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Da Mímesis Divina à Humana Ouro Oliveira novo.pdf · estudo sobre as noções de pintura e escultura nos diálogos Sofista, Timeu e Leis de Platão ... em toda a obra de ... CTCH

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Da Mmesis Divina Humana:

um breve estudo sobre as noes de pintura e escultura

nos dilogos Sofista, Timeu e Leis de Plato

ReitorPe. Josaf Carlos de Siqueira SJ

Vice-ReitorPe. lvaro Mendona Pimentel SJ

Vice-Reitor para Assuntos AcadmicosProf. Jos Ricardo Bergmann

Vice-Reitor para Assuntos AdministrativosProf. Luiz Carlos Scavarda do Carmo

Vice-Reitor para Assuntos ComunitriosProf. Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio

Vice-Reitor para Assuntos de DesenvolvimentoProf. Sergio Bruni

DecanosProf. Jlio Cesar Vallado Diniz (CTCH)Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS)Prof. Luiz Alencar Reis da Silva Mello (CTC)Prof. Hilton Augusto Koch (CCBS)

Da Mmesis Divina Humana:um breve estudo sobre as noes de pintura e escultura

nos dilogos Sofista, Timeu e Leis de Plato

Lethicia Ouro Oliveira

Editora PUC-RioRua Marqus de So Vicente, 225, Casa da Editora PUC-RioGvea Rio de Janeiro RJ CEP 22451-900Telefax: (21)3527-1760/[email protected]/editorapucrio

Conselho Gestor da Editora PUC-RioAugusto Sampaio, Danilo Marcondes, Felipe Gomberg, Hilton Augusto Koch, Jos Ricardo Bergmann, Jlio Cesar Vallado Diniz, Luiz Alencar Reis da Silva Mello, Luiz Roberto Cunha, Miguel Pereira e Sergio Bruni.

Projeto grfico: Design de AtelierCapa: Design de Atelier/Fernanda Soares

Numa Editora e Produes Artsticas LtdaAv das Amricas, 700/306 - Riode Janeiro Cep:22640-100Fone: 5521 2527-3906 | 55 21 98131-8461www.numaeditora.com

Foram respeitadas, nesta edio, as regras do novo Acordo Ortogrfico da Lngua PortuguesaTodos os direitos em lngua portuguesa reservados Numa Editora www.numaeditora.com

Oliveira, Lethicia Ouro

Da mmesis divina humana [recurso eletrnico] : um breve estudo sobre as noes de pintura e escultura nos dilogos Sofista, Timeu e Leis de Plato / Lethicia Ouro Oliveira. Rio de Janeiro : Ed. PUC-Rio : Numa Editora, 2018.

1 recurso eletrnico (219 p.)

Originalmente apresentado como tese da autora (doutorado-Pon-tifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia)

Inclui bibliografia

ISBN Numa Editora (e-book): 978-85-67477-26-8

Criado em 2017 pelo Decanato do Centro de Teologia e Cincias Humanas da PUC-Rio, o Prmio CTCH de Teses tem como objetivo laurear e dar reconhe-cimento e visibilidade para as melhores teses de Doutorado defendidas em 2015/2016 nos Programas de Ps-graduao em Design, Educao, Estudos da Linguagem, Filosofia, Literatura, Cultura e Contemporaneidade, Psicologia Clnica e Teologia, e para a melhor dissertao de Mestrado em Arquitetura.

Os critrios de premiao consideraram a originalidade dos trabalhos e sua relevncia para o desenvolvimento cientfico, tecnolgico, cultural, social e de inovao. Os Programas de Ps-graduao selecionaram internamente os trabalhos premiados, verificando a adequao das pesquisas ao patamar elevado de qualidade exigido.

A publicao deste livro resultado da parceria entre o Decanato do CTCH, os Departamentos do Centro, a Editora PUC-Rio e a Numa Editora, com apoio da Vice-Reitoria Acadmica.

Rio de Janeiro, setembro 2018

Jlio Diniz

Decano do CTCH

Monah Winograd

Vice-decana de Ps-graduao e Pesquisa do CTCH

Em memria de meu pai, meu tio Dinho e minha tia-av Teta, que se foram enquanto eu me dedicava a este livro; e, especialmente, de meu tio Bismarck de

Almeida Penedo, por sua histria.

Agradecimentos

minha famlia, meus amigos, aos colegas do NUFA, do PRAGMA e do Colgio Pedro II, e aos meus alunos, ex-alunos e ex-orientandos, por me acompanharem na vida e nos estudos.A todos os professores a quem devo a minha formao, especialmente aos meus orientadores Ulysses Pinheiro, Maria das Graas Augusto, Maura Iglsias e Luisa Buarque.s instituies e seus funcionrios que acolheram meu trabalho como professora nos meus primeiros dez anos de docncia: Colgio Pedro II, PUC-Rio, Faculdade de So Bento, EPSJV-Fiocruz, Colgio Estadual Antnio Maria Teixeira Filho, e ao Centro Cultural Europeu de Delfos, pela oportunidade de participar do Curso de Lngua e Literatura Gregas.

Sumrio

Apresentao 13

1 Introduo 19

2 Imitao () como divina ou humana no Sofista 35

3 Pintura e escultura divinas no Timeu 77

4 Pintura e escultura humanas no Livro II dAs Leis 151

5 Concluso 189

6 Referncias Bibliogrficas 209

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Atresentao

Ao escolher-me como orientadora de sua tese de doutorado, Lethicia Ouro Oliveira concedeu-me o privilgio de acompanhar a pesquisa e a elabo-rao de um trabalho feito com rigor acadmico exemplar, sobre um tema que me era, e continua sendo, especialmente caro. Alis, no por coincidncia, pois que fui cmplice na escolha do tema -- pelo menos em parte, uma vez que ela extrapolou, em muito, a extenso do que eu esperava que fizesse.

De fato, Lethicia foi admitida no programa de doutorado da PUC-Rio, com um projeto intitulado As artes plsticas na filosofia de Plato, exatamente quando eu iniciava a execuo de um projeto integrado, que havia sido aprova-do pelo CNPq, intitulado O ltimo pensamento de Plato e a recepo de Plato na Antiguidade, um projeto que previa, entre outras atividades, a elaborao de diversas teses de doutorado de estudantes que se interessavam justamente pelos ltimos dilogos de Plato. Assim, para que ela se integrasse a esse projeto, minha primeira orientao, por assim dizer, foi que sua pesquisa abordasse as artes plsticas no ltimo Plato, uma sugesto que ela aceitou imediatamente. A partir da, meu trabalho de orientao resumiu-se praticamente a ser uma leitora atenta, com no raros pedidos de esclarecimento quando, ela, ousada, fazia interpretaes nada ortodoxas sobre alguns pontos dos textos analisados. O leitor familiarizado com Plato provavelmente levar alguns sustos, como eu. Por exemplo, quando, logo de cara, a palavra agalma em Timeu 37d ela traduz, solitariamente , por esttua, um sentido possvel para esse termo, mas nada bvio no contexto em questo. Cornford, na traduo talvez mais respeitada para o Timeu, traduz o termo aqui por santurio (shrine) e a frase onde ele aparece como a shrine brought into being for the everlasting gods (um santu-rio criado para os deuses imortais). Ele critica a traduo usual por imagem - uma imagem criada dos deuses imortais como um equvoco que leva os comentadores a assumir que a palavra agalma (imagem) simplesmente equi-valente a eikon (semelhana), e que consequentemente os deuses imortais devem ser ideias, o modelo segundo o qual feito o mundo. Ora, nada em Plato nos autoriza a pensar que os deuses imortais so ideias. No cabe aqui alargar-se sobre tudo que Cornford tem a dizer sobre o sentido real de agalma. Mas basta saber que esta a nica apario desse termo no Timeu, uma apari-o que antecede a criao dos astros que habitaro esse santurio e que em momento nenhum aparece o termo no Timeu agalmata, no plural, como sendo as esttuas dos deuses imortais, isto , na interpretao Cornford, os astros, colocados no cu pelo demiurgo.

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A interpretao de agalma como esttua completada por Lethicia pela traduo de diazographon (55c6) por pintar. Aqui, a traduo menos po-lmica. Ainda assim, est longe de ser aceita sem questionamentos. Na frase em que aparece, o demiurgo, depois de utilizar-se de quatro poliedros regulares ins-critveis na esfera (tetraedro, octaedro, icosaedro e cubo) para a formao dos corpos elementares (fogo, ar, gua, terra), resta-lhe um quinto slido regular, o dodecaedro, que ele reserva para a forma geral do Universo. E a vem o texto: (traduo Cornford): Faltava ainda uma construo, a quinta; e o deus usou-a para a totalidade, fazendo nela um padro de figuras animais (diazographon). E sobre diazographon Cornford tambm tem um comentrio a fazer: O termo diazographon ambguo. Pode significar dar lhe um padro de vrias cores, mas isso parece pouco apropriado para o cu. Por outro lado, o cu inteiro coberto com animais no somente os doze signos do zodaco, mas todas as outras constelaes. O que Cornford parece sugerir que no faz muito sentido pintar o cu (de vrias cores) e que talvez essa palavra, diazographon (seja dito de passagem a nica apario desse verbo em toda a obra de Plato) deva ser interpretada etimologicamente, com nfase nos animais (zoon), termo cuja raiz aparece em sua composio, e que indicaria talvez que o demiurgo disps as constelaes do cu em forma de animais.

Mas, claro, Lethicia no precisa concordar com Cornford, mesmo sendo ele quem . Seus argumentos a favor de suas tradues so dignos de considera-o. E partem de uma intuio extremamente interessante: que o construtor do mundo , no por acaso, chamado demiurgo. Ele aparece, em seu trabalho de construo do mundo, como possuidor de uma variedade de tcnicas. Ora, ao contrrio do que muitos pensam, Plato um admirador das tcnicas, e v mesmo nelas o modelo que ele pretende seguir para a elaborao de um saber que ele busca, o de legislar para o bom funcionamento da cidade: um tipo de saber que, sendo aplicado segundo as regras apropriadas, leva com certeza finalidade buscada. Mas, nos dilogos das duas primeiras fases, ambguo o tratamento que ele d s artes que fabricam cpias das coisas, entre elas, evi-dentemente, a pintura e a escultura. Tanto assim que muitos intrpretes (no o caso de Lethicia) acham que ele as v como atividades, se no desprez-veis, enganadoras e irrelevantes. Tanto isso verdade que muitos so os que se debruam sobre o tema para tentar salvar a atitude de Plato diante dessas artes e tirar-lhe a pecha de crtico radical da pintura e da escultura.

Ao fazer do demiurgo divino tambm um escultor e um pintor, ativida-des demirgicas no to bvias como tantas outras exercidas por ele no texto

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do Timeu, Lethicia faz Plato colocar as artes plsticas no mesmo nvel das tcnicas por ele reconhecidamente respeitadas.

Antes de finalizar, gostaria de chamar ateno para um outro aspecto da tese de Lethicia. Ns do mundo acadmico sabemos dos prazos exguos exi-gidos pelas agncias de fomento e pelas prprias universidades para a concluso dos trabalhos de ps-graduao. O resultado que dissertaes e teses muito comumente chegam defesa com problemas que acabam sendo relevados pelos examinadores, que veem esses trabalhos como exerccios acadmicos ainda no completamente finalizados e maduros para publicao. Visto sob esse prisma, estamos aqui diante de um trabalho quase excepcional. Um texto bem escrito, sem problemas de articulao entre suas partes, e, o que digno de nota, ins-tigante e realmente original. No surpreendente que a tese de Lethicia Ouro Oliveira tenha sido agraciada com dois prmios, ambos em 2017: o prmio CTCH de Teses, concedido pela Coordenao Setorial de Ps-Graduao e Pesquisa e pelo Decanato do CTCH da PUC-Rio, e o prmio SBP de Tese Prof. Samuel Scolnicov, concedido pela Sociedade Brasileira de Platonistas.

