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Da exclusão à inclusão no sagrado: um estudo sobre uma igreja inclusiva do ABC paulista e sua posição em relação à redesignação
sexual e ao aborto, SEICHI, Fabio Yuzo Hioki, PINEZI, Ana Keila Mosca
Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4
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DA EXCLUSÃO À INCLUSÃO NO SAGRADO: UM ESTUDO SOBRE
UMA IGREJA INCLUSIVA DO ABC PAULISTA E SUA POSIÇÃO EM
RELAÇÃO À REDESIGNAÇÃO SEXUAL E AO ABORTO
SEICHI, Fabio Yuzo Hioki
Graduando do Curso de Bacharelado em Ciências e Tecnologia da Universidade Federal do ABC
PINEZI, Ana Keila Mosca
Docente da Universidade Federal do ABC [email protected]
RESUMO A presente pesquisa visa à compreensão de questões concernentes ao corpo e à sexualidade, a partir da
ótica dos adeptos da igreja inclusiva Comunidade Cristã Nova Esperança Internacional ABC, localizada
em Santo André, SP. Nascidas recentemente, as igrejas “inclusivas” suscitam importantes debates e ruptura de paradigmas tradicionalmente encontrados no meio evangélico. Elas se alicerçam na aceitação
de membros homossexuais que saíram das igrejas evangélicas tradicionais. Nesta pesquisa, pretende-se
investigar como os membros da citada igreja pensam temas polêmicos. Especificamente, os temas escolhidos são o aborto e a cirurgia de redesignação sexual. Esses temas foram escolhidos porque são
tradicionalmente considerados contrários à ordem natural criada pela divindade e, portanto, enfrentam
grande resistência por parte de grupos evangélicos e católicos. A pesquisa será realizada por meio do método etnográfico, que prevê o trabalho de campo, a entrevista aberta e a observação participante nos
cultos e rituais do grupo religioso supracitado.
Palavras-chave: igreja inclusiva, aborto, cirurgia de redesignação sexual.
ABSTRACT
The following research aims the comprehension on issues concerning to body and sexuality, from the
perspective of the followers of an inclusive church, CCNE ABC (Comunidade Cristã Nova Esperança
ABC), located in Santo André, SP. As a newborn, these “inclusive” churches promote important debates and ruptures of paradigms traditionally present in the evangelical context. They are based on the
acceptance of homosexual members that have left traditional evangelical churches. In this research, it is
intended to investigate how the member from the church cited above think about these polemic themes. Specifically, the chosen themes are the abortion and the sex reassignment surgery. These themes were
chosen because they are traditionally considered against the natural order created by the divinity and,
therefore, face wide resistance by the evangelical and catholic groups. The research was carried out by means of the ethnographic method, which encompasses fieldwork, opened interview and participant
observation on the cults and rituals of the religious group in question.
Key-words: inclusive church, abortion, sex reassignment surgery.
Da exclusão à inclusão no sagrado: um estudo sobre uma igreja inclusiva do ABC paulista e sua posição em relação à redesignação
sexual e ao aborto, SEICHI, Fabio Yuzo Hioki, PINEZI, Ana Keila Mosca
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INTRODUÇÃO
A presente pesquisa visou compreender questões concernentes a corpo e sexualidade a
partir da ótica dos adeptos da igreja inclusiva Comunidade Cristã Nova Esperança Internacional
(CCNE) ABC, localizada em Santo André, SP. Nascidas recentemente, as igrejas “inclusivas”
suscitam importantes debates e ruptura de paradigmas tradicionalmente encontrados no meio
evangélico, em especial no que se refere à sexualidade. Nesta pesquisa, investigou-se como os
membros da citada igreja pensam temas polêmicos. Os temas escolhidos foram o aborto e a
cirurgia de redesignação sexual por serem tradicionalmente considerados contrários à ordem
natural criada pela divindade e, portanto, terem grande resistência por parte de grupos
evangélicos e católicos. A pesquisa foi realizada por meio do método etnográfico. Foram
observados cultos e rituais do grupo religioso mencionado, além das entrevistas abertas
realizadas com membros da CCNE. A igreja mostrou-se vanguardista no que diz respeito à
aceitação de homossexuais. Entretanto, mantém concepções de gênero mais tradicionais como
a naturalização do papel materno da mulher (semelhante ao posicionamento de diversas igrejas
evangélicas não-inclusivas), além de um posicionamento ambíguo em relação à
transexualidade.
