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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4 Cadernos PDE VOLUME I

DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · zar o conhecimento formal, deixando-se de lado o conhecimento que o educando traz de casa. É importante e necessário explorar a diversidade

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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE

2009

Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4Cadernos PDE

VOLU

ME I

DO CÁLCULO DE ÁREA À RODA DA CARROÇA: SOLUCIONANDO PROBLE-

MAS SEM O USO DE FÓRMULAS MATEMÁTICAS

Autor: Cynthia Rejane Mazzotti1

Orientador: Osmar Ambrósio de Souza2

Resumo

Este artigo tem como finalidade orientar a pesquisa e difusão do programa etnoma-temática com a intenção de instigar, tanto no educando como no educador, um res-gate cultural dentro da disciplina de Matemática. Por meio da etnomatemática ob-servamos na prática, a Matemática realizada por diferentes grupos culturais, utili-zando-se de metodologias bem diferentes das aprendidas na escola, buscando valo-rizar o conhecimento tácito/empírico que o educando traz do ambiente em que vive. Uma vez vivenciados esses conhecimentos culturais e o formal explícito adquiridos na escola, são traçados comparativos significativos ou mesmo mudanças de com-portamento e atitudes em relação a estes conhecimentos. Então, a etnomatemática, parte da realidade e chega de maneira natural por meio de um enfoque cognitivo com uma forte fundamentação cultural em vistas à ação pedagógica.

Palavras-chave: Cálculo de Áreas; Rodas de Carroça; Etnomatemática.

1 Introdução

Devido a sua importância como meio de socializar os conhecimentos pes-

quisados sobre a Etnomatemática, este artigo sintetiza a implementação do Projeto

de Intervenção Pedagógica realizada no Colégio Estadual Arnaldo Busato – EFMNP,

objetivando a valorização da mesma no processo educacional. Os principais conteú-

dos desenvolvidos nesta implementação foram: cálculo de áreas de terrenos irregu-

lares e comprimento da circunferência.

A Matemática é vista, de modo geral, como a disciplina da “resposta certa”, e

esta visão interfere no processo de aprendizagem e evita que os alunos expressem

seus pensamentos matemáticos, que aprendam com seus erros, que testem suas

hipóteses e as reformulem ou as defendam. É importante pensar sobre o que pro-

1 Especialista em Fundamentos da Matemática, professora do quadro próprio do magistério da rede

estadual de educação paranaense; lotação: Colégio Estadual Arnaldo Busato – EFMNP, Coronel Vivida – PR. 2

Dr. em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; professor do Departamento de Matemática da UNICENTRO, Guarapuava – PR.

move a aprendizagem e o que promove o acúmulo de informações. O estabeleci-

mento de relações, a leitura e escrita de textos, o confronto entre suposições e da-

dos obtidos durante a investigação e o diálogo são procedimentos fundamentais pa-

ra a aprendizagem, em contraposição ao ensino de algoritmos e “decorebas”. É na

Etnomatemática que encontramos o resgate dessa aprendizagem significativa, por

meio de uma matemática bastante utilitária, prática e de fácil compreensão.

Para que a Matemática não pareça uma disciplina complexa e elitista, onde

poucos adquirem uma aprendizagem realmente significativa, faz-se necessário en-

tão, nós educadores, aproximar a disciplina do que é espontâneo, de despertar o

gosto no educando em trabalhá-la, de levar em consideração os fatos e conheci-

mentos que fazem parte do ambiente sócio cultural em que cada um vive, valorizan-

do o conhecimento que o aluno traz de casa e ajustando esse ao conhecimento for-

mal que a ele é repassado.

Baseando-se na observação de diferentes grupos de trabalhadores no tan-

gente à solução de problemas em seu cotidiano sem o uso de fórmulas matemáticas

e no fato de que alguns deles alcançam seus objetivos de forma eficaz, outros nem

tanto, como traçar um comparativo ou mesmo modificações em concepções táci-

tas/empíricas sobre o significado real do cálculo de áreas em terrenos com lados

irregulares e contorno do ferro em rodas de carroças, levando grupos de trabalhado-

res ao conhecimento matemático aprendido nas escolas? Como despertar o gosto e

interesse pelo saber, repassando informações de maneira que o aluno seja o princi-

pal agente transformador desta conjuntura?

Para responder esses questionamentos, fez-se necessário a realização de

pesquisas e estudos detalhados do assunto, objetivando despertar no educando o

gosto, o interesse pela matemática por meio da etnomatemática, desenvolvendo

pesquisas e investigações, visitas de estudos, observações, pesquisas de campo,

comparações e trocas de experiências na resolução de problemas referentes às prá-

ticas matemáticas realizadas por diferentes grupos de trabalhadores e as práticas

aprendidas na escola, assim como traçar comparativos entre o conhecimento táci-

to/empírico do formal, resgatando conhecimentos matemáticos do seu meio ambien-

te.

É muito comum nos depararmos com educandos tentando ajudar familiares

na resolução de problemas referentes ao cálculo de áreas. Na maioria dos casos,

existem mais de um tipo de resolução para o problema, com resultados diferentes e

acabam chegando a um consenso, optando por um dos resultados obtidos.

À medida que nos aproximamos e acompanhamos estes trabalhadores

agrícolas, observamos que estranhamente não conseguimos ficar imparciais aos

seus métodos de resolução de problemas. A curiosidade é aguçada à medida que a

discussão é feita em torno dos cálculos. Cada grupo de trabalhadores tem seu “jeito”

de resolver o problema.

Como observamos, também, o método do ferreiro ao contornar o ferro nas

rodas das carroças, é muito diferente do(s) aprendido(s) na educação escolar. Mas a

etnomatemática não vem para exigir, obrigar que esses trabalhadores “larguem”

seus métodos de resolução e aprendam utilizar as fórmulas aprendidas na escola.

Isto pode vir até a acontecer, mas de uma forma muito natural e desde que se

observe o desejo deste trabalhador em aprender esse conhecimento formal explícito

fornecido pela educação escolar. Aí sim, eles poderão confrontar e utilizar do

método que lhe parecer mais adequado.

A forma de construir matemática por diferentes grupos sociais leva a perce-

ber que o caminho através de diferentes algoritmos é visível, mas os problemas po-

dem levar a mais de um resultado e podemos cair em casos onde encontramos re-

sultados inexatos. Com esta forma de percepção, os etnomatemáticos precisam ir

ao trabalho de campo, fazer pesquisas de caráter etnográfico. Ao analisar os dados

obtidos na pesquisa percebem que a área da história da matemática ainda está para

ser construída. Uma história voltada na produção matemática de todos aqueles que

produzem sem etnocentrismo e aberta ao diálogo, ao novo, às diferenças.

