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A Filosofia de Platão Jorge Nunes Barbosa FILOSOFIA iBooks Author

Filosofia de Platão

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Page 1: Filosofia de Platão

A Filosofia de Platão

Jorge Nunes Barbosa

FILOSOFIA

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Page 2: Filosofia de Platão

Introdução

2. Os Principais Paradigmas Interpretativos da Obra de Platão

2.1 A Tradição Anglo-Saxónica

2.2 Interpretação de Heidegger

2.3 A Tradição Alemã

2.4 Conclusão

3. A Filosofia de Platão e a Estilometria

3.1 Diálogos Socráticos

3.2 Diálogos de Transição

3.3 Diálogos de Maturidade

3.3.1 O Fédon

3.3.2 O Banquete

3.3.3 A República

Secção

Nome: Jorge Nunes Barbosa

Título: Filosofia de Platão

Edição: http://web.mac.com/jbarbo00/

Data: 16 de Agosto de 2007

Conteúdos

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Page 3: Filosofia de Platão

3.3.4 O Fedro: A Transmissão da Virtude como Acção Política.

3.4 Os Últimos Diálogos de Platão e as Doutrinas não Escritas

4. Leitura Ontológica do Bem

Bibliografia

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Page 4: Filosofia de Platão

O objectivo da filosofia de Platão dificilmente pode ser apreendido só a partir dos seus diálogos; é também indispensável analisar toda a sua Tarefa Filosófica. Em Platão, mais do que em algum outro filósofo, é tão importante a filosofia escrita como o percurso do filosofar. Assim, por exemplo, as suas reiteradas tentativas de intervenção na política de Siracusa, a fundação da Academia, a decisão que tomou relativamente à forma de escrita (diálogos e mitos), parecem conduzir à mesma conclusão: a um projecto político que Platão procura concretizar por todas as vias possíveis. De acordo com o mais famoso dos seus mitos, o “Mito da Caverna”, para Platão a política é a acção que realiza o escravo que se liberta das correntes, que contempla a realidade verdadeira e que tem a obrigação de educar os seus

companheiros. Compreende-se, assim, como a fundação da Academia corresponde a um objectivo essencialmente educativo perseguido por Platão. Mais, entenderemos sobretudo que é no quadro de uma perspectiva educativa que tem de ser analisada e compreendida a tarefa política de Platão. Por outro lado, através das suas cartas, podemos comprovar que a intenção de Platão, quando se deslocou a Siracusa, era a de pôr em prática a sua concepção de que o filósofo é quem deve governar; este objectivo pode ser alcançado de duas maneiras: ou conseguindo o poder para os filósofos, ou suscitando o interesse pela filosofia naqueles que governam ou podem vir a governar.

Porventura de forma menos imediata, mas igualmente certo é o papel, coerente com a sua proposta política, que o seu estilo de escrita desempenha na sua obra.

Secção

Introdução

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Mas, para o entender, temos de retroceder a Sócrates, seu mestre, e aceder às razões da crítica da escrita no mito de “Teut e Tamis” no Fedro ou na Carta VII. Platão critica a escrita pela sua impossibilidade de “estar viva”: perante as dúvidas, a escrita não dá resposta; perante as más interpretações (mal intencionadas ou não), a escrita não pode defender-se. Por isso, dado que a escrita é mais ou menos inevitável, é preferível uma escrita onde haja menos escrita e mais “oralidade”, isto é, diálogo. Por outro lado, a escrita não pode nunca poupar-nos o caminho da aprendizagem filosófica, que será sempre uma aprendizagem interior, realizada com o nosso próprio esforço, e que consiste basicamente numa intuição (como confessa na Carta VII) que nem todos os homens conseguem alcançar. O diálogo é a forma de escrita que melhor permite realizar esse caminho próprio e que melhor se pode defender das más interpretações. O diálogo era também o que fazia o seu mestre Sócrates, e é a actividade política por excelência.

O diálogo de Platão é uma trama dramática, onde interessa menos convencer o interlocutor, ou até o leitor, do que pôr em evidência a forma como reagem os interlocutores de Sócrates diante de certas situações, ou o que dizem perante certas perguntas, ou o que se passa quando reparam que estão a contradizer-se, etc.