1. IGREJA INCLUSIVA, ABORTO E CIRURGIA DE REDESGINAÇÃO SEXUAL
Majoritariamente, as igrejas cristãs, católicas e protestantes, cis-hétero-normativas, não
creditam legitimidade a este novo ramo inclusivo religioso. Ao contrário, rechaçam a
normalidade atribuída à diversidade sexual e a liberdade quanto à identificação de gênero.
O aborto e a transexualidade são outros dois temas relevantes à discussão, em razão de
serem condenados pela maioria das igrejas cristãs e, simultaneamente, terem relação direta com
os pilares ideológicos da vertente protestante inclusiva, direta ou indiretamente.
1.1. A cirurgia de redesignação
Apesar de não haver um pronunciamento oficial em relação à transexualidade, é
possível depreender que as igrejas evangélicas neopentecostais compartilham da mesma
concepção ainda adotada pela OMS, qual seja: a transexualidade como patologia. Atentando ao
fato de que todas as expressões não-heterossexuais são ainda consideradas uma perversão
segundo a maioria das denominações evangélicas e que as igrejas inclusivas têm como
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principal mote a defesa da liberdade de identidade sexual, pressupôs-se que esta vertente
tivesse, também, empatia por outras categorias sociais oprimidas, por exemplo, as pessoas
transexuais. Desta forma, reposicionando a transexualidade como uma questão legítima, a
igreja inclusiva, que abertamente declara-se pró-LGBT (incluído, portanto, os transgêneros),
seria a favor da cirurgia de readequação sexual.
1.2. O aborto
Os movimentos feministas surgem com a pretensão de descontruir a naturalização de
um conjunto de deveres e obrigatoriedades atribuídos às mulheres. A partir da metade do século
XX, com a inserção das mulheres no mercado de trabalho e o surgimento do fármaco
anticoncepcional, problemáticas surgem em relação ao papel social estabelecido ao sexo e ao
gênero feminino. Observa-se, neste momento, a crítica enfática com relação à maternidade
como intrínseca à mulher. A naturalização da maternidade seria, portanto, responsável pela
manutenção dos seus lugares comuns – estes representados pelos papeis patriarcalmente
construídos aos quais as mulheres “pertencem”: responsável pela casa, pela família, pela
educação dos filhos etc. Mais que isso, o tradicional lugar social da mulher dava respaldo à
desigualdade entre os sexos, segundo Ferrand e Langevin (1990, apud SCAVONE, 2001).
As igrejas cristãs tradicionais, por outro lado, entendem a gestação como a própria obra
divina de perpetuação da espécie. Opõem-se, portanto, ao aborto, considerando-o uma
intervenção contrária à vontade de deus. É possível depreender, também, a construção de
gênero, a partir da ótica de algumas vertentes evangélicas tradicionais, em relação às mulheres:
nascidas para a maternidade, como poderiam sequer cogitar a interrupção de sua gravidez? No
caso das vertentes evangélicas pentecostais, de uma maneira geral, a condição da mulher deve
estar voltada a seu papel como mãe e esposa. Assim, as práticas religiosas pentecostais,
segundo Scavone (2008, p. 6), “reafirmam o lugar tradicional das mulheres na sociedade, de
acordo com sua doutrina patriarcal e androcêntrica”. Ainda sobre as denominações evangélicas
pentecostais:
A maioria delas, entretanto, não se opõe ao uso de contraceptivos modernos, embora desaprovem o aborto. O aborto é condenado pelo conjunto das
religiões cristãs e orientais [...]. (SCAVONE, 2008, p. 6)
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Oriunda da exclusão de adeptos homossexuais no âmbito evangélico, especialmente das
igrejas protestantes históricas, a igreja inclusiva concede aos conversos que fazem parte do
grupo LGBT acesso ao sagrado, à salvação, e, principalmente, exime-os da condenação em
razão da suposta inversão da ordem natural da criação divina. Desta forma, a observação do
posicionamento dos adeptos de uma destas igrejas “recém-nascidas” – da igreja CCNEI ABC,
especificamente – revelou-se um campo fecundo de investigação científica para compreender
como se dá a dinâmica do pluralismo religioso brasileiro e da sua diversidade quanto a vertentes
e posição em relação a questões que dizem respeito a toda a sociedade brasileira.
