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J •• ~ .. vocÊ TEM CULTURA?· Autor: Roberto Da Matta Suplemento Cultural/ Jornal da Embratel Setembro de 1981 Outro dia ouvi uma pessoa dizer que "Maria não tinha cultura", era "ignorante dos' fatos básicos da política, economia e literatura". Uma semana depois, no museu onde trabalho, conversava com alunos sobre "a cultura dos índios Apinayé de Goiás", que havia estudàdc de 1962 até 1976 quando publiquei um livro sobre eles (Um mundo dividido). Refletindo sobre os dois usos de uma mesma palavra, decidi que essa era a melhor forma de discutir à idéia ou o conceito de cultura tal como nós, estudantes da sociedade, a concebemos. Ou melhor ainda, apresentar algumas noções sobre a cultura e o que ele quer dizer não como uma simples palavra, mas como uma categoria intelectual: um conceito que pode nos ajudar a entender melhor o que acontece em nossa volta. Retomemos os exemplos mencionados porque eles encerram os dois sentidos mais comuns da palavra. No primeiro, usa-se cultura como sinônimo de sofisticação, de -- - . sabedoria, de educação no sentido restrito do termo. Quer dizer, quando falamos que -= - "Maria não tem cultura!" e que "João é culto", estamos nos referindo a um certo estado educacional destas pessoas querendo indicarcom isso sua capacidadede compreender ou organizar certos dados e situações. Cultura aqui é equivalente a volume de leituras, a controle de informações, a títúlos universitários e chega até mesmo a ser confundida com inteligência, como se a habilidade para realizar certas operações mentais e lógicas fosse ------ . algo a ser medido ou arbitrado pelo número de livros que uma pessoa leu, as línguas que pode falar, ou os quadros e pintores que pode enumerar. Corno uma espécie de prova desta associação temos o velho ditado informando que "cultura não traz discernimento" ou inteligência conforme. estou discutindo. Neste sentido, cultura é uma palavra us~da para classificar as pessoas e, às vezes, grupos sociais, servindo como uma ~ c discriminatórja contra algum sexo, idade, etnia (quando se diz que "os negros não têm --- cultura'') ou mesmo sociedades inteiras (quando se diz que "os franceses são cultos e civilizados" em oposição aos americanos que são "ignorantes e grosseiros''). Do mesmo modo é comum ouvir-se referências à humanidade, cujos valores seguem tradições diferentes e desconhecidas, como a dos índios, como sendo sociedades que estão "na idade da pedra" e se encontram em "estágio cultural muito atrasado!", A palavra cultura,

DA MATTA Roberto. Você tem cultura. In Explorações....pdf

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J~. .voc TEM CULTURA?Autor: Roberto Da MattaSuplemento Cultural/ J ornal da EmbratelSetembro de 1981Outro dia ouvi uma pessoa dizer que "Mariano tinha cultura", era "ignorante dos'fatos bsicos da poltica, economiae literatura". Uma semanadepois, no museu ondetrabalho, conversava com alunos sobre "a cultura dos ndios Apinay de Gois", que haviaestuddc de 1962 at 1976 quando publiquei um livro sobre eles (Um mundo dividido).Refletindo sobre os dois usos de uma mesma palavra, decidi que essa era a melhor formade discutir idia ou o conceito de culturatal como ns, estudantes da sociedade, aconcebemos. Ou melhor ainda, apresentar algumas noes sobre a cultura e o que elequer dizer no como uma simples palavra, mascomouma categoria intelectual: umconceito que pode nos ajudar a entender melhor o que acontece em nossa volta.Retomemos os exemplos mencionados porque eles encerram os dois sentidos maiscomuns dapalavra. No primeiro, usa-se cultura como sinnimo de sofisticao, de- - -. sabedoria, de educao no sentido restrito do termo. Quer dizer,quando falamosque-= -"Maria no tem cultura!" e que "J oo culto", estamos nos referindoa um certo estadoeducacionaldestas pessoas querendo indicarcom isso sua capacidadede compreender ouorganizar certos dados e situaes. Cultura aqui equivalente a volumede leituras,acontrole de informaes,a ttlos universitrios e chega at mesmo a ser confundida cominteligncia, como se a habilidade para realizarcertas operaes mentais e lgicas fosse------ .algo a ser medido ou arbitrado pelo nmero de livros que uma pessoa leu, as