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Da Ética Contextualista à Moral Universal Aluno: Caius César de Castro Brandão ([email protected]) Orientadora: Profª Drª Helena Esser Reis ([email protected]) Universidade Federal de Goiás, 74001-970, Brasil PALAVRAS-CHAVE: Justiça, moralidade, poder, classes sociais. 1 INTRODUÇÃO Através desta Pesquisa de Iniciação Científica, nos propomos a relacionar o resultado de uma investigação sobre a justiça em Foucault com a primeira hipótese proposta no Projeto de Pesquisa CIDADANIA E JUSTIÇA: Exigências Ético-Políticas do Estado Democrático Tocquevilliano, coordenado pela Profª. Drª. Helena Esser dos Reis, a saber: “Que a idéia de justiça compartilhada pelo gênero humano cumpre o papel de norma moral universal (a qual, embora inscrita na necessidade histórico providencial, não é exterior à vontade, à razão e à ação humana) que confere aos cidadãos um critério último para julgar a própria ação e a ação coletiva.” A biografia de Michel Foucault nos revela um pensador que não se manteve alheio às questões políticas e sociais que tecem a história da humanidade... uma história marcada por lutas e dominações entre diferentes estratos de nossas sociedades. Para Foucault, não seria suficiente denunciar que por trás de um aparelho estatal existe uma classe dominante. Crítico da suposta centralidade do poder estatal, ele reconhece que o poder político é exercido mediante uma pluralidade de centros e pontos de apoio invisíveis e desconhecidos. Desta forma, a tarefa que ele assume como intelectual é a de localizar e expor os diferentes pontos de atividades do poder; os lugares e as formas nas quais a dominação é exercida. Antes de mergulhar nos textos de Foucault, tomamos o cuidado de identificar um parâmetro de investigação acerca do conceito e funcionamento da justiça. Adotamos a estratégia de não tratar neste trabalho das questões epistemológicas e da hermenêutica

Da Ética Contextualista à Moral Universal

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Através desta Pesquisa de Iniciação Científica, nos propomos a relacionar o resultado de uma investigação sobre a justiça em Foucault com a primeira hipótese proposta no Projeto de Pesquisa CIDADANIA E JUSTIÇA: Exigências Ético-Políticas do Estado Democrático Tocquevilliano, coordenado pela Profª. Drª. Helena Esser dos Reis, a saber:“Que a idéia de justiça compartilhada pelo gênero humano cumpre o papel de norma moral universal (a qual, embora inscrita na necessidade histórico providencial, não é exterior à vontade, à razão e à ação humana) que confere aos cidadãos um critério último para julgar a própria ação e a ação coletiva.”

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Page 1: Da Ética Contextualista à Moral Universal

Da Ética Contextualista à Moral Universal

Aluno: Caius César de Castro Brandão ([email protected])

Orientadora: Profª Drª Helena Esser Reis ([email protected])

Universidade Federal de Goiás, 74001-970, Brasil

PALAVRAS-CHAVE: Justiça, moralidade, poder, classes sociais.

1 INTRODUÇÃO

Através desta Pesquisa de Iniciação Científica, nos propomos a relacionar o

resultado de uma investigação sobre a justiça em Foucault com a primeira hipótese

proposta no Projeto de Pesquisa CIDADANIA E JUSTIÇA: Exigências Ético-Políticas do

Estado Democrático Tocquevilliano, coordenado pela Profª. Drª. Helena Esser dos Reis, a

saber:

“Que a idéia de justiça compartilhada pelo gênero humano cumpre o papel de norma moral universal (a qual, embora inscrita na necessidade histórico providencial, não é exterior à vontade, à razão e à ação humana) que confere aos cidadãos um critério último para julgar a própria ação e a ação coletiva.”

A biografia de Michel Foucault nos revela um pensador que não se manteve

alheio às questões políticas e sociais que tecem a história da humanidade... uma história

marcada por lutas e dominações entre diferentes estratos de nossas sociedades. Para

Foucault, não seria suficiente denunciar que por trás de um aparelho estatal existe uma

classe dominante. Crítico da suposta centralidade do poder estatal, ele reconhece que o

poder político é exercido mediante uma pluralidade de centros e pontos de apoio

invisíveis e desconhecidos. Desta forma, a tarefa que ele assume como intelectual é a de

localizar e expor os diferentes pontos de atividades do poder; os lugares e as formas nas

quais a dominação é exercida.