Como o avanço tecnológico nos coloca em uma nova era, tende-se a valori-

zar o conhecimento formal, deixando-se de lado o conhecimento que o educando

traz de casa. É importante e necessário explorar a diversidade cultural de nosso pa-

ís, principalmente de grupos que se identificam, estimulando observação de padrões

e regularidades, a discussão de similitudes e diferenças, confrontos de conhecimen-

tos descrevendo e entendendo o que se vê. Desta forma, aos educandos foi propor-

cionado uma aprendizagem realmente significativa de uma matemática viva e utilitá-

ria, assim como também foi observada a admiração e interesse dos profissionais

envolvidos no projeto, em comparar os seus métodos com os desenvolvidos na es-

cola, atingindo-se sobremaneira os objetivos propostos na implementação deste pro-

jeto.

Partindo-se do desejo de reconhecer e aceitar essa pluralidade cultural,

dando a esses diferentes grupos culturais o direito de manejar, de forma autônoma

os recursos de sua cultura, decidindo seu futuro, segundo projetos que partam de

seus interesses e aspirações, a implementação deste projeto, oportunizou aos edu-

candos a vivência dos conteúdos matemáticos fora do contexto escolar despertando,

inclusive, o interesse e o gosto também pelo conhecimento formal, ao se traçar

comparativos nos métodos diferentes na resolução dos problemas surgidos nas visi-

tas de estudos.

2 Fundamentação teórica

As origens da Geometria (do grego medir a terra) parecem coincidir com as

necessidades do dia-a-dia. Partilhar terras férteis às margens dos rios, construir ca-

sas, observar e prever os movimentos dos astros são algumas das muitas atividades

humanas que sempre dependeram de operações geométricas.

Em Heródoto, historiador do século V a. C., encontra-se relatos que expli-

cam como eram divididas as terras para tributação no Antigo Egito. As civilizações

de beira-rio (Nilo, Tigre, Eufrates, Ganges, e outros) desenvolveram uma habilidade

em engenharia, na drenagem de pântanos, na irrigação, na defesa contra inunda-

ção, na construção de templos e também de edifícios. Era uma geometria prática,

em que o conhecimento matemático tinha uma função meramente utilitária. Quer

dizer, que a Matemática era vista pelos gregos, dos anos 500 a. C. até 300 d. C.,

através da Geometria.

Evidência deste fato está, por exemplo, na afirmação referente à Pirâmide

de Quéops: “Os antigos egípcios nivelaram sua base de cerca de 52 quilômetros

quadrados, com tanta maestria que o ângulo sudeste é apenas um centímetro mais

alto que o ângulo noroeste.” (STRICKLAND; BOSWELL, 1999, p.4-10).

Os cientistas, questionadores, arqueólogos e arquitetos se impressionam

com o alto grau de precisão com que as pirâmides foram construídas. Isto faz supor

que os egípcios possuíam profundos conhecimentos matemáticos dentro de cálculo

de áreas. Diversos documentos mostram que eles usavam uma corda, na qual da-

vam nós a intervalos de igual distância, formando com ela um triângulo. A Etnoma-

temática já se fazia presente. Era assim o esquadro dos arquitetos egípcios: uma

simples corda com 12 espaços iguais entre os nós.

Hoje, tende-se a olhar este método como muito antiquado e já ultrapassado,

mas na verdade não o é; por incrível que pareça, vários pequenos agricultores utili-

zam métodos parecidos para o desenvolvimento de diversas atividades em suas ter-

ras. Na era do conhecimento em que vivemos atualmente, o mais lógico seria aban-

donar a ideia de utilizar-se do conhecimento matemático prático e utilizar-se somen-

te de fórmulas eficazes, para agregar valores a produtos básicos.

A etnomatemática é hoje considerada uma subárea da História da Matemáti-

ca e da Educação Matemática, com uma relação muito natural com a Antropologia e

as Ciências da Cognição. É evidente a dimensão política da Etnomatemática. Se-

gundo Ubiratan D’Ambrósio:

Etnomatemática é a matemática praticada por grupos culturais, tais como comunidades urbanas e rurais, grupos de trabalhadores, classes profissio-nais, crianças de uma certa faixa etária, sociedades indígenas, e tantos ou-tros grupos que se identificam por objetivos e tradições comuns aos grupos (D’AMBRÓSIO, 2007, p. 9).

Baseando-se na afirmação de D’Ambrósio em relação à Matemática, o ideal

é buscar entendê-la enquanto uma das manifestações simbólicas de um determina-

do grupo social, relacionada com sua posição de dominação no espaço social no

qual está inserido e não se tratar de pensá-la de forma abstrata, imune às lutas do

campo simbólico que buscam a manutenção ou ascensão nas posições do espaço

social onde ela é produzida e reproduzida.

Na realidade, a etnomatemática existiu antes mesmo das pirâmides do Egi-

to; desde o início dos tempos, civilizações primitivas já trabalhavam com Etnomate-

mática, em seus sistemas de caça, pesca, comunicação, etc. Com o surgimento da

agricultura, as primeiras sociedades organizadas começavam a ser identificadas. A

geometria e os calendários são exemplos de uma Etnomatemática associada ao sis-

tema de produção, resposta à necessidade das sociedades organizadas de alimen-

tar o povo.

Conhecimentos e comportamentos são compartilhados e compatibilizados,

possibilitando a continuidade dessas sociedades. Esses conhecimentos e compor-

tamentos são registrados, oral ou graficamente, e difundidos e passados de geração

para geração. Nasce, assim, a história de grupos, de famílias, de tribos, de comuni-

dades, de nações. Segundo Ubiratan D’Ambrósio:

Gosto de me referir à Etnomatemática como um programa. Efetivamente, não é uma disciplina nova, pois nasce de um inconformismo com a frag-mentação do conhecimento em Artes, Religião, Filosofia, Ciências. E cada um desses setores em várias áreas [...] O que eu chamo de Programa Et-nomatemática é um programa de pesquisa no sentido lakatosiano que vem crescendo em repercussão e vem se mostrando uma alternativa válida para um programa de ação pedagógica. Etnomatemática propõe um enfoque e-pistemológico alternativo associado a uma historiografia mais ampla. Parte da realidade e chega, de maneira natural e através de um enfoque cognitivo com forte fundamentação cultural, à ação pedagógica. (D’AMBRÓSIO, 2002, p.7)

Esse programa, baseando-se em D’Ambrósio, busca uma melhor compre-

ensão da história do conhecimento científico e do processo de desenvolvimento dos

países periféricos que passaram pelo processo de conquista, colonização e, agora,

subordinação neo-colonialista. Esse processo enfatiza ciência e tecnologia procu-

rando entender comparativamente, nos países da chamada periferia e nos países

centrais, industrializados, os objetivos da educação matemática, levando à proposta

crítica que é em essência o Programa Etnomatemática.