O diálogo é uma arma política de primeira grandeza, porque põe em evidência os actores. E tem ainda mais impacto quando estes actores são sofistas que pretendem impor o poder do mais forte ou “vender” a virtude, ou o que eles entendem por virtude (boas palavras), como instrumento para triunfar na vida política, aceitando todas as convenções enquanto possam ser úteis. Para Platão, pelo contrário, a acção política, a justiça, está intimamente ligada à verdade.

Por isso, o nascimento da política está associado ao nascimento da ontologia. Isto é o que diz J. Patock que defende que, com a filosofia, nasce (em Platão e em Demócrito) uma única árvore com três ramos a que ele chama o cuidado da alma: os projectos ético, político e ontológico. Para perceber como o projecto

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ético e o político nascem de uma raiz comum, basta recorrer ao Mito do Carro Alado do Fedro de Platão: a alma, tal como é (parece), coincide com a tripla estrutura da sociedade que é referida na República (o diálogo político ou sobre a justiça, por excelência).

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Capítulo 1

Paradigmas Interpretativos da Obra de Platão

A perspectiva, esboçada na Introdução, sobre a importância da acção política, entendida como pedagogia, na tarefa filosófica de Platão não deve impedir-nos de analisar outras interpretações contemporâneas da sua obra.

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2. Os Principais Paradigmas Interpretativos da Obra de Platão

2.1 A Tradição Anglo-Saxónica

Desde finais do século XIX, em total concordância com as perspectivas historicistas, a “estilometria” é o método ma is un ive rsa l i zado para o rdenar sequencialmente os diálogos de Platão, de acordo com o momento cronológico em que foram escritos. Este método acabou por ser a panaceia para a tradição analítica anglo-saxónica, representada, neste aspecto, por exemplo, por Cornford.

À partida, esta tradição anglo-saxónica elabora a sua interpretação, centrando-a na fundamentação da Teoria das Ideias de um ponto de vista lógico e, em certos casos, epistemológico. Assim, por exemplo, Cornford, na sua famosa interpretação do Teeteto,

considera este diálogo, de forma bastante unilateral e forçada (para além de anacrónica) como uma suposta teoria do conhecimento platónica.

Este paradigma interpretativo não nos deve surpreender, já que é perfeitamente coerente com o predomínio do neo-positivismo em terras de Sua Majestade. Com efeito, as perguntas, que estes intérpretes fazem a Platão, são as perguntas que podem ser feitas do ponto de vista do positivismo. O que é mais surpreendente é a forma como esta perspectiva está a ganhar raízes em Portugal, por via, não do debate, mas da imposição do júri de exames de filosofia no ensino secundário.

Precisamente porque as limitações do paradigma interpretativo positivista deixam muitos pontos sem clarificação e muitas perguntas sem resposta, a esti lometria permit ia compensar as lacunas interpretativas, explicando-as como “mudanças de opinião” de Platão, ao longo da sua vida. É, em consequência disto, que surge a famosa divisão da obra de Platão em três ou quatro etapas.

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O que deve ser dito, a este respeito, do ponto de vista da pura metodologia científica, é que, embora seja inegável que qualquer filósofo possa (ou até deva) mudar de doutrinas ao longo da sua vida reflexiva, este é, todavia, um recurso interpretativo de que não convém abusar. Com efeito, entre duas interpretações que expliquem a totalidade da obra de Platão, de acordo com o axioma da simplicidade, deveremos escolher aquela que menos mudanças de opinião ou doutrina seja necessário supor, uma vez que o autor não as enunciou explicitamente.

2.2 Interpretação de Heidegger

Heidegger faz uma interpretação nitidamente histórico-ontológica da filosofia de Platão. O texto, onde explicita esta interpretação, é a sua famosa lição sobre a doutrina platónica da verdade, onde realiza uma exegese do Mito da Caverna.

Antes de mais, convém lembrar que Heidegger, enquanto pensador, só se interessa por doutrinas

filosóficas que possam interpelar o percurso do seu próprio pensamento. Ora, o caminho do seu pensar, nessa altura, vem de Nietzsche. Consequentemente, Heidegger interpreta a doutrina platónica de acordo com o anti-platonismo de Nietzsche, isto é, como um desvio no sentido originário da busca da verdade como desocultação do ente, para a correcção (ou ortótese) do olhar1.

