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Rodolfo Pais NuNes loPes O Timeu de PlatãO: mitO e textO estudo teórico sobre o papel do mito-narrativa fundacional e tradução anotada do texto dissertação de mestrado em Cultura Clássica, na especialidade de Cultura Clássica, apresentada à Faculdade de letras da Universidade de Coimbra, sob a orientação das Professoras doutoras maria do Céu Fialho e maria luísa Portocarrero. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2009

Timeu de Platão

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  • Rodolfo Pais NuNes loPes

    O Timeu de PlatO: mitO e textO

    estudo terico sobre o papel do mito-narrativa fundacional e traduo anotada do texto

    dissertao de mestrado em Cultura Clssica, na especialidade de Cultura Clssica, apresentada Faculdade de letras da Universidade de Coimbra, sob a orientao das Professoras doutoras maria do Cu Fialho e maria lusa Portocarrero.

    Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra2009

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    Prefcio Galileo, Kepler, and the atomists of the seventeenth century all rely not so much on the idea of creation in the Timaeus as on its mathematics. And the atomists in particular were justified in their recourse to the Timaeus. But even that does not change the fact that the Timaeus remained on the periphery of Plato's works and, more specifically, that its mythical narrative was not integrated into what, properly speaking, may be called Plato's dialectic. Thus a task is precisely set for us. We must make up for what has not been done and, in penetrating behind the form of the myth, we must make clear its relationship to Plato's dialectic as a whole (Gadamer, 1980, pp. 158-159). Abordar o Timeu sob uma perspectiva filosfica, literria ou de um ponto de vista que misture ambas as vertentes tarefa to necessria quanto difcil em qualquer contexto requer, como pressuposto inicial, uma reinterpretao de algumas ideias admitidas ao longo dos tempos em relao tanto a obra em particular como ao prprio platonismo em geral. Esta , afinal, uma consequncia da eficcia histrica de qualquer texto ou corpus que, ao longo de vrios sculos, perdura em diferentes pocas e perodos culturais como objecto de estudo e anlise. Ser esta a nossa proposta de leitura. No caso do Timeu, uma das questes que cumpre reconsiderar tem que ver com o mito; mais propriamente com o papel que este assume na arquitectura de um dilogo com um to demarcado contedo filosfico, e, em ltima anlise, com o modo como esse papel potenciar uma redefinio daquilo que se entende por mito em Plato. Com efeito, as leituras mais tradicionais fazem equivaler a esta modalidade narrativa expresses como discurso falso, fbula, estria ou lenda, implicando assim que os mitos no contribuem em nada para os desgnios da filosofia platnica. Desta forma, com base em algumas reflexes tericas sobre o mito, pretendemos ensaiar uma abordagem, to delicada quanto arrojada, que permita interpretar o Timeu de um modo mais desprendido de abordagens tradicionais, evitando, por outro lado, cair em anacronismos comprometedores; no se trata de reabilitar o mito do Timeu atravs de pressupostos posteriores ao texto, mas sim de rel-lo e reconsider-lo luz desses pressupostos para perceber de que modo a interpretao deste problema possa seguir uma orientao diferente. Assim, na senda do que sugere Gadamer nesta epgrafe que citmos, tentaremos, ao longo destas pginas, averiguar em que medida esta proposta permite desvincular o

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    dilogo, ainda que de forma mitigada, do tradicional rtulo de tratado de Filosofia Natural. evidente que, independentemente do tipo de abordagem que lhe queiramos dedicar, o contedo principal do Timeu e sempre ser o fundamento da fsica platnica; ainda assim, tomando em considerao o modo to particular como esse contedo est estruturado, cremos ser legtima uma abordagem para alm da Filosofia Natural. Portanto, sabendo de antemo que se trata de uma empresa arriscada, entendemos que este aspecto, ainda que particular, exigiria um conjunto de meios acessrios que permitissem, de algum modo, sustentar tal incurso. Deste modo, considermos necessrio fazer acompanhar esta via de investigao, primeiro, de algumas pginas de reflexo terica preliminar e, segundo, da traduo integral do texto. No primeiro caso, cremos ser absolutamente incontornvel o esclarecimento prvio de alguns conceitos-base bem como do sentido em que entendemos esses conceitos, de modo a que a anlise ao texto propriamente dita ficasse devidamente circunscrita a um determinado conjunto de orientaes tericas e, simultaneamente, afastada de ideias pr-concebidas que poderiam contaminar o sentido da investigao. Quando se trata de lidar com os mitos, essa necessidade ainda mais evidente; em boa verdade, o que dissemos h pouco acerca das concepes tradicionais de mito como discurso falso, fbula, estria ou lenda no se aplica (ou tem aplicado) exclusivamente concepo platnica dos mitos, mas tambm ao entendimento mais lato da palavra. Quanto ao segundo a traduo a sua incluso neste projecto poder causar alguma estranheza, principalmente pelo facto de ocupar a maior parte do volume de pginas. Contudo, cremos que, mais do que uma opo, a traduo integral do texto neste contexto constitui uma imposio. Se a proposta de uma nova leitura de um texto por meio de um estudo de um determinado elemento que diga respeito a toda a sua estrutura como o caso desta investigao implica o enquadramento da posio defendida nesse estudo em todo o texto e no somente nas seces em que ela mais evidente, a presena de todo o texto ao lado, por assim dizer, das pginas dedicadas ao estudo propriamente dito ser obrigatria. Sabendo, portanto, que o texto em causa se situa num tempo e numa lngua somente reconstituveis por um processo de traduo, por um acto de relacionamento dos dois parceiros em causa estrangeiro e leitor , como diria Paul Ricoeur1, traduzi-lo ser a nica forma de traz-lo a essa posio de leitura 1 Vide Paul Ricoeur, Sobre a Traduo, Lisboa, Cotovia, 2006, p.10.

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    lateral. Por outro lado, visto que uma traduo ser sempre parcial e dependente do modo como o tradutor l o texto de partida, a orientao da investigao ser obrigatoriamente a mesma que a da traduo, como se dela proviesse, pois, neste caso, tradutor e investigador coincidem na mesma entidade. Assim, a traduo do Timeu deve ser entendida no como fruto do estudo particular sobre o mito nem muito menos como simples anexo, mas sim como base de fundamentao; no ser um resultado, mas um ponto de apoio. Finalmente, cumpre referir que a traduo, como costume nos trabalhos de investigao em Estudos Clssicos, ser precedida de um conjunto de observaes e reflexes acerca do dilogo em si e de algumas as condies contextuais que o enquadram. Quanto a questes de ordem metodolgica, cumpre referir dois aspectos: (1) para a traduo, seguimos a edio fixada por John Burnett (Burnett, 1962); no que respeita numerao de Henri Estienne, pela qual costuma ser citado o corpus platonicum, decidimos coloc-la dentro do corpo de texto, em vez de na margem.

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    I. Introduo ao Timeu Qualquer dilogo de Plato, ou, em ltima anlise, qualquer obra da Literatura Grega, exige,

    primeiro que tudo, um conjunto de observaes preliminares que, de algum modo, a contextualizem e, simultaneamente, a introduzam. Porm, a delimitao dos vectores de anlise a que essa obra pode ser submetida so de tal forma numerosos e dspares que seria impensvel resumi-los a to reduzido nmero de pginas, alm de que uma tentativa dessa natureza correria seriamente o risco de redundar num exerccio de diletantismo.

    Conscientes, portanto, da necessidade de balizar os aspectos a ter em conta nesta seco preambular, considermos necessrio dividir essas observaes em dois grupos distintos: aspectos extra-textuais (1.) e aspectos temtico-estruturais (2.). No primeiro caso, o objectivo ser discorrer brevemente sobre algumas questes de natureza histrica que se prendem com as circunstncias em que o texto foi produzido e, posteriormente, tratado literal e metaforicamente at aos nossos dias, particularmente no que concerne sua autenticidade (1.1), data (1.2) em que foi redigido (data real de composio) e tambm que a aco se reporta (data dramtica); posio do dilogo no cnone das obras de Plato (1.3 Cronologia absoluta) e no grupo daquelas com que forma uma seco desse cnone (1.4 Cronologia relativa); e, finalmente, transmisso do texto e sua subsequente recepo (1.5). Quanto segunda parte, dirigida ao texto propriamente dito, nela abordaremos apenas trs aspectos que consideramos serem de fundamental importncia para a sua compreenso e que, por razes bvias, no podero ser tratados na anotao que segue a traduo: a tradio em que o Timeu se inscreve (2.1), as personagens que nele participam (2.2) e, por ltimo, a forma como os assuntos esto estruturados (2.3).

    1. Aspectos extra-textuais 1.1 Autenticidade No caso concreto do Timeu, esta questo (muito delicada em alguns dilogos) praticamente

    nem se coloca, pois e sempre foi tido por autntico. Na verdade, ao longo dos sculos, a nica voz discordante foi a do filsofo alemo Friedrich Schelling, tendo, porm, mais tarde mudado de opinio e assumido que errara ao supor que o Timeu no era de Plato1.

    Com efeito, desde muito cedo que o dilogo atribudo a Plato, a comear desde logo

    1 Sobre este assunto, vide Taylor (1928, p. 1).

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    pelos tempos da Academia antiga2; tambm o prprio Aristteles, em diversas ocasies, se refere ao dilogo, citando e comentando algumas passagens3, dizendo, por vezes, muito claramente que essa obra pertence a Plato4; igualmente Teofrasto lhe atribui a autoria sem hesitaes5. Alm disso, como veremos posteriormente na seco relativa transmisso e recepo do Timeu, a associao das ideias ou teorias nele expostas so amide identificadas, mais directa ou indirectamente, com as de Plato, pelo que deveremos concluir que a questo da autenticidade no tem quaisquer fundamentos sequer para ser formulada.

    1.2 Datao Ao abordarmos a data de uma obra dramtica, como so as de Plato, deveremos, antes de

    mais, ter em conta que este aspecto deve ser entendido sob dois pontos de vista: o da data dramtica, isto , a altura ou poca a que se reporta a aco narrada; e, por outro lado, o da data real de composio, o mesmo que dizer quando foi realmente escrita a obra.

    No que respeita data dramtica, e deixando, por enquanto, de parte os problemas que abordaremos na seco sobre a cronologia absoluta, o seu estabelecimento depender da escolha de uma de duas vias. Se considerarmos que Scrates, em 17c, se refere Repblica quando alude ao discurso que tinha tido com aqueles intervenientes no dia anterior sobre o tipo de Estado que lhe parecia ser o melhor, ento a data dramtica do Timeu situar-se- no dia a seguir daquele outro dilogo, que, provavelmente, se desenvolvera por volta do ano 420 ou 421 a.C., durante as Bendideias, que se realizavam no ms de Thargeleion (Junho)6. Porm, se nos ativermos unicamente quilo que diz o texto sobre este aspecto, a data apontada um pouco diferente, pois, em 26e, Scrates refere, ainda que de forma indirecta, que aquele encontro se processa durante as Panateneias, que tradicionalmente se celebravam no 28 dia do ms de Hecatombeon, isto em meados de Julho. Quanto ao ano, pensa-se que ter sido entre 430 e 425 a.C.7; portanto, alguns anos antes da Repblica.