Neste sentido, o Programa Etnomatemática conduz como a Figura 1, a se-

guir, esquematizada por Ubiratan D’Ambrósio, a uma revisão crítica de teorias cor-

rentes de cognição, epistemologia, história e política.

Figura 1 - Esquema indicando uma revisão crítica do Programa Etnomatemática

Fonte: D’Ambrósio, 2002, p.11 – adaptada.

Na verdade a Etnomatemática procura a reincorporação da História da Ma-

temática e da Filosofia da Matemática à História e à Filosofia. Não há como fragmen-

tar a história como tampouco a filosofia e muito menos a Matemática, que tem sua

razão de ser na busca de explicações e compreensões de maneiras e modos de li-

dar com a realidade, que é necessariamente uma totalidade.

Referente à disciplina de Matemática é importante que dois caminhos impul-

sionem o trabalho em sala de aula: as aplicações no cotidiano e as aplicações e a-

vanços na própria ciência Matemática. Nesta nova era, onde o avanço tecnológico

cada vez é mais abrangente, tende-se a valorizar-se muito o conhecimento formal.

Faz-se necessário explorar a diversidade cultural de nosso país, principalmente de

grupos que se identificam, estimulando observação de padrões e regularidades, a

discussão de similitudes e diferenças, confrontos de conhecimentos descrevendo e

entendendo o que se vê. Isto sim leva os educandos a uma aprendizagem realmente

significativa.

Sob o ponto de vista de Pedro Paulo Scandiuzzi, “A educação etnomatemá-

tica está atenta às mudanças do tempo e pode optar pela educação onde cada sujei-

to é visto na sua identidade e na sua integridade.” (1998, p. 02).

O autor defende o fato de que ao se reverenciar a solidariedade e a coope-

ração pode-se ganhar significados vitais se a pessoa que exerce o papel de profis-

sional em educação assim o desejar. Pensar nos conteúdos de Matemática utiliza-

dos na sala de aula é também pensar na sua compreensão e serventia. Grupos de

profissionais diversos praticam sua etnomatemática.

Esta nova linha de pesquisas começa a fortificar no momento que educado-

res compreendem inclusive o significado da própria palavra: tica, como a arte ou

técnica de construir os matemas. Matema é a forma de compreender, relacionar

classificar, medir... de cada etno. Etno é todo e qualquer grupo com um ou mais e-

lementos, que se encontra para resolver os problemas que o cotidiano apresenta. A

etnomatemática ganhou espaço e adeptos no mundo inteiro, entretanto, o novo e

diferente trazem alguns obstáculos. O primeiro e o mais difícil a ser superado é a

compreensão da palavra etnomatemática, pois apesar de se dizer que todos os po-

vos produzem matemática, que em todas as situações existe Matemática, quando se

apresenta a etimologia da palavra, existe surpresa, onde a maioria pensa em Mate-

mática como disciplina dos números e fórmulas. Então, para a compreensão do pre-

fixo etno, a dúvida parece ser a do entendimento de produções de matemáticas dife-

rentes. Por exemplo: para grupos de matemáticos, o cotidiano apresenta um tipo de

problema ao passo que para um grupo de pedreiros outro tipo de problema é apre-

sentado pelo dia-a-dia. As resoluções nem sempre são as mesmas, por isso os et-

nomatemáticos acreditam que existem mais de uma Matemática. A forma de cons-

truir Matemática por diferentes grupos sociais leva a perceber que o caminho atra-

vés de diferentes algoritmos é visível, mas os problemas podem levar a mais de um

resultado e podemos cair em casos onde encontramos resultados inexatos. Com

esta forma de ver, os etnomatemáticos precisam ir ao trabalho de campo, fazer pes-

quisas de caráter etnográfico. Ao analisar os dados obtidos na pesquisa percebem

que a área da história da matemática ainda está para ser construída. Uma história

voltada na produção matemática de todos aqueles que produzem, sem etnocentris-

mo e aberto ao diálogo, ao novo, às diferenças. Acreditar na alteridade e identidade

de cada sujeito, conforme afirma Atlan, em entrevista a Pessis-Pasternak: “Há uma

grande diferença entre afirmar que existe uma realidade e conhecê-la [...]. A realida-

de é algo a interpretar, ela é feita daquilo que se pode chamar interpretando” (1993,

p. 66).

À medida que se vai descobrindo os processos educacionais de diferentes

grupos sociais e etnias, percebe-se que mais do que ensinar, os matemáticos muito

têm a aprender, construindo a verdadeira história da Matemática, sem desejo do po-

der do saber em qualquer instância social. D’Ambrósio, afirma: “Como o colonizador

dominou o colonizado? Impondo uma nova língua, uma nova religião, uma nova ma-

temática... Nenhum professor pode agir como colonizador.” (D’AMBRÓSIO, 2002,

p.24).

Baseando-se em Ubiratan D’Ambrósio, há inúmeros trabalhos sobre a Et-

nomatemática do cotidiano. É uma Etnomatemática não aprendida nas escolas, mas

no ambiente familiar, no ambiente de brinquedos e de trabalho, recebida de amigos

e colegas. Mas, como se dá esse aprendizado? Constatamos então, alguns exem-

plos da etnomatemática:

- na maneira como as crianças se organizam para construir um campo de

futebol, obedecendo, em escala, as dimensões oficiais: são crianças que

não possuem maturidade matemática suficiente para desenvolver cálcu-

los matemáticos precisos através de fórmulas matemáticas, mas se as

observarmos idealizando e delimitando terreno na construção do campo,

vamos sentir que a etnomatemática desenvolvida por elas é prática e

funcional. Se questionarmos sua construção, com certeza saberão expli-

car perfeitamente cada traço ali feito bem como seu motivo;