Independentemente dos pormenores da sua interpretação, que têm mais a ver com a sua reflexão sobre o acontecer histórico do ser, a nós interessa-nos sobretudo destacar a sua concepção ontológica da filosofia de Platão: O Bem seria o Ser de todos os entes2. Diferentemente da hermenêutica saxónica, não faz uma leitura moral da ontologia, mas uma leitura ontológica da moral. Isto é importante para o estudo da obra de Platão, porque, na perspectiva de Heidegger, a reflexão de Platão sobre a justiça deixaria de ser um tema meramente político (entendendo-se aqui o político como acção dissociada da teoria), para passar a ser uma preocupação essencialmente ontológica, a que não faltariam consequências

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políticas, antes pelo contrário, elevaria a dignidade teórica da política.

2.3 A Tradição Alemã

Há uma terceira tradição interpretativa, relativamente mais recente, que acolhe uma maior amplitude de e uma menor rigidez na interpretação. Trata-se da tradição alemã, assim designada por ser no seio da cultura filosófica alemã que granjeou mais adeptos e por nela se situarem as escolas mais influentes, em particular, a Escola de Tübingen. No entanto, nem todos os hermeneutas, que podem ser incluídos nesta terceira via, são alemães e nem toda a cultura alemã segue esta via; basta o exemplo da perspectiva de Heidegger, para o percebermos de imediato. A interpretação, mais ou menos coincidente com as o r i e n t a ç õ e s d a e s c o l a d e T ü b i n g e n t e m representantes de peso também em França e na Itália.

Um dos grandes contributos desta linha interpretativa da Escola de Tübingen consiste em aceitar a

totalidade do que se sabe a partir de ou a respeito de Platão, e não só os seus textos escritos.

No caso de Platão, esta clarificação é essencial, porque existe uma tradição indirecta que fala de coisas de que Platão falava, e que não chegaram até nós escritas por ele. Isto não tem nada de estranho, uma vez que todos os críticos concordam em entender os diálogos platónicos numa perspectiva pedagógica, e num contexto em que a escrita não é considerada o instrumento mais digno, nem sequer o mais adequado, para transmitir certas reflexões de calado filosófico: a escrita não teria dimensão para suportar, sem a encalhar, a reflexão filosófica mais profunda.

Apesar das críticas, sobretudo a que decorre da perspectiva hermenêutica de Schleiermacher, a Escola de Tübingen demonstrou que não é possível fechar os olhos perante as numerosas provas, que conferem dignidade filosófica suficiente à tradição não escrita.

Os argumentos, que Kramer e Gaiser apresentam, são os seguintes:

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➡ Deve ter-se em conta que Aristóteles, que, na sua Metafísica, fala da “doutrina dos princípios do uno e da díade indefinida, ouviu lições de Platão na Academia.

➡ Deve ter-se em conta a doxografia que, desde sempre, se referiu a doutrinas não escritas de Platão.

➡ As razões de Platão para não escrever certas coisas inserem-se num contexto arcaico e, por isso, devemos esclarecê-las (nada nos impede de escrever agora sobre essas coisas).

➡ Estas razões foram expostas na obra escrita de Platão, como no Fedro e na República, e em algumas das suas cartas, em especial na Carta VII. Nesses textos, são-nos apresentados argumentos de peso filosófico para não confiar à palavra escrita o mais essencial da reflexão filosófica.

➡ Os diálogos, com esta interpretação, não perdem conteúdo nem sentido filosóficos, antes pelo contrário, ganham-nos.

Estes autores descobrem na doutrina não escrita, transmitida de forma indirecta, uma Teoria dos Princípios. Os princípios são o Uno e a Díade Indefinida (princípio do ser), assim se entendendo a afirmação na República de que o Bem (que é o Uno) está para além do Ser.

Deste modo, a estrutura hierárquica da ontologia de Platão teria quatro níveis: 1) Princípios, 2)Ideias, 3) Entes Matemáticos, 4) Sensíveis.

A doutrina dos princípios corresponde a um pluralismo metodológico, mas constitui também uma polivalência funcional. Estes princípios são, tanto os elementos primeiros a que se chega pela elementarização, como os géneros universais a que se acede pela generalização.

Com esta doutrina, estão também relacionados os modos de argumentação de Platão: um redutivo-regressivo (de baixo para cima) e outro derivativo-dedutivo (de cima para baixo).