lnguas quepode falar, ou os quadros e pintores que pode enumerar. Corno uma espcie de provadesta associao temos o velho ditadoinformando que "cultura no traz discernimento"ou inteligncia conforme.estou discutindo. Neste sentido, cultura uma palavra us~daparaclassificar aspessoas e, s vezes, grupos sociais, servindo como uma~cdiscriminatrja contra algum sexo, idade, etnia (quando se diz que "os negros no tm---cultura'') ou mesmo sociedades inteiras (quando se diz que "os franceses so cultos ecivilizados" em oposio aos americanos que so "ignorantes e grosseiros''). Do mesmomodo comumouvir-se referncias humanidade, cujos valores seguemtradiesdiferentes e desconhecidas, como a dos ndios, como sendo sociedades que esto "naidade da pedra" e se encontram em "estgio cultural muito atrasado!", A palavra cultura,enquanto categoria do senso-comum! ocupa um importante lugar no nosso acervoconceitual, ficando lado-a-lado de outras, cujo uso na vida cotidiana muito comum.Estou me lembrando da palavra " personalidade" , que tal com ocorre com a palavra"cultura", penetra o nossovocabulrio comdois sentidos bemdiferenciados. No campo dapsicologia, personalidadedefine o conjunto de traos que caracterizamtodos os sereshumanos. aquilo que singulariza todos e cada um de ns como uma pessoa diferente,com interesses, capacidadese emoes particulares. Mas na vida diria, personalidade - --usada como um marca para algo desejvel e invejvel de uma pessoa. Assim! certaspessoasteriam"personalidade"! outras no! comumdizer que"J oo tem personalidade"quando de fato, se quer indicar que "J oo tem magnetismo", sendo uma pessoa "COrripresena". Do mesmo modo, dizer que "J oo no tem personalidade" quer apenas dizerque ele no uma pessoaatraente ou inteligente.Mas no fundo,todos temos personalidade, embora nem todos possamos serpessoasbelas ou magnetizadoras como umartista de noveladas oito! Mesmouma pessoa"sem personalidade"tem personalidade, na medida emque ocupa espaosocial e fsico e .tem desejos enecessidades. Podeser uma pessoasumamente apagada, mas ser assimprecisamenteo trao marcante de sua personalidade. .No caso do conceito de cultura ocorre o tnesmo, embora nemtodos saibamdisso.De fato, quando um antroplogo social fala em cultura,ele usa a palara como umconceito chave para a interpretao da vida social. prque para ns cultura no simplesmente um referente que marca a hierarquia de civilizao, mas a maneira de" 'viver totalde umgrupo, sociedade, pas ou pessoa. Cultura emAntropologia Social e. -Sociologia, UrT' ma~a, um receiturio, um cdigo atravs do qualas pessoas de4 __um dado grupo pensam, classificam, estuda" ,! e modificamomundo e a si- - - ~mesmas. justamenteporque compartilham ~e parcelas importantes deste cdigo (acultura) que um conjunto de indivduos com interesses e capacidades distintas e at---- --.mesmo opostas, transformam-se num grupo e podemviver juntos sentindo-se parte de- - ~- - - - - - - - ~~- - ~ ,uma mesmatotalidade.Podem, assim, desenvolver relaes entre si, porque a cultura-- . ,< . .Ihes forneceu normas"que dizem respeito aos modos mais (ou menos) apropriados de. .comportament~e certas situai?,. es. Por outro lado, a cultura no umcdigo quese escolhe'simplesmente. algo que est dentro e fora de cada um de ~s, como as. . . regrasde umjogo de futb6i,' que permitem o entendimento do J ogo e, tambm, a ao--~~. . . ,de cada jogador, juiz, bandeirinhae torcida. Quer dizer,as regras que formam a cultura(ou a cultura como regra) algo que permite relacionar indivduos entre si e o prpriogrupo com o ambienteonde vive.Em geral, pensamos a cultura como algo individual queas pessoas inventam, modificam e acrescentamna medida de sua criatividade e poder.Da falarmos que Maria mais culta que J ooedistinguirmos formas deculturasupostamente mais avanadas ou preferidas que outras. Falamos ento em alta culturae baixacultura ou culturapopular, preferindo asformas sofisticadas queseconfundem com a prpria idia de cultura. Assim, terfamos. a cultura e as culturasparticulares e adjetivadas (popular, indgenas, nordestina, de classe baixa,etc. . . ) comoformas secundrias, incompletas e inferiores de vida social.Mas a verdade que todas asformas culturais ou todas as "sub-culturas" de uma sociedade so