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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4 Cadernos PDE VOLUME I

DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 - … · ocorrida entre 1974 e 1975, ter sido tardia, assim como a das outras ... envolvem a história do continente africano é relevante e necessário

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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE

2009

Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4Cadernos PDE

VOLU

ME I

CULTURA, POLÍTICA E IDENTIDADES NOS PAÍSES LUSÓFONOS:

Angola, um estudo de caso

Autora: Marli Francisco1

Orientadora: Geni Rosa Duarte2

Resumo

O artigo tem como objetivo refletir sobre os processos de independência que envolveram os lusófonos Brasil e Angola, tendo Angola como estudo de caso. Diferenciado na descolonização africana, devido aos seus movimentos de libertação que lutaram entre si e contra os portugueses, temos por objetivo problematizar as questões históricas que envolveram os contextos político, econômico e social relacionados ao processo de independência dessas nações. O trabalho possibilitou o uso da técnica da história oral interligada à pesquisa bibliográfica, para desconstruir a chamada história eurocêntrica. Para isso, além de desenvolver uma pesquisa bibliográfica crítica sobre o tema, lançou-se mão da análise de depoimentos de duas moradoras de Assis Chateaubriand (Paraná, Brasil) que vivenciaram o processo de independência da guerra civil em Angola. Para a realização do Projeto de Implementação, optou-se por trabalhar com os alunos do primeiro ano do Ensino Médio, curso Formação de Docentes, do Colégio Estadual Chateaubriandense. Os trabalhos foram pautados em oficinas, finalizados com seminário envolvendo os alunos do projeto e uma das entrevistadas. O fechamento ficou por conta da elaboração de painéis históricos, com exposição do material confeccionado e elaborado durante os encontros no transcurso do projeto de implementação.

Palavras-chave: Lusofonia; cultura; política.

1 Introdução

O presente projeto de pesquisa, intitulado “Cultura, Política e Identidades nos Países Lusófonos: Angola, um estudo de caso”, justifica-se devido à Lei Federal

1 Professora de História de rede pública de ensino do Paraná. SEED – Programa PDE 2009/2010.2 Profa. Drª Geni Rosa Duarte, docente do curso de história da UNIOESTE, campus de Marechal Cândido Rondon-PR.

nº10.639, de 9/1/2003, que inclui, no currículo oficial da rede de ensino nacional a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira, valorizando a história e a influência do povo negro nos contextos social, cultural, político e econômico brasileiro. Essa Lei enfatiza que a história do Brasil, enquanto construção de uma nação, deve incluir todos os povos que constituem a nação, assim, ignorar a história do povo afro-descendente seria estudar, de forma fragmentada, a história brasileira. Usar a história oral como ponto de partida para o conhecimento do contexto da guerra civil da independência de Angola foi uma opção objetivando pensar numa história com sujeitos, partindo das experiências vivenciadas no cotidiano.

Sendo assim, propusemos análise e reflexão sobre as produções historiográficas oficiais registradas a respeito da independência do Brasil. Em contrapartida, buscamos a história oral , para estudar o processo de independência de Angola, recuperando a memória de pessoas comuns que vivenciaram a experiência da imposição do domínio político luso-português e das rivalidades locais na busca pelo poder político, atrelado aos interesses econômicos.

Segundo Cunha, Angola é um caso diferenciado no processo de descolonização africana:

No processo de descolonização da África, Angola possuiu duas particularidades bem interessantes, que constituiriam, por si só, um bom motivo para estudar este país. A primeira é o fato de sua independência, ocorrida entre 1974 e 1975, ter sido tardia, assim como a das outras colônias portuguesas. A segunda é o fato de ela ter tido, dentro do seu processo de independência, não apenas um movimento de libertação, mas três movimentos de caráter nacional, o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), a FNLA (Frente Nacional para a Libertação de Angola) e a UNITA (União Nacional pela Independência Total de Angola), que além lutarem contra os portugueses lutavam entre si. Angola e seus três movimentos de libertação provocam grande interesse, a quem se propõem a estudar e analisar o processo de descolonização da África. Sua proximidade com o Brasil aumenta o interesse sobre este país africano, pois ambos falam a mesma língua e o governo brasileiro teve (e ainda possui) grande proximidade política e econômica com Angola, mesmo no período conturbado da Guerra Civil no pós-independência.3

3 CUNHA, Mateus Souza da. O processo de independência de Angola: projetos conflitantes. 2005. Disponível em: <http://www.fapa.com.br/monographia>. Acesso em: 20 jan. 2010.

Debruçar-se sobre a historiografia que cerca o fim da colonização luso-

europeia sobre Angola é conhecer, de certa forma, um passado comum, permitindo,

assim, um redimensionamento da própria história. A mistura de experiências que a

história oral proporciona por meio da memória narrativa, contribui para representar a

realidade não como algo igual para todos, mas como um mosaico ou colcha de

retalhos, em que os pedaços são diferentes, mas quando reunidos são coesos.

Como afirma Cunha:

Angola e seus três movimentos de libertação provocam grande interesse, a quem se propõem a estudar e analisar o processo de descolonização da África. Sua proximidade com o Brasil aumenta o interesse sobre este país africano, pois ambos falam a mesma língua e o governo brasileiro teve (e ainda possui) grande proximidade política e econômica com Angola, mesmo no período conturbado da Guerra Civil no pós-independência. Por isso, se faz necessário um estudo sobre este país africano que identifique e analise a origem de cada movimento de libertação, os caminhos político ideológicos seguidos pelos três e como eles relacionavam-se com o mundo. 4

No que se refere à historiografia da independência do Brasil, buscamos textos

críticos que contribuam para um aprofundamento no entendimento das produções

que cercam a independência brasileira, isolando a função original da maioria dos

textos que serviram apenas como inventários ou registros de atos públicos.