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2.4 Conclusão

E s t e r e s u m o m u i t o r e s u m i d o d o e s t a d o contemporâneo dos paradigmas hermenêuticos, sob os quais se tenta tirar o máximo partido da obra de Platão, não pode, nem deve, ser considerado como um exercício de erudição gratuita. Muito antes pelo contrário, só a partir daqui poderemos ser rigorosos, tanto para respeitar as limitações inultrapassáveis da escrita platónica, como para a interpretar em toda a sua riqueza, tendo em conta que nada podemos fazer para obviar os limites de uma escrita em forma de diálogo. Assumir, então, a literalidade da escrita e o que podemos conhecer através da tradição conduz-nos aos seguintes enquadramentos hermenêuticos, em contradição com muito do que se fez no mundo da interpretação de Platão de acordo com um muito discutível “senso comum”:

1. Sócrates não é a voz oculta de Platão. Para começar, nem sequer aparece em todos os diálogos; em outros aparece como aprendiz de

outros sábios (por ex. Parménides). Por outro lado, se Platão escolhe a forma de diálogo é porque, ao contrário do que acontece num discurso ou num tratado, não há nenhum personagem que possua a verdade, mas a ve rdade é aqu i lo que deve surg i r da contraposição dialéctica.

2. Nos diálogos platónicos, não só se dizem coisas, m a s t a m b é m s e p a s s a m c o i s a s . O s personagens fazem coisas a que os críticos anglo-saxões não prestaram, em regra, a menor atenção. Só contrapondo o fazer com a palavra (logos) se consegue entender a verdadeira ironia de Platão.

3. Só à luz desta confrontação entre o fazer e a palavra, adquire sentido e magnitude a verdadeira crítica política de Platão aos sofistas. Só lendo o que Platão os faz dizer em cada momento, tendo em conta o que a tradição nos transmitiu que faziam, é que podemos descobrir a verdadeira dimensão da reflexão filosófica de Platão sobre a justiça.

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4. Não esqueçamos, entretanto, que muitos diálogos são designados pelo nome de um sofista ou de outra personagem conhecida de Atenas do seu tempo. Deve ter-se em conta que só o nome (próprio ou situação) corresponde ao título escolhido por Platão. O subtítulo alexandrino (aparentemente indicador do tema tratado) não é de Platão. Se Platão pôs o título de Górgias a um diálogo, temos, então, de pensar que é esse o tema do diálogo.

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Capítulo 2

A Filosofia de Platão e a Estilometria

Não é legítimo esquecermo-nos de que toda a sua filosofia obedece a uma preocupação central com a justiça.

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3. A Filosofia de Platão e a Estilometria

Seja como for, é um facto, que todos os críticos, hoje em dia, convencionaram aceitar uma certa disposição cronológica da obra escrita de Platão, e admitem que essa ordem corresponde a ganhos em temas e em profundidade de tratamento, partindo de um período em que o Sócrates dos diálogos é bastante assimilável ao que sabemos do Sócrates histórico, para chegar finalmente a uma série de diálogos de grande complexidade discursiva e de composição, com um esquema variável, mas em que todos os personagens (incluindo Sócrates) são ficções ao serviço da unidade dialógica. Por isso, vale a pena fazer economia da apresentação detalhada daquela divisão em etapas, com que praticamente todos os críticos concordam, para analisar a reflexão de Platão sobre a justiça, a partir dos paradigmas interpretativos atrás referidos. Seguindo o fio condutor da noção de justiça, veremos, a pouco e pouco, em que sentido

são mais ou menos defensáveis as diferentes interpretações.

3.1 Diálogos Socráticos

De acordo com a tradição anglo-saxónica (por ex. Ross), os primeiros diálogos (Carmides, Laques, Eutifron, Hippias, etc.) já pressupõem uma Teoria das Ideias. Concretamente, segundo ela, Sócrates, ao perguntar “O que é X?” está a pressupor que a X corresponde alguma forma, independentemente de como a concebamos nós de facto. A cada nome comum, corresponde uma entidade real única e que admite definição, embora a abordagem de Platão, neste período, não revele um verdadeiro interesse metafísico: estas primeiras ideias não pretendem fundamentar o mundo, nem constituir a génese do conhecimento. O interesse destas ideias é prático, ético e político (tornar os cidadãos virtuosos). Que esta virtude se possa alcançar pelo conhecimento deriva de uma postura de intelectualismo moral, segundo a qual ninguém faz o mal sabendo-o.

