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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 Produção Didático-Pedagógica Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7 Cadernos PDE VOLUME I I

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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE

2009

Produção Didático-Pedagógica

Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7Cadernos PDE

VOLU

ME I

I

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GOVERNO DO ESTADO DO PARANA SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO

CLAUDEMIRA VIEIRA GUSMÃO LOPES

ÁREA: CIÊNCIAS Público Alvo: Ensino Fundamental

O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO, OS VALORES

CIVILIZATÓRIOS INDÍGENAS E AFRICANOS: NO CONTEXTO

DA PRÁTICA ESCOLAR EM CIÊNCIAS

CURITIBA 2010

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APRESENTAÇÃO

Colega professor (a)

Os nossos alunos muitas vezes desconhecem que na origem possuem raízes

indígenas e africanas. Também ignoram que o conhecimento que hoje dispomos sobre

muitas das espécies vegetais que utilizamos, principalmente na elaboração de

remédios caseiros são oriundos do conhecimento tradicional indígena ou africano.

Junto com esses conhecimentos, estão uma gama de pressupostos e valores

civilizatórios, como a ancestralidade, a oralidade, a concepção de homem e de natureza

que também são negligenciados na contemporaneidade.

Sendo assim, queremos indagar: como é possível que os nossos alunos se

identifiquem positivamente com esses valores e sintam orgulho de sua origem? Como

promover a igualdade das relações étnico-raciais se os conteúdos veiculados nas

escolas, só enfatizam e valorizam os pressupostos ocidentais orientados pelos ideais

greco-romanos?

Nesse sentido, acreditamos que a etnobotânica, por se tratar de uma ciência

interdisciplinar que lança mão dos fundamentos da botânica ocidental e da antropologia

(ao refletir sobre valores civilizatórios), poderá contribuir para fechar essa lacuna nas

aulas de Ciências.

Com carinho,

Prof. Claudemira

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO……………………………………………………………………….... 04 EXPLORANDO O TERRENO…………………………………............................... 06 ATITUDES PEDAGÓGICAS …………………………………................................. 07 UNIDADE I – BREVE INTRODUÇÃO À ETNOBOTÂNICA ……………………... 11 UNIDADE II – A ÁFRICA …………………………….............................................. 15 UNIDADE III – NA ESCOLA DOS MESTRES DA PALAVRA ………………………….........................................................................

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UNIDADDE IV – OS POVOS AFRICANOS QUE VIERAM PARA O BRASIL ………………...........................................................................................

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UNIDADE V – O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO DE CUNHO MEDICINAL PRESENTE NA CASA DOS NOSSOS ALUNOS…………………………………………………..........................................

41

UNIDADE VI - O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO INDÍGENA E DA COMUNIDADE JÊJE-NAGÔ NA PRÁTICA ESCOLAR………………………………………………………….............................

24

REFERÊNCIAS……………………………………………........................................

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INTRODUÇÃO

A Lei 10.639/2003, modificada pela Lei n.º 11.645/08, artigo 26-A em seu

parágrafo primeiro, estabelece a obrigatoriedade dos conteúdos programáticos, das

escolas públicas e privadas, incluírem aspectos da história e da cultura que

caracterizam a formação da população brasileira, a partir dos grupos étnicos negros e

indígenas.

Para cumprir a lei, além da vontade política, os professores necessitam de

material didático. O objetivo deste caderno pedagógico é justamente este: servir de

apoio para o professor de Ciências trabalhar o subiten “reino vegetal”, pertencente ao

conteúdo estruturante biodiversidade, a partir dos valores civilizatórios africanos e

indígenas.

O fato de a autora ser professora de Ciências e Biologia da Rede Pública

Estadual foi importante para perceber a carência de material para trabalhar os

conteúdos dessas disciplinas, levando em consideração o cumprimento da supracitada

lei. Os conteúdos abordados nessas disciplinas, de uma maneira geral, obedecem a

lógica ocidental que se orienta pelos princípios greco-romanos. Sendo assim,

desconsidera os conhecimentos tanto dos Povos Indígenas, quanto Africanos, na hora

de abordar os conteúdos.

Ao se excluir os conhecimentos tradicionais desses povos, exclui-se também

seus valores civilizatórios e não se promove a propalada igualdade das relações étnico-

raciais.

Por outro lado, é preciso frisar que não é objetivo deste caderno pedagógico

fornecer repostas prontas e acabadas para a problemática da implementação da

referida lei nas aulas de Ciências, mas , sim, o de fornecer subsídios que possam se

somar às práticas já realizadas pelos professores da escola pública, contribuindo assim

para enriquecer a metodologia do ensino de Ciências.

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O conteúdo do caderno está estruturado da seguinte forma: em um primeiro

momento apresentamos o “Explorando o terreno”, no qual iniciamos uma breve

conversa com o professor que utilizará este material. Na unidade I, fazemos uma breve

introdução à etnobotânica; na unidade II será realizada uma breve introdução sobre a

África; na unidade III, o professor encontrará fundamentação para abordar assuntos

inerentes aos valores civilizatórios africanos e indígenas; a unidade IV apresenta os

povos africanos que vieram para o Brasil; a unidade V apresenta possibilidades de se

trabalhar com o conhecimento etnobotânico presente nas casas dos alunos e, por fim,

a unidade VI promove a união entre o conhecimento etnobotânico. Além disso, o

professor encontrará nesta proposta algumas sugestões de atividades e de

encaminhamentos metodológicos que poderão ser adaptados de acordo com a

realidade onde o mesmo estiver inserido.

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EXPLORANDO O TERRENO

A sala de aula: discutindo cultura indígena e afric ana a partir do conhecimento

prévio dos alunos

Conhecer o terreno onde vamos trabalhar é fundamental. A literatura aponta uma

série de sugestões para esse tipo de atividade, como , por exemplo, uma simples, fácil

de executar e de baixo custo, conhecida como “brainstorming” ou tempestade de idéias.

Basta levar para a sala folhas de papel sulfite ou qualquer outro papel que se queira

usar. Depois de distribuir pedaços da folha (um pedaço para cada pergunta) para cada

aluno, informar que não se trata de uma avaliação, mas apenas uma forma de conhecer

os pensamentos de cada um sobre o assunto a ser abordado. Os alunos não precisam

assinar a folha. Porém, o professor precisa pedir para que façam uma marca na

mesma, para que, posteriormente, possam identificar sua folha.

Depois desses esclarecimentos, o professor anuncia o tema que será abordado:

cultura africana e indígena. A seguir deve pedir para que os alunos anotem as

seguintes questões:

1) Escrevam o que vem à mente de vocês quando ouvem o termo “povos

indígenas”?

2) E quando ouvem a expressão “povos africanos”?

3) Escrevam o que o termo conhecimento etnobotânico significa para vocês?

O professor precisa delimitar o tempo que os alunos poderão ficar com a folha

respondendo as perguntas. Normalmente, vinte minutos é tempo suficiente. Enquanto

os alunos respondem, o professor pode perguntar se alguém se incomoda caso toque

uma música com som baixo que lembre os povos indígenas e africanos.

Terminado o prazo estipulado, o professor deve recolher as folhas dos alunos e

guardar em uma pasta.

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ATITUDES PEDAGÓGICAS

Conversando com o professor

Durante nosso trabalho sobre o tema etnobotânica dos povos indígenas e

africanos teremos oportunidades de fazer incríveis descobertas junto com os alunos.

Porém, essas descobertas dependem também de você. Nosso trabalho exige a leitura

de lendas, poesias, provérbios, imagens e de textos informativos. Tomamos o cuidado

para que o material selecionado fosse visivelmente interessante, de fácil leitura e

contextualizado a partir da realidade dos alunos. Qual a sua parte? Ler o material

sugerido com muita atenção, inclusive nas “entrelinhas”. Trabalhe “passo a passo”,

facilitando a interação do aluno com o texto.

Compreenda que o objetivo de cada lenda, imagem ou texto é colocá-lo em

contato com o assunto da forma mais prazerosa possível.

Conversando com os alunos sobre cidadania

Vivemos em uma época em que a palavra cidadania vive no discurso de

professores, políticos, ativistas e outros. Virou “figurinha repetida”, de tanto que se ouve

falar do assunto. Entretanto, poucas pessoas conhecem o significado da palavra

cidadania. Você sabe o que significa ser cidadão?

A palavra cidadania é muito antiga, vem da Grécia e há cerca de 2.500 anos vem

sofrendo modificações.

De acordo com a Carta de Direitos Humanos da ONU (1948) ser cidadão é ter

direitos e deveres. Nesse documento da ONU está escrito que todos os, seres

humanos, são iguais perante à lei, independente de raça, credo e etnia. Também está

escrito que todos os cidadãos têm direito a um salário digno, à educação, à saúde, à

habitação e ao lazer. Todos têm direito de se manifestar livremente, podendo militar em

partidos políticos, sindicatos, movimentos e organizações da sociedade civil.

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Mas e quanto aos deveres? A Carta de Direitos Humanos da ONU (1948)

estabelece que cabe aos seres humanos fazer valer os direitos para todas as pessoas,

ter responsabilidade pelo grupo social, respeitar e cumprir as normas e leis elaboradas

e decididas coletivamente.

O texto da Carta é muito bonito de se ler, porém, na prática, o que se observa é

que em países como o Brasil, onde há uma maioria da população vivendo na miséria e

uma minoria na riqueza, a concretização dos ideais dessa carta não acontece sem

embates. Portanto, o significado da palavra cidadania só tem sentido se forem

garantidas a todas as pessoas condições dignas de vida, combate à discriminação e

garantia do exercício da cidadania (Disponível em:

http://www.educarede.org.br/educa/index.cfm?pg=oassuntoe.interna&id_tema=7&id_su

btema=2#maquina).

Mencionamos o significado do termo cidadania porque ele será muito importante

ao longo de todo o nosso trabalho. Cada texto, imagem, poesia, lenda que será

trabalhada aqui está repleta de valores e princípios civilizatórios tanto dos povos

indígenas como dos africanos. Assim, o professor não precisa preparar uma aula

exclusivamente sobre cidadania, mas trabalhar o assunto a partir do material sugerido.

Conversando sobre o caderno pedagógico

Neste caderno teremos oportunidade de trabalhar muitos assuntos que não são

vistos com frequência na escola. Alguns nunca chegaram a ser discutidos. Outros foram

discutidos de maneira superficial. Estamos nos referindo, por exemplo, aos

pressupostos civilizatórios de povos indígenas e africanos. Aproveite esta oportunidade

para refletir sobre o que será discutido nas histórias, textos, imagens fotográficas e de

vídeo. Procure pesquisar mais sobre o assunto na Internet e em bibliotecas, revistas e

tantos outros que atualmente disponibilizam o assunto.

Vamos conhecer palavras novas, como etnobotânica, Griot, Itan, Ntu, Yangré,

Kuiã e muitas outras. Colocaremos explicações entre parênteses para ajudar no

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entendimento das mesmas. Esperamos com isso não só facilitar o entendimento, mas

provocar questionamentos sobre os diversos preconceitos envolvendo as diferentes

etnias, disseminados na escola e em outros ambientes.

Com este trabalho queremos mostrar que o preconceito veiculado por livros

didáticos e pelas diferentes mídias, sobre a ignorância dos povos indígenas e africanos,

justificado pelo fato de serem de tradição oral é um absurdo sem tamanho.

Ignorar o conhecimento tradicional desses povos significa matar sua cultura,

retirar sua identidade e condená-los à extinção.