- o cotidiano das compras revela práticas aprendidas fora do ambiente es-

colar: uma verdadeira etnomatemática do comércio. Utilizam uma visão

crítica da realidade, utilizando instrumentos de natureza matemática. A-

nálise comparativa de preços, de contas e de orçamentos. É muito inte-

ressante observar como tudo funciona perfeitamente no comércio. Nas

práticas matemáticas de feirantes, por exemplo: adquire-se uma prática

aritmética muito sofisticada para lidar com dinheiro, fazer troco, ser capaz

de oferecer desconto sem levar prejuízo. Observa-se que o feirante não

aplica a fórmula matemática do desconto “por dentro” ou “por fora” como

é ensinada e exigida na escola. Primeiro porque a maioria desses profis-

sionais não tem o conhecimento matemático para a execução destes cál-

culos, como também pelo fato de que roubaria tempo dispendioso do fre-

guês na hora da compra. É muito interessante passar algumas horas na

feira e observar essa prática matemática. Entrevistar esses feirantes a

respeito desta matemática prática e funcional. De onde eles adquiriam tal

habilidade, até que série escolar eles estudaram, como era no início de

suas vendas, qual é o método que utilizam para dar o desconto. Quer di-

zer: transformarmo-nos em espectadores, aprendizes dessa matemática

não aprendida na escola, desta metodologia tão diferente, sem uso de

fórmulas e ao mesmo tempo práticas eficazes. Deixar o feirante explicar

em detalhes a sua etnomatemática. E só então, traçar um comparativo

desses cálculos, se houver interesse por parte do feirante em vivenciar

esta troca de experiências. Uma vez despertado o interesse neste profis-

sional em conhecer os cálculos trabalhados dentro do contexto escolar, é

a vez dos educandos demonstrarem seus conhecimentos aprendidos na

escola e juntos, traçarem um comparativo sobre o melhor método de re-

solução desses problemas;

- a matemática praticada pelos bicheiros para organizar um esquema de

apostas atrativo e compensador: uma verdadeira etnomatematica dos

números. A maneira como dispõem em esquemas e tabelas as várias

possibilidades de jogos, sem perder o raciocínio lógico e funcional para

cada aposta. Estes profissionais não se utilizam da análise combinatória

para organizar esses jogos. Simplesmente, de uma prática matemática

aprendida na necessidade da vida;

- alguns madeireiros, ao cubarem toras de madeiras, desenvolvem uma

fórmula diferente, adaptada, entre eles, sem necessidade de medir o di-

âmetro delas. Outros se utilizam de tabelas prontas. E segundo eles, tu-

do dá certo. Se visitarmos diferentes serrarias, identificaremos diferentes

maneiras de cubagem da madeira. É de grande importância possibilitar

aos educandos meios para que entrem em contato com estes diferentes

métodos, principalmente, com aqueles mais usados cotidianamente,

constatando a realidade, serve a eles de motivação inclusive para os es-

tudos dos métodos matemáticos formais. A sugestão de trabalho aqui se-

ria visitar diferentes serrarias do município para analisar os seus métodos

de cubagem da madeira, constatando as diferentes metodologias para a

cubagem, de uma serraria à outra, aprendendo com os funcionários to-

dos os cálculos realizados. Em seguida, comparar e desenvolver em sa-

la, cálculos de cubagem da madeira, utilizando-se das mesmas medidas

observadas nas serrarias, aplicando as fórmulas matemáticas;

- a matemática praticada pelo ferreiro ao contornar o ferro na roda da car-

roça é um tanto curiosa. Para conhecer e vivenciar a matemática utiliza-

da pelo ferreiro, ao contornar essa roda, fez-se necessário conhecer um

pouco mais sobre o objeto do estudo que é a roda. Saber que para

muitos cientistas, a roda é o maior invento de todos os tempos. Acredita-

se que seus inventores foram os povos que habitavam a antiga

Mesopotâmia, atual Iraque, acerca de 5.500 anos atrás. A roda é uma

das seis máquinas simples com vastas aplicações no transporte e em

máquinas, caracterizada rotativo no seu interior. Foi originada do rolo (um

tronco de árvore). Mais tarde, este rolo se transformou em disco. A

evolução das rodas dos automóveis se originou diretamente das rodas

das antigas carruagens puxadas por cavalos, às quais eram, a princípio,

idênticas. A roda é também o princípio básico de todos os dispositivos

mecânicos. Então, quem nunca sentiu curiosidade em observar a perfei-

ção do ferreiro ao contornar o ferro na roda da carroça? Sua prática le-

va-o a diminuir 15 mm do comprimento da circunferência, após utilizar

uma carretilha de ferro (estas que servem para fazer pastel) para medi-la,

garantindo firmeza e segurança ao rodar, onde o conhecimento formal

não seria suficiente para garantir a qualidade desta roda: uma verdadeira

etnomatemática!

- agricultores, ao empreitarem roçadas, colheitas, plantios, utilizam conhe-

cimentos aprendidos entre eles, o conhecimento tácito/empírico no cálcu-

lo dessas áreas. Uma verdadeira etnomatemática agrícola, a qual já se

fazia presente há muito tempo atrás, como por exemplo, na vida dos e-

gípcios, os “escribas”, medidores de terra, contratados pelo governo, já a

utilizavam nas famosas medições de terra após as cheias do rio Nilo.

A necessidade de medir os campos no Egito é relatada por Heródoto, filóso-

fo grego do século V a. C.; segundo ele, sempre que o Nilo inundava era necessário

determinar a quantidade de terra que os agricultores perdiam, uma vez que deveri-

am pagar uma taxa ao Rei Sesostris III (nos anos de 1872-1853 a. C.), que deveria

ser proporcional à taxa imposta antes da inundação das terras.

Quando o Nilo transborda, cobre o Delta e as terras chamadas Líbia e Ará-bia, numa distância de uma viagem de dois dias desde as duas margens,..., não consegui saber nada da sua natureza, nem dos sacerdotes, nem de qualquer pessoa. Tinha curiosidade em saber por que é que o rio transbor-da durante cem dias desde o solstício de Verão,..., e o rio está baixo duran-te todo o Inverno até transbordar de novo no solstício de Verão. (...) por esta razão o Egito foi dividido. Disseram-me que este rei (Sesóstris) repartiu todo o país entre os egípcios, dando a cada um uma porção igual de terra, e fez sua fonte de rendimento, avaliando o pagamento de um tributo anual. E se qualquer homem que fosse roubado pelo Nilo de uma porção de suas terras podia dirigir-se a Sesóstris e expor a ocorrência, então o rei enviaria um homem para verificar e calcular e parte pela qual a terra tinha sido reduzida, de tal forma que a partir dessa altura ele deveria pagar proporcionalmente ao tributo imposto originalmente. Esta foi a forma como, na minha opinião, os Gregos aprenderam a arte de medir a terra; os relógios de sol, os gno-mos e as doze divisões do dia, vêem para a Grécia da Babilônia e não do Egito (HERÓDOTO, II, 109).

Embora Heródoto tenha relatado esta história mais de 1000 anos após Se-

sóstris ter vivido, parece não haver dúvidas de que os antigos egípcios coletavam

taxas, ou pelo menos impostos. Esse parecia ser um dos deveres dos escribas e-

gípcios de acordo com o texto de cerca de 1250 a.C. “A Educação de Amenemope”.

