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Estilos da Clínica, 2003, Vol. VIII, n o 14, 68-89 68 Psicanalista, membro do Serviço de Psicologia da Divisªo de Ensino e Reabilitaçªo dos Distœrbios da Comunicaçªo (Derdic) da PUC-SP, e membro da APEP. Fonoaudióloga da Derdic da PUC-SP e professora da Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP. Dossiê DA ESTEREOTIPIA À CONSTITUIÇÃO DA ESCRITA NUM CASO DE AUTISMO: DOIS RELATOS... UM PERCURSO S andra P avone R ejane R ubino Este trabalho apresenta os relatos dos atendi- mentos psicanalítico e fonoaudiológico de uma criança autista, focali- zando a emergência e os desdobramentos da lei- tura e da escrita nesse su- jeito. As autoras pro- põem reflexões sobre al- guns aspectos da direção do tratamento e interro- gam os limites da consti- tuição subjetiva nesses casos. Abordam ainda o tema das intervenções in- terdisciplinares e discu- tem os parâmetros que nortearam a aproxima- ção das clínicas psicana- lítica e fonoaudiológica. Leitura; escrita; autismo; interdisciplina FROM STEREOTYPY TO THE CONSTITUTION OF LITERACY IN A CHILD WITH AUTISM: TWO RE- PORTS... AND A ROUTE The aim of this paper is to examine some clinical observations concerning the emergence of reading and writing in an autis- tic child. Reports of the psychoanalitical treat- ment and of the speech therapy are presented. Some questions about the course of treatment and the possibilities of subjec- tive constitution in such cases are discussed. Fi- nally, it explores the issue of interdisciplinary inter- vention and discusses some principles which guided the relation be- tween the different clini- cal fields. Reading; writing; autism; interdisciplinary approach A propósito da possibilidade de relatar os atendimentos psicanalítico e fonoaudiológico de um menino autista, nos perguntávamos sobre as distinções entre a escrita de um artigo – ainda que este contivesse recortes clínicos de casos – e a escri- ta de um caso clínico. Alfredo Jerusalinsky (2002), em Razão e mé- todo para apresentação de casos clínicos, nos diz que são justamente nossos pontos de ignorância que nos levam, pela via da transferência, a consultar um outro. Tal direcionamento pode possibilitar uma torção, um corte em relação ao que vinha ocor- rendo até o momento.

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Estilos da Clínica, 2003, Vol. VIII, no 14, 68-8968

Psicanalista, membro do Serviço de Psicologia daDivisão de Ensino e Reabilitação dos Distúrbios da

Comunicação (Derdic) da PUC-SP, e membro da APEP.Fonoaudióloga da Derdic da PUC-SP e professora da

Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP.

Dossiê

DA ESTEREOTIPIAÀ CONSTITUIÇÃODA ESCRITA NUM

CASO DE AUTISMO:DOIS RELATOS...UM PERCURSO

Sandra Pavone

Rejane Rubino

Este trabalho apresentaos relatos dos atendi-mentos psicanalítico efonoaudiológico de umacriança autista, focali-zando a emergência e osdesdobramentos da lei-tura e da escrita nesse su-jeito. As autoras pro-põem reflexões sobre al-guns aspectos da direçãodo tratamento e interro-gam os limites da consti-tuição subjetiva nessescasos. Abordam ainda otema das intervenções in-terdisciplinares e discu-tem os parâmetros quenortearam a aproxima-ção das clínicas psicana-lítica e fonoaudiológica.Leitura; escrita; autismo;interdisciplina

FROM STEREOTYPY TOTHE CONSTITUTION OFLITERACY IN A CHILDWITH AUTISM: TWO RE-PORTS... AND A ROUTEThe aim of this paper isto examine some clinicalobservations concerningthe emergence of readingand writing in an autis-tic child. Reports of thepsychoanalitical treat-ment and of the speechtherapy are presented.Some questions about thecourse of treatment andthe possibilities of subjec-tive constitution in suchcases are discussed. Fi-nally, it explores the issueof interdisciplinary inter-vent ion and di s cus s e ssome principles whichguided the relation be-tween the different clini-cal fields.Reading; writing; autism;interdisciplinary approach

A propósito da possibilidade de relataros atendimentos psicanalítico e fonoaudiológico deum menino autista, nos perguntávamos sobre asdistinções entre a escrita de um artigo – ainda queeste contivesse recortes clínicos de casos – e a escri-ta de um caso clínico.

Alfredo Jerusalinsky (2002), em Razão e mé-todo para apresentação de casos clínicos, nos diz quesão justamente nossos pontos de ignorância quenos levam, pela via da transferência, a consultarum outro. Tal direcionamento pode possibilitaruma torção, um corte em relação ao que vinha ocor-rendo até o momento.

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Nossas interrogações partem, sobretudo, de uma posiçãoética: uma aposta que esse reordenamento possibilite que algonovo surja, seja quando se formula um pedido de análise, de su-pervisão ou, na mesma direção, na escrita de um caso clínico. Naescrita, o Outro ao qual falamos está sempre posto, impresso.

Há ainda uma outra conseqüência dessa mesma posição éti-ca: a possibilidade de uma atuação interdisciplinar. No traba-lho com essa criança uma aproximação entre a clínica fonoaudi-ológica e a psicanalítica aconteceu em dois distintos momen-tos. Inicialmente, ainda na fase de diagnóstico, em que os pro-fissionais, desvinculados de uma posição de todo-saber, mostra-ram-se sensíveis às contribuições de outras disciplinas. Numsegundo momento, a emergência de novas produções na análiseda criança que apontavam para a fala e a escrita levou à propostade que o atendimento fonoaudiológico tivesse início, ainda queàquela altura não fosse possível formular claramente o porquêdisso. Apresentaremos a princípio, um relato desses dois trata-mentos, formulando, ao final, alguns fundamentos dessa atua-ção interdisciplinar.

DA AUDIOLOGIA À PSICANÁLISE

Os pais de Bruno chegam à Derdic1 buscando a indicaçãode um aparelho auditivo, pois o filho, que não falava, tinha rece-bido um diagnóstico de surdez, a partir de um exame que reali-zara – o BERA2.

Crianças que parecem não responder ao som, ou, ainda, quenão falam quando isso já poderia ser esperado, conduzem os pro-fissionais à hipótese de uma surdez sensorial. Apesar do diagnós-tico anterior, a fonoaudióloga que os recebe decide proceder àavaliação por intermédio de outros exames. As respostas compor-tamentais da criança, durante as avaliações por meio de sons pro-duzidos com diferentes instrumentos musicais, fazem parecer queela não ouve. Entretanto, a audiologista registra os reflexos depálpebras. Na avaliação denominada Emissões Otoacústicas3, osdados indicam audição normal. Cabe ressaltar que, por seremmétodos de avaliação eletrofisiológica, tanto o BERA quanto aavaliação Emissões Otoacústicas não dependem da colaboraçãodaquele que está sendo avaliado.

Surpreendentemente, numa dessas consultas, B. volta seuolhar na direção de uma estagiária que, sentada atrás dele, acaba-ra de produzir um ruído (sem finalidade de avaliação) ao folhear

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uma revista. Como a ausência de fala e a aparente surdez tambémpodem ser indicativos de uma falha na constituição subjetiva, odiagnóstico de surdez pode ficar em suspenso, e a audiologistadecide por um encaminhamento à psicanalista (Pavone, 2000a).

