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www.lusosofia.net Da beleza do discurso ao discurso da acção as raízes gregas da oratória e da retórica António Amaral 2015

Da beleza do discurso ao discurso da acção - LUSOSOFIA · a oratória e a retórica em contexto isocrático. Neste último caso, há, com efeito, muito para aprender dos Gregos:

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Da beleza do discurso aodiscurso da acção

as raízes gregas da oratória e da retórica

António Amaral

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Covilhã, 2015

FICHA TÉCNICA

Título: Da beleza do discurso ao discurso da acção:as raízes gregas da oratória e da retóricaAutor: António AmaralColecção: Artigos LUSOSOFIA

Design da Capa: António Rodrigues ToméComposição & Paginação: Filomena S. MatosUniversidade da Beira InteriorCovilhã, 2015

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Da beleza do discurso ao discursoda acção:

as raízes gregas da oratória e da retórica

António Amaral

Índice

PRÓLOGO 4No princípio era o lógos: a morfogénese da oratória e daretórica 4A palavra ao poder em Isócrates: a oratória e a retórica na«educação do príncipe» 6O poder da palavra em Platão: a tensão erótica entre retóricae filosofia 11O discurso “da” acção em Aristóteles: a sublimação retóricada eticidade 15EPÍLOGO 19

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PRÓLOGO

<S> êti Cen leıpetai, to _hn peı�men Ímas (...)<P> Kaı dunai’ >an (...) peØ�i m� �kouontas;<G> OÎdamÀs (...)<P> <Ws toınun m� �kou�menwn, oÕtw dianoeØe1

No princípio era o lógos: a morfogénese daoratória e da retórica

A arte, na sua primordial e mais estruturada consciencialização, éfilha do génio grego. Todavia, convém, em abono da verdade, nãorepousar impavidamente neste truísmo. A visão artística dos Gre-gos deflagra inicialmente como vivenciado talento criativo, e nãotanto como resultado previamente planificado de uma idealizaçãoestética, como habitualmente somos induzidos a pensar. Nunca édemais insistir nesta primordial criatividade grega para explicar porque razão as suas mais elevadas produções artísticas não dependemapenas de uma desobstruída atenção dos sentidos, mas também, esobretudo, da conexão íntima entre os desígnios da linguagem e asemoções da alma. Quando nos referimos ao carácter plástico deuma epopeia ou de um poema, ou então ao recorte arquitetónicode um diálogo ou de uma peça dramatúrgica, não nos estamos a

1 SÓCRATES - «Ainda restará uma <saída> – a de vos convencer...»POLEMARCO – «E poderíeis vós convencer-nos, (...) se acaso não vos désse-mos ouvidos?»GLAÚCON – «Claro que não!» (...)POLEMARCO – «Então não vos ouviremos, mentalizai-vos disso» [PLAT.,Respublica, 327 c]: in Platonis Respublica, ed. Simon Slings, Oxford ClassicalTexts, Oxford: Clarendon Press, 2003.

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referir ao efeito uniformizador de um formalismo puro a que su-postamente toda a criação artística grega tivesse que estar vincu-lada, mas antes ao poder genesíaco da linguagem, no interior daqual a arte se encontra investida do singular destino de transformarformas vivas numa forma de vida.

A par da arte, a odisseia grega em demanda da forma exibe umasingular etapa no mais promissor e eloquente testemunho do espí-rito helénico: a filosofia. Apesar da disparidade, o foco de ambas(arte e filosofia) mantém-se no essencial o mesmo. Com efeito, àsemelhança da arte, compete igualmente à filosofia propiciar umtipo de percepção cuja finalidade tem em vista a ordem latente davida do mundo e do mundo da vida. Não é por mero acaso ou bel-prazer do destino que o povo grego se converte no primeiro povofilosófico por excelência. Tal só foi possível porque o lógos que seoculta e desvela na natureza é o mesmo que permite urdir na mesmatrama discursiva tanto a forma teórica de um pensamento, como aforma estética de uma criação. Graças ao lógos, a filosofia greganão contém apenas, por conseguinte, o elemento racional com oqual, no qual e mediante o qual pensamos; ela propicia também ohorizonte perceptivo no qual a presença de alguém ou de algo, amanifestação de um facto, a ocorrência de um acontecimento, dis-ponibilizam o seu “eidos”, i.e. o seu “recorte”, o seu “contornofigurativo”, numa palavra a sua ”forma” ou "idéia".2