Quando na escola ou em qualquer parte da sociedade onde vivemos

discriminamos pessoas pelo fato de serem de origem indígena ou africana, ou de

qualquer outra etnia, estamos repetindo o comportamento do europeu colonizador no

território americano e africano.

Esperamos que depois que o trabalho ao qual se propõe este caderno

pedagógico chegue ao final, tenhamos finalmente compreendido que precisamos

respeitar a diversidade de culturas existente no planeta Terra, da mesma forma que

devemos respeitar todas as formas de vida, sejam, microscópicas ou macroscópicas,

pois todas estão inter-relacionadas e são responsáveis, junto com outros fatores, pelo

equilíbrio da vida na Terra.

Imagine o planeta Terra como se fosse um grande barco. Dentro desse barco

estão a diversidade de vida e de culturas. Em caso de um desequilíbrio nessa

diversidade, o prejuízo será contabilizado para todos, porque estamos juntos. Pense

nisso!

Conversando sobre as atividades

Para melhor compreensão dos temas que serão abordados, vamos sugerir

algumas atividades que devem ser feitas de maneira criteriosa. Por exemplo, quando a

atividade for a leitura de um texto, o ideal é que o professor prepare o terreno para a

mesma. Dividindo essa atividade em três fases: contextualização, problematização e

entendimento do texto. Na fase contextualização, observe que serão apresentadas

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algumas perguntas que servirão para contextualizar e nortear a discussão. Na fase da

problematização, é o momento que o aluno procederá a leitura do texto, o professor

pode, se quiser, interromper a leitura e problematizar a situação com questionamentos

que ajudem o aluno identificar situações em que o assunto tratado poderia se encaixar.

Depois que o aluno leu o texto, também serão disponibilizados questionamentos para

verificar o que o mesmo aprendeu. Isso poderá ser demonstrado se ele for capaz, por

exemplo, de contar o que leu, oralmente ou por meio da elaboração de textos, histórias

em quadrinhos e outros. O próximo passo a ser dado pelo professor é fechar a

discussão, retomando o assunto e estabelecendo paralelos com situações do dia a dia

do aluno. Observe que embora se fale em leitura de texto, o procedimento é o mesmo

para leitura de imagens fotográficas ou de vídeo, de ambientes e outros.

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UNIDADE I – BREVE INTRODUÇÃO À ETNOBOTÂNICA

Antes da leitura (o professor deve provocar os alunos com perguntas como as que

estão sugeridas abaixo):

a) O que é um prefixo? Para que serve?

b) Você já ouviu falar da palavra etnia? O que sabe sobre sua origem étnica?

c) E da palavra botânica?

d) Você já ouviu falar em conhecimento etnobotânico?

Durante a leitura (o professor pode levar plantas para a sala como hortelã, alecrim,

cidreira e outras. Distribuir para os alunos em equipes, fazendo com que as plantas

circulem nas carteiras, para que os alunos possam manusear os vegetais. Pedir para

que esmaguem as folhas entre os dedos e depois as cheirem. Depois disso pode fazer

perguntas):

a) Alguém conhece algum uso para as plantas que circulou pelas carteiras? Sabe o

nome de alguma delas?

b) Caso algum aluno conheça, perguntar: com quem você aprendeu esse uso?

c) Você sabia que muitos dos conhecimentos disseminados hoje na nossa

sociedade têm origem em saberes africanos e indígenas?

Introdução à Etnobotânica

A palavra etnobotânica é formada pela união do prefixo ethno, que está

relacionado ao estudo de tudo o que disser respeito à forma como determinada etnia

olha o mundo. Já, a palavra botânica, diz respeito ao estudo dos vegetais. Logo,

etnobotânica é o estudo dos vegetais a partir do olhar de diversas sociedades.

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Figura - 1: Professora abordando o conhecimento etnobotânico com os alunos. Ilustração de Eloísa Flores

A etnobotânica é uma ciência que pertence ao campo da etnobiologia. De acordo

com Posey (1987), citado por Baldauf (2006), pode ser compreendida como o estudo

do conhecimento e das conceituações desenvolvidas por qualquer sociedade a respeito

do mundo natural e das espécies. O seu alvo é compreender como populações

humanas interagem com os recursos naturais, focando no conhecimento, percepção e

formas de uso (HANAZAKI, 2001).

O conhecimento particular de uma sociedade, etnia ou povo sobre uso e manejo

das plantas é chamado conhecimento etnobotânico. Esse conhecimento é objeto de

estudo da etnobotânica que, como já vimos, é um dos campos disciplinares da

etnobiologia.

Embora muitos pesquisadores defendam a interdisciplinaridade para estudar o

conhecimento etnobotânico dos povos, o estudo da etnobiologia ainda se apresenta

sob a ótica disciplinar. É, por isso, que encontramos essa ciência separada em

etnobotânica, etnozoologia, etnoecologia, etnomicologia, etnomedicina,

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etnofarmacologia e outras. Na visão de Martin (1995), quem unifica todos esses

campos do conhecimento é prefixo ethno, pois como foi mencionado, representa o

modo de diversas sociedades olhar o mundo.

Para Stenbock (2006), a etnobotânica já passou por vários momentos, a

contemporânea busca juntar conhecimentos nas áreas de uso e manejo de plantas,

agroflorestas e manejos de paisagens, antropologia cognitiva, domesticação de plantas,

interpretações iconográficas, aspectos simbólicos e muitos outros.

Figura - 2: Professora explicando a ligação entre o conhecimento etnobotânico e a fabricação de medicamentos industrializados. Ilustração de Eloísa Flores

No que diz respeito à domesticação de plantas, Mazoyer e Roudart (2010)

argumenta que as primeiras semeaduras ocorreram de forma acidental, nas

proximidades das moradias, nos locais de debulha e de preparo culinário dos cereais

nativos. A protocultura teria se desenvolvido nesses mesmos terrenos já desmatados,

fertilizados pelos dejetos domésticos, em terrenos periodicamente inundados pelas

cheias dos rios, que não exigiram nem desmatamento nem preparo do solo.

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Por isso se diz que para que a etnobotânica aconteça, há necessidade de

trabalho interdisciplinar. Assim, é fundamental a integração entre botânicos,

antropólogos, geógrafos, químicos, farmacologistas, agrônomos e outros profissionais

(STENBOCK, 2006).

Depois da leitura

O professor poderá pegar a caixa onde guardou as respostas dos alunos antes

de iniciar a unidade I e selecionar as que disserem respeito ao termo conhecimento

etnobotânico e sugerir: agora vocês já têm condições de ler o que escreveram, refletir,

corrigir ou complementar as respostas sobre conhecimento etnobotânico.

Sugestão de atividade

Pedir que os alunos pesquisem e tragam para a próxima aula algum mito relacionado à

cultura indígena ou africana.

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UNIDADE II - A ÁFRICA

A população brasileira é formada por pessoas descendentes das seguintes

etnias: africana, indígena e européia. Quando os europeus vieram para o Brasil,

encontraram um grande número de nações indígenas que possuíam um vasto

conhecimento das plantas locais. Em um primeiro momento, ocorreram trocas de

saberes entre os portugueses e os indígenas que aqui viviam. Posteriormente, os

portugueses trouxeram homens e mulheres de várias etnias africanas para trabalhar

no Brasil na condição de escravizados. Essas pessoas, por uma questão de visão

de mundo, tinham um profundo conhecimento da floresta africana. Para sobreviver

às duras condições a que eram submetidas na condição de escravizados e para não

perder sua identidade, tiveram que aprender sobre as plantas brasileiras. Essa

aprendizagem se fez a partir de relações com os indígenas e com os portugueses,

ou outros europeus com que mantiveram contato. Assim, o conhecimento

etnobotânico presente nas várias comunidades tradicionais, que formam a

população brasileira hoje, é fruto desse relacionamento inter-étnico. Portanto, antes

de se começar a falar sobre conhecimento etnobotânico, é importante conhecer as

etnias africanas e indígenas e os seus pressupostos ou valores civilizatórios.

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Figura - 3: As características físicas do brasileiro Ilustração de Eloísa Flores

Antes da leitura

a) Como será o continente africano? Será que as sociedades africanas olham o

mundo do mesmo jeito que a sociedade em que vivemos? Será que os valores

civilizatórios são os mesmos?

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A África Contemporânea

Figura - 4: Mapa do continente africano. Fonte: SEED. Disponível em: <http://www.diaadia.pr.gov.br/temasatuais/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=479>. Acesso em: 07/08/2010.

O continente africano é muito grande. Suas terras somam cerca de 8.000 km de

norte a sul, 7.600 km de leste a oeste, totalizando 30.000.000 m2 de superfície. O

continente africano pode ser dividido em cinco grandes regiões: África Setentrional,

África Central, África Oriental E África Austral (LOPES, 2006).

Na África Setentrional (território do Atlântico ao Mar Vermelho), estão

atualmente, localizados o Deserto do Saara, Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito. A

chamada África Ocidental compreende aquela região situada abaixo do Saara e do

deserto da Líbia e acima da grande floresta tropical, onde estão Mauritânia, Senegal,

Gâmbia, Cabo Verde, Mali, Niger, Chade (parte), Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Serra

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Leoa, Costa do Marfim, Gana, Burkina, Togo, Benin, Nigéria e parte da República de

Camarões (LOPES, 2006).

A África Central é uma região situada abaixo de uma linha imaginária ligando

Duala, nos Camarões, até a região dos Grandes Lagos (Vitória, Tanganica, etc.),

incluindo Camarões (parte), república Centro-África, parte do Sudão, parte do Chade, o

dois Congo, Gabão, Guiné Equatorial, e as ilhas de São Tomé e Príncipe, no Atlântico

(LOPES, 2006).

A leste e abaixo do planalto da Etiópia, mais a região dos Grandes Lagos, está a

África oriental. Compreende os seguintes países: Sudão (parte), Etiópia, Djibuti,

Quênia, Tanzânia, Ruanda, Burundi, Somália, Uganda e as ilhas Madagascar,

Comores, Maurício, Reunião e Seychelles, no Oceano Índico.

Na África austral estão, Angola, Zâmbia, Malaui, Moçambique, Zimbábue,

Botsuana, Namíbia, Lesoto, Suazilândia e África do Sul (LOPES, 2006).

Como vocês podem ver são muitos países, sendo que em vários países vivem

muitas etnias, configurando um riquíssimo patrimônio cultural. Todos esses povos são

ricos em histórias. Já vimos sobre a palavra ethno na unidade I. Essa palavra originou a

palavra etnia, traduzindo em linguagem mais simples, significa que a África não tem um

jeito de olhar o mundo, são muitos jeitos diferentes de ser em um mundo que parece

ser tudo igual (LIMA, 1998).

Os livros didáticos por muito tempo chamaram esses povos de “tribos”. Da

mesma forma que fizeram com os indígenas. Tratar essas sociedades por “tribos” é

uma forma de menosprezá-las. Esses mesmos livros , além de usar incorretamente o

termo tribo para essas sociedades, ainda chamavam esses povos de desorganizados e

atrasados ou primitivos.

Também é importante mencionar que os antigos manuais de História do Brasil,

costumavam dividir esquematicamente os negros africanos em bantos e sudaneses e

tinham por norma ensinar, ou insinuar que o nome “banto” dizia respeito a uma “raça”

da África austral, deixando nas entrelinhas que esse segmento era “inferior” (LOPES,

2006).

Com o avanço da pesquisa científica, descobriu-se que esses povos, longe de

serem atrasados, eram respeitadores da natureza, pois se identificavam com ela e

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tinham pressupostos civilizatórios tão importantes quanto os da sociedade ocidental

clássica. Chamamos de sociedade ocidental clássica, aquela cuja cultura está baseada

em regras estabelecidas pelos gregos e romanas na Antiguidade (LOPES, 2006).