Não são raros os casos de crianças autistas anteriormente di-agnosticadas como surdas. Essa aparente surdez de crianças fala-nos de uma percepção não recortada pelo significante, conseqü-ência da defesa primária do autismo (Pavone, 2000b).

DA ESTEREOTIPIA NO NÚMERO AOSRECORTES COMO SUPLÊNCIA

Quando os pais trazem Bruno para o atendimento, muitopouco têm a dizer sobre esse filho, sobre um lugar que pudesseocupar. Contam que até 1 ano de idade, morando apenas com amãe e a família do pai na cidade de origem deles, Bruno passavamuito tempo com seu avô paterno. O pai diz que o avô tinha essa“coisa meio enlouquecida” (sic) de falar com Bruno, ainda quefosse certo que o menino não pudesse entender nada. Por outrolado, ele supõe que a mudança para outra cidade e o distancia-mento em relação a esse avô sejam a causa de suas dificuldades.Seu avô constantemente levava-o ao portão de casa para que alificassem olhando a rua e os carros que passavam. Ele conta queBruno já falava algumas palavras nessa idade, “carro e mama”,que desapareceram completamente após a mudança deles paraSão Paulo.

Durante muito tempo em suas sessões limitava-se a ficar najanela olhando o movimento dos carros, deitado no chão e olhan-do as mãos que ele agitava diante dos olhos, ou ainda batendo asmãos nas orelhas estereotipadamente.

Aos poucos um interesse particular pelos números aparecede diferentes maneiras: apertando o teclado de um telefone debrinquedo, detendo seu olhar nos relógios de pulso ou ao ocu-par-se de percorrer as diversas páginas de um calendário, reini-ciando esse processo quando chegava ao fim.

Nenhum desses elementos parecia poder ser tomado porseus pais como atos com alguma significação e que indicassem odirecionamento de um interesse ou particularidade desse filho.Entretanto, em situações ainda incipientes era do lado do paique alguma aposta de mudança de posição subjetiva compareciapara essa criança. Nas sessões, o pai solicita sua atenção escreven-do o nome e sobrenome do filho numa folha de papel. Sempre

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que chega em casa, ao final de umdia de trabalho, escreve num papelas contas do dinheiro que recebeunaquele dia. É possível supor queBruno acompanhe-o, mesmo que àdistância.

Seus direcionamentos aos car-ros e aos números, ainda que estereo-tipados, eram intrigantes. Apesar denão simbolizadas, tais incidênciasportavam marcas do pai e do avô.

Laznik (1997), em seu livroRumo à palavra, nos fala do estatu-to das estereotipias. Tais ocorrênci-as, apesar de seu retorno insistente,têm um fim de descarga motora an-tes que de ato. Seriam resíduos degestos esvaziados de sua função decomunicação, e a autora propõe queapenas na origem pudessem ter tidovalor de ato. Aparece assim umaimportante distinção entre as insis-tências estereotípicas – ruínas deum ato – e a ordem da repetição(Wiederholungszwang) – de repre-sentação de ausência.

Nesse sentido, a autora propõecomo direção do tratamento a bus-ca de restaurar nesses comportamen-tos seu valor representacional, ligan-do-os às representações de palavrasa fim de que adquiram um valor paraalém de seu corpo, que ainda res-ponde como um puro real de des-carga motora.

O trabalho com os carros e osnúmeros segue em diferentes dire-ções. Foram meses de trabalhoolhando pela janela onde a analistabuscava as extensões mais diversaspara o que se passava lá fora: ôni-bus, suas cores, números, destinos,motos, barulhos de ambulâncias.Nesse mesmo movimento, em que

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os ônibus iam e vinham alternada-mente, a analista antecipava-os emsua fala dizendo “tchau” antes quefossem embora e, quando iam em-bora, chamava-os de volta.

Mais além, incluía a criançanessa série, dizendo: “ O Bruno estáaqui na janela esperando você pas-sar, ônibus”. Ou, ainda, solicitandoa ele que se despedisse dando tchau.

Muito tempo se passou no va-zio de qualquer retorno da criançaque fizesse supor que essa interven-ção estivesse provocando algum efei-to. Até que ele começa a balançar osdedos à chegada dos ônibus e a mo-vimentar a cabeça quando iam em-bora, virando-a e dirigindo o olharna direção para a qual se iam.

Mesmo assim, quando um re-torno da criança parecia acusar umendereçamento, ficava-se muito tem-po sem que fossem possíveis novos edistintos direcionamentos.

Do lado dos números, as inter-venções parecem ter tido um cami-nho mais frutífero. Sua excitação aoencontrar números em calendáriosou páginas de revistas ficava expressaclaramente numa agitação dos dedose aproximação destes aos olhos. Talmovimento fazia pensar em alguémque “conta com os dedos”.

A analista decide operar conta-gens: de ônibus, de dedos da mão,até três antes da queda de um carri-nho ou ônibus da mesa. Mas a querealmente o entretém e o tira daposição de fechamento é quando aanalista conta até cinco e depois oalcança no umbigo dizendo seunome como o sexto termo:

– Um, dois, três, quatro, cinco,e Bruno.

Ele não apenas sorri, como pedeque isso se repita muitas vezes. Essamarca se inscreve, recortando seucorpo, tecendo a borda pulsional apartir da qual se representará comosujeito.

No segundo ano de tratamen-to, sua escolarização inicia-se numapequena escola do bairro em quemoravam. Sua professora, desde oinício, relatava com entusiasmotudo o que percebia que o meninosabia. Bastante atenta aos movimen-tos da criança, acompanha-o nomomento em que ele escolhe, entrelivros que ali se encontram, um dematemática. Bruno se detém, reco-brindo com um lápis os númerosque encontra. Fundamentalmentededicava-se a encobrir números naspáginas em que eles estivessem mis-turados com letras, como acontece,por exemplo, num problema mate-mático cuja formulação é compostapor palavras e números. Ele não co-bria letras, apenas números. Isto nosfez pensar que ele os diferenciava,porém, ainda não era possível sabera extensão em que poderia operarcom eles. Ele aceita e pede a suaprofessora que escreva com ele pági-nas e páginas de números. Acompa-nhava-a com o olhar ou com a mãosobre a dela nessa escrita.

Nas sessões ocupa-se basica-mente de folhear revistas, detendo-se principalmente sobre as páginasque contêm números: sua preferi-da era a que trazia as cotações dabolsa de valores. Embora houves-se um notável interesse pelos nú-meros e carros das revistas, aindanão era possível uma intervençãoque permitisse interrompê-lo em

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sua tarefa. Ele parecia mais envolvido no movimento de folhe-ar a revista do início ao fim do que num trabalho representaci-onal. Apesar disso, a analista recorta e cola das revistas, núme-ros, figuras de carros e palavras pelas quais ele parece se inte-ressar.