    Aquela associao com a Repblica de que depende a primeira via carece de alguma

    2 Vide tienne (a2000, p. XXX). 3 E.g. em Cael. 293b cita 40b-c e, em 315b, alude a 54d-sqq. 4 E. g. GC 325b24-25: ; ibidem 332a29-30: . 5 Fr. 12.125 Diels: . 6 Apud Pereira (2001, p. XIII). 7 Apud Taylor (1928, p. 15); Durn (1992, p. 134); Brisson (2001, p. 72).

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    consistncia, podendo mesmo ser refutada convincentemente por mais do que uma ordem de razes. Nota muito bem Cornford que o ontem a que Scrates se refere no tem forosamente que ser o dia do encontro na casa de Cfalo, mas poder ser um qualquer dia em que aqueles intervenientes tenham abordado algumas questes que na Repblica so tambm discutidas, bem como a referncia s Panateneias no dilogo no de todo inocente, pois coaduna-se com o elogio de Crtias vitria de Atenas sobre a Atlntida (20d-26c), bem como justifica a presena de Hermcrates (um estrangeiro) na cidade8. Alm disso, o resumo que Scrates faz da dita conversa que tinham tido no dia anterior sobre o melhor Estado no inclui todos os assuntos tratados na Repblica, mas somente os que respeitam aos livros II-V, deixando de parte os dos livros VI-VII, o que entra em contradio com o facto de aquele resumo incluir os assuntos principais ( : 17c2)9. Ora, sabendo que a proposta de que tenha havido uma segunda edio da Repblica quase inconcebvel10, parece-nos que a identificao do ontem com a data dramtica deste dilogo muitssimo forada. Por outro lado, h que ter tambm em conta que Scrates inclui todos os presentes (e at o quarto personagem que no chegou a participar) na dita conversa do dia anterior11, ideia que torna ainda mais manifesta se atentarmos no facto de ser frequentemente utilizada a primeira pessoa do plural nos verbos que se referem a essa mesma conversa12. Contudo, sabemos que nenhum dos participantes do Timeu, excepto Scrates, participara na Repblica. Deste modo, ser porventura mais prudente optar pela segunda hiptese e estabelecer a data dramtica na altura das Panateneias.

    Quanto data real de composio, cujo estabelecimento depende tambm das questes que abordaremos de seguida, a maioria dos estudiosos considera que se situar nos ltimos anos da vida de Plato13. Como veremos, essa parece ser a hiptese mais vivel.

    1.3 Cronologia absoluta O lugar do Timeu no corpus platnico tem sido uma questo muitssimo discutida, flutuando

    as opinies, de um modo geral, em duas orientaes principais: segundo a primeira (a mais antiga), o dilogo pertence ltima fase de Plato, de que fazem parte tambm o Sofista, o Poltico, o

    8 Vide Cornford (1937, pp. 4-5). 9 Vide Gill (1977). 10 Vide Pereira (2001, pp. XVII-XVIII). 11 Cf. 17a1-2: , , . 12 E.g. 17c7: ; 17d2: ; 18c1: . 13 Apud Cornford (1937, p. 1); Durn (1992, p. 133); Brisson (2001, p. 72).

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    Filebo e as Leis; de acordo com a segunda, o dilogo dever, por outro lado, ser includo na fase mdia juntamente com Crtilo, Fdon, Banquete, Repblica, Fedro, Parmnides e Teeteto.

    A primeira hiptese, a mais tradicional, foi postulada ainda na Antiguidade; Plutarco, por exemplo, acreditava que o Crtias (que mais no do que a continuao do Timeu) no tinha sido acabado porque Plato morrera enquanto o escrevia14. Desta teoria partidria a maioria dos estudiosos15. Contudo, no sculo XIX comearam a surgir algumas opinies pontuais que apontavam para a incluso do Timeu na fase mdia de Plato16, e, j na primeira metade do sculo XX, Taylor admite no seu comentrio ao Timeu que essa possibilidade deve ser tida em conta17, at que alguns anos mais tarde esta hiptese atinge o estatuto de tese quando Owen publica um artigo18 em que defende a sua validade argumentando em dois sentidos um mais formal, outro temtico. Por um lado, partindo das anlises estilomtricas de Billig19, conclui que o estilo do Timeu (e do Crtias) nada tem que ver com o dos dilogos que tradicionalmente lhe surgiam associados (Sofista, Poltico, Filebo e Leis)20, mas que, pelo contrrio, estava muitssimo prximo do dos dilogos mdios, particularmente da Repblica, do Fedro, do Parmnides e do Teeteto21. Por outro lado, Owen coloca em confronto a forma como algumas teorias de Plato aparecem no Timeu e noutros dilogos da fase mdia, no sentido de demonstrar que este ser obrigatoriamente anterior a alguns daqueles; diz, por exemplo, que o modo admiravelmente estvel como a Teoria das Formas aparece formulada no Timeu uma evidncia de que a obra ser mais anterior do que defende a hiptese tradicional, pois s no Parmnides foi submetida a uma refutao irrepreensvel, de tal forma que seria impensvel que Plato tenha redigido o Timeu aps o Parmnides22. Assim, conclui que o Timeu pertence ao grupo dos dilogos da fase mdia, imediatamente a seguir Repblica23.

    O artigo de Owen, em virtude das ousadas propostas que apresentava, obteve uma resposta imediata por parte de um outro estudioso. Cherniss que, quatro anos mais tarde, vem desconstruir

    14 Sol. 32. 15 Vide Cornford (1937, p. 5); Cherniss (1957); Durn (1992, p. 133); Brisson (2001, p. 75); Rowe (2003, pp. 103-104). 16 Vide Cherniss (1957, p. 226, n. 3). 17 Taylor (1928, pp. 4-5). 18 Owen (1953). 19 Billig (1920). 20 Vide Owen (1953, p. 80). 21 Vide Owen (1953, p. 82). 22 Vide Owen (1953, pp. 82-83). 23 Vide Owen (1953, p. 94).

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    toda a sua argumentao, reforando assim a posio da teoria tradicional. As suas concluses, muitssimo bem fundamentadas, apontam para que Crtilo, Parmnides e Teeteto tenham sido compostos antes do Timeu e que, mais importante, as teorias do Timeu em nada chocam com as apresentadas nos dilogos da fase tardia24. Com efeito, parece-nos que as teses de Owen no se baseiam em dados suficientemente estveis para que a hiptese tradicional seja preterida pela que prope. Por um lado, as anlises estilomtricas constituem um perigo metodolgico que ameaa contaminar a coerncia da tarefa, pois baseiam-se numa recolha e posterior tratamento de dados de um modo estatstico, que, por se tratar de um processo linear e mecanizado, pode aduzir investigao um sem nmero de pequenos erros que, imperceptivelmente multiplicados de modo igualmente estatstico, podem resultar em concluses que roam o ridculo: num desses estudos em que Owen se baseou, o Crtias aparece como sendo posterior ao Timeu; ainda que seja o prprio autor a confessar e a corrigir esse erro25, acaba por pr a nu as fragilidades daquele tipo de ferramenta. Por outro lado, a forma como l o confronto das doutrinas de Plato tambm falvel, pois admite uma perspectiva inversa e igualmente sustentvel; por exemplo, o caso que referimos da Teoria das Formas poder ser interpretado do modo oposto: aps ter sido refutada no Parmnides, Plato reformulou-a no Timeu ao acrescentar a ao processo de participao entre Formas e particulares. De modo anlogo pensa Vlastos, ao dizer que a tentativa de Owen em colocar o Timeu na fase mdia fracassou, em virtude de neste dilogo ser evidente a ideia de que a Teoria das Formas repensada26. Da que a hiptese mais segura seja a tradicional: considerar o Timeu um dilogo da fase tardia.

    1.4 Cronologia relativa Partindo, ento, do princpio que o Timeu pertence ltima fase de produo de Plato,

    vejamos de que modo se insere naquele conjunto. Mas antes disso, convm esclarecer que o lugar que ocupa nesta parte do cnone preenchido em paridade com outra obra: o Crtias. A unidade entre as duas obras verifica-se a um nvel que est muito para alm do simples facto de partilhar as mesmas personagens. Logo no incio do Timeu, Crtias, ao anunciar a Scrates qual ser o programa de conversaes para aquela ocasio, diz muito claramente que ao discurso de Timeu se seguir o dele prprio:

    24 Cherniss (1957, p. 266). 25 Owen (1953, p. 80). 26 Vide Vlastos (1991, p. 264).

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    Observa, ento, Scrates, o programa que preparmos para a tua recepo. Com efeito,

    pareceu-nos que Timeu, por de ns ser o mais entendido em astronomia, e o que mais se empenhou em conhecer a natureza do universo, deveria ser o primeiro a falar, comeando pela origem do mundo e terminando na natureza do homem. Depois dele, serei eu, como se dele tenha recebido os homens gerados pelo seu discurso (...)27

    A incluso de ambos os discursos no mesmo programa (), aliada ao gesto de Timeu

    no princpio do Crtias passar a palavra a Crtias, tal como fora combinado ( : 106b6-7), motivo suficiente para considerar que h uma clara unidade temtica entre os dois dilogos28. Para alm disso, uma leitura superficial de ambas as obras ser com certeza suficiente para perceber que notria a inteno de Plato em consider-las partes de um todo, na medida em que, em termos gerais, o Timeu se ocupa da constituio do mundo e do homem enquanto que o Crtias d seguimento a esse projecto, ao apresentar a constituio da dimenso social, isto , da integrao do homem em comunidade no mundo. Na verdade, de acordo com algumas breves referncias de que dispomos, era provvel que este projecto de Plato inclusse um terceiro dilogo o Hermcrates , formando assim uma trilogia. Logo no incio do Timeu, quando Scrates refere Hermcrates, faz questo de o declarar competente em todos aqueles assuntos ( ' : 20a8) e, ao apresent-lo nos mesmos moldes em que apresenta Timeu e Crtias, parece que tambm uma parte dos discursos pudesse estar reservada para ele. Essa possibilidade esclarece-se j no Crtias, quando Scrates diz que Hermcrates ser o terceiro a falar29.

    Tendo, ento, em conta os autores que colocam o Timeu (a par do Crtias, como dissemos) na ltima fase, as opinies variam um pouco em relao posio exacta do dilogo no grupo que constitui essa fase. Cornford inaugura o seu comentrio ao Timeu precisamente com esta questo, dizendo que o par Timeu-Crtias segue o Sofista e o Poltico e antecede o Filebo e as Leis30, opinio

    27 27a2-27a8: , , . , , , , . 28 Apud Johansen (2004, p. 7). Cf. Welliver (1977, pp. 58-sqq); Clay (1994). 29 Vide Criti. 108a. 30 Cornford (1937, p.1).

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    de que tambm partilha Brisson31. Cherniss, numa postura mais contida, adianta apenas que as Leis ser o ltimo dilogo de todos32, e que bastante provvel que o Timeu seja posterior ao Sofista e ao Poltico33. Por seu turno, Rowe acredita que o dilogo ocupa a primeira posio da fase tardia, precedendo Sofista, Poltico, Filebo e Leis34. Como evidente, as opinies so de tal forma variadas que no nos resta outra hiptese seno considerar apenas que o Timeu pertence, de facto, ltima fase de Plato, embora no seja possvel determinar com certeza exactamente que lugar ocupa nessa seco do cnone, pois os dados disponveis so todos eles bastante discutveis e passveis de mltiplas interpretaes.