Antes de mergulhar nos textos de Foucault, tomamos o cuidado de identificar

um parâmetro de investigação acerca do conceito e funcionamento da justiça. Adotamos

a estratégia de não tratar neste trabalho das questões epistemológicas e da hermenêutica

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do sujeito, constitutivas da ética foucaultiana, para colocarmos o foco na abordagem que

o filósofo faz da justiça enquanto instrumento de poder entre classes sociais.

Em seguida, abordaremos a questão do poder e a sua relação com os

processos de elaboração do discurso, com referência à palestra proferida por Foucault em

sua aula inaugural no Collège de France, em 1970, intitulada “A ordem do discurso”.

Também utilizaremos como fonte argumentativa a transcrição de um debate, de 1971,

entre Michel Foucault e Noam Chomsky, facilitado pelo filósofo holandês Fons Elders.

Intitulado Human Nature: Justice versus Power (Natureza Humana: Justiça versus Poder),

este debate traz à baila uma antiga questão filosófica sobre a existência de uma natureza

humana inata, independente de nossas experiências e de influências externas. No centro

da discussão, subjaz a veemente objeção foucaultiana à noção de justiça enquanto um

princípio inato e absoluto. Neste debate com Chomsky, Foucault afirma que a justiça é

uma idéia constituída para servir como instrumento de certo poder político e econômico

ou de resistência contra ele.

Nosso próximo passo será uma breve análise de seu livro Vigiar e Punir, de

1975, pela qual pretendemos demonstrar que o estudo foucaultiano do sistema judicial

penal europeu enfatiza a utilização da justiça em termos de lutas sociais.

No capítulo Sobre a Justiça Popular, em Microfísica do Poder, Foucault

reconhece que a justiça popular é um instrumento de resistência importante e autêntico,

das classes oprimidas. A pergunta central do debate é se o tribunal popular pode ser uma

expressão da justiça popular. Na resposta de Foucault a esta questão, buscamos uma

possível definição para o conceito de justiça popular e a compreensão de quais

circunstâncias políticas, econômicas e sociais ela se faz necessária.

2 DISCUSSÃO 2.1 O Conceito de Justiça

Desde a antiguidade, a filosofia ocidental vem se ocupando com temas

relacionados à política e aos costumes. A questão da justiça, por exemplo, sempre

recebeu de distintas correntes filosóficas um papel de destaque em seus esforços de

elucidação conceitual. Aqui, no entanto, não nos interessa realizar um inventário das

diferentes conceituações de justiça ao longo da história da filosofia, mas apenas

estabelecer um parâmetro para classificar as tendências mais clássicas em duas formas

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distintas de falar sobre justiça. Na primeira, justiça se refere ao sujeito ou ao seu

comportamento em relação à norma. Na outra, a justiça é tomada como meio para um

bem maior. Esta análise nos deu critérios para reduzir a amplitude do campo de

investigação filosófica sobre a justiça nas obras de Foucault. Portanto, não foi trivial a

nossa escolha de desprezar toda a hermenêutica do sujeito e a analítica da relação entre

verdade e poder. Subtraímos da nossa abordagem os estudos epistemológicos e as

questões sobre a justiça no âmbito da subjetividade para voltar a nossa atenção ao

funcionamento da justiça enquanto instrumento de poder.

De acordo com Nicola Abbagnano, justiça é “em geral, a ordem das relações

humanas ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem.” 1 A partir desta definição,

Abbagnano realça duas abordagens distintas, a saber: por um lado, temos o critério de

julgamento da pessoa ou do seu comportamento em relação à norma e, por outro, o

critério de julgamento da norma que regula o comportamento das pessoas. No primeiro

caso, o foco é a pessoa ou o seu comportamento, no segundo, temos a própria norma

como dado a ser avaliado quanto à sua eficácia, ou seja, “sua capacidade de possibilitar

as relações humanas.” 2

Sob este ponto de vista da justiça como condição de possibilidades para se

garantir um fim benéfico ao homem e às relações entre os homens (a convivência, a

felicidade, a utilidade, a liberdade ou a paz) se desenvolveram diferentes correntes

consideradas clássicas na história da filosofia ocidental. A novidade, em Michel Foucault,

é que ele toma a justiça como instrumento de poder, sob a ótica das lutas sociais. Essa é

a abordagem que agora passamos a analisar.