Embora cônscios do risco – mesmo que calculado – de incor-rer em generalizações apressadas e simplificações forçadas, dificil-mente podemos escapar ao pressuposto de que a noção de “forma”oferece uma chave de leitura suficientemente eficaz para interpre-tar a biodiversidade da cultura grega em todos os nichos do seuecossistema espiritual, permanecendo, por isso, tão válida para en-tender o enlace místico entre a música e a matemática em ambientepitagórico, como para entender a cumplicidade performativa entre

2 Cf. JAEGER Werner, Paideia. A formação do homem grego, trad. ArturParreira, São Paulo: Martins Fontes, 1995, 11-13.

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a oratória e a retórica em contexto isocrático. Neste último caso,há, com efeito, muito para aprender dos Gregos: a demanda pelaforma que permite ao espírito humano apreender os contornos tantode uma teoria filosófica como de um estilo artístico, é a mesma queconfere à oratória – e mais tarde à sua suprema transfiguração epis-témica, a retórica – um certo design cujo poder apelativo exercesobre nós, ainda hoje, um eficaz e irresistível fascínio.

Vejamos em que sentido.

A palavra ao poder em Isócrates: a oratória e aretórica na «educação do príncipe»

Mantendo-se deliberadamente distanciada dos labirínticos mean-dros do poder político, parece quase inacreditável que uma escolade formação política do tipo da de Isócrates, tenha exercido pro-funda influência num mundo tão impregnado pelo ideal democrá-tico como era o dos Gregos do séc. IV aC. Todavia, bastará a lei-tura atenta de um punhado de alguns dos seus vinte e um discursose nove cartas – designadamente A Nícocles e Evágoras – para vis-lumbrar o desafio de um problema que, nesse contexto formativo,tinha forçosamente que assumir uma importância decisiva: o dapossibilidade de a formação cultural influir no exercício do podermediante a educação dos governantes.

Ora, não é no endeusamento de uma teoria abstracta, mas an-tes no valor exortativo do exemplo histórico e da experiência vividaque se alicerçam os pressupostos do pensamento político de Isócra-tes e que ele, em certo sentido, procura fundamentar. Apenas nessequadro se percebe o empenho de Isócrates em defender e exaltara cultura retórica. A razão é simples: não é à perfeição moral davirtude, mas sim ao aperfeiçoamento discursivo do poder políticoque a cultura, insuflada pela reflexão filosófica, deve aspirar.

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A aspiração humana à posse de virtude constitui indeclináveldesafio de qualquer horizonte humano de realização, pelo que se-ria injusto e até absurdo criticar os esforços pelos quais cada um seempenha individualmente por atingir esse fim moral. O ênfase nacultura retórica não pode, portanto, desacreditar a demanda moralda existência humana, da mesma forma que a riqueza, o poder ou ainteligência não perdem méritos pelo mau uso que frequentementedeles se faz. Mas a inversa também é verdadeira: de nada servereputar de imoral o elogio da eloquência, se esta for encarada – e éassim que Isócrates a considera – como força criadora de cultura,força essa cujo fluxo se manifesta no dom do lógos como caracte-rística diferenciadora da vida humana. É o uso da palavra que tornaum ser humano digno da sua humanidade.

A capacidade logóica de nos convencermos uns aos outros; dechegarmos a um mútuo entendimento acerca de tudo o que quere-mos; de estabelecermos acordos, pactos, contratos e alianças, nointeresse recíproco das partes livremente vinculadas; de nos fide-lizarmos aos juramentos publicamente professados, constitui, nofundo, o horizonte vital que nos permite viver em comum, coo-perando e interagindo socialmente de forma politicamente organi-zada. É através do lógos que nos juntamos para debater e deliberarem vista de decisões que interessam a todos, e não apenas a unsquantos. É agraças a ele que estabelecemos leis e normas sobreo justo e o injusto, sem a ordenação das quais seríamos incapazesde conviver uns com os outros. A capacidade discursiva é o signoeminente da razão humana.