Encerro minhas observaes, com a certeza de que os leitores desta tese vo apreci-la do mesmo modo que aqueles que j a leram, aprovaram e premiaram.

Maura Iglsias

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Da mesma forma como recebi uma tese quase pronta para co-orien-tar, recebi uma introduo quase pronta para completar. Tanto em um caso quanto em outro, evidente que fui desnecessria. Lethcia uma pesquisadora autnoma, que trabalha muito bem sozinha e que encontrou em Maura a orien-tadora perfeita - no apenas por ser extremamente experiente, como tambm por possuir a rara sabedoria de questionar muito seriamente os argumentos de seus orientandos, sem com isso desvi-los de seus projetos iniciais e das hipte-ses que desejam defender. A mim, portanto, restou-me apenas dar o apoio final, provendo pequenos auxlios na redao do texto e na parte dedicada s Leis, que incentivei Lethcia a escrever. Fico muito contente com o resultado. Fico contente tambm por ter podido contribuir ainda que to pouco quanto fao aqui neste breve pargrafo para esse processo ao mesmo tempo to tranquilo e to comprometido com a seriedade da tarefa que se props a realizar. Dele, no poderia resultar algo diferente de uma tese sria e comprometida. Maura e Lethcia, s tenho que agradecer pela grande oportunidade de ser desne-cessria, sem por isso ser descartada. Espero que os leitores dessa tese, agora livro, tirem muito proveito da escrita sbria, das observaes provocadoras, da clareza e da paixo pelas artes e por Plato que Lethcia decidiu unir neste texto singular.

Luisa Buarque

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1Introduo

Amigos, tentarei louvar Scrates recorrendo a imagens (). Ele certamente pen-sar que isso leva ao risvel, mas porei a imagem a servio da verdade e no do ridculo. Asseguro que ele muito semelhante a esses silenos expostos nas oficinas dos escultores, esculpidos com pfaros ou flautas, os quais, abertos de par em par, exibem esttuas de deuses ( ) em seu interior. (...) Passa a vida brincando e ironizando pes-soas. Mas quando fica srio, quando se abre, aparecem as esttuas guardadas l dentro. Algum j as viu? Eu j. Divinas, ureas, to extraordinariamente belas que o que quer que Scrates mandasse, eu faria no mesmo instante.

PLATO. Banquete, 215a,b;216e. Traduo de Donaldo Schler.

A origem desta pesquisa

Quando o pai percebeu vivo e em movimento o mundo que ele havia gerado, escultura () dos deuses eternos, regozijou-se, e na sua alegria determinou deix-lo ainda mais parecido com seu modelo.1 ( , .) diz o personagem Timeu, no dilogo de Plato que leva seu nome, para seus amigos Crtias, Hermcrates e Scrates. Neste dilogo, Timeu apresenta o principal mito cosmognico de Plato2, segundo o qual um arteso divino, chamado de pai na passagem acima, confecciona o mundo. Ele se refere obra divina com o termo escultura que, mais adiante, saberemos ser pintada: Da combinao restante, a quinta, utili-zou-se a divindade para pintar () o mundo ( ).3 ( - , .) O con-texto pitagrico; trata da estrutura geomtrica presente na natureza. A quinta combinao citada corresponde ao quinto slido regular, que apresentado por

1 PLATO, Timeu, 37c. Traduo de Carlos Alberto Nunes um pouco modificada. Preferimos escultura em lugar de semelhana para traduzir . O sentido dessa passagem ser desenvolvido no terceiro captulo, dedicado ao Timeu, especificamente na seo 3.2.2.

2 O mito narrado por Timeu ocupa quase a totalidade do dilogo e desenvolve os detalhes da confeco divina do mundo, diferentemente, por exemplo, do breve mito cosmognico do Poltico que narra os ciclos criativos e destrutivos do universo.

3 Ibid., 55c. Traduo de Carlos Alberto Nunes modificada. Preferimos pintar ao invs de configurar como traduo de para ressaltar o radical do termo, que nos interessa neste estudo sobre a noo de pintura. Usamos pintura aqui num sentido lato, sem nos restringirmos ideia de se colorir o cu, por exemplo, que, como veremos adiante, no nos parece ser o caso nesta passagem. Outras tradues so possveis, como configurar ou desenhar, sobre as quais refletiremos na seo 3.2.1.

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Timeu aps a descrio da formao dos quatro outros que expem a forma dos quatro elementos usados na confeco do corpo do mundo: fogo, terra, gua e ar.4 Depois de pirmide, natureza. Depois de pirmide, octaedro, icosaedro5 e cubo6 terem sua composio narrada, o demiurgo usa o dodecaedro para pintar as constelaes no cu.7

Essa descrio do mundo como escultura e pintura intriga. Por que Plato opta por expor a do mundo como o trabalho de pintor e escultor, alm de usar outras imagens artesanais?8 Haveria algo na pintura e na escultura que provm da Inteligncia, , que configura o que ocorre pelo acaso e desordenadamente, , de acordo com o paradigma ideal? Sabemos que esse , em pouqussimas palavras, o enredo do Timeu. O dilogo narra a origem do mundo como um embate entre dois princpios: o ordenador, , e o errante, . Sendo assim, poderamos afirmar que na confeco de obras pictricas e escultricas, esse embate tambm e quem sabe de forma mais evidente seria visvel, da o uso de suas imagens para retratar o princpio do mundo? Haveria alguma relao de semelhana entre o processo produtivo do e a produo humana de repre-sentaes pictricas e escultricas? Qual seria ela? Que desdobramentos traria nossa compreenso do pensamento platnico? Que elementos somaria inces-sante tarefa filosfica de aproximao da compreenso da condio humana, especificamente do sentido da atividade que hoje chamamos de artstica?

Perplexidades como essas qui os gregos cham-la-iam de deram origem presente investigao. Segundo o pensamento grego antigo, a filosofia sempre surge de um espanto ou uma perplexidade, um .9 No caso do presente estudo, no ocorreu to diferentemente de h tantos sculos atrs. Da inquietude proveniente dessas questes pontuais, que irromperam da leitura de passagens especficas dos dilogos platnicos, especialmente do Timeu, nosso olhar foi levado a perceber uma questo geral, espcie de pano de fundo das demais. Como talvez ocorra quando nos ocupamos com qualquer tema em Plato, as ideias apareceram em nosso percurso investigativo.

4 Essa a ordem em que os elementos so apresentados no dilogo. Cf. PLATO, Timeu, 31b-32b.

5 Esses nomes no foram empregados por Plato, mas nos Elementos de Euclides. Cf. xi. Def. I2, 26, 27 e TAYLOR, A. E., A commentary on Platos Timaeus, p. 375 e 376.

6 A pirmide ou tetraedro a forma geomtrica designada ao fogo; o cubo, terra; o octaedro, ao ar; e, por fim, o icosaedro, gua. Cf. RIVAUD, A. Notice. In: PLATON, Time, p. 79.

7 Alguns afirmam que se trata da pintura dos doze signos do zodaco. Cf., por exemplo, TAYLOR, A. E., op. cit., p. 377 e ARCHER-HIND, R. D. The Timaeus of Plato, p. 190. Para Brisson, trata-se de todas as constelaes. Cf. PLATON, Time, Traduction par Luc Brisson, p. 254, nota 420. Trataremos mais demoradamente desta passagem do Timeu na seo 3.2.1.

8 Sobre as diversas imagens usadas, cf. BRISSON, L., Le mme et lautre dans la structure ontologique du Time de Platon: un commentaire systmatique du Time de Platon, 1. Le dmiurge.

9 Cf. PLATO, Teeteto, 155c e ARISTTELES, Metafsica, 982b.

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A questo geral

Fomos levados a perguntar: o que seriam as ideias, que compem o paradigma do trabalho do demiurgo divino, to presentes e, ao mesmo tempo, ocultas nos dilogos de Plato?10 Pois mesmo sendo elas a base ou fundamento do sensvel, constituindo a prpria realidade em seu grau mximo, ao mesmo tempo no so definidas ou examinadas detidamente nos dilogos. Numa das mais importan-tes obras de Plato, A Repblica, por exemplo, quando o personagem Glucon pede a Scrates para que faa uma exposio sobre a ideia do bem, ele respon-de que tal tema grandioso demais para ser desenvolvido naquela situao.11 Somente um dilogo parece ter como tema central explcito as ideias, ainda que talvez possamos tomar todos eles como uma tentativa de evidenci-las. Esse nico dilogo o Parmnides. Quando os dilogos platnicos foram agrupa-dos em tetralogias por Trsilos, provavelmente no incio de nossa era12, o dilogo Parmnides apareceu com o subttulo ou Sobre as Ideias: lgico, . Todavia, como sabemos, o dilogo conta como o persona-gem Parmnides levanta diversos problemas relativos teoria das ideias, para os quais o jovem Scrates no encontra soluo. Sendo assim, no nico dilogo em que espervamos encontrar a exposio da metafsica platnica feita direta-mente, temos, em certo sentido, o contrrio: uma indicao de que as ideias no existem, de que o fundamento ltimo do mundo no .13

Talvez Plato oferea uma resposta para o Parmnides, dilogo e perso-nagem dele, salvaguardando as ideias, no Sofista, ao tratar da questo do ser e do no-ser.14 Talvez a temtica a seja outra, dado que o Estrangeiro de Eleia, que conduz a discusso neste dilogo, prefere o termo , e no ou em sua argumentao.15 De toda forma, Plato certamente deixa a cargo do leitor

10 A necessidade lgica de tal questo para o desenvolvimento dessa investigao tornar-se- clara na continuao desse subttulo.

11 Cf. PLATO, A Repblica, 506e. No passo referido, usa-se somente o termo bem (). Contudo, dado o contexto do dilogo, somos levados a concluir que se trata da ideia de bem. 12 Cf. LAERCIO, D. Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres, III, 56-62 e CORDERO, N.L. Introduction. In: PLATON, Le Sophiste. Traduction par Nestor L. Cordero, p. 19, nota 13. 13 Esta uma leitura bastante genrica e, alm disso, questionvel, dada a complexidade das problemticas apresentadas no dilogo. No nossa inteno desenvolver seus detalhes e pormenores aqui, pois desviaramos demasiadamente do tema de nossa pesquisa. Ainda assim, gostaramos de ao menos indicar o carter genrico de nossa colocao nesta nota, alm de reconhecer a existncia de outras possibilidades interpretativas.

14 Essa a interpretao de Cornford. Cf. CORNFORD, F. M. - Platos Theory of Knowledge: the Theaetetus and the Sophist., p. 11.

15 Cf., por exemplo, PLATO, Sofista, 253b. Sobre essa mudana de vocabulrio e seu papel na leitura do pensamento platnico como um todo, cf. IGLSIAS, M.; RODRIGUES, F. Apresentao do dilogo. In: PLATO - Parmnides, Traduo de Maura Iglsias e Fernando Rodrigues, p. 8.

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dos dilogos a resposta para essa e muitas outras questes. Neste trabalho, tra-taremos de apenas uma, dentre tantas indagaes suscitadas pelos dilogos. Pretendemos compreender a relao entre as ideias e dois gneros16 artsticos especficos: a pintura e a escultura. Ser que por meio deles podemos alcanar as ideias17, ou, ao contrrio, somos por eles lanados para longe da verdade e da realidade? Essa questo, j h tanto tempo discutida e controversa, ser por ns retomada; ns a tomaremos como a questo geral que mover esse estudo.