Os escribas tinham como funções registrar as fronteiras das terras, os im-

postos, as terras, e ao medi-las deveriam ser cuidadosos ao utilizar a corda. Esta

medição deveria ter como objetivo determinar a área do terreno, tal como relata o

seguinte excerto:

Que registras as marcas das fronteiras dos terrenos. Que fazes, para o rei, a sua listagem de taxas. Que registras as terras do Egito O escriba que determina as oferendas para todos os deuses. Que dás a escritura das terras ao povo O fiscal de cereais, provedor da comida. Que forneces os celeiros, de cereais... Não movas as marcas das fronteiras dos terrenos. Nem movas a posição da corda de medir. Não sejas mesquinho no cúbito de terra. Nem invadas as fronteiras da janela (LICHTHEIM, 1976, p.448).

Para medir os terrenos os escribas utilizavam uma corda com nós. Há várias

representações de harpedonaptae (esticadores de cordas), tal como, Demócrito3

(cerca de 410 a. C.) os denominava, em túmulos egípcios. Por exemplo, no túmulo

de Menna, escriba que terá vivido, provavelmente no século XIV a. C., encontra-se

uma pintura dos esticadores de cordas, outra pintura com esticadores de cordas en-

contra-se no túmulo do escriba Djeserkareseneb, também da mesma época.

Os nós poderiam servir como subdivisões e as cordas mediam, provavel-

mente, um cúbito real4. Há evidências de que os egípcios sabiam calcular, pelo me-

nos aproximadamente, a área das terras. Nos papiros egípcios, mais antigos, com

conteúdos matemáticos, o papiro de Rhind, de Moscovo, e de Lahun, do 2º milênio

a.C., contém problemas referentes a áreas de terrenos, envolvendo triângulos, re-

tângulos e outros quadriláteros.

Os egípcios utilizavam métodos aproximados de cálculo das áreas dos ter-

renos, provavelmente, porque seria extraordinariamente difícil determinar com preci-

são a sua área, o que envolveria em alguns casos a divisão do terreno em retângu-

los e triângulos o que não seria praticável. Alguns autores são da opinião de que os

egípcios conheciam a regra para o cálculo da área de triângulos, mas que a dificul-

dade de, no terreno, determinarem a sua altura relativamente a uma base os levava

a utilizar, apenas, uma estratégia aproximada para o seu cálculo. Na Grécia e Roma,

Heron de Alexandria (10 - 75 d.C.), resolveu o problema da determinação da altura

de um triângulo encontrando um processo para determinar a sua área, qualquer que

sejam a medida dos seus lados.

3

Demócrito, citado por Clement de Alexandria (c. 215), terá afirmado: “Na construção de linhas, com demonstrações, ainda ninguém me surpreendeu, nem mesmo os Harpedonatae do Egito”. 4 Provavelmente as cordas tinham 100 cúbitos de comprimento. O cúbito variava entre 52,3 to 52,9

cm.

Heron5 escreveu:

Há um método geral para encontrar, sem desenhar qualquer perpendicular, a área de um triângulo, cujos lados são conhecidos. Por exemplo, sejam os lados do triângulo7, 8 e 9. Junte os três lados; o resultado é 24. Tome me-tade disto, que dá 12. Tire 7; a diferença é 5. De novo, de 12 tire 8; a dife-rença é 4. E ainda 9; a diferença é 3. Multiplique 12 por 5; o resultado é 60. Multiplique isto por 4; o resultado é 240. Multiplique isto por 3; o resultado é 720. Tome a raiz quadrada deste número e terá a área do triângulo...

Em termos da linguagem matemática atual, a estratégia de Heron corres-

ponde à área de um triângulo de lados a, b e c e de semi-perímetro p, expressa por

))()(( cpbpappA

Embora a fórmula de Heron permita, de forma correta, determinar a área de

qualquer triângulo, sem ser necessário recorrer à sua altura, que em termos práticos

pode ser uma tarefa difícil, ela não parece ter se generalizado, e raramente é, hoje

em dia, utilizada.

E, para uma área exata de qualquer quadrilátero Brahmagupta fornece tam-

bém a Fórmula de Heron, dada em notação matemática atual, válida para qualquer

quadrilátero cíclico, ou seja, que se pode inscrever numa circunferência, de lados

a, b, c, e d e cujo semi-perímetro é p. Então ))()()(( dpcpbpapA

,

conforme a Figura 2:

Figura 2 - Quadrilátero cíclico Fonte: Autoria

5 Heron de Alexandria, matemático do século I d.C. geômetra e engenheiro grego, escreveu sobre

temas relacionados com geometria e mecânica. Em sua obra Métrica demonstrou geometricamente a fórmula da área do triângulo conhecida como Fórmula de Heron, que, segundo ele próprio, fora des-crita por Arquimedes de Siracusa, aproximadamente 300 anos antes. Resolveu o problema da deter-minação da altura de um triângulo encontrando um processo para determinar a sua área qualquer que sejam a medida dos seus lados (STRUIK, 1967).

Porém, para calcular-se a distância AC deste quadrilátero, marca-se em

qualquer dos quatro cantos, 1m cada lado formando então um ângulo, em seguida

medindo-se a distância entre essas duas marcas, obtêm-se o valor deste ângulo.

Utilizar-se de um teodolito para a conferência do cálculo desse ângulo é de funda-

mental importância, como excelente recurso pedagógico, chegando-se então, a me-

dida do segmento AC, através da lei dos cossenos: em um triângulo qualquer ABC

de lados BC, AC e AB que medem respectivamente a, b e c e com ângulos internos

, e valem as relações:

Uma vez calculado o segmento AC, então é só calcular a área

dos dois triângulos formados, através da fórmula de Heron e somá-las.

Uma vez conhecido, comparado e analisado os métodos de resolução, é

necessário o entendimento de todos que a etnomatemática está aí para ser vivenci-

ada, por meio das diversas matemáticas também chamadas de adjetivações (mate-

mática de rua, matemática agrícola, matemática de profissionais, matemática aca-

dêmica, matemática da vida, matemática popular, etc.) onde inevitavelmente consta-

tamos jogos de linguagem. E é dentro dos jogos de linguagem que as palavras ad-

quirem significados, quando se opera com elas numa determinada situação e não

quando simplesmente são relacionadas às imagens feitas delas.

Baseando-se na Teoria da Prática de Bourdieu, (História, Filosofia e Educa-

ção Matemática, 2009, p. 98,) as adjetivações (matemática de rua, matemática de

profissionais, matemática agrícola, matemática popular, matemática acadêmica, etc.)

evidenciam o conhecimento público de que há produção de conhecimentos matemá-

ticos por outros agentes que não os matemáticos. As regras na matemática escolar

geralmente são pautadas numa lógica de regras fixas da lógica clássica, cuja pre-

sença nas adjetivações é bastante alterada, pois é orientada por outros valores e

regras.

A etnomatemática vem para valorizar estes trabalhadores que lidam cons-

tantemente com uma matemática prática e cultural. E a escola, para aprender seus

métodos tácitos/empíricos, através de um verdadeiro resgate cultural.