Por outro lado, modernamente, o termo “raça”, por sua impropriedade, foi

substituído pelo vocábulo “etnia”, (quando se quer fazer referência a coletividade de

indivíduos humanos com características fenotípicas semelhantes), que falam a mesma

língua, compartilhando a mesma cultura.

Por características fenotípicas entendemos textura do cabelo, cor dos olhos, e

outras. Entre os africanos da Angola contemporânea, país também colonizado pelos

portugueses, existe um grande grupo chamado Bantu, composto de sub-grupos, e

outros de menor expressão demográfica, como os Bosquímanos, entre outros. Da

mesma forma, os Eslavos, no Norte da Europa, são divididos em Ucranianos,

Poloneses, etc. Embora as diferenças entre cada etnia não possam ser perceptíveis

para outros grupos, fazem muita diferença para os que reconhecem as singularidades

de cada um. Por exemplo, entre os Germânicos, que deram origem a atual Alemanha e

Áustria, há grande diferença com os Eslavos, porém esta nem sempre é notada. Um

outro exemplo, tendo em vista apenas características fenotípicas, o ocorre com

grandes grupos étnicos no Brasil, os Jês e Tupi-guaranis, que não têm suas diferenças

notadas pela maioria dos brancos. Essas diferenças na aparência das pessoas não

configuram uma raça. Por isso já é hora de percebermos que a denominação Banto,

para além da etnia, constitui um grupo étnico, representando um grande conjunto de

povos que falam línguas com uma origem em comum, como é o nosso caso (povos

latinos ou tupi-guaranis), dos anglo-saxões, célticos e outros (LOPES, 2006).

Dessa forma, quando alguém daqui para frente mencionar a palavra etnia, está

querendo dizer que povos ou sociedades podem ser diferentes entre si. Porém, isso

não significa que um seja superior ou inferior ao outro (LIMA, 1998).

Conhecendo o significado de etnia

Para você conhecer uma etnia na prática, vamos contar a história da menina Ana

Kiluba, retirada do livro de Heloisa Pires Lima:

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Ana Kiluba era uma menina que se tornou chefe de um reino africano chamado Basanga. Ela era parente do príncipe Kibinda, do reino de Luba. O povo Basanga tinha vizinhos que habitavam outros reinos, que tinham outros nomes: Bakinda, Baushi, Baluba.... Mesmo com as diferenças que havia entre eles, todos eram povos sangas. A cada uma dessas diferentes sociedades os ocidentais chamam de etnia. E todas elas podem ser encontradas, por exemplo, num único país chamado Zaire. Os países, portanto, podem estar preenchidos com muitas etnias. E, dá para imaginar, cada etnia troca histórias, de um mesmo lugar, construídas com pedaços diferentes. É a mesma, mas é diferente. E, lá na África, são milhares de africanidades em forma de contos de épocas incontáveis [...] (LIMA, 1998, p.18).

Agora que vocês já conhecem o significado de etnia, podemos contar histórias

de várias etnias. Todas elas repletas de valores civilizatórios e conhecimentos.

Histórias e mitologia africana.

Os povos africanos explicam muitas coisas por meio de Itãs e de histórias. Os

indígenas brasileiros usam também mitos e histórias para explicar sua compreensão de

mundo. No caso dos africanos, quem conta as histórias são os Griots. Na verdade Griot

é a forma como os franceses chamavam os Diélis, que é como o povo bambara chama

os contadores de histórias. Os Diélis são poetas e músicos. São profundos

conhecedores da língua da região, vivem viajando pelas aldeias escutando relatos e

recontando a história das famílias como um conhecimento vivo (LIMA, 1998).

Assim, o uso da oralidade para explicar o universo faz parte tanto da

cosmovisão indígena, quanto da africana. Essa forma de passar o conhecimento

utilizada pelos povos africanos por meio dos Dielis e Griots fazia uso de vários

instrumentos linguísticos. Embora, essa forma de passar e produzir conhecimento não

tenha sido, na maioria das vezes, considerada por intelectuais ocidentais, houve quem

reconhecesse seu valor intrínseco como pertencente a uma base filosófica africana. É

importante notar que não foram apenas os sábios africanos que se utilizaram de formas

orais para ensinar. Entre os filósofos gregos, o ensino, embora fizesse uso corrente da

escrita, considerava essencial a oratória, a dialogicidade bem como o uso de metáforas

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– que aparece muito na filosofia africana. Você sabe o que é uma metáfora? Leia o

entendimento de Aristóteles sobre a mesma na argumentação de Lima (2005), p.10-11:

[...] metáfora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie de uma para a espécie de outra, ou por analogia [...] Aristóteles viu neste engenho uma forma e uma fonte de conhecimento cujos processos e produtos resultam de um associacionismo através do qual, como ele entendia, o ser humano constrói o conhecimento [...] (LIMA 2005, p.10-11 ).

Mesmo na atualidade ainda nos utilizamos das metáforas gregas para ensinar. A

mais conhecida entre nós, talvez seja a de Platão, um dos filósofos gregos que

escreveu “O Mito da Caverna”, em “A República”, construída a partir da dialética e

dialogicidade, princípios investigativos filosóficos – lembremos que essa obra é

retratada como construída a partir da conversação –, o que inclui, portanto, forte dose

de oralidade.

Dessa forma, compreendendo que, entre os gregos, considerados fundadores

da filosofia ocidental, a metáfora, a dialogicidade tinham imenso poder tanto

pedagógico como investigativo, associando-as a criação de “mitos” para assim melhor

poder conhecer o mundo, também outros povos o faziam (embora não tenha as

mesmas bases epistemológicas que a grega, também indianos, chineses e, certamente,

africanos e os povos originários do continente americano conheciam formas filosóficas

de investigação e construção do conhecimento).

Uma vez que compreendemos o significado do termo metáfora, já podemos

perguntar: Como será que os africanos explicam o surgimento do universo? Bem , isso

depende da etnia. De acordo com Lima (1998) os Shilluks, por exemplo, que são povos

pastores, criadores de gado, contam que o mundo surgiu de uma gota de leite.

Já para os Bambaras, primeiro havia Glan, que era a vida e o movimento do

universo. Eis que Glan se enrolou em espirais de sentidos inversos. Desses espirais

nasceu o espírito Yo, que saiu rodopiando em todas as direções, criando o mundo

atual, o mundo passado e o mundo futuro. Com o passar do tempo nasceu a Terra,

passado mais algum tempo nasceram os espíritos da terra (LIMA, 1998).

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Na mitologia Kaingang, povos indígenas do Sul do Brasil foram os irmãos Kairu e

Kamé que criaram todas as plantas e animais, povoando a terra com seus

descendentes. Tudo pertence ao clã de Kañerú e ao de Kamé, também o fogo, a água.

Essa pertença é manifestada na descendência pelo temperamento, traços físicos ou

pela pinta. O que for descendente de Kañerú é malhado, já os descendentes de Kamé

tem riscas. O povo Kaingang reconhece estas pintas tanto no couro dos animais,

quanto no couro dos passarinhos. São capazes de identificá-la também nas cascas,

madeira e nas folhas das plantas (NIMUENDAJÚ, 1993).

Para os povos indígenas, seja qual for a etnia a qual pertençam, homens,

animais e plantas e os espíritos estão unidos de maneira simbólica nos mitos, nos ritos

e nas ações do dia a dia dessas pessoas.

Para o autor Giannini (1994), povos de todo o mundo desenvolvem teorias para

entender o mundo. “A cosmologia de cada sociedade representa a ordenação do

universo, ordem essa que está vinculada a todos os aspectos da vida societária”

(GIANNINI, 1994, p.145).

Para refletir!

Conta-se que certa vez um Griot se encontrou com um Doma, considerado o

mais nobre dos transmissores de histórias. O Doma é alguém que harmoniza tudo em

sua volta. Para vocês terem uma ideia, o doma nunca pode mentir. Ele não pode

mentir porque perde essa capacidade de colocar ordem nas coisas. Quem falta à

própria palavra, de acordo com o Doma, mata sua pessoa civil, religiosa e oculta,

afasta-se de si mesmo e da sociedade. Eles acreditam que a verdade é uma força vital

interna que pode ser perturbada pela mentira. Fonte: LIMA, P. H. Histórias da preta.

São Paulo: Companhia das letrinhas, 1998.

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Sugestão de atividade

a) Solicite aos seus estudantes que façam um levantamento de histórias contadas pelos

pais (ou avós). Diga para priorizarem as histórias mais antigas, de quando eles eram

crianças e quais as lições que retiravam destas histórias. A partir deste levantamento,

escolha alguns relatos e os retome em sala de aula, debatendo com os estudantes

sobre as diferentes formas de ensinar lições morais e outras formas de saber.

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UNIDADE III - NA ESCOLA DOS MESTRES DA PALAVRA

A história que vamos relatar agora é de autoria de Amadou Hampâté Ba, que

afirma em seu livro intitulado “Amkoulleu, o menino fula” que devemos tomar cuidado

com a expressão “tradição africana”, pois , segundo ele, nunca se deve generalizar,

porque como já dissemos não há uma só África, não um só homem africano e não há

uma tradição africana válida para todas as regiões e etnias, da mesma forma que não

há uma tradição indígena para os povos originários no Brasil ou no continente

Americano. Porém, o autor chama nossa atenção para algumas semelhanças que

existe em praticamente todas as etnias africanas, como a presença do sagrado em

todas as coisas, a relação entre os mundos visível e invisível e entre os vivos e os

mortos, o sentido comunitário, o respeito religioso pela mãe e outros. Entretanto, assim

com vimos as semelhanças, há inúmeras diferenças: deuses, símbolos sagrados,

proibições religiosas e costumes sociais delas resultantes que são diferentes entre as

etnias; às vezes a diferença acontece de uma aldeia para outra. As tradições às quais o

autor se refere em seu livro e que vamos relatar aqui, são de maneira geral, as da

savana africana. Para procurar no mapa, lembre-se que a savana africana se estende

de leste a oeste ao sul do Saara (HAMPATÊ BÂ, 2003).

Depois de terminarem seu jantar, Amadou e seus companheiros costumavam se

reunir na grande praça de Kérétel, ponto de encontro para conversas de rapazes e

moças de vários bairros de Bandiagara. Era comum dançar, conversar e cantar nesse

local.

Já, na primavera, esses jovens iam à noite a Kérétel para ver os lutadores,

escutar os Griots, ouvir contos, epopeia e poemas. O jovem que tivesse talento para

poesia aproveitava a oportunidade para se apresentar. Os outros escutavam e

decoravam essas poesias, caso as achassem belas, e, no dia seguinte, costumavam as

espalhar pela cidade. De acordo com esse autor, esse era um dos aspectos dessa

grande escola tradicional oral em que a educação popular era ministrada no dia a dia.

