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1476 DA ESPACIALIZAÇÃO: A PLASTICIDADE DO ESPAÇO Maria Carolina de Melo Rodrigues / Universidade Federal de Uberlândia Comitê de Poéticas Artísticas DA ESPACIALIZAÇÃO: A PLASTICIDADE DO ESPAÇO Maria Carolina de Melo Rodrigues / Universidade Federal de Uberlândia RESUMO O presente texto envolve reflexões sobre os desdobramentos de uma pesquisa que questio- na a relação do espaço com a obra de arte como pura indissociabilidade. Esse artigo apre- senta parte desta investigação que tem como foco as práticas estéticas contemporâneas. Um exercício de escrita e leitura que visa articular encontros, desta forma, apresentaremos House de Rachel Whiteread, Rodin-Brancusi de Waltércio Caldas, The murder of crows de Janet Cardiff e George Bures Miller. Discute-se também brevemente, alguns aspectos no processo pessoal de criação, através do trabalho Cartografia dos Sentidos onde a percep- ção que orienta esta pesquisa é experienciada visualmente. PALAVRAS-CHAVE espaço; plasticidade; espacializar; práticas estéticas contemporânea ABSTRACT This text involves reflections on the developments of research that questions the relationship of space with the work of art as pure inseparability. This article presents part of this research focuses on contemporary aesthetic practices. An exercise in reading and writing aimed at joint meetings thus present House of Rachel Whiteread, Rodin-Brancusi of Waltércio Caldas, The murder of crows of Janet Cardiff and George Bures Miller. It is also briefly discusses some aspects of personal creative process, through the Cartografia dos Sentidos work where perception that guides this research is experienced visually. KEYWORDS space; plasticity; spatialize; contemporary aesthetic practices

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DA ESPACIALIZAÇÃO: A PLASTICIDADE DO ESPAÇO

Maria Carolina de Melo Rodrigues / Universidade Federal de Uberlândia Comitê de Poéticas Artísticas

DA ESPACIALIZAÇÃO: A PLASTICIDADE DO ESPAÇO Maria Carolina de Melo Rodrigues / Universidade Federal de Uberlândia RESUMO

O presente texto envolve reflexões sobre os desdobramentos de uma pesquisa que questio-na a relação do espaço com a obra de arte como pura indissociabilidade. Esse artigo apre-senta parte desta investigação que tem como foco as práticas estéticas contemporâneas. Um exercício de escrita e leitura que visa articular encontros, desta forma, apresentaremos House de Rachel Whiteread, Rodin-Brancusi de Waltércio Caldas, The murder of crows de

Janet Cardiff e George Bures Miller. Discute-se também brevemente, alguns aspectos no processo pessoal de criação, através do trabalho Cartografia dos Sentidos onde a percep-ção que orienta esta pesquisa é experienciada visualmente. PALAVRAS-CHAVE

espaço; plasticidade; espacializar; práticas estéticas contemporânea ABSTRACT This text involves reflections on the developments of research that questions the relationship of space with the work of art as pure inseparability. This article presents part of this research focuses on contemporary aesthetic practices. An exercise in reading and writing aimed at joint meetings thus present House of Rachel Whiteread, Rodin-Brancusi of Waltércio Caldas, The murder of crows of Janet Cardiff and George Bures Miller. It is also briefly discusses some aspects of personal creative process, through the Cartografia dos Sentidos work

where perception that guides this research is experienced visually. KEYWORDS

space; plasticity; spatialize; contemporary aesthetic practices

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O que diz ser-em? De saída, completamos a expressão, dizendo: ser “em um mundo” e nos vemos tentados a compreender o ser-em como um estar “dentro de” [...]. (HEIDEGGER, 2011, p.99)

1. As constituições do termo espaço na arte sempre permanecem enquanto ques-

tões que primeiramente demarcam fronteiras onde torna-se ocupado pela obra, per-

dendo sua condição de aberto para fechado. Um vazio onde as coisas se tornam

possíveis. Estamos sempre em algum “espaço”, sem mesmo se dar conta disto.

