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MARGEM, SÃO PAULO, N O 15, P. 237-252, JUN. 2002 Da invisibilidade ao gŒnero: percursos e possibilidades nas CiŒncias Sociais contemporâneas MARIA IZILDA S. DE MATOS Resumo O artigo rastreia os estudos que incor- poram a mulher nas investigaçıes contem- porâneas, recuperando o contexto de sua emergŒncia e sua trajetória na produçªo brasileira nas œltimas dØcadas. Em segui- da serÆ focalizada a categoria gŒnero, nu- ma reflexªo sobre suas contribuiçıes para a ampliaçªo das fronteiras epistemoló- gicas, para a instauraçªo de novas referŒn- cias paradigmÆticas, bem como apontarÆ seus impasses, dificuldades e algumas de suas perspectivas. Palavras-chave: gŒnero; feminismo; ciŒncias sociais; trabalho; exclusªo. Abstract The article tracks the studies that incorporate the woman in the contemporary investigations, recovering the context of this emergency and path in the Brazilian production in the last decades. Soon afterwards, the category gender will be focused, in a reflection about their contributions for the enlargement of the epistemological borders, for instauration of new paradigmatic references, and it will point their impasses, difficulties and some of their perspectives. Key-words: gender; feminism; social sciences; work; exclusion. Na œltima metade do sØculo XX, o planeta tornou-se palco de experiŒn- cias transformadoras, o ritmo acele- rado e o impacto das mudanças foram novidades atØ entªo desconhecidas. Nesse quadro, intensas alteraçıes se

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Da invisibilidade ao gênero:percursos e possibilidades nas

Ciências Sociais contemporâneas

MARIA IZILDA S. DE MATOS

Resumo

O artigo rastreia os estudos que incor-poram a mulher nas investigações contem-porâneas, recuperando o contexto de suaemergência e sua trajetória na produçãobrasileira nas últimas décadas. Em segui-da será focalizada a categoria gênero, nu-ma reflexão sobre suas contribuições paraa ampliação das fronteiras epistemoló-gicas, para a instauração de novas referên-cias paradigmáticas, bem como apontaráseus impasses, dificuldades e algumas desuas perspectivas.

Palavras-chave: gênero; feminismo;ciências sociais; trabalho; exclusão.

Abstract

The article tracks the studies thatincorporate the woman in the

contemporary investigations, recoveringthe context of this emergency and path inthe Brazilian production in the lastdecades. Soon afterwards, the categorygender will be focused, in a reflection abouttheir contributions for the enlargement ofthe epistemological borders, forinstauration of new paradigmaticreferences, and it will point their impasses,difficulties and some of their perspectives.

Key-words: gender; feminism; socialsciences; work; exclusion.

Na última metade do século XX, oplaneta tornou-se palco de experiên-cias transformadoras, o ritmo acele-rado e o impacto das mudanças foramnovidades até então desconhecidas.Nesse quadro, intensas alterações se

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sucederam sem parar, o planeta se tor-nou urbano, as questões-tensões do co-tidiano envolveram a todos, novos fe-nômenos impactaram, produzindoestranhamentos e crises, constituindonovas relações-tensões sociais, étnicase geracionais que se impuseram comodesafios a serem investigados.

Nesses últimos cinqüenta anos,uma das mudanças mais marcantes nasociedade mundializada, talvez amaior delas, ocorreu nas relações en-tre homens e mulheres, cabendo des-tacar nesse processo o impacto docrescimento da presença-visibilidadedas mulheres em múltiplos e diversi-ficados setores: no trabalho, nas es-colas e universidades, na política, nasartes e ciências. O olhar sobre o femi-nino frutificou no contexto da quebrados paradigmas que possibilitou a des-coberta de �novos sujeitos sociais� efavoreceu a inclusão das mulheres naspesquisas. Lembrando apenas de umexemplo, contemporaneamente se afir-ma que a pobreza no mundo é femini-na. Com certeza ela não passou porum processo de feminilização, mas atérecentemente esse aspecto não era in-vestigado; hoje, o gênero se impõecomo uma questão fundamental nasciências humanas.

O desafio de incorporar a questãode gênero vem sendo enfrentado deforma admirável, o campo se expan-diu e questões emergentes nessas pes-quisas têm contribuído de modo signi-ficativo para a renovação temática emetodológica das disciplinas, possibi-litando a descoberta de temáticas, tes-temunhos, documentos, fontes, tempo-

ralidades, estratégias metodológicas ecategorias analíticas, com destaquepara a categoria gênero.

Assim, procurou-se rever imagense enraizamentos impostos pelos para-digmas disciplinares, bem como dar vi-sibilidade às mulheres, questionandoa dimensão de exclusão a que estavamsubmetidas, entre outros fatores, porum discurso universal masculino. Re-velaram-se novos femininos e mascu-linos, outras histórias foram contadase outras falas recuperadas, abrindopossibilidades para o resgate de múl-tiplas e ricas experiências.

No novo século, apesar das resis-tências de diversos setores e áreas, osdebates e ações incorporaram a ques-tão de gênero, ela se tornou indispen-sável na academia e também no Esta-do; agências nacionais e internacionais,sindicatos, partidos e terceiro setor as-sumiram amplamente essa perspectivaem suas políticas públicas, açõesinterativas e programas de desenvol-vimento social.

Tendo em vista essas inquietações,o presente trabalho, num primeiro mo-mento, rastreará os estudos que incor-poram a mulher nas investigações con-temporâneas, recuperando o contextode sua emergência e sua trajetória naprodução brasileira nas últimas déca-das. Em seguida, será focalizada a ca-tegoria gênero, numa reflexão sobresuas contribuições para a ampliação dasfronteiras epistemológicas, para a ins-tauração de novas referências paradig-máticas, bem como apontará seus im-passes, dificuldades e algumas de suasperspectivas.

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Percursos e influências

Desde os finais da Segunda Gran-de Guerra, o crescimento marcante dapresença-visibilidade das mulheresvem inquietando os pesquisadores. Apartir dos anos 1960, de forma maiscontínua, um número crescente de in-vestigadores passou a se questionarsobre esses �novos� agentes sociais �as mulheres � buscando rastrear suasações, seus testemunhos no presente eenfrentaram o desafio de desvendar ainvisibilidade feminina no passado.