Emília Viotti da Costa assinala que:

A emancipação política realizada pelas categorias dominantes, interessadas em assegurar a preservação da ordem estabelecida, e cujo único objetivo era combater o sistema colonial no que ele representava de restrição à liberdade de comércio e de autonomia administrativa, não ultrapassaria os limites definidos por aqueles grupos. A ordem econômica tradicional seria preservada, a escravidão mantida. A nação independente continuaria na dependência de uma estrutura colonial, passando pelo domínio português à tutela britânica. A fachada liberal, construída pela elite europeizada ocultava a miséria, a escravidão em que vivia a maioria dos habitantes do país. Conquistar a emancipação definitiva e real da nação, ampliar o significado dos princípios constitucionais foi tarefa relegada aos pósteros. (grifo do autor) 5

4 Idem, ibidem. 5 COSTA, Viotti da. apud MOCELLIN, Renato. A história crítica da nação brasileira. São Paulo:

Acreditamos que esta pesquisa, aliada à narrativa oral sobre a

independência dos povos lusófonos, tendo Angola como estudo de caso, implica

conhecer não apenas o fim da colonização europeia sobre o povo angolano, mas

seu percurso no processo de independência, o qual é envolvido por uma rica

diversidade cultural. Assim, será possível rever a historiografia do continente

africano, que, por décadas, foi envolvida por mitos e lendas.

Em relação à historiografia afro-brasileira, quando aparece a África, o

discurso se volta para as questões de discriminação racial e dos preconceitos

domésticos brasileiros, persistindo um grande desconhecimento dos fatos histórico-

geográficos e das mudanças que fizeram parte da consolidação de instituições e de

governos com o fim do domínio colonial. Os meios de comunicação insistem em

apresentar uma África indolente e ditatorial. Desconstruir esse histórico por meio de

reflexões que apresentem as verdadeiras mudanças culturais, políticas e sociais que

envolvem a história do continente africano é relevante e necessário para se

conhecer a África contemporânea.

Por outro lado, refletir sobre o processo de independência do lusófono Brasil

é buscar conhecer uma historiografia sem heróis, sem romantismo, tentando

entender o caráter ambíguo e contraditório do movimento de independência e a

dinâmica de sua ideologia. Conhecer a singularidade de cada processo histórico,

bem como, as semelhanças e diferenças do contexto cultural e político por meio da

pesquisa bibliográfica, isso aliado à narrativa oral, é permitir, assim, um

redimensionamento da história brasileira.

2 Afinal, o que é lusofonia?

Entrelaçado por vários aspectos, dentre eles a lusofonia, este estudo é um

bom motivo para conhecermos e apresentarmos à população afro-brasileira uma

história vivenciada pelo sujeito.

Editora do Brasil, 1987, p. 99 100.

Banhado pelo oceano Atlântico, o Brasil é um país que integra a América do

Sul, apresenta uma extensão territorial de 8.514.876 Km² e é o quinto maior país do

planeta. Por esses aspectos, é considerado um país com dimensão continental.

Com relação à República de Angola, o país se localiza a sudoeste do

continente africano. Banhado pelo oceano Atlântico, possui uma população de 15

milhões de habitantes até 2004, dividido em 18 províncias, estas distribuídas por

uma extensão territorial de 1.246.700 km². Tem o português como língua oficial e

mais 42 dialetos, dentre os quais estão: umbundu, guimbundu, quicongo,

ovimbundo, bacongo.

Não são apenas as águas do mesmo oceano que aproximam Brasil e Angola.

O passado de ambos se entrecruza. No período escravagista, cerca de 68% dos

africanos trazidos para trabalharem como escravos vieram de Angola. Nesse

processo de emigração forçada, ajudaram a construir o Brasil contemporâneo.

Atualmente são os brasileiros que se transportam a Angola para desenvolver algum

tipo de trabalho humanitário, colaborando na construção do país, que foi arrasado

por uma guerra civil de mais de trinta anos

Quando se discute África e Brasil, alguns dos parâmetros históricos são

homogêneos, como, por exemplo, a lusofonia. No Brasil fala-se o português há mais

de 500 anos. Em Portugal, são mais de 10 milhões de falantes. E, pelo mundo, a

língua portuguesa é a sexta mais falada. São mais de 200 milhões de pessoas

falando português.

Segundo Toledo:

Lusofonia é a designação da comunidade internacional de todos os falantes da língua portuguesa, quer seja esta a sua língua materna, como na Europa e na América do Sul (no Brasil), quer seja uma herança da época colonial, como no caso das antigas colônias portuguesas na África (Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, Moçambique) e na Ásia (Timor Leste, Goa e Macau).6

6 TOLEDO, Lucas Mônaco. O que é “cultura lusófona” ? ( s. d.). Disponível em: <http://www.usp.br/ccint/aulp/nt-Lusofona1.htm>. Acesso em: 17 fev. 2010.

Usa-se o termo “luso” com o significado de português, porque, segundo esse

autor, pela tradição os portugueses consideram o Luso romano, filho do deus Baco,

o pai mitológico da nação.

É de supor que, passado algum tempo, se verifique um crescimento

significativo na área "lusoafricana", tal como se verifica com as relações

“lusobrasileiras”. Esse processo histórico tem como consequência, na atualidade,

uma identidade cultural partilhada por oito países, unidos por um passado em

comum, qual seja, o processo de colonização, tendo Portugal como nação

colonizadora e a língua que, enriquecida na sua diversidade local, se reconhece

como una. Esses países – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique,

Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste -, com os respectivos núcleos de

emigrantes, fazem do idioma português uma das línguas mais faladas no mundo,

constituindo uma comunidade de cerca de duzentos milhões de pessoas.