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Encontramos aqui, portanto, um primeiro aspecto da reflexão filosófica de Platão sobre a justiça: necessita de conhecimento. A virtude exige o conhecimento. Do ponto de vista dialógico, a intenção política da escrita filosófica é evidente, não só no conteúdo do que afirmam os diferentes personagens e na importância concedida à virtude, mas também na reivindicação que faz Platão da figura de Sócrates. Sabe-se pela Carta VII que, desde o início da sua obra, a intenção filosófica de Platão é orientada pela preocupação em realizar a justiça na polis (ou, dito de outro modo, sobre como deve ser organizada uma polis para que a filosofia não seja de novo objecto de perseguição).

A ideia ou forma platónica, palavra que já aparece nos seus primeiros diálogos, embora não com um sentido técnico, deriva do verbo grego Idein (ver), e, no princípio, tinha o sentido de forma externa, figura. Mais tarde, o termo desenvolve-se e já pode significar forma interna, natureza (physis, também de objectos incorpóreos, quase essência), embora continue também a significar forma externa. Por outro lado,

ideia é também classificação no sentido de espécie, género...

Em Platão, há duas maneiras de exprimir a relação dos universais com os particulares: participação (imanência) e imitação (transcendência). Não nos podemos decidir por nenhuma delas em particular, no conjunto da obra de Platão, mas nesta primeira etapa, as ideias são imanentes aos particulares: “Todas as virtudes têm uma única e mesma forma”. No Crátilo, surge a ideia de que, para que haja conhecimento, nem tudo deve estar submetido ao fluir de Heraclito.

O esquema básico destes diálogos, cujo tema é sempre de ordem moral, consiste no que se denominou estrutura aporética: há uma pretensão de conhecimento, por parte de um determinado personagem que intervém no diálogo (usualmente o que dá nome ao diálogo). Esta pretensão de conhecimento é reduzida ao seu carácter de pretensão por Sócrates que, através da interrogação (maiêutica) conduz o personagem em questão à aporia (= falta de recursos). Deve ter-se em conta que Sócrates também não pretende resolver a questão.

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Sócrates mantém-se sempre firme no seu “só sei que nada sei”, e a única coisa que pretende pôr à prova é o saber dos que acham que sabem algo. Esta postura só se verifica nestes diálogos do primeiro período que, precisamente por isso, se chama socrático, (porque parece manter-se nas teses do Sócrates histórico). Mais tarde, Sócrates, nos diálogos de Platão, começará a expor certos núcleos de doutrina positiva que constituem precisamente o núcleo central do que se chama Teoria das Ideias. No entanto, já podemos ver, na pergunta pela essência da virtude, a preparação deste núcleo doutrinário posterior.

Segundo a tradição heideggeriana, interpreta-se a busca da virtude nos primeiros diálogos a partir de uma perspectiva ontológica: a virtude não seria mais do que o ser do ente, precisamente o que, mais tarde, será a ideia de Bem.

3.2 Diálogos de Transição

Como sabemos, a filosofia platónica foi-se enriquecendo com o contacto que Platão estabeleceu nas suas viagens à Sicília com a filosofia pitagórica. Desta seita, Platão recolheu a idealidade dos objectos matemáticos, a sua concepção de harmonia a sua concepção de alma. Isto é: tudo o que lhe faltava, da influência de Sócrates, para dar corpo à sua Teoria das Ideias.

Mas não é legítimo esquecermo-nos de que toda a sua filosofia obedece a uma preocupação central com a justiça. As suas viagens à Sicília tiveram sempre uma intenção política, no sentido digno que tem para Platão. Sabemos isto pelas suas cartas, em particular a Carta VII. Nestas viagens tentou pôr à prova a possibilidade de a filosofia governar a cidade, sem sucesso, diga-se em abono da verdade. Mais tarde, ao regressar da sua primeira viagem3, fundou a Academia com a mesma intenção: formar os possíveis estadistas da cidade. Como sabemos pelo Mito da

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Caverna, a acção política não é nem mais nem menos do que educar os que ainda não viram o exterior da caverna.

É costume considerar o Ménon como o primeiro diálogo de transição, uma vez que nele já aparecem elementos pitagóricos, ainda antes de estar completamente desenvolvida a sua Teoria das Ideias. No Ménon, expõe a Teoria da Reminiscência ou Anamnese, segundo a qual todo o conhecimento é só a recordação do que a alma (que, portanto, deve pré-existir ao corpo) conheceu quando ainda estava livre do corpo.