A presença das mulheres nos escri-tos acadêmicos vem crescendo, em fun-ção de um conjunto de fatores que temdado visibilidade às mulheres, median-te sua conquista de novos espaços.

Um primeiro fator seria a maiorpresença feminina no mercado de tra-balho,1 inclusive nas universidades,2

conjugada à expansão da luta das mu-lheres pela igualdade de direitos e pelaliberdade, numa conquista do espaço

público que derivou da afirmação dosmovimentos feministas.

Por outro lado, a expansão dos es-tudos que incorporam a mulher e aabordagem de gênero localiza-se noquadro de transformações por que vêmpassando as ciências sociais nos últimostempos. Sendo possível afirmar que,por razões internas e externas, essesestudos emergiram da crise dosparadigmas tradicionais, que requeriauma completa revisão dos seus instru-mentos de pesquisa. Essa �crise deidentidade� levou à procura de outrasexperiências, revigorando o conheci-mento e ampliando diferentes áreas eabordagens. Entre outros aspectos,possibilitou o questionamento das uni-versalidades, permitindo a descobertado outro, da alteridade, dos excluídos,entre eles, as mulheres.

Apesar dos longínquos anteceden-tes das lutas femininas,3 suas reivindi-cações voltaram ao cenário na décadade 1960, em particular nas ações emtorno de 1968, quando da �segundaonda� do movimento feminista. Em1975, a ONU instaurou o Ano Interna-cional da Mulher e, vinte anos depois,em 1995, mulheres de todo o mundo

1. O crescimento da entrada das mulheres nomercado de trabalho em expansão foi possível,em grande parte, pela generalização do uso doscontraceptivos (desde os anos 1960), que viabili-zou o controle mais efetivo da maternidade e umredimensionamento do tempo feminino, apesarda dupla jornada.2. Nesse processo não se pode negar que a emer-gência desse novo objeto se deva em grande par-te à crescente presença feminina nas universida-des e à sua organização em núcleos de pesquisae estudo sobre o tema. Women�s studies e depoisos Gender Studies foram antecedentes e modelosde interdisciplinaridade. Hoje, no Brasil são maisde cem núcleos de estudos do tema, em grandeparte organizados na Redifem (Rede de EstudosFemininos).

3. No Brasil, desde os finais do século XIX, sinháse mulheres de elite publicaram jornais femininosnos quais suas reivindicações concentraram-se,sobretudo, em dois pontos: a educação femininae o direito de voto das mulheres. Desde os anos1920, mulheres como Bertha Lutz, Maria Lacerdade Moura e Eugenia Cobra lutaram pela emanci-pação feminina, paralelamente às lutas de mu-lheres operárias, sobremodo anarquistas. Temosaí claramente definidas as duas vertentes do fe-minismo: a liberal e a libertária.

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estiveram discutindo sua situação numagrande Conferência em Beijing.

No Brasil, desde os anos 1970, mes-mo sob o contexto desfavorável dosgovernos militares, os temas referen-tes à mulher reapareceram, colocandoquestões como violência, sexualidade,contracepção, aborto, juntamente comas reivindicações concernentes ao tra-balho (a dupla jornada de trabalho) e àcidadania das mulheres. Somaram-sea essas lutas outros canais de partici-pação da mulher, sobretudo na formados movimentos por melhores condi-ções de vida, ocupando espaço social epolítico a partir da segunda metade dadécada de 1970. Nos âmbitos dos bair-ros, creches, escolas e principalmentenas igrejas, a presença feminina foimarcante, reivindicando condições desaúde, educação, saneamento básico,habitação (carências de uma populaçãoexcluída do processo de urbanização),além da luta pela anistia.

Como os espaços tradicionais deexpressão política se encontravam fe-chados, elas se organizavam em for-mas alternativas de atuação, muitas ve-zes em torno de uma luta pelo imedia-to, que as constituíam enquanto sujei-tos coletivos e políticos.4

Assim, na década de 1970, as mu-lheres �entraram em cena� e se torna-ram visíveis na sociedade e na acade-mia, na qual os estudos sobre a mulher

se encontravam marginalizados namaior parte da produção e na docu-mentação oficial. Isso instigou os in-teressados na reconstrução das expe-riências, vidas e expectativas das mu-lheres nas sociedades presentes e pas-sadas, descobrindo-as como objeto deestudo, sujeitos da história e agentessociais.5

As novas tendências de aborda-gem, emergentes nesse momento, pos-sibilitavam uma abertura para os estu-dos sobre a mulher, ao ampliaremáreas de investigação, ao renovarem ametodologia e os marcos conceituaistradicionais, apontando para o caráterdinâmico das relações sociais e modi-ficando os paradigmas estabelecidos.Contudo, a influência mais marcantepara essa abertura parece ser a desco-berta do político no âmbito do cotidia-no, o que levou a um questionamentosobre as transformações da sociedade;o funcionamento da família; o papel dadisciplina e das mulheres; o significa-do dos fatos, lutas e gestos cotidianos.Assim, a expansão dos estudos sobre amulher vinculou-se a uma redefiniçãodo político, ante o deslocamento docampo do poder das instituições pú-blicas e do Estado para a esfera do pri-vado e do cotidiano.6

A essa politização do dia-a-dia in-corpora-se também a visão do relati-vismo pós-moderno, que praticamen-te destrói a tradicional distinção entre

4. SADER, E. (1989), Quando novos personagensentram em cena. Rio de Janeiro, Paz e Terra; SOU-ZA-LOBO, E. (1991), A classe operária tem dois se-xos: trabalho, dominação e resistência. São Paulo,Brasiliense.

5. MATOS, M. I. S. de (2000), Por uma história dasmulheres. São Paulo, Edusc.6. MATOS, M. I. S. de (2002), História, cotidiano ecultura. São Paulo, Edusc.

