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Da Civilidade à Civilização - Revista de História

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Da civilidade à civilização

Ideal moderno de educação nasceu com a burguesia e teve que questionar acivilização para incorporar o “outro”

Valdei Lopes de Araujo

1/9/2015

O óleo sobre tela de Rembrandt retrata umjovem e seu tutor. (Imagem: THE J. PAULGETTY MUSEUM, LOS ANGELES – ESTADOSUNIDOS)

A sociedade de corte do Antigo Regime enfrentou oproblema da pluralidade de valores, visível desde oHumanismo, definindo a verdade como algocodificado nos vários níveis de procedimentosretóricos que guiavam o comportamento individual:ser e parecer não deveriam ser dimensõescontraditórias.

No que se refere às práticas de sociabilidade, apalavra central era civilidade, que evocava suaorigem em civitas, a cidade, em oposição ao rural.Indicava o estado da pessoa que adoçou seuscostumes, poliu suas maneiras. Fazia parte de umaintrincada hierarquia de competências: civilidade,polidez e delicadeza, em ordem crescente desofisticação. O modelo do homem educado era o frequentador dasgrandes Cortes absolutistas, que adaptou para suas

próprias necessidades os modelos de comportamentopresentes em livros como O cortesão, de Castiglione(1528). Conhecer os códigos e os rituais dessesespaços cada vez mais complexos era o ideal decivilidade e educação. A Corte exibia‐se como ummodelo inatingível para uma sociedade organizadaem hierarquias naturalizadas. O cortês é urbano enão rural, pertence aos espaços capitais, em oposição aos provincianos, é polido e não rústico, éaristocrático e simbolicamente ligado a um universo de virtude militar – deslocado para os rituaisde civilidade.

A intensificação do contado com povos espalhados pelo globo, aberta pelas Grandes Navegações,apresentou também novos desafios para o ideal de civilidade entendido como um "renascimento"de um ideal greco‐romano. O Inca Garcilaso de la Vega, filho de mãe americana e pai espanhol,utilizou‐se de ferramentas mentais mestiças para apresentar, em seu livro Comentarios Realesde los Incas (1609), a cidade de Cuzco como uma "outra Roma". Uma civilização tão brilhantequanto a romano‐europeia, mas que se desenvolveu de modo independente. 

O mundo burguês, desenvolvendo‐se em paralelo e junto àsestruturas do Antigo Regime, impôs a necessidade de construirtécnicas de sondagem da verdade enquanto algo interior esubjetivo. Exigia‐se um novo e mais amplo conceito de educação.Apenas no século XVIII todo esse universo semântico em torno dasnoções de civilidade e civilizar convergiu para um conceitoabrangente: o substantivo “civilização” não se restringia mais a

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Frontispício da primeira edição de Emílio, de Jean‐Jacques Rousseau, publicado em 1762. (Imagem:Reprodução)

nele os elementos sentimentais e não racionais que ajudariam a dar individualidade aos povos.Esse movimento ficaria registrado na língua alemã pela oposição entre as palavras Kultur eCivilisation, esta última indicando os aspectos materiais, externos e abstratos do progresso.Surgem conceitos como o de Bildung, que pode ser traduzido como formação, educação, cultura.Ele pressupõe que ser educado é não apenas assumir um conjunto externo e material deconhecimentos ou comportamentos, mas também traduzir a riqueza e a diversidade do real noprocesso de autorrealização individual e coletivo. Colocando em prática a visão burguesa doindivíduo como singularidade, o ideal romântico da Bildung significava o esforço infinito de

incorporar o “outro” na própria formação de si. Em filosofias da história como a de Hegel, esseprocesso de autoformação será transposto para os povos que, juntos, comporiam o granderomance da história universal. 

Uma das armadilhas desse conceito histórico‐evolutivo de educação foi sua tendência a seacoplar com teorias de progresso esuperioridade. Embora todos os povospudessem desenvolver sua própria civilização,eles faziam isso em ritmos distintos, cabendo

àqueles mais avançados uma missãopedagógica. Em seu romance Coração dasTrevas, publicado em 1902, Joseph Conradtraduziu muito dos efeitos que esse conceitode civilização produziu na consciênciaeuropeia no auge de sua expansãoimperialista. Em um projeto comercialcivilizador na África, o protagonista, umhíbrido de místico e aventureiro, proferesuas célebres palavras: “o horror, o horror”.

Pelas teorias evolucionistas, esse outro não civilizado estava fadado a desaparecer. Mas, longede ser apenas guardado no grande museu universal, ele ressurgia incessantemente no coração,ou no inconsciente, do homem civilizado. Desde então, o “outro” nunca deixou de ser o grandedesafio da educação.

Valdei Lopes de Araújo é professor da Universidade Federal de Ouro Preto e autor de Aexperiência do Tempo: conceitos e narrativas na formação nacional (Hucitec, 2008). Saiba Mais

 

CALDAS, Pedro. “O homem culto do século XIX: questionamentos em torno do conceito de Bildungna obra de J. Droysen”. Revista Terceira Margem, ano VIII, n. 10, p. 135‐151, 2004.MALERBA, Jurandir (org.). Lições de História: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio deJaneiro: FGV, 2010.STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. São Paulo: Cia das Letras, 2001.