As atividades desenvolvidas com os educandos nessa classe de trabalhado-

res agrícolas foram os cálculos de áreas apresentados por eles mesmos e seus fa-

miliares, em situações reais. Não com intenção de obrigar esses grupos profissio-

nais a desenvolver o conhecimento formal explícito vivenciado dentro da escola,

mas levando a escola a conhecer essas matemáticas vivenciadas na prática desses

diferentes grupos culturais.

Segundo as Diretrizes Curriculares da Educação Básica, o papel da etnoma-

temática é reconhecer e registrar questões de relevância social que produzem o co-

nhecimento matemático. Essa metodologia é uma importante fonte de investigação

da educação matemática por meio de um ensino que valoriza a história dos estudan-

tes pelo reconhecimento e respeito a suas raízes culturais: “reconhecer e respeitar

as raízes de um indivíduo não significa ignorar e rejeitar as raízes do outro, mas,

num processo de síntese, reforçar suas próprias raízes.” (D’AMBRÓSIO, 2001, p.

42).

3 Método

No primeiro momento deste trabalho, foi realizada a apresentação do Proje-

to PDE por parte da professora, onde a receptividade do mesmo perante a turma foi

muito boa. A motivação ao tema etnomatemática ocorreu através da apresentação

de alguns vídeos: “A matemática na vida e a vida na matemática”, “Matemática sem

mistérios” e “Show de matemática” havendo reflexões do assunto abordado nos ví-

deos. Os educandos foram separados em equipes para o desenvolvimento de pes-

quisas envolvendo os seguintes assuntos: etnomatemática, visão histórica da roda,

visão histórica do cálculo de área, contorno da circunferência, cálculo de áreas de

triângulos, cálculo de áreas de quadrilátero e biografia de Heron. Para o desenvol-

vimento destas pesquisas os educandos vieram em contra turno, disponibilizando-se

do espaço físico da escola, como biblioteca e o laboratório de informática. A apre-

sentação das pesquisas desenvolvidas foi realizada na sala, onde cada equipe a-

presentou seu assunto aos colegas. Todos participaram ativamente das apresenta-

ções, através de questionamentos e desenvolvimento de atividades. Na sequência,

foi realizada a preparação para a visita ao ferreiro, onde os educandos elaboraram

as questões da entrevista sob orientação da professora, os quais demonstraram

muito interesse em colaborar na construção das questões. Por sugestão dos pró-

prios educandos, organizaram-se dois a dois para realizar a pergunta e anotar a

resposta fornecida pelo ferreiro. Um dos educados ficou encarregado da apresenta-

ção no local da visita e outro do agradecimento, ficando então todos os alunos com

responsabilidades durante a visita.

Na visita ao ferreiro, foi realizada a observação do espaço físico, materiais

utilizados, entrevista, fotografias e filmagem. Durante a entrevista, o ferreiro explicou

todos os passos de seu procedimento para contornar o ferro na roda da carroça.

Que sua prática, após contornar a roda de madeira com uma carretilha de ferro, con-

tando as voltas, faz com que deixe três vezes a mais a medida da espessura do fer-

ro, para depois de aquecer o ferro, cortar apenas o excesso, que sempre é menos

do que deixou. Os educandos ficaram atentos a cada explicação e movimento do

ferreiro. O ferreiro fez a simulação com uma roda pequena, aquecendo esse ferro no

carvão, encaixou-o na roda de madeira e em seguida resfriou-a na água. Deixou es-

friar bem e então, pediu para que os alunos experimentassem desencaixar o ferro.

Os educandos ficaram atentos e interessados até o final da visita, interagin-

do sempre com perguntas e observações. Ao final da visita, os educandos mostra-

ram ao ferreiro seus métodos de cálculo para a medida do contorno da circunferên-

cia. Nesta troca de conhecimentos, observaram que o ferreiro, apesar de não co-

nhecer a fórmula e não trabalhar com ela, já tinha ouvido falar do PI, pois falou que

“aquele jeito de fazer com o PI, pode até dar certo, mas tem que contar com a es-

pessura do ferro, senão, de nada adianta a fórmula”, mas que prefere utilizar sua

carretilha de ferro para calcular as voltas na roda de madeira. Explicou aos educan-

dos que na prática, a utilização da fórmula dificultaria seu trabalho, pois sabe que

precisa o valor do raio e para tirar a medida do raio, com a roda pronta se torna difí-

cil. Mostrou que com a fita métrica também não é viável. Tanto a fórmula como a fita

métrica não dá certo, pois não contam com a espessura do ferro, prefere então, sua

carretilha. Os educandos desenvolveram um trabalho de medidas aproximadas dos

diâmetros das rodas prontas na ferraria, de diversos tamanhos para resolvermos

como atividades na sala de aula. Foi realizado o agradecimento ao ferreiro e encer-

rada a visita de estudos.

Em sala de aula, foram realizadas reflexões, traçando-se comparativos dos

métodos utilizados: o do ferreiro e o nosso da escola. Nas reflexões, através das

explicações do ferreiro, os alunos concluíram que o uso da fórmula sem a prática

não daria certo, pois ao contornar a roda, a espessura do ferro forma dois contornos

na roda: o de dentro e o de fora, faltando ferro para finalizar este contorno. É sua

prática que o leva à medida exata para o aperfeiçoamento da roda. Concluíram que

para a atividade deste profissional é mais prático sua metodologia do que a da esco-

la. Após estas análises, os educandos realizaram atividades diversas referentes ao

assunto, com as medidas das rodas encontradas lá.

Durante as apresentações das pesquisas, realizadas no início da implemen-

tação, os educandos revisaram o cálculo do contorno da circunferência, o cálculo de

área do triângulo retângulo, isósceles e equilátero, o cálculo de área do quadrado,

retângulo, paralelogramo, losango e trapézio, mas, para a visita ao agricultor rural,

fez-se necessário reforçar esses conteúdos através de exercícios em anexo, para

que observassem que em um triângulo com três lados irregulares as fórmulas usuais

não possibilitam calcular a altura deste tipo de triângulo. Através de uma área com

lados 8m, 12m e 5m, já preparada para o plantio, da propriedade de um educando

desta turma, filho de agricultor, os educandos, conheceram então a fórmula de He-

ron e os métodos formais de cálculos para a resolução deste problema.