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o central e o periférico na análise, con-tribuindo, assim, para que fossem di-versificadas as temáticas e ampliadosos focos sobre o objeto de análise.

Essas novas perspectivas e influên-cias emergentes nesse momento pos-sibilitaram a reorientação de enfoques,com o desmoronamento da continui-dade, o questionamento de aborda-gens globalizantes do real, permitin-do também o questionamento da uni-versalidade dos discursos, deixandoexplícito que as análises do presente edo passado eram parciais e datadas.Traziam como preocupação abrir tri-lhas renovadoras, desimpedidas decadeias sistêmicas e de explicações cau-sais; criar possibilidades de articula-ção e inter-relação; recuperar diferen-tes verdades e sensações; promover adescentralização dos sujeitos e permi-tir a descoberta das novas experiên-cias, procurando articular experiênciase aspirações de agentes aos quais senegou lugar e voz dentro das análisesconvencionais.

Nessa perspectiva, o tema da mu-lher passou a atrair os pesquisadores,desejosos de ampliar os limites de suadisciplina, permitindo uma aberturade novas áreas de pesquisa e, acimade tudo, explorar as experiências dehomens e mulheres, freqüentementeignoradas ou mencionadas apenas depassagem.

A pluralidade de possibilidades deolhares sobre o objeto � mostrandoque este pode ser desvendado a partirde múltiplas questões � permite per-ceber toda uma vinculação entre a pro-dução acadêmica e a emergência dos

movimentos feministas e de mulheres.Esse esclarecimento se faz mais neces-sário quanto se dá conta de que as aná-lises não recuperam o real no passadoe no presente, mas constroem um dis-curso sobre ele, trazendo tanto o olharquanto a própria subjetividade do pes-quisador que recorta, narra e constróiseu objeto.

O tema na produção acadêmica

Nas ciências sociais, nos últimosanos, os estudos sobre a mulher, suaparticipação na sociedade, na organi-zação familiar, nos movimentos so-ciais, na política e no trabalho foramampliados; o tema adquiriu notorieda-de e abriu novos espaços, em particu-lar após a incorporação da categoria gê-nero. A produção sobre as mulheresvem crescendo e tomando vigor plura-lista, abrangendo distintas formas deabordagem e conteúdos variados.

Não se pretende aqui um levanta-mento exaustivo e completo dessa am-pla produção, deve ser entendido maiscomo um esforço no sentido da refle-xão, pontuando algumas questões queparecem ser fundamentais para o de-bate e para a instauração de novas re-ferências paradigmáticas.

A mulher na sociedade de classes. Mitoe realidade, de Heleieth Saffioti, 7 é o mar-co para todos que buscaram uma abor-dagem sobre as mulheres, abrindo pos-sibilidades para o processo de emer-

7. SAFFIOTI, H. (1969), A mulher na sociedade declasses. Mito e realidade. São Paulo, LivrariaQuatro A.

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gência do tema. Nos anos 1970 privile-giou-se, entre outras questões, a do tra-balho feminino, em particular, o traba-lho fabril. Todavia, esse privilégio dadoao mundo do trabalho possivelmentese deve a um certo vinculamento ini-cial dessas pesquisas aos estudos so-bre o movimento operário e a uma he-rança da tradição marxista, mais espe-cificamente da teoria do patriarcado,cuja preocupação era identificar ossignos da opressão masculina e capita-lista sobre as mulheres.

A produção brasileira sobre as mu-lheres nos anos 1980 apresenta varia-das abordagens, que analisam aspectosdiferenciados da questão. No âmbitoda temática do trabalho, além de res-gatar o cotidiano fabril, as lutas e gre-ves femininas, sua ação-exclusão nosespaços dos sindicatos, procurou-se re-cuperar as múltiplas estratégias e resis-tências criadas e recriadas pelas mulhe-res no cotidiano, bem como sua capaci-dade de explorar as inconsistências ouincoerências dos sistemas sociais e po-líticos para encontrar brechas, atravésdas quais pudessem se expressar ou, aomenos, sobreviver, movimentos e açõesnos quais atuaram e se destacaram.

Procurou-se reconstruir a estrutu-ra ocupacional feminina num meio ur-bano através do exercício de papéisimprovisados, destacando e descobrin-do sua presença constante na inserçãodo espaço público, em que as ativida-des femininas adquirem importância.

A maior parte desses trabalhos pri-vilegiou a mulher no espaço urbano,em sua faina para colaborar na manu-tenção da casa, quando não provendo

sozinha o próprio sustento e o da fa-mília. Nesse sentido, os estudos comoos de E. P. Thompson foram inspi-radores para trazer luzes sobre o quepoderíamos chamar de uma �cultura deresistência�, em que a luta pela sobre-vivência e a improvisação tomaram fei-ções de atitudes políticas, formas deconscientização e manifestações espon-tâneas de resistência.

A partir desses anos 1980, destaca-ram-se os estudos sobre o papel femi-nino na família, as relações vinculadasao casamento, à maternidade e à se-xualidade. Focalizando a intersecçãoentre o privado e o público, entre o in-dividual e o social, o demográfico, opolítico e o erótico.

Assim, para além do tema do tra-balho, passaram a ser focalizados as-pectos diversos das ações femininas ede ações sobre as mulheres, destacan-do a educação feminina, a discipli-narização, os padrões de comporta-mento, os códigos de sexualidade e aprostituição.

Nessa produção, recente mas sig-nificativa, poderes e lutas femininasforam recuperados, mitos examinadose estereótipos repensados. Num lequede várias correntes de interpretações,procurou-se recuperar a atuação dasmulheres como sujeitos ativos, de modoque as imagens de pacificidade, ociosi-dade e confinação ao espaço do lar vêmsendo questionadas, descortinando-seesferas de influência e retomando ostestemunhos femininos.8

8. Foram inspiradores para os pesquisadores bra-sileiros os trabalhos de Natalie Zemon Davis,

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Contudo, torna-se cada vez maisnecessário, sem esquecer a opressãohistórica sobre as mulheres, superar adicotomia ainda fortemente presenteentre a �vitimização� da mulher � umaanálise que apresenta um processo li-near e progressista de suas lutas e vi-tórias � e a visão de uma �onipotên-cia� e �rebeldia� feminina, que algumasvezes estabelece uma �heroicização�das mulheres.