2.2 O Intelectual e a Microfísica do Poder

Sob a perspectiva do compromisso político de Foucault reside uma possibilidade

de compreensão da palestra proferida por ele em sua aula inaugural no Collège de

France, em 1970, intitulada “A ordem do discurso”. Apenas um ano após assumir a

prestigiosa cadeira que antes pertencia ao já falecido Jean Hyppolite, Foucault participou

de um debate com Noam Chomsky, Human Nature: Justice versus Power (Natureza

Humana: Justiça versus Poder), facilitado pelo filósofo holandês Fons Elders. Quando

questionado por Elders acerca do seu interesse pela política, Foucault responde que “a

essência de nossas vidas consiste, afinal, no funcionamento político da sociedade na qual 1 ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 1ª edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 2 Idem.

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nos encontramos” 3 [tradução nossa]. Oportunamente, salientamos que democracia, para

Foucault, é o efetivo exercício de poder por uma população que não é dividida, nem

hierarquicamente ordenada em classes sociais. Foucault prossegue:

“É óbvio que estamos vivendo sob um regime ditatorial de classes, sob um poder de classe que se impõem pela violência, até mesmo quando os instrumentos de tal poder são institucionais e constitucionais. (...) Eu admito não ser capaz de definir, nem mesmo por razões ainda mais fortes de propor, um modelo ideal de funcionamento de nossa sociedade científica e tecnológica. (...) Por outro lado, uma tarefa que me parece imediata e urgente, acima de qualquer outra coisa, é essa: Deveríamos indicar e demonstrar, até mesmo quando estiverem escondidas, todas as relações de poder político que controlam, oprimem e reprimem o corpo social.” 4 [tradução nossa]

A princípio, algumas instituições, diferentemente da polícia, do exército e do

tribunal judiciário, não demonstram nenhuma relação com o poder político. Por exemplo, a

Universidade ou o sistema educacional como um todo podem parecer fazer nada mais do

que simplesmente disseminar conhecimento. Mas, na visão de Foucault, “elas são feitas

para manter certa classe social no poder; e para excluir os instrumentos de poder de outra

classe.” 5

No capítulo IV da “Microfísica do poder” – Os intelectuais e o poder - Conversa

entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, Foucault nos deixa clara a sua posição política,

conforme podemos observar no seguinte trecho:

“Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a idéia de que eles são agentes da "consciência" e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar "um pouco na frente ou um pouco de lado" para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da "verdade", da "consciência", do discurso.” 6

3 FOUCAULT, M. e CHOMSKY, N. Human nature: justice versus power. Disponível em http://www.chomsky.info/debates/1971xxxx.htm

. 20/05/2010

4 Idem. 5 Idem. 6 FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. São Paulo: Ed. Graal, 1979. (p. 71)

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Portanto, não é trivial a tese de que Foucault tenha feito exatamente isto – lutar

contra uma forma de poder, ao colocar em pauta a ‘ordem do discurso’ em sua aula

inaugural no Collège de France. Se o papel da Universidade é manter certa classe social

no poder; e se é verdade que a instituição deva ser atacada em seu âmago para ser

destruída, então, cogitar a subversão da ordem do discurso parece ter sido mesmo a

melhor estratégia para questionar o papel do sistema educacional numa sociedade

dividida em classes. A Universidade, o manicômio e a prisão são instituições que foram

alvo da genealogia do poder desenvolvida por Foucault ao longo da sua vida de trabalho.

Vejamos o que Foucault tem a dizer sobre o poder, enquanto discute o papel do

intelectual em seu debate com Deleuze:

“Existe atualmente um grande desconhecido: quem exerce o poder? Onde o exerce? Atualmente se sabe, mais ou menos, quem explora, para onde vai o lucro, por que mãos ele passa e onde ele se reinveste, mas o poder... Sabe-se muito bem que não são os governantes que o detêm. Mas a noção de "classe dirigente" nem é muito clara nem muito elaborada. "Dominar", "dirigir", "governar", "grupo no poder", "aparelho de Estado", etc.. é todo um conjunto de noções que exige análise. Além disso, seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de que revezamentos e até que instâncias, freqüentemente ínfimas, de controle, de vigilância, de proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui.” 7

Em “A ordem do discurso”, Foucault nos fala deste mesmo poder e o relaciona com

aquilo que seria um processo ordenado de produção de discursos em nossas sociedades.