Na casa de Amadou, após o jantar, era costume acontecer os “serões”. Segundo

ele, para as crianças estes serões eram verdadeiras escolas vivas, porque:

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Um mestre contador de histórias africano não se limitava a narrá-las, mas podia também ensinar sobre numerosos outros assuntos, em especial, quando se tratava de tradicionalistas consagrados [...]. Tais homens eram capazes de abordar quase todos os campos do conhecimento da época, porque um “conhecedor” nunca era um especialista no sentido moderno da palavra, mas uma espécie de generalista. O conhecimento não era compartimentado. O mesmo ancião (no sentido africano da palavra, aquele que conhece [...]) podia ter conhecimentos profundos sobre religião ou história, como também ciências naturais ou humanas de todo tipo. Era um conhecimento mais ou menos global segundo a competência de cada um, uma espécie de “ciência da vida”; vida considerada aqui como uma unidade em que tudo é ligado, interdependente e interativo; em que o material e o espiritual nunca estão dissociados. E o ensinamento nunca era sistemático, mas deixado ao sabor das circunstâncias [...]. Como diria muito mais tarde meu mestre Tierno Bokar: “A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. É a herança de tudo aquilo que nossos ancestrais puderam conhecer e que se encontra latente em tudo que nos transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente” (HAMPÀTÊ BÂ, 2003, p.174-175).

Depois de ler sobre a forma como essas pessoas relatadas pelo menino fula

faziam para aprender e passar adiante o conhecimento, cabe aqui a seguinte pergunta:

como você percebe essas sociedades? São diferentes das nossas? Por quê?

Não sei se todos conseguiram perceber a importância do ancião nessas

sociedades. Como não costumavam registrar seus conhecimentos, era ele que detinha

os conhecimentos necessários à sobrevivência do grupo. Por isso a famosa frase de

Amadou Hampâté Bâ: “na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que queima”.

Sugestão de atividade : perguntar se os alunos têm uma avó ou avô com mais de 70

anos. Qual a possibilidade dessa pessoa vir até a escola falar a respeito de seus

conhecimentos sobre as plantas?

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Os princípios civilizatórios de sociedades africana s.

Aqueles autores que costumavam diminuir as sociedades africanas, chamando-

as de tribos atrasadas talvez não conhecessem alguns dos princípios civilizatórios mais

importantes dessas sociedades: a velhice como fase privilegiada da vida.

De acordo com Kabwasa (1982), na sociedade africana da qual ele vem (os

Ambun), uma etnia da região de Kwilu, no Zaire, a idade não é a medida para se

considerar uma pessoa velha, pois as pessoas são consideradas idosas quando seus

cabelos embranquecem ou se tornam avós. A partir daí essas pessoas são tratadas

com o maior respeito e passam a receber títulos e honrarias. Em geral, são chamadas

de tata (pai), mbuta (ancião) ou mesmo nkuluntu (que literalmente significa “cabeça

velha”). “Nessa sociedade de tradição oral, como a maioria das sociedades africanas,

os velhos são os alicerces da vida na aldeia. Diz-se, além disso, que uma aldeia sem

velhos é como uma cabana roída por cupins” (KABWASA, 1982, p.14).

Na aldeia , ficar velho não é uma coisa desagradável, na verdade todos aspiram

à velhice, porque nesta visão de mundo africana, ligada à noção de força vital, a velhice

é uma etapa da nossa existência.

Nessa sociedade, a existência humana está dividida em três etapas, sendo que

cada uma corresponde a uma função própria. Por exemplo, a infância é o período da

aprendizagem, no qual o desenvolvimento espiritual ainda está se construindo. A

maturidade é um período para o ser humano produzir. É nessa fase que as pessoas

alcançam o equilíbrio físico e espiritual. A velhice é considerada a idade da sabedoria,

do ensinamento, em que o velho vai passar para os jovens o seu conhecimento. Assim,

os velhos assumem funções importantes na sociedade, que exigem deles muito do seu

conhecimento tradicional em vários campos: jurídico, religioso, médico-mágico,

educacional e econômico. Como são detentores do saber tradicional, transmitirão

oralmente e ritualisticamente aos mais jovens, no momento da iniciação, sua

experiência prática (KABWASA, 1982).

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As bases da cultura oral africana

O pesquisador Américo Correia de Oliveira , da Universidade Agostinho Neto, de

Angola, ao investigar as bases da cultura oral africana, afirma que ela era transmitida

das seguintes maneiras:

“1 - Fórmulas Rituais: orações, invocações, juramentos, bênçãos, maldições, fórmulas mágicas, títulos , divisas 2 - Textos didáticos: provérbios, adivinhas, fórmulas didáticas, cantos e poesias para crianças; 3 - Histórias etiológicas: explicações populares do porquê das coisas, evolução das coisas até ao estado atual; 4 - Contos populares: histórias só para divertir; 5 - Mitos: todas as fórmulas literárias que utilizam símbolos. Melhor, são mitos certas histórias transmissoras de tradições arcaicas, de tipo religioso ou cosmológico, relacionado com Deus ou a criação; 6 - Récitas: heróico-épicas, didáticas, estéticas, pessoais, mitos etiológicos, memórias pessoais, migrações; 7 - Poesia variada: amor, compaixão, caça, trabalho, prosperidade, oração; 8 - Poesia oficial: (histórica), privada, (religiosa, individual) comemorativa (panegírica); poesia culta, ligada às castas aristocráticas e senhoriais; poesia sagrada, cantada nos ritos religiosos e mágicos, em cerimônias de sociedades secretas, em ritos fúnebres, poesia popular que interpreta a filosofia e os mistérios da vida e da morte; poesia popular, cantada nos jogos à volta do fogo, transmissora de ensinamentos morais e históricos; 10 - Narrações históricas: listas de pessoas e lugares, genealogias históricas universais, locais e familiares, comentários jurídicos, explicativos esporádicos, ocasionais.”(OLIVEIRA, s/d, p.10)·”.

Os africanos que vieram para o Brasil trouxeram consigo essa cultura oral. Isso

pode ser verificado, por exemplo, nas religiões de matriz africana como o candomblé

de origem Jêje-Nagô. Esses grupos possuem uma maneira oral muito particular de se

relacionar com os vegetais para vivenciar sua religião. Para o pesquisador José Flavio

Pessoa de Barros a palavra significa muito nessas comunidades, pois a ela é atribuído

o poder de curar e de animar a vida, colocando em movimento o axé existente na

natureza. Ainda segundo esse autor , quando nessas comunidades são realizados

pedidos e preces, as intenções, as súplicas e o desejo de mudança precisam ser

verbalizados em voz alta. “É inconcebível pedir aos orixás em silêncio (...)” (BARROS,

2003, p.47).

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Explorando o texto

Peça para os alunos realizarem coletas de contos, causos, mitos e outros. A partir

do levantamento efetuado pelos seus estudantes e de outros realizados por você

mesmo, tente identificar quais características nos contos, causos e histórias coletados

abordam um ou mais elementos dos supracitados (ex.: no caso de histórias como a de

Pedro Malazarte e a sopa de pedra, pode-se identificar uma crítica a avareza, a

esperteza, etc., o que poderia ser classificado como “Récitas” e “História Etiológica”,

pois há um castigo, uma lição, ou mesmo “Conto Popular”, pois tem a finalidade

também de divertir). A partir desse exercício, selecione, preferencialmente com os

estudantes, uma ou duas histórias para serem recontadas em uma aula e promova um

debate sobre possíveis conteúdos culturais, morais, éticos, lúdico/entretenimento,

pedagógico, e outros. Recomendamos que tenha alguns cuidados, pois algumas

histórias podem trazer algum grau de preconceito ou de estereótipos negativos (raciais,

religiosos, machistas, etc.). Caso isso ocorra, a história também pode ser discutida,

debatida e recontada, com muito cuidado para não ofender ou intimidar a pessoa que a

trouxe.

a) Tendo em vista esses levantamentos e debates, a professora ou professor deve

refletir sobre os valores ou princípios civilizatórios africanos ou indígenas que por

ventura possam ter aparecido.

b) Como vimos, devido ao papel da oralidade, os anciãos têm papel central de

depositários e transmissores do saber, o que implica em sua forte ascendência

moral sobre as culturas africanas e indígenas. Contemporaneamente, em nossa

sociedade, é possível identificar essa valoração do conhecimento dos mais

velhos? Este é um debate a ser desenvolvido com os estudantes.

Sugestão de atividade

a) Exiba parte do filme intitulado “O carteiro e o poeta” para seus alunos. Ele pode ser

encontrado em qualquer locadora. Esse filme permite trabalhar várias questões com os

alunos. Para essa proposta é importante exibir e discutir a parte do filme em que

Neruda explica o significado de metáfora para o carteiro.

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UNIDADE IV - OS POVOS AFRICANOS QUE VIERAM PARA O B RASIL

Muitas pessoas não sabem, mas os povos africanos não vieram para o Brasil por

vontade própria. Foram capturados por traficantes e depois vendidos para serem

escravizados. Entretanto, os africanos não foram as únicas vítimas do tráfico, pois

traficar pessoas para depois vendê-las é uma prática muito antiga. Um exemplo é o dos

gauleses que capturavam pessoas na região que na atualidade chamamos de

Inglaterra para vender aos romanos. Depois, os vinkings capturavam essas pessoas e

as vendiam em outro lugar. Os muçulmanos também capturaram cristãos e os cristãos

capturaram muçulmanos por séculos (LIMA, 1998).

Segundo Lima (1998), infelizmente o tráfico de seres humanos trazidos da África

foi a base a partir da qual cresceu o tráfico transatlântico, que além de atender aos

interesses europeus na colonização das terras do Novo Mundo, também era um grande

negócio para os europeus no continente africano. Muitos traficantes ficaram riquíssimos

com esse negócio.

Outros autores confirmam as afirmações de Lima (1998) sobre a retirada de

africanos do seu continente para serem escravizados em outros países. Além dos

europeus traficarem pessoas para o continente americano, outros povos durante

séculos, também o fizeram. Veja o que diz Moore (2008, p.17-18) sobre o assunto:

Durante todo o período de domínio árabe na Península Ibérica, isto é, ao longo de quase 800 anos, foram levados para essa região algo em torno de 4 milhões de africanos, segundo estimativas do pesquisador francês Raymond Mauny (1961). Se somarmos os tráficos árabes entre os séculos VIII e XVI (possivelmente 18 – 20 milhões de africanos) ao tráfico europeu do século XVI (possivelmente 12-15 milhões de africanos), vemos que se tratou de um desmedido contingente de pessoas negociadas, vendidas, compradas, revendidas e, afinal, escravizadas, em praticamente todos os países do Oriente Médio, da Ásia Meridional e da Europa, no decurso de um milênio. A África, então, converteu-se em palco de exportação de mão-de-obra escravizada.

Os navios saíam dos portos africanos carregados de pessoas que haviam sido

apanhadas, amarradas e trazidas para vários países da América em condições

desumanas.

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Não era uma viagem tranquila, o desespero era tanto que muitos se atiravam no

mar para a morte. Os que ficavam doentes eram atirados ao mar. Vocês acreditam que

até de tristeza morria africanos? Sentiam falta de sua família e de sua terra, o nome

dessa tristeza é banzo (LIMA, 1988).

Foi assim que durante o período colonial (desde a metade do século XVI até o

ano de 1850), chegaram às Américas inúmeras etnias africanas, como resultado do

tráfico de escravos (BARROS, 2005). Ao total foram nove milhões de pessoas para a

América e aproximadamente 3,6 milhões para o Brasil (LIMA, 1998). Chegando no

Brasil, desembarcavam principalmente na Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco.

De acordo com Lopes (2008), no século XV, os portugueses chegam aos locais

onde hoje estão os países da Mauritânia, Senegal, Cabo Verde, Gâmbia, Guiné e Serra

Leoa, criam feitorias e fortificações. Assim, esses estabelecimentos portugueses foram

pontos de embarque para a Europa, e, mais tarde, para o Brasil, de pessoas das

prováveis etnias: Balantas, Diulas, Mandingas, Manjacos, Peules, Quissis, Saracolês,

Sereres, Tenês Tuculeres, Uolofes, e outras.