Cada sujeito tem uma experiência diferente neste espaço. O espaço “real”, que nos-

so corpo aparentemente habita, é um elemento crucial que o artista considera duran-

te uma possibilidade de mostrar o seu trabalho. O espaço seria então como um copo

vazio? E se a resposta fosse “não”? Este vazio entre os volumes permanece o

mesmo quando a obra de arte se faz presente ou poderá se tornar idiossincrático em

um meio criativo e permissor?

O que originou esta pesquisa foi uma inquietação: o que é o espaço quando está

ocupado pela obra de arte? E quando não está ? De que maneira o conhecemos e

como chegamos a percebê-lo? Sempre nos ocorre, em primeiro lugar, a ideia de

espaço como um “contentor” da matéria do mundo, um espaço hospedeiro onde as

coisas existem, um contêiner à espera de ser preenchido. Uma das questões centrais

que se colocam como desafio nesta pesquisa é pensar esta experiência a partir das

práticas estéticas contemporâneas.

Neste lugar onde as fusões de fronteiras são instáveis e as experiências são geradas

através de operações entre espectador, obra e espaço, já não estamos perante a

questão de como representar o espaço, mas, em que consistirá a própria idéia de

espaço. Somos apresentados à obra-espaço? Ou o espaço-obra? Recriamos então,

nossas próprias práticas, dissolvendo os mecanismos que nos fazem separar a obra

e o espaço.

2. Comecemos com dois trabalhos pertencentes a uma série intitulada Cartografia

dos Sentidos, são imagens de mapas sob uma pedra negra. Cada fotografia da série

encarna o domínio de um espaço e a tentativa de colonização deste, propondo leitu-

ras a partir do dispositivo da obra. A imagem deste trabalho, produz uma espécie de

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provocação pois, ao colocar a pedra sobre o mapa, essa traz a afirmação de uma

presença pura. Ela cria uma conscientização de materialidade do espaço, através de

uma experiência particular.

Este trabalho atua entre o que se pode ver(a pedra) e o que ele reconhece em sua

imagem(zonas de fratura, cadeia de montanhas e os ventos); uma imagem fabrica-

da. O espaço é apresentado, descoberto, praticado, imaginado, construído e provo-

cado pela fotografia. A imagem fotográfica pode levar à uma experiência espacial

para além das dimensionalidades, alterando e ampliando a nossa percepção do es-

paço. A obra é o espaço que ela mesma configura .

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Carolina Melo Cartografia dos sentidos, 2007

Fotografia

3. Na obra da artista Rachel Whiteread, os vazios ficam cheios e transformam-se em

matéria, dando a ver o que existe entre as coisas. A própria obra torna-se condição

para a possibilidade do espaço, e o espaço torna-se condição para a possibilidade

da obra.

Em 1993, a escultora Rachel Whiteread modelou e encheu de concreto o interior de

uma velha casa em estilo vitoriano que estava condenada à demolição numa rua em

Bow, zona leste de Londres. Essa casa é um símbolo de sobrevivência, uma vez que

todas as outras casas daquela rua foram destruídas pela reurbanização, indicando

que alguma coisa não existe mais ou, na verdade, que sempre esteve ali e não a

identificávamos visualmente. Quando as paredes caíram, surgiu de seu interior um

bloco cinza compacto, reproduzindo a forma da casa a partir daquilo que já não mais

existia.

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Rachel Whiteread

House, 1993

House evoca a noção de presença, do habitar. A artista transforma em material o

espaço entre as coisas; as áreas passam a ser definidas e ganham materialidade. O

que Rachel Whiteread põe em questão é a própria possibilidade da representação.

O que nós vemos é a matéria, a substância. Antes disso, podemos apenas ter uma

intuição do que possa a priori ser matéria invisivel.

4. Rodin-Brancusi, da série Veneza, uma obra do artista Waltércio Caldas feita es-

pecialmente para a Bienal de Veneza, incorpora o espaço através de matéria imagi-

nária, incorporal e invisível, onde a obra torna-se um prolongamento do próprio es-

paço e não o contrário. Com seus cilindros vazados, numa perspectiva que favorece

seus desenhos espaciais, a obra encontra-se constituída de coisas e espaço. Supor-

te para o invísivel, aquilo que caracteriza a escultura é transformado no próprio es-

paço. O espaço como forma e a forma como espaço. Quando Waltércio Caldas diz

“escultura”, ele conduz nosso olhar a algo que não vemos, ao ar, ao imaterial, a uma

ausência que se constitui em presença. Uma ruptura ao conceito tradicional de es-

cultura.