A primeira possibilidade de resposta pode, a princpio, parecer despro-positada e at completamente errnea em relao ao pensamento de Plato. Se consideramos o texto que se tornou o maior clich na obra desse filsofo, a Alegoria da Caverna, tendemos a localizar a pintura e a escultura no ltimo grau de realidade enquanto essas seriam sombras dos seres sensveis que j se encontram abaixo dos inteligveis. Alis, se um dos termos gregos referentes a pintura, a , significar especificamente, como se sugere, uma tcnica pictrica em que se delineiam as sombras dos objetos,18 a Alegoria pode usar a prpria pintura ou contorno de sombras no fundo da caverna como ilustrao da iluso de que so vtimas os homens em geral. Essa se tornou a leitura tra-dicional do pensamento sobre a arte em Plato. Com foco na famosa expulso dos poetas da cidade utpica e na gradao mimtica do Livro X d A Repblica, Plato foi epitetado de inimigo das artes, filsofo cuja teoria esttica preci-saria ser superada. Depois de, nos Livros II e III d A Repblica, eliminar da cidade ideal partes da poesia tradicional grega, por serem, segundo a persona-

16 Utilizaremos o termo gnero artstico para nos referir escultura, pintura e a outras manifestaes artsticas tais como foram classificadas na Renascena. J estilo adotaremos para tratar de tendncias baseadas em tcnicas e motivaes especficas desses gneros artsticos, que se transformam com o tempo e a regio, como, exemplificando, o estilo grego clssico; e, tambm, para nos remeter maneira de trabalhar prpria a um escultor ou pintor, como podemos falar do estilo de Policleto, por exemplo. Assim, utilizaremos o termo em sentido estabelecido por Winckelmann em Storia dell arte nell antichit. Ressaltamos ainda que no h correspondente em grego para estilo, e at mesmo stilus em latim possui significado diverso. Sendo assim, no deixa de ser anacrnico seu uso no contexto da antiguidade. Anacronismo, todavia, til na designao de grupos de obras que compartilham as mesmas caractersticas. Sobre isso, cf. d ANGELO, P.; CARCHIA, G., Dicionrio de esttica, verbete estilo. 17 A hiptese interpretativa de que a arte mimtica d acesso s ideias porque pode imit-las j foi defendida por diversos autores, com K. Flash e H. F. Bouchery. Cf. KEULS, E., Plato and Greek Painting, p. 48-51. A autora tambm cita Gombrich, mas, a nosso ver, se trata de uma leitura distorcida do que ele defende. O autor no afirma que a arte egpcia copia ideias, como diz Keuls, mas que est mais prxima da carpintaria, que o faz, que da imitao de aparncias fugidias. Cf. GOMBRICH, E. H., Arte e iluso: um estudo da psicologia da representao pictrica, p. 108. Por fim, ela afirma que J. Tate tambm defende uma posio em, por exemplo, TATE, J., Imitao na Repblica de Plato. In: Klos, n. 11/12, p. 143-154. Importa salientar que, contudo, neste artigo, Tate diz que a poesia capaz de imitar as Ideias a prpria filosofia. As obras escultricas so metforas das filosficas no livro V d A Repblica. Sendo assim, tambm discordamos da autora quanto a esta ltima considerao.

18 Cf. essa concepo da em KEULS, E., op. cit., p. 72 e SCHUHL, P-M., Platon et lart de son temps, p. XIV. Ressalta-se que Keuls criticar essa interpretao do sentido de .

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gem Scrates, mentirosas e inteis para a educao dos guardies da cidade19, no ltimo livro do dilogo ele rejeitaria toda a mimtica em geral por j ter ex-plicitado os perigos das imagens, presentes em toda imitao ou repre-sentao, , pois correlacionadas parte apetitiva da alma, , que, segundo a argumentao do Livro IV do mesmo dilogo, deve obedecer parte racional, :20

... a pintura () e, de modo geral, a arte de imitar (), executa suas obras longe da verdade, e, alm disso, convive com a parte de ns mesmos avessa ao bom-senso (), sem ter em vista, nesta companhia e amizade, nada que seja so ou ver-dadeiro.

Exatamente.

Se o medocre se associa ao medocre, a arte de imitar s produz mediocridades.

Assim parece.

, , . , . . .

PLATO, A Repblica, 603b. Traduo de

Maria Helena da Rocha Pereira.

Esta leitura, que atrela a crtica de Plato arte mimtica como um todo, feita desde Plotino,21 defendida por intelectuais de renome,22 e, por fim, se tornou dominante no mbito dos manuais de esttica.23 Ela certamente contri-bui como causa parcial de nosso grande estranhamento ao lermos, no Timeu, que o demiurgo do mundo trabalha como pintor e escultor. Como a causa de imagens e sombras convm para que se exponha sobre a causa do mundo? Para compreendermos isso, necessrio, portanto, tomarmos a questo da relao

19 Cf. PLATO, A Repblica, 386c.

20 certo que o uso do termo razo como traduo de pode no ser apropriado quando se tem em vista o sentido que o termo abarcar no mbito da filosofia moderna, como fundamentadora da cincia e da tcnica, por meio da qual o homem poder explorar e controlar a natureza. Como traduo de , razo quer dizer, de forma bastante genrica, o sentido pertencente ao todo do cosmos desde as especulaes pr-socrticas e que caracteriza especificamente o homem enquanto pode abarc-lo pelo pensamento no uso da linguagem.

21 Cf. PANOFSKY, E., Idea: a evoluo do conceito de belo, p. 8.

22 Cf., por exemplo, HAAR, M. - A obra de arte: ensaio sobre a ontologia das obras, 1. A depreciao platnica da arte; VERNANT, J-P. Image et apparence dans la thorie platonicienne de la mimesis. In: Journal de Psychologie, v. 72, p. 133-160 e LICHTENSTEIN, J., A cor eloquente, Da toalete platnica.

23 Cf., por exemplo, OSBORNE, H., Esttica e teoria da arte: uma introduo histrica, p. 81 e 82.

24

entre as obras mimticas e as ideias. Se as produes imitativas fossem em tudo desprovidas de valor, serviriam para retratar a origem do universo? A realidade ltima em Plato no constituda de ideias? Como estas relacionar-se-iam, portanto, com obras mimticas?

Por meio de um estudo demorado e cuidadoso dos dilogos, fomos in-capazes de disfarar a evidncia de que a problemtica no to simples. At mesmo a Alegoria da Caverna, que citamos como exemplo da distncia entre obras mimticas e ideias , ela prpria, chamada ou qualificada como imagem, , pelo personagem Scrates.24 O fato de Plato usar uma imagem como a da caverna para explicitar aspectos de sua metafsica e epistemologia parece indicar um estatuto diferente para as imagens em seu pensamento. Alm disso, diversas outras passagens dos dilogos menos focadas, quando no ignoradas, por alguns comentadores por elas desinteressados, se opem a essa leitura e indicam um estatuto diferente para, por exemplo, os gneros artsticos aqui em questo. Duas dessas passagens foram citadas no incio desta introduo.25 O desconforto dos estudiosos frente ao mundo ser considerado escultura e pintura por Plato no Timeu faz-se evidente desde um simples levantamento das opes de traduo para e . Ao invs de traduzir por escultu-ra ou esttua, a maioria prefere imagem.26 J para encontramos das mais diferentes tradues,27 o que evidencia certa hesitao dos tradutores em optar pelo sentido de se pintar o cu.

24 Cf. PLATO, A Repblica, 517 a,b.

25 J que presentes num dilogo de Plato considerado tardio, o Timeu, e porque evidenciam o uso da pintura e da escultura para expor tema to metafsico como do princpio, , de todo o mundo, notamos que essas passagens se opem leitura de que a depreciao platnica da arte mimtica aumentaria em seus ltimos dilogos, como afirma Ernst Cassirer em Eidos und Eidolon, 21, apud., KEULS, E., op. cit., p. 56, 57.

26 Imagem (image) a opo de Martin, Archer-Hind, Chambry e Rivaud. Cornford, Robin e Moreau preferem santurio (shrine, sanctuaire), Bury, objeto de alegria (thing of joy), Brisson, representao (reprsentation) e, Nunes, semelhana de. Segundo Chantraine, em tico, dialeto da lngua grega usado por Plato, quer dizer esttua, oferecida a um deus, que geralmente o representa e pela qual adorado. Esse parece ser o contexto da passagem do Timeu, j que se trata de . Cf. CHANTRAINE, P. Dictionnaire tymologique de la langue grecque: histoire des mots, p. 7, verbete . Por fim, Vernant defende que, dentre outros, o termo significa a apario do invisvel, no caso, na esttua. Somente e adquiririam o sentido de imagem a eles vinculado pelo prprio Plato. Cf. VERNANT, J.-P. Mito e Poltica, Da presentificao do invisvel imitao da aparncia. Keuls tambm segue essa linha interpretativa. Cf. KEULS, E., op. cit., p. 2. Ainda assim, a maioria prefere traduzir por imagem, como vimos, traduo que, alis, no chega a ser totalmente isenta de problemas, dada a famosa leitura da desqualificao platnica das imagens. Chamar o mundo inteiro de imagem, no somente seu corpo, mas tambm sua alma, demandaria, a nosso ver, explicitaes interpretativas. Desenvolveremos o sentido do termo no cap. 3, especificamente em 3.2.2.

27 Eis o levantamento de tradues para que fizemos: Martin: traar o plano (tracer le plan); Robin e Moreau: desenhar o plano (dessiner lpure); Chambry: concluir o desenho (achever le dessin); Archer-Hind: embelezando-o com signos (embellishing it with signs); Rivaud: desenhou (a dessin); Cornford: fazendo um arranjo de figuras animais nele (making a pattern of animal figures thereon); Bury: usou-o em sua decorao (used it in his decoration); Nunes: configurar; Brisson: pintado de figuras animais (peignit des figures animales). Schuhl opta por escultura para e pintar para na sua interpretao do dilogo em SCHUHL, P-M., op. cit., p. 65 e 66. Trataremos deste passo na seo 3.2.1.

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A questo especfica

Essa hesitao, esse desconforto, tambm nossa. Por isso, intentamos explici-tar o sentido dessas passagens, alm de outras que selecionaremos, percebendo o papel da escultura e da pintura nos dilogos. Como o filsofo as usa? O que esse uso nos diz sobre sua viso desses gneros artsticos?

Pierre-Maxime Schuhl prope uma resposta a essas questes em Plato e a arte de seu tempo (Platon et lart de son temps). Ele afirma que Plato condena a tendncia estilstica escultrica e pictrica de seu tempo enquanto enaltece os estilos arcaico, egpcio e de Policleto. Por meio de uma leitura da totalidade dos dilogos, Schuhl argumenta que Plato critica, usando as palavras do co-mentador, o realismo exacerbado das obras a ele contemporneas.28 Pois, em muitos dilogos, rigoroso tanto com as iluses, por exemplo, da sofstica, como ocorre, como diz o autor, no Grgias e no Sofista; quanto com a definio do prazer como critrio do juzo acerca das obras de arte, como encontramos nas Leis. Segundo seu ponto de vista, as prazerosas iluses deveriam ser substitu-das por medida, clculo, regra e proporo. Nesse sentido, Plato seria amante de uma esttica desprovida de imitao; de obras belas pela pureza de traos, como nas formas geomtricas descritas no Timeu, e pela pureza das cores, tal como diz no Filebo. A arte egpcia, a arte grega arcaica e o estilo do escultor Policleto encontram-se mais prximos desses traos e cores, assim como o que hoje chamamos de arte abstrata a qual, alis, segundo o comentador, no seria condenada por Plato.

