiosnumesgaresoltou
um rosnadopara Coração de Fogo: –Risca de Carvãomedisse que vocêdeixouumaguerreiradoClãdoRioescapar!CoraçãodeFogopercebeuquenãohaviaoquedizer.PormaisqueListra
Cinzenta tivesse dificultado as coisas para ele, por nada no mundo eledenunciaria o amigo para o representante. Teve vontade de gritar queGarradeTigreficaraapenasobservandoenquantoumguerreirodoClãdoRiotentavamatá-lo,masquemacreditaria?RiscadeCarvãocolocou-seaoladodo representante. Coraçãode Fogo só ansiava pela sabedoria e pelajustiçadeEstrelaAzul,masalíderestavamuitolonge,noacampamentodoClãdoTrovão.Respirou fundo, preparando-se para falar; o representante o encarava,
ameaçador. Ocorreu-lhe, então, que a deslealdade que cometera paraajudaroamigoemnadaimportavaparaGarradeTigre;eraoutroomotivoda perseguição. Ele ainda temia o que Coração de Fogo ouvira de PataNegraarespeitodamortedeRaboVermelho,haviatantasluas.Noentanto,ao contrário de Pata Negra, ele não se deixaria intimidar. Olhou para orepresentante e rosnou, desafiando-o: – Ela escapou, sim, como EstrelaTortaescapoudevocê.Qualéoproblema?Vocêqueriaqueeuamatasse?A cauda do veterano bateu com força no chão frio. – Risca de Carvão
dissequevocênemsequeraarranhou.CoraçãodeFogo levantouosombros.–Talvezeledevessecorreratrás
delaeperguntar-lheseissoéverdade!RiscadeCarvãopareciaprontopararetrucar,masGarradeTigrefalou
antes:–Nãoénecessário.Eletambémmedissequeseuamigocinzentofoiatrásdagata.Talvezelesaibaseelaficouarranhada.Pela primeira vez desde o início da batalha, Coração de Fogo sentiu o
ventogelado.ObrilhonosolhosdeGarradeTigreeraumaameaçavelada.SeráqueorepresentanteadivinharaoamordeListraCinzentaporArroiodePrata?Coração de Fogo ainda procurava a resposta quando, esgueirando-se
pelaentradadoacampamento,surgiuListraCinzenta.–Vejamquemestádevolta!–disseorepresentantecomdesdém.–Você
quer perguntar a ele como vai a tal gata?Não, espere, posso adivinhar aresposta.Diráquenão conseguiualcançá-la. – Semsedar ao trabalhodedisfarçarodesprezo,GarradeTigreseafastou,seguidodeRiscadeCarvão.Coração de Fogo olhou para o amigo, cujo rosto estampava cansaço e
preocupação.Atravessoua clareira e foi ao encontrodele, imaginando seainda estaria ressentido por causa de sua interferência. Estaria zangadoporeletertentadoatacarArroiodePrata,ouagradecidoportê-ladeixadopartir?ListraCinzentapermaneceuemsilêncio,acabeçabaixa.CoraçãodeFogo
seacercoue,gentil, tocou-lheocorpogeladocomonariz.ListraCinzentaronronou e, erguendo a cabeça, olhou para o amigo. Seus olhos estavamtristes,masjánãotraziamnenhumvestígiodaraivaqueCoraçãodeFogoviranelesnosúltimostempos.–Elaestábem?–sussurrouCoraçãodeFogo.–Está.Eobrigadopordeixá-lair.Oguerreiroavermelhadopiscouparaele:–Ficofelizporelanãoterse
ferido.Listra Cinzenta encarou o amigo por um momento, depois miou: –
CoraçãodeFogo,vocêestavacerto.Abatalhanão foi fácil. Senti comoseestivesselutandocontraoscompanheirosdeArroiodePrata,enãocontraguerreirosinimigos.–Abaixouosolhos,envergonhado.–Masaindaassimnãoconsigodesistirdela.Essas palavras preocuparam Coração de Fogo, mas nem por isso ele
deixoudesecompadecerdoamigo.–Esseassuntovocêvaiterderesolver
sozinho.Nãocabeamimjulgarsuasatitudes.–Ogatocinzaolhouparaele.–Qualquerquesejaasuadecisão,ListraCinzenta,sereisempreseuamigo–completouCoraçãodeFogo.ListraCinzentaofitoucomalívioegratidão.Depois,semnadadizer,os
dois guerreiros deitaram-se, lado a lado, na clareira que não conheciam.Pelaprimeiravezemmuitas luas, seaconchegaramemsinaldeamizade.Acimadesuascabeças,os tojospesadosporcausadaneveofereciamumabrigotemporáriocontraatempestadequerugianocéu.
CONTINUA