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Waltércio Caldas Rodin-Brancusi, 1997

5. The murder of crows de Janet Cardiff e George Bures Miller, estreia em junho de

2008, em um espaço de armazém velho e cavernoso de madeira construído no iní-

cio do século XX, essa obra faz referência à habilidade incomum que os corvos têm

de se lamentar diante de determinadas situações. Quando, por exemplo, um do

bando morre, os demais corvos se reúnem para, às vezes por mais de vinte e quatro

horas, lamentar a morte do companheiro, numa espécie de funeral. Esse lamento é

percebido nessa obra monumental através das imagens – fragmentos de sonhos, de

pesadelos – que surgem com as músicas, evocando medo e sofrimento. A obra pa-

rece trazer de volta as grandes catástrofes mundiais, as guerras e a violência. Trata-

se de um trabalho sobre o homem, sobre seus múltiplos modos de “existir” no mun-

do e sua capacidade de superar os traumas através dos sonhos. A peça torna-se um

réquiem para um mundo onde se extinguiu a orientação, onde a perda da razão sus-

citou atrocidades inimagináveis (CROWSTON, 2011, p.62). Quanto mais a razão

dorme, mais monstros surgirão, ou ela pode sonhar, entrar em delírio, criando os

campos de concentração nazistas: uma crítica à crença dos poderes da própria ra-

zão. Há, na obra, uma apropriação de uma marcha patriótica militar, composta, em

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1941, pelo russo Aleksandr Aleksandrov e que foi associada à Segunda Guerra

Mundial, quando Hitler invadiu a União Soviética. Trata-se de um concerto incomum,

sugerindo confusão.

Janet Cardiff e George Bures Miller The murder of crows, 2008.

A instalação é constituída de 98 caixas acústicas negras – algumas colocadas em

cadeiras, outras em pedestais e outras pendentes do teto –, através das quais se

reproduzem 30 minutos de uma narrativa permeada de uma sequência de fragmen-

tos que nos conduzem para onde o som esculpe um espaço, criando imagens deva-

neantes. Somos transportados para um lugar longe do presente e ao mesmo tempo

lançados numa consciência maior dele. O delimitar, onde incluímos e excluímos limi-

tes, desloca-se à medida que o espaço está em si mesmo. As práticas estéticas con-

temporâneas podem atuar “com” o espaço tornando-se ele não um fator delimitante

mas, elemento mesmo da obra.

A obra The murder of crows ressoa na percepção de nosso próprio espaço. Ela foi

inspirada em O sono da razão produz monstros (FIGURA 10), gravura de Goya inte-

grante da série "Los caprichos". Nessa obra de Goya, um homem dorme com a ca-

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beça apoiada nos braços cruzados. Corujas e morcegos voam ameaçadoramente

em torno de sua cabeça. A seus pés, um lince sentado, imóvel e alerta olha-o fixa-

mente. No centro da instalação The murder of crows há um elemento – uma peque-

na mesa com um megafone deitado de lado – que ecoa a gravura de Goya. A voz de

Janet sai do alto-falante, contando uma sequência de sonhos, e a artista parece ab-

sorvida por seus próprios pesadelos, prisioneira de seus próprios pensamentos.

Sons e ruídos percorrem o espaço da exposição e envolvem o espectador, assim

como o fazem as corujas e os morcegos com o homem adormecido na obra de Go-

ya. A estrutura narrativa é do tipo fílmico ou teatral, cujas imagens são criadas pelo

som. Uma forma singular de reflexão espacial é posta em perspectiva no campo

plástico.