Eva Keuls, em Plato e a Pintura Grega (Plato and Greek Painting), dis-corda. Segundo ela, o uso platnico das hoje consideradas artes plsticas ma-joritariamente metafrico, sendo as obras assim libertas do olhar crtico do fi-lsofo. Ela afirma que Plato no se interessa pelas artes visuais;29 ele somente usa a pintura, assim como a escultura, como imagens para retratar o mundo fe-nomnico, assim como a poesia, entre outros temas.30 Alm disso, segundo ela, Plato nunca cita em seus textos a inovao pictrica mais importante da arte grega, to determinante em sua caracterizao ilusionista: a tcnica da perspec-tiva seja escoro ou perspectiva linear.31 Por meio de um estudo dos dilogos

28 Cf. p. XIX.

29 Segundo afirma, ela segue a tese de Wilamowitz. Cf. KEULS, E., op. cit., p. 4 e 28.

30 Na mesma linha interpretativa segue TRIMPI, W. The early metaphorical uses of skiagrapha and skenographa. In: Traditio (Studies in Ancient and Medieval History, Thought and Religion), p. 29-73 apud., OLIVEIRA, A. L. M. O fingidor e o filsofo: breve ensaio acerca do ut pictura poesis. In: Artefilosofia, n. 2, p. 63-70. Ambos Trimpi e Keuls publicam essa leitura em 1978.

31 Cf. KEULS, E., op. cit., p. 36. certo que vrias passagens dos dilogos retratam a capacidade

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platnicos como um todo, assim como da literatura, principalmente clssica e helenstica, referente s artes visuais, a autora insiste, em praticamente todos os captulos de seu livro, em refutar a tese de Schuhl que, como ela mesma diz, a que prevalece nos meios acadmicos.32 Ela defende que a revoluo na arte grega, caracterizada pelo advento de tcnicas ilusionistas, ocorreu pelo menos uma gerao antes do perodo em que viveu Plato33 o que mostraria que tal transformao no seria determinante no seu pensamento.

Dados esses dois posicionamentos interpretativos, somos levados a re-fletir se algum deles teria razo. Caso sim, em que medida? Em nosso texto pretendemos avaliar essas duas posies a partir de uma investigao acerca da pintura e da escultura, no no corpus platnico como um todo, como eles fizeram, mas sim em dilogos especficos, como veremos adiante. Suas teses se sustentam em anlises menos generalistas, que se voltam sobre pequenas passagens dos dilogos em que h referncia aos gneros artsticos que nos interessam?

As noes de pintura e escultura

Perceber com clareza o que Plato diz sobre essas artes no nada fcil. Em pri-meiro lugar, necessrio relembrar algumas diferenas histricas, para que no se cometa anacronismos, ou, ao menos, para que estes no passem desapercebi-dos e sim vistos como necessrios para o tipo de investigao aqui em ques-to.34 Sabemos que os conceitos de pintura e escultura, tais como os conhecemos atualmente ainda que tenham sofrido mudanas com as radicais rupturas esti-lsticas contemporneas35 , formaram-se no perodo da Renascena, quando se

ilusionista da pintura. A comentadora parece se remeter descrio do escoro (no h termo grego ou latino referente) e da perspectiva linear (talvez o sentido de ) em seus detalhes especficos.32 Cf. sua aceitao por, por exemplo, VERDENIUS, W. J. - Mimesis: Platos doctrine of artistic imitation and its meaning to us, p. 20: Ele (Plato) critica incisivamente a arte ilusionista, que por meio de um uso tcnico da perspectiva e da policromia tenta criar a impresso de um segundo original., SPIVEY, N. - Understanding greek sculpture: ancient meanings, modern readings, p. 26 e 27, GOMBRICH, E. H., op. cit., p. 99, 118 e 126 e VERNANT, J.-P. Image et apparence dans la thorie platonicienne de la mimesis. In: Journal de Psychologie, v. 72, p. 148.

33 Cf. posio diferente sobre os perodos histricos da arte grega em GOMBRICH, E. H., op. cit., p. 108.

34 Cf. o mesmo cuidado em BUARQUE, L. possvel falar de uma esttica platnica? In: Viso, n. 1, p. 1.

35 Sobre esse tema, cf., por exemplo, DANTO, A. - Aps o fim da arte: a arte contempornea e os limites da histria, p. 16: ... no havia uma forma especial para a aparncia das obras de arte em contraste com o que eu havia designado coisas meramente reais... no que se refere s aparncias, tudo poderia ser uma obra de arte... e GULLAR, F.; PEDROSA, M.; CLARK, L. - Lygia Clark, p. 30, 1966: Ns Recusamos...: Recusamos o espao representativo e a obra como contemplao passiva; (...) Recusamos a obra de arte como tal e damos nfase ao ato de realizar a proposio.

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reivindicou o lugar dessas formas artsticas entre as artes ento, e, desde a Idade Mdia, consideradas livres: gramtica, dialtica, retrica, geometria, aritmti-ca, astrologia e msica. Estas faziam parte da educao dos aristocratas, dos homens livres, cujo cio lhes permitia o estudo. A pintura e a escultura eram consideradas artes mecnicas, prprias do homem servil, alm de agricultura, caa, pesca, medicina, engenharia, arquitetura, navegao, olaria, carpintaria, marcenaria, fiao e tecelagem. Sabemos que, na Grcia Antiga, o escultor e o pintor no eram estimados tal como os poetas e os sofistas.36 Acreditava-se que os poetas eram inspirados diretamente pelas divindades, pelas Musas, que ha-bitavam as montanhas e lhes revelavam a verdade.37 Os sofistas recebiam mui-tssimo dinheiro por seus longos e sedutores discursos, e pelas suas aulas de oratria. J em relao a pintores e escultores, no sabemos se eram tidos como inspirados pelos deuses, e temos evidncias de que recebiam pouca quantia em dinheiro por seu, por vezes rduo, trabalho.38 A distino entre as artes livres e as mecnicas, que se estabeleceu na Idade Mdia, sendo pela primeira vez delineada no perodo do helenismo por Varro,39 encontra, portanto, seu funda-mento na prpria cultura grega. Assim, quando falamos de pintura e escultura no mundo grego antigo, no podemos perder de vista seu contexto prprio, o tmido reconhecimento social do pintor e do escultor, alm do uso prtico das obras em rituais religiosos como casamentos, funerais, apresentaes teatrais, festividades em honra aos deuses etc., e em utenslios da vida cotidiana, como vasos e porta-incensos, alm de pinturas murais. Se atualmente classificamos tais objetos vendo neles pinturas e esculturas prprias para serem mantidas entre as quatro paredes dos museus, na Antiguidade no possuamos nem mesmo um s termo para designar exatamente e exclusivamente o que enten-demos por pintura ou escultura.

Isso evidencia que nossa pesquisa no optou pela investigao de um conceito presente na cultura grega poca de Plato que encontramos cons-tantemente nos seus dilogos como, por exemplo, uma investigao sobre o sentido de pesquisa essa que possui sua prpria complexidade. Nossa

36 Sobre esse tema, cf. AUSTIN, M.; VIDAL-NAQUET, P., Economia e sociedade na Grcia Antiga.

37 Ver a invocao s Musas no incio dos poemas picos gregos, assim como os dilogos platnicos on e Fedro que ressaltam o saber por inspirao divina do poeta, em oposio ao conhecimento tcnico. Cf. tambm SLON, frag. I, Elegia de Salamina, onde o canto oposto prosa () em artifcio usado pelo estadista e poeta para veicular carter sagrado s suas palavras, que incitavam os atenienses a retomar a guerra em Salamina. Cf. PLUTARCO. Sol. 8. 1-3 apud. LEO, D. F., Slon: tica e poltica, p. 255, 256, 264 e 403-406.

38 Cf. a irnica comparao entre os salrios do sofista Protgoras e do escultor Fdias em PLATO, Mnon, 91d.

39 Disciplinae [Disciplinarum libri IX] apud., MORA, J. F., Dicionrio de Filosofia, Varro.

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busca pretende capturar algo cujo conceito no era elaborado nossa maneira moderna, algo cuja existncia no mundo grego antigo no se resume a uma s palavra, mas que se apresenta ao pensamento e ao discurso por meio de diver-sos termos que expem seus diferentes aspectos. O que pretendemos salientar com essa breve ressalva que nossa pesquisa no parte de um conceito grego antigo especfico, mas busca, diferentemente, as origens das noes de pintura e escultura nas obras de um filsofo to determinante no curso do pensamento sobre a arte.40 Como pintura e escultura eram caracterizadas antes mesmo de serem catalogadas em conceitos, que comeam a se distinguir com a progressi-va laicizao de tais obras gregas, aps o domnio do Imprio Romano sobre a Grcia? Isso posto, devemos reformular a questo especfica antes apresentada. Ao invs de pesquisar como Plato caracteriza pintura e escultura em seus di-logos, melhor diramos: o que diz Plato sobre o que hoje chamamos de pintura e escultura, evidenciando-nos, assim, um primeiro olhar que, de certa forma, apresentou alguns suportes fundamentais para a construo desses conceitos to modernos?

Pode-se dizer que com Plnio, o Velho, que viveu de 23 a 79 d.C., que as noes de pintura e escultura, como conhecemos hoje, comeam a ser cla-ramente esboadas. Em sua obra Histria Natural, ele conta diversas anedotas sobre a vida e o trabalho de diferentes pintores e escultores. Posteriormente, os sofistas Filstrato, o Velho, e Calstrato inauguram o gnero potico de des-cries de obras, relatando os detalhes de, respectivamente, pinturas e escul-turas.41 Temos, assim, uma abordagem mais extensa e preocupada aos detalhes estticos das obras, como no se havia feito anteriormente.42 Mas certo que a Antiguidade Grega Clssica no se calou frente a esses gneros artsticos. Nela podemos encontrar as origens e primeiros olhares sobre pinturas e escultu-ras. Dessa forma, intentamos que nosso estudo possa, alm de mudar de lugar as perplexidades suscitadas pelos dilogos platnicos nos amantes das artes,

40 Croce, por exemplo, chega a afirmar que o problema esttico, isto , este campo investigativo da filosofia que trata do belo e das obras de arte, comea com Plato. Cf. CROCE, B., Aesthetic as Science of Expression and General Linguistic, I. Aesthetic ideas in Graeco-Roman Antiquity.

41 Cf. ELDER PHILOSTRATUS. Imagines; CALLISTRATUS. Descriptions. certo que encontramos descries de obras na literatura anterior, como a descrio da taa de Nestor e do escudo de Aquiles em HOMERO, Ilada, Canto XI, v. 632-7 e Canto XVIII, v. 478-608, ou de ornamentos presentes em naus em EURPIDES, Ifignia em ulis, v. 267-291. Tambm Luciano e Apuleu tomaram como tema pinturas e esculturas. Contudo, somente com Filstrato, o Velho, e Calstrato possumos obra descritiva e, de sua forma, crtica, envolvendo diversas pinturas e esculturas. Cf. FAIRBANKS, A. Introduction. In: ELDER PHILOSTRATUS. Imagines, xvi, xvii, LICHTENSTEIN, J. (Org.). A pintura: textos essenciais, vol. 1, p. 28 e OSBORNE, H., op. cit., p. 62.

42 Paralelamente, pinturas e esculturas gregas passam a ser reproduzidas e expostas nas casas e jardins de homens cultos, apreciadas por suas beleza e fama por seu carter esttico, como ocorreu em Pompeia. Cf. GOMBRICH, E. H., op. cit., p. 120.