Martinho da Vila, referindo-se ao português falado em Angola, país que ele

conheceu, assim se expressa:

O Português é a língua oficial de Angola. Apesar das diferenças gramaticais em relação ao Brasil – raramente usam verbos no gerúndio e aortografia é a de Portugal -, o sotaque é mais parecido com o brasileiro do que com o português lusitano. Por isso, a língua não é o problema para o brasileiro em Angola. Muito menos os angolanos, com os quais são muitas as afinidades que temos. A não ser quando estão falando em Kimbundo, língua nativa ainda muito preservada, falada não só no interior como em Luanda. 7

Para Costa, a lusofonia está interligada às identidades culturais de países

que, de certo modo, têm um passado em comum:

[…] Etimologicamente Lusofonia significa fala dos lusos, fala dos portugueses. Mas em Lusofonia cabem todos quantos habitualmente falam,

7 VILA, Martinho da. Os Lusófonos. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2006.

escrevem, pensam e em português comunicam com os demais, qualquer que seja o lugar ou o país em que se encontrem. Lusofonia, como se refere no Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia de Ciências de Lisboa publicado em 2001, é também a “qualidade de ser português. O que é próprio da língua e da cultura portuguesa. Comunidade formada pelos povos que têm o português como língua materna ou oficial. Difusão da língua portuguesa no mundo [...] 8

Historicamente o processo de independência de Angola, bem como o do

Brasil, foi constituído por um mosaico de identidades envolvidas por diferentes

conceitos e sentimentos. Historicizar todo o processo que resultou no fim do domínio

luso colonial em Angola e no Brasil implica destacar a luta dos negros em prol do

reconhecimento e da valorização da sua identidade no que diz respeito a um

passado comum, associado à memória política, cultural, individual e coletiva.

3 História oral, uma história com sujeitos, uma história a partir das

experiências vivenciadas

Neste momento no qual educadores e especialistas se debruçam sobre a

história afro-brasileira preocupados com a implementação da Lei Federal nº

10.639/2003, conhecer e refletir sobre a historiografia da independência de Angola

por meio da história oral é uma forma de repensar os currículos e as práticas

escolares, principalmente no que diz respeito à memória. Grande parte concorda

que tanto a cultura afro-brasileira como a africana merecem um destaque mais

significativo em relação à abordagem sobre seu contexto histórico. A incorporação

da história oral nos currículos escolares como ferramenta teórico-metodológica na

formação intelectual dos estudantes é uma forma de interação com a história do seu

8 COSTA, Alcindo Augusto, “Elos Clube: da lusofonia”. 2009. Disponível em: <http/www.mundolusiada.com.br/COLUNAS/ml_artigo_576.htm>. Acesso em: 17 fev. 2010.

próprio tempo. Outro ponto importante a ser trabalhado na historiografia oral é a sua

relação com a interdisciplinaridade. O diálogo com outras ciências como a sociologia

e a antropologia, contribui para proporcionar pistas na interpretação dos fatos

relatados.

Conhecer as questões relativas à cultura, à política e às identidades nos

países lusófonos africanos, tendo Angola como estudo de caso, representa um

desafio considerável, já que o eurocentrismo domina a historiografia tradicional.

Outra questão a ser enfrentada recai sobre o uso da história oral, já que a sua

utilização em pesquisas e publicações de caráter histórico tem sido acompanhada

de polêmicas e de hesitações, em se tratando principalmente da história afro-

brasileira e africana.

Aproveitar esse renascer no início do século XXI valorizando a historiografia

não documentada por meio da narrativa oral é preencher lacunas históricas

existentes, em que a memória do indivíduo sujeito da história deixa de ser apenas

um sistema de armazenagem, um banco de imagens do passado e se volta para um

sujeito ativo da história e participante de seu processo. É preciso desmitificar a

concepção de história enquanto registro de acontecimentos extraordinários ou

notáveis, em que há preservação apenas das memórias dos vencedores.

Segundo Paul Thompson, “Na era pós-colonial, a história da África, que antes

era a dos poderes imperiais, mudou bruscamente seu foco para as nações africanas

amplamente não-documentadas”.9 Essa maneira de pensar a história foi alvo de

intensos debates na virada do século XX para XXI entre historiadores e sociólogos.

Iniciativas de estudiosos profissionais tentaram retirar a história recente das mãos

dos historiadores amadores, porém a desconfiança sobre o tempo recente,

produzida por fontes orais, permaneceu.

9 THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p.91.

Conforme afirma Ferreira

A historiografia da Antiguidade clássica, como é sabido, recorreu aos testemunhos diretos na construção de seus relatos. Esse tipo de fonte foi desqualificado na segunda metade do século XIX, mas foi restaurado no século XX por historiadores que defendiam a validade do estudo do tempo presente. No entanto, a incorporação à disciplina histórica do estudo da história recente e do uso de fontes orais produzidas através da metodologia da história oral não é ponto pacífico: muitas vezes é vista com suspeição e avaliada de forma negativa”. 10

Segundo essa autora, a fundação na França da revista Annales, em 1929, e

École Pratique des Hautes Études, em 1948 daria impulso a um profundo

movimento de transformação no campo da história. Debates e reflexões foram

tomando a nova geração de historiadores, que passaram a questionar uma história

elitista, factual e evolutiva. A nova geração de historiadores, defensores de uma

história relatada por testemunhos vivos, continuava na luta para impor o estudo de

uma história singular, vivenciada por sujeitos ativos e participativos, na qual seus

depoimentos não fossem vistos como um mero relato jornalístico, mas como registro

de uma história com emoções e vivências, uma história flexível, coletiva, sem

sobrepor o eu, produzida pelos sujeitos da história que durante tempo ficaram a

mercê da história oficial.

De acordo ainda com Ferreira, a coleta de depoimentos por meio da

utilização de um gravador ocorreu na década de 1940, com o jornalista Allan Nevins,

por meio de um programa de entrevistas voltado para a recuperação de informações

dos grupos dominantes dos Estados Unidos. Esse primeiro ciclo da expansão da

história oral voltou-se para as elites norte-americanas.

Apesar da resistência, a ideia da história oral como história dos excluídos

10 FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e história oral. 2002. Disponível em: <http://revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi05/topoi5a13.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2010

expandiu-se para outros países e ganhou defensores na Inglaterra. Em 1978, com a

publicação da obra de Paul Thompson, sob o título The voice of the past, a história

oral passou a ser vista como forma de devolver a história do povo. Essa

revalorização das experiências individuais firmou-se a partir da década de 1980,

ocorrendo significativas transformações em relação à valorização das experiências

vivenciadas e das situações singulares. De acordo com Thompson:

A história oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo. Estimula professores e alunos a se tornarem companheiros de trabalho. Traz a história para dentro da comunidade e extrai a história de dentro da comunidade. 11

Conhecer e estudar a voz dos indivíduos isolados e obscuros, sem exceção,

é igualmente importante e necessário para se conhecer novas versões históricas.