Os discursos cotidianos são mais efêmeros do que os “discursos sérios” da instituição,

tais como o da medicina, da psiquiatria e da política. Para Foucault, “o discurso não é

simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo

que se luta, o poder que queremos nos apoderar.” 8 Ele então abandona a hermenêutica

e toma o discurso como prática social. Foucault se coloca acima do nível da proposição

de um texto para analisar o discurso enquanto um ‘acontecimento’ que se dá mediante

condições de possibilidades e regras pré-estabelecidas. Em “A ordem do discurso”,

Foucault coloca a seguinte hipótese:

“Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e

7 Idem. 8 FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso – Aula inaugural no College de France. Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo. Ed. Loyola: 1996. (p. 10)

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perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.” 9

2.2 Crítica ao Ideal de Justiça A antropologia filosófica se propõe a explicar a idéia de justiça a partir de reflexões

acerca da natureza humana, ou seja, a partir de certas estruturas fundamentais do

homem. Noam Chomsky – filósofo, lingüista e militante político contemporâneo – por sua

vez, realiza estudos lingüísticos empíricos para identificar certos “conhecimentos

instintivos” ou “princípios organizadores” 10 inatos ao ser humano, os quais orientam

nossos comportamentos sociais e individuais. Em suma, tais princípios seriam um dos

componentes fundamentais daquilo que ele chama de natureza humana. Chomsky afirma

que o conhecimento de princípios inatos, mesmo que parcial, deve ser posto a serviço da

elaboração de uma teoria social humanista com o objetivo visionário de construir uma

sociedade justa. Tendo Foucault como seu interlocutor em um debate 11 facilitado por

Fons Elders, Chomsky faz a seguinte ponderação:

“Acredito que seria uma grande pena deixar inteiramente de lado a tarefa filosófica, e de certa forma mais abstrata, de tentar estabelecer conexões entre um conceito de natureza humana – que permite total alcance à liberdade, dignidade, criatividade e outras características humanas fundamentais – e a noção de uma estrutura social na qual tais propriedades poderiam ser concretizadas (...)” 12 [tradução nossa].

Foucault, ao contrário de Chomsky, não atribui à noção de natureza humana

um valor científico. Ele argumenta que não foi através do estudo da natureza humana que

Freud descobriu os princípios de análise dos sonhos, ou antropologistas culturais as

estruturas dos mitos. Em seguida, Foucault afirma:

“Na história do conhecimento, a noção de natureza humana me parece ter desempenhado, principalmente, o papel de referência epistemológica para designar certos tipos de discursos, em relação ou em oposição à teologia, biologia ou história. Eu dificilmente veria nisto um conceito científico.” 13

[tradução nossa].

9 Idem. (p. 8) 10 CHOMSKY, N.; FOUCAULT, M. Human Nature: Justice versus Power. Disponível em http://www.chomsky.info/debates/1971xxxx.htm . 20/05/2010 11 Idem. 12 Idem. 13 Idem.

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Reconhecendo a inexistência de qualquer fundamento absoluto e universal,

como alguns pensadores atribuem à idéia de natureza humana, Foucault não se

compromete em propor um modelo de justiça para a sociedade. Ele chega a questionar a

validade da utilização da noção de justiça ideal como fundamento de uma crítica do

funcionamento da justiça instuticional. Para ele, é a utilidade para as lutas de classe que

justifica o conhecimento sobre a justiça, sobre como ela é disseminada nos discursos e

práticas das instituições, e sobre os objetivos de quem a instituiu e controla. Foucault

reconhece que a questão da justiça está sempre presente em todas as lutas sociais, mas

adverte, “ao invés de pensar a luta social em termos de ‘justiça’, deve-se enfatizar a

justiça em termos de luta social.” 14 [tradução nossa] A classe oprimida não inicia uma

guerra contra a classe opressora porque considera tal guerra justa, mas porque ela quer,

finalmente, tomar o poder. Por outro lado, no seio de uma sociedade divida em classes, a

noção de justiça pode funcionar como uma demanda dos oprimidos ou como uma

justificativa para tal demanda.