Foi, então, novamente preparada a visita à propriedade de um pai agricultor,

através da elaboração da entrevista, pelos próprios educandos. Durante a visita a

esse trabalhador agrícola, ele mostrou para a escola a área triangular já preparada

para o plantio e como utiliza a matemática em seus trabalhos na resolução de pro-

blemas. No tocante ao cálculo de área, os educandos foram orientados a ouvir, ti-

rando suas dúvidas, deixando completamente a vontade nosso professor etnomate-

mático para ensinar como faz o “areamento da terra”, como ele denomina. Após a

resolução do cálculo de área desta terra, os educandos foram realizando a entrevis-

ta, com perguntas como: “quanto tempo está nesta profissão?”, “com quem apren-

deu calcular área dos terrenos?”, “passou para alguém seu método?”, etc., até per-

guntarem a ele se estaria disposto a ver o cálculo desta mesma área resolvida pelo

método da escola. O agricultor prontamente falou que sim. Um dos educandos foi ao

quadro ali organizado para a aula em campo, e foi realizando os cálculos. Era im-

pressionante ver o semblante deste pai agricultor ao constatar a diferença dos cálcu-

los e do resultado da mesma área de terra. Os educandos mostraram também a re-

solução desta mesma área, resolvida por outro pai agricultor onde o cálculo e a res-

posta era diferente das duas já vistas. O agricultor, então perguntou se o método

dele era errado, se essa área que ele calcula não existe (pois com o cálculo da es-

cola se constata uma diferença significativa a menos do que o cálculo realizado por

eles). Um dos educandos, preparados para este possível questionamento, respon-

deu que a terra calculada por ele é irreal, mas não é considerada errada, pois muitos

agricultores receberam culturalmente estes ensinamentos, como no caso dele, atra-

vés do pai, um conhecimento denominado empírico e muito utilizado entre essa

classe de trabalhadores.

Para minha própria surpresa, os educandos perguntaram primeiro para mim,

depois para o agricultor se poderiam resolver o cálculo de área de uma terra com

quatro lados diferentes, onde estavam preparados, mas que devido ao tempo, horá-

rio de retorno, optamos apenas pela área triangular deste agricultor. Devido a este

fato, o teodolito para a conferência do ângulo não foi levado, argumentando uma das

estudantes que copiariam a medida do caderno e explicariam ao agricultor como era

feito. Como alguns educandos tinham no caderno exemplos de terrenos com quatro

lados irregulares, passaram então, primeiramente para o agricultor realizar o cálculo

e ficaram todos atentos. Dois estudantes realizaram a explicação do método da es-

cola deste mesmo terreno, muito mais trabalhoso do que o anterior. Após comparar

novamente a diferença dos resultados, um dos educandos perguntou: “O senhor u-

saria este método para calcular a área dos terrenos em seu trabalho?” O agricultor

imediatamente respondeu que não. Respondeu com outra pergunta, dirigida a todos

nós: “Quanto tempo vocês estão estudando isso? Pensem bem... Quanto tempo de

estudo precisa para aprender resolver uns negócios desses aí? Eu não entendi na-

da, e fiquei impressionado até de saber que meu filho entende dessas contas com-

pridas. É por demais de difícil. E tem mais, se o colhedor de feijão vier aqui e eu

passar estas contas aí, eles recebem por metro quadrado de área colhida... Aí, pelas

contas de vocês, dá menos terra. Vão dizer que estou roubando eles. Eles precisam

aprender também... Mas que jeito? Não dá, não dá mesmo!”

Essas mesmas áreas de terra, do triângulo e quadrilátero, foram passadas

em sala para mais alguns pais agricultores desenvolverem os cálculos em casa. No

retorno, mais algumas respostas diferentes chegaram. Em sala de aula então, tra-

çamos comparativos entre as diferentes respostas encontradas, observando e en-

tendendo inclusive a maneira com que os familiares desenvolvem o cálculo da área

e como procedem matematicamente a divisão dos lucros e acertos entre eles. As

atividades desenvolvidas com os educandos foram os cálculos de áreas apresenta-

dos por eles mesmos e pelos agricultores, em situações reais.

Para a conclusão deste trabalho com os educandos, fora realizada uma ava-

liação com atividades de cálculos de áreas e comprimento da circunferência apre-

sentados por eles e pelos agricultores em situações reais.

4 Resultados obtidos

Para a efetivação deste trabalho pedagógico, fez-se necessário focar no

conteúdo, através da resolução de exercícios de cálculo de áreas, envolvendo dife-

rentes triângulos e quadriláteros, construindo-se as fórmulas de cálculo de área com

os educandos, até chegar-se ao triângulo com três lados diferentes, para concluírem

a impossibilidade de um método matemático para calcular sua altura, recorrendo

então à fórmula de Heron.

No cálculo de área do quadrilátero irregular, foi necessário o uso de um teo-

dolito para a verificação do valor do ângulo, o qual foi construído por equipes, utili-

zando-se materiais alternativos. As atividades de cálculo de áreas de figuras planas

não estavam programadas, mas foi de extrema importância para consolidar o domí-

nio do conteúdo pelo educando.

Nesta etapa do trabalho, situações problemas envolvendo cálculo de áreas

de triângulos e quadriláteros foram resolvidos por alguns pais de educandos que são

agricultores e guardadas com a professora para serem analisadas após as visitas.

Durante as visitas de estudos, ver o semblante de admiração dos profissio-

nais e dos próprios educandos, na troca de experiências, observando as diferenças

encontradas nos cálculos de áreas em suas terras, e na prática do ferreiro, superou

todas as expectativas dos objetivos propostos neste programa de estudos. O enga-

jamento e interesse destes, nesta troca de informações, foram impressionantes.

Tanto os profissionais, quanto os educandos despertaram por meio da etnomatemá-

tica e para a importância do conhecimento formal.

Em sala de aula, foram apresentadas as resoluções de um mesmo proble-

ma, desenvolvido por diferentes agricultores, cada um com nomenclaturas próprias

como “areamento da terra”, “quadriculação da terra”, “engrandamento de terra” e

“triangulação da terra”, uma reflexão profunda e comparativa foi traçada com base

nestes cálculos de áreas realizados.

Denominando o agricultor que chama de “engrandamento de terra”, de mé-

todo do agricultor 1, (pai de educando envolvido no projeto) onde ele transforma o

terreno triangular em um quadrilátero:

Dada as medidas do terreno:

12m 8m

15m

Divide-se o maior lado: 15/2 = 7,5m2

Em seguida, transforma-se em um quadrilátero:

7,5m

7,5m 8m A = 7,5 + 15 . 7,5 + 8 =

2 2

15m

Método do agricultor 2, (agricultor onde realizamos a visita de estudos)

denominado por ele de “areamento de terra”, para essa mesma área de terra, o mé-

todo de cálculo consiste também em transformar o triângulo em um quadrilátero,

mas de maneira diferente.

15/2 = 7,5 + 12 = 19,5/2 = 9,75

9, 75m

8m 8m 9,75 . 8 =

9,75m

Método do agricultor 3, denominado por ele de “quadriculação da terra”,

onde nessa mesma área, transforma em um quadrado, para depois efetuar o cálculo

de área de um quadrado.