É nessa mesma época que ele traz à sessão um livrinho queconta a história do personagem Pinóquio. A mãe conta que eleestava há dias com esse livro pela casa. Nessa história lemos comsurpresa:

“Gepeto, um velho carpinteiro, conversava com seus bonecosde madeira como se eles fossem pessoas de verdade... bastaria um soprode vida, para que se tornassem reais. Ainda boneco, Pinóquio, comfala e roupa de menino, escuta de seu pai:

– Você é o filho que eu tanto quis ter! Farei de você umhomem de verdade... como todas as crianças, irá à escola, brin-cará...”

Pinóquio porém, desvia-se do caminho para a escola. O pai,à sua procura, perde-se no mar e é engolido por uma baleia. Oboneco salva seu pai, e aí sim pode ser transformado por uma fadanum menino de verdade.

É a partir do que pode ser valorizado por seu pai-avô4 queessa criança poderá resgatar, de um “naufrágio” inicial, um lugarde ideal para advir como menino.

Nesse mesmo período Bruno se detém olhando para fora dasala, já não mais pela janela de vidro transparente, mas por outracom um espelho que lhe retorna a própria imagem, ao mesmotempo em que, fechando-se suas cortinas, permite-lhe fazer-sedesaparecer. Jogos de borda aparecem nas sessões: entra e sai dasala, abre e fecha a janela, esvazia e enche, deixa a mão passar poruma fresta sem vidro, deixa cair bonecos da borda da mesa, ebusca reencontrar sua analista, que se esconde quando ele sai dasala. Tais jogos revelam o movimento constituinte do sujeito, noqual a criança captura sua própria imagem ao mesmo tempo emque a põe na série presença-ausência, na descontinuidade signifi-cante (Jerusalinsky, 1999).

Estamos no quarto ano de tratamento. Um material em-borrachado que associava números e quantidades representadasem figuras geométricas permite perceber que Bruno conhece aseqüência de números de 1 a 10. Mas sabe contar? Bruno circu-la pelos corredores da instituição. Seu trabalho se dá nas portasdas salas, em suas bordas, cada qual com uma inscrição no topo:seu número.

Suas vocalizações, que haviam se intensificado bastante nesseperíodo, levam a analista a consultar uma fonoaudióloga. Segui-

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mos um período breve de gravação dessas produções sonoras,que desaparecem quando Bruno volta a se debruçar sobre asrevistas.

Sua posição defensiva já não aparece tão intensamente, e,entre uma página e outra, Bruno deixa que a analista faça algunsrecortes. Do mesmo modo, ele passa a colar o que foi recortadoem folhas de sulfite. Aos poucos ele mesmo escolhe o que serárecortado. Solicita, puxando a mão da analista e entregando atesoura para que ela recorte.

Suas preferências são os carros, ônibus, ruas com movimen-to de carros, salas de aula, números, nomes de carros, pessoas decostas olhando para trás, comidas e objetos de que ele gosta. Aprincípio tais imagens pareceram quaisquer, porém, sua insistên-cia e repetição apontavam para a hipótese de um trabalho psíqui-co com a representação, indicando a existência de uma ligaçãoentre a imagem sonora da palavra e uma imagem visual.

Recorta também cenas de pessoas em mesas de bar. Tal inci-dência só pode ser compreendida muito tempo depois, quandoseu pai conta que levava Bruno quando sai para beber com osamigos no final de semana. Relendo suas produções, é possívelreconhecer que B. conta o que não fala, construindo nestes recor-tes e montagens a rede de sua constituição como sujeito.

A analista propõe uma outra extensão: escrever seu nome emcada uma dessas folhas. A princípio ele apenas a observa escre-vendo. Depois, ao ser solicitado, escreve algo também. Abaixo doseu nome já escrito ele faz círculos: tantos quantos o número deletras. Foi possível também identificar, em outros escritos, as le-tras B ou N.

As articulações entre palavras e imagens, entre imagens acús-ticas e imagens visuais, entre representação de palavra e represen-tação de objeto que comparecem no tratamento dessa criançarevelam o movimento das inscrições.

Devemos nos questionar, porém, que tempo da inscrição éesse e sobre o fato de essa operação estar fundamentalmente sus-tentada em imagens visuais. Laznik (1997) propõe pensarmos essetrabalho das crianças, tal como se apresenta com imagens recorta-das de uma revista, como um “discurso” situado no nível da pri-meira inscrição significante. A autora nos fala sobre o fato de que afalha no imaginário torna problemática a organização das repre-sentações próprias ao registro do inconsciente (Vorstellungrepräsen-tanz), e, apoiando-se nas imagens, a criança pode realizar uma su-plência à circulação dos pensamentos inconscientes.

A autora sustenta sua hipótese trabalhando com os regis-tros da inscrição no aparelho psíquico, a partir do modelo freu-

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diano proposto na Carta 52 a Fli-ess. Em tal modelo, o registro in-consciente ocorre somente a partirda segunda inscrição. Na primeirainscrição instaura-se a articulaçãosincrônica entre duas imagens, nãotendo ainda senão valor de sinaisperceptivos ligados por simultanei-dade. Ou seja, um signo assim for-mado constitui uma unidade fixaentre o significante e o significado,o que impedirá o deslizamento pró-prio à cadeia significante. A segun-da inscrição, a do registro do in-consciente propriamente dito, su-põe a hiância causal, instaurandouma outra forma de articulação queé diacrônica. A riqueza dos proces-sos inconscientes, metafórico-meto-nímicos, estará suportada pela or-ganização da representância, queLacan chamará de significância.

O SURGIMENTO DALEITURA E DA ESCRITA:A LETRA COMOSIGNIFICANTE?

Novo momento de consultaruma fonoaudióloga. Com sua cola-boração, os recortes ganham contor-nos mais definidos: entre outras coi-sas, ela observa que Bruno escolhevárias palavras que contêm as duasprimeiras letras de seu nome: bra-desco, brasileiro, petrobrás (segui-do do logotipo BR), .com.br. Aqui,decidimos que não haveria apenasuma assessoria por parte da fonoau-dióloga, mas teria início um aten-dimento fonoaudiológico.

A professora, agora numa salaespecial de uma escola pública, con-ta que B. acompanha, com o olhar,nome por nome dos amigos de suasala escritos numa lista na lousa.

A analista passa a propor en-tão, não apenas o recorte de pala-vras, mas copiá-las numa folha depapel. As revistas e a TV estão re-pletas de imagens e reportagenssobre as eleições. Desta vez ele su-gere os nomes dos candidatos à elei-ção presidencial, datas (1994,1995...) e outras palavras.

Assim como é possível escrevero que se lê, é possível ler o que seescreve. Acompanhando as palavrascom o dedo, a analista passa a ler oque “escrevem”. B. ouve atentamen-te. Ainda há dúvida se ele pode ler...A analista decide ler “errado”. Dizum nome ou número diferente doque está escrito, e ele segura firmeem sua mão fazendo seu dedo voltarao início da palavra para que leiaoutra vez. Só desiste quando a pala-vra é lida corretamente.

Por que certas operações de lei-tura são possíveis de serem identi-ficadas, mas ainda para ser faladaBruno depende do suporte na vozdo Outro? Levin (1998) apontapara o fato de que é essencial a des-coberta, que as crianças fazem, deque os livros falam pela voz doOutro que os lê, e, desse modo,entrecruzam-se as imagens, as le-tras e o som, estruturando-se narelação com a voz do Outro que osinterpreta e os diferencia.