O crescimento da produção nasciências sociais aponta que não se tra-ta apenas de incorporar as mulheresno interior de uma grande narrativapronta, quer mostrando que as mulhe-res atuaram e atuam tanto quantos oshomens no presente e na história, querdestacando as diferenças de uma �cul-tura feminina�, perdendo-se, assim, amultiplicidade do ser feminino, po-dendo cair numa mera perspectiva es-sencialista.

Existem muitos �femininos� e �mas-culinos�, e esforços vêm sendo feitosno sentido de se reconhecer a diferen-ça dentro da diferença, apontando quemulher e homem não constituem simplesaglomerados; elementos como cultura,classe, raça-etnia, geração, religião eocupação devem ser ponderados eintercruzados numa tentativa dedesvendamento mais frutífera, atravésde pesquisas específicas que evitem ten-dências a generalizações e premissas

preestabelecidas. Sobrevem a preocu-pação em desfazer noções abstratas de�mulher� e �homem�, enquanto iden-tidades únicas, a-históricas e essen-cialistas, para pensar a mulher e o ho-mem como diversidade no bojo da his-toricidade de suas inter-relações.

Após a fase inicial da necessidadede tornar visíveis as mulheres, vincu-lada a uma certa obsessão pela denún-cia, que teria caracterizado uma primei-ra geração de pesquisadoras, abre-se apossibilidade de se recobrar a expe-riência coletiva de homens e mulheresno passado em toda a sua complexida-de, bem como se procura um aprimo-ramento metodológico que permitarecuperar os mecanismos das tramasde relações entre os sexos e as contri-buições de cada qual ao processo his-tórico e ações presentes.

Gênero: uma categoria útilde análise histórica

É em função das críticas acimaapontadas e das próprias tensões/transformações nas reivindicações dosmovimentos feministas9 que surge ogênero como categoria de análise.

Michele Perrot, Arlette Farge, Danièle Kergoat,Mary Nash, Donna Haraway, Joan Scott, LouiseA. Tilly, Eleni Varikas, Judith Butler, Teresa deLauretis, Sandra Harding, Marilyn Strathern, en-tre outras.

9. Não se pode esquecer que, a partir dos anos1980, o feminismo passou por toda uma auto-crítica: antigas plataformas, como a busca pelaigualdade de condições e direitos em relação aoshomens e a procura de construção de uma identi-dade feminina única, foram em parte questiona-das, pontuadas pela diversidade dentro das lu-tas femininas. As mulheres penetravam nos mo-vimentos sociais, expressando suas reivindicaçõesno interior dos partidos, sindicatos e inúmerasoutras associações, a diversidade se implantou

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Nesse sentido, importantes contri-buições foram dadas pela arqueologiados discursos de Foucault,10 somadasàs propostas de deconstrução de Derridae psicanálise de Lacan, além das ques-tões postas por novas abordagens. Essespensadores tiveram ressonância entreestudiosos do tema da mulher e den-tro do movimento feminista, propician-do a emergência das pesquisas emtorno do gênero.

A categoria gênero reivindica parasi um território específico, ante a insu-ficiência dos corpos teóricos existentespara explicar a persistência da desigual-dade entre mulheres e homens.11 Comonova categoria, o gênero vem procu-rando dialogar com outras categoriasjá existentes, mas vulgarmente ainda éusado como sinônimo de mulher, já queseu uso teve uma acolhida maior entreos estudiosos desse tema. Considera-da mais �neutra e objetiva�, sua utili-zação também pode ser vista comouma faceta que busca dar legitimidadeacadêmica por parte dos estudiosos dotema.

Por sua característica basicamenterelacional, a categoria gênero procuradestacar que a construção do femininoe masculino define-se um em função dooutro, uma vez que se constituíram so-cial, cultural e historicamente em umtempo, espaço e cultura determinados.Não se deve esquecer, ainda, que asrelações de gênero são um elementoconstitutivo das relações sociais ba-seadas nas diferenças hierárquicas quedistinguem os sexos, e são, portanto,uma forma primária de relações signi-ficantes de poder.

Tendo entre suas preocupações evi-tar as oposições binárias fixas e natura-lizadas, os estudos de gênero procu-ram mostrar que as referências cultu-rais são sexualmente produzidas porsímbolos, jogos de significação, cruza-mentos de conceitos e relações de po-der, conceitos normativos, relações deparentesco, econômicas e políticas.

A categoria gênero encontrou umterreno favorável nas ciências huma-nas brasileiras contemporâneas, desna-turalizando as identidades sexuais epostulando a dimensão relacional. As-sim, na década de 1990, os estudos seampliaram e diversificaram em termostemáticos, de abordagens e focalizan-do diferentes momentos.12 Ampliaramo campo, descobriram novos temas,diversificaram criativamente as fontesde pesquisa, aprimoraram as estraté-

dentro do próprio movimento feminista, que dei-xava de ser uma luta una e localizada, as reivin-dicações pelo direito à diferença superam a buscapela igualdade e a pela identidade, o gênero e orelacional se expandem.10. Foucault influencia significativamente, emparticular, ao questionar a naturalização do su-jeito e desmistificar as construções das práticasdiscursivas dominantes.11. Segundo alguns autores, os estudos de gêneroconstituíram um novo paradigma, marcado poruma epistemologia feminista, instaura-se a polê-mica, com destaque para Linda Alcoff, ElizabethPortes, Sandra Harding, entre outras.

12. BESSA, K. A. (1998), �Trajetórias do gênero�.Cadernos Pagú, Campinas, Pagú, nº11.;BRUSCHINI, C. e COSTA, A. (orgs.). (1992), Umaquestão de gênero. Rio de Janeiro, Fundação CarlosChagas/Rosa dos Tempos.