Ainda conforme Lopes (2008), no século XVI, depois de atingirem o Congo,

Cabinda, Luanda e Benguela, chegando à Índia pelo mar, os portugueses fundam outra

feitoria na contracosta e passam a ter dois pontos de exploração. Daí em diante, os

africanos trazidos para o Brasil são, em maioria, bantos. Entre eles, predominou os

chamados “bantos do centro”: Congo, Quimbundo, Cuango, Casai, Lunda-Quioco e

Bemba. E de Moçambique vieram grupos com Ronga, Tonga, Xope, Senga, Angúni,

Macua e Ajaua.

Em outros momentos também vieram africanos de outros grupos: Iorubas (Ibinis,

Ibos, Ibibios e Ekoi) do sudoeste da atual Nigéria; Fons ou Jejes dos atuais Togo e

Benin e Fantis e Axantis da atual Gana.

Também é importante mencionar que a partir do século XVIII, a maior parte dos

escravizados embarcados na África e que desciam em Salvador eram oriundos do

Golfo da Guiné, na “Costa da Mina” (LOPES, 2006). Essas viagens ocorriam sem a

intermediação dos europeus. Funcionava da seguinte maneira: o navio saía do Brasil

carregado de matéria-prima para a Europa; de lá transportava manufaturados para a

África; e da África trazia pessoas para serem escravizadas no Brasil. Esse fato permitiu

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que a Bahia estabelecesse uma ligação direta com o antigo Sudão Ocidental,

facilitando a troca de informações entre o Brasil e a chamada “Guiné” e permitindo que

tradições culturais sudanesas, como a religião dos orixás e do Islão Negro, pudessem

ser recriadas no Brasil, principalmente na capital da Bahia. Dentre as etnias que vieram

nessa época, estão os Hauçás, Fulânis, Nupês (Tapas) e outros (LOPES, 2008).

Nessa época foram levadas do Brasil muitas espécies vegetais e sementes que hoje se

encontram aclimatadas na África. Da África também vieram muitas espécies nativas ou

que eram da Ásia e foram aclimatadas na África.

Esses negros, de uma maneira geral, eram “islamizados”, ou seja, foram

convertidos aos ensinamentos do Alcorão pelos árabes, ainda quando estavam na

África. Eram portadores de um grau considerável de escolaridade (cultura letrada) e

consciência política, tinham visão e experiência militar (decorrentes da unidade política

e extensão do Império Mali), capacidade de organização, além de conhecer técnicas

mais novas de fabricação e uso de armas. Naturalmente, essas informações eram

transmitidas aos escravizados daqui, resultando em revoltas e em insubmissões. Uma

dessas revoltas ficou conhecida como “revolta dos Malês” (LOPES, 2008).

Junto com o povo africano vieram seus conhecimentos

A contribuição dos bantos

Os povos africanos não vieram sozinhos, juntos trouxeram seus conhecimentos

nas mais diversas áreas. Para Lopes (2008), o termo Banto é apenas uma

denominação lingüística. Entretanto, pelo uso, essa denominação estendeu-se e até

hoje se designam como Bantos praticamente todos os grupos étnicos negro-africanos

do centro, do sul e do leste do continente que apresentam características linguísticas

comuns e um modo de vida determinado por atividades afins. De acordo com Obenga

(1985), citado por Lopes (2008), todas essas línguas modernas hoje faladas na África

central, oriental e austral possuem profundas ligações lingüísticas por derivarem de um

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protobanto, o Ur-Bantu. Modernamente, os especialistas classificaram as línguas Banto

em Bantos do Noroeste, Bantos do Equador, Bantos Mongo, Bantos do Centro e outras.

Aqui vamos nos limitar aos Bantos do Centro, devido a grande influência que línguas

desse grupo, como o Quimbundo e o Quicongo, exerceram na formação da língua

portuguesa falada no Brasil.

Você sabia que usando os recursos da paleontologia moderna e da

paleolinguística é possível reconstituir o passado remoto de um povo? Foi o que

Théphile Obenga fez, reconstituiu o passado dos ancestrais dos Bantos. Descobrindo

que provavelmente eles viveram em um ambiente aparentemente constituído por uma

floresta aberta, próxima a grandes cursos de água, com presença de animais como

elefantes, leopardos, crocodilos, hipopótamos e antílopes. Praticavam agricultura e

cultivavam milheto, sorgo e bananas, entre baobás e dendezeiros. Desse ambiente

singular, localizado na região dos Montes Adamaua, atual República do Camarões, por

volta do ano 1000 a.C.; um grupo migrou em direção a leste, deslocando-se ao longo

da floresta equatorial. Estabeleceram contato com povos do Sudão central (época do

domínio Cuxita no Egito). Desde então passaram a pastorear cabras, carneiros e gado

bovino (LOPES, 2006).

As emigrações dos Bantos responsáveis por fazer com que esse povo

desenvolvesse importantes técnicas em várias áreas do conhecimento, que

possibilitaram que antes do primeiro milênio da Era Cristã fundassem os reinos de

Luba, Lozi, do Congo e do Monotapa, não se resumiram somente às civilizações

supracitadas. Em Lopes (2006), p.117, podemos constatar que:

[...] No mesmo período, um outro grupo emigra para o sul, chegando ao curso inferior do rio Congo, levando consigo utensílios de cerâmica e técnicas agrícolas criadas por seus ancestrais. Entre os anos 400 e 300 a.C., no planalto dos Grandes Lagos, nos atuais territórios de Quênia, Uganda, Burundi e Tanzânia, povos oriundos do Adamaua desenvolveram uma cultura toda peculiar, expressa principalmente pela cerâmica lá encontrada em escavações arqueológicas. Tempos depois, 200 a. C., parte desse povo se expande pelos flancos da floresta equatorial até as savanas centrais e daí, na direção oeste, até o curso inferior do rio Congo. Esses migrantes, já dominando técnicas da metalurgia, levam seus conhecimentos às populações locais. Por volta de 100 a.C., o mesmo ocorre na atual Namíbia, através de Angola. E, mais tarde, a partir da região dos Grandes Lagos, até a costa meridional do Quênia e para o norte da Tanzânia. Finalmente, entre os anos 300 e 400 AD., outra importante onda civilizatória, partindo da região interlacustre, chega até o sul de Moçambique e a região da atual Pretória, na África do sul. Mas, não cessam aí

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as grandes migrações dos povos bantos, que perduram pelo menos até o décimo século da Era Cristã. Durante esses deslocamentos, esses povos desenvolveram suas técnicas agrícolas e metalúrgicas e criaram suas instituições sociais e lideranças.

O texto que acabamos de ler mostra que os negros tinham uma cultura que era

expressa em suas cerâmicas. Além disso, dominavam a técnica da metalurgia. Sabe o

que isso significa? Que essas pessoas possuíam importantes conhecimentos que, por

sua vez, viajaram com eles na vinda para o Brasil. Esses conhecimentos ajudaram a

construir a civilização brasileira.

Sugestão de atividades a) Peça para seus alunos pesquisarem a origem de algumas palavras que usamos na

língua portuguesa. Cuidado com os materiais onde vão fazer a pesquisa. Há muitos

autores que publicaram textos equivocados sobre essa questão. Recomendamos o

Novo Dicionário Banto do Brasil , autoria de Nei Lopes, que de acordo com Evanildo

Bechara, representa um notável acervo de propostas etimológicas. Sugerimos que

pesquisem palavras como: banzo, cafuné, dengo, encabular, fofocar, fubá, lambada,

moleque, mongo, mutreta, pamonha, quiabo, quindim, quizila, titica, xingar e outras que

você achar conveniente. Mostre para os alunos a contribuição africana à língua

portuguesa falada no Brasil.

A influência dos árabes na cultura africana

É comum se pensar que as relações dos árabes com a África só aconteceram

depois do processo de islamização realizado na África pelos árabes.. Entretanto, isso

não é verdade, pois foram as próprias contingências geográficas que favoreceram

essas relações, na costa oriental do continente africano. É Importante mencionar que

essa parte da África já era habitada por povos Bantos ou pré-bantos desde cerca de

300 a.C. Com a palavra o autor Lopes (2006):

Vindos do Ocidente, esses povos desenvolveram no novo habitat suas técnicas de pesca, agricultura e metalurgia. E embora não tivessem uma

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unidade étnica e sim um parentesco lingüístico, foram agrupados pelos árabes, com quem passaram a comerciar, sob uma única designação: Suaílis – palavra que literalmente significa “habitantes da costa, do litoral”. Através do contato com os árabes, esses Suaílis tornaram-se excelentes comerciantes. Tanto que no século XII, Quíloa, sua principal cidade, tornava-se o mais importante centro de comércio de ouro, cobre, estanho e ferro [...]. Quíloa criava uma moeda e desenvolvia uma avançada concepção urbanística que compreendia até edifícios de cinco andares, conforme relato de escritores quinhentistas chineses. [...] as ruas de Kilwa eram estreitas, ladeadas de casas de adobe cobertas com folhas de palmeiras. Os edifícios da cidade tinham portas de madeira e talvez outros detalhes do mesmo material, enfeitados com ricos entalhes [...]. “Os aspectos das cidades [...] impressionou vivamente os portugueses, assim como a riqueza dos habitantes e a elegância de seu vestuário, de seda ou algodão, com muitos bordados a ouro. As mulheres usavam braceletes e correntes de ouro e prata nos pulsos e tornozelos, e de suas orelhas pendiam pedras preciosas.” “O mobiliário das casas [...] era formado por almofadas e esteiras, às vezes tamboretes e camas suntuosas com incrustações de marfim, nácar, prata e ouro. Nas habitações dos ricos havia louça importada, porcelana do Irã, do Iraque e da China, e do também do Egito e da Síria.”

O texto que acabamos de ler, em um primeiro momento, nos deixa perplexos, e

depois indignados. Saber, por exemplo, que alguns povos africanos, ainda no século

XII, tinham conhecimentos de arquitetura suficientes para construir prédios de cinco

andares. A indignação se deve ao fato dos livros didáticos ou de história não

mencionarem os conhecimentos dos africanos. Ao negarem isso, passam a idéia de

que esses povos não tinham nada a acrescentar ao processo civilizatório da

humanidade. Como vimos, isso não é verdade. O mais importante agora é buscar

compreender porque os colonizadores europeus ignoraram a contribuição africana.

Para justificar o absurdo da escravização desses povos, os colonizadores europeus

precisaram mostrar ao mundo que essas pessoas eram desprovidas de tudo, de

conhecimento, religião e de humanidade. E que escravizá-los em suas colônias era até

mesmo uma forma de civilizá-los. Não é um absurdo? Pesquise mais sobre esse

assunto.

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A concepção do mundo e de homem entre os povos bant os e o seus saberes

civilizatórios

Segundo Lopes (2006), o belga Placide Tempels ao estudar os Bantos da atual

República do Zaire, afirmava, em La Philosophie Bantoue, obra que se tornou famosa,

a existência de uma filosofia fundamentada numa metafísica brilhante e numa espécie

de vitalismo que fornecem a chave para a concepção do mundo entre os povos bantos.