Ao invés de tratar a idéia de justiça como um princípio absoluto e inerente à

natureza do homem, Foucault a coloca no plano da historicidade das relações de poder. A

história da justiça demonstra que ela nada mais é do que algo inventado para servir como

instrumento de certo poder político e econômico ou de resistência contra este poder. Esta

civilização que constrói muros para separar classes sociais possui um tipo de

conhecimento e uma forma de filosofia que possibilitam a formação de certos conceitos,

tais como o de natureza humana, de essência do homem, e de justiça. Para Foucault,

seria infrutífera a tentativa de utilizar uma noção de justiça ideal para definir ou justificar a

luta das classes oprimidas contra seus opressores, porque esta luta deveria, em princípio,

modificar os fundamentos do nosso modelo civilizatório. Quiçá teríamos uma noção

diferente de justiça numa sociedade sem divisão de classes.

Como veremos a seguir, o estudo arqueológico que Foucault faz do sistema

judicial penal europeu enfatiza a noção de justiça como instrumento de poder e

dominação.

2.3 O Poder de Fazer Justiça

Em 1975, Michel Foucault publica Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Nesta

obra, a aurora do homem moderno aparece relacionada ao desenvolvimento da

14 Idem.

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tecnologia disciplinar e de uma ciência social normativa. Entre os séculos XVIII e XIX, a

Europa sofreu significativas transformações políticas e econômicas que nutriram o

surgimento do Estado moderno e, com ele, um novo poder de julgar e punir.

Nos antigos regimes monárquicos, o poder de fazer justiça estava inscrito na

pessoa do soberano, mesmo tendo ele conferido aos tribunais a tarefa de exercer tal

poder. Isto, no entanto, não é uma alienação do seu direito de julgar, já que ele resguarda

pra si o direito de suspender ou confirmar as decisões dos tribunais. O príncipe

personifica a justiça de tal forma que sempre quando um crime é cometido, o poder

soberano é diretamente atacado. Para Foucault, “a intervenção do soberano não é (...)

uma arbitragem entre dois adversários; (...) é uma réplica direta àquele que o ofendeu.” 15

O castigo do condenado servirá para demonstrar a força quase infinita do príncipe, de

onde provém o direito de fazer justiça. O aparelho de justiça deixa claro que tal direito não

pertence aos súditos. “Diante da justiça do soberano, todas as vozes devem-se calar.” 16

Talvez o castigo não funcione como reparação do dano causado à vítima, mas como

vingança pessoal do príncipe.

Até meados do século XVIII, o suplício dos condenados era uma prática comum

em toda a Europa. De acordo com Foucault, em Vigiar e Punir:

“A morte-suplício é a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em ‘mil mortes’ e obtendo, antes de cessar a existência, the most exquisite agonies. O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento.”

Gradativamente, a eficácia dos suplícios começa a ser questionada pelos

operadores da justiça. Os espetáculos de crueldade por vezes causavam tumulto social.

Outro problema são os casos em que condenados passam a ser considerados heróis

populares pelas massas, porque ousaram desafiar o poder do soberano. Foucault faz a

seguinte ponderação: “No abandono da liturgia dos suplícios, que papel tiveram os sentimentos de humanidade para com os condenados? Houve de todo modo, de parte do poder, um medo político diante do efeito desses rituais ambíguos.” 17

Para Foucault, seria um exagero atribuir como causa da mitigação das penas na reforma do sistema penal o aumento de sensibilidade da sociedade européia ou os esforços de reformadores humanistas: 15 FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987. 16 Idem. 17 Idem.

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“Não foram os mais esclarecidos dos expostos à ação da justiça, nem os filósofos inimigos do despotismo e amigos da humanidade, não foram nem os grupos sociais opostos aos parlamentares que suscitaram a reforma. (...) A reforma não foi preparada fora do aparato judiciário e contra todos os seus representantes; foi preparada, e no essencial, de dentro, por um grande número de magistrados e a partir de objetivos que lhes eram comuns e dos conflitos de poder que os opunham uns aos outros.” 18

A reforma do sistema judicial penal não visava estabelecer uma nova justiça

com base em princípios humanitários, mas instituir o que Foucault chama de “uma nova

‘economia’ do poder de castigar” 19, garantindo, assim, a sua melhor distribuição. De

acordo com Dreyfus e Rabinow (1995), com a reforma, o crime deixa de ser visto como

ataque direto ao corpo do soberano para ser tratado como quebra do contrato social que

vitima a sociedade como um todo. Antes de princípios democráticos, o que determina

essa mudança é uma necessidade estratégica de distribuir o poder de julgar e punir. A

punição, então, deixa de ser um direito do soberano para se consolidar como uma

obrigação da sociedade. O objetivo da reforma não é punir menos, mas punir com maior

eficácia.