A função do sensível no conhecimento do mundo empírico é a de nos recordar as ideias; isto é o que se pretende demonstrar no episódio em que Sócrates interroga um escravo e, exclusivamente através da interrogação, consegue que o escravo chegue à relação, em que a área do quadrado aumenta, sempre que se duplica o seu lado. Dito de outro modo: o conhecimento matemático (absolutamente verdadeiro) não carece de nenhuma cultura prévia para ser alcançado; basta “raciocinar bem”: esta capacidade é

inata ao homem. É uma capacidade da alma imortal, que conheceu as ideias antes de incarnar

A hermenêutica da Escola de Tübingen dá particular relevo à argumentação de Sócrates sobre a veracidade da anamnese: esta teoria exige esforço (ascese) aos homens. Evidentemente, em pano de fundo está a polémica com o ensino dos sofistas. Ménon é um ateniense rico que pagou muito dinheiro para aprender o que é a virtude dos sofistas. Face a um saber que não requer esforço, mas que se compra com dinheiro, Platão contrapõe um saber que não se pode comprar (e, por isso, pode ser adquirido por um escravo), mas que só depende do esforço pessoal. Por isso, a libertação das próprias correntes, no Mito da Caverna, surge como individual e intransmissível.

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3.3 Diálogos de Maturidade

3.3.1 O Fédon

O Fédon é seguramente o diálogo mais pitagórico que conhecemos. È nele que aparecem, pela primeira vez, as Ideias não como Universais que se manifestam nos particulares, mas como ideais, modelos ou limites de que as coisas individuais só se conseguem aproximar4. A relação entre as ideias e as coisas é mais uma mimese do que uma participação. Nos diálogos anteriores, a relação era só de participação.

A relação que se estabelece entre o conhecimento sensível e a razão é a seguinte: o conhecimento sensível suscita em nós a noção das ideias, mas isto só acontece porque já as conhecemos antes.

A doutrina da anamnese (que já tinha aparecido no episódio do escravo no Ménon) implica a existência separada das Ideias. O conhecimento interior tem de ser directo entre a alma e as ideias; não pode ter origem na imanência no sensível.

Na mesma linha do Ménon, também aqui a doutrina da anamnese cumpre uma dupla função de exigência de esforço aos homens:

1. Por um lado , a c la ra d iv i são ent re o conhecimento interior (pessoal e intransmissível, que requer esforço, mas que é o único que nos proporciona sabedoria) e o conhecimento exterior (a via da doxa de Parménides, as opiniões dos sofistas).

2. Por outro lado, a questão da morte. Na medida em que a filosofia consiste em aprender a separar a alma do corpo (o inteligível do sensível), a filosofia também não é mais do que aprender a morrer e a estar morto. Não esqueçamos a cena contextual do Fédon: um Sócrates valente e feliz dispõe-se a morrer bebendo a cicuta, rodeado de companheiros pitagóricos (Cebes e Simmias) que choram desesperadamente a sua morte.

3.3.2 O Banquete

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No Banquete, o tema central parece ser a soberba5 (hybris) de Sócrates. Sócrates quer discutir com Ágaton, talvez por inveja do seu sucesso. Esta degradação da filosofia (se entendermos que Sócrates é a figura da filosofia) poderia ser corroborada pelo facto de a verdade já não estar em Sócrates, mas em Diotima, ou pela participação infeliz de Alcibíades6, o fracasso pedagógico de Sócrates. Àgaton é o amado de Sócrates, e Sócrates inveja-o. Alcibíades está ciumento de Ágaton, pois, antes dele, Alcibíades foi amado por Sócrates (tê-lo-á deixado devido à sua relação com o poder?). Na bebedeira de Alcibíades e no facto de Alcibíades falar por imagens (o nível mais baixo da doxa) e de começar as frases por “parece-me”, talvez esteja patente que a relação de Alcibíades-Sócrates é uma degradação da relação Sócrates-Ágaton. Numa e noutra, o problema é o poder. De qualquer modo, o discurso de Diotima é relatado por Sócrates a Fedro e não a nenhum dos outros dois.

Fedro insiste desde o princípio no seu especial interesse pelo tema do amor. No seu discurso, Fedro

afirma que Eros é o mais antigo dos deuses e, para além disso, o mais eficaz para que os homens alcancem a virtude e a felicidade, pois é o que inspira a coragem, pela qual o amante chega a dar a vida pelo amado. É também diante do amado que o amante se envergonha por agir sem honra ou com covardia. Evidentemente, Fedro faz o seu discurso do ponto de vista da sua posição de amado. Não podemos deixar de ver neste discurso a ironia platónica, tendo em conta a pouca virtude que demonstra Alcibíades, o amante de Sócrates.