Se estivermos dispostos a compreender a notável influência quea pedagogia política de Isócrates exerceu sobre os seus discípulos,não nos resta outro remédio senão termos presente o pathos da so-lene proclamação da força da palavra viva e criadora contra o pa-lavreado da força arbitrária e destrutiva. Esta concepção eleva aretórica muito acima da fasquia em que foi fixada pelos seus pre-cursores. Até Isócrates, a retórica estava condenada a desempenhar

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um papel por certo útil, mas nem por isso muito elevado nem muitomenos edificante, se não pudesse oferecer mais do que aquilo quealguns dos seus detractores estavam dispostos a conceder-lhe, a sa-ber uma rotina formal destinada a domesticar a turba ignorante e,nesse sentido, perfeitamente talhada para a prática da demagogia.O esforço de Isócrates centrar-se-á, portanto, em libertá-la do cati-veiro dessa sinuosa e obtusa opinião dominante. Para ele, a verda-deira essência da retórica não reside propriamente na técnica, maisou menos habilidosa, de conduzir as massas, mas sim naquele noacto tão espontâneo e tão simples que todos os homens realizamdiariamente, quando p. ex. meditam perante si próprios acerca dobem e do mal que os afecta. Embora o comum dos mortais nãopossa, no seu linguajar quotidiano, distinguir artificialmente formae conteúdo, pode, todavia, nesse acto de discursividade interior,exercer uma capacidade de julgar que consiste em ponderar a deci-são acertada para cada situação, seja ela banal ou crítica.3

É nesta epifania do lógos que Isócrates alicerça todo um pro-grama legislativo e educativo, procurando reorientar a retórica numsentido que o obscurecimento das inúmeras conotações opinativasnão permitia desocultar com inteira fiabilidade: a retórica deveriaincorporar, a partir de agora, o desígnio filosófico de uma reflexãoacerca daquilo que ela deve ser, a saber o melhor dom que pode re-ceber um governante, um rei, enfim um príncipe, se não nos causarurticária este anacronismo de travo maquiavelino. Para Isócrates,esse dom consiste em assumir a conduta discursiva por meio daqual um monarca pode governar melhor uma comunidade política.Firmemente ancorada numa ideia de justiça – cuja urgente realiza-ção ecoa na cultura grega desde Sólon – a paidéia isocrática vê-seassim munida de uma pauta normativa capaz de avaliar a obra po-lítica de um governante, ao mesmo tempo que lega à posteridade atopografia fundamental de um modelo à luz do qual que se deveráinspirar a educação de um príncipe. Provavelmente, antes mesmo

3 Cf. Ibid., op. cit., 1117 ss.

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de Platão ter tempo para explanar na República o impacto eidéticodeste postulado, Isócrates procura já realizar in vivo o desígnio quesubjaz a esse impulso programático.4

Mas em que consiste ao certo uma obra [ergon] política? Isó-crates considera decisiva a clarificação desta noção, visto que só oalvo final de uma acção discursivamente exposta pode, em últimaanálise, iluminar, justificar e avaliar os contributos de cada mo-mento, parte ou etapa na condução do processo até ao seu desfe-cho.5 Escusado será sublinhar a importância desta avaliação ergo-nómica do poder, materializada num conjunto de preceitos concre-tos que funcionam como princípios activadores de qualquer poderpolítico. Para esse efeito, Isócrates filtra e depura, uma por uma,um conjunto de características que fazem parte da imagem tradici-onal de um monarca, transformando-as em sentenças epigramáti-cas. Tais instruções comportam a qualidade formal de um procedi-mento discursivo cuja racionalidade não decorre de uma deduçãológica rigidamente observada, mas segue predominantemente umfluxo indutivo de preceitos cuja interligação se intui de maneira na-tural. Com efeito, apesar do tom exortativo em que os conselhospolíticos se parecem segmentar e dispersar, subsiste um nexo in-terno e unificador: graças a ele, tudo se articula e converge paraformar a imagem de um governante retoricamente educado paraser coerente não com as virtudes que foi moralmente adquirindoe somando, mas em função das decisões éticas que foi discursiva-mente modelando em vista dos valores professados, das promessasfeitas e dos objectivos programados. Nada melhor do que dar vozao texto isocrático:

Considera como tua guarda pessoal mais segura a vir-tude dos teus amigos, a benevolência dos cidadãos e atua própria consciência. Preocupa-te com a economia

4 Cf. Ibid., op. cit., 1122-3.5 Cf. ISOCR., Ad Nicoclem, 9: in ISOCRATES. Orationes et Epistulae, ed.

Basil Mandilaras, Muenchen: K. G. Saur Verlag, 2004.

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dos teus súbditos e convence-te de que os que gastam odinheiro sem proveito esbanjam a tua fortuna, ao passoque os trabalhadores aumentam a tua riqueza. Faz comque a tua palavra seja mais certa do que as juras dosoutros. Cura os cidadãos do seu contínuo receio e nãoos tornes seres dominados pelo temor (...), pois se osviras contra ti, também tu, mais tarde ao mais cedo, tevirarás contra eles. (...) Não tomes por modelo quempossui o maior poder, mas sim quem melhor sabe usaro poder que tem. (...) Não escolhas para amigos ho-mens cujo convívio mais te agrade, mas antes os quete ajudam a governar melhor. (...) Escolhe os que irãotratar dos assuntos públicos de que não te podes ocu-par pessoalmente, com a consciência de que serás tu oresponsável por todos os seus actos. (...) Deixa que seexprimam livremente os que têm o coração [a mente]no seu lugar e assim terás homens que te ajudarão aver claro onde tiveres dúvidas. 6

Isócrates consagra, no fundo, uma nova forma literária, cujafama haveria muito mais tarde de ganhar lastro no nicho literáriomedieval de um género de obras de aconselhamento político ha-bitualmente intituladas espelho do rei [sepeculum regis]. Posta aoserviço das concepções educativas da escola isocrática, a nova arteretórica – ou melhor dito, a nova forma de uso da arte retórica –traduz uma ideia partilhada pelos grandes educadores do tempo,por mais que estes pudessem divergir entre si quanto à essência dacultura: todos são unânimes em admitir que a verdadeira culturadeve habilitar o homem a discernir e a saber tomar decisões acerta-das. Por isso a polemização teórica devia ser preterida em favor deum tipo de educação que assumisse a retórica como pedra de toqueda formação do espírito. Seria pedir demais? Talvez não, partindo

6 Ibid., op. cit., 9; 21-28.

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do princípio que, como até os próprios filósofos acabam por re-conhecer, após interminável e extenuante discussão teórica, o queem última análise verdadeiramente importa atesta-se no discursoda acção.

O poder da palavra em Platão: a tensão eróticaentre retórica e filosofia

Descontando algum atrevimento, poder-se-ia sustentar que o es-crutínio psicológico das paixões e o exame crítico dos conceitosconstituem os ingredientes indispensáveis de toda a retórica. Comefeito, torna-se fácil perceber que, sem o desenvolvimento destasduas dimensões, não há literatura ou oratória que possam geraraquela centelha de convicção destinada a produzir no leitor ou noouvinte o correlativo efeito de atracção. De forma alguma, nem osrecursos técnicos da linguagem, nem tão-pouco um manual de retó-rica, podem suprir essa prévia formação psicológica e conceptual.Ora, foi para equacionar até às últimas consequências o problemada retórica e para deixar perfeitamente testadas e assentes as múl-tiplas conjecturas de Platão sobre essa matéria, que a encenaçãofilosófica do diálogo Fedro exibe o seu gesto mais desconcertantee promissor.7