1.3. Figuras e tabelas
Figura 1 – Quadro de Caracterização dos Participantes da Pesquisa
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A igreja inclusiva, ramo evangélico do qual a CCNE ABC (Comunidade Cristã Nova
Esperança ABC), estudada nesta pesquisa, faz parte, começa a ser moldada, no Brasil, na
década de 1990, devido à intensificação da atividade política da comunidade LGBT (Lésbicas,
Gays, Bissexuais e Transgêneros) – com temas referentes, por exemplo, à despatologização da
homossexualidade, aos direitos civis e à luta contra a homofobia -, a partir da qual as discussões
sobre a segregação sexual no âmbito religioso ganham ênfase (NATIVIDADE, 2010). Além
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disso, a laicização do Estado é, concomitantemente, uma das responsáveis por sua emergência
(STEIL, 2001), uma vez que a liberdade religiosa é garantida pela Constituição.
Gomes (2009, p. 99) discorre sobre a questão do aborto no meio religioso, em especial
de vertente cristã: “A premissa ‘vida é dom de Deus’ é consenso”. Hoje, o movimento feminista
reivindica a autonomia da mulher sobre o seu corpo, sobre a escolha da hora mais apropriada
para se conceber um filho ou mesmo não ter filhos. Para além dos argumentos de emancipação
da mulher e de equidade de gênero, há urgência no clamor pela descriminalização integral do
aborto devido à elevada taxa de mortalidade em casos de aborto clandestino, uma vez que as
condições para a sua realização e os métodos que são utilizados são inapropriados. Segundo
Diniz e Medeiros (2010, p. 964), com base na Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), “o aborto é
tão comum no Brasil que, ao completar quarenta anos, mais de uma em cada cinco mulheres já
fez aborto”.
A transexualidade é considerada, uma vez que destoante da cissexualidade, uma
anormalidade cuja “cura” provém da intervenção divina. É, portanto, condenável, considerada
pecado porque é vista como um desvio da natureza perfeita criada por deus. Apesar de o
enquadramento do “transexualismo” como doença possibilitar a reivindicação do direito da
pessoa transexual à cirurgia de redesignação sexual, esta caracterização é responsável, também,
pela manutenção da marginalização e discriminação social. Considerando o ser humano como
criação divina, logo, acabado e perfeito, o entendimento de que a identidade de gênero com a
qual uma pessoa se reconhece é diferente do que representa o seu sexo biológico coloca em
xeque a excelência dos feitos de deus; assim, abre-se a possibilidade de questionamento quanto
à excelência de deus e da perfeição de sua criação.
É, portanto, essencial a compreensão socioantropológica de como a doutrina da igreja
inclusiva organiza valores e regras em relação a questões intrínsecas à própria instituição, os
quais tangenciam ou atingem em cheio os direitos da mulher, os direitos reprodutivos e o direito
dos transexuais, em contraposição ao discurso cristão conservador, o qual se respalda em uma
interpretação bíblica que afirma a cissexualidade como a única e correta forma de viver a
identidade de gênero, segundo a vontade divina.