Dar voz a múltiplos e diferentes narradores é se ter a possibilidade de uma história

mais democrática, partindo das próprias vivências dos que participaram de um

determinado período, mediante suas referências e também seu imaginário. A história

oral possibilita conhecer não só a diferença, como também a igualdade, podendo ser

um instrumento de mudança na construção de uma sociedade mais justa e de uma

memória mais democrática. Essa nova linha de pesquisa possibilitou que as

entrevistas orais fossem vistas como memórias que espalham determinadas

representações, fontes a mais para a pesquisa.

Segundo Paul Thompson, “A entrevista pode revelar a verdade que existe por

trás do registro oficial. Ou então a divergência poderá representar dois relatos

perfeitamente válidos a partir de dois pontos de vista diferentes, os quais, em

11 THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

conjunto, proporcionam pistas essenciais para a interpretação verdadeira”.12.

Sendo assim, a história oral se firma como instrumento de construção de

identidades de grupos e de transformação social que, nas sociedades

contemporâneas globalizadas, oportunizou novos agrupamentos, fazendo surgir

novas identidades, fragmentando o indivíduo moderno, visto até então como sujeito

unificado e estável.

Como afirmam Graebin e Penna “aceitar este desafio é tornar-se um

historiador no sentido amplo, extraindo os materiais de fontes adequadas para

estudar toda a variação de escalas e problemas na História contemporânea”.13

Por fim, a opção de utilização de fontes orais consiste na possibilidade de

considerar a existência de múltiplas representações, ainda que as mesmas tenham

uma enorme carga de subjetividade. Conhecer a história daqueles que não estão

contidos nos documentos oficiais representa a oportunidade de conhecer as

representações sobre o vivido. É necessário fazer análise do contexto histórico que

cerca cada narrativa oral, bem como, do grupo social com o qual estamos

trabalhando, suas manifestações culturais, políticas e econômicas. Graebin e Penna

destacam a “necessidade de discutir a complexidade das fontes orais”.

Levando em consideração toda trajetória histórica percorrida pela narrativa

oral, concluímos que ensinar história não se limita apenas a transmitir

conhecimentos já eternizados pela historiografia oficial, e sim representa a

possibilidade da produção e construção de novos conhecimentos.

Para Portelli “Cada pessoa é uma amálgama de grande número de histórias

em potencial, de possibilidades imaginadas e não escolhidas, de perigos iminentes,

12 Idem, ibidem, p. 307 13 GRAEBIN, Cleusa Maria Gomes e PENNA, Rejane Silva. Contar a vida, pensar a história: experiências na utilização das fontes orais no ensino da história. História & Ensino. UEL, Londrina, vol.1. abril, 1995.

contornados e pouco evitados” 14 . Sendo assim, cada entrevista é única, podendo

ser diferente de todas as outras, um constante reconstruir, um processo de fusão

biológica e social de grupos, em que as recordações podem ser semelhantes,

contraditórias ou sobrepostas, e as vozes impressões digitais, transportando, por

meio delas, as lembranças, na intenção da veracidade, tendo a ética como suporte

das ações e o respeito intelectual pelo material como nosso direcionamento.

Partindo desses pressupostos, a construção da pesquisa, bem como, as

experiências foram sistematizadas via oficinas desenvolvidas com os alunos. Torna-

se importante destacar que o Projeto de Implementação “Cultura, Política e

Identidades nos Países Lusófonos: Angola, um estudo de caso” teve como primeira

ação, a apresentação à direção, à equipe pedagógica, aos professores e

funcionários do Colégio Estadual Chateaubriandense, local onde ocorreu o

processo de desenvolvimento da atividade. No segundo momento, a apresentação

foi direcionada à equipe de ensino do Núcleo Regional de Educação.

A participação dos alunos no Projeto de Implementação “Cultura, Política e

Identidades nos Países Lusófonos: Angola, um estudo de caso” ocorreu por meio de

convite e, diante da aceitação da turma na realização do projeto, iniciamos os

estudos com a apresentação da Unidade Temática Investigativa, demonstrando,

passo a passo, a dinâmica dos trabalhos e sua finalização, dando oportunidades de

indagações. Finalizadas as etapas de apresentação, os trabalhos foram

direcionados e distribuídos aos alunos, que se comprometeram na realização das

ações.

A próxima etapa dos trabalhos foi a distribuição dos temas a serem

pesquisados . Divididos em grupos,cada qual tornou-se responsável por um tema,

14 PORTELII, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na História oral. Projeto de História. PUC, São Paulo, nº 15, abril, 1997.

dando início à pesquisa bibliográfica da historiografia que cerca o processo de

independência do Brasil e Angola. A cada encontro, as pesquisas eram afuniladas

com a revisão bibliográfica, a seleção de material, a análise, a troca de informações

e as dúvidas sanadas.

Das oficinas fizeram parte também vídeos 15 a respeito da história da

independência de Angola, retratando a guerra civil, e de Luanda, a capital, onde

conhecemos uma cidade moderna anterior à guerra e uma cidade arrasada no pós-

guerra, carregando na contemporaneidade as marcas da destruição de uma luta

entre irmãos. Para maior compreensão do tema, apresentamos vídeo16 a respeito

da língua portuguesa, uma particularidade entre os lusófonos.

O ponto forte das oficinas foi a realização do seminário com uma das

depoentes, Maria de Fátima de Jesus Pereira e Rosa Galdino (a filha, cujo nome é

assim mesmo, ou seja, são dois nomes para a mesma pessoa), quando os alunos

tiveram à oportunidade de conhecer uma Angola anterior à guerra, percorrendo a

cultura, a religiosidade, a economia, a política e a educação por meio da história

oral.Nesses três meses de trabalho, o fazer e o refazer fizeram parte dos

indivíduos e grupos, onde as identidades se misturaram e convergiram, servindo

para evidenciar a subjetividade presente entre todos, contribuindo para o

aprimoramento dos conceitos nas individualidades e na coletividade.