Duas partes da obra dividem entre si o exame da questão funda-mental: o que torna atraente um discurso? A que se deve a força ar-rebatadora que o habita? Para tentar esclarecer o problema, caberáà primeira parte do diálogo proceder ao exame do significado deeros, a fim de propiciar o acesso à compreensão do que torna “eró-tico”, isto é atraente e desejável, um discurso. Para o efeito, Platãorecorre à leitura e à crítica de um discurso de Lísias, tomando estecomo paradigma do brilhante orador que procura aperfeiçoar a sua

7 Cf. JAEGER Werner, Paideia..., op. cit., 1256.

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eloquência dedicando-se ao estudo da retórica. Ao lançar mão deEros, divindade que tutela o ímpeto da paixão e do desejo amoroso,Platão procura provar simetricamente dois pontos de vista conexos:primeiro, como a partir de uma visão distorcida sobre o verdadeirosignificado de eros (como era a de Lísias) é possível tratar o temamuito melhor do que ele o trata; segundo, em que termos deveo problema de fundo ser colocado, partindo do conhecimento doque ele implica na verdade e não daquilo que ele parece insinuar àprimeira vista. A segunda parte do diálogo evidencia um desenvol-vimento temático mais denso e ramificado, começando por exporalguns equívocos dos modelos de retórica vigentes no tempo, paraseguidamente apresentar Sócrates e a sua dialéctica como o “eros”de uma retórica verdadeira, acabando por deixar em suspenso oproblema de saber se alguma vez será possível elevar a retórica aum nível dialéctico tão depurado. O diálogo não termina sem queantes se teça um rasgado elogio ao mestre de retórica Isócrates.8

Escusado será dizer que os inesperados elogios tributados a Isó-crates ao cair do pano do diálogo revelam mais do que uma oportu-nista deferência platónica ao experimentado e reputadíssimo mes-tre ateniense de retórica: por maiores que sejam as reservas quenos levanta o seu tom laudatório, tais elogios revelam até que pontoPlatão já não se debate apenas com a estabilização teórica do sig-nificado da retórica em si mesma, mas, para além disso, com apossibilidade de ela poder ser ensinada.

Uma coisa é certa, a forma como no Fedro o pivot do diálogo(Sócrates, sempre ele...) se desembaraça dos sucessivos impassespara gerar novas aporias e, através destas, novas possibilidades deintensificação do problema, dá-nos boas razões para acreditar que aprópria posição de Platão face à retórica não foi linear e constante,mas sofreu sucessivos ajustamentos. É verdade que Platão no diá-

8 Cf. PLAT., Phaedrus, 279 A: in Platonis Opera, I-V vols., ed. John BUR-NET, Scriptorum Classicorum Bibliotheca Oxoniensis, Oxford: OUP, reimpr.1961-65.

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logo Górgias concebe a retórica como ilusória consagração de umsaber cujo travejamento não se apoia na verdade mas sim na meraaparência. Todavia, o mesmo Platão que na urdidura narrativa damaior parte dos seus diálogos – para não dizer todos – aplica deforma tão genial a oratória do seu tempo, não pode dar-se ao luxode rebaixar a retórica a uma disciplina despojada de qualquer in-teresse, sem com isso colocar em causa os dotes oratórios que elemesmo empenha no esforço de modelar o melhor modo de pensara forma à mais bela forma de o dizer.

Nada há para estranhar, portanto, que ao polarizar a discussãosobre a retórica em torno do problema do eros em concreto, Pla-tão procure domiciliar no mesmo horizonte discursivo a expressãoda forma e o conteúdo de verdade.9 É certo que alguns dos ilus-tres representantes da tradição escolar retórica já tinham advertidopara o difícil manejo desse tema, porém, verdade seja dita, nuncaconseguiram dominá-lo na sua essência; Platão, ao contrário, pegano tema, diverte-se um pouco com ele, explora-lhe o ambivalentejogo de luzes e sombras e, sem darmos por isso, arrasta-nos atra-vés de uma subtil captura retórica para as profundezas da buscapela essência do eros, oferecendo-nos, no fim, um desenlace onde,paradoxalmente, põe a nu as limitações da própria construção re-tórica. Partindo da distinção entre discursar belamente e discorrerbem, importa, de uma vez por todas, lidar com o nó górdio do diá-logo do Fedro: até que ponto saber exprimir bem e belamente umpensamento implica necessariamente o conhecimento da verdade?