Goya O Sonho da razão produz monstros, 1799

Em The murder of crows há uma distensão do conceito de espaço. Em um de seus

sonhos, Cardiff relata o encontro de uma perna debaixo de um cobertor, onde o cor-

po estava ausente. O sonho da artista reverte o efeito previsível, já que ela reconhe-

ce a dor de um membro amputado que perdeu o seu corpo e não, ao contrário, a de

um corpo que teve amputado um de seus membros: uma periferia sem centro

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(CROWSTON, 2011, p.36), ou, como comenta Carolyn Christov-Bakargiev, uma geo-

grafia espacial, onde a disposição espacial e estrutural da instalação se baseia no

espaço que ali não está, como se fosse um espaço "fora" e ao mesmo tempo "interi-

or", pelo modo como os objetos estão nele dispostos (CHRISTOV-BAKARGIEV,

2009, p. 97-102). Os corpos ali parecem ser dispensáveis, como em quase tudo na

indústria do entretenimento. As mortes nas manchetes dos jornais de hoje são muitas,

e isso parece não ter muita importância. O corpo e os órgãos da sociedade também

estão desarticulados. O trabalho cria uma atmosfera dinâmica, como se a obra se

deslocasse pelo espaço expositivo. Essa dimensão é alcançada quando, depois de

nos movimentar por entre o conjunto de cadeiras e caixas acústicas, sentamo-nos

em um das cadeiras, tomando o lugar de uma das caixas de som, tornando-nos parte

ativa da instalação. A obra, mesmo que trabalhada com tecnologia avançada, não a

celebra, utilizando-a tão somente para criar um ambiente onde se exploram as quali-

dades escultóricas e físicas do som. Seus autores usam um sistema de reprodução

estereofônica para distribuir os sons por um grande número de amplificadores, que

são por sua vez ligados a um computador. A palavra “estereofônico” vem do francês

stéréophonique, e “estéreo” deriva-se do grego stereós, que significa sólido e firme.

Esse tipo de áudio produz uma sensação de som espacial para o ouvinte, possibili-

tando-lhe reproduzir a posição em que os instrumentos musicais e os cantores esta-

vam no momento da gravação, de modo a simular, por exemplo, a mesma configura-

ção espacial original. A imagem estende-se para além de sua própria visibilidade.

6- Heidegger, em sua obra Ser e tempo, funda-se em uma unidade originária, o “ser-

no-mundo”. A concepção cartesiana traz a ideia do homem dentro do mundo, por

separar, em partes distintas, o sujeito e o objeto. Ocupar um espaço significa ser

estranho a ele, como alguém que o visita e aproveita-se da disponibilidade ou da

hospitalidade dele. Um espaço livre de caracteres próprios não tem ocupantes; não

há transição de um lugar para outro em um espaço que se especializa (HEIDE-

GGER, 2012, p.321).

Ao atribuirmos espacialidade à presença, temos evidentemente de conceber esse

"ser-no-espaço" a partir de seu modo de ser. Em sua essência, a espacialidade da

presença não é um ser simplesmente dado e, por isso, não pode ocorrer em alguma

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situação do "espaço cósmico" nem estar à mão em um lugar, posto que ambos são

modos de ser de entes que vêm ao encontro dentro do mundo. Por isso, se, de al-

gum modo, a espacialidade convém a alguém, isso só é possível com base nesse

“ser-em” (HEIDEGGER, 2010, p.105).

O sentido do espaço em Heidegger é a questão do ser, a necessidade de pensar o

modo de ser de tudo aquilo que já é. Não existem pessoas e, além delas, o espaço.

Essa noção de espaço supera a oposição dualista pela qual o ente humano não ex-

periencia sua possibilidade de espacialização, e o espaço onde a obra se apresenta

é a própria obra.

A compreensão de ser-no-mundo como estrutura essencial da presença é que possibi-

lita a visão penetrante da espacialidade existencial da presença. É ela que impede

a eliminação antecipada dessa estrutura. Essa eliminação prévia não é motivada

ontologicamente mas sim, "metafisicamente", pela opinião ingênua de que primeiro o

homem é uma coisa espiritual, para só então se colocar "em" um espaço (HEIDE-

GGER, 2012, p.102).

Uma forma de descobrimento do mundo e dos entes através da abertura de sua espa-

cialidade própria, esse espaço não contém espaços: descobre-se ali o espaço-entre, o

espaço como pura extensão. Segundo Heidegger, o espaço não é algo que se opõe ao

ser humano. O homem “é” no mundo, ou seja, ele habita o mundo. Esse conceito de

habitar ultrapassa, entretanto, a concepção de moradia, posto que o homem habita o

mundo construindo poeticamente outros espaços. O espaço torna-se uma possibilidade

plástica para além de uma determinação geométrica. O espaço torna-se espaço na

medida em que se espacializa. O Dasein (ser-aí) jamais se encontra dentro ou fora de

algum lugar, em sentido literal; ele toma para si o espaço, ele se espacializa. As coisas

são em si mesmas espaços e não apenas pertencem a um lugar.