Terminada a etapa de apresentação do Projeto de Implementação,

conhecemos, por meio de documentos escritos, as aproximações históricas entre

Brasil e Angola.

Com relação às conquistas das terras africanas e americanas pelos

15 Vídeos: Angola um percurso de 25 anos, a história da independência: uma homenagem a um povo lutador. Disponível em: <http://www.youtube.com/watche?v=1eBKfjaWUYO>. Luanda antes de 1975-2. Disponível em: < http://www.youtub e.com/watch?v=CQ2PJAulDN4>.

16 TV Câmera. Vídeo: Língua portuguesa. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/tv/materias/FOCO/181757-LINGUA-PORTUGUESA.html>.

portugueses, ambas ocorreram no mesmo contexto histórico do século XV.

No que se refere à conquista e ao domínio de novas terras, Mocellin afirma:

A expansão começou pela África, com a tomada de Ceuta em 1415. Outros descobrimentos foram efetivados até que Bartolomeu Dias, viajando para o sul das costas da África, chegou a um cabo, na África Meridional, que chamou de Cabo da Boa Esperança.Outro navegador, Vasco da Gama, contornando a África, atravessou o Oceano Índico e chegou ás costas da Índia (1498). A partir de então, os portugueses começaram o saque da Índia, trazendo dali apreciadas mercadorias orientais.A segunda armada com destino à Índia, sob o comando de Pedro Álvares Cabral, desviando-se do seu caminho, “descobriu” o Brasil.[...] Como todos sabemos, no dia 22 de abril de 1500, uma esquadra portuguesa, sob o comando de Pedro Álvares Cabral, aportou em nossa costa. (grifo do autor) 17

As semelhanças com relação aos domínios e às conquistas portuguesas

quando se referem a Angola e ao Brasil aparecem no mesmo contexto temporal,

portanto, temos semelhanças quanto ao colonizador, à língua e com relação ao

período em que essas conquistas ocorreram.

[...] Angola foi povoada pelos portugueses no século XV e permaneceu como sua colônia até a independência em 1975. O primeiro europeu a alcançar Angola foi o explorador português Diogo Cão, que desembarcou na foz do Rio Congo em 1483. Em 1490, os portugueses enviaram uma pequena frota de navios com padres, trabalhadores e ferramentas para o Rei do Congo. Em breve, contudo, o comércio de escravos levou a deterioração das relações de Portugal com o Rei Afonso e os seus sucessores e revoltas internas levaram ao declínio do Reino do Congo. Entretanto, os portugueses expandiram os seus contatos para o sul ao longo da costa, fundando Luanda em 1576. O comércio de escravos continuou até o meio do século XIX, com Angola servindo como a maior fonte de mão de obra para as plantações brasileiras”. (grifo do autor) 18

Quanto à questão da independência, notam-se muitas diferenças, a

começar pelo tempo em que cada fato ocorreu. Com relação ao Brasil, esse

17 MOCELLIN, op. cit, p. 32.18 História de Angola. 2004. Disponível em: <http://www.terrasdeveracruz.freewebpages.org/angola.htm>. Acesso em: 25 jun. 2010.

processo aconteceu no século XIX, já com relação a independência de Angola

ocorre no século XX.

A partir do texto escrito por Mendes, vamos conhecer o transcurso do

processo de independência do Brasil:

A mistificação do grito

A maioria dos livros didáticos brasileiros de História, ao exaltarem o grito do Ipiranga como momento heróico da nossa emancipação, nada mais fazem do que repetir, anacrônica e empobrecidamente, a nossa pobre historiografia romântica do século XIX. Monarquista e aristocrática, ela precisa criar o mito do “momento da fundação” do império para justificar a exótica e única monarquia latino-americana, colocar seu fundador como herói e César, representante supostamente legítimo de uma “vontade popular” abstrata e resistente. Por isso mesmo, para ela, o ”momento heróico” do Grito ( não podia ser uma frase, e sim um brado), realizado necessariamente “ numa suave colina” do Ipiranga ( não podia ser simples e pacato vale, como qualquer topógrafo diria, pois era um gesto elevado), é mais importante que os fatos políticos, que antes do dia 7 já haviam definido a Independência.A imagem romântica elidiu as decisões afetivas que fizeram a emancipação, tomadas por José Bonifácio (um plebeu, não podia ser um César), e o caráter social e representativo de uma classe dessas decisões. Tudo se passa mitologicamente, em uma atmosfera caríssima aos românticos: D. Pedro, usando uma roupa simples de viagem, montado em uma prosaica mula, é transformado em um jovem e arrebato príncipe de casaca forrada de galões, montado em “soberbo cavalo (...)A visão da historiografia romântico-oficial, em última análise, tenta refazer o passado com os olhos dos próprios grupos dominantes do passado e mais com os olhos de 1822, momento em que os mais diversos setores da elite concorriam para se aproximar de D. Pedro (…). (grifo do autor) 19

Mota e Novais destacam, em seu texto, a ambiguidade no processo de

independência do Brasil:

Por outro lado, o movimento da independência foi nacional, e até nacionalista, por criar a nação. Tal criação ideológica surge como a forma que o senhoriato encontrou para manter a dominação social e assumir o

19 MENDES, Antônio, apud MOCELLIN, Renato. A história crítica da nação brasileira. São Paulo: Editora do Brasil, 1987, p. 100.

poder político.Desnecessário dizer que a idéia de nação que prevaleceu foi a dos proprietários.Finalmente, o processo de emancipação política do Brasil configurou uma revolução, uma vez que rompeu com a dominação colonial, alterando a estrutura do poder político com a exclusão da metrópole portuguesa. Revolução, entretanto, que livraria o Brasil do Antigo Sistema colonial Português para um novo Sistema Mundial de Dependências. 20

Sendo assim, a independência brasileira foi oficialmente decretada no dia 7

de setembro de 1822, tendo como figura principal Dom Pedro, futuro Imperador do

Brasil. Mesmo com as divergências internas no processo de aceitação da

independência da ex-colônia, o Imperador do Brasil teria que remover alguns

obstáculos para a emancipação. Como afirma Mocellin, “durante um bom tempo,

ainda houve o perigo da recolonização”.21

Apesar do perigo de recolonização, Dom Pedro conseguiu conter os ânimos e

a situação foi contornada. Segundo Mocellin, “A independência feita pelas elites,

só às elites beneficiaria”.22 O Brasil independente continuou sendo um reino, e seu

primeiro imperador foi Dom Pedro I, que era filho do rei de Portugal.