É justamente nesta encruzilhada que se bifurcam os caminhosda educação retórica e da formação filosófica. Usando Sócratescomo autorizado mensageiro desse momento paroxístico, Platãonega à retórica a pretensão de se erigir como uma arte no plenosentido da palavra; quando muito, considera-a uma simples rotinalinguística, desprovida de qualquer ligação material à realidade.10

9 Cf. Ibid., op. cit., 259 E.10 Cf. Ibid., op. cit., 261 A ss.

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Para se arvorar em arte plenamente consciente do seu estatuto, nãoresta à retórica outra saída senão a de ter de se apoiar no conheci-mento da verdade. Ora, a retórica costuma ser indolormente defi-nida como a arte de convencer os homens em contexto deliberativoou judiciário, num cenário agonístico em que a palavra controlao medir de forças entre a afirmação e a objecção, a argumenta-ção e a réplica, a assertividade e a refutação, a tese e a antítese.Tudo bem... O problema é que este modelo binário de posiçãoe contraposição não esgota todas as possibilidades discursivas davida real. Com efeito, segundo Platão, ele manifesta-se tambémno fluxo quotidiano de todos os pensamentos e discursos humanos,fundamentando-se, em última análise – e esta reviravolta é surpre-endente – na capacidade de comparar tudo com tudo.11

Ora, é basicamente ao nível do emprego dos recursos da com-paração, da analogia e da metáfora que, em definitivo, a retórica fazvaler as suas mais elevadas prerrogativas, tornando eficaz o efeitode sedução e de persuasão comunicacional. É o conhecimento dodíspar e do semelhante que serve de pedra de toque a qualquer de-finição lógica de um objecto. E mesmo supondo que o objetivosupremo de um orador fosse o de enganar por via da retórica todoum auditório, induzindo-o em erro mediante o manejo da aparênciae da ambiguidade, mesmo assim, o agente da farsa teria necessari-amente de pressupor um conhecimento exacto dos termos empre-gues na contrafacção discursiva, pois só assim poderia mobilizara atenção dos visados quer para o grau de consistência interna dodiscurso, quer para os diferentes graus de similitude entre as coi-sas nele visadas. Quer dizer, sem a irredutível presença de uma“forma” objectiva, é impossível ver claro aquilo acerca do qual sepode induzir concordância ou divergência, ainda que com o propó-sito de enganar.12

Posto isto, tudo o que um retórico ensina aos seus alunos não

11 Cf. Ibid., op. cit., 261 A-D.12 Cf. Ibid., op. cit., 262 A ss.

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pode esgotar-se no ensino de uma técnica oratória pura e simples.Na melhor das hipóteses, esta constituiria, por assim dizer, a partepropedêutica da retórica; e, quanto à retórica, convirá sempre lem-brar que ela não representa um fim em si mesma e por si mesma,visto que todos os recursos mobilizados para a arte de bem falar,embora indiscutivelmente valiosos para uma desejável e eficaz or-denação do discurso, não chegam para ensinar a alguém a arte deconvencer.

Sejamos claros: para sobreviver, a retórica tem de aliar-se àfilosofia, na medida em que tal aliança é o único meio que lhe per-mite articular forma expressiva e conteúdo veritativo. Mas seráque, após esse enlace nupcial, ainda lhe podemos chamar retórica?

O discurso “da” acção em Aristóteles: asublimação retórica da eticidade

Gostaria, para encerrar este périplo reflexivo, de oferecer uma abor-dagem não convencional da retórica aristotélica. Nesse sentido, emvez de nos confinarmos ao tratado da Retórica a fim de, à luz da-quele estafado trinómio logos – pathos – ethos, extrair as implica-ções éticas da arte de persuadir, tentaremos percorrer um caminhoinverso, ou seja sondar o efeito retórico de um agir que se pretendeético, socorrendo-nos para o efeito do tratado Ética a Nicómaco. Ahipótese que levanto é a seguinte: o que tornará convincente, fiávele credível – por outras palavras, gerador de convicção, merecedorde confiança e digno de crédito – o discurso vivido de uma deci-são humana? Numa palavra: poder-se-á, nesse caso, postular umaretórica da acção?