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saindo do enfoque na poesia, no canto versificado, para acolher o silncio das obras plsticas, delinear uma resposta s questes apontadas anteriormente, oferecendo, assim, uma abordagem acerca dos fundamentos terico-filosficos desses gneros artsticos. Afinal, de onde vm os conceitos de pintura e de es-cultura? Com que palavras essas artes eram expressas? Que qualidades ressalta-das? Para que tipo de metfora eram usadas? Como Plato as apresenta e a que outras noes foram articuladas?

Foi Benveniste quem afirmou que os gregos no possuem um s termo para designar o que hoje chamamos de esttua ou escultura.43 Dada a lacuna, Jean-Pierre Vernant apresentar uma considervel lista de diferentes termos que se referem escultura.44 No caso da pintura, o radical - pode ser tomado como base semntica para a maior parte dos termos que a designam, diferentemente do que ocorre com a noo de escultura. As diversas combina-es so prprias do grego e indicam especificaes ausentes em nossa lngua. Alm disso, o termo significa tanto pintura quanto escritura, isto , no h um termo grego que contemple completamente e exclusivamente o sentido moderno e atual de pintura.

Por vezes, no texto platnico, podemos no encontrar nenhum elemen-to do vocabulrio relativo escultura e pintura, e sim uma referncia a esses gneros artsticos por meio de descries ou apontamentos de suas proprieda-des. Por isso, estamos abertos para incluir todas as indicaes que contribuam na construo de um apanhado crtico e reflexivo de alguns dos primeiros usos

43 Le sens du mot et les noms grecs de la statue. In: Revue de Philologie, 6, p. 133 apud., VERNANT, J.-P. Entre mito e poltica, 31. Da presentificao do invisvel imitao da aparncia.

44 Entre Mito e Poltica, 31. Da presentificao do invisvel imitao da aparncia. Temos expresses que se referem a esculturas de dolos no icnicos: (pedra provinda do cu e vista como sagrada), (pedaos de madeira paralelos, ligados por outros transversais, smbolo da unio de Castor e Plux), (coluna funerria); teriomorfas ou monstruosas: , , ; figuras antropomrficas, dentre as quais encontramos dolos arcaicos, com ps e pernas juntos ao corpo, como (esttua de madeira), (figura talhada na madeira ou na pedra, ou esttua, especificamente de divindades), (esttua de Atena), os famosos e dos quais muitos exemplares se encontram atualmente no Museu da Acrpole, em Atenas; e grandes esttuas cultuais, como (esttua de um deus), , (escultura ou pintura) e . Sabe-se que e possuem um campo semntico mais abrangente que os termos anteriores, pois denotam, respectivamente e de forma geral, imagem e cpia. Como eles tambm so usados para esculturas (e pinturas), foram includos nesta listagem. Quanto pintura, por mais que no tenhamos feito um levantamento vocabular exaustivo, j poderamos citar os termos (pintura ou escritura), (pintura de animais), (pintura de sombras), (pintura ou desenho de retratos), (pintura de cenrios ou pintura com perspectiva linear), (esboo), (esboo concludo), (configurao ou bordado), (obra acabada), , e (quadro). A substantivao de particpios do verbo , como , por exemplo, tambm envolve, em seu sentido, a noo de pintura. Os significados entre parnteses no pretendem dar conta de forma exaustiva do sentido dos termos gregos, mas somente indicar uma concepo bastante geral e, muitas vezes, etimolgica das expresses.

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dessas artes na literatura filosfica.45 Nossa ateno voltar-se- para tamanha riqueza vocabular e de sentido, e tambm, e sobretudo, ao papel que cabe a essas referncias no contexto dos dilogos tendo em vista o pensamento plat-nico, tal como se constri nas cenas dialogais de cada uma das suas obras que aqui analisaremos.

Assim, feita essa ressalva introdutria, para que nossa pesquisa seja possvel, continuaremos a empregar as expresses pintura e escultura no con-texto dos dilogos, apesar de terem nascido, como dissemos, na Renascena. Pedimos que o leitor se mantenha atento s especificaes histricas apresenta-das, pois assim escaparemos de esquecer os anacronismos.

Todavia, desde j nos vemos frente a um impasse: como investigar sobre pintura e escultura nos dilogos platnicos, sem que se parta de alguma con-cepo dessas artes? Essa concepo no seria moderna e, assim, esse estudo, despropositado? Uma investigao totalmente cega ao objeto investigado certa-mente no teria por onde comear. A famosa a respeito do conhecimento presente no Mnon de Plato exemplar a esse respeito: como buscar conhe-cimento se no se sabe nem mesmo o que se busca, e como adquirir conheci-mento, quando j se sabe?46 Sem tomarmos as noes modernas de pintura e escultura este estudo no seria possvel, mas partindo de nossa compreen-so delas j delineamos as caracterizaes que delas poderamos encontrar. Para desviarmos dessa , que aqui no nos cabe solucionar, propomos

45 Tambm alguns filsofos pr-socrticos se referem a essas artes, portanto no contexto do nascimento do pensamento abstrato e conceitual. Cf. HERCLITO, frag. 5: ... dirigem tambm suas oraes a esttuas, como se fosse possvel conversar com edifcios, ignorando o que so os deuses e os heris. [ , .] Traduo de Gerd Bornheim, e EMPDOCLES, frag. 23: Assim como quando pintores, homens que, por habilidade, so bem peritos na sua arte, decoram oferendas quando, de fato, tomam em suas mos pigmentos de muitas cores, misturando harmonicamente mais de uns e menos de outros, produzem a partir deles formas que se assemelham a todas as coisas, ao criarem rvores e homens e mulheres, feras e aves e peixes que nas guas se criam, e tambm deuses de longa vida, superiores em honrarias: assim tambm no permitas que o engano subjugue a tua mente e te leve a pensar que h uma qualquer outra fonte de todas as incontveis coisas mortais que claramente se vem, mas fica a saber isto bem, j que a narrao que escutas provm de um deus. [ , , , , , , , , , .]Traduo de Carlos Alberto Louro Fonseca da verso inglesa de Kirk, Raven e Schofield.

46 Cf. PLATO, Mnon, 80 d,e.

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um meio-termo, um terceiro caminho. Como dissemos, para que comecemos essa pesquisa, necessrio adotar alguma definio desses gneros artsticos ainda que nos encontremos abertos para ter de modificar o sentido que de incio tomaremos, se assim se fizer necessrio. Isto : no pretendemos que os princpios dos quais partiremos, as definies, sem as quais no podemos nos fazer entender, restrinjam de alguma forma o que aqui buscamos e impeam essa pesquisa. certo que no podemos desconsiderar que todo princpio leva a determinada direo, conduz o pensamento a campos determinados. Mas ar-riscamos aqui poder recomear e, quem sabe, inspirados num dilogo da juven-tude platnica, percorrer diversas definies, sem as quais no se alcanaria a concluso final ainda que ela seja aportica. Por isso, no nos cabe adotar uma concepo terica das artes plsticas que fosse fruto de uma elaborao demorada e comprometida com pontos de vista especficos, que estiveram em disputa ao longo das reflexes sobre a arte de nossa cultura ocidental. Assim, por exemplo, no adotaramos a viso de Leonardo da Vinci ou Hegel, que privi-legiam a pintura frente escultura devido s razes que, aqui, nessa introduo, certamente no nos interessam. Alm disso, seria possvel que ela nos levasse a caminhos errneos quando temos em vista a Grcia Antiga. por isso que optamos por noes mais simples e, assim, mais prximas do que geralmente compreendemos por essas artes. Partimos, destarte, propositadamente, de defi-nies encontradas em manuais, que expressam as noes mais gerais e comuns desses gneros artsticos.

Compreendemos uma obra escultrica como uma massa tridimensio-nal que ocupa espao, e que s pode ser apreendida pelos sentidos vivos para seu volume e peso (ponderability), assim como para sua aparncia visual47 (READ, 1956, p. ix), de carter representativo. Como indicamos acima, definies en-contradas nos textos de importantes filsofos ou artistas ou se comprometem com seu prprio sistema de pensamento, como o caso de Hegel e Schelling, ou se comprometem com antigas querelas sobre a superioridade de um ou outro gnero artstico, como acontece com Leonardo da Vinci e Michelangelo. por isso que, como dissemos, ousamos aqui preferir o ponto de vista do manual que, duplamente, satisfaz nosso entendimento comum do que , nesse caso, uma obra escultrica, e nos proporciona a abertura terica indispensvel em nossa pesquisa. Pois, o que aqui intentamos compreender como o prprio Plato caracterizaria esses gneros, perceber como eles so retratados nas obras plat-nicas que aqui analisaremos.

47 a three-dimensional mass occupying space and only to be apprehended by senses that are alive to its visual appearance. Todas as tradues dos textos dos comentadores so nossas.

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J para pintura, tomemos que a representao pictrica um fenme-no perceptivo, estritamente visual,48 no qual percebemos a prpria represen-tao, assim como o objeto representado.49 A pintura no apresenta a terceira dimenso. Ela s pode ser, assim, apreendida pela viso, e no pelo tato, como possvel no caso da escultura. Portanto, a diferena em relao escultura a exclusividade da recepo visual no caso das obras pictricas. E essa percepo possui duplo aspecto: ela a percepo da obra, assim como do que repre-sentado nela. Parece-nos que essa uma definio bastante intuitiva da arte da pintura, que aqui podemos, ento, tomar como um princpio investigativo.

Nossa inteno que contribuamos numa viso desses conceitos, ou melhor, das origens desses conceitos no pensamento ocidental, em especfico, nos dilogos platnicos com os quais trabalharemos. As origens das definies desses gneros artsticos, a nosso entender, tornaro as prprias definies mais com-plexas e, dessa forma, elucidadas e claras medida que nos debruamos sobre cada uma das referncias presentes nas obras escolhidas em nossa anlise. Afinal, por mais que esses conceitos no existissem na Grcia Antiga tal qual desde a Modernidade, com as investigaes renascentistas, no h quem no re-conhea a exemplaridade das produes gregas nesse campo, que se tornaram modelos para culturas posteriores, e sob cujo padro foram confeccionadas in-meras obras que at os dias de hoje podemos encontrar nas praas pblicas de qualquer cidade, exercendo uma funo a elas atribudas pelos gregos: a conser-vao da memria de um homem ilustre ou de um evento de importncia polti-ca, por exemplo. H quem tenha afirmado que verdadeiras esculturas somente existiram na Grcia Antiga e que aps o aniquilamento da cultura e, at mesmo, de muitssimas obras gregas, no perodo de ascenso do poderio cristo na Idade Mdia, esculturas em seu ideal e perfeio nunca mais foram produzidas. Essa a viso de grandes filsofos como os j citados Schelling e Hegel.50 H os que no compartilham dessa viso to apaixonada pela arte grega, mas que no deixam de reconhecer seu lugar de destaque; veem suas obras como paradig-mticas, podendo ser alcanadas por artistas modernos, que copiam sua gran-diosidade. Assim compreendem, por exemplo, Vasari, que chega a afirmar que

48 GERWEN, R. V.Richard Wollheim on the art of painting: art as representation and expression, p. 13.

49 Cf. Ibid., p. 6.No caso das pinturas abstratas, como, por exemplo, no contexto grego, as geomtricas, podemos supor que representam ou, como outra traduo possvel de , expressam algumas relaes ou propores, por exemplo.