    1.5 Transmisso e recepo No que respeita tradio manuscrita, o texto do Timeu chegou at ns em excelentes

    condies de preservao. Alm do manuscrito Parisinus 1807 (A) (uma das duas principais fontes textuais das obras de Plato), datado entre finais do sculo IX e princpios do sculo X da nossa Era35, a recensio do dilogo conta tambm com um outro ramo de que so testemunho dois manuscritos de Viena: o Vindobonensis 21 (Y), que, apesar de datar j de finais do sculo XIV d.C., ser uma cpia de um exemplar anterior ao sculo V d.C.36; o Vindobonensis 54 (W), que, embora anterior a Y, granjeia de muito menos fiabilidade37. Curiosamente, nem o Timeu nem o Crtias constam no manuscrito Bodleianus 3938, a outra grande fonte textual das obras de Plato39.

    Quanto tradio indirecta, de tal forma vasta e rica que se chega a confundir com a prpria recepo do dilogo. Com efeito, desde os tempos da Academia Antiga at Modernidade que o Timeu foi sendo alvo de interpretaes, tradues e comentrios contnuos.

    Na Antiguidade Grega, o perodo mais profcuo em comentrios obra, o primeiro grande pensador a interessar-se pelo Timeu foi Xencrates, o segundo sucessor da Academia, em c. 335 a.C. (que a dirigiu logo aps Espeusipo, este que sucedera directamente ao prprio Plato), o qual,

    31 Brisson (2001, p. 75). 32 Vide Cherniss (1957, p. 225). 33 Vide Cherniss (1957, p. 266). 34 Vide Rowe (2003, pp. 103-104). 35 Apud Rivaud (1925, p. 120); ngeles Durn (1992, p. 148); Dixsaut (2003, p. 13). 36 Vide Rivaud (1925, p. 121). 37 Vide ngeles Durn (1992, p. 150). 38 Cf. Madan (1897, p. 309). 39 Sobre a tradio manuscrita do Timeu vide Jonkers (1989).

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    segundo nos diz Proclo40, orientou o seu discpulo Crantor na realizao do primeiro comentrio. Mais tarde, j na Era Crist, surge o comentrio de Proclo (In Platonis Timaeum

    Comentarii) o mais antigo de que dispomos que, de certo modo, marca um ponto de viragem na interpretao do Timeu, na medida em que o aborda sob uma perspectiva marcadamente teolgica e teleolgica, principalmente na concepo do Demiurgo como a entidade una, eterna e transcendente que cria o mundo41, que, mais tarde, haveria de fundamentar as leituras judaico-crists do dilogo, particularmente na identificao do Demiurgo com Deus. Houve tambm outros comentrios que chegaram at ns apenas em estado fragmentrio, como os de Porfrio42 e de Imblico43, ou ainda outro que, simplesmente, se manteve annimo44 este, datado do sculo IV d.C., de cariz assumidamente estico; ou mesmo um, de Plutarco, que apenas se ocupa da seco sobre a constituio da alma (De animae procreatione in Timaeo). Quanto verso para Latim, o Timeu foi traduzido parcialmente (27d-47b) logo no sculo I a.C. por Ccero, ao que parece com o intuito de incluir aquela seco num seu projecto pessoal de redigir um tratado cosmolgico que, todavia, nunca chegou a fazer45. Tambm parcialmente (at 53c) o traduziu Calcdio, e, provavelmente inspirado em Porfrio46, tambm lhe dedicou um comentrio (31c-53c), que redigiu luz de critrios aristotlicos, centrando as suas atenes em aspectos como a eternidade ou o mundo do devir47, e no qual abordou algumas questes de ordem teolgica, como a possibilidade de coincidncia entre daemones e anjos48.

    Ainda durante a Antiguidade, o dilogo exerceu grande influncia na formao de alguns dos pensadores mais ilustres, no s nos platonistas nem somente nos filsofos. Inclusivamente o prprio Galeno demonstra um profundo conhecimento do dilogo e, alm disso, recorre a alguns dos seus axiomas para redigir os seus tratados de Medicina; nas obras De placitis Hippocratis et Platonis e Quod animi mores isso particularmente evidente, pois espelham as teorias, por exemplo, sobre a alimentao do corpo ou sobre a alma estabelecidas no texto de Plato49; na

    40 in Ti. 1.76. 41 Vide Lernould (2000, pp. 71-72). 42 Vide Sodano (1964). 43 Vide Dillon (1973). 44 Vide Lasserre (1991). 45 Vide Puelma (1980, pp. 151-153); Lemoine (1997, p. 64); Lvy (2003, pp. 95-110). 46 Vide Reydams-Schils (2007, pp. 311-314). 47 Vide Rudolph (2000, pp. 99-106); (Reydams-Schils (2007, p. 16). 48 Vide Somfai (2003, pp. 133-141). 49 Vide Vegetti (2000, pp. 6-7, 11-12).

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    astronomia, a dvida de Eudoxo e Calipo aos postulados do Timeu tambm manifesta50. No mbito da Filosofia, a influncia do Timeu assume contornos impossveis de circunscrever neste contexto, pelo que daremos apenas alguns exemplos aqueles que nos parecem ser os mais importantes. Comeando, desde logo, por Aristteles, poderamos citar algumas das ligaes pontuais que mantm com este dilogo, porm todas elas seriam insuficientes para ilustrar o papel que a obra desempenhou na prpria estruturao do sistema filosfico aristotlico, particularmente na concepo de matria que o Estagirita desenvolveu, a qual, em larga medida, se deve s linhas de orientao que encontrou neste dilogo do mestre51. No quadro do Neoplatonismo, o Timeu exerceu tambm uma forte influncia, de modo geral em todos os seus representantes, mas particularmente, e de modo mais evidente e importante, na obra de Plotino. Muitas das doutrinas que explora nas Enades reflectem claramente os axiomas mais importantes do Timeu, no sendo rara a possibilidade de identificar claras ligaes intertextuais entre as duas obras; por exemplo, num tratado que dedica ao tempo e eternidade (3.7), perfeitamente evidente a presena quase palimpsstica da seco 37c-38c do texto de Plato52. Mais tarde, j em Lngua Latina, as mesmas concepes de tempo e eternidade, contudo, nessa altura, j mediadas por aquela seco das Enades de Plotino, vo determinar as teorias de Bocio que, em Consolatio philosophiae, associa eternidade os conceitos de transcendncia, plenitude e inteligncia divinas53 as quais haveriam de determinar o modo como o dilogo seria interpretado posteriormente.

    Passando ao Perodo Medieval, convm, antes de mais, ter em conta que os textos de Plato estavam apenas acessveis a partir de tradues latinas, que, alm de muitas vezes serem parciais, contemplavam apenas uma pequena parte do corpus, a saber, Mnon, Fdon, Parmnides e Timeu; para alm disso apenas existiam alguns meios adulterados pela pena de outros autores como comentrios a determinadas seces ou simples referncias54 no caso particular do Timeu, o texto estava disponvel apenas atravs das tradues de Ccero e Calcdio, ambas elas parciais, o que fez com que fosse somente conhecido at 53c.

    precisamente a Calcdio que se remete um comentrio annimo ao dilogo, datado j de 1363 e redigido no contexto acadmico parisiense do sculo XIV, que evoca sobretudo os aspectos

    50 Vide Gregory (2003). 51 Vide Happ (1971, pp. 526, 533-540). 52 Cf. Nikulin (2000, pp. 16-17). 53 Cf. Mesch (2000, pp. 117-135). 54 Cf. tienne (a2000, p. XXXIV, n. 18).

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    ticos e polticos, em grande medida para fundamentar a construo da moral crist55. O aparecimento do texto integral, embora ainda na verso latina, ter que aguardar at 1484, ano em que Ficino publica a decisiva obra Platonis opera omnia56, na qual inclui, alm da traduo do Timeu, um anexo o Compendium in Timaeum que oscila entre comentrio e resumo do dilogo, no qual tenta uma aproximao entre o platonismo e o cristianismo; um pouco imagem de Agostinho de Hipona, porm de forma mais audaciosa, ao tentar restabelecer uma ligao entre o homem, o Universo e a transcendncia divina, ao mesmo tempo que empreende a ruptura com algumas vises do meio acadmico, na altura dominado pelas interpretaes averrosto-aristotlicas57. Alm desta nova proposta de leitura que ensaia a sntese entre humano, csmico e divino, o texto de Ficino potenciou o aparecimento das primeiras edies do texto no original grego que surgiram j em pleno sculo XVI: a princeps em 1513, na imprensa de Aldo Mancio, em Veneza; uma outra, que se haveria de tornar cannica, em 1578, em Genebra, da autoria de Henri Estienne58, cuja paginao ainda hoje utilizada pelos estudiosos, inclusivamente pelos comentadores modernos59.

    2. Aspectos temtico-estruturais 2.1 Antecedentes O projecto do Timeu consiste, como dissemos, em formular uma proposta de constituio do

    mundo sensvel e, posteriormente, dos seres que o habitam, com particular evidncia para o homem. Considerando que este ser o eixo temtico em torno do qual gira toda a narrativa, foroso que o dilogo seja contextualizado num movimento que comeara nos filsofos pr-socrticos, cuja principal preocupao era, precisamente, fornecer uma descrio do mundo sensvel; trata-se da tradio a que chamamos . Contudo, partir deste axioma para ler o Timeu poder colocar em risco o seu valor filosfico dentro do sistema platnico, j que a sua esfera de aco se situa no plano do sensvel, consequentemente, do opinvel e do falso, pois trata-se de analisar o

    55 Vide Kaluza (2000, pp. 150, 170-171). 56 Apud Kristeller (1978, pp. 25-35). 57 Cf. tienne (b2000, pp. 178-182). 58 Apud Dixsaut (2003, p. 14). 59 Para uma lista de comentrios modernos ao Timeu vide Brisson (1998, pp. 536-537).

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    mundo que temos diante dos olhos. De facto, o descrdito que Plato sentia por aquela tradio de obras sobre a natureza bastante evidente em vrios passos dos seus dilogos; por exemplo, no Fdon, Scrates confessa que ficara bastante desiludido ao ler o livro de Anaxgoras por o autor enveredar por uma interpretao materialista, j que via nas foras naturais o princpio de causalidade que criou e mantm o Universo60; ou nas Leis61, onde Plato traa um percurso dessa tradio , apontando-lhe todos os defeitos que lhe merecem, ligados principalmente no facto de aquelas investigaes estarem presas ao mundo do sensvel e, por isso, impassveis de constiturem conhecimento estvel. Por outro lado, a crtica de Plato a esta tradio assume ainda outros contornos, ao comparar aqueles filsofos, a que chama , com os prprios sofistas, dirigindo a ambos o mesmo tipo de crticas, luz dos mesmos pressupostos, por considerar que partilham das mesmas deficincias epistemolgicas62. Com efeito, ainda que nos possa parecer um pouco exagerada a atitude de Plato perante aquele tipo de tratados, teremos que concordar que aquelas obras sobre a natureza se limitavam a descrever os elementos do mundo natural, sem que procurassem fornecer qualquer explicao para alm dele; isto , no tinham quaisquer aspiraes metafsicas63. Deste modo, o Timeu surge como uma resposta a esta ineficcia que Plato v nos tratados dos seus antecessores, inscrevendo-se, portanto, nessa tradio como um ponto de viragem e jamais como um marco de continuidade, embora, como veremos, lhe deva muitos elementos.