De acordo com Mocellin, o reconhecimento da independência pelas nações

estrangeiras veio primeiro dos Estados Unidos da América e, depois, a Europa teve

seu representante, Portugal.

O primeiro país a reconhecer a independência do Brasil foram os Estados Unidos da América, em 25 de junho de 1824 (...) Já o reconhecimento português ocorreu em agosto de 1825, mediante o pagamento de uma pesada indenização de 2 milhões de libras (para pagar o Brasil teve de fazer empréstimos na Inglaterra) e o reconhecimento do título de “Imperador do Brasil a D. João V. 23

20 MOTA, Guilherme Carlos; NOVAIS, Fernando. Texto para análise. In: MOCELLIN, Renato. A história crítica da nação brasileira: São Paulo: Editora do Brasil, 1987.21 MOCELLIN, op. cit. p. 99.22 Idem, ibidem, p. 103.23 Idem, ibidem, p. 103

No dia 1º de dezembro de 1822, aos 24 anos, Dom Pedro foi coroado

imperador do Brasil e recebeu o título de Dom Pedro I. Finalmente o processo de

emancipação política rompeu com a dominação colonial, livrando o Brasil do sistema

colonial. Assim se fechava o ciclo de dominação portuguesa na América, enquanto

isso, na África, os domínios territoriais portugueses se estenderiam até o século XX,

seguidos de reivindicações ora pacíficas, ora violentas por longas e penosas

décadas.

O processo de independência do continente africano não envolveu monarcas

e tampouco transcorreu de forma pacífica. Dominada pelos europeus durante

séculos, a África iniciou sua luta pela descolonização no pós Segunda Guerra

Mundial, que alcançou seu auge durante a década de 1960. A exemplo desse

mosaico de reivindicações que envolveu o continente, temos Angola, última fração

de terra africana a conseguir libertar-se de Portugal. Depois da independência, em

11 de novembro de 1975, a jovem nação não obteve paz, mergulhando em um

terrível conflito armado que teve duração de duas décadas.

Para conhecermos a historiografia que cerca o processo da guerra civil que

envolveu a independência de Angola, recorreremos à história oral. Durante a minha

primeira experiência sobre narrativa histórica oral, o ponto de partida foram as

entrevistas nas quais as figuras centrais do trabalho foram mãe e filha, ambas

moradoras de Angola, participaram, relatando de forma direta, as experiências

vivenciadas na guerra civil pela independência de Angola.

Maria de Fátima de Jesus Pereira e Rosa Galdino, nasceu em Angola e, com

dezessete anos de idade, precisou deixar seu país de origem em função do conflito

civil. Juntamente com seus pais e irmão veio residir em Assis Chateaubriand, no

Paraná, onde permanece, com sua mãe. Um pouco de Angola, segundo a

entrevistada Maria de Fátima de Jesus Pereira e Rosa Galdino.

Meu nome de batismo é Maria de Fátima de Jesus Pereira, hoje tenho mais dois nomes é Maria de Fátima de Jesus e Rosa Galdino,depois eu conto a história do porque. Sou natural de Angola, nasci lá, em 1958, na cidade de Huambo na verdade Huambo é a província, como se fosse aqui o Estado, a província de Huambo é a cidade de Nova Lisboa, hoje é tudo Huambo , eles tiraram todos os nomes que eram portugueses e ficaram apenas os nomes indígenas, que seja Uambo, então sou natural de lá é uma cidade de interior de Angola, considerada a segunda mais importante de Angola é muito bonita é de planalto, o clima é bem parecido com o daqui da nossa região do Paraná, porque é na mesma latitude então o mesmo clima então assim, é bem parecido com as mesmas estações, no hemisfério sul então é bem característico do nosso interior do Paraná. Bom, foi assim, eu morei lá até os 17 anos, sai de lá em 1975, tive uma infância maravilhosa lá em Angola.24

A mãe descreve, no início da entrevista, uma parte da sua infância.

Portuguesa nata, nascida em um pequeno povoado chamado Santinha, casa-se por

procuração em Portugal, permanecendo no país por dois anos e só então parte

para Angola, onde viveu por 19 anos. Segundo a entrevistada, Maria de Jesus

Pereira, sua chegada em Angola acontece no ano de 1956.

Depois que eu cresci eu fui aprender costura e depois eu trabalhava assim de costura nas casas e depois comecei a namorar com o meu marido ai ele gostava muito de mim, também eu gostava muito dele, minha mãe também gostava só que ele foi embora para Angola e eu fiquei em Portugal e ai ele mandou uma procuração pra eu casar, por procuração, mandou mais um documento pra poder viajar, e ai, eu casei com o cunhado meu, o irmão dele, e foi ele, a mulher dele e eu na Igreja e ele falava assim que eu era mulher dele, na brincadeira. Então, depois eu fiquei uns dois anos lá em Portugal ainda, depois eu fui lá com ele, fui com o irmão do meu marido, a mulher dele e uma filha deles, fui de navio, fui até Luanda , de Luanda pra lá esses cunhados meus foram embora pra outro lugar e eu fui até Lobito, meu marido estava esperando, ficamos lá um dia ainda, foi um amigo dele que alugou o hotel, dormimos lá uma noite no outro dia fomos para Nova Lisboa que é a cidade que a gente morou, lá em Angola, muito bonita lá, fomos de trem, muito bonito também, gostei tanto de andar de trem, depois a gente se casou 25