50 Cf. SCHELLING, F. W. J. Filosofia da arte, Esclio do 124, p. 252: No tocante, portanto, execuo artstica, o que se pode fazer at agora apenas recomendar ao aprendiz de arte a observao emprica das propores adotadas nas obras mais belas da Antiguidade, dado que no mundo moderno jamais se formou novamente uma verdadeira escola de arte ou um sistema da arte como entre os antigos. e HEGEL, G. W. F., Curso de esttica: o sistema das artes, Segunda seo: a escultura, Captulo primeiro. 3. A escultura, arte do ideal clssico.

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Michelangelo supera os antigos, e Winckelmann.51 Isso nos torna claro o papel de destaque da Grcia Antiga no prprio trabalho moderno de definio desses gneros artsticos. Sendo assim, parece-nos certamente apropriado um estudo que pretenda compreender o pensamento dos prprios gregos sobre esculturas e pinturas gregas de seu tempo, que, certamente, muitas vezes realizado em comparao com estilos prprios a outras culturas, como veremos.

Os dilogos

Vejamos agora quais os dilogos com os quais trabalharemos e a razo desse recorte no corpus platonicum.

Como partimos da tentativa de compreenso da afirmao de Timeu de que o mundo escultura e pintura, tomaremos como instrumentos de pes-quisa, alm do Timeu, dois outros dilogos que podero complementar nossa abordagem. O primeiro deles o Sofista, o qual, alm de especificar formas di-ferentes de esculpir e pintar, divide a produo mimtica, em que se encontram escultura e pintura, em divina e humana. A escultura e a pintura divinas, como sabemos, encontraremos no Timeu; as humanas, no ltimo dilogo de Plato, as Leis. No intuito de perceber o papel dessas artes nos dilogos platnicos, tomamos trs deles, como dissemos, Sofista, Timeu e Leis, que fazem parte do que se considera seu ltimo pensamento, por trs motivos: em primeiro lugar, porque contribuem na evidenciao do sentido das passagens do Timeu, como dito. Em segundo, porque neles encontramos aspectos da pintura e da escultura ocultos em A Repblica dilogo considerado central na temtica da produo mimtica52 e que, em geral, como vimos, tido como referncia da depreciao platnica da arte imitativa. Com uma abordagem alternativa da Repblica, pretendemos enriquecer essa leitura geral, precisando-a e complementando-a.53 Assim, per-guntaremos: podemos observar uma transformao no pensamento de Plato a respeito da pintura e da escultura nos ltimos dilogos? Sua postura diferente

51 Cf. VASARI, G., The lives of the artists, Preface; The life of Michelangelo. Sobre a superioridade de Michelangelo, cf. p. 471, 472. Ele tambm afirma que Rafael levou a arte da pintura sua mais alta perfeio, o que nos faz crer que ele tambm superou os gregos. Cf. Ibid., p. 337. Cf. tambm WINCKELMANN, J. J., Reflexiones sobre la imitacin de las obras griegas en la pintura y la escultura, p. 78: Nosso nico caminho para sermos grandes, mais ainda, para sermos, se possvel, inimitveis, a imitao dos antigos..., p. 95. Ele chega a afirmar que os modernos superam os gregos na arte pictrica. Cf. p. 105.

52 Sabe-se que,n A Repblica, a pintura e a escultura possuem carter duplo, j que, alm da depreciao da no Livro X, outras passagens usam o trabalho do pintor e do escultor como metfora do filosfico. Cf. PLATO. A Repblica, 484c, 500c, por exemplo. Sobre isso, cf. a seo 3.1.1.

53 Segundo Eva Keuls, algumas passagens do Sofista so um refinamento da questo da no Livro X d A Repblica, o que justifica nossa anlise, ao menos no que diz respeito ao primeiro dilogo. Cf. KEULS, E., op. cit., p. 113.

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da que apresenta na Repblica? Por fim, como nosso trabalho poder comple-mentar os estudos dessa temtica no pensamento platnico, ele opta pela re-flexo e pela demora em dilogos pouco trabalhados quanto a esse tema. Isso nos permitir a revelao de nuances e detalhes imperceptveis a abordagens mais generalistas, como as que se debruam sobre a totalidade dos dilogos, tais quais de Schuhl e Keuls.

O mtodo

No intuito de direcionar uma resposta a tantas questes com as quais j nos deparamos, e quem sabe permitir ainda o surgimento de outras mais, agora veladas, percorreremos as principais ocorrncias das noes de pintura e es-cultura nesses dilogos. Como dissemos, estaremos atentos aos vocbulos arro-lados anteriormente prprios ao que hoje chamamos de artes visuais, pintura e escultura, assim como a possveis referncias indiretas a essas artes. Por meio de uma viso da caracterizao platnica desses gneros artsticos em cada um dos dilogos de nossa anlise, o que ser uma resposta nossa questo espec-fica, poderemos nos posicionar quanto leitura dos principais comentadores desse tema e, dessa forma, responder s perguntas e perplexidades que ficam em aberto nessa introduo e, tal qual faz a filosofia, naturalmente nos depa-rando com novos questionamentos. Acima de tudo, como nos propomos, ser-nos- possvel ao menos desenvolver e, possivelmente, clarificar os paradoxos a respeito da relao entre pintura, escultura e as ideias, indicando um direcio-namento para a questo geral anteriormente apresentada.

Assim justificado nosso tema de pesquisa, e elucidadas as questes que nos movem, comecemos, ento, pela anlise das referncias ao que hoje chama-mos de pintura e de escultura no Sofista de Plato.

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2Imitao () como divina ou humana no Sofista

Tenho em andamento duas paisagens, vistas tomadas das colinas, uma o campo que vejo da janela de meu quarto. No primeiro plano um campo de trigo devastado e atirado ao cho aps uma tempestade. Uma cerca e alm do verde cinzento de algumas oliveiras, ca-banas e colinas. Enfim, no alto da tela, uma grande nuvem branca e cinza imersa no azul.

uma paisagem de uma extrema simplicidade inclusive de colorao. Ela ficaria bem como pendant daquele estudo de meu quarto que se estragou. Quando a coisa representa-da est totalmente de acordo quanto ao estilo com a maneira de representar no isto que faz a elegncia de um objeto de arte?

por isto que um po caseiro, no que diz respeito pintura, especialmente bom quando pintado por Chardin.

Agora, a arte egpcia, por exemplo, o que a torna extraordinria no o fato de que estes serenos reis calmos, sbios e doces, pacientes, bons, parecem no poder ser diferentes do que so, eternamente agricultores adoradores do sol? Os artistas egpcios, portanto, tendo f, trabalhando por sensibilidade e instinto, exprimem todas essas coisas inating-veis: a bondade, a infinita pacincia, a sabedoria, a serenidade, por meio de alguns traos hbeis e propores maravilhosas. Isto para dizer mais uma vez que, quando a coisa re-presentada e a maneira de representar esto de acordo a coisa tem estilo e porte.

VINCENT VAN GOGH. Cartas a Tho, Carta 594. Traduo de Pierre Ruprecht.

Na cena dramtica do dilogo Sofista de Plato, encontramos uma conversa que acontece principalmente entre os personagens Estrangeiro de Eleia e Teeteto. Dramaticamente, trata-se da continuao do colquio de que nos fala o texto do Teeteto.54 No Sofista, o novo personagem, o Estrangeiro, aceita o desafio de en-contrar a definio do alvo de tantas crticas platnicas em dilogos considera-dos anteriores, o sofista.55 Mas, de fato, como dito no dilogo, este escorrega-dio,56 no facilmente agarrado, como o , por exemplo, o pescador com anzol, cuja definio facilmente encontrada logo no incio do dilogo, ao fim da pri-meira vereda de divises percorrida. J a do sofista demandar sete comeos, os personagens devero percorrer sete caminhos investigativos diferentes, que levaro a sete retratos do mesmo.57 Aplicando o mtodo da diviso exemplifica-

54 Cf. DIS, A. Parmnide (1923), p. xii apud., CORNFORD, F. M., op. cit., p. I.

55 Sobre as crticas aos sofistas, cf., por exemplo, Hpias Maior, Eutidemo, Grgias, Protgoras, Fedro e Livro I d A Repblica.

56 . PLATO, Sofista, 231a.57 A expresso retrato (portrait) empregada por Villela-Petit, inspirada em Cornford, ao expor sobre as sete aparies () do sofista. Cf. VILLELA-PETIT, M. P. La question de limage artistique dans le

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do na busca pela definio do pescador com anzol, os personagens do dilogo encontraro o sofista por caminhos que seguem entre a anlise de diversas artes, como a arte da aquisio por troca ou captura e a arte da separao,58 por sucessivas especificaes alcanadas desde repetidas distines conceituais. Assim, o sofista ser encontrado em diversas definies. Por exemplo: na arte da aquisio, ele ser caador de jovens ricos, negociador de discursos sobre a virtude e erstico mercenrio; j na arte da separao, refutador que purifica a alma.59 Todavia, nenhuma dessas aparies do sofista parece aos personagens suficiente para evidenciar quem ele completamente. Por isso, outro caminho precisa ser trilhado, o sofista exerce um tipo de arte ainda no analisado: a arte da produo.

Tal como apresentado na introduo, neste captulo pretendemos ana-lisar as passagens dessa conversa, dessa caa ao sofista, em que as noes de pintura e de escultura so referenciadas.60 No caso do dilogo Sofista, que abre essa investigao, as referncias a esses gneros artsticos aparecero na fala do Estrangeiro, principalmente quando a arte de produo, 61 , estiver em questo, no ltimo caminho trilhado para a busca da definio do sofista.62 nesse caminho, nessa vereda, que os personagens encontraro um impasse trata-se da que levar o Estrangeiro e Teeteto famosa digresso sobre o no-ser e o dilogo com a interpretao platnica de Parmnides.63 A digres-so dividir nosso texto em duas partes, j que tanto antes quanto depois dela encontraremos consideraes sobre as artes de pintar e esculpir, em meio s divises do mtodo dialtico empregado no dilogo. Em nosso estudo sobre a concepo platnica da escultura e da pintura em algumas obras da ltima fase

Sophiste, p. 56. Sobre o problema a respeito do nmero de definies do sofista, cf. nota 49 da traduo de Cordero do Sofista.

58 (266c), substantivo da mesma famlia semntica do adjetivo : capaz de distinguir, separar.

59 J. Paleikat e Joo Cruz Costa, em sua traduo do Sofista, resumem as seis primeiras definies do sofista assim: 1) caador interesseiro de jovens ricos; 2) comerciante em cincias; 3 e 4) pequeno comerciante de primeira ou segunda mo; 5) erstico mercenrio; 6) refutador.

60 Essa anlise no se pretende exaustiva.

61 Optaremos pela traduo de por arte, em lugar de tcnica. Ressaltamos que o termo no se restringe s belas artes, mas nomeia toda atividade tcnica orientada por um conhecimento, que em grego se diz . Reservaremos o termo tcnica para tratar das tcnicas artsticas especficas, como a tcnica da perspectiva na pintura, por exemplo.

62 Encontramos somente uma exceo: na construo da segunda definio do sofista, em que ele aparece como comerciante de discursos e ensinos relativos virtude, a pintura () citada como exemplo de produto para comrcio relativo alma. Cf. PLATO. Sofista, 224a.

63 Sobre as diferenas entre a retratao platnica do pensamento parmendico e a prpria filosofia de Parmnides, cf. PLATON, Le Sophiste, Traduction par Nestor L. Cordero, Annexe III. Segundo Cordero, a apropriao platnica foi construda por influncia da leitura de Parmnides feita por seus discpulos, principalmente Zeno e Melisso.

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do pensamento de Plato, veremos que, no Sofista, essas aparecem, de forma geral, como formas de evidenciar propriedades do discurso, do . Vejamos como isso ocorre por meio de uma abordagem de cada uma das referncias a esses gneros artsticos que selecionamos. Comecemos junto ao incio do ltimo caminho percorrido para o encontro da definio do sofista, na anlise da arte da produo.