12 + 8 + 15 = 35/4 = 8,75

8,75m

8, 75m 8,75 . 8,75=

87,19m2

78m2

76,56 m2

Aplicando-se o conhecimento formal, para este mesmo cálculo, efetuado

através da fórmula de Heron, na sala de aula, temos:

p = 12 + 8+ 15 p = 17,5m

2

A = 17,5.2,5.9,5.5,5

Encontramos o valor de

O agricultor 3, após observar os cálculos desenvolvidos pela filha, ficou in-

conformado com a diferença tão significativa de terra, disse a ela que sabia uma

maneira de verificar esses resultados e fez o seguinte: quadriculou toda a área com

quadrados de 1cm x 1cm e contou-os, conforme Figura 3.

Figura 3 – Área da terra Fonte: Autoria

Para sua surpresa, aproximou-se muito do resultado encontrado pela fórmu-

la de Heron: 47,81m2. Pediu à filha para ensiná-lo novamente e que ele queria a-

prender a utilizar a fórmula. Este pai possui um grau de instrução mais elevado que

seus outros colegas agricultores. A filha, então levou da sala de aula atividades para

o pai desenvolver.

A 47,81m2

Na discussão, comparação e análise dos resultados em sala, foram registra-

dos relatos significativos dos educandos em relação ao trabalho desenvolvido, co-

mo:

Educando 01: “Esses trabalhadores, na realidade, se viram, utilizando a

matemática, da maneira que eles aprenderam, que lhes convém, pois fazem contas

muito mais fáceis. Mas, me senti muito importante em repassar a eles nosso conhe-

cimento, já que estão muito tempo distantes da sala de aula e principalmente em

aprender com eles essa matemática tão diferente da nossa”.

Educando 02: “Os trabalhadores que visitamos têm seu jeito próprio de tra-

balhar com a matemática, não que estejam errados, apenas é a única aprendizagem

que adquiriram ao longo de suas vidas. Alguns aprenderam com o pai, outros com o

patrão, com o tio, mas muito me chamou a atenção pelas metodologias tão diferen-

tes de se desenvolver os mesmos cálculos”.

Educando 03: “... nem sempre esses cálculos, como no caso do cálculo de

áreas, são corretos, mas de maneira alguma podemos dizer que é errado, pois é um

conhecimento popular, cultural, mas muito diferente do que fazemos na escola. Essa

diferença foi percebida pelo agricultor entrevistado, o qual ficou perplexo, dizendo

que sempre achou que tivesse mais terra do que deu nosso cálculo. Como ele

mesmo disse, é impossível os agricultores aprenderem de uma hora para outra.

Creio que cabe aos professores ensinar os filhos desses agricultores, para quem

sabe, futuramente, eles utilizarem as fórmulas da escola”.

Educando 04: “[...] observei e fiquei impressionada com tantas formas dife-

rentes que agricultores resolvem um mesmo cálculo e isso só me fez ter a certeza

do quanto é importante estudarmos e entendermos as fórmulas matemáticas para

nossa própria segurança”.

Educando 05: “[...] os próprios trabalhadores se interessaram em aprender

nossos métodos de resolução de problemas e reciprocamente nós em entender o

deles, mas, eu, particularmente, despertei para valorizar mais o que a escola ensina,

porque observando tantos resultados diferentes para um mesmo problema, percebi

que o que falta a eles, infelizmente, é o conhecimento que nós estamos vivenciando

na escola”.

Educando 06: “[...] os trabalhadores não utilizam fórmulas matemáticas,

eles têm um jeito próprio de resolverem seus cálculos. Eu nunca havia imaginado a

metodologia que o ferreiro utiliza para contornar o ferro numa roda de carroça e ao

ver os cálculos feitos pelos agricultores, tão diferentes do nosso, percebi e entendi,

que a etnomatemática está em vários lugares. Meu pai é pedreiro e já observei que

no trabalho dele acontece a mesma coisa: tudo dá certo, mas não usam nossas fór-

mulas. Este é um aprendizado que levarei para a vida toda”.

A avaliação realizada envolvendo os conteúdos trabalhados superou as ex-

pectativas, pois, a maioria dos educandos obteve excelentes resultados.

5 Conclusão

As experiências vivenciadas no ensino da Matemática relacionando o conte-

údo matemático com o ambiente dos educandos e suas manifestações culturais, de

produção e trabalho, motivaram positivamente tanto discentes como docentes, em

prol de uma aprendizagem realmente significativa e de qualidade.

Após observar grupos diferentes de trabalhadores, os educandos reconhe-

ceram que não existe um único, mas vários e distintos conhecimentos na Matemáti-

ca e que todos são importantes bem como que é de grande relevância para o ensino

desta disciplina, desmistificando a idéia da “disciplina da decoreba”, “da coisa certa”,

“pronta”. A experiência com a etnomatemática revelou que o educando é capaz de

reunir, comparar e diagnosticar com precisão, situações novas com experiências

vivenciadas anteriormente, adaptando e ampliando seus saberes a essas novas cir-

cunstâncias.

Por meio desta vivência, muitos educandos ao observar e comparar os re-

sultados tão diferentes na resolução de um mesmo problema chegaram à conclusão

da importância do conhecimento formal adquirido na escola, para sua defesa, poste-

riormente na inserção do mundo do trabalho. Como também, souberam comparar e

concluir que tanto no trabalho do ferreiro quanto do agricultor, sua metodologia apli-

cada é muito mais prática que a metodologia que a escola ensina; que os métodos

populares exigem cálculos mais fáceis de serem desenvolvidos, portanto, no nível

de escolaridade em que se encontram a maioria desses trabalhadores, estes méto-

dos, certamente se tornam sua única possibilidade real de aprendizagem.

Na avaliação final dos educandos, destacou-se como relevante no trabalho

pedagógico desenvolvido, a oportunidade para a compreensão e comparação dos

processos envolvidos nos diferentes métodos. A experiência vivenciada pela turma

de aprender matemática em torno de situações concretas da vida de um trabalhador

e a implementação efetiva de um programa pedagógico onde todos – professora e

educandos – estavam aprendendo e ensinando ao mesmo tempo, não porque o te-

ma de estudo, etnomatemática exija, mas porque era real o fato de que tanto nós, da

escola, como os profissionais, tínhamos o que aprender e o que ensinar sobre nos-

sas “diferentes matemáticas”.

A introdução da etnomatemática dentro do contexto escolar nos dias de ho-

je, deixa de ser um fator diferencial e se torna uma necessidade dentro do que cha-

mamos de uma educação de qualidade, contextualizada e realmente significativa

dentro da disciplina de Matemática.

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