equivalentes e, emgeral,aprofundamalgum aspecto importante que no pode ser esgotado completamentepor outrasub-cultura. Quer dizer, existemgneros de cultura, que so equivalentes adiferentes modos de sentir, celebrar,'pensare atuar sobre o' mundoe esses gneros- - - - - - - - - - - - - - - - - - ~. ----- .podem estar associados a certos segmentos sociais. O problema que sempre que nos. Iaproximamos de alguma forma de comportamento e de pensamento diferente tendemos aclassificar a diferenahierarquicamente, o que uma forma de exclu-Ia. Um outro modode . perceber e enfrentar a diferena cultural tomar a diferena comoum desvio,. " . .deixando . de buscar seu papelnuma totalidade. Desta forma, podemosver o carnaval.- ------. .como,,:a!godesviante de uma fest nta de que oca~al e asfestas religiosas 'guardam uma rofunda relao de complementaridade. Realmente, se noCerreno da festar,eligiosa somos marcados. , pelo mais profundO, coniedimento e respeitopelo foco no "outro mundo", porque no carnavalpodemos nos apresentar realizando ousto oposto. Assil11,o carnavalesco e o religioso no podem s~r classificados em termosde superior e inferior ou como articulados a uma "cultura autntica" e superior, masdevem ser vistos nas suas relaes que so complementares . .O que significa dizer quetanto h cultura no carnaval quantonas procissese nas festas cvicas, pois que cadauma delas um digo capaz de permitir u!!}julgamento e uma atuao sobre o mundosocialno Bra,;;iI. Como disse uma vez,essas festas nos revelam leituras da sociedade~ ~. " " " -brasileirapor ns. mesmos e nesta direo que devemos discutir o contedo e a forma----_. . . . . . ,,' ' -de cada cultura ou suo-culturaem uma sociedade.No sentido-!ltr~~co, portanto, a cultur~, um conjunto de regras que nosdiz como o mundopode e deve ser classificado~ Ela, como os textosteatrais, no pode~ver completamente como iremosnos sentir em cada papelque devemos ou temosnecessariamente que desempenhar, masindicamaneiras gerais e exemplos de comopessoas que viveram antes dens os desempenharam . . Mas isso no lrnpede. : conformesabemos, emoes. Do mesmo modo que um jogo de futebol com suas regras fixas noimpederenovadas emoes em cada jogo. que as regras apenas indicam os limites e- --apontamos elementos e suas combinaes, o modopelo qualelas engendramnovascombinaes em situaes concretas algo que s a realidade pode dizer.Porque emboracada cultura contenha um conjunto finito de regras,suas possibilidades de atualizao,expresso e reao em situaes concretas,so infinitas.Apresentadaassim, a cultura parece ser um bom instrumento para compreender as-diferenas entre os homens e as sociedades. Elas no seriam dadas de uma vez por todas,& por meio de um meio geogrficoou de uma raa, como diziam estudiososdo passado,mas em diH3rmtesconfiguraes ou relaes que cada sociedade estabelece no decorrer- - ~de sua histr,ia.Mas importante acentuar que a base destas configuraes sempre um~ . .repertrio comum de potencialidades. Algumas sociedades desenvolveramalgumas dessas. .potencialidades mais e melhor do que outras, mas isso no sinificaque elas sejam maispervertidas ou maisadiantadas. O que isso pareceindicar, antesde mais nada,oenormepotencial que cada cultura encerra como elementoplstico,capaz de receber asvariaes e motivaes dosseusmembros, bemcomoosdesafios externos. Nosso. . . - ----sistema caminhou na direode um poderoso controle sobre a natureza, mas isso ' -- . . . . .apenas um trao entre muitos outros. H sociedades na Amazniaonde o controleda.;;c::: -'" _ .-natureza muito pobre, mas onde existeuma enormesabedoria relativaao equilbrio-. ---- . . entre os homens e os grupos cujos interesses so divergentes. O respeito pelo vida que- . . . . . ~todas as sociedades indgenas nos apresentamde modo to vivo,pois que os animais soseres includos na formao e discusso de sua moralidadee sistema poltico,parece ser. . . .constituir no em exemplo de ignorncia e indigncia lgica, mas em verdadeiralio, poisrespeitar a vida deve certamente incluir toda a vida e no apenas a vida humana. Hoje-. . . --estamos mais conscientes do preo que pagamos pela. explorao desenfreada do mundonaturalsem a necessria moralidadeque nos liga inevitavelmente s plantas, aos animaise aos mares.' ,.