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3. RESULTADOS ALCANÇADOS
A coleta de dados foi feita de acordo com o método etnográfico. O trabalho de campo
teve início em agosto de 2014, com a primeira visitação à igreja CCNE ABC, localizada em
Santo André, no ABC Paulista. A observação participante, parte integrante do método
etnográfico, foi feita nos momentos de culto e também nos momentos de entrevistas abertas
realizadas com alguns membros desse grupo evangélico. A observação se deu quanto ao espaço
físico, aos símbolos presentes, aos adeptos (no que concerne à expressão da religiosidade e de
posturas em relação a temáticas contemporâneas etc.) e ao próprio culto como ritual e expressão
da crença e dos valores desses fiéis.
A igreja está localizada atualmente em uma das principais avenidas da cidade de Santo
André, em um local de fácil acesso, em um bairro popular da cidade. Um banner, com o nome
da igreja e seu mote “Uma igreja que acolhe a diversidade humana”, e uma garagem, com
espaço para quatro carros, compõem a entrada da igreja, a qual se localiza no fim da garagem. O
corpo de fiéis é composto, majoritariamente, por homossexuais e, também, percebe-se a
prevalência de pessoas cisgênero, em comparação ao número de pessoas transgênero.
Com respaldo nas observações feitas nos cultos, cinco fiéis foram selecionados para
participar da entrevista aberta, cujo roteiro foi estruturado previamente. Os cincos entrevistados
foram escolhidos devido às diferenças evidentes entre eles, tais como sexo e idade, e à sua
relação direta com os temas de interesse, por exemplo: mulheres/aborto e pessoas trans/cirurgia
de transgenitalização. Os nomes deles são fictícios neste trabalho.
O primeiro entrevistado, o pastor Antônio, foi escolhido devido ao seu envolvimento
com a igreja e com as suas diretrizes doutrinárias; foi ele quem fundou a igreja CCNE. A
segunda entrevistada, Ana, foi escolhida por ser uma mulher. Ela tem por volta dos 30 anos,
tem um relacionamento estável homoafetivo e é mãe. A terceira entrevistada, Márcia foi
escolhida devido à sua influência dentro da instituição, por ser mulher cis homossexual, casada,
por ter cerca de 40 anos e ser mãe. O quarto entrevistado, Lucas, foi escolhido devido à
utilização de elementos femininos (cabelo curto e salto alto), o que representava certa
transgressão dos padrões de gênero, e por ter se convertido recentemente. A quinta entrevistada,
Larissa, foi escolhida por identificar-se como mulher transexual, ter cerca de 30 anos, e pelo seu
envolvimento com a igreja (membro da diaconia).
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Concomitantemente às entrevistas, um questionário simples, composto por três
perguntas, foi elaborado e distribuído para alguns membros da igreja, a fim de possibilitar a
coleta de dados sobre qual seria o posicionamento mais comum em relação aos dois temas, o de
aborto e o de cirurgia de redesignação sexual.
3.1 A CCNE e a cirurgia de transgenitalização
No que se refere à transexualidade, apesar de haver o aparente acolhimento de pessoas
transexuais, ela é majoritariamente incompreendida pelos adeptos da CCNE. Perguntado sobre
a definição da pessoal transexual nos dias de hoje, o pastor Antônio responde:
(...) uns dizem que é quem faz a cirurgia, outros que é como a pessoa se
enxerga (Pastor Antônio, 52, gay, cis, casado)
Pode-se ver, na fala do pastor, que há a procura de classificações fixas e claras, muito
presentes nas igrejas cristãs tradicionais de onde veio, aliás, uma boa parte dos membros dessa
denominação religiosa, a CCNE.
A fala de Márcia, abaixo, aponta para a dificuldade em ultrapassar as classificações
tradicionais que apontam para a noção de uma natureza humana em que o binarismo
homem-mulher é central para a compreensão da ’essência’ do ser humano. Questionada sobre a
posição da igreja com relação à cirurgia de transgenitalização, Márcia responde:
Não há nenhuma passagem, de nenhum livro da bíblia, que se ouve que alguém mudou o sexo, mudou o que deus fez, a parte original (Márcia, 38,
lésbica, cis, casada).