Com a dissolução dos governos monárquicos e o surgimento do estado burguês, o

poder de fazer justiça passa a se fundamentar e obter suas justificativas e regras a partir

do desenvolvimento de um ‘complexo científico-judiciário’, até então inexistente. Foucault

demonstra como os novos saberes produzidos pelas chamadas ciências do espírito, tais

como a psicologia, a psiquiatria e a psicopedagogia, foram postos a serviço do aparato

jurídico do Estado. Chegamos à era dos ‘castigos incorpóreos’. O alvo agora não é mais o

corpo do condenado, mas a sua alma. O objetivo não é mais punir o autor de um crime,

mas estudar, classificar, qualificar, prender e recuperar o sujeito delinquente. No lugar do

crime, temos agora a criminalidade como objeto da intervenção da justiça penal. De

acordo com Dreyfus e Rabinow, “em Vigiar e Punir, Foucault apresenta a genealogia do

indivíduo moderno como um corpo dócil e mudo (...)” 20.

2.4 Sobre a Justiça Popular

No fim do século XVIII, motivados por ideais democráticos, líderes da

Revolução Francesa implantaram o tribunal popular. Seria o Tribunal do Povo, idealizado 18 Idem. 19 Idem. 20 DREYFUS, H. e RABINOW, P. Michel Foucault: Uma Trajetória Filosófica – Para Além do Estruturalismo e da Hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. 1ª edição brasileira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

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por Danton, um dos principais líderes da Revolução, uma expressão genuína da justiça

popular? Deixaremos que Foucault responda com suas próprias palavras: “No caso que eu cito, o Tribunal Popular, tal como funcionou durante a Revolução Francesa, tendia a ser uma terceira instância, aliás bem determinada socialmente; representava uma linha intermediária entre a burguesia no poder e a plebe parisiense, uma pequena burguesia composta de pequenos proprietários, pequenos comerciantes, artesãos. Colocaram-se como intermediários, fizeram funcionar um tribunal mediador e, para fazê-lo funcionar referiram-se a uma ideologia que era até certo ponto a ideologia da classe dominante, ao que era "bom" e "não bom" fazer ou ser. (...) Vê-se bem então que eles retomaram o lugar "mediano" da instância judiciária tal como ela tinha funcionado no Antigo Regime. Eles substituíram o revide das massas àqueles que eram os seus inimigos pelo funcionamento de um tribunal e boa parte de sua ideologia.”21

Por ironia do destino, quando Danton deixou de representar os interesses da

classe dominante, ele foi julgado e condenado à guilhotina pelo mesmo tribunal que ele

criou.

Quando a decisão sobre o que é justo ou injusto em uma sociedade de classes

é tomada por uma instância supostamente neutra (o tribunal judiciário), o conceito de

justiça sobre o qual ela se fundamenta corresponde aos interesses da classe que a

instituiu e controla. Foucault é categórico ao afirmar que o tribunal, enquanto aparato do

Estado, tem a função de dividir as massas. Ele entende que o tribunal popular (enquanto

elemento de intermediação entre as partes em litígio) pode escamotear a justiça popular.

Por exemplo: a disposição espacial das pessoas que com compõem um tribunal revela a

ideologia que ele representa. Separando as partes em litígio, é posta uma mesa composta

por juízes. A posição deles representa uma neutralidade entre as partes. O julgamento do

mérito só é proferido após a defesa e a acusação terem se pronunciado. As decisões dos

juízes tomam como fundamento uma ideologia composta de “certa norma de verdade e

de um certo número de idéias sobre o justo e o injusto.” A posição dos juízes implica

autoridade, já que a sua decisão deverá ser cumprida. Entretanto, a idéia de uma

autoridade neutra que decide a disputa entre duas partes com base numa justiça com

valor absoluto é totalmente contrária à idéia de justiça popular. Na justiça popular existem

apenas as massas e seus inimigos. Aqui inexiste um elemento neutro que decide com

autoridade. Tão pouco, os oprimidos se valem de uma noção de justiça abstrata e

universal, quando decidem punir ou re-educar seus inimigos. Sua decisão tem como base

a experiência concreta. Isto é, os danos que sofreram e a forma como foram prejudicados. 21 FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. São Paulo: Ed. Graal, 1979.