Acompanhando a análise aristotélica sobre os limites da argu-mentação dialéctica [seja ela examinativa (de tipo assertivo ou re-futativo), argumentativa (de tipo esclarecedor ou erístico) ou per-

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suasiva (de tipo judiciário, deliberativo ou epidíctico)], não é difícilperceber em que sentido a arte da persuasão se inscreve num limiarperformativo onde a racionalidade teórica se entrelaça discursiva-mente com a racionalidade prática. Ora, é precisamente nesse in-tervalo crítico que se torna possível deliberar, ponderar e decidir,não acerca do que já se sabe, mas em vista do que é “imprevisível”e “incerto” e, portanto, ontologicamente “indeterminado” [hos epito poly].13 Por outro lado, e precisamente porque se trata de umlimiar crítico, não se encontra a salvo da possibilidade de nele seinfiltrar a perturbante ambiguidade entre intuito persuasivo e in-tento manipulatório.

Segundo Aristóteles, cabe ao indivíduo prudente [phronimos]14

oferecer a mediação paradigmática de um texto vivo perfeitamentelegível e apto a persuadir, não necessariamente por aquilo que diz,mas pela “forma” de “se dizer” quando lida decisionariamente coma contingência.15 Nesse sentido, o seu agir não é para ser mimeti-camente decalcado por causa daquilo que ele é, mas poieticamenteseguido na forma como ele produz e segue uma boa deliberação,após ter ponderado e elegido a melhor opção de entre todas as al-ternativas em jogo. Quer isto dizer que o acto decisionário de mol-dar uma boa deliberação assume no indivíduo prudente o “eidos”,i.e. a forma, de um paradigma indutor de eticidade.

Com a filosofia prática de Aristóteles, assiste-se, por conse-guinte, a uma espécie de ethical turn que consiste, em contextogrego, na superação de um modelo de “mimetismo moral” fixado

13 Vide a propósito ZINGANO Marco, «Deliberação e indeterminação emAristóteles», in Estudos de Ética Antiga, São Paulo: Discurso Editorial, 2007,241-276; WINTER Michael, «Aristotle hôs epi to polu relations and a demons-trative science of ethics», in Phronesis 42 (1997) 2, 163-189.

14 Cf. ARIST., Ethica Nicomachea, II, 6, 1106b 36 – 1107a 8: in Aristóte-les. Ética a Nicómaco, ed. Dimas de Almeida, Lisboa: Edições UniversitáriasLusófonas, 2012.

15 Vide a propósito GLIDDEN David, «Moral vision, orthos logos, and therole of the phronimos», in Apeiron 28 (1995) 4, 103-128.

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Da beleza do discurso ao discurso da acção 17

no prestígio divinizado de um herói, para um modelo de “atestaçãoética” cujo valor testemunhal se abre ao design de uma acção, sus-citando admiração mobilizadora e empatia relacional através de umdesejo não de decidir ser tal e qual alguém é, mas de decidir fazerdo modo como ele faz a decisão que toma. Pelo seu recorte “manu-factural”, o modo como o indivíduo prudente delibera em contextodecisionário converte-se num explicitador fenomenológico e numaferidor fiduciário da acção. Nesse sentido, aquilo que, em bomrigor, torna credível uma decisão prudencial, reside precisamenteno limiar de confluência entre os domínios da ética e da retórica.16

Para se entender bem o alcance deste vínculo, importa sondar atéque ponto uma decisão se torna eticamente credível pelo contornoretórico não do discurso que sobre ela se faz, mas da discursividadedo próprio agir.

Ora, tomando o pulso à filosofia prática de Aristóteles, são trêsas práticas da razão que, pela mediação retórica da acção, conferemcredibilidade ética à decisão prudencial.