Antes da digresso: breve anlise dos passos 233d-236e

A pintura enquanto exemplo paradigmtico da imitao ()

A arte de produo comea a ser analisada no passo 233d.64 Trata-se de um desenvolvimento da percepo do sofista enquanto contraditor, , presente na penltima definio encontrada at ento, a saber, a quinta de-finio.65 Os sofistas se dizem e aparecem aos olhos dos jovens como capazes de discutir sobre, e contradizer, todos os assuntos. Mas como isso seria pos-svel? Como um s homem poderia ter adquirido conhecimento sobre todos os temas, inclusive sobre as artes em que no especialista? O absurdo dessa posio bvio para o Estrangeiro e para Teeteto. preciso que se trate de alguma brincadeira, ,66 ou que haja alguma magia, ,67 para que um s homem parea conhecer todas as coisas. Essa ser a concluso dos persona-gens. O sofista faz parte do gnero mgico, ilusionista. Trata-se de um uso da arte mimtica, , que, apesar de ser somente uma arte, se mostra como capaz de tudo produzir. Pelo uso de uma sindoque, o Estrangeiro apre-senta a arte mimtica como arte pictrica, e aqui temos a primeira passagem que nos interessa no Sofista:

Assim, o homem que se julgasse capaz, por uma nica arte (), de tudo produ-zir, como sabemos, no fabricaria, afinal, seno imitaes () e homnimos das realidades ( ). Hbil na sua tcnica de pintar ( ), ele poder, exibindo de longe suas pinturas (), aos mais ingnuos meninos, dar-lhes a iluso de que poder igualmente criar a verdadeira realidade, e tudo o que quiser fazer.

,

64 Ela havia aparecido na busca do pescador com anzol, mas fora deixada rapidamente de lado, pois no se enquadra pesca. Cf. PLATO. Sofista, 219b.

65 Cf. Ibid., 225b, 226a.

66 Ibid., 234a.

67 Ibid., 235a.

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, , - , .

PLATO. Sofista, 234b. Traduo de Jorge Paleikat e Joo Cruz Costa ligeiramente modificada.68

Um produtor de imagens, como o sofista, por exemplo, trabalha tal qual um pintor, portanto.69 Note-se que, nesse ponto do dilogo, tal sindoque no surpreender o leitor. J anteriormente a pintura e a sofstica foram aproxima-das. Um dos exemplos apresentados pelo Estrangeiro de artigo comercial des-tinado alma, como ser designado o discurso sofstico no desenvolvimento da segunda definio do sofista, a pintura, .70 Mas no se trata de uma identidade, obviamente. Poderamos elencar diversas especificidades das duas artes. Por exemplo: uma diferena bvia entre elas o material usado por cada uma. Enquanto o sofista usa o discurso, o , em sua arte, , o pintor usa cores e linhas retas e curvas que geram imagens semelhantes ao modelo retratado.

Aqui, desde essa primeira ocorrncia da arte pictrica, , que analisamos no dilogo, j encontramos o uso do exemplo da pintura no caso expondo a para elucidar o poder do discurso, , que percebe-mos na fala sofstica. Pois, nessa passagem, os personagens refletem sobre o dis-curso sofstico, aquele que exibe um pretenso conhecimento de todas as coisas.

nesse desenvolvimento da quinta definio do sofista, do sofista sobre tudo conhecedor, que, como vimos, surge o tema da arte mimtica. Como se faz claro no desenvolvimento argumentativo do dilogo, e como anteriormente dissemos, a passagem uma apresentao da arte mimtica, , pois se trata da elucidao do sofista como um , um imitador.71 A semelhana entre sofista e pintor se baseia na compreenso da pintura enquanto arte para-digmtica ou melhor exemplo para exibir o que a imitao, . O pintor grego retrata a natureza, os homens, os deuses, os heris, caracteres72 e at indica

68 Para ressaltar a presena da noo de pintura na passagem, preferimos pinturas a desenhos para traduzir , uma substantivao de uma forma participial do verbo , que, como vimos, dentre outros sentidos, quer dizer tambm pintar.

69 A nosso ver, essa passagem atesta que o prprio Plato colocou pintor e sofista em paralelo. Nesse sentido, discordamos da afirmao de Guicheteau de que no haveria paralelismo entre os dois em Plato. Cf. GUICHETEAU, M. Lart et lillusion chez Platon, p. 225.

70 Cf. PLATO. Sofista, 224a.

71 Repare na semelhana entre essa passagem do Sofista e o passo 430b do Crtilo, onde a imitao, , dividida em dois tipos: a que feita com as palavras e a que feita com as imagens essa ltima exemplificada pela arte pictrica.

72 Sobre isso, cf., por exemplo, a conversa entre Scrates e Parrsio em XENOFONTE. Ditos e feitos

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o movimento em cenas de ao. Sua obra majoritariamente narrativa, e epi-sdios famosos da mitologia podem ser conhecidos por meio da contemplao de vasos pintados ou pinturas murais. Em pinturas de vasos encontramos cenas como, por exemplo, o rapto do corpo do filho de Zeus, Sarpdone, narrado no canto XVI da Ilada,73 ou a preparao de atores para uma pea satrica, que seguram mscaras e se fantasiam, tendo Dioniso e Ariadne na audincia.74 De fato, a pintura capaz de imitar tudo, at mesmo a prpria imitao, como a teatral: o pintor capaz de produzir uma imagem de todas as coisas, ao menos, a princpio, dentre as que nos so apresentadas fenomenicamente.

Tambm no Livro X d A Repblica, a pintura escolhida quando se busca caracterizar a imitao, .75 Para evidenciar o carter mimtico da poesia, o personagem Scrates recorre ao exemplo da pintura. Trata-se do mesmo tema do Sofista ainda que em cada dilogo o objetivo ltimo da argu-mentao seja diferente.76 O tema a possibilidade de um arteso, , produzir todas as coisas, segundo diz Scrates em A Repblica, o Sol e os astros no cu, (...) a Terra, (...) ti mesmo e os demais seres animados, os utenslios, as plantas (...)77 (... ... ... ...). O exemplo apresentado de um desses artesos exatamente o exemplo do pintor, o.

A nosso ver, o uso da pintura como exemplificao da imitao, , tanto no Sofista quanto n A Repblica um indcio de que esta arte , de fato, o exemplo paradigmtico da arte mimtica aos olhos de Plato.

Como dissemos, ela mais de uma vez usada para ilustrar a imitao, , em geral, e se o filsofo tem como alvo crtico os versos do poeta, como o caso d A Repblica, ou as contraditas do sofista, como ocorre no dilogo homnimo, sendo ambos produtores de imagens pelo uso de palavras, poder-se-ia pensar que sua crtica recairia sobre a prpria imitao, . Assim, ele rejeitaria tambm a pintura, exemplo paradigmtico da arte de criar imagens. Quer dizer: primeira vista, Plato pode parecer ser crtico da arte mimtica em geral, e, certamente, da pintura, dado que esta citada como exemplo,

memorveis de Scrates, 10.

73 Cf. Cratera pintada por Eufrnio em torno de 510 a.C. em Nova Iorque, no The Metropolitan Museum of Art.

74 Cf. Cratera de Pronomos do final do sc. V a. C., no Museu Arqueolgico de Npoles.

75 Janaway indica a semelhana entre os dois textos, mas no desenvolve o tema. Cf. JANAWAY, C., Images of excellence: Platos critique of the arts, p. 170.

76 N A Repblica, o objetivo mostrar a inadequao da poesia para a educao; enquanto no Sofista, ele definir o sofista.

77 PLATO. A Repblica, 596d. Traduo de Maria Helena da Rocha Pereira.

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aparecendo explicitamente em seu texto. Se Plato desmerece a poesia e a sofstica, porque essas so imitaes como a pintura, ele no desmereceria tambm a pintura?

Todavia, uma leitura mais demorada e atenta aos pormenores do texto percebe o carter superficial e, assim, impreciso de tal interpretao. Alm de se poder ressaltar a nfase educacional da discusso n A Repblica, que exime Plato de ter realizado uma condenao esttica da poesia,78 convm a este estudo repensar sobre o papel da arte pictrica, pois essa que aqui nos in-teressa. Plato a utiliza nos dilogos citados para evidenciar que os versos da poesia e as refutaes da erstica sofstica so imitaes, o que, de fato, no nos parece bvio. Alis, no prprio Sofista, os personagens s chegam concluso de que o sofista um imitador quando frente perplexidade dele se apresentar como conhecedor de todas as coisas. Alm disso, n A Repblica, s se conclui que a poesia em geral mimtica, e no somente a que usa o discurso direto, no ltimo livro do dilogo. Na Grcia Antiga e tambm na Contemporaneidade, grandes poetas e oradores eram e so reverenciados como possuidores de uma sabedoria especial, superior dos homens em geral. Eles no so vistos como simples possuidores de uma arte, , a arte mimtica, , tal qual o agricultor que possui a arte, , de cultivar o campo ou o mdico que aplica sua arte, , de curar o corpo humano. Mais que isso, sua arte no de nenhuma forma caracterizada como uma diverso ou brincadeira, , nem mesmo como magia, como o faz Plato. J no que diz respeito ao pintor, no me parece que o mesmo possa ser dito. to manifesto que o pintor possui uma tcnica representativa, que exibe somente uma imagem do que copia, que Plato chega a se servir da imagem de sua arte para expor o que a imitao, . A pintura uma imitao que se mostra como imitao, e no como exposio da verdade ou da realidade completa de seu modelo como frequentemente ocorre no caso dos poemas e discursos sofsticos.79 Diferentemente do pintor, o poeta e o sofista apresentam-se como sbios, conhecedores sobre todos os as-suntos, sem realmente os conhecerem. Eles imitam aqueles que de fato conhe-cem, produzindo um discurso semelhante ao do verdadeiro conhecedor. Basta-lhes obter uma ou outra informao que, por meio da arte mimtica que traba-lha com o discurso, fazem parecer ter um conhecimento igual ou, at mesmo,

78 Cf. esse ponto de vista em, por exemplo, LODGE, R. C. Platos theory of art, p. 265; JAEGER, W. Paideia: a formao do homem grego; A Repblica III; e RIBEIRO, L. F. B. Sobre a esttica platnica.

79 Estes podem conferir aspecto verdico a afirmaes falsas, enquanto as obras pictricas mais facilmente se fazem ver como sendo cpias ou imitaes do modelo. Perceber a veracidade de um discurso mais difcil do que perceber que a pintura no o prprio modelo retratado.

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maior que o do prprio especialista. Eles exibem como verdade o que no o . J no caso da pintura, o que ela exibe o faz deixando perceber mais facilmente que se trata de uma imagem do modelo, no o prprio. Alis, esse aspecto da arte pictrica j aparecia na prpria definio de pintura da qual partimos em nossa anlise na introduo desse texto. por isso que, a nosso ver, a pintura escapa do olhar crtico do filsofo que, nos dilogos citados, se dirige, como dissemos, poesia e sofstica.