Para exemplificar a prática dessa filosofia, Lopes (2006) cita Maquet (1996, p.153-155),

resumindo o universo filosófico da etnia baluba:

- “Para os lubas, a realidade última das coisas, representando também o seu valor supremo, é a vida, a força vital.” - “O princípio fundamental segundo o qual todo o ser é força é a chave que dá acesso à representação do mundo dos Lubas. Todos os seres (espíritos dos ancestrais, pessoas vivas, animais e plantas) são sempre entendidos como força e não como entidades estáticas”. Um indivíduo se define pelo seu nome: ele é seu nome. E esse nome é algo interior que não se perde nunca e que é diferente do segundo nome dado por ocasião de um acréscimo de força como por exemplo, o nome da circuncisão [...] O nome interior é indicativo da individualidade dentro da linhagem. Porque ninguém é um ser isolado. Toda pessoa constitui um elo na cadeia das forças vitais, um elo vivo, ativo e passivo, ligado em cima aos elos de sua linhagem ascendente e sustentando abaixo de si, a linhagem de sua descendência.

O texto que acabamos de ler pode nos ajudar a pensar sobre a seguinte

questão: se o nome era tão importante para alguns povos africanos, como deve ter sido

para eles, terem sido capturados, trazidos para o Brasil e para outros países da

América Latina à força, sendo obrigados , em terras brasileiras, a adotar um nome

católico?

Por outro lado, para trabalhar um dos assuntos desse caderno, o conhecimento

etnobotânico presente na população afro brasileira, e os valores civilizatórios embutidos

nesse conhecimento é necessário compreender como viviam esses povos que vieram

para o Brasil, seus conhecimentos tecnológicos – que vimos no parágrafo anterior- e

sua concepção de homem, de ancestralidade, de vida e de natureza. Isso nos ajudará a

compreender a maneira dos afro-brasileiros, descendentes desses povos, se

relacionarem com as plantas. Nesse sentido, texto do gambiano Nyang (1982), citado

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por Lopes (2006, p.162), ao analisar a concepção africana do Homem a partir do

vitalismo expresso na filosofia banta bastante é elucidativo:

[...] “Para o banto, a vida é a existência da comunidade; é a participação na vida sagrada (e toda a vida é sagrada) dos ancestrais; é uma extensão da vida dos antepassados e uma preparação de sua própria vida para que ela se perpetue nos seus descendentes” [...].

Na proposição de Lopes (2006), tanto para o africano em geral, quanto para o

Banto em particular o ancestral é importante porque ao sair desse mundo, deixa uma

herança espiritual sobre a Terra. Por ter contribuído para a evolução da comunidade ao

longo da sua existência, passa a ser venerado. O interessante é que, para esses

povos, o ancestral não serve apenas de exemplo pelos seus atos, mas para que cada

um dos seus descendentes possa assumir, com a mesma consciência as suas

responsabilidades.

Interessa, aqui, mencionar que o culto que esses povos prestam aos seus

ancestrais repercute tanto na estatuária, quanto na escultura, as duas manifestações

mais características da Arte Negra como um todo e de forma especial da arte banta.

Esse fato faz com que a arte banta seja distinta da arte européia.

A arte européia é baseada na cultura ocidental clássica, que segue regras

estabelecidas pelos gregos e romanos (Antiguidade). Para esses povos, a principal

finalidade da arte era imitar a natureza. Por isso, essa arte na escultura, por exemplo,

procurava representar as figuras dentro das três dimensões perceptíveis ao olho

humano (altura, largura e profundidade). Só era considerado como manifestação

artística os objetos ou obras que contemplassem esses padrões. Além disso, por muito

tempo se propalou que a manifestação artística da humanidade teria começado “tosca”

e “mal feita”, melhorando com o tempo, numa espécie de evolução até atingir a

“perfeição” da arte grega e latina. Nesse sentido, a escultura tradicional negra foi por

muito tempo considerada “primitiva” (LOPES, 2006).

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Figura - 5: Imagens de máscaras africanas, julho de 2010, Namíbia. Crédito: Cedida por João Fábio G. de Almeida.

Entretanto, o escultor tradicional negro africano tem outras intenções ao criar sua

obra. Assim, ele não copia a natureza, mas diz o que acha dela. Procura dar sua

opinião sobre as coisas, e não simplesmente reproduzi-las. Esse artista se preocupa

mais com os detalhes do que com o conjunto. Isso explica por exemplo, o motivo dele

fazer a cabeça sempre grande, desproporcional ao resto do corpo. Ao fazer a cabeça

grande, ele está querendo passar que essa é principal parte do corpo, pois é onde

mora a inteligência, o saber e vida. Também é preciso considerar que quando

observamos na estatuária africana características ou manifestações sexuais (seios,

órgãos genitais, mulheres grávidas e outras), o autor não está sendo “erótico” ou

“pornográfico”. Nesse caso, a sexualidade aparece associada à fertilidade, à

fecundidade, à sobrevivência social, econômica, biológica e espiritual do grupo

(LOPES, 2006).

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Figura - 6: Arte africana em madeira, fotografado em julho de 2010. Créditos: Foto cedida por João Fábio G. de Almeida

É muito importante mencionar aqui que entre os Bantos tudo é considerado arte.

Assim, temos a arte de falar, de cantar, de cozinhar bem; a arte de cumprir bem os

rituais, as cerimônias, as festas; a arte de tocar bem o tambor, de esculpir bem as

imagens dos ancestrais; a arte de saber pentear, vestir, andar, rir e outros (LOPES,

2006).

A arte banta também foi notada pelos portugueses, já no século XV, quando

conheceram os belos tecidos de casca de árvore e fibras de palmeira, “com uma fineza

comparável ao veludo” que eram fabricados no velho Reino do Congo. Até a data de

hoje, os Bacongos atraem atenção para a extrema habilidade com a tecelagem e pela

qualidade de sua cestaria. Essa habilidade é utilizada na confecção de esteira para

dormir, na decoração de casas e outras. A tecelagem recorre a fibras vegetais,

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principalmente de palmeira, originando peças que se assemelham a veludos e tafetás

(LOPES, 2006).

Figura - 7: Artesanato africano em madeira, Namíbia, julho de 2010. Créditos: Imagem cedida por João Fabio G. de Almeida Tudo o que foi dito acima ajuda esclarecer o seguinte: os Bantos por meio do

saber e da arte de seus escultores, seus músicos, seus contadores de histórias, seus

tecelões, seus dançarinos e seus sacerdotes também contribuíram como agentes

civilizatórios na formação da população brasileira (LOPES, 2006).

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Explorando o texto

a) Mostre aos seus estudantes imagens da estatuária africana e imagens da estatuária

grega. Discuta com eles a diferença. Incentive o debate sobre o seguinte fato: ser

diferente não significa, em hipótese nenhuma , ser inferior.

b) Converse com seus alunos sobre o fato dos bantos serem exímios tecelões a partir

de fibras de vegetais. Mostre que transformar um vegetal em tecido é tecnologia, e

mais, o tecido é natural, depois de usado se decompõe naturalmente no solo com

pouco impacto ao meio ambiente. Como seria se todos nós pudéssemos usar roupas

fabricadas a partir de tecidos naturais?

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UNIDADE V - O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO DE CUNHO ME DICINAL

PRESENTE NA CASA DOS NOSSOS ALUNOS

Figura - 8: Professora explicando etnobotânica para os alunos. Ilustração de Eloísa Flores

Já tivemos a oportunidade de verificar o significado de etnobotânica. Nessa

unidade vamos aproveitar para descobrir o conhecimento etnobotânico dos pais e avós

de vocês.

Quando você fica doente seus pais costumam fazer chazinhos? Na sua família,

as pessoas têm o costume de usar as plantas para curar as mais diversas doenças?

Que tal fazermos um levantamento desse conhecimento?

Abaixo tem um modelo de questionário. Você receberá um igual. Deverá levá-lo

para casa, aplicando-o de preferência com os mais velhos da sua família. Você já sabe

o motivo de perguntarmos aos mais velhos, não é mesmo? As pessoas mais velhas são

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muito sábias, receberam esse conhecimento dos seus pais ou avós de forma oral. A

cabeça delas funciona como um verdadeiro banco de dados. Entretanto, para conseguir

essas informações é preciso tato e paciência. Em primeiro lugar, explique para os mais

velhos que esse conhecimento que eles possuem sobre as plantas é muito importante e

que você , ao fazer as perguntas, está realizando um resgate dessas informações para

depois registrá-las. Dessa maneira, o conhecimento dos seus ancestrais não se

perderá. Diga que você fará muitas perguntas, caso a pessoa entrevistada não lembre

a resposta no momento, avise que é possível registrar a resposta em outro momento,

pois você terá três dias para realizar sua entrevista.

O questionário: um instrumento de pesquisa

Pesquisa é uma coisa muito séria. Por isso toda a atenção é pouca. Devemos ter

cuidado para ser o mais fiel possível ao nosso entrevistado. Durante a entrevista, não é

aconselhável que fiquemos dando exemplos para fazer o entrevistado se lembrar das

coisas. Anotar tudo com muito cuidado e atenção. O número de entrevistados ficará a

seu critério. Porém, procure entrevistar sempre as pessoas mais idosas de sua família.

Exemplo de questionário:

Nome do entrevistado:...............................................................................................

Idade:...................................Religião:..........................Escolaridade:.........................

1) O senhor ou senhora conhece a sua origem étnica? Qual a sua religião? Sempre

pertenceu a essa religião?

2) Está usando algum tipo de planta para fazer remédio?Qual? Para quê?

3) Qual forma de usar?

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4) Já fez uso de alguma planta como remédio? Quais? Como usou? Para curar que

doença? Use o quadro abaixo para organizar as respostas. Para cada planta preencher

um quadro separado.

Nome da planta medicinal:

Parte utilizada:

Forma de preparo:

Indicação de uso:

Efeitos observados:

Onde conseguiu a planta:

Como aprendeu a usar essa

planta?

( ) com os antepassados ( )livros e revistas ( ) TV, rádio ou

outros ( ) amigos ( ) profissionais da saúde ( ) familiares

Aparência da planta ( ) herbácea ( ) arbustiva ( ) cipó ( ) árvore

Tem hora ou lua certa para

colher a planta?

( ) sim Qual?

( )não

5) O senhor ou a senhora conhece alguma simpatia? Pode contar? Com quem

aprendeu?

6) Conhece algum tipo de benzimento? Com quem aprendeu?

7) Conhece alguma planta que pode ser usada para a limpeza espiritual do corpo ou da

casa? Com quem aprendeu?

8) O senhor ou a senhora acredita em “mau olhado” ou “quebranto”?

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Sistematizando o conhecimento etnobotânico

Depois que você realizou a entrevista ou entrevistas, precisa sistematizar os

dados. Para isso precisará da ajuda do seu professor. Caso você tenha obtido um

grande número de informações , poderá organizar tudo na forma de tabelas e gráficos.

Também é possível passar os dados para o professor organizar junto com os dados dos

seus colegas.

Um exemplo de sistematização de dados

Quadro 1: Conhecimento etnobotânico da Comunidade Quilombola do Varzeão, Dr. Ulysses (PR).

Família

Espécie

Nome

Popular

Numero

de

usos

Indicação

de

uso

Tipo de

Uso

Parte

Utilizada

Forma

de

preparo

Forma

de

obtenção

Asteraceae

Achyrocline

saturoides

(Lam) DC.

Macela 03 Dores no

estômago,

bexiga e

na

garganta

Medicinal Flores Infusão Cultivada

no quintal

Fonte: Modificado da Tese de doutorado de LOPES (2010).

Vamos entender a quadro?