“O desejo de aprender a ler eescrever poderá se desenvolver se porali circular o enigma, o enigma quecomeçou a ser tecido entre o livro, a

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voz, a imagem, os desenhos, as ga-ratujas e o Outro. Pois o que se dize se articula na voz pode ser escrito,e o que se escreve, inscrevendo-senum papel, pode ser dito” (Levin,1998, p. 121).

Na sala de aula Bruno podeperfeitamente distribuir as agendasdos colegas, que são idênticas, masque têm o nome de cada um escritona capa.

Alguns retornos à cidade de ori-gem ocorreram de modo esporádicoe breve depois da vinda dessa famí-lia para São Paulo. Entretanto, apósseu retorno da última viagem quepara lá realizaram durante um mês,foi possível notar uma importantediferença na posição de Bruno.

De imediato chega à primeirasessão escolhendo o que recortar.Após recortar a foto de um compu-tador, ele mesmo escreve algo e de-pois solicita que a analista escreva.Respondendo a seu pedido, come-ça a escrever seu nome, porém, di-ferente de outras vezes, com sobre-nome. Efeitos transferenciais doque pode ser resgatado sobre a fili-ação nesta família?

Ele solicita, puxando pela mão,para ir até a outra sala, onde fica umcomputador. Enlaçado ao que recor-tou no início da sessão, a analistatoma seu gesto como um ato e deci-de ligar a máquina.

A princípio, Bruno restringe-sea copiar o que ele porta escrito emsuas camisetas ou o que ele encon-tra pela frente. Digita com destre-za, e a analista sugere que ao térmi-no leiam o que ele copiou.

Sem nenhuma intencionalida-de, certa vez em que ele copia os

algarismos 515, a analista lê “cin-co, um, cinco”. Ele insiste paraque retorne e leia de novo, e sódesiste quando é enunciado “qui-nhentos e quinze”.

Mesmo que a hipótese aindafosse de que sua escrita estivesse des-tinada apenas a pequenas diferen-ciações (letras/números, passar daletra impressa para a letra bastão,copiar palavras já escritas), a ana-lista propõe escrever os nomes dealguns animais de plástico, queusou em suas brincadeiras e queforam levados numa pequena caixapara a frente do computador. Aanalista escreve o nome de cadaanimal em uma tira de papel. Elecopia esses nomes, mas tambémbusca numa folha de jornal outrosnomes para copiar: dos candidatosà presidência. Entretanto, na ses-são seguinte, os nomes dos animaisnão estavam junto deles na caixa, eele começa a escrever seus nomesantes que “a legenda” estivesse alipra servir de cópia: Cavalo, “caalt”;galinha, “gatga”; vaca, “Vgcçca”;carro, “carro”; boi, “boi”; camelo,“camio”; leão, “leio”; tigre, “tige”.Quando terminam os bichos da cai-xa, ele copia os números de um te-lefone. A analista arrisca ditar umnúmero para que ele escreva, dizen-do “cento e vinte e sete”, e ele digi-ta: 127. Em outra sessão, sugere le-varem outros objetos na caixa. Eleaceita, apesar de sempre iniciarcada novo trabalho, fazendo cópia,e não escrita. Depois, cada novafruta que a analista pega dizendoo nome, ele se volta para digitar:limão, escreve “limmao”; a analistadiz laranja, e ele escreve “lataaga”;

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mexerica, “measriy”; tomate,“tomtwe”; ou ainda casa, “caasa”; evaca, “Ycaa”.

Ao mesmo tempo, o domíniode alguns comandos no computa-dor parece fasciná-lo: aprende a dar“enter” para fazer o espaço entre aspalavras, ocupa-se de certas teclasque fazem acender luzinhas no te-clado, e outras que fazem surgirimagens na tela ou sons, copia o queestá escrito nas teclas (Caps Lock,Scroll Lock, etc.), ou a marca do com-putador. Bruno sabe que deve aguar-dar para poder desligar.

Pommier (1996), em Nacimi-ento y renacimiento de la escritura,nos fala das intrincadas relaçõesentre o visual e o auditivo no pro-cesso de leitura e escrita. Primeira-mente ressalta que a escrita não re-sulta de uma tradução da sonori-dade dos vocábulos.

“Quando lemos ou escrevemos,não nos apoiamos sobre as letras àsquais damos forma, mas sim sobreos vocábulos em que pensamos”(Pommier, 1996, p. 288).

Seguindo o que o autor pro-põe nesse mesmo trabalho, se le-mos, é porque reconhecemos umapalavra da qual já tínhamos a pos-se, e aqui o que nos serve de apoionão são as letras alfabéticas, massim o significante.

Na leitura há uma distinçãoentre o que se vê e o que deve serlido. Não lemos letra por letra, e,portanto, o que resulta numa leitu-ra, isto é, a relação entre as letras,não está contido em sua imagem vi-sual. O vínculo entre elas estará dadopor uma imagem acústica que o vi-sual não contém. Ou seja, não é pela

imagem visual, nem letra por letra,que alguém pode advir à escrita ouleitura. Para que se possa ler, é ne-cessário algo além do que se podever. O som não compreende a ima-gem, e vice-versa.

“Somente pelo lado do que faltaa cada uma dessas consistências, so-nora e visual, é que estas se associame se lêem. O lado da falta permiteuma leitura global, que não é nemglobalização sonora nem globaliza-ção visual, mas sim articulação dasfaltas entre si, com a condição dorecalque sucessivo de cada uma des-sas consistências. O vínculo da ima-gem visual com a imagem acústicapermite o passo da letra ao signifi-cante, passo que a dupla face da le-tra autoriza, já que a imagem, sono-ra em uma face, ela é, em outra, vi-sual e associada assim a outras le-tras. A leitura roda sobre si mesmagraças ao recalque sucessivo do quese vê e do que se ouve, de modo queum vocábulo escrito não se resumenunca a sua fonética e não se reduztampouco a sua imagem” (Pommi-er, 1996, p. 289).

Pommier retoma o que Freudnos aponta sobre os sonhos para abor-dar aquilo de que se trata na leitura.Ele ressalta que é preciso esquecer seuvalor de imagem, pictórico, para queos sonhos possam ser lidos, e assimse ter acesso ao sentido. É essa rela-ção entre o visual e o acústico na lei-tura, em que a imagem será vista peloque nela falta, que articula a imagemcom o significante. Em outras pala-vras, estamos na ordem da represen-tação da ausência.

Sendo assim, podemos pensarque a leitura depende de que algo

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na direção do recalque esteja ope-rando. Mas, no caso deste menino,em que extensão?

Fragelli (2002), em seu traba-lho Escreveu, não leu... A escrita naclínica das psicoses, conforme apare-ce no próprio título, discute as pos-sibilidades distintas de que uma es-crita compareça e tenha efeitos desubjetivação, ainda que restritos.