    Entre os vrios pensadores pr-socrticos de que Plato retira variadssimos dados, doutrinas ou teorias que (re)formula no Timeu, sem dvida Empdocles aquele que exerceu uma influncia mais forte em Plato, particularmente na composio deste dilogo64, ao passo que a presena dos restantes apenas se manifesta de um modo pontual ou mesmo casual65. Para alm das bvias semelhanas entre os quatro elementos do Timeu e as razes () de Empdocles, cuja relao implica uma abordagem mais aprofundada66, h inmeros pontos de contacto entre estes dois autores, entre os quais poderemos citar alguns exemplos. Contudo, como veremos, incorrecto supor que Plato tenha simplesmente decalcado esses dados, doutrinas ou teorias, pois, na maior parte dos casos, essa importao implicou uma evidente recriao que se esclarece num ponto fundamental em que as duas concepes cosmolgicas se distanciam, o qual depender

    60 Vide. Phd. 98b-c. 61 Vide 888d-890a. 62 Vide Naddaf (1997, p. 32). 63 Apud Brisson (2009, p. 213). 64 Vide Taylor (1928, p. 11). 65 Apud Hershbell (1974, p. 145). 66 Vide Skemp (1942, pp. 52-sqq.); Hershbell (1974, pp. 152-sqq.).

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    precisamente do carcter inovador do Timeu em relao tradio em que se inscreve; ao contrrio de Empdocles, o texto de Plato evidencia uma clara preocupao metafsica materializada na distino entre uma dimenso pr-csmica e outra ps-criao.

    No passo em que Timeu diz que o mundo foi constitudo a partir dos quatro elementos e posto em harmonia atravs da proporo, para que, como sumo fim, obtivesse amizade ( : 32c), muitssimo convidativa a coincidncia entre este termo e a de Empdocles, pela qual enveredam alguns comentadores67. No entanto, deveremos ter em conta que, ao passo que neste autor, se trata de uma fora dinmica que, de certo modo, unifica as razes68, no texto de Plato claramente um resultado ou objectivo esttico em que culmina (ou deve culminar) um processo criativo; ou seja, ainda que estejamos perante o mesmo conceito, cuja formulao nos mesmos moldes semnticos nos permitir esboar uma relao sobre o modo de funcionamento ideal do mundo, convm ter em conta que cada um deles tem implicaes de ordem pragmtica muito distintas: um meio ou instrumento (no caso de Empdocles), outro ser fim ou resultado (no caso de Plato).

    Ainda assim, h outras ocasies em que, embora crivadas por um processo de adaptao, as doutrinas do primeiro se espelham no segundo. Ao descrever o corpo do mundo como uma esfera, Timeu evoca claramente a esfera de Empdocles; muito embora a daquele resulte de um processo criativo, enquanto que a deste se situa numa fase pr-csmica, as semelhanas so evidentes, particularmente a nvel vocabular: tal como a esfera do pr-socrtico, o mundo de Timeu nico69, esfrico70, razo pela qual no teria necessidade de membros71 e todos os pontos da sua superfcie estavam a igual distncia do centro72. Embora, por vezes, as palavras utilizadas no sejam exactamente as mesmas, bastante evidente que ambos se situam num mesmo plano semntico, insistindo, por outro lado, a caracterizao nos mesmos pormenores e, inclusivamente, no mesmo princpio geomtrico: se a forma esfrica, todos os pontos da superfcie sero equidistantes do centro.

    67 Vide Taylor (1928, p. 100); Cornford (1937, p. 44). 68 Apud Hershbell (1974, p. 148). 69 : 33a1, ad : B28.2 DK. 70 : 33b4, ad : B28.2 DK. 71 , , , : 33d3-34a1, ad , , (), : B29.8-9 DK. 72 : 34b2, ad : Diels-Kranz B29.10.

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    De um ponto de vista estrutural, a cosmologia do Timeu produz um mundo bastante prximo do que descreve Empdocles, principalmente no que concerne ao modo como o seu equilbrio garantido. Quando o Demiurgo fabrica a alma do mundo, f-lo atravs de uma mistura em que entram as naturezas do Outro e do Mesmo, s quais atribui dois movimentos distintos, contudo, complementares:

    Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita, girando lateralmente, e

    que o do Outro se orientasse para a esquerda, girando diagonalmente (...)73 Tal como acontece com o Amor e a Discrdia de Empdocles, que actuam com os elementos

    de um modo diametralmente oposto promovendo o intercmbio cclico entre si74, a concomitncia dos movimentos contrrios de entidades igualmente contrrias como o Mesmo e o Outro que garantem o equilbrio do mundo natural; a colocao destas naturezas na rbita da alma do mundo, cuja funo primordial ser governar o seu corpo75, garante-lhe essa funo decisiva. evidente que poder-se-ia admitir que esta noo de equilbrio enquanto negociao pacfica de foras opostas tenha outra matriz que no a de Empdocles por exemplo, Heraclito , ou mesmo, que se trata de uma concepo transversal que no pode ser identificada com nenhum autor em particular. Contudo o carcter estrutural que a convivncia destas foras assume no equilbrio global do mundo, pois no se trata de um princpio que afecta vrias entidades como acontece em Heraclito, aliado ao facto de essa relao ter como sumo fim a , como dissemos anteriormente, far-nos- reconhecer a estreita ligao.

    A par de Empdocles, a outra grande influncia na composio do Timeu foi o Pitagorismo. Ela de tal modo acentuada que, durante a Antiguidade, alguns comentadores neo-platnicos acreditavam que Plato se baseara na obra para compor o dilogo, sendo aquela da autoria do filsofo pitagrico Timeu de Lcride; embora hoje se saiba que, de acordo com um fragmento que dela restou, se trata apenas de uma verso da obra de Plato em Drico, datada do sculo I d.C.76, esta curiosidade bem ilustrativa de quo acentuada a presena do Pitagorismo no Timeu.

    Os conceitos, teorias ou doutrinas desta escola filosfica presentes no dilogo so

    73 36c5-7: , ' . 74 Vide B17 DK. 75 34c. 76 Vide Taylor (1928, p. 37).

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    muitssimo variados e numerosos, de tal forma que, se, por um lado, h que delimit-los a um conjunto de exemplos ilustrativos, por outro lado, teremos tambm que colocar num plano distinto aqueles elementos que influenciam a prpria estrutura do dilogo.

    Ao primeiro grupo pertence, por exemplo, a teoria sobre o desejo amoroso formulada no final do dilogo77 que se inscreve no debate sobre a origem do esperma e a natureza da medula, cujo esboo se comeara a traar nos finais do sculo VI a.C., e que Plato parece desenvolver luz da hiptese encefalomielognica defendida pelos Pitagricos78. Fora da fisiologia, j no mbito da simblica astronmica, tambm pitagrica a concepo da terra como astro central que serve de guarda do Universo79, ou ainda, na estereometria, a concepo do corpo do Universo como um dodecaedro80. Mas, como dissemos, estes so aspectos pontuais.

    A um outro nvel de manifestao, a influncia pitagrica no Timeu assume contornos que ultrapassam em muito a referncia breve ou o eco isolado, contribuindo de uma forma decisiva para a montagem da estrutura principal do dilogo, o que, na verdade, era j reconhecido pelos comentadores antigos. Diz Proclo, no seu comentrio ao Timeu,81 que, tal como pensam outros autores refere-se, muito provavelmente, a Imblico82, cuja obra De Vita Pythagorica tem por principal finalidade demonstrar a subordinao das doutrinas de Plato a Pitgoras83 , considera que o promio, o qual, por um lado, estabelece os axiomas luz dos quais se desenvolver o discurso principal e, por outro, resume de forma muito sinttica o essencial do que vai dizer, como que anunciando-o, consiste numa preparao simblica para a exposio propriamente dita, como era costume dos Pitagricos.

    Para alm de definir a estrutura, entendendo este conceito como a dispositio dos assuntos, a influncia pitagrica funciona tambm como uma ncora terica a que toda a exposio se fixa. Como sabemos, o contedo e a orientao da fsica pitagrica tinham um carcter profundamente teolgico; isso, por si s, seria suficiente para que Plato adaptasse este modelo ao seu sistema filosfico, na medida em que tambm este tem um sentido teolgico. Contudo, mais do que adaptar, o filsofo preferiu incluir essa perspectiva e promov-la a parte integrante, criando aquilo a que podemos chamar uma fsica pitagrica de Plato. Ao tornar a sua filosofia natural teolgica, tem a

    77 91b-c. 78 Vide Paganardi (1990); Smith (2006, pp. 4-5). 79 Vide Kingsley (1995, p. 201). 80 Vide Burkert (1962, p. 460); Kingsley (1995, p. 93). 81 1.30.3-18. 82 Apud Lernould (2000, p. 65). 83 Vide O'Meara (1989, pp. 214-sqq.).

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    possibilidade de cumprir o principal objectivo do dilogo que dar a conhecer o processo de constituio do mundo, ou seja, revelar aos homens aquilo que se situa na esfera do divino. Ora, para estabelecer esse contacto entre divino e humano, seria imprescindvel esta vertente teolgica, quase ritual lembremos que Timeu invoca os deuses antes de iniciar o seu discurso84 e torna a invoc-los novamente quando tem necessidade de forjar um novo comeo narrativa aquando da introduo da 85 e Plato viu nos ensinamentos do Pitagorismo essa preciosa ferramenta, pois combinavam o saber fsico com a atitude teolgica, que garantia sua filosofia ambas aquelas orientaes, verdadeiramente imprescindveis para o caso particular deste dilogo.

    Essa vertente religiosa que determinar a orientao teolgica dever ser procurada um pouco para alm de Pitgoras: nos Mistrios rficos. Como observa o prprio Proclo, em Theologia Platonica86, Pitgoras recebeu de Aglaofemo, um iniciado de Orfeu, os rituais e Plato recebeu de Pitgoras os escritos que encerravam este tipo de conhecimento. , portanto, por intermdio de Pitgoras que Plato tem acesso s ferramentas tericas rficas que lhe permitiro sondar os procedimentos divinos pelos quais o mundo e o homem foram constitudos e partir do que tem diante dos olhos o mundo sensvel at chegar, por meio de uma deduo regressiva, sua criao.

    Essas ferramentas so, fundamentalmente, a matemtica sobretudo as suas vertentes geomtrica e estereomtrica , a msica e a astronomia que, utilizadas em conjunto, permitiro uma observao do mundo fenomnico de que se podero retirar concluses com valor filosfico. , por exemplo, atravs da estereometria que Timeu consegue deduzir as formas dos elementos, atribuindo a cada um a figura estereomtrica correspondente de acordo com as suas propriedades cinticas: o cubo terra, pois , de entre os elementos, o que se move mais lentamente87; o icosaedro gua88; o octaedro ao ar89; a pirmide ao fogo90. De forma anloga, a deduo destas figuras estereomtricas depende tambm de um raciocnio matemtico que, atravs da combinao dos tringulos-base (rectngulo, equiltero e issceles) mediada pela proporo, a geometria em plano passa a estereometria tridimensional91, dando assim corpo s formas representveis mentalmente e de forma

    84 27c-d. 85 48d. 86 Vide 1.25.26. 87 Vide 55d. 88 Vide 55b, 56a. 89 Vide 55a, 56a. 90 Vide 55d. 91 Vide 54d-sqq.

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    abstracta. Em suma, ao apoiar-se nos ramos matemticos da aritmtica e da geometria, a mensagem teolgica pode tomar corpo e tornar-se numa fsica filosfica, pois permite representar aquilo que no pode ser alcanado pelos olhos; trata-se de uma matemtica teolgica92.