A primeira informação que aparece diz respeito à família botânica da planta e a

segunda se refere ao seu nome científico. Tivemos a oportunidade de aprender nas

aulas de Ciências que as plantas e outros seres vivos são classificadas em reinos, filos,

classes, famílias, gêneros e espécies. Além disso, para afirmar que uma planta

pertence a determinado gênero ou espécie, os cientistas comparam suas estruturas

reprodutivas, ou seja, observam flores e frutos. Essa forma de classificação é a forma

como a ciência ocidental organiza o conhecimento sobre os vegetais. Os pesquisadores

fazem isso para facilitar o estudo das plantas. Você já imaginou vários cientistas

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reunidos em um congresso de botânica discutindo sobre uma determinada planta,

usando apenas o seu nome popular? Isso seria praticamente impossível, porque, em

cada cidade ou mesmo localidade, as pessoas usam diversos nomes para a mesma

planta. Esse é um dos motivos que fez com que a botânica ocidental nomeasse as

plantas obedecendo a uma norma internacional. Assim, a planta que conhecemos aqui

no Brasil por Macela, embora receba outros nomes em outros lugares, possui um único

nome científico que é Achyrocline saturoides (Lam) DC.

A outra informação presente na tabela diz respeito ao número de usos (NU).

Esse número significa que os meus entrevistados conheciam no total três usos

diferentes para a planta Macela. Já a indicação de uso (IU), diz respeito às informações

que os entrevistados passaram no item para que enfermidade serve a planta. No meu

caso, os meus entrevistados usam a Macela para tratar dores estomacais, na bexiga e

na garganta.

Quando dizemos tipo de uso medicinal, estamos querendo dizer que uma planta

pode ter vários usos, e, dentre eles o medicinal. A Macela, por exemplo, pode ter

outros usos como, por exemplo, encher travesseiros. Portanto, nem sempre o uso de

uma planta é medicinal.

Observe que na tabela também há um item que diz respeito à parte da planta.

Isso se deve ao fato de que uma pessoa quando vai fazer um chá pode usar diferentes

partes da planta. Algumas usam as flores e folhas, outras usam as sementes ou o fruto,

ou a casca do caule ou a raiz. Por isso, é importante tomar nota dessa informação e

destacá-la na tabela. Assim, quem for usar essas informações dessa pesquisa , e

quiser fazer um chá, saberá exatamente qual parte deverá utilizar.

A forma de preparar um chá é outra informação também importante. Há pessoas

que fervem a planta. Nesse caso, dizemos que ela fez uma decocção. Outras pessoas

apenas despejam água quente em cima das folhas ou flores, fazendo uma infusão. Há

plantas que são maceradas para o aproveitamento do sumo. Já outras são torradas,

transformadas em pó e usadas na preparação de pomadas. Enfim, o universo de como

preparar um remédio caseiro é muito grande, daí a importância de anotar tudo bem

certinho. Além disso, de acordo com os manuais de medicina, a forma de se preparar

um chá é uma coisa importante. Assim, flores e folhas não devem ser fervidas

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(decocção). Devem ser preparadas por meio de infusão (quando despejamos água

quente em cima das partes da planta). Esses manuais recomendam ainda que depois

de colocar a água quente na xícara, o ideal é que a mesma seja tampada, para evitar

que os princípios ativos saiam da planta e evaporem para o ar.

No que se refere à forma de obtenção da planta é importante registrar como a

pessoa consegue a planta para fazer o remédio. Vocês vão observar que algumas

pessoas cultivam as plantas na horta, outras pegam em beira de estradas, outras

compram na farmácia ou no mercado. Essa informação é importante porque nos ajuda

a descobrir a procedência do vegetal. Os manuais de medicina afirmam que não é bom

usar as plantas de beira de estrada para fazer remédios, pois as mesmas podem estar

contaminadas por metais pesados que saem do combustível dos automóveis.

Essa tabela é apenas um exemplo de como você poderá sistematizar seus

dados. Use a criatividade e organize as outras informações que constam no

questionário.

Explorando o texto

a) Pergunte aos alunos se eles sabem a diferença entre remédio e medicamento. Peça

que eles pesquisem o assunto e depois reflita com eles sobre o fato de a Organização

Mundial da Saúde (OMS) recomendar, na atualidade, o uso dos remédios caseiros.

Pesquise sobre isso.

b) Pergunte aos alunos se eles sabem a origem dos medicamentos vendidos nas

farmácias. Peça que pesquisem a origem do viagra.

c) Comente com os alunos a respeito da Convenção sobre Biodiversidade (CDB),

reflita sobre o direito dos povos tradicionais sobre o seu conhecimento.

d) Caso apareça uma simpatia ou uso de alguma planta como proteção espiritual (mau

olhado ou quebranto), discuta com os alunos sobre a influência africana ou indígena

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nesse conhecimento. Mostre que no caso da simpatia, além de usar uma planta, a

pessoa usa a palavra, a oralidade.

d) Reflita com seus alunos:

“Enquanto as empresas químicas e de sementes exigem remuneração por suas sementes melhoradas e por seus [...], solicitando que sejam respeitados seus direitos de propriedade intelectual por intermédio de acordos comerciais, o conhecimento tradicional sobre sementes, praguicidas e ervas medicinais tem sido explotado gratuitamente sem reconhecimento. Isso tem sido chamado de ‘biopirataria’” (MARTÍNEZ ALIER, 2009, p.35)

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UNIDADE VI - O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO INDÍGENA E DA

COMUNIDADE DE TERREIRO JÊJE-NAGÔ NA PRÁTICA ESCOLAR

Aprendemos nas aulas de Ciências que os seres vivos devem ser organizados

em reinos, filos, classes, gêneros e espécies. Vimos também que cada ser vivo recebe

um nome científico em latim, sendo que o primeiro é escrito com a primeira letra

maiúscula e o segundo com a primeira letra minúscula, além de receber um destaque

em itálico. Os outros povos indígenas, africanos e diversos outros grupos também

organizam os seres vivos, classificando-os e nomeando-os. São utilizados critérios

diferentes de classificação, do ponto de vista da botânica ocidental, porém, são

coerentes para e com os sistemas onde foram criados, não acarretando, de forma

alguma, nenhum demérito.

Figura - 9: A influência dos conhecimentos dos negros e indígenas na construção do conhecimento etnobotânico brasileiro. Ilustração de Eloísa Flores

Já vimos que , culturalmente, a relação homem/vegetal é tão importante para o

indígena brasileiro, quanto para o africano pois dizem respeito à própria existência

desses dois grupos. Para facilitar o entendimento vamos apresentar exemplos de

classificação dos vegetais usados pelos Kaingang, de Tibagi e, posteriormente, por

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povos com ancestralidade africana, especificamente as comunidades de terreiro de

origem Jêje-Nagô.

Há muitas pesquisas sobre a forma como as comunidades indígenas usam as

plantas. Neste caderno citaremos o trabalho de Kimiye Tommasino intitulado “HOMEM

E NATUREZA NA ECOLOGIA DOS KAINGANG DA BACIA DO RIO TIBAGI”, além do

trabalho Haverroth. O quadro abaixo foi retirado e adaptado da pesquisa de Tommasino

(2004):

Quadro 2: Etnoconhecimento kaingang de algumas plantas da bacia do Tibagi

Nome Kaingang Nome popular Conhecimento e ou utilid ade

(A=alimento; M=medicinal;

R=ritual;

penvã guavirova (A) Fruta comestível

krét amora (A) Comestível

kóimbé Jaguarandi miúdo (M) Cicatrizante

Ojor ján Cipó-escada; alça-de-anta (M) Remédio para quebradura

rumi rubim (M) para torção, quebradura.

As folhas são amassadas com

sal e passadas no local.

vãyevã goiabeira (M) bom para diarréia.

roja contas (R) quando o kuiã vai falar

com o espírito que prejudicou

alguém, ele usa o colar para

protegê-lo.

guyguy picão (M) para dar banho em criança

quando está com coceira no

corpo.

Fonte: Modificado de Tommasino (2004, p.183-184)

No quadro acima apareceram exemplos de usos de plantas como o medicinal,

para a alimentação e para proteção espiritual. Os Kaingang conhecem muito mais

espécies do que as que foram citadas. Para entender melhor a classificação que dão às

plantas é necessário ler e conhecer outros trabalhos de pesquisa.

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Para facilitar o entendimento da terminologia morfológica botânica dos Kaingang,

usaremos a pesquisa de Haverroth (2008). De acordo com esse autor, a morfologia

dos vegetais em geral (nen) possui terminologia diferente para os Kaingang, podendo

variar local ou regionalmente. Alguns termos comumente usados são: jãre (raiz), ti-pen

(caule), ka ou ka nèr (tronco), kaféj ou simplesmente fej (flor), fej no (pistilo da flor),

kañe (fruto), fy (semente), fãr (casca), jogo ou kògo (broto novo), mò ou per (vagem), pe

(ramo), mò (espiga), sònh (espinho). Para Haverroth (2008) os significados são

próximos dos conceitos morfológicos usados pela botânica ocidental na língua

portuguesa. O autor chama a atenção para o fato de alguns dos termos Kaingang

possuírem outros significados de acordo com o contexto em que estiverem sendo

utilizados. Assim, muitas palavras são usadas com significados distintos. Um exemplo é

o termo ka que também significa árvore, madeira, pau e objetos derivados. Segundo o

referido autor, a palavra ka possui mais significados além dos que foram citados aqui.

O texto a seguir, retirado de Haverroth (2008, p.49), explica outros conceitos botânicos

usados pelos Kaingang:

Da mesma forma, kane (‘fruto’) não corresponde exatamente ao conceito botânico de fruto. Por exemplo, apresentando uma espécie (não identificada) de samambaia epífita (Pteridófita) a Fokàe e Nirue, a qual apresenta algumas “baguinhas” no limbo e na folha, eles informaram seu nome como sendo pri-kane-mág (samambaia-fruto-grande), fazendo referência aos frutinhos na folha. O nome dado à samambaia pode ter dupla interpretação. As “baguinhas” podem ser consideradas kane enquanto “fruto” ou sua nominação pode ser uma metáfora, comparando as “baguinhas” com pequenos frutos [...]

Para nosso estudo, importa saber que a etnobotânica kaingang é constituída

basicamente de três sistemas de classificação, às quais Haverroth (2008) chama de

classificação morfoecológica, classificação utilitária e classificação simbólica. A

classificação morfoecológica é baseada em categorias (nomeadas ou não) relacionadas

hierarquicamente por inclusão vertical e exclusão horizontal. Já a classificação utilitária

(ver o quadro de TOMMASINO (2004) segue critérios de utilidade prática ou do potencial

das plantas. Já na classificação simbólica, as plantas são categorizadas segundo a

cosmologia dual kaingang em kame e kanhru (HAVERROTH, 2008).

Baseando-se nas informações fornecidas pelos kaingang, Haverroth (2008)

registrou quase duzentas espécies botânicas, praticamente todas com alguma

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propriedade utilitária. A pesquisa era voltada principalmente para as plantas com uso

medicinal, mas registrou também citações em outras categorias. O autor observou que

a concepção venh-kagta (remédio) que os kaingang estabelecem com os vegetais é

bastante ampla, de modo que basicamente todos os vegetais, de alguma forma, são

considerados remédios, além de outras utilidades, é claro. O autor sistematizou uma

classificação morfoecológica, que de maneira resumida transcreveremos abaixo:

Quadro 3. Classificação etnobotânica kaingang (TI Xapecó).

Nível 0 (indicador único):nen

Nível 1 (forma de vida ):ka

Níve 2 (etnogêneros) Nível 3 (etnoespécies) Nome em português

Ka-rug Ka-rug-kati

Ka-rug-màg

Ka-rug-màg-sá

Ka-rug

Angico-branco

Angico-vermelho

Angico-preto

Bracatinga

Kokrey Kokrey-sà

Kokrey-kupri

Ariticum-preto

Ariticum-branco

Kiny Kiny-kupri

Kiny-sà

Kiny-kusug

Kiny-myrèla

Quina-branca

Quina-preta

Quina-vermelha

Quina-amarela

Fonte: Modificado de Haverroth (2008).