Podemos, então, perceber quea escrita dessas crianças indica quealgum processo de inscrição ocorreu,mas não em toda a sua extensão.Lacan (1961-2) propõe, no Seminá-rio sobre a identificação, a operaçãode instalação do significante comoalgo que é constituído em três dis-tintos tempos. O primeiro tempofala da inscrição do traço, ocorren-do seu subseqüente apagamento (re-calque), e o terceiro tempo em queo sujeito fará a interpretação dessasmarcas inscritas até ali. Para o ter-ceiro tempo, além do recalque, osujeito precisará contar com a ins-tância que lhe permita interpretar odesejo materno nomeando-o meta-foricamente: o Nome do Pai. Taloperação possibilitará que a criança,anteriormente proposta ela mesmacomo o termo desse desejo, seja lan-çada ao funcionamento da cadeiasignificante. Nesses intervalos, en-tre os significantes que metaforica-mente se substituem, funda-se osujeito, e o Nome do Pai permitiráler essas marcas, produzindo umasignificação para si mesmo a partirda qual poderá se designar enquan-to UM para o discurso.

Como se vê, percorre-se um lon-go caminho na instalação da opera-ção significante.

A princípio, para Bruno, letrase números apareciam colados nosolhos, atrelados à pura percepção,muito mais que recortados com umolhar. Na estereotipia, num real in-diferenciado, não se pode reconhe-cer algo que aponte para o registropulsional. Situadas no âmbito dotratamento, como uma abordagempossível do real, pouco a pouco, taisincidências foram sendo enlaçadasnuma série significante possibilitan-do à criança representar-se além deseu corpo real. O que aparecia antescomo letra morta5 sofre os efeitos doenlace imaginário, e faz marca, ins-crevendo e fundando o primeirotempo dessa inscrição. Sob os efei-tos do recalque, essa marca sofre asrasuras necessárias e posteriormen-te é alçada, ainda que com restrições,ao estatuto significante. Poderíamosafirmar que para esse menino já épossível representar-se sem que possadizer-se, e, portanto, não possamosainda avistar os sinais de um tercei-ro tempo da inscrição significante.

ALGUNSDESDOBRAMENTOS NALEITURA E NA ESCRITA:O ATENDIMENTOFONOAUDIOLÓGICO

Ao dar início ao processo deavaliação de linguagem de Bruno,algumas questões se põem, comoefeito mesmo do diagnóstico deautismo: pode haver engajamentodesse paciente num trabalho quevisa a fala e/ou a escrita? Há indíci-

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os de que esse atendimento possaproduzir efeitos terapêuticos pró-prios à clínica fonoaudiológica?Considerando-se que se trata de umpaciente atendido em psicanálise,o que justificaria a entrada de umatendimento fonoaudiológico?Pode-se dizer que, subjacente a es-sas perguntas, uma indagação maiorestá presente: quais são as questõesque o diagnóstico estrutural formu-la para a clínica fonoaudiológica,no que diz respeito a sua pertinên-cia e até mesmo a suas limitações?

Na entrevista inicial, o pai mediz que Bruno “se desenvolveu mui-to” desde o início do tratamentopsicanalítico. Ao chegar à Derdic,“era muito nervoso e não atendianinguém”. “Hoje”, diz ele, “Brunojá atende e entende a fala dos ou-tros. Mas não fala.” A mãe relata quea professora não está conseguindoalfabetizá-lo, nem conseguindo fa-zer nada com ele. Segundo o pai, aprofessora teria dito que ele não faznada, “só rabisco”. O pai acrescen-ta, nesse momento, que Bruno “sabeos números”. A mãe diz: “Mas elenão escreve nada ainda, nem lê”. Elaprossegue dizendo: “Eu queria queele falasse, para ele poder estudar”.O pai afirma: “Nem eu nem ela ti-vemos estudo. Tudo o que eu penseiem dar ao meu filho eu não pudedar, porque ele não se desenvolveu”.Ressaltando que Bruno é uma cri-ança inteligente, o pai menciona quedá papéis velhos para ele jogar fora,mas, quando faz o mesmo com di-nheiro ou passes, Bruno ri, e não oscoloca no lixo.

Vê-se que os pais fazem diver-sas referências à ausência da fala e à

ausência da leitura e da escrita. Cha-ma minha atenção que a demandade que Bruno fale apareça circuns-crita à sua possibilidade de estudar.

Uma tensão entre um investi-mento na fala e um investimento nalinguagem escrita é sustentada aolongo desse período de trabalho coma criança. De início, eu me ocupoigualmente de ambos.

Os atendimentos de Bruno sãogravados, e o próprio ato de gravá-los converte-se num trabalho com afala. No início de cada sessão, colo-co uma fita no gravador e registro“Hoje é dia X, gravação do Bruno”.Ponho esse trecho para ele escutar edigo: “Tudo o que a gente falar saiaqui; depois a gente pode escutar”.Quando ele vocaliza algo mais au-dível, eu mostro a Bruno esse tre-cho da gravação, dizendo: “Vocêouviu? É você quem está falandoaqui”. Durante algumas semanas,Bruno parece muito interessado nes-sas gravações: ele mesmo pega o gra-vador e uma fita no armário no mo-mento em que vamos iniciar a ses-são. Além disso, ele me pede repeti-das vezes para escutar trechos dagravação em curso.

A produção vocal de Bruno,que é bastante esporádica, é tam-bém espelhada em minha fala. Àsvezes é possível aproximá-la de al-guma forma da língua, inserindo-aem cadeias/textos em que ela podeganhar sentido. Por exemplo, nummomento em que ele vocaliza “ó”ao folhear uma revista (sem apon-tar para nada), eu digo “Olha quelegal!”, apontando uma figura na-quela página. Num outro exemplo,ele produz algo próximo a “fam,

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fam”, e eu digo “Vamos? Cê tá dizendo ‘vamos’? Cê tá pedindopra ir embora? Então vamos”.

O interesse de Bruno pelas gravações perdura somente algu-mas semanas. Ele deixa de pegar o gravador ao escolher o que levapara a sessão, e já não pede para escutar o que é gravado.

Percebo que a escolha dos objetos com os quais Bruno seocupa tem relação com a escrita. Como relatarei a seguir, seusmovimentos em direção a esses objetos mostram-se mais consis-tentes. Desse modo, o trabalho com a leitura e a escrita vai, pou-co a pouco, ganhando mais espaço nas sessões com a criança.Pode-se dizer que o investimento terapêutico incide sobre os ob-jetos em relação aos quais eu posso ver sinais de uma abertura eum interesse maiores por parte de Bruno.

Desde as primeiras sessões de avaliação, observo uma série deindícios de que a escrita – aqui entendida como um Outro, istoé, como um funcionamento lingüístico-discursivo representadopela escrita daqueles que já escrevem (Mota, 1995) – já produziualgumas marcas na produção de Bruno. O modo pelo qual eleocupa o espaço do papel não é qualquer. Seus traçados são produ-zidos da esquerda para a direita, numa direção horizontal. Aochegar à borda da folha, ele pára, ou então passa a produzir traçosembaixo dessa primeira linha, sempre numa orientação horizon-tal e da esquerda para a direita. [Figura 1]. Esses dados são reve-ladores de um certo grau de enlaçamento desse sujeito pela escri-ta, dado que nossa escrita organiza-se ao longo de linhas horizon-tais, da esquerda para a direita.