O espaço é espaço. Atrás e à frente do espaço não existe algo. O espaço mostra-se

a partir dele mesmo. O objeto não espreme o espaço para fora, criando uma lacuna.

O filósofo já mencionava que, se não experimentarmos o próprio espaço, o que dis-

sermos sobre o espaço na arte permanecerá sempre obscuro. A partir dessa experi-

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ência os raciocínios transversais e sinuosos iriam de encontro ao espaço do próprio

espaço? O espaço desvelaria a si mesmo? Uma espacialização.

Desse modo, torna-se necessário entender as relações pelas quais os dados dos

sentidos nos afetam. Espaço torna-se uma condição que permite que os dados dos

sentidos sejam ordenados em relação a particulares e possam ser percebidos.

Um espaço sem localização nem fronteiras fixas, mudando constantemente. Marcelo

Gleiser (GLEISER, 1997, p.316) coloca que, ao contrário da física newtoniana, onde

tempo e espaço são absolutos, na relatividade geral tempo e espaço se tornam plás-

ticos. Não há bordas, ele nem sequer está lá; ou, se está, é como rastros, um sorti-

mento inesgotável de imagens. Joe Bousquet fala do espaço de uma árvore: “O es-

paço não está em lugar algum. O espaço está em si mesmo, como o mel no favo”

(BOUSQUET apud BACHELARD, 1974, p.486). O espaço pode não conter a obra,

pois o espaço é a obra. O espaço em si mesmo.

Falamos sobre o dentro, sobre o ao redor de, sobre a extensão, o exterior, o impal-

pável e o nada, mas já não estamos aqui perante a questão de como representar o

espaço, mas de como reconhecer preciosos indícios para o próprio entendimento do

que será a própria idéia de espaço em toda sua complexidade.

A investigação da experiência a partir da perspectiva daquilo que não vemos, do que

não está lá ou aqui, do que não está presente na cadeira nem na mesa, mas que, ao

mesmo tempo, se revela em potencialidade, evoca olhares perdidos em horizontes

longínquos: um dispositivo bem estranho para poder se penetrar.

As obras de arte contemporâneas não pertencem somente a um lugar, não apenas se

encontram aí ou lá. Não nos basta "ir ao local" onde a obra está, pois, nesse "deslo-

car-se", há um "se foi" que escapa à obviedade inerente ao mundo, lançando-nos

em um espaço-obra.

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Referências

CRISTOV-BAKARGIEV, Carolyn. Janet Cardiff. New York, P.S. 1 Contemporany Art Center, 2003. 199p.

______________________. The Murder of Crows. In: EBERSBERGER, Eva; ZYMA, Dan-iela. The Collection Book: Thyssen-Bornemisza Art Contemporary. Cologne: Walther König, 2009. p. 97-102.

CROWSTON, Catherine(Org.). The Murder of Crows: Janet Cardiff and George Bures Mil-ler.Cologne, Hatje Cantz Verlag and Art Gallery of Alberta, 2011. 112p.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universi-tária São Francisco, 2011. 600p.

_______________. A Origem da Obra de Arte. São Paulo: Edições 70, 2010. 252p.

SARAMAGO, Lígia. Espaço e obra de arte nos pensamentos de Heidegger e Gadamer. In: Revista Artefilosofia, n.1, 2006. p.76-93.

_______________. A Topologia do Ser. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2008. 337p.

Maria Carolina de Melo Rodrigues

Doutoranda e mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da Universidade Federal de Uberlândia, atuando no Curso de Artes Visuais. Dedica-se a sua prática artística utilizando diferentes meios onde noções como a natureza di-nâmica das obras, a transubstancialidade, o efêmero, o tempo e o espaço são recor-rentes. Divide as suas atividades artísticas com a prática da exposição, do ensino, da orientação e da pesquisa.