    Por outro lado, atravs da harmonia que proporcionada pela msica que se pode conceber a dos movimentos dos corpos celestes, na medida em que ambos obedecem a um mesmo princpio cintico:

    De facto, os sons mais lentos apanham os movimentos que de entre os mais rpidos

    chegaram primeiro e, quando esses movimentos esto a cessar e atingem a constncia, chocam com os ltimos e pem-nos em movimento.93

    (...) na segunda o Sol, sobre a terra; a estrela da manh e o astro que dizem ser consagrado

    a Hermes na rota circular que tem a mesma velocidade que o Sol, ainda que lhes tenha cabido em sorte um mpeto contrrio ao dele. Da decorre que o Sol o astro de Hermes e a estrela da manh sucessivamente se alcancem e sejam alcanados mutuamente.94.

    Os astros, tal como os sons, circulam juntos a diferentes distncias uns dos outros os astros

    em espao, os sons em tempo, mas de acordo com uma mesma relao numrica que determina a harmonia do conjunto; a este raciocnio que, segundo Aristteles95, os Pitagricos chamavam a msica das esferas, cuja adaptao evidente no sistema que prope o Timeu. Neste dilogo, Plato parece recuperar a identificao que Scrates, na Repblica96, faz entre msica e astronomia. Estabelecendo, contudo, a distino entre os msicos que se dedicam demanda do intervalo mnimo mensurvel, condenveis por se aterem em demasia percepo sensvel do som, e aqueles que procuram os nmeros nos acordes que escutam, diz que so estes ltimos que se aparentam aos

    92 Apud O'Meara (1989, pp. 198-sqq.); Lernould (2000, pp. 91-92). 93 80a6-80b1: , . 94 38d1-6: , [] , ' . 95 Cael. 290b-291a. 96 Vide 531a-c.

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    que estudam os astros. Esta teoria da msica que Scrates elogia a pitagrica97. 2.2 Personagens No Timeu participam quatro personagens, para alm de uma outra que referida logo na

    primeira frase do dilogo, mas da qual no resta qualquer notcia: Scrates, Timeu, Hermcrates e Crtias. Quanto ao primeiro, que teria entre 40 a 45 anos data dramtica98, pouco haver a acrescentar aos milhares de pginas que tm sido escritas ao longo dos tempos, a no ser o pormenor que muito bem observou Vlastos acerca da evoluo da personagem dentro do contexto macroestrutural de todo o cnone platnico99: o facto de Scrates se interessar por filosofia natural, ou melhor, por cincias naturais, como a biologia, a fsica, a astronomia ou a qumica, o que no acontecia em fases anteriores; na fase mdia, por exemplo, os interesses cientficos de Scrates estavam limitados s cincias matemticas, como prova disso a Repblica100. No que respeita s restantes personagens, alm da curiosidade de no participarem em mais nenhum dilogo de Plato, cumpre dizer algumas palavras.

    Comeando pelo protagonista, Timeu, cuja interveno ocupa a grande maioria de todo o dilogo (desde 27c at ao fim, excluindo uma pequena interveno de Scrates em 29d), no h evidncias concretas de que tenha realmente existido. Com efeito, todas as referncias a este suposto filsofo pitagrico so posteriores a este dilogo, no qual se diz ser um abastado cidado de Lcride, na Itlia, tendo ali ocupado altos cargos na administrao poltica e, por isso, recebido grandes louvores por parte dos habitantes101. De facto, dada a probabilidade de o Timeu histrico no ter verdadeiramente existido, h autores que vem nele uma mscara para outra personalidade como Filstion, pelo facto de ser tambm natural de Lcride. Por outro lado, Ccero refere em Academica102 que Plato, quando foi pela primeira vez Siclia, estadia durante a qual ter obtido grande parte dos seus conhecimentos sobre o Pitagorismo103, conviveu muito de perto com Timeu de Lcride e tambm com Arquitas de Tarento. Se a existncia do primeiro duvidosa, quanto do segundo no h quaisquer dvidas: alm de um poltico exemplar, Arquitas foi um matemtico

    97 Vide Burkert (1962, p. 372). 98 Apud Brisson (2001, p. 72). 99 Vlastos (1991, p. 264). 100 Vide 522b-sqq. 101 Vide 20a. 102 1.10.16. 103 Sobre esta viagem de Plato Siclia, vide Vlastos (1991, p. 128, n. 89).

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    brilhante, responsvel por descobertas importantssimas como a duplicao do cubo, cuja autoria lhe atribuda por Eudemo104, e de ter sido mestre de ilustres matemticos como o prprio Eudoxo, conforme atesta Digenes Larcio105. Por isso, h tambm opinies segundo as quais Timeu representa Arquitas; contudo os dados disponveis no permitam mais do que simples conjecturas106. Por outro lado, este carcter fictcio da personagem leva os estudiosos a considerar se Timeu no ser um simples pseudnimo de Plato, como fora inicialmente proposto por Wilamowitz107 e mais tarde desenvolvido por Cornford, que sustentava esta argumentao com o facto de ser impossvel apontar algum daquela poca que reunisse conhecimentos to aprofundados sobre tantas reas do saber108.

    Quanto a Crtias, personagem responsvel por narrar o episdio da guerra que ops Atenas Atlntida (20e-26e) que, posteriormente, constituir o assunto principal do dilogo que segue o Timeu e ao qual ele d o nome, , sem dvida, a figura que levanta mais problemas de ordem histrica. A teoria tradicional, fundamentada por Proclo109 e seguida desde logo por Burnet110, sustenta que se trata de um primo em segundo grau de Plato, 33 anos mais velho, que pertencera ao conselho oligrquico dos Trinta Tiranos. Ainda assim, em virtude de esta posio entrar em conflito com alguns dados que nos fornece o texto, como por exemplo o anacronismo que representa o facto de Crtias dizer que o seu bisav fora contemporneo e amigo de Slon111, que vivera cerca de 200 anos antes, ao mesmo tempo que refere que durante a sua infncia as composies deste poeta eram uma novidade112, levou a que Cornford adiantasse uma outra proposta que sugeria que este Crtias era sim o av do Crtias dos Trinta Tiranos, portanto tio-av de Plato113. Porm, aqueles mesmos dados que fundamentaram esta posio serviram para reafirmar a validade da tradicional, como faz Rosenmeyer114, pois o facto de os poemas de Slon serem novidade para Crtias continuava a ser anacrnico; isto , seja qual for a posio que prefiramos,

    104 Fr. A14 DK. 105 8.86.1. 106 Cf. Burkert (1962, pp. 84-85). 107 Wilamowitz (1920, I, pp. 591-592). 108 Cornford (1937, p. 3). 109 In Ti. 1.70.20-21. 110 Burnet (1914, p. 338). 111 Vide 20e. 112 Vide 21b. 113 Vide Cornford (1937, p. 2). 114 Rosenmeyer (1948).

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    nunca ser a correcta. Por outro lado, poderemos abordar a questo de outro modo e pensar, com Brisson, que este anacronismo foi propositado, justificado pelo facto de Plato querer, por um lado, estreitar um pouco mais a via de transmisso do relato de Slon, ao suprimir uma etapa da linha genealgica, e, por outro lado, proporcionar ao relato um registo de actualidade somente atingvel pelo Crtias dos Trinta Tiranos que participou na Guerra do Peloponeso e contribuiu para a guerra civil que se instalou em Atenas, cujo modelo ilustrado pela guerra que narra no seu disurso115. Em suma, a posio mais correcta a tomar ser admitir que impossvel determinar historicamente esta figura, tendo em conta os dados de que dispomos, e sobretudo que h uma clara no-coincidncia entre o Crtias histrico e o Crtias dramtico.

    No que respeita a Hermcrates, o autor do suposto dilogo que estaria pensado para seguir o Crtias, mas que Plato nunca chegou a redigir, a sua participao no Timeu limita-se apenas a uma breve interveno em que sugere a Crtias que conte a estria de Slon116. Quanto sua existncia histrica, ela indiscutvel e os dados que nos fornecem os autores antigos no tm sido objecto de discusso: diz Proclo que era um general natural da Siclia que derrotou os Atenienses numa expedio que fizeram quela ilha117 (em c. 415 a.C.), e, segundo Tucdides, tratava-se de um homem de admirvel inteligncia e coragem alm de muitssimo experiente em assuntos militares118.

    2.3 Estruturao dos assuntos De um modo geral, o Timeu divide-se em duas grandes seces, cuja delimitao se pode

    determinar de um modo relativamente estanque: primeiro, a conversa inicial entre os participantes no dilogo que ocupa apenas 1/7 de todo o texto; depois, o discurso de Timeu que ocupar o resto da obra, sem que haja quaisquer interrupes por parte das outras personagens, excepto uma breve interveno de Scrates que ocupa apenas trs frases119. Contudo, para alm desta diviso simples em duas seces independentes, possvel sintetizar a estrutura do dilogo por meio de um esquema que mais facilmente ilustre as vrias partes quer da conversa introdutria, quer do discurso de Timeu, o que, neste ltimo caso, se revela uma ferramenta muitssimo importante para conceber

    115 Brisson (2001, p. 332). 116 Vide 20d. 117 Procl. in Ti. 1.71.19-sqq. 118 4.72. 119 29d4-6.

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    visualmente a estrutura de uma narrativa to densa e, ao mesmo tempo, extensa. Vejamos, ento, esse esquema120.

    I. DILOGO INTRODUTRIO 1. Contexto dramtico 17a-17b 2. Resumo da conversa do dia anterior 17b-20c 3. Discurso de Crtias 20c-26e 4. Programa dos discursos a abordar no Timeu e no Crtias 26e-27c II. DISCURSO DE TIMEU 27c-92c A. Preldio 1. Invocao dos deuses 27c-27d 2. Distino ontolgica entre ser e devir 27d-28b 2.1 Implicaes epistemolgicas 28c-29d 3. Pressupostos iniciais 29d-31b 3.1 O Demiurgo 29d-30c 3.2 O Ser-Vivo 30c-d 3.3 O Universo um ser-vivo 30d-31a 3.4 O Universo nico 31a-31b B. Obras do Intelecto 1. Constituio do Universo 31b-40d 1.1 O corpo do mundo 31b-34a 1.2 A alma do mundo 34a-40d 2. Constituio do homem 40d-47e 2.1 A alma do homem 40d-44c 2.2 O corpo do homem 44c-47e C. O mbito da Necessidade 1. A causa errante 47e-48b 2. Novo comeo da narrativa; nova invocao dos deuses 48b-48e

    120 O esquema aqui apresentado baseia-se nos que estabeleceram Cornford (1937, pp. xv-xviii) e Brisson (2001, pp. 65-69), embora com algumas alteraes.