Com relação à pergunta: “por que você frequenta esta igreja?”, Larissa (32, trans,
solteira) responde:
[...] uma comunidade que eu tenho afinidade com as pessoas, eu sinto o amor
de deus na minha vida através disso tudo.
Há de se levar em consideração a declaração por parte de uma pessoa trans, com toda a
sua bagagem e vivência com relação à sua identidade de gênero. Larissa, no trecho acima,
revela o acolhimento que sente na comunidade CCNE. No entanto, para além do tratamento
cordial, deve-se estender a observação no que diz respeito à transexualidade, para que se
compreenda como esses fiéis compreendem o aspecto simbólico da transexualidade. Isto é, de
que forma ela é entendida pelos outros fieis e quais são os simbolismos presentes nas
readequações como, por exemplo, os procedimentos cirúrgicos de redesignação sexual, os
quais confrontam diretamente a perfeição e imutabilidade da criação divina.
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Lucas (20, gay, cis, solteiro), ao responder à pergunta “Eu queria de saber sua opinião
em relação à cirurgia de mudança de sexo”, diz o seguinte:
[...] e que ela (pessoa transexual) tenha sã consciência de que ela nunca ela
pode ter o sexo que ela deseja.
Márcia (38, lésbica, cis, casada) fala sobre a cirurgia de redesignação sexual, ao ser
questionada sobre o posicionamento da igreja em relação à cirurgia:
Eu acredito que deus até aceite que você se relacione com uma pessoa do seu
próprio sexo, mas você mudar a sua sexualidade...
Em ambas as narrativas percebe-se claramente certo desconforto e repulsa com relação
à transexualidade, mais especificamente às readequações físicas. Lucas constrói o seu
argumento respaldando-se na negação, na limitação, na ideia de que a cirurgia seria apenas algo
simbólico, sem valor efetivo. Márcia evidencia dois pontos relevantes a serem apontados: ao
dizer ‘até’, subentende-se um esforço, por parte da doutrina religiosa, na aceitação da
homossexualidade (algo além do que seria considerado normal, a heterossexualidade); e em
“mas você mudar a sua sexualidade”, sugere-se uma “extrapolação”, um exagero. Assim, uma
conduta que de fato iria na direção contrária aos princípios cristãos evangélicos.
Com o questionário, obtivemos 83% de aprovação com relação à intervenção cirúrgica.
E, quando indagados sobre o posicionamento de deus frente a este ato, 67% criam que deus era
a favor e 33% responderam “não sei”. Em contrapartida a alguns entrevistados, os quais
utilizaram-se de argumentos que deslegitimavam a cirurgia de readequação sexual, ela é
amplamente apoiada pelos membros da igreja. Evidencia-se, portanto, condescendência com
relação à intervenção cirúrgica, apesar da dubiedade quanto à aprovação divina.
Diferentemente de vertentes evangélicas que não só condenam a homossexualidade
como também propõe a `cura´ para ela (Natividade, 2006), a CCNE não classifica o corpo e a
diversidade sexual como o centro de algo a ser combatido e nem como o espaço de risco para o
pecado. No entanto, como se vê, há reticências e também alguns discursos resistentes em
relação à cirurgia de redesignação sexual. Nesse sentido, a CCNE parece limitar a plasticidade
do corpo em razão da ideia, tradicional, de que o que foi criado originalmente pela divindade
deve ser mantido.