Figura 1

Num primeiro momento, os traçados de Bruno são quasesempre circulares. Seu gesto custa a se interromper, de maneiraque essas formas assemelham-se a “novelinhos” (são quase “pre-enchidas” por dentro). Um outra observação importante em re-

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lação à produção de Bruno é queesses traçados sempre se dispõemnuma série. Ou seja, ele não pro-duz um “novelinho”, mas uma se-qüência deles. Vejo aí um outroindício de que se trata de uma cri-ança de algum modo capturada pelaescrita. Nossa escrita (alfabética)exige letras dispostas em séries.

Na maioria das vezes, um “no-velinho” é emendado ao seguinte:ainda que seu gesto de traçar in-terrompa-se para dar início a umoutro “novelinho”, Bruno não deixaespaço entre as formas que produz.Mais raramente ele deixa um pe-queno vazio entre um “novelinho”e o próximo. Vale notar que ne-nhum desses dois modos de traçaré estranho à nossa escrita, dadoque na escrita cursiva as letras sãoemendadas umas às outras, ao pas-so que na escrita com letras de fôr-ma produzimos um pequeno es-paço vazio entre elas.

Se, por um lado, todas essasobservações são indicativas de que aescrita do Outro inscreveu suas mar-cas naquilo que Bruno produz numafolha de papel, noto que não se po-deria falar em diferenciações inter-nas em sua produção. Ele não pro-duz distinções entre um elementoda série e o(s) outro(s), como umaescrita constituída exige (se produ-zimos, por exemplo, OI, trata-se deescrita, ao passo que, se produzimosOOOOO, não se poderia mais fa-lar em escrita). Não se observa, nasseqüências traçadas por Bruno, umaforma circular seguida de uma ou-tra não circular, por exemplo, ou,ainda, uma forma circular preenchi-da, e a seguinte, vazia. As “diferen-

ças” entre um novelinho e outro(pois eles não são idênticos) pare-cem aleatórias, e não assinalam ainscrição de uma distinção, de umaoposição entre formas.

Há momentos, contudo, emque Bruno utiliza lápis de cores di-ferentes, produzindo assim uma pri-meira forma de diferenciação emsuas seqüências. É interessante ob-servar que isso ocorre pela primeiravez num momento em que ele tomauma folha em que eu vinha fazendoanotações sobre a sessão e produztraços por cima de minha escrita.Seria essa diferenciação por meio dascores um efeito de minha escrita,segmentada, em cima da qual eletraça? O uso de cores variadas apa-recerá em outros momentos, e demodos variados: um “novelinho” decada cor, uma linha de cada cor etc.

Figura 2

Minhas tentativas de introdu-zir outros materiais que permitam a

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Bruno escrever não produzem efei-to. Levo letras prontas (dados de le-tras, letras imantadas), mas ele asdeixa de lado, continuando a pro-duzir seus traçados no papel. Deci-do então “segui-lo” nessa direção,isto é, privilegiar o trabalho de pro-dução desses traços.

Num dos primeiros atendimen-tos, quando ele conclui sua produ-ção e deixa a folha de lado, eu escre-vo “Bruno” e a data da sessão naparte inferior da folha. A partir daí,ele passa a me entregar a folha e acaneta quando termina seus traça-dos. Eu interpreto esse gesto comoum pedido para que eu escreva seunome, e o faço para ele. Depois dealgumas sessões em que isso se re-pete, eu devolvo a caneta a ele, e pro-ponho escrever seu nome “a duasmãos”. Seguro a mão de Bruno e vouguiando seu movimento de traçar:escrevemos “Bruno”. Isso volta aocorrer na sessão seguinte.

Passam-se algumas semanas emque ele não produz nada no papel(que continua disponível sobre amesa). Ele se ocupa de folhear re-vistas durante boa parte das sessões(às vezes durante sessões inteiras).É difícil dizer até que ponto se tratade uma leitura. Em certos momen-tos, ele parece simplesmente folhe-ar revistas até o fim, sem se deterem nada. Outras vezes, os númerosparecem ser o foco de sua atenção.Há uma sessão em que ele percorreum longo livro de crônicas, paran-do a cada página terminada em 1:1, 11, 21, 31, 41, até o final. Porduas sessões seguidas, ele olha lon-gamente para uma foto que mostraos participantes do Big Brother Bra-

sil6. Outras vezes, ele olha mais lon-gamente para os textos do que parafotos ou figuras. O tempo de aten-ção é também muito variável.

Tento produzir alguma exten-são dessa atividade. Pergunto se querque eu leia algo para ele e tambémse há algo na revista que ele queirarecortar, mas essas falas não parecemfazer efeito sobre ele. Com outra re-vista, faço colagens (de letras, dedesenhos), propondo a ele que par-ticipe disso. Ele continua a folhearsua revista e parece ignorar o queestou fazendo.

Quando Bruno volta a trabalharcom papel e lápis, observo uma di-ferença significativa em sua produ-ção: seu traçado apresenta-se aomesmo tempo mais retilíneo, e elese produz numa direção vertical. Oefeito disso é uma semelhança comuma escrita em letras de fôrma. Àsvezes ele deixa espaços entre as “le-tras”. As diferenciações internas àsseqüências continuam a ocorrer pelouso de cores diferentes. Numa des-sas produções, Bruno traça uma for-ma muito semelhante a um N [Fi-gura 3]. Ao fazê-lo, ele interrompea seqüência e deixa a folha sobre amesa. Fica muito dispersivo, tentair embora da sala e não volta aospapéis nessa sessão.

Na mesma época, os atendimen-tos passam a incluir um novo jogo,que desempenhará um papel muitoimportante no trabalho fonoaudio-lógico com esse paciente. Entre ou-tros brinquedos que se encontramsobre a mesa, Bruno escolhe o Cara-a-Cara. Ele levanta todas as figurasdo tabuleiro e me puxa pela mão,apontando, com meu dedo, o nome

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escrito sob cada rosto. Tomo isso comoum pedido de que eu leia para ele.Trata-se de algo que nunca haviaocorrido antes (com livros, revistas ouqualquer outro material que compor-tasse escrita). Eu leio o nome apon-tado, e Bruno passa à figura seguintedo tabuleiro, fazendo isso com todaselas (24 figuras), da esquerda para adireita, fileira por fileira. Pergunto-me se seu percurso “fileira por filei-ra” sinaliza outra marca de seu enla-çamento pela escrita: ao ler, nos mo-vimentamos “linha por linha”. Nes-se momento, quem lê sou eu, masconsidero possível que os gestos deBruno já se encontrem de algummodo marcados pela atividade de lei-tura de um outro (penso no gesto dealguém que lê passando o dedo sob alinha, da esquerda para a direita). Elerepete esse jogo com o outro tabulei-ro e, a seguir, com os dois tabuleirosao mesmo tempo. Nestes, as figurasestão dispostas na mesma ordem.Bruno indica uma pessoa, espera queeu leia seu nome, aponta a mesmapessoa no outro tabuleiro, espera que

eu leia de novo o mesmo nome, eentão passa à figura seguinte.