  • 27

    3. Terceiro princpio ontolgico: a 48e-51e 4. Recapitulao dos trs princpios ontolgicos 51e-52c 5. Os elementos 52d-61c 5.1 Estado pr-csmico 52d-53c 5.2 Formao dos slidos a partir dos tringulos elementares 53c-56c 5.3 Transmutao e variedades dos compostos 56c-57d 5.4 Movimentos dos elementos 57d-61c 6. As sensaes e as impresses 61c-69a 6.1 O tacto 61c-64a 6.2 O prazer e a dor 64a-65b 6.3 Os sabores 65b-66c 6.4 Os odores 66c-67a 6.5 Os sons 67a-67c 6.6 As cores 67c-68d D. Cooperao entre Intelecto e Necessidade 68e-81e 1. Recapitulao da aco do Demiurgo 68e-69c 2. Introduo das divindades menores 69c-69d 3. Constituio da parte mortal da alma humana 69d-73b 4. Constituio das restantes partes do corpo humano 73b-76e 5. Criao dos seres vegetais 76e-77c 6. Constituio dos aparelhos funcionais do corpo humano 77c-81e 7. Doenas do corpo humano 81e-86a 8. Doenas da alma do homem 86b-92c Concluso 92c

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    II. Mito e texto no Timeu

    Of course the tone in which the story is told here has something quite distinctive about it, and the truth which the narrative claims for itself is explicitly limited to what is probable both in respect to what is presented as a story (mythos) and in respect to what is presented in rational arguments (logos). So we are indeed faced with the methodological problem of extracting the substantive content of the narrative, extracting its rational themes from a kind of story which, in fairy tale fashion, is peculiarly loose, incoherent, and allusive (Gadamer, 1980, pp. 159-160).

    1. Mito, e Antes de passarmos abordagem propriamente dita do estatuto do mito no Timeu,

    conveniente se no obrigatrio ensaiar uma breve reviso de algumas ideias-base que a fundamentaro. Sabendo que, desde Plato aos nossos dias, o termo mito tem sido objecto de inmeras tentativas de definio e esclarecimento, vrias delas implicadas por pressupostos bastante distintos entre si, foroso que delimitemos a extenso deste conceito ao mbito do problema que nos propomos analisar, bem como evidenciemos luz de quais das linhas em que ele tem sido enquadrado se desenvolver este estudo. No se trata de traar um perfil diacrnico e exaustivo das vrias formas como o mito foi sendo entendido tarefa impossvel de acordo com as limitaes que um trabalho deste tipo implica , mas apenas de contextualizar e esclarecer aquilo que posteriormente entenderemos por mito, tentando assim determinar as linhas de orientao que tentaremos seguir. Alm disso, tentaremos tambm esclarecer em que medida o conceito de mito se relaciona com o de , averiguando se ela implica algo para alm da simples traduo, ou melhor, transliterao.

    Ao longo da tradio, o conceito de tem andado associado a um outro, com o qual mantm uma relao marcadamente dicotmica: o de . que, como veremos, cada um deles representa, de um modo geral e globalizante, os dois antpodas das modalidades discursivas, de tal forma que entender aquele implica e depende de relacion-lo com este, o que obriga a considerar essa relao como algo inevitvel e incontornvel. Contudo, dada a complexidade e extenso que esta questo atingiu e ainda atinge, limitar-nos-emos a, por um lado, considerar o conceito de luz do de e, por outro, a particularizar essa relao como um ponto de partida para a sua anlise em Plato, particularmente no Timeu.

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    1.1 Mito e Na linguagem do senso comum, o conceito de mito goza de uma admirvel polissemia,

    podendo significar fbula, lenda ou mesmo representar algo ou algum que goza de especial apreo ou admirao social. No primeiro caso, patente a identificao de um mito com o reino do fantstico, do longnquo (no tempo e no espao), do fictcio e, em ltima anlise, do falso; contudo, ainda que redutoras, estas acepes do conceito de mito aproximam-se um pouco mais da sua explicao, j que o consideram uma forma de narrativa. Quanto ao segundo, parece-nos que dizer que algum um mito constitui uma perverso simplista daquela primeira acepo, alm do facto de pertencer ao campo do senso-comum; por isso, deix-la-emos de parte.

    Partindo, portanto, do princpio que um mito uma forma de narrativa, deixando ainda de lado as categorias a que essa narrativa obedece, vejamos, primeiro que tudo, em que moldes surgiu este conceito, visitando brevemente as suas razes etimolgicas.

    No s em Portugus, como tambm noutras lnguas, mito, do ponto de vista histrico-lingustico, uma transcrio do grego : mito, em Espanhol; myth, em Ingls; mythe, em Francs; mythos, em Alemo; mito, em Italiano; e at em Russo, mif. Ainda que seja bastante difcil reconstituir o passado de , como o comprova a indefinio que paira em torno dos estudiosos que se tm dedicado a este assunto121, comummente aceite que na sua origem esteja a raiz *meudh-/mudh, da qual herdou os sentidos de pensamento, reflexo, memria e representao122. Se na sua origem referia movimentos abstractos de conceptualizao ou reconceptualizao, o termo passou a implicar a materializao dessa dimenso dianotica, alargando-se ao mbito da palavra enquanto modo de dar a conhecer alguma coisa e instrumento da sua transmisso123. Com efeito, nas primeiras manifestaes deste termo na Literatura Grega, o sentido geral situa-se na exteriorizao verbal de uma ideia ou acontecimento; concretamente nos Poemas Homricos, reforam-no associaes com outras palavras do mesmo campo semntico como 124 e oposies com palavras de campos semnticos contrrios como 125. Ainda nestes textos, so frequentes algumas particularizaes deste sentido geral de coisa dita, podendo

    121 Sobre os problemas que levanta o esclarecimento do significado original de , vide Hampl (1975, pp. 1-2); Garca Gual (1992, p. 16); Duch (2002, pp. 62-64). 122 Apud Sthlin (1942, p. 772); Hommel (1983, p. 373). 123 Apud Brisson (2002, p. 1713, col. 2). 124 Cf. Hom. Od. 11.561. 125 Cf. Hom. Il. 19.242.

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    significar discurso proferido para uma audincia126, ordem127 ou relato128 de um determinado acontecimento. Ou seja, na sua origem, implicava a palavra enquanto acto performativo, a produo oral de uma ideia129, ao mesmo tempo que referia a estrutura narrativa em que essa ideia tomava forma e a que a palavra dava corpo.

    Contudo, como veremos mais adiante, este termo, a partir dos filsofos chamados pr-socrticos, comeou a adquirir outro tipo de conotaes mais particularizadas e a surgir associada em oposio a um outro termo o ; esta correlao manteve-se at aos nossos dias, o que torna ainda mais difcil tentar esclarec-la. Para isso, teremos que prescindir por instantes dessa relao, abordando-a somente mais adiante, logo que fique estabelecido em que consiste afinal um mito.

    Ignorando, portanto, as acepes de ndole mais racionalista que comearam a surgir desde

    os incios da Filosofia e tambm as do senso-comum, e atendo-nos ao seu sentido mais prximo do original, digamos que um mito consiste numa narrativa sobre acontecimentos ocorridos em tempos primordiais, cujas personagens e as suas aces pertencem ao reino do sobrenatural130. O seu contedo consiste, portanto, num enredo formado por entidades externas ao mundo tangvel e imediato, mas cujas interrelaes o fundam e lhe do existncia, pois, entretecidas numa narrativa, relatam a criao do mundo e do homem e todas as outras coisas em consequncia das quais o homem aquilo em que se transformou131. Por esse motivo, as coordenadas temporais e geogrficas em que essa narrativa se desenvolve no podem ser identificadas pelos mecanismos lgicos habituais, na medida em que decorrem num tempo pr-cronolgico e num espao fisicamente inidentificvel. Ainda assim, essa dimenso sobrenatural s o aos nossos olhos, pois, internamente, a estrutura do mito apresenta uma plenitude anterior ciso em sobrenatural, natural e humano132. Contudo, desta explicao nasce uma aporia: como mediar a comunicao entre as dimenses do sobrenatural e do humano, de tal forma que se preencha o fosso existente entre os dois e seja possvel fazer um mito e ler um mito? Cremos que a resposta se encontra no modo de funcionamento da linguagem que marca os mitos, o mesmo que dizer a sua forma simblica.

    126 Cf. Hom. Od. 1.358. 127 Cf. Hom. Il. 1.388. 128 Cf. Hom. Od. 3.94. 129 Apud Mardones (2005, p. 39). 130 Cf. Eliade (2000, pp. 12-13). 131 Cf. Eliade (2000, p. 13). 132 Cf. Ricoeur (1960, pp. 158-159).

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    Esta sua caracterstica intrnseca o facto de ser uma narrativa em linguagem simblica133 aquilo que nos permite dar o salto e estabelecer a ponte de unio com o outro lado daquilo por que ansiamos134 e por isso que o mito tem pretenso de transcendncia135. De facto, a afirmao de Mardones segundo a qual o homem anseia por algo com o qual tem que se unir implica partida a existncia de uma no coincidncia entre si e alguma coisa. No obstante, se a unio com ela potenciada pela ansiedade, quer dizer que no ser estranha a si, ao mesmo tempo e, paradoxalmente, que no lhe estar naturalmente aposta, na medida em que a anseia. Este problema da outra coisa com que o homem parece manter uma relao mista de ansiedade de posse e inevitvel incomensurabilidade levanta uma questo de nvel ontolgico que pe a nu uma das suas principais fragilidades constitutivas: a desproporo e no-coincidncia consigo mesmo. De acordo com Paul Ricoeur, esta inalienvel condio deve-se ao facto de estarmos situados entre uma origem e um fim e no conseguirmos, por um lado, compreender essa origem nem esse fim e, por outro lado, de nos estar vedada a capacidade de englobar origem e fim136. para superar estas dificuldades que surge o mito e atravs da sua constituio simblica que temos acesso ao nosso outro lado ou, nas palavras de Lluis Duch, o que nos permite condensar los diacronismos constitutivos de la existencia humana137. Vejamos, ento, de que forma estabelecemos essa unio atravs do smbolo.

    O mbito do smbolo situa-se sensivelmente prximo do do signo, na medida em que ambos referem alguma coisa ou remetem para ela atravs da sua substituio. Todavia, h que estabelecer uma distino entre ambos que se esclarece luz dos conceitos de transparncia e opacidade: enquanto que os signos referem apenas aquilo que suposto que refiram, ao remeterem para um significado inequvoco e de forma inequvoca so transparentes , os smbolos, pelo contrrio, apresentam uma dupla intencionalidade, pois sob o significado inequvoco escondem um outro que precisa de ser descodificado atravs do primeiro138. Assim, um smbolo ser uma estrutura de significao em que actuam dois sentidos: o primrio, directo e literal que, por sua vez, designa o secundrio, indirecto e figurado que s pode ser captado atravs do primeiro139. Da que todo o smbolo seja um signo, pois remete para alguma coisa e vale por essa coisa, mas nem todo o signo

    133 Apud Mardones (2005, p. 37). 134 Mardones (2005, p. 5). 135 Mardones (2005, p. 5). 136 Cf. Ricoeur (1960, p. 32) 137 Duch (2002, p. 53). 138 Cf. Ricoeur (1969, pp. 285-286). 139 Cf. Ricoeur (1969, p. 16).

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    seja um smbolo, pois s os smbolos tm aquela dupla intencionalidade. Mas se, ao contrrio do signo, cuja intencionalidade nica e inequvoca remete

    automaticamente para aquilo que substitui, o smbolo no passvel de ser completamente entendido com clareza, pois s a sua vertente de signo transparente, como ter acesso ao segundo sentido? Se, no caso do signo, o seu modo de funcionamento remeter para a coisa que designa simples, directo e inequvoco, pois apenas nomeia, j o smbolo necessitar de um outro tipo de procedimento para dar corpo ao que no referido. Neste caso ser necessria a interveno da linguagem que fornecer os instrumentos necessrios para uma desmontagem das imbricaes que se situam entre os sentidos primrio e secundrio; mas, para que a linguagem funcione, necessrio um agente que, por meio dela, consiga penetrar na obscuridade da vertente simblica; atravs da interpretao que isso se torna possvel por meio dela que passamos a poder forjar os nveis de significao do sentido secundrio implicados no sentido primrio e ter, ento, acesso aos dois planos de intencionalidade do smbolo. E quando falamos de interpretao, devemos ter em conta que, muito mais do que acesso, ela d existncia ao prprio smbolo; sem interpretao, o smbolo no existe, na medida em que a sua actuao depende da interpretao da sua estrutura140.