3.2 A CCNE e o aborto
Apesar dos avanços no que diz respeito ao desmantelamento da hierarquia de gênero no
espaço religioso da CCNE, há certas representações que refletem o conservadorismo de
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denominações evangélicas mais tradicionais que ainda perduram entre os membros desse grupo
religioso estudado. Por exemplo, a forma como o papel materno é ainda creditado como
inerente às mulheres. É perceptível a forma como a mulher é considerada a ‘culpada principal’
quando se trata de gravidez indesejada. Apesar de ambos, o homem e a mulher, serem
responsáveis pela reprodução, ainda assim a mulher é pensada como o símbolo da natureza,
dadas à relação biológica da reprodução e à ideia de que o papel materno é também algo dado
pela natureza, o que seria sua mais importante e fundamental função existencial. Ao romper,
portanto, com o seu papel fundamental nessa perspectiva, o de ser mãe, a mulher é vista como
transgressora. Isso toma uma dimensão ainda mais forte no espaço religioso, pois a criação
divina pressupõe a reprodução dos papéis sociais que são naturalizados. Lembramos, aqui, as
palavras de Ortner (1979, p. 102) ao discutir por que as mulheres são vistas como mais
próximas da natureza:
Certamente, tudo começa com o corpo e a função de procriação natural,
específica somente às mulheres.
Quando indagada com relação ao aborto, Márcia (38, lésbica, cis, casada) se posiciona:
Mas se ela (uma mulher) teve relação, sabendo com todos os
anticoncepcionais e preservativos que existe, bem esclarecidos, acessíveis em
postos e ainda assim ela engravidou, e tirar uma vida por um ato de irresponsabilidade. Eu sou totalmente contra. Pode o Vaticano, o Papa, sei lá
mais quem, Osama... sou totalmente contra. É um assassinato.
Ana (29, lésbica, cis, solteira), ao responder à pergunta: “Qual você acha que é a posição
da igreja com relação ao aborto?”, diz o seguinte:
Quanto ao aborto, eu acho que de qualquer maneira a igreja é contra. Mesmo
nas leis e tal, você vê como você tá tirando a vida de alguém. Então a igreja não aceita, né? A igreja em si não aceita (Ana, 29, lésbica, cis, solteira)
Como se pode ver nos discursos dessas mulheres, a mulher ainda se mantém como
intermediária de deus na terra e, assim, a responsável pela procriação e a perpetuação da vida,
não só física, mas também social. É bastante interessante perceber que se por um lado o aborto
é visto como forma de interrupção das vontades divinas, por outro, há uma maior tolerância
com relação àqueles que decorrem de estupro ou que colocam a mãe ou o feto em risco de vida.
Quando os membros da CCNE são questionados sobre a posição da igreja em relação ao
aborto, a resposta mais recorrente é a de reprovação. A partir dos dados coletados no
questionário - três pessoas se posicionaram a favor do aborto (em casos previstos no Código
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Penal: gravidez decorrente de violência sexual ou quando oferece risco à gestante) e três contra
-, pode-se perceber como este tema traz contradições entre os membros desse grupo religioso.
Mesmo em situações como as descritas acima, em que a gravidez envolve traumas, violência e
até risco de morte, algumas pessoas se posicionaram contra.
Evidencia-se, com isto, a força da doutrina religiosa aprendida nas denominações
evangélicas tradicionais. A verdade absoluta de que a vida é uma dádiva divina e que só deus
pode tira-la é inquestionável para os cristãos, de uma maneira geral. De acordo com os dados,
portanto, é possível perceber que a CCNE mantém o discurso e doutrina religiosos de
denominações evangélicas mais tradicionais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para a CCNE, no que concerne à cirurgia de transgenitalização, há, inicialmente, o
apoio da igreja e de seus integrantes. Entretanto, há certa rejeição quando essa cirurgia é
pensada como interferência humana na criação divina, o que significa, portanto, algo a ser
evitado. No que se refere à hierarquia de gênero, a CCNE rompe, em sua doutrina, com
inúmeros paradigmas presentes em denominações evangélicas mais tradicionais. Há mulheres
que ocupam cargos na estrutura eclesiástica. Com relação ao aborto, todavia, contrariando a
premissa inclusiva da própria denominação, esta igreja inclusiva rejeita-o e mantém-se
irredutível no que diz respeito à não autonomia da mulher sobre o seu próprio corpo, à exceção
de casos previstos na lei, como no de estupro e risco de morte para a mãe.
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