A primeira prática da razão reporta-se ao procedimento tipoló-gico. Pensar tipologicamente, captando “em esboço” [typo] o “de-lineamento” e os “contornos” situacionais de cada caso concreto esingular, confere uma vantagem acrescida à decisão ética.17

A segunda prática da razão reporta-se ao procedimento diapo-rético. A meio caminho entre a filosofia e a retórica, diaporéticaé a forma como a credibilidade de um acto decisonário decorre deum exame crítico [exetasis] mediante o qual todas operações argu-mentativas são testadas, avaliadas e validadas no decurso de umadiscussão.18

16 Vide a propósito SELF Lois, «Rhetoric and phronesis. The Aristotelianideal», in Philosophy and Rhetoric (University Park) 12 (1979) 130-145.

17 Cf. ARIST., Eth. Nic., op. cit., I, 1, 1094a.18 Cf. Id., Metaphysica, X, 2, 1053b 11: in Aristóteles. Metafísica, ed. Va-

lentin García Yebra, Madrid: Gredos, 1982.

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18 António Amaral

A terceira prática da razão reporta-se ao procedimento pruden-cial.19 Este encerra três requisitos 1. deliberar bem [eu bouleu-esthai], no sentido de calcular [logizesthai] com acerto os meiosadequados para alcançar um fim rectamente visado; 2. vinculara universalidade [katholou] da norma ou do princípio regulador àparticularidade [kath’ekaston] das situações concretas, individuaise singulares e, finalmente, 3. permitir que experiência [empeiria]determine o momento oportuno [kairos] para realizar um perspicaze hábil discernimento [krisis] entre o que melhor convém à vidahumana.

Tendo em vista a hipótese teórica que nos alentou até aqui, sóagora estamos em condições de sublinhar os contornos éticos – enão apenas técnicos – da discursividade retórica. Em primeiro lu-gar, porque, a coberto de um mau uso da retórica, podem de factocamuflar-se não apenas motivações psicológicas, como acontececom a sua utilização em estado de ignorância, malevolência oumá-fé, como também apropriações sociológicas, como acontececom a sua utilização para a obtenção dissimulada de uma vanta-gem, proveito ou benefício. Em segundo lugar, porque a retóricapresta-se a um emprego sofístico que outra coisa não procura se-não, a coberto daquela, disfarçar-se de saber com a clara intençãode enganar, através daquilo que Aristóteles designa de “persuasãoaparente”.20 Ora, segundo Aristóteles, a retórica deve apresentar-se não apenas movida pela exigência ética da “honestidade argu-mentativa” (dando razão do que afirma e sujeitando-se à avaliaçãoe ao exame crítico), mas também investida de um carácter “téc-nico” que lhe permite visar o “discurso verdadeiro”, mesmo queessa destinação veritativa se encontre à mercê dos que, no seu pró-

19 Cf. Id., Eth. Nic., op. cit., VI, 7, 1141b 23 ss.20 Cf. Id., Rhet., I, 2, 1356a 35-36; b 1-5: in Aristotle. Art of Rhetoric, ed.

John Freese, Loeb Classical Library, Cambridge-London: Harvard UniversityPress, 2006.

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prio interesse erístico, exploram a credulidade fazendo-a passar porcredibilidade.

Em suma, através do discurso em acção, a retórica revela à éticaaté que ponto uma decisão narra o texto de uma acção discursivacuja racionalidade possui suficiente destreza – não diremos mani-puladora, mas antes manufactural – para lidar com a radical con-tingência da praxis humana. Não há que estranhar, portanto, que,para Aristóteles, a decisão – tal como a modela o homem prudente– exiba uma discursividade cuja textura retórica persuade infinita-mente mais pelo que dá a ver, a pensar e a fazer, do que, propria-mente, pelo que dissimuladamente faz dizer ou diz fazer.

EPÍLOGO

logos eÒdwlon tÀn êrgwn21

21 A palavra é a imagem das obras/acções [SOLON, apud DL I, 2, 58]: inDiogenes Laertius. Lives of Eminent Philosophers, 2 vols., ed. Tiziano Dorandi,Cambridge: CUP, 2013.

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