Segundo Pausanias, há duas Afrodites: a Afrodite Pandemo (para todo o povo) e a Afrodite Urânia (celeste, divina); por conseguinte, haveria dois tipos de amor. O amor vulgar é o que dá satisfação ao desejo e, por isso, com esse amor amam-se as mulheres e os mancebos; com o amor celeste, só se amam os rapazes que já possuem entendimento, pois este é o amor da alma.

Erixímaco (médico) concorda com distinção dos dois tipos de amor; no entanto, o amor não existe só nos homens, mas em todo o mundo natural como

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inclinação para outros objectos. Entende o amor como “tendência”, afirmando por isso que existe um amor no corpo são e outro no corpo doente. O amor seria um poder universal.

Aristófanes (o cómico), por sua vez, conta o mito do Andrógino: o ser humano era composto por um homem e uma mulher, embora houvesse alguns compostos por dois homens e outros compostos por duas mulheres. Neste sentido, o amor seria a busca da “outra metade”. Obviamente, esta concepção conservadora do amor, que o identifica com a instituição social do casamento, não era a que mais convinha aos personagens do Banquete.

Ágaton (que ganhou o prémio do melhor discurso) contradiz Fedro, defendendo que o amor é o mais jovem dos deuses e, para alem disso, delicado. As virtudes do amor seriam as seguintes: o amor participa da justiça, da temperança, da valentia e da sabedoria7.

Finalmente, chega a vez de Sócrates que explica o que lhe disse a ele Diotima: o amor é tendência para, e, portanto, para algo de que carece, que lhe faz falta.

Assim sendo, o amor não é bom nem é belo; mas também não é mau nem é feio. É um intermediário entre os deuses e os homens: um daimon. “A divindade não contacta directamente com o homem, mas é através deste género de seres que têm lugar todo o comércio e todo o diálogo entre os deuses e os homens”. O emparelhamento que faz Sócrates entre o amor e a sabedoria põe em causa Alcibíades, que tinha de ser muito ignorante para não ser consciente da sua própria ignorância.

3.3.3 A República

O objecto da República (mais correctamente, Politeia) é o chamado desafio de Gláucon: fazer a defesa da justiça. Glaucon e Adimanto constatam que ninguém, alguma vez, provou que a injustiça fosse o maior de todos os males, nem a justiça o maior de todos os bens. É isto que pedem a Sócrates que prove.

Sócrates não inventa nenhuma utopia, mas propõe que se imagine a génese de uma grande cidade.

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Começamos por uma pequena cidade ou aldeia que vive em paz e justiça. A cidade cresce com o aparecimento do luxo e da riqueza, ou, dito de outro modo: com a possibilidade dos prazeres sem limite (o fluir, a díade indefinida). O indicador deste crescimento é a necessidade de guardiães. Uma cidade pequena (“de porcos”, em grego8) não precisa de guardiães, mas uma cidade grande precisa deles. O problema do crescimento consiste, então, no perigo de esses guardiães se tornarem nos lobos da própria cidade, se não forem convenientemente educados. A educação dos guardiães é a purificação da cidade grande.

Apresenta depois a semelhança entre a alma humana e a justiça, entendida como a boa administração: a virtude dos produtores é a temperança; a virtude dos guardiães tem de ser a coragem e a dos filósofos é a prudência. A justiça da cidade consiste em que cada parte faça o que lhe corresponde de forma harmónica. Importa destacar que Platão não faz qualquer divisão de classes sociais; estabelece simplesmente uma tipologia humana: os homens motivam-se por coisas

diferentes, o dinheiro, a honra ou prémios, e a sabedoria.

Platão não afirma que esta é a única tipologia possível. Podemos encontrar muito mais motivações para a acção humana, por exemplo, a paixão amorosa. O que acontece, segundo Platão, é que esta tipologia é a mais interessante, pois são estas paixões que dão forma à cidade: a produção é indispensável e a protecção da cidade grande também. Mas a predominância de qualquer uma destas paixões deformaria a cidade.

Tanto as paixões como os desejos não podem, nem devem, ser eliminados da cidade (corresponderia a eliminar a riqueza ou a segurança), mas devem ser guiados pela sabedoria, para que não se destrua a coesão. Sobre esta tipologia, falar-se-á com mais pormenor à luz da interpretação do Fedro, porque é nesta obra que ele nos explica com o “que é que se parece a alma humana”.