Bruno retorna ao Cara-a-Caradurante muitas sessões. O jogo des-crito acima se repete algumas vezes.Num dado momento, em vez de lero nome apontado por ele, eu digoalgo diferente: “menino”, por exem-plo, ou “menino que usa óculos”. Eleinsiste na leitura do nome, apertan-do meu dedo sobre a figura até queeu a tenha produzido. A observaçãode que Bruno não aceita uma outrafala que não seja a leitura do nomeproduz um efeito importante sobreminha interpretação de sua partici-pação nesse jogo. Embora me ocor-ra a idéia de que ele possa ter me-morizado os nomes (e a relação en-tre eles e as figuras), eu penso, pelaprimeira vez, que ele pode de fatoestar lendo. Ainda que se trate ape-nas de uma possibilidade, isso pro-voca uma reinterpretação do queveio antes. Poderia o pedido de lei-tura que Bruno me dirige ser, naverdade, um pedido para que eu “em-prestasse minha voz” à sua leitura?

Figura 3

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Esse momento do atendimento tevegrande importância, pois, emboranão fosse possível responder a essapergunta, sua simples formulaçãoteve efeitos sobre minha aposta deque Bruno poderia ler (caso já nãoestivesse lendo àquela altura).

O atendimento é então inter-rompido por pouco mais de ummês, pois a família viaja para sua ci-dade natal para o aniversário de ca-samento dos avós de Bruno. Nesseperíodo, as discussões do caso coma psicanalista trazem novos elemen-tos para sustentar a hipótese de queBruno esteja lendo, pois ela relataque ele reconhece (e não aceita) os“erros” de leitura que ela faz propo-sitadamente (lendo LULA porCIRO, por exemplo).

Quando o atendimento é reto-mado, passo a “jogar” com a leiturados nomes do Cara-a-Cara. Brunoaponta Roberto, e eu “leio” Rogé-rio. Ele aponta Fernando, e eu “leio”Fernanda. Ele ri e continua apon-tando com meu dedo, até que eutenha lido corretamente. Eu insis-to: “Mas é José que está escrito aqui!”(quando ele aponta João). Ele segu-ra meu dedo com força sobre a figu-ra. Digo a ele: “Que legal, Bruno,você sabe ler!” Nesse momento, essanão é uma fala que antecipa algo queainda não está presente, que tomacomo leitura aquilo que ainda nãoé. Bruno já pode ler, embora não sejapossível caracterizar com clareza deque “modo de leitura” se trata7.

O efeito disso é a tentativa deproduzir o que me parece uma im-portante extensão nesse jogo. Leio onome das figuras apontadas por Bru-no e, em seguida, o escrevo numa

folha (sincronizando a escrita donome com sua leitura em voz alta).Busco “descolar” as palavras do ta-buleiro do Cara-a-Cara. A palavralida deve passar ao papel, espaço queBruno já vinha ocupando com suaescrita embrionária. O desdobra-mento que desejo produzir nessemomento é que as palavras que po-demos ler possam também ser es-critas. Bruno aceita essa extensão,atento. Passa a colocar meu dedosobre a figura e, a seguir, conduzirminha mão até o papel, para que euescreva cada nome.

Tento um novo desdobramen-to desse jogo: escrevo um nome, re-corto e dou para Bruno. Ele pega atira de papel, mas logo a deixa delado. Eu a coloco sobre a figura cor-respondente. Ele tira. Faço o mes-mo com mais alguns nomes: escre-vo, recorto e coloco sobre a figura.Ele sopra e faz os papéis voarem.Depois os recolhe e os põe, empi-lhados, sobre o tabuleiro. Na sema-na seguinte, vejo que ele sustentaem parte essa extensão: quando eutermino de escrever a lista de nomes,ele procura a tesoura e a põe emminha mão. Dessa vez, ele indica onome no papel, e eu o recorto.

Há uma outra observação inte-ressante, nesse momento: quandoBruno aponta a figura da Maria, notabuleiro, eu digo “mamãe” (Mariaé o nome de sua mãe). Ele não acei-ta e continua apontando a figura. Eudigo “Ué, mas a mamãe não se cha-ma Maria?”, e Bruno solta meudedo. Esse dado faz pensar que osnomes lidos nesse jogo não necessi-tam retornar de forma sempre idên-tica, isolada de outros elementos,

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para que o jogo se realize. Ele podeescutar como tal “o nome” inseridonuma cadeia.

Num momento posterior, vol-to a propor que os nomes recorta-dos do papel sejam colocados sobreas figuras correspondentes. Eu co-meço a fazê-lo, e Bruno, de início,os retira. Eu o “provoco”, dando aele uma das tiras e dizendo: “Querosó ver se você sabe onde põe!” Elepega a tira com o nome escrito eprocura a figura no tabuleiro, depo-sitando-a sobre o rosto correspon-dente. Logo a retira, mas faz o mes-mo com todos os nomes do jogo(pondo-os sobre as figuras, emboranão os deixe ficar ali). Nesse momen-to, me dou conta de que vinha es-crevendo os nomes em maiúsculas,com letra de fôrma, ao passo que,no tabuleiro, os nomes são grafadosem letra de imprensa, com apenasas iniciais em maiúsculas. Observoque essa diferença não representa umobstáculo para Bruno.

Em certos momentos, enquan-to eu produzo uma leitura silabada,sincronizada ao meu gesto de escre-ver, Bruno produz movimentos ar-ticulatórios, numa espécie de falasem som.

Meu movimento seguinte é ode “convidá-lo” a escrever os nomesno papel. Numa dada sessão, quan-do ele me dá a caneta para escrevê-los, digo que não quero mais escre-ver sozinha e lhe devolvo a caneta,indicando que ele os escreva. Brunome devolve a caneta, insistindo nopedido. Sugiro, então, que ele segu-re a caneta para que eu possa ajudá-lo a escrever, segurando sua mão(numa escrita a “duas mãos”, como

havíamos feito anteriormente com onome dele). Ele aceita, e escrevemosjuntos toda a seqüência de 24 no-mes: Bruno aponta o nome, eu o leioe ele segura a caneta sobre o papel,à espera de que eu pegue em sua mãopara escrever. Ele ri ao escrever.

O trabalho é interrompido pe-las férias. Quando o atendimento éreiniciado, no ano seguinte, obser-vo que o traçado que Bruno pro-duz sozinho mostra marcas de nossojogo de escrever a lista de nomes.Por várias vezes, ao chegar à sessão,Bruno levanta todas as figuras doCara-a-Cara, pega uma folha depapel e então produz os “noveli-nhos”, agora de cima para baixo nafolha, num arranjo espacial que fazpensar numa lista.

Continuo propondo uma escri-ta a duas mãos, e Bruno se engajanela, bastante atento ao movimentode nossas mãos sobre o papel. Pou-co a pouco, vou diminuindo o mo-vimento de condução da escrita, ten-tando deixar o traçado cada vez maispor conta dele. Cabe destacar ummomento importante nessa “escritaa duas mãos”. Escrevemos “Clara”.No momento em que chegamos aoA final, Bruno não solta a caneta(como usualmente faz, voltando-separa o tabuleiro a fim de indicar afigura seguinte). Ele segura a canetasobre esse ponto do papel, como sequisesse continuar a traçar a partirdali. Eu volto a segurar sua mão, sempropriamente conduzir seu movi-mento (pois não sei o que será tra-çado ali), e ele produz uma formacircular (uma letra a mais? uma le-tra o?) [Figura 4]. Em seguida, elelarga a caneta, interrompendo a se-

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qüência (o que é também um acon-tecimento novo, pois, até então,Bruno só abandonava esse jogo quan-do os 24 nomes tivessem sido escri-tos), e não volta a escrever nessa ses-são. Na hora de ir embora, Brunopega essa folha de papel, amassa e ajoga no lixo.