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gias de investigação. Alguns temas fo-ram priorizados, como a questão daviolência, direitos reprodutivos, o cor-po e o imaginário feminino.13

Apesar de se constituir num cam-po interdisciplinar dos estudos de gê-nero, algumas áreas foram mais recep-tivas, com destaque para a antropo-logia, história e psicologia. Foi crescen-te o número de dissertações e tesesque, além de incorporarem as mulhe-res em um ou mais capítulos, privile-giaram as mulheres e a perspectiva degênero como central. A apresentaçãode pesquisas nos congressos interna-cionais, nacionais e regionais cresceu.Foram constituídos GTs centrados natemática na Anpocs, Anpoll, Anpuh,ABA, Abralic, Abep, bem como emoutros fóruns, além do que formou-sea Redefem, um fórum específico e in-terdisciplinar.14 Ampliaram-se, tam-bém, os cursos e disciplinas oferecidos;

todavia, a dificuldade maior em cap-tar a dimensão desse processo são aspublicações, que apesar de crescentesainda são poucas e se encontram seto-rizadas.15 Assim, pode-se dizer que es-ses estudos impactaram o ensino e apesquisa nas ciências sociais.

Contribuições: método, categorias,fontes e temporalidades

A expansão e o enriquecimento dostemas de investigação propostos pelosestudos de gênero foram acompanha-dos por renovações dos marcos temá-ticos e metodológicos, enfoques e mo-dos de análise inovadores que, além dequestionar os paradigmas tradicionais,vêm colocando novas questões, desco-brindo novas fontes, enfim, contribuin-do para redefinir e ampliar noções tra-dicionais do conhecimento, a capacida-de de formular questões inovadoras eapontando novas referências.

O sujeito universal cede lugar auma pluralidade de protagonistas, dei-xando de lado a preocupação com acentralidade. Conjuntamente, tambémse pode perceber como ganho uma gra-dual �dessencialização� de homens emulheres em nossa e em outras socie-dades, tornando-os plurais. A genera-lização da abordagem de gênero nossaberes disciplinares da sociologia, an-

13. Contribuíram para tanto pesquisadoras dediferentes áreas, sendo impossível arrolar a to-das, algumas delas cabe destacar: HeleiethSaffioti, Eva Blay, Neuma Aguiar, Mary Castro,Lia Machado, M. Valéria Pena, Alice Abreu,Verena Stolcker, M. Cristina Bruschini, CarmemJunqueira, Albertina Costa, Celi Jardim Pinto,Mariza Correa, Suely Kofes, Adriana Piscitelli,Elizabeth Lobo, Bila Sorj, Heloísa Buarque deHolanda, Lena Lavinas, Claudia Fonseca, FúlviaRosemberg, Maria Luíza Heilborn, Maria OdilaDias, Miriam Grossi, Rachel Soihet, MargarethRago, Joana Pedro, Maria Moraes, Guacira LopesLouro.14. Importante incentivo foi implementado atra-vés do programa de dotação da Fundação CarlosChagas com o apoio da Fundação Ford que du-rante os anos 1970, 80 e 90 realizaram concursose financiaram projetos e encontros sobre o tema.

15. Cabe destacar revistas que estão centradas natemática, como: Cadernos Pagú (Unicamp), Estu-dos Feminista, Caderno Espaço Feminino(UFUberlândia); várias outras revistas têm elegi-do o tema em um dos seus números e recebemum número crescente de artigos sobre gênero.

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tropologia, história, literatura, filosofiae psicologia contribuiu significativa-mente para generalizar a idéia de des-naturalização biológica das categoriashomem e mulher e de outras noções.

O método único e racional do co-nhecimento foi questionado em suasconcepções totalizadoras e impositi-vas, sendo substituído pela multipli-cidade de abordagens. Nesse sentido,a contribuição mais significativa foi ada perspectiva relacional, que se ge-neralizou enquanto referência meto-dológica; a incorporação do decons-trutivismo, da crítica dos poderes, dahermenêutica e da descrição densaproduziu uma desnaturalização me-todológica.

Essa produção tem revelado os li-mites da utilização de certas catego-rias descontextualizadas, sinalizandoa necessidade de estudos específicosque evitem tendências a generalizaçõese premissas preestabelecidas, buscan-do revelar o processo artificial naconstrução de certos conceitos supos-tamente �naturais�, bem como obser-var a heterogeneidade das experiên-cias, incorporando toda a complexida-de do processo histórico e presente, oque implica aceitar as mudanças edescontinuidades.

Quanto às categorias de análise,nota-se uma preocupação explícita dese libertar de conceitos abstratos e uni-versais e, ao mesmo tempo, resgataras experiências de outros protagonis-tas, levando o pesquisador a restringiro objeto analisado e desconstruí-lo nopassado e no presente, sempre traba-lhando de forma relacional os dois gê-

neros, permitindo assim a redescobertade situações inéditas, não no sentidode apontar o excepcional, mas de des-cobrir o que até então era inatingível,por estar submerso.

Procurar historicizar os conceitos ecategorias com que se tem trabalhado(entre elas a própria categoria gênero),construindo-os durante o processo depesquisa e incorporar as mudanças,aceitando conscientemente a transito-riedade dos conceitos e do próprio co-nhecimento, são preocupações quenorteiam o trabalho do pesquisador,bem como aceitar a própria efemeri-dade das perspectivas, a instabilidadedas categorias analíticas, constante-mente desconstruídas e reconstruídas,e a historicidade inerente ao processode conhecimento.16

Nesse sentido, a reconstrução dascategorias público e privado, na pers-pectiva feminina, pode ajudar a clarifi-car a questão. Os limites entre públicoe privado foram mais explicitados coma definição das esferas sexuais e a deli-mitação de espaços para os sexos. Arepresentação do lar, da família, emtermos naturais, e da esfera pública, aocontrário, como instância histórica, foiuma herança vitoriana da qual emergeo dualismo público/privado, reafir-mando o privado como espaço da mu-lher, ao destacar a maternidade comonecessidade e o espaço privado como

16. Utilizar-se da instabilidade das categoriascomo um recurso de análise é a proposta, entreoutras, de HARDING, S. (1993), �A instabilidadedas categorias analíticas na teoria feminista�. Es-tudos feministas. Rio de Janeiro, CIEC/ECO/UFRJ,vol.1, nº 1.