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Foucault enxerga a subversão do poder judiciário pelas classes oprimidas como

atos de justiça popular em resistência e superação da opressão exercida pela classe

dominadora. Por exemplo, no início de julho de 1789, o rei da França, Luis XVI, ordenou o

cerco de Paris por 30 mil homens das tropas reais. Seu objetivo era sufocar o ânimo

revoltoso da população. No entanto, com intuito de se defender contra a opressão do

soberano, o povo formou a Guarda Nacional e, em 14 de julho, se insurgiu contra um

ícone do poder do rei: a prisão da Bastilha. De acordo com Foucault, “(...) a Revolução

Francesa era uma revolta anti-judiciária. A primeira coisa que ela explodiu foi o aparelho

judiciário.” 22

Foucault reconhece que o ato de justiça popular “não poder ser confiado a uma

espécie de espontaneidade instantânea, não refletida, não integrada a uma luta de

conjunto”. 23 Ao contrário, a justiça popular deve promover a elucidação política e a

eliminação da alienação e da divisão ideológica entre diferentes camadas das classes

populares.

O conceito de justiça popular, em Foucault, é formulado através de uma

abordagem analítica da historicidade da justiça e das relações de poder. A história da

justiça narrada por Foucault cumpre a tarefa de denunciar as instâncias de controle,

vigilância e coerção da classe opressora sobre a massa popular. Face ao exposto,

concluímos que, para Michel Foucault, a justiça popular é um instrumento de subversão

importante e autêntico das classes oprimidas contra seus inimigos e contra o aparato de

justiça dos seus opressores.

3 Considerações Finais

De acordo com Nithamar Oliveira, “(...) podemos apenas falar de uma ética não-

cognitivista, não-universalizável e contextualista em Foucault, onde as práticas de

resistência e as lutas pela liberdade desautorizam qualquer pretensão humanista.” 24

A primeira hipótese proposta no Projeto de Pesquisa CIDADANIA E JUSTIÇA:

Exigências Ético-Políticas do Estado Democrático Tocquevilliano, fala sobre uma “idéia de

justiça” que desempenha “o papel de norma moral universal”. Foucault, por outro lado,

não toma uma idéia de justiça como fundamento absoluto e universal para “julgar a

22 Idem. 23 Idem. 24 OLIVEIRA, N. Tractatus Ethico-Politicus – Genealogia do Ethos Moderno. Porto Alegre: Edipucrs, 1999.

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própria ação e a ação coletiva”. O que está em foco na analítica foucaultiana da justiça

enquanto instrumento de poder é a norma como dado a ser avaliado quanto à sua

eficácia, como dizia Abbagnano, “sua capacidade de possibilitar as relações humanas.”

Por outro lado, a busca por critérios últimos para discernir o justo do injusto aponta para a

necessidade de direcionar a continuação desta pesquisa para a compreensão dos

processos de constituição do ‘sujeito de justiça’, a partir da hermenêutica de Michel

Foucault.

4 Resultados 4.1 Apresentações de Trabalhos com Publicações de Resumos

• Os Caminhos Percorridos pelo Homem Natural até a Constituição do Corpo Moral e Coletivo - I Jornada de Estudos J.J. Rousseau. USP, Departamento de Filosofia, Março de 2010.

• A Justiça Popular em Michel Foucault. XVII Semana de Filosofia da UFG,

Departamento de Filosofia, Maio de 2010.

REFERÊNCIAS

Livros

DREYFUS, H. e RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica – para além do

estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. 1ª edição brasileira.

Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso – Aula inaugural no College de France.

Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo. Ed. Loyola: 1996.

______________ Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete.

Petrópolis: Vozes, 1987.

______________ Microfísica do poder. São Paulo: Ed. Graal, 1979.

OLIVEIRA, N. Tractatus ethico-politicus – genealogia do ethos moderno. Porto Alegre:

Edipucrs, 1999.

Page 13: Da Ética Contextualista à Moral Universal

Dicionário ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 1ª edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes,

2000.

Transcrição de Debate

FOUCAULT, M. e CHOMSKY, N. Human nature: justice versus power. Disponível em

http://www.chomsky.info/debates/1971xxxx.htm . 20/05/2010