24 Entrevista de Maria de Fátima de Jesus e Rosa Galdino concedida à Profa. Marli Francisco em 24 fev. 2010.

25 Entrevista de Maria de Jesus Pereira concedida à Profa. Marli Francisco em 24 fev. 2010.

Além da língua, são muitas as afinidades entre Brasil e Angola. Com a entrevista, essas afinidades foram confirmadas. Como relata Maria de Jesus Pereira, quando seu marido escolheu o Brasil como sua futura moradia:

Meu marido tinha vindo para o Brasil muito antes, assim quando a guerra começou né. “Ah, Maria acho que a gente tem que sair daqui” e, ele veio aqui andar e gostou muito e disse: “Maria, o Brasil é igualzinho aqui, é igualzinho a Angola, os nossos filhos foram criados aqui, se a gente for para Portugal, eles não vão querer ficar lá”. Então vamos para o Brasil, aí viemos aqui.

Muitos foram os momentos felizes que mãe e filha passaram em Angola,

sentem saudades do país e falam dele com muito respeito, gratidão, misturado a

uma profunda tristeza por terem deixado seus amigos, sua casa, enfim, seu país.

Abandonar tudo representava a possibilidade de não mais voltar e a incerteza de

um dia poderem rever aquele lugar, que representava a extensão de suas vidas.

Ficar representava, porém, perigo, pois a guerra havia chegado à sua cidade, Nova

Lisboa.

A guerra começou antes de 1975, quando se deu a independência, começou antes, lá em 1965, já havia guerrilhas pela independência, pelo poder nas fronteiras, com injeção de armas e tudo mais, comércio de , interesse da armas, interesses da União Soviética dos Estados Unidos e, então assim, entregaram armas pro MPLA que era um dos movimentos e os Estados Unidos e a Europa entregaram armas para a FNLA e a UNITA, houve certa organização com Portugal , porque esses movimentos começaram a ficar mais fortes e começaram a acontecer invasões em cidades fronteiriças e tudo mais, porque daí eles entraram por países fronteiriços a Angola, começaram entrar e começaram haver rebeliões e coisas assim e mortes , aí Portugal fez um tratado com Angola, não me lembro o nome, mas enfim, de criar , de ceder a independência para Angola, mas criar um governo de transição, para preparar o país novo e aí esse governo de transição deveria ter um representante de Portugal, um representante do MPLA, um representante da FNLA e as tropas deveria ser divididas também de cada um dos movimentos e também soldados portugueses e este governo de transição governaria o país durante um ano, até 11 de novembro de 1975 onde se daria a independência, ta e assim ficou firmado o tratado, no entanto isso não aconteceu como houve o tratado os soldados vieram para dentro do país e os três movimentos foram reconhecidos pelo país.

Com o desenrolar do conflito, a cidade se transformou em um campo de guerra, o cotidiano das pessoas passou a ser resumido na sobrevivência e na possibilidade de sair do país, a cada dia era uma situação nova. O refúgio passou a ser o centro da cidade, o direito de ir e vir ficou restrito, bem como a comida. Era uma guerra entre irmãos:

Não ficaram satisfeitos com isso e, cada um achava que poderia governar todo o país, todos eles queriam todo o país e aí a guerra ficou forte e foi então que começo a ficar insustentável ficar lá, foi a partir desse tratado, depois disso , de todo esse movimento ficaram uns dois, três meses tranqüilo, mas depois começou a guerra e a guerra era a guerra, as pessoas que moravam ali eram vítimas, não porque eram brancas ou negras, mas porque moravam ali, então nós saímos de lá, não porque éramos branco, mas porque morávamos ali e tanto que vieram embora muitos negros, que vieram juntos, então assim nesse processo de independência, não foi uma guerra contra Portugal, foi pelo poder, guerra civil, tanto que essa guerra civil se estendeu por trinta anos, hoje estão em processo de paz, mas se estendeu por trinta anos, mas se fosse pela independência teria cessado depois da independência.

Percebe-se, claramente, que o conflito que assolou Angola durante duas

décadas estava relacionado à disputa do poder local. A independência propriamente

dita havia sido concretizada por Portugal em 11 de novembro de 1975 e, como

consequência dessa rivalidade interna pelo poder, a população passou a ser vítima

dos interesses políticos internos e externos, estando, de um lado os três movimentos

de caráter nacional, o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), a FNLA

(Frente Nacional para a Libertação de Angola) e a UNITA (União Nacional pela

Independência Total de Angola), que, além de lutarem contra os portugueses,

principalmente lutaram entre si; e, do outro lado, estavam as potências líderes de um

mundo bipolarizado pela chamada guerra fria, oferecendo apoio militar, na intenção

de expandir e impor sua forma de poder político e econômico.

Observe-se a fala da entrevistada Maria de Fátima de Jesus e Rosa

Galdino, com relação há essas rivalidades e imposições:

Nenhuma passagem de poder não houve, houve a guerra e que continua e continuou sendo financiado ai tinha por exemplo a União Soviética, que ainda era União Soviética na época e com Cuba né mercenários cubanos não falavam português não eram pessoas de lá, uns falavam francês, outros falavam espanhol , sabe, eram assim pessoas, soldados enviados por esses países que estavam guerreando ali, então assim a gente via aqueles quimbos ficavam sem ninguém […] se refugiaram onde puderam, alguns nas matas, outros em outras casas, outros vieram para a cidade e foi assim, porque alguém ficou sabendo que naquele dia ia ter ataque naquele lugar, então eles vieram nos avisar, aqueles nossos vizinhos nos avisaram, olha vocês não ficam aqui hoje porque o pessoal vai atacar esse bairro, ficaram sabendo né por alguns meios enfim, nós viemos embora e eles também,sabe aquela coisa que a gente vê nas favelas agora, com aqueles carros de policiais armados, assim, era o que se via só carros de polícias das forças armadas, verdes, aqueles jipes verdes e tal, era o que se via nas ruas, ai se um jipe desses se encontrasse com um jipe de outro movimento ali mesmo começava o tiroteio […] sabe as lojas não tinham mais, foi se escasseando, a comida, a gasolina, então ficar não dá pra viver entende, isso que nós trouxe e meu pai tinha vindo então para o Brasil dois anos antes e tínhamos parentes aqui, ele veio conhecer São Paulo e Ibirarema e tinha sobrinhos dele lá e gostou e deixou dois mil dólares, ele tinha trazido para a viagem e acabou não gastando e tal e deixou e, daí , comprou passagens pra nós virmos e as passagens estavam compradas deste então.