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locus da realização das potencialidadesfemininas. No mesmo sentido, ques-tiona-se a noção de cultura e natureza,na qual cultura está para o masculinoassim como o feminino está para a na-tureza.17

Os estudos de gênero vão de en-contro a certas tendências que ques-tionam a concepção de evolução lineare progressista e a do tempo vinculadoa leis de mudanças e prognósticos dofuturo. Procurando acabar com a seg-mentação entre passado e presente, osestudos de gênero contribuíram paraa ampliação do objeto de conhecimen-to, levando à descoberta de tempora-lidades heterogêneas, ritmos descone-xos, tempos fragmentados e descon-tinuidades, descortinando o tempoimutável e repetitivo ligado aos hábi-tos, mas também o tempo criador, di-nâmico e das inovações, focalizandoo relativo, a multiplicidade de dura-ções que convivem entre si urdidas.18

As nuanças, as tendências, os movi-mentos passaram a ocupar a atençãodos pesquisadores em lugar da certe-za de fatos cronológicos e periodi-

zações específicas, permitindo ver quea própria história das mulheres não éuma linearidade progressiva, tem ir-e-vir, e que suas lutas e resistências tam-bém não podem ser vistas apartadasdas tramas de poder.

É indiscutível a contribuição da pro-dução de gênero na ampliação das vi-sões do conhecimento, mas ainda hámuito mais por ser feito, já que grandeparte dos objetos a serem conhecidosainda está encoberta por evidênciasinexploradas. Nesse sentido, os estu-dos de gênero reconhecem a pesquisaempírica como elemento indispensávelpara detectar o movimento de consti-tuição de sujeitos, analisando as trans-formações por que passaram e comoconstruíram suas práticas cotidianas.

Obviamente, não é tanto a falta dedocumentação sobre as mulheres e ho-mens, mas a noção de que tais infor-mações não teriam a ver com os �inte-resses do pesquisador�, que gerou a�invisibilidade� das mulheres.19 Assim,resta ao pesquisador questionar, novae diferentemente, fragmentos filtradospela consciência hegemônica dos do-cumentos oficiais e da Igreja.20

17. MATOS, M. I. S. de (1995), �Do público parao privado: redefinindo espaços�. Cadernos Pagú.São Paulo, Unicamp, pp. 97-115, e �Na Tramaurbana: do público, do privado e do íntimo�. Pro-jeto História. São Paulo, Educ, nº 13, pp. 129-149.18. Esses estudos vêm possibilitando, além dadescoberta de temporalidades anteriormente abs-traídas, a focalização de outros espaços, contri-buindo para redefinir e ampliar noções tradicio-nais e permitindo o questionamento da polariza-ção entre tempo e espaço, dando preferência paraa categoria território como um elemento constitu-tivo da trama histórica e presente na memóriacoletiva.

19. SCOTT, J. (1989), �The problem of invisibility�.In: KLEINBERG, J. (comp.). Retrieving women�shistory. Paris, Unesco/Berg., pp. 5-29.20. Certos corpos documentais, cujo discurso vin-cula-se à procura de disciplinarização, precisamser utilizados com cautela nos estudos de gênero.Tem-se que atentar para a não fragmentação daresistência subordinação, não transformando ossujeitos da resistência em objetos da subordina-ção. Por outro lado, deve-se ter atenção para nãoatribuir uma força consciente invejável às lutas eresistências femininas, dando-lhes quase uma oni-potência, reconstruindo heróis e invertendo mitos.

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Os estudos de gênero, usando demuita criatividade, sensibilidade e ima-ginação na procura de transpor o silên-cio e a invisibilidade a que estavamrelegadas as mulheres e os homens esuas relações, trouxeram à luz uma di-versidade de documentações, um mo-saico de pequenas referências espar-sas,21 que vão desde a legislação repres-siva, fontes policiais, ocorrências, pro-cessos-crimes, ações de divórcios, atécanções, provérbios, literatura, cronis-tas, memorialistas e folcloristas, semesquecer as correspondências, memó-rias, manifestos, diários, materiaisiconográficos, fontes eclesiásticas emédicas. Os jornais, a imprensa femi-nina, a documentação oficial, cartoriale os censos não são descartados, bemcomo a história oral, que vem sendoutilizada intensamente e de maneirainovadora.

Assim, a dificuldade do pesqui-sador está mais na fragmentação doque na ausência da documentação, oque requer uma paciente busca de in-dícios, sinais e sintomas, uma leituradetalhada para esmiuçar o implícito,para descortinar os femininos e osmasculinos.22

Os estudos de gênero têm se mos-trado como um campo multidisciplinar,com uma pluralidade de influências, natentativa de reconstituir experiênciasexcluídas. Apesar de algumas discipli-nas, como a Ciência Política e a Econo-mia, manterem-se refratárias e só maisrecentemente incorporarem a catego-ria, a tendência mais definida é a doestabelecimento da interlocução, queem muito favoreceu a ampliação deáreas de investigação.

A abertura dos estudos nas ciên-cias sociais para as abordagens de gê-nero vem colocando várias questõesem relação à construção de um conhe-cimento no campo movediço dos estu-dos de gênero, buscando recuperar asrelações entre os sexos, desvendandosuas características e estabelecendo re-lações e articulações entre amplas di-mensões.

Por outro lado, a variedade de no-vas abordagens também renova os olha-res sobre o passado e o presente, in-corpora a diversidade e a multiplicida-de de interpretações, abrindo o campopara a análise de expressões culturais,modos de vida, relações pessoais, re-des familiares, étnicas e de amizadeentre mulheres e entre mulheres e ho-mens, seus vínculos afetivos, ritos e sis-temas simbólicos, construção de laçosde solidariedade, modos e formas decomunicação e de perpetuação e trans-missão das tradições, formas de resis-tência e lutas até então marginalizadasnos estudos, propiciando um maior co-nhecimento sobre mulheres e homens.