Figura 4

Figura 5

Na sessão seguinte, Bruno maisuma vez me dá a caneta para que euescreva os nomes. Quando eu digoque não quero escrever sozinha, elesegura em minha mão, invertendoo que ocorrera nas sessões anterio-res. Novamente, eu vou pouco apouco diminuindo a condução denosso traçado e tentando deixar osmovimentos por conta dele. Ele sorrienquanto escrevemos. Eu digo: “Quelegal! Você está escrevendo”. Ao fi-nal da sessão, ele amassa essa folha ea joga no lixo.

Essa escrita a duas mãos volta aocorrer na sessão seguinte. Dessavez, Bruno troca de posição comigo

diversas vezes: ora me dá a caneta esegura em minha mão, ora segura acaneta à espera de que eu pegue namão dele. Tento deixar o movimen-to cada vez mais solto, para que eleo conduza. Embora ainda não sejapossível dizer que Bruno escreve so-zinho, trata-se de algo próximo dis-so [ver Figura 5]. Além disso, ob-servo, pela primeira vez, que ele voltao olhar para as peças do Cara-a-Caradurante a escrita de um nome, comose precisasse “ver como é que se es-creve”. Mais uma vez, amassa a fo-lha em que escrevemos e a joga foraantes de ir embora.

Depois disso, Bruno pára deescrever. Não se trata de algo inédi-to em seu atendimento, pois issoocorreu antes, embora ele tenha re-tornado à escrita após algumas pou-cas sessões. De todo modo, esse “de-saparecimento” suscita uma série dequestões: o que teria possibilitado aBruno sustentar tantos movimentosimportantes ao longo de um perío-do de meses de atendimento? Ecomo se poderia entender essa “in-terrupção”? Quais terão sido os efei-tos desse trabalho sobre Bruno esobre sua possibilidade de ler/escre-ver? A continuidade do atendimen-to talvez me possibilite avançar noentendimento dessas questões.

UM PERCURSOINTERDISCIPLINAR

A aproximação entre clínicas nãoé certamente uma questão simplesde se abordar, primeiro, porque en-contramos em muitos pontos uma

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sobreposição entre as intervenções e,segundo, porque aqueles que se ocu-pam da clínica sabem bem que emvários aspectos sua prática ainda estápor se escrever.

Em ambos os tratamentos, épossível reconhecer intervençõesque encontram pontos de sobrepo-sição. Sejam elas na fala ou na es-crita, tais intervenções visam a ex-tensão simbólica e têm efeitos so-bre a constituição do sujeito. Cer-tas diferenciações que comumenteouvimos, em que o fonoaudiólogoopera com a linguagem e o psica-nalista com o sujeito, não fazemsentido. É preciso, pois, diferenciaro sujeito do indivíduo, do biológi-co, e, fundamentalmente, do sujei-to da compreensão (o eu em Freud).A palavra “sujeito” aqui faz referên-cia à função significante, tal comoela nos é apresentada por Lacan. Osujeito é efeito da entrada na lin-guagem, mas ele mesmo existe nacondição de que seja ex-sistente, ouseja, que não se reduza a nenhumde seus termos. Por definição, umsignificante representa o sujeitopara outro significante.

Certamente alguma experiênciainterdisciplinar nos permitia a cla-reza de que não buscávamos, comnossa decisão, que os distintos sabe-res pudessem se somar, produzindouma ilusão de complementaridade.Situar um atendimento em umanova clínica não significa, tampou-co, que um ou outro dos profissio-nais abandone suas especificidades.

Tal aproximação visava antesproduzir efeitos no tratamento mes-mo. Primeiro, porque, a partir de queuma fala se dirija a um outro, ins-

taura-se uma instância simbólicaque possibilitará desdobramentos,desprendendo o imaginário no qualessa fala a respeito da criança podeestar capturada. A entrada de umterceiro pode ser considerada, então,como um elemento importante nopróprio dispositivo do tratamento.

O segundo elemento importan-te na direção da interdisciplinarida-de nos parece ser o fato mesmo daparticularidade do objeto que cadaum pode recortar e que se desdo-brará na escolha de uma especiali-dade. Assim, queremos propor,como nos aponta Coriat (1997), queo especialista em qualquer campo,pelo seu interesse e estudo de umadisciplina, contará com mais elemen-tos que um outro para pensar, re-cortar, classificar, registrar e desdo-brar um objeto, de modo que pro-ponha, quando possível, um brin-car mais eficaz. A título de exem-plo, o corpo ganha extensões maisintensas e interessantes com um psi-comotricista, o brincar com a vozcom a fonoaudióloga, as articulaçõesdo saber com os psicopedagogos. Aautora ressalta que não se trata dedemonstrar e exercer nosso saber nacena terapêutica, mas que ali inte-ressa desdobrar o saber da criança ecertamente cada especialista poderádespertar o trabalho na criança, des-de um lugar e com extensões bemdiferentes.

Os relatos clínicos aqui apresen-tados permitem entrever que osmodos pelos quais o psicanalista e ofonoaudiólogo recortam e desdo-bram a produção do paciente – nes-te caso, a produção da escrita – as-sumem contornos particulares.

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NOTAS

1 Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios de Audição, Voz e Lingua-gem, da PUC-SP.

2 BERA, sigla para o nome em inglês do método de avaliação eletrofisiológica dospotenciais evocados auditivos do tronco cerebral.

3 Emissões Otoacústicas é o nome dado ao método de avaliação eletrofisiológicada função coclear.

4 Pai-avô é uma sugestão deste trabalho, já que Gepeto é pai, pela nomeação, masavô pela imagem proposta nos livros, e pelo valor dessa conjugação no caso dessemenino.

Page 22: DA ESTEREOTIPIA À CONSTITUIÇÃO DA ESCRITA …pepsic.bvsalud.org/pdf/estic/v8n14/v8n14a07.pdf · métodos de avaliação eletrofisiológica, tanto o BERA quanto a ... Não são

Dossiê

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5 Tal proposta aparece indicada por Laznikem seu livro Rumo à palavra, a respeito doque Daniel Marcel aponta, sobre as estereo-tipias, para o fato de que “o papel organiza-dor pré-simbólico destes atos ficaram letramorta” (Laznik, 1997, p. 70).

6 É possível que, nesse caso, a escolha tenharelação com a presença reiterada das formasB e Br no título do programa em questão.

7 Talvez se trate de uma leitura “em bloco”,na qual as substituições ainda não podemoperar, como requer a leitura de uma palavranova a partir de uma palavra que já se lê(“ano”, a partir de “Ana”, por exemplo).

Recebido em maio/2003.Aceito em junho/2003.