    Sabendo, portanto, que um mito uma narrativa simblica cujos sentidos dependem de um processo de interpretao, vejamos com que modalidade de discurso podemos identificar o seu contedo. Ao partirmos do princpio que se situa no mbito do simblico, devemos concordar que exclui a modalidade de discurso linear, transparente e explcito, admitindo sim, pelo contrrio, o domnio do implcito, do sugestivo em detrimento do afirmativo e, paradoxalmente, deixando mais por dizer do que dizendo. Obviamente que as coordenadas desta modalidade no podero ser identificadas atravs dos mecanismos lgicos e dedutivos, na medida em que o sub-reptcio predomina sobre o evidente.

    Com efeito, as caractersticas que acabmos de apontar enquadrar-se-iam na perfeio s categorias de um texto literrio, o que por si s nos permite aproximar a modalidade mtica da potica. Tanto um como outro transpem para o humano uma dimenso sobre-humana, cuja intermediao levada a cabo pelo poeta um vate , a entidade que estabelece o contacto entre os dois mundos; Hesodo recebe o dom da poesia por meio de um encontro com as Musas que lhe conferem esse condo de professar um canto divino sobre o divino141. So elas, as filhas da deusa Mnemsine, que lhe do o poder de narrar a memria dos primrdios e descrever num discurso codificado as origens; a ele cabe-lhe ser o hermeneuta, o tradutor que interpreta e d a interpretar os

    140 Cf. Ricoeur (1965, pp. 27-28). 141 Cf. Hes. Th. 31-34.

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    acontecimentos dos tempos primordiais; ao apresent-los em forma de narrativa, de mito, d a conhecer, anuncia e expe. neste ponto que se cruzam os significados originrios de com alguns dos sentidos de , pois, alm de interpretar ou traduzir, o deus Hermes aquele que anuncia e expressa, particularmente do sobrenatural para o humano transposio essa que se consuma na e atravs da narrativa. por isso que um sonho s tem sentido depois de reconstitudo em estado de viglia; atravs da interpretao, formulada uma narrativa que transpe os acontecimentos para o plano da linguagem e os torna perceptveis, dando coerncia a um discurso j existente142.

    Alm disso, o mito partilha com o potico em geral uma outra caracterstica que tem que ver com o tipo de discurso; tal como o potico, o mito uma mimese por meio de enredo. esta a funo principal dos enredos: representar a gnese das aces. Segundo Aristteles, a par do potico, tambm o uma 143 o seu objecto a aco das personagens (o que fazem, como se relacionam e o que provocam); quanto ao modo, tambm ele mimtico, pois representa metaforicamente. Mas, ao cunhar este sentido palavra, Aristteles faz questo de especificar que entende por a combinao dos acontecimentos ( )144. Isto , a representao de personagens em aco no se resume a um mero decalque mecnico e esttico; pelo contrrio, tem um carcter claramente dinmico e construtivo, pois implica um processo de montagem sequencial e ordenada dos vrios elementos em questo145. Ao articular os sentidos exposio verbal e comunicao com os de contedo de uma exposio e enredo, Aristteles opera uma fuso entre o modo de narrar e aquilo que narrado, aproximando o dinmico e o esttico atravs de um mesmo conceito.

    De modo a salvaguardar as prerrogativas a que um mito deve obedecer, teremos que assumir que o modo como a aco representada no mito diverge um pouco do do discurso potico, na medida em que cada um deles tem diferentes objectos de referncia. Noutro passo da Potica, Aristteles refere que a mimese se refere aco dos homens146, isto , representa a dimenso humana em actuao e interaco (a ); porm, os mitos no representam os homens, mas sim entidades do sobrenatural. Esta diferena nos objectos de representao implica um processo

    142 Cf. Ricoeur (1960, pp. 325-326; 1969, p. 17). 143 Cf. Arist. Po. 1450a. 144 Cf. Arist. Po. 1450a. 145 Como bem nota Soares (2006, p. 79), de remarcar que, em grego, as palavras terminadas pelo sufixo sis, como poiesis, sustasis, mimesis, so substantivos abstractos com o trao semntico de processo, aco, dinamismo. 146 Cf. Arist. Po. 1448a.

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    mimtico intermdio que permite unir as duas dimenses a humana e a sobre-humana numa mesma forma de as conceber na narrativa. uma primeira representao da dimenso humana que permite encenar o sobrenatural atravs da traduo dos elementos daquela para os desta; por este motivo que os personagens dos mitos, ainda que pertenam a uma dimenso sobre-humana, evidenciam caractersticas e atributos humanos falam e sentem como os humanos, bem como muitos deles tm formas semelhantes ou iguais humana. Quer isto dizer que os mitos representam as entidades sobre-humanas atravs da lente da mimese da aco humana. precisamente neste sentido que devemos entender o passo em que Aristteles reconhece ao discurso potico uma dupla valncia: universal e particular. Ao contrrio da histria, que apenas d conta do que aconteceu (o particular), a poesia, pelo contrrio, permite, atravs da verosimilhana, a interseco do que pode acontecer (universal) e do que acontece ou aconteceu (particular); para ilustrar esta sua viso, o filsofo d um exemplo esclarecedor: os comedigrafos estruturam as suas peas em primeiro lugar e s depois atribuem, ao acaso, os nomes aos personagens147.

    No fundo, Aristteles concebe a criao potica como um processo que se desenvolve em dois movimentos fundamentais, a e o , a partir de um objecto bifacetado, a .O labor construtivo (a ) do poeta consiste em representar por meio da verosimilhana () uma srie de elementos da interaco humana (), cujo encadeamento () resultar na depurao () alcanada por meio da compaixo () e do temor () identificados pelo receptor na dramatizao destes elementos. Atravs da trade --, a aco dos deuses transmutada para o reino do humano atravs do filtro do potico; o mito torna-se o palco onde os homens assistem sua prpria representada na dos deuses. Porm, de que modo podemos desvincular esta sequncia do palco da tragdia grega? Isto , como alarg-la at aos outros campos da produo artstica e, em ltima instncia, manifestao praxiolgica humana per se? Para responder a estas perguntas, Ricoeur, ao libertar o conceito de das constries aristotlicas, empreende a sua ascenso a estrutura comum a ambos drama e narrao, passando portanto a incluir, enquanto encadeamento, todo o tipo de gneros literrios que representam uma , como, por exemplo, o discurso histrico; trata-se da sua promoo categoria de metagnero148.

    por isso que um mito representa uma aco atravs da sua narrativa e neste ponto de cruzamento que devemos aproximar os conceitos de mito e de . Se um o enredo ou

    147 Vide Arist. Po. 1451b. Para uma discusso desta dupla valncia da mimese, vide Halliwell (1986, pp. 136-sqq.); Soares (2006, pp. 76-sqq.). 148 Sobre esta problemtica relao, vide Soares (2006, pp. 151-152.).

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    narrativa e um mito uma forma de narrativa, a relao entre os dois conceitos ser com certeza de complementaridade; ou seja, todo o mito tem um , mas se, como dissemos, o mito uma narrativa em forma simblica, evidente que o seu ser tambm ele simblico; ou melhor, a articulao dos smbolos da aco em forma de enredo. Numa frase, um mito um simblico. Porm, devemos ter em conta que esta distino entre mito e no completamente estanque nos autores antigos de lngua grega, visto que ela depende da escolha de uma de duas possibilidades de traduo de um termo daquela lngua em cujo contexto ele designava por si s essas duas mesmas possibilidades; da que muitas vezes se torne muito difcil apurar a traduo de .

    Mas, afinal, para que serve um mito e qual ser a sua ligao com a filosofia? Como veremos, a duas perguntas distintas cabe uma mesma resposta.

    As primeiras questes que intrigavam os primeiros dos filsofos, no contexto ocidental, tinham que ver com o papel do homem no mundo e com as causas e fins do prprio homem e do prprio mundo. Ora, as questes que subjazem aos mitos so precisamente as mesmas, pois tm que ver com o incio, com a razo de ser e com o prprio ser das coisas149. Alm disso, quelas mesmas perguntas levantadas pela Filosofia que o mito visa responder, bem como lhe fornece um ponto de comeo; o recurso ao primordial evita um comeo radical e faz com que a primeira tarefa da Filosofia seja, no a de comear, mas a de relembrar para comear150. Estabelecendo um paralelo com um dos pilares do platonismo, a anamnese no recupera acontecimentos efectivos, mas sim arqutipos, estruturas do real, isentas de qualquer particularizao lgica; o mesmo fazem os mitos.

    Por outro lado, os mitos respondem tambm pergunta sobre o papel do homem no mundo, ao conceptualizarem de forma plena as suas experincias e as suas relaes com estas experincias, pois pretende representar e apresentar uma imagem englobante do universo, estabelecendo o lugar de cada coisa e dando sentido a cada uma delas que integra num todo significativo.

    De acordo com Paul Ricoeur, os mitos tm uma tripla funo: universalidade concreta, tenso cronolgica e consciencializao ontolgica151. Se bem que Ricoeur tenha em mente principalmente os mitos sobre o mal em boa verdade, a terceira funo do mito, a que chammos consciencializao ontolgica, tem que ver sobretudo com a falibilidade humana152 e com o drama

    149 Cf. Mardones (2005, p. 40). 150 Cf. Ricoeur (1960, p. 324). 151 Cf. Ricoeur (1969, p. 289). 152 Segundo Ricoeur, a falibilidade consiste no no mal em si mas na possibilidade (inerente ao homem) de praticar o mal: que veut-on dire quand on appelle lhomme faillible? Essentiellement ceci: que la possibilit du mal moral est inscrite dans la constitution de lhomme. (1960, p. 149).

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    da entrada do mal no homem , a sua proposta adequa-se perfeitamente ao mito em geral. Quanto primeira funo, todo o mito tende a universalizar a experincia humana ao representar em aco personagens modelares (a conduta de Ado a conduta dos homens; Ado representa os homens). No que respeita segunda, tambm ela se verifica em todos os mitos, pois a narrativa apresentada desenvolve-se de acordo com uma tenso orientada cronologicamente de um princpio para um fim, da gnese para o apocalipse. J a terceira, embora nem todos os mitos formulem o drama da entrada do mal no homem, todos eles tm uma vertente de consciencializao ontolgica, na medida em que propem uma identificao do si atravs do outro. Isto , ao propor uma reflexo intermdia interpretao153, a linguagem simblica proporciona uma ligao entre a compreenso dos smbolos e a compreenso do si, pois o intrprete, ao apropriar-se do sentido do outro, compreende-o e passa a compreender-se tambm a si mesmo. , segundo Ricoeur, atravs deste processo de alterizao que define a prpria hermenutica: toute hermeneutique est ainsi, explicitement ou implicitement, comprhension de soi-mme par le dtour de la comprhension de l'autre154.