O enfoque cultural faz emergir ou-tras manifestações passadas e presen-

21. PERROT, M. (1984) �Les femmes, le pouvoir,l�histoire�. In: Une histoire de femmes est-elle possible?.Paris, Rivage.22. Partindo do pressuposto que não se pode fa-zer pesquisa sem registro e recordando os desafiosna procura de dar visibilidade às mulheres e aoshomens, torna-se indispensável a organização decoleções, corpos documentais, arquivos e biblio-tecas temáticas, bem como a produção de inven-tários e outros elementos que possam mais facil-mente viabilizar a pesquisa.

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tes da experiência coletiva e indivi-dual de mulheres e homens, em parti-cular de um grande contingente não en-quadrado em organizações, e propiciaaos pesquisadores a possibilidade deanálise do mundo privado e de esferasde informalidade. Nesse sentido, é im-portante observar as diferenças se-xuais enquanto construções culturais,lingüísticas e históricas, que incluem re-lações de poder não localizadas exclu-sivamente num ponto fixo � o mascu-lino �, mas presentes na trama políti-ca; bem como investigar os discursos eas práticas que garantem o consenti-mento feminino às representações do-minantes e naturalizadas da diferença,o que não excluiria que a incorporaçãoda dominação às variações, manipula-ções, táticas, recusas e rejeições por par-te das mulheres, complexificando asrelações de dominação.23

Impasses e perspectivas

Outrora rejeitado � e até margi-nalizado �, o tema da mulher passoua ser encarado como uma possibilida-de de recuperação de outras experiên-cias. Com a incorporação do gênerocomo categoria de análise, tem-se pro-curado demonstrar que o comporta-mento, as sensibilidades e os valoresque são aceitos em uma sociedade, numcerto local e momento, podem ser re-jeitados em outras formas de organi-zação social e/ou em outros períodos;

os estudos de gênero contribuíram paraampliar noções como resistência e expe-riência, possibilitando o questionamen-to dos universalismos, do irredutívele do natural, destacando as diferençase reconhecendo-as como histórica, so-cial e culturalmente constituídas, o quese tornou um pressuposto do pesqui-sador que procura incorporar essa ca-tegoria, permitindo perceber a existên-cia de processos diferentes e simultâ-neos, bem como abrir um leque de pos-sibilidades de focos de análise.

As abordagens que incorporam aanálise do gênero têm revelado umuniverso de tensões e movimento comtoda uma potencialidade de confron-tos, a transversalidade de gênero deixaentrever um mundo no qual se multi-plicam formas peculiares de identifica-ção-diferenciação vivenciadas de múl-tiplas formas. Tais abordagens preten-dem perceber suas mudanças e perma-nências, descontinuidade e fragmenta-ção, as amplas articulações, as infinitaspossibilidades dessa trama multidimen-sional que se compõem e recompõemcontinuamente.24

A politização do privado e a priva-tização do público são novos desafiosà interpretação crítica do pesquisadore permitem a ampliação de questõesmetodológicas importantes, sem abs-tração do engajamento político do su-jeito do conhecimento. A politização do

23. CHARTIER, R. (1995), �Diferenças entre ossexos e dominação simbólica�. In: Cadernos Pagú,Campinas, nº4.

24. Uma urdidura de intermediações do sistemade poder revela toda uma organização de solida-riedade, resistência silenciosa e contestadora, cu-mulativa de improvisação. VEYNE, P. (1982)Como se escreve a História. Brasília, Unb.

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cotidiano pressupõe uma comunicaçãoentre o pesquisador e os testemunhos,que provêm de um questionamento nainserção do pesquisador no mundo con-temporâneo. Envolve a interação do su-jeito com o objeto, sem uma neutralida-de prefixada, criando uma verdadeirasintonia entre o pesquisador e seu ob-jeto de estudo, no processo de conhe-cimento envolvido em um diálogo crí-tico entre hipóteses, observações, cate-gorias e arcabouço documental sem ummétodo previamente pronto e fechado.25

Ao lado do engajamento do pes-quisador com o presente e a transito-riedade do conhecimento, há a diver-sidade de interpretações possíveis, amultiplicidade de perspectivas analíti-cas, que são constantemente refeitasjunto aos parâmetros e categorias.

Trabalhos recentes sobre as mulhe-res e os estudos de gênero superaramtemáticas tradicionais, mas ainda en-frentam dificuldades em articular es-tratégias metodológicas vinculadas àteoria feminista e manter um estreitocontato com correntes renovadoras deinterpretação.

O crescimento da produção sobreo gênero, ao contrário de esgotar aspossibilidades, abriu controvérsias, ins-taurando um debate fértil. Contudo,alguns problemas de definição, fontes,método e explicação persistem, e entreeles a diversidade que envolve a pró-pria categoria gênero.26 Convivem di-

versas posições, perspectivas, contro-vérsias e tensões nos estudos, todaviaessas diferentes abordagens coincidemcom a diversidade de correntes pre-sentes nas ciências sociais contempo-râneas. Mas cabe ainda refletir maiscautelosamente a respeito dos efeitosdos estudos de gênero sobre os cam-pos disciplinares e dos efeitos dos sa-beres disciplinares sobre o campo dosestudos de gênero.

Um balanço da produção e a críti-ca interna permitem visualizar o surgi-mento de desafios. Inquestionavel-mente, grande parte da produção pri-vilegiou o enfoque das experiênciasfemininas em detrimento de seu uni-verso de relações com o mundo mas-culino. Ainda são raros os estudos so-bre as masculinidades, deixando a im-pressão de que os homens existem emalgum lugar além, constituindo-senum parâmetro extra-histórico euniversalizante.27

25. GADAMER, H.-G. (1984), Truth and method.Nova York, Crossroad.26. BURKE, P. (org.). (1992), A escrita da história:novas perspectivas. São Paulo, Unesp, p. 24.