Ao refletir sobre o processo da guerra civil que devastou Angola, nota-se que

Angola não foi só um sonho de muitos portugueses que partiram em busca de novas

oportunidades. Muitos dos portugueses encontraram ali uma vida de luta árdua e

Angola era sinônimo de liberdade, de oportunidades, longe de uma Metrópole pobre

e dominada por um regime controlador. O que muitos não poderiam imaginar era ver

seus sonhos desfeitos por uma guerra pelo poder, deixando profundas cicatrizes no

seu território e em seu povo. Angola está hoje determinada a recuperar o tempo

perdido, apagar das lembranças os horrores da guerra, como afirma Martinho da

Vila:

São muitos os problemas que afligem o país e seus mais de 12 milhões de habitantes. E Angola sozinha não tem condições de resolvê-los no ritmo que se faz necessário. Quer e precisa da ajuda internacional. Para isto, seus governantes têm investido no árduo trabalho de relações bilaterais, buscando conscientizar as nações mais desenvolvidas a se engajarem nesse processo. É fato que muitos países já colaboraram com Angola, ao contrário de outros que sempre estiveram mais preocupados em insuflar os conflitos para venderem suas armas.26

26 VILA, Martinho da, op. cit.

As pendências são muitas. Angola está atravessando uma fase de intensas

transformações, seja na política com a volta da democracia, seja na economia com a

intensificação e a diversificação da produção. Os projetos para combater o

analfabetismo e melhorar a qualidade de ensino estão sendo colocados em prática,

acompanhados de campanhas na área da saúde. O país está se desenvolvendo e

intensificando seu turismo, para receber cada vez mais e dessa forma revelar a força

e a determinação de um povo que, durante anos, se viu mergulhado em um conflito

que deixou lares destruídos, noivas, viúvas, órfãos, refugiados e viu partir seus filhos

para terras além do mar.

Para resumir essa busca por novos horizontes, Martinho da Vila, destaca a

forma de tratamento e de vivência do angolano: “Gentis, meigos, solenes no trato, os

angolanos são cativantes. Nem os sofridos anos de guerra civil conseguiram tirar o

sorriso dos seus lábios, o brilho dos seus olhos e a docilidade de suas palavras.” 27

O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Angola. Os

laços entre Brasil e Angola vêm de longe. No passado foram eles que vieram formar

esta ex-colônia portuguesa sul-americana e hoje são muitos os brasileiros que lá

estão, falando a mesma língua, convivendo com um povo festeiro, de costumes

parecidos. Certamente a história de Angola é ainda hoje muito incompleta e a

história oral em muito contribuiu para um maior conhecimento e uma maior

aproximação da meiguice e da alegria de viver desse povo, conhecendo uma

história contada por indivíduos nos quais as recordações são únicas e diferentes.

4 Conclusão

A intenção neste projeto foi ensinar uma história vista de baixo e demonstrar

que ensinar história não se limita a transmitir conhecimentos, mas, principalmente,

possibilitar a produção e a construção de novos aprendizados. No trabalho realizado

27 VILA, Martinho da, op. cit, p. 233.

com os alunos do primeiro ano do Curso de Formação Docente, experimentamos a

utilização da história oral por meio da entrevista, além das fontes oficiais já

existentes. O ato da entrevista envolveu muito mais que seguir corretamente um

roteiro, pois o que percebemos durante as entrevistas, foi a voz de indivíduos

narrando livremente sobre suas vidas e suas experiências pessoais dentro de um

contexto histórico. O seminário com uma das depoentes proporcionou aos alunos a

oportunidade de ouvir e de interagir com uma história não contada e relatada por

autores desconhecidos, mas por uma pessoa comum, com seus medos, suas

angústias, suas lembranças, experimentando histórias contadas não por

vencedores, mas por indivíduos que viveram uma história sem propriamente

fazerem parte da galeria dos heróis.Romper com a história oficial e valorizar uma história de memórias, foi

desafiante. Acostumados a um texto pronto, a história oral serviu para quebrar o lado

metódico da história oficial , revelando diferentes versões históricas, mostrando que

o ensino da história pode ser vivo e dinâmico, levando o aluno à interação entre o

passado e o presente, entre a memória e a realidade atual.

O uso da história oral permite refletir, questionar, discutir e compartilhar.

Também permite a possibilidade de mostrar que cada indivíduo é único, como

também pode ser coletivo e atuante no processo de formação histórica. O ser

humano é, portanto, parte da história e, como tal, faz história, e, mesmo anônimo,

contribuí para transformar a sociedade em que atua.

Ensinar uma história não registrada é possibilitar olhar um passado por

vários ângulos, aprendendo a respeitar aquele que está narrando o fato, tendo a

possibilidade de refletir e buscar novas possibilidades de conhecer o contexto

histórico do tema proposto. A história oral transporta para uma memória individual e

coletiva, com situações concretas, vivenciadas por indivíduos e grupos, revelando as

diferentes identidades e como elas foram construídas .

Este projeto resultou, portanto, numa releitura da história oficial, pois,

quando das entrevistas, as experiências passaram a ser conhecidas, servindo como

importante instrumento de compreensão da sociedade. Por meio da história oral, os

que não são ouvidos tiveram a oportunidade de relatar a sua história de vida, de

forma aberta, simples, usando a sua vivência, sem ter a preocupação de exaltar os

heróis, e sim de experimentar a sua própria história, compartilhando sua vida,

usando a memória. A fonte oral é uma fonte possível, a partir da qual há muito que

se estudar e escrever, buscando nas experiências vividas novos conhecimentos

históricos.

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