Olhando para o quadro produzido a partir de Haverroth (2008), é possível

compreender muitas coisas. Os kaingang chamam os vegetais em geral de (nen) e

nesse quadro ka significa árvore ou madeira. Observem que os kaingang também usam

a forma binomial de classificação usada por Lineu: gênero (aqui etnogênero) e espécie

(aqui etnoespécie).

Ao mostrar a classificação dos vegetais a partir do olhar de uma comunidade

como a indígena, ou de qualquer outra comunidade, estamos querendo dizer que há

muitas formas de se classificar os seres vivos. A classificação científica é apenas uma

delas. O fato de as outras comunidades usarem formas diferentes para classificar os

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seres vivos, não as desmerece em nada e nem significa que estão erradas. Porém,

significa que são diferentes, nem melhor nem pior que a classificação científica,

apenas diferentes. O problema é que nós tivemos uma formação baseada no modo de

ver ocidental judaico-cristão, e, por isso, temos dificuldade de conviver com a

diversidade.

Assim como os indígenas, os africanos também possuem uma estreita ligação

com os vegetais. Quando chegaram em terras brasileiras, para manter seus cultos e

preservar sua identidade, tiveram que encontrar muitas das plantas que costumavam

usar em sua terra natal. Diante da biodiversidade brasileira, foram obrigados a realizar

um fantástico trabalho de identificação e classificação dos vegetais que eram

indispensáveis à manutenção de sua cultura. Neste nos reportaremos apenas às

classificações usadas pelas comunidades-terreiro e mais especificamente às

comunidades do grupo Jêje-Nagô. Dessa forma, de acordo com Theodoro (1996),

dentre os diversos tipos de cultos desenvolvidos pelas comunidades-terreiro é possível

citar o culto às folhas. Para essa autora as folhas possuem um poder sobrenatural e

são indispensáveis, indiferente à atividade de culto que vai se realizar. O texto abaixo,

retirado de Theodoro (1996), p.78, ilustra bem o que estamos querendo dizer:

As folhas estão no espaço mato das comunidades-terreiros, que é o espaço reservado às árvores sagradas e às plantas utilizadas nos rituais. Cada folha tem propriedades particulares, sendo que, misturadas [...] podem produzir preparações para os diferentes usos, sejam mágicos ou medicinais [...]. [...] as folhas estão ligadas a seus genitores míticos, sendo que sua utilização reforça este ou aquele aspecto feminino e/ou masculino, restabelecendo a relação complementar Terra/Água. Logo se pode concluir que as folhas veiculam seu axé e ativam a potencialidade do elemento ao qual o orixá está ligado, mantendo sua relação com as divindades femininas ou masculinas, podendo ser positivas ou negativas, sendo importante saber juntá-las para se obter a combinação adequada.

Para complementar as idéias de Theodoro (1996), citaremos um pesquisador

muito importante e que deve ser consultado, principalmente por aqueles que desejarem

se aprofundar na forma como as comunidades-terreiro conhecem, organizam e

classificam os vegetais. Estamos nos referindo ao professor José Flavio Pessoa de

Barros. Ele realizou uma pesquisa sobre o uso dos vegetais pelo grupo Jêje-Nagô,

muito interessante e elucidativa, intitulada “Sistema de Classificação de Vegetais no

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Candomblé Jêje-Nagô do Brasil”, à qual nos reportaremos neste texto. De acordo com

Barros (1993), os vegetais reapresentavam para o “escravo”, por meio de sua

utilização nos ritos de iniciação, não só a construção de sua identidade, mas a

manutenção de uma cosmovisão, que o tornava diferente do grupo hegemônico,

importante, pois a longo prazo, esse fato tornou possível a constituição de comunidades

específicas, as comunidades-terreiro. Outro fator importante que contribuiu para que o

negro escravizado mantivesse e aprofundasse seu conhecimento sobre as plantas foi

dado pelo próprio elemento branco, pois o mesmo, ao deixar de cuidar da saúde do

escravizado, o obrigava a cuidar de si usando os conhecimentos que possuía, ou seja,

era obrigado a usar seus próprios conhecimentos fitoterápicos, que em nenhum

momento foi desvinculado de seu conteúdo simbólico. No que se refere à medicina

praticada pelos escravizados, Barros (1993, p.39) afirma que a mesma coexistia com a

ciência médica dos brancos, pois:

“(...) Em cada bairro da cidade existe um cirurgião africano, cujo consultório, bem conhecido, é instalado simplesmente à entrada de uma venda. Generoso consolador da humanidade negra, dá as suas consultas de graça, mas como os remédios recomendados contém sempre algum preparado complicado, fornece os medicamentos e cobra por eles [...] vende também talismãs curativos, sob forma de amuletos.” [...].

Além disso, Barros (1993) chama nossa atenção para o fato de que essa

terapêutica usada pelo escravizado, embora na atualidade já tenha sido identificada

uma série de princípios ativos que justifiquem a cura de certas doenças, precisa ser

compreendida a partir da sua ligação com o conteúdo mágico-religioso que lhes são

inerentes, pois assim é possível compreender os cuidados que os que se utilizam

desses vegetais tomam, por exemplo, na hora da coleta, como podemos observar na

fala de Barros (1993, p.40):

[...] as espécies vegetais devem ser buscadas em locais de mato, não cultivadas, portanto, em momentos propícios, e por pessoa preparada para tal fim [...] [...] o encarregado da coleta deve abster-se de relações sexuais no dia em que for apanhar as folhas; algumas moedas devem ser colocadas antes das plantas serem coletadas, na entrada do mato, juntamente com um pouco de mel, e fumo de rolo e cachaça ‘como pagamento para o dono das folhas’ (...) ‘pois as plantas são muito sestrosas e se não se faz as coisas direito, elas desaparecessem’ [...].

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Além do procedimento formal de coletar os vegetais de maneira adequada, o horário é também de fundamental importância. As folhas devem ser colhidas preferencialmente pela manhã, bem cedo. Caso a necessidade obrigue a coleta noturna – “será necessário ‘acordar a folha’, que será colocada na palma da mão, uma por uma, dando três tapinhas e dizendo três ‘acorda’”[...].

Ainda na argumentação de Barros (1993), durante o trabalho de coleta e

identificação dos vegetais utilizados por essas comunidades com o intuito de formar um

herbário, percebeu que seus informantes , ao identificarem as espécies, primeiro

levavam em consideração a folha, observando todos os seus aspectos: tamanho, cor,

formato, cheiro, textura e habitat. Esse fato chama a atenção porque , no caso da

classificação científica feita pelos cientistas ocidentais, se prioriza flores e frutos como

estruturas essenciais ao processo de identificação, porque será por meio de natureza e

disposição das mesmas que será feita a organização em famílias, gêneros e espécies.

O autor supracitado, ao realizar essa coleta de vegetais com ajuda de mateiros

e ervanários, notou que os mesmos usavam o princípio da analogia para a

identificação. Assim, a forma alongada, característica de objetos cortantes e

pontiagudos (facas, espadas, lanças) via de regra era associada aos orixás masculinos,

caçadores e guerreiros. Como exemplos o autor cita: Espada de Ogún; Pèrègún

(popular Pau-d’água) que são consideradas plantas masculinas. Por outro lado, as

folhas largas, arredondadas e com habitat na água e/ou em suas proximidades, ou

mesmo em locais úmidos e sombreados eram designadas pelos informantes como

relacionadas às ayaba (Povos das águas).

Esse mesmo autor também observou que de maneira geral, quanto à cor, as

cores escuras das folhas eram ligadas aos orixás masculinos e às claras, às divindades

femininas. Quanto à textura da folha, observou que a carnosidade, capacidade de

retenção de líquido, sempre aparecia associada às ayaba ( Nana, Oxun, Yemanjá, Ewa

e Oba). Outro aspecto levado em consideração pelos informantes de Barros (1993) é o

odor exalado pelas espécies quando esmagadas entre os dedos, procedimento que os

informantes repetiam durante a coleta dos vegetais. Aromas fortes ou suaves, porém,

adocicados eram reportados à ayaba, exemplo: Cantinga-de-Mulata. Muitos outros

aspectos foram descritos por BARROS (1993) que não serão reportados aqui. Não

obstante, é importante informar que esse autor reconhece nos sistemas de classificação

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Jêje-Nagô quatro categorias fundamentais, ligadas aos compartimentos Água, Terra, Ar

e Fogo, às quais devem ser acrescidas de critérios de diferenciação estabelecidos

pelos pares complementares de oposição Macho/Fêmea, Agitação/Calma.

É interessante notar que diferenciação usada pelos integrantes das comunidades

Jêje-Nagô também apareceu na fala dos entrevistados durante a coleta de dados para

a pesquisa de doutorado de Lopes (2010). Segundo essa autora , os quilombolas do

Varzeão usam remédios que exigem “resguardo”, um exemplo é o sabugueiro

(Sambacus australis), usado pelos informantes para ajudar na erupção do sarampo,

deve ser tomado à noite, evitando-se tomar “friagens”; o de rubim (Leonorus sibiricus L.)

usado pelos quilombolas para abaixar a febre, deve ser tomado frio é à noite por se

tratar de um remédio “quente”. A autora se reporta ao estudo realizado por Barros e

Napoleâo (2007) que estudaram comunidades-terreiro de origem Jêje-Nagô, para

explicar os prováveis motivos que levam os quilombolas do Varzeão a usarem essa

classificação dos vegetais em frio e quente. Os referidos autores explicam que, na

classificação da já citada comunidade, é muito importante o que eles chamam de

condições gún (que significa excitação) e èrò (que significa calma). Para esses autores,

são esses aspectos das folhas os responsáveis pelo equilíbrio que as misturas vegetais

devem ter, devendo ser dosadas de acordo com as condições de cada indivíduo. Nesse

sentido, nas misturas de vegetais a serem utilizadas em banhos purificatórios (banhos

usados pelos adeptos das religiões de matriz africana para a purificação do corpo), há

que se observar as condições físicas em que se encontra a pessoa que receberá o

banho, dizem os autores: “se o banho é para uma pessoa que anda muito parada, usa-

se maior número de folhas quentes, mas se for para alguém que anda muito agitado, é

usado maior quantidade de folhas frias” (BARROS; NAPOLEÃO, 2007, p.26).

Finalizando, sobre o conhecimento dos africanos sobre a classificação dos

vegetais, acrescentamos que muitos desses conhecimentos estão espalhados nas

práticas tradicionais de medicina da população afro-brasileira.

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Explorando o texto

Peça para os seus alunos analisarem a figura abaixo do famoso pintor Rujendas.

Depois da observação com calma, pergunte:

a) Que tipo de suposições a imagem nos permite tirar?

b) Você consegue estabelecer relação com o texto que acabamos de ler?

Sugestão de atividades

Passe o vídeo intitulado “Kiriku”, parte 2 para os alunos (disponível em:<

http://www.youtube.com/watch?v=gxUiV9-R26k&feature=related>) e peça que elaborem

um texto sintetizando todo o conhecimento que o vídeo apresenta sobre o uso dos

vegetais para a cura de doenças (ou feitiços). Também é possível pedir que relatem a

respeito dos valores civilizatórios africanos que aparecem no vídeo, procurando

relacioná-los com muitos valores presentes em nossa sociedade contemporânea.

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