27. Um conjunto de estudos vem contribuindopara denunciar os poderes e seus abusos por par-te dos homens, podendo em parte ser unificadopor um certo senso de ultraje moral pela históricasubordinação e exploração das mulheres peloshomens. Como contraponto, diferentes autoresdestacam nas suas análises os aspectos proble-máticos do ser homem, emergindo a chamada�questão-crise� do masculino, denunciando osfardos e conflitos da masculinidade e suas exclu-sões, almejando uma flexibilidade de papéis, semgrandes alterações nas dinâmicas de poder. Ques-tionando o caráter essencialista e parcial dessesestudos, outras pesquisas têm apresentado cla-ras evidências nos processos de construções denormas e hegemonias que suportam a superiori-dade do homem branco ocidental. Questionam anaturalidade da heterossexualidade, a inevitabili-dade do progresso científico e do desenvolvimen-

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Proliferaram os estudos concretos,mas já se sente a necessidade de umasíntese que abarque as continuidadese descontinuidades, as desigualdadespersistentes e as experiências diferen-tes, bem como a homossexualidade, dei-xando de revelar a pluralidade dos fe-mininos e dos masculinos.

Igualmente difícil de analisar é arelação entre o particular e o geral, demodo que constitui grande desafiopara o pesquisador mostrar como osgêneros fazem parte da história e dopresente, abordá-los mais de modoanalítico que apenas descritivo, rela-cioná-los aos acontecimentos mais con-junturais, estabelecendo relações e ar-ticulações mais amplas, inserindo-osna dinâmica das transformações so-ciais, econômicas, políticas e culturais,

o que propicia a reinvenção da totali-dade dentro do limite do objeto pes-quisado.

Por outro lado, deve-se lembrar amanutenção da discrepância entre a altaqualidade da recente investigação so-bre as mulheres e a persistência de seustatus marginal, que se soma à debili-dade dos movimentos feministas con-temporâneos, descolados dos estudosacadêmicos. Vem sendo dirigida umaatenção especial à luta das mulheres,porém resta muito a fazer, em espe-cial sobre a história do feminismo, pro-curando recuperar toda a sua histori-cidade e a diversidade de suas reivin-dicações. Há que se aprofundar a aná-lise não apenas das experiências mas-culina e feminina no passado e no pre-sente, mas também da conexão entrehistória passada e prática atual, procu-rando manter viva a crença na utopiade que as construções de gênero nãosão inertes nem eternas, mas mutáveise reconstruíveis.

Ao pesquisador resta a tarefa con-tínua tanto de desconstruir as diferen-ças quanto desnaturalizá-las; procurardesvendar o estabelecimento das hege-monias discutindo com rigor as ques-tões de subordinação/dominação; ado-tar uma perspectiva de gênero � re-lacional, posicional e situacional �,lembrando que gênero não se refereunicamente a homens e mulheres e queas associações homem-masculino emulher-feminino não são óbvias, de-vendo-se considerar as percepções so-bre masculino e feminino como depen-dentes e constitutivas das relações cul-turais; procurando não essencializar

to econômico, vendo a masculinidade dentro dassuas especificidades na construção social, cultu-ral e histórica.Assim, torna-se cada vez mais necessário supe-rar a dicotomia, ainda presente, entre a �vitimi-zação� e a visão de �onipotência� masculina vin-culada à denúncia do seu poder e de seus abu-sos. Destaca-se a necessidade de estudos críti-cos dos estereótipos masculinos associados a for-ça, poder, agressividade, decisão, capacidade dedomínio e iniciativa para se desenvolver umenfoque analítico sobre a construção da masculi-nidade à manutenção das hegemonias e todas astramas de poder que permeiam as relações degênero. OLIVEIRA, P. P. (1998), �Discursos so-bre a masculinidade�. Estudos Feministas, Rio deJaneiro, IFCS/UFRJ, vol.6, pp. 91-113. MATOS,M. I. S. de. �Por uma história das sensibilidadesem foco a masculinidade�. História Questões eDebates, Curitiba, Ed. UFPr., nº 34, pp. 45-63.;MATOS, M. I. S. de (2001), �Meu Lar é o Bote-quim: alcoolismo e masculinidade�, São Paulo,Cia. Editora Nacional.

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sentimentos, posturas e modos de sere viver de ambos os sexos.

Espera-se que os estudos de gêne-ro desestabilizem ainda mais as certe-zas dos pesquisadores e ampliem aspossibilidades de críticas sobre a no-ção de natureza humana. Que o uni-versal masculino (homem branco, he-terossexual, ocidental, classe média)deixe de ser generalizável e identificá-vel como natural, possibilitando o ques-tionamento de clivagens e permitindoa descoberta de outras subjetividadesaté então pouco visíveis e insondadas.

Assim, percebe-se que as discus-sões deslocam-se das identidades fe-minina e masculina para as subjetivi-dades múltiplas e não unificadas, de-vendo a própria noção de identidadeser historicizada e problematizada jun-to à imagem de interioridade e essên-cia que a constituía.

Dessa forma, os estudos sobre asubjetividade apresentam-se como umanova fronteira para as investigações namedida em que tematizar a subjetivi-dade, justamente, problematiza a no-ção de sujeito universal, unitário, iso-lável, emergindo a centralidade nosprocessos de diferenciação e nas pos-sibilidades de construção singular daexistência nas configurações assumidaspelas apreensões que os sujeitos fazemde si e do mundo. O atual desafio paraos estudos de gênero é serem os pa-trocinadores da �revanche da subjeti-vidade�, identificada com a irracio-nalidade ou passionalidade.

Os estudos de gênero, porém, nãorepresentam opção para o pesquisadorpreocupado com um método que pres-

suponha equilíbrio, estabilidade e fun-cionalidade. Tal temática é extrema-mente abrangente e impõe dificulda-des para definições precisas, exigecriatividade, sensibilidade e imagina-ção. São muitos os obstáculos para ospesquisadores que se atrevem a enve-redar pelos estudos de genêro � cam-po minado de incertezas, repleto decontrovérsias e de ambigüidades, ca-minho inóspito para quem procuramarcos teóricos fixos e definidos.

Recebido em 5/5/2002Aprovado em 30/6/2002

Maria Izilda S. de Matos, professora titular doDepartamento de História da PUC-SP.E-mail: [email protected]