Pierre-Maxime Schuhl, em Plato e a Arte de seu Tempo (Platon et lArt de son Temps), e todos os intrpretes que com ele concordam poderiam alegar que, poca em que viveu Plato, as artes pictrica e escultrica gregas viviam uma transformao notvel ao serem trabalhadas por meio de tcnicas ilusio-nsticas, hbeis em enganar o espectador quanto ao carter fictcio de suas criaes. So muitos os relatos anedticos de, por exemplo, Plnio, o Velho, nos quais pssaros, cavalos e at mesmo homens so iludidos de que a pintura que veem no pintura, e sim realidade: os pssaros bicam as uvas pintadas por Zeuxis; os cavalos relincham frente representao pictural de cavalos de Apeles; Zeuxis pede que Parrasio abra as cortinas que pintou, sendo derrotado por ele na disputa quanto excelncia na arte de pintar medida quanto sua capacidade de iludir. Estas anedotas, por mais que possam constituir relatos fictcios e no histria, mostram a admirao dos gregos pelos pintores capazes de representar o seu modelo de forma a enganar o espectador e o mesmo repetir-se- no caso dos escultores. Elas comprovam, portanto, o uso de tcni-cas ilusionistas. Segundo elas, a pintura, diferentemente do que defendemos, no se mostra como imitao, , como cpia de um modelo; ao contrrio, enganam quem a contempla.

Entretanto, somaramos a essas divertidas e curiosas anedotas que, dife-rente de como ocorre com poemas e discursos onde acreditamos residir o saber, o instante do engano propiciado pelas artes pictrica e escultrica sempre curto. Aves, cavalos e homens rapidamente do-se conta de seu erro: basta que as aves no consigam desfrutar das uvas pintadas, as pinturas dos cavalos no se movam ao relinchar dos cavalos enganados, que o prprio Zeuxis mudasse a perspectiva de seu olhar para saber que as cortinas que v so a pintura de seu adversrio, Parrsio.80 Poderamos tambm, como Scrates supe ironicamen-te, arriscar comear uma conversa com um homem pintado, e nos depararamos com um homem mal-educado, que continuaria em silncio.81 Sendo assim, por

80 Cf. PLNIO. Histria natural, XXXV.

81 Cf. PLATO. Fedro, 275d.

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enganar somente brevemente, parece-nos de fato que, dentre as diversas artes mimticas, a pintura a imitao que melhor se expe como imitao, tal como expusemos anteriormente. Este detalhe parece ter passado despercebido por Schuhl quando ressalta o carter ilusionista das obras citadas, sem pormeno-rizar a diferena entre a iluso pictrica e aquela proporcionada pelo discurso. Para que tenhamos clareza sobre o poder do discurso sofstico, Plato prope que imaginemos que uma iluso, tal qual a pictrica, fosse estendida tempo-ralmente, e esta extenso que lhe parece perigosa. Sendo assim, no se trata, a nosso ver, de uma condenao da pintura ilusionista, tal como interpreta o citado comentador francs.

Isso posto, voltemos ao desenrolar da argumentao no Sofista. A esta primeira referncia arte pictrica no dilogo, preciso somar as outras, pre-sentes em caminhos diferentes, separadas pela central digresso acerca do no-ser. Tratemos dessas ocorrncias na ordem em que aparecem no dilogo e, dessa forma, desenvolvamos essa nossa primeira observao acerca da arte pictrica.

A arte icstica ( )*

Aps perceberem que o sofista , como o pintor, um produtor de imagens, preciso, seguindo o mtodo da diviso, procurar saber se essa arte de criar imagens, a mimtica, possui duas partes. Ao Estrangeiro parece que sim. Em algumas obras mimticas, em algumas imitaes, o arteso reproduz as propor-es, , entre largura, comprimento e profundidade do paradigma que tem em vista:

Vejo nesta a arte eikastika como uma [das duas]. E ela existe acima de tudo sempre

que, de acordo com as propores do modelo em largura, comprimento e profundidade e

ainda, alm disso, acrescentando as cores apropriadas a cada uma, algum leva a termo

a produo do que imitado.

. , , .

PLATO. Sofista, 235d-e, Traduo gentilmente realizada por

Adriano Machado Ribeiro, a quem muito agradecemos.

* Esta seo foi publicada em formato de artigo na revista Archai: Revista de estudos sobre a origem do pensamento ocidental, v.3, p. 53-60, 2014.

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J em outras produes mimticas, as propores verdadeiras, , do lugar a propores aparentes, .82 Isso ocorre em obras de grandes dimenses, ou em obras posicionadas em lugares altos, como as esculturas colocadas sobre colunas. Afinal, se o arteso mantivesse as pro-pores de seu modelo em, por exemplo, obras colossais, as partes superiores das esttuas pareceriam menores do que o so aos espectadores, que as veem de baixo, assim como as inferiores pareceriam maiores do que o so preciso abrir mo da cpia verdadeira para resguardar a aparncia de cpia.83 Ao pri-meiro tipo de produo de imagens o Estrangeiro dar o nome de , arte de copiar. O segundo tipo, que se preocupa mais com a aparncia do que com a verdade, chamado de , arte do simulacro.84

Teeteto no levanta objees ao Estrangeiro e parece compreender bem essa distino. Diferentemente acontece conosco, leitores modernos dos dilogos. Essa diviso da mimtica gera-nos muitas questes, dentre as quais: como possvel imitar sem simular ou sem nos ocuparmos prioritaria-mente com as aparncias? O que seria uma cpia verdadeira das propores, , de um modelo? Qual o sentido do termo ? Que importncia esse tipo de imitao teria no pensamento platnico? Faz-se necessrio escla-recer a questo do sentido da . Para isso, analisaremos criticamente as propostas interpretativas de alguns comentadores, sugerindo ponderaes que se baseiam em informaes histricas sobre as produes mimticas da poca de Plato, como veremos.

Reproduo?

Segundo Cornford, por Plato entende a reproduo de objetos, dado que a define como imitao fiel das propores de um modelo. Ele traduz por cpia, likeness, com a seguinte justificativa:

O termo likeness significa uma reproduo ou rplica, como a confeco de uma segunda cama concreta que reproduz exatamente a primeira cama feita pelo marceneiro. Se cons-

82 PLATO. Sofista, 236a.

83 Ainda que a afirmao do Estrangeiro seja genrica ao atribuir o carter ilusionista s obras de grande porte, nem todas as obras colossais empregam essa tcnica. H obras egpcias e gregas arcaicas de grande dimenso que mantm as propores do modelo e no aplicam distores. Ver, por exemplo, as esfinges egpcias e as esttuas que representam os irmos gmeos Cleobis e Biton no Museu Arqueolgico de Delfos. Plato se refere a produes do seu tempo, da arte grega no perodo clssico, como as de Fdias, por exemplo. Cf. KEULS, E., op. cit., p. 115.

84 Nessa primeira parte de nosso texto, adotamos para e as tradues propostas por Jorge Paleikat e Joo Cruz Costa na edio do Sofista da coleo Os Pensadores.

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truo um molde de gesso de um molde de gesso, no h diferena entre a cpia (likeness) e o original. Ambos so idnticos (exactly alike) e cada um pode ser chamado a imagem exata (very image) do outro.

FRANCIS MACDONALD CORNFORD. Platos theory of knowledge: the Theaetetus and the Sophist, p. 198.

Dessa forma, a como arte de reproduzir ou copiar85 esca-paria do gnero mimtico, trs vezes afastado do real e sempre enganador para Plato segundo o Livro X d A Repblica, argumenta o comentador ingls. A no produziria imagens, mas rplicas, j que uma imagem mais ou menos semelhante ao original, conquanto no inteiramente como ele, no uma reproduo.86

A nosso ver, esta ltima observao de Cornford evidencia a inconsis-tncia de sua leitura. Dado o desenvolvimento analtico do Sofista, impossvel que a arte de copiar no participe da mimtica, , que no seja produtora de imagens. Afinal, ela aparece na exata diviso em dois da arte mimtica. De fato, Cornford tem razo ao dizer que um duplo, isto , dois exemplares idnti-cos e equivalentes de um mesmo tipo, deixa de ser uma imitao. Isso nos atesta o Crtilo. Nesse dilogo, Scrates levanta a hiptese de que se produzisse uma cpia exata, um duplo, do prprio Crtilo. Se um deus confeccionasse outro Crtilo, idntico ao primeiro, esse deixaria de ser uma obra mimtica, para se tornar um duplo.87 O problema aqui que, se a um gnero da mimti-ca, , no poderia produzir algo outro que imagens.

Sendo assim, parece-nos que a posio de Cornford no se sustenta e a questo sobre o sentido da permanece em aberto. Se no se trata de uma reproduo ou um duplo, o que seria uma imagem fiel s propores de seu modelo?

Arte egpcia?

Se a definio de remete s trs dimenses do modelo que imita, temos um indcio de que Plato possa se referir s obras tridimensionais: esculturas.

85 A traduo de por arte de copiar ser colocada em questo ao longo do texto.86 CORNFORD, F. M., op. cit., p. 198. A mesma questo levantada no contexto do Crtilo em SCHUHL, P-M., op. cit., p. 48.

87 PLATO. Crtilo, 432b,c.

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Na antiguidade egpcia, por exemplo, um escultor criava esttuas que seguiam propores de feies em total repouso, de acordo com uma simetria matemtica fixa que exibe simplicidade e austeridade. Segundo a cincia hist-rica, a arte egpcia segue esse padro desde a Proto-histria;88 segundo Plato, quem sabe h dez mil anos da poca em que viveu.89 de conhecimento geral sobre a arte egpcia que o escultor, e tambm o pintor, no intencionava exibir o movimento, o fugidio, os sentimentos passageiros, ou um instante da ao de um lanador de discos, por exemplo. Ele no simulava, por exemplo, o movimento, nas produes imagticas. No Egito, a arte surgiu para a manuteno da vida do fara e, posteriormente, de toda a nobreza egpcia , j que os egpcios acredi-tavam que, aps a morte, sua alma continuaria a viver no prprio corpo mumifi-cado, assim como na escultura que representa a imagem do homem que morrera. Um bom exemplo a esttua feita entre 2551 e 2528 a.C., nomeada Cabea, que se encontra atualmente em Viena, no Kunsthistorisches Museum. Nela vemos o delineamento dos traos essenciais de um rosto, em expresso austera imvel. Talvez essa simplicidade nos traos representativos, esse desprendimento em relao s aparncias naturais e seduo do nosso olhar esteja ligado ao fato de que esse tipo de escultura no foi feito para ser vista. A arte egpcia possui carter simblico, para usar a terminologia de Hegel, ou mgico, para usar a de Benjamin,90 no ilusionista ou feito para a exposio.91 A Cabea, assim como grande parte das esculturas egpcias, ficava dentro de uma pirmide, ao lado de um tmulo que abrigava o cadver de um dos membros da nobreza. Suas caractersticas, que acima rapidamente descrevemos, so adequadas para qua-lificar as obras de arte egpcias antigas em geral. Escultores e pintores egpcios retratavam somente os aspectos mais marcantes do que copiavam, sendo fiis s propores do modelo. Pelas razes acima, percebemos que a arte escultrica egpcia se enquadra no que o Estrangeiro chama de , o que, ressaltamos, no implica que Plato a tivesse em mente ao escrever sobre esse tipo de imita-o, . No nos parece possvel desvendar os pensamentos do filsofo ao escrever esta passagem do dilogo, o que, todavia, no nos impede de buscar exemplos possveis que ilustrem o sentido da arte de que tratamos.

88 VERCOUTTER, J. Bas-relief et peinture. In: Le temps des Pyramides: de la Prhistoire aux Hyksos, p. 121.

89 PLATO. Leis, 656e. Em grego, o termo , empregado por Plato nas Leis para qualificar a antiguidade da arte egpcia, provm de , que pode significar dez mil ou, de forma mais geral, muitssimo.

90 Cf. HEGEL, G. W. F., loc. cit., e BENJAMIN, W. A obra de arte na poca de sua reprodutibilidade tcnica.

91 O carter, poderamos dizer, invisvel da arte egpcia, soa interessante se confrontado ao pensamento platnico, que joga metafisicamente co