    1.2 e A relao entre e representa e levanta uma infinidade de implicaes e

    problemas de tal forma delicados que seria impossvel e sempre incompleto sintetiz-los de forma adequada e sistemtica em apenas algumas pginas. Em grande medida, isso acontece em virtude de este par de conceitos e, particularmente, a relao que mantm entre si serem objecto de reflexo e discusso desde o incio da Filosofia Ocidental at aos nossos dias, bem como pelo facto de abranger num vastssimo campo semntico. Assim, de modo a evitar uma abordagem incompleta e, ao mesmo tempo, a no fugir em demasia do assunto principal da investigao, consideramos mais adequado que apenas se esclarea em que medida o conceito de ser entendido nas pginas subsequentes, sublinhando desde j que apenas ser tida em conta a sua acepo discursiva. Os diversos sentidos que o termo implica, como faculdade racional, razo ou proporo, entre outros, que escapem ao mbito de modalidade discursiva sero deixados de parte.

    Os incios do conflito entre estes dois conceitos so admiravelmente fceis de identificar, bem como o so as razes pelas quais se originou, na medida em que coincide, cronolgica e geograficamente, com uma das viragens civilizacionais mais importantes da Histria: o aparecimento da escrita alfabtica. No quer isto dizer que a concorrncia de ambos os fenmenos

    153 Cf. Ricoeur (1969, p. 20). 154 Ricoeur (1969, p. 20).

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    seja exactamente sincrnica, mas, como veremos, esto estritamente relacionados entre si sob um evidente nexo de causalidade.

    Foi por volta dos sculos VIII/IX a. C. que, na Grcia, aps um perodo de cerca de quatro sculos de obscuridade entre o Heldico Recente e a poca Arcaica, apareceu um novo sistema de escrita cujo modo de funcionamento assentava na combinao de consoantes e vogais em vez de slabas, como acontecia com o seu predecessor155. As implicaes deste novo sistema foram de uma importncia mpar. que, ao serem representados os fonemas atravs de associaes entre consoantes e vogais, o processo de escrita e sua consequente compreenso foi bastante simplificado, proporcionando a sua generalizao relativa e acesso a um muito maior nmero de pessoas, o que resultou numa mudana radical na forma como o conhecimento era transmitido156. Ora, uma alterao no meio de transmisso de conhecimento implica tambm uma outra que respeita ao modo de o formular, isto , modalidade de discurso utilizada. Se nos tempos da oralidade a modalidade privilegiada era a narrao de um episdio tendo em vista a sua conceptualizao por parte da audincia ou seja, um , com o advento da escrita a orientao discursiva passou a valorizar a descrio argumentativa de um acontecimento cujo sumo fim era a sua confirmao ou verificao so, na verdade, estes os pressupostos basilares do . Consequentemente, a autoridade que sustentava o discurso foi tambm forosamente substituda; as Musas, filhas da Memria, que fundamentavam a palavra do poeta deram lugar prova concreta, observao objectiva que determinava a verificao; a verdade deixou de ser representada pela memria primordial e passou a estar indelevelmente dependente da confirmao emprica.

    O aparecimento de uma nova modalidade discursiva implicou a criao de novos veculos para transmitir o tipo de informao que propunha e, ao mesmo tempo, ps em causa a outra modalidade atravs do estabelecimento de contrastes entre os pressupostos e objectivos que cada uma propunha; foram eles dois: a Filosofia e a Histria157. Contudo, ironicamente, a primeira crtica ao de que h memria advm do domnio do potico; Pndaro que numa Ode Olmpica diz que os mitos enganam-nos por estarem ornamentados com mentiras variegadas158. Este surpreendente verso de um dos maiores poetas de lngua grega anuncia uma das traves-mestras da crtica ao mito que veremos desenvolvida nas dcadas posteriores e que tem que ver com a

    155 A data de aparecimento do alfabeto na Grcia de tal forma discutvel que o intervalo cronolgico proposto pelos vrios autores varia entre os meados do sculo VIII a.C. e os incios do sculo IX a.C. Sobre este problema, vide Lactacz (1988, p. 158); Powell (1989). 156 Sobre as implicaes deste novo sistema de escrita, vide Havelock (1981); Morgan (2000, pp. 26-28). 157 Cf. Brisson (2002, p. 1714, col. 1; 2005, pp. 18-24). 158 Pi. O. 1.29.

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    redefinio do conceito de verdade; mais ainda, depende da aplicao do conceito de verdade ao mas luz dos critrios de verdade do . Trata-se de um processo de racionalizao.

    No mbito da Filosofia, as primeiras manifestaes da nova modalidade discursiva surgem logo com os primeiros filsofos os chamados pr-socrticos que empreendem um movimento de reconfigurao do discurso do conhecimento motivado por uma nsia de descrio do mundo natural. Com efeito, essa identificao destes autores mais com as cincias naturais do que com a Filosofia era reconhecida j na Antiguidade: em primeiro lugar, pelos prprios autores, dada a escassez de termos como , e 159; em segundo lugar, pela vasta tradio que, desde o sculo IV a.C. ao sculo IX da nossa Era, estabeleceu os escritos destes autores e agrupou os fragmentos de cada um em conjuntos individualizados, aos quais coube, de um modo geral, o ttulo 160.

    Uma das primeiras manifestaes dessa preocupao de reconfigurar o discurso vemo-la espelhada na obra de Heraclito, onde chega inclusivamente a assumir contornos de categoria metaliterria; ao conceber o mundo como uma conjuno de opostos161, diz que a fora eterna que unifica todas as foras contrrias um 162. Contudo, o filsofo no usa este termo apenas para referir essa fora misteriosa, mas identifica-a com as coisas que expe e com o modo como as expe, pois diz, na primeira pessoa, o mesmo que o diz; ou seja, esse tambm o seu discurso163. Consequentemente, aliada a esta nova modalidade discursiva, surgiu como que automaticamente uma vasta crtica outra modalidade que assentava, como dissemos, num processo de racionalizao; lendo os mitos presentes nos textos literrios de Hesodo e Homero luz dos critrios do , os pr-socrticos descredibilizavam os episdios e as personagens que aqueles narravam. O principal motivo pelo qual, ainda que inconscientemente, estes filsofos erigiam aquele tipo de crtica aos mitos homricos e hesidicos prende-se com o facto de estarem perante narrativas que se remetiam a tempos longnquos e historicamente inidentificveis e que, por isso, apresentavam um sistema de valores em muitos pontos contrastante com aquele que vigorava na poca; convm ter em conta que, parte as delicadas questes que envolvem os Poemas Homricos, certo que o seu estabelecimento na escrita dista muitos sculos do tempo da aco que ali narrada, alm de que no texto coexistem elementos de quase todos os perodos que esse

    159 Cf. Brisson (2005, p. 20, n. 2). 160 Cf. Santos (2002, p. 47, n. 1). 161 Vide fr. B10 DK. 162 Vide fr. B1 DK. 163 Vide fr. B4 DK.

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    intervalo temporal envolve164. Deste modo, as censuras dirigidas aos mitos de Homero e Hesodo tm que ver sobretudo com concepes morais e religiosas: Xenfanes, por exemplo, insurge-se veementemente contra o antropomorfismo165, advoga a existncia de um s deus, abolindo as divindades do Olimpo166, bem como condena que se atribuam aos deuses faltas exclusivamente humanas como o roubo e o adultrio167.

    Alm disso, estes pensadores, preocupados em fazer uma descrio material do mundo, tentavam estabelecer uma terminologia estvel e constringente, fixada na escrita, que lhes permitisse operar essa mudana de atitude; da que muitos dos textos de, por exemplo, Heraclito e Empdocles visassem criticar o tipo de terminologia vigente na poca cujos erros, segundo eles, estavam ligados a uma forma de pensar tambm errnea168. De forma anloga, vemos nos filsofos milsios uma preocupao semelhante, pois, na sua terminologia, os personagens mticos como Gaia ou Hefesto so racionalizados e as suas designaes comeam a ser trocadas por terra e fogo169; o smbolo perde a sua dupla intencionalidade e passa a ser um simples signo. E a essa busca de uma nova terminologia surge uma outra relacionada com a delimitao do mbito epistemolgico do homem, cuja manifestao arquetpica vemos no Poema de Parmnides. Ao estabelecer a diferena fundamental entre o que e o que no 170, Parmnides articula esta bipolaridade ontolgica com uma outra que lhe est subjacente de carcter epistemolgico: se o que no no pode ser conhecido, tambm no pode ser indicado171, isto , referenciado por meio da linguagem; ou seja, possibilidade de conhecer est indelevelmente associada a possibilidade de referenciar, pois o que no pode ser referenciado de modo algum pode ser conhecido. Confrontando este contacto hierofntico com aqueloutro de Hesodo, verificamos que, embora ambos recebam da divindade um dom que consiste numa capacidade de formular um discurso, em cada um dos casos o dom em si muitssimo diferente, em virtude de a essncia da divindade que o transmite ser tambm ela igualmente distinta: se as Musas sabem dizer coisas falsas, mas tambm verdades potencialidade essa que transmitem ao poeta , j a divindade que mostra a Parmnides a Verdade

    164 Para uma discusso detalhada dos problemas que envolvem a chamada Questo Homrica, vide Pereira (2003, pp. 49-68). 165 Vide fr. B14 DK. Cf. frs. B16, 23 DK. 166 Vide fr. 23 DK. 167 Vide frs. B11-12 DK. 168 Vide Havelock (1983). 169 Cf. Morgan (2000, p. 31). 170 Vide fr. B2 DK. 171 Vide fr. B2 DK.

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    apenas lhe oferece o poder de dizer as verdades, reservando para si prpria a capacidade de dizer o que no 172.

    Ainda que os exemplos citados das primeiras manifestaes do e consequente crtica ao sejam suficientes para deduzir que essa ideia j se comea a verificar entre os filsofos pr-socrticos, ela s verdadeiramente sistematizada em Plato. Mas, tendo em conta que esse um problema bastante mais delicado, bem como nos ocupar um dos captulos posteriores, deixemos esse assunto em suspenso.

    A par da Filosofia, surge, como dissemos, a Histria como veculo de transmisso e valorizao do , cujos incios e codificao se ficaram a dever essencialmente a dois nomes: Herdoto e Tucdides. Em ambos os escritos destes autores evidente a preocupao em garantir a autenticidade do discurso, fazendo-se valer, por isso, de testemunhos objectivos e verificveis. Ao contrrio das narrativas dos mitos, a verdade do discurso histrico depende de critrios de adequao realidade, da que a sua fundamentao assente em termos como e ako. Em Tucdides, clara a distino entre os factos histricos isto , cuja correspondncia realidade pode ser apurada e as estrias que, contadas de gerao em gerao, adquirem um estatuto de verdade, que, segundo o autor, no tm173. Quanto a Herdoto, ele valida muito claramente a sua argumentao atravs de dois tipos de critrios: sabe porque viu174 () ou ento porque recolheu as informaes de pessoas que soubessem175. J Tucdides assume uma postura um pouco mais cautelosa, ao colocar em dois planos diferentes de validade aquilo que viu () e o que ouviu ()176.

    No que respeita a tentativas de racionalizao dos mitos, o exemplo mais admirvel de que dispomos pertence a Hecateu. Segundo nos diz Herdoto, em tom de crtica, este autor, convencido de que tinha conseguido reconstituir, por meio de um clculo regressivo, o seu rasto genealgico at ao princpio de tudo, considerava que a sua origem se cruzava com a dos deuses 16 gerao177!

    Mas voltan