No início do livro sétimo da República, encontramos a magistral conjugação das questões essenciais da filosofia: o Mito da Caverna. Não é possível

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acrescentar nada aos rios de tinta que já foram escritos sobre este tema. Mesmo assim, alguns aspectos merecem ser salientados.

Em primeiro lugar: este mito não é um mito sobre a Teoria do Conhecimento. Antes de mais, porque a Teoria do Conhecimento não corresponde a nada, antes do século XIX. Depois, porque se insere no contexto de um debate sobre a justiça. Finalmente, porque Sócrates diz explicitamente que pretende explicar a situação do homem “relativamente à educação e à falta dela”. Isto é, este mito é sobre a educação, ou, o que é o mesmo, sobre a transmissão da virtude, tema verdadeiramente nuclear da filosofia platónica, que considera a educação como a acção política mais importante dos humanos.

O interior da caverna reproduz o mundo da opinião construída a partir de imagens e de crenças. As imagens são fabricadas por outros indivíduos que transportam objectos à luz do fogo. Na Grécia de Platão, os fazedores de imagens são, para além de alguns poetas, fundamentalmente os sofistas, contra

quem Platão se bate pela ocupação do espaço de transmissão da virtude.

A imagem de escravos, num mundo irreal feito de imagens e opiniões, não nos deveria parecer tão estranha como pareceu a Glaucon. Não nos deveria parecer estranho, a nós que vivemos no mundo da opinião pública, das sondagens, das campanhas de marketing, de consciência cívica e de educação para a saúde, etc.

O dilema que aparece no mito é o eterno dilema da humanidade: a tripla batalha entre o conhecimento, a liberdade e a felicidade. Não podemos ser livres, se não conhecemos a nossa situação (isto é: o que realmente escolhemos, quando acreditamos estar a fazer opções), mas, por outro lado, para poder conhecer, já temos de ser um pouco livres (como o primeiro escravo que se liberta das correntes). A pergunta que nunca passa de moda é a que nos leva a procurar saber se estamos dispostos a trocar a nossa ignorante felicidade pela simples aspiração a uma (possível) felicidade mais elevada, sabendo que corremos o risco de perder tudo.

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3.3.4 O Fedro: A Transmissão da Virtude como Acção Política.

A tese, defendida neste texto sobre a filosofia de Platão, é a de que a questão da transmissão da virtude é o núcleo central de todos os diálogos platónicos e é o que os torna mais inteligíveis9.

Como já vimos no Ménon, Platão parte da posição situada no extremo contrário à dos sofistas: o conhecimento não pode ser objecto de comércio, uma vez que só ocorre no interior daquele que conhece e não é independente das suas capacidades nem da sua vontade. O facto de que um escravo (que não possui nada, mas tem capacidade de esforço) seja mais capaz de conseguir compreender uma dedução matemática do que um rico ateniense, possuidor de muitos cursos de sofistas, mas incapaz de esforço intelectual, mostra-nos que a incapacidade para o esforço não é inata: chama-se preguiça. De facto, o conhecimento matemático, que é sempre o exemplo do conhecimento para Platão, só fica ao nosso

alcance quando nós próprios “vemos” aquilo que se nos quer fazer entender. Esta visão interna do indivíduo, que requer esforço e treino, não pode ser comprada por nenhuma quantia de dinheiro.

Podemos, agora, entender com mais clareza o que é que está a querer saber Platão, quando se questiona sobre a possibilidade de transmissão da virtude. Após o que acabamos de dizer, poderíamos optar simplesmente por pensar que a virtude não pode pura e simplesmente ser transmitida. Mas a verdade é que há mecan i smos ps i co lóg i cos e me ios de comunicação, de que os sofistas estavam bem conscientes, que podem tornar a virtude desejável, digna de apreço e de ser praticada. Estes mecanismos são fundamentais para manter ou alterar a ordem política. A Platão, como pensador político, não passa despercebida a ideia de que a ordem política só pode ser construída sobre uma eficiente transmissão da virtude. De facto, a transmissão dos sofistas era, em geral, eficiente, já que conseguiam aquilo que se propunham alcançar. Só que, para Platão, a concepção sofista da virtude era uma

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concepção degradada que cons t ru ía uma comunidade, baseada na força e não na harmonia.

A pergunta de Platão, sobre a possibilidade de transmissão da virtude, não está, de forma nenhuma, fora de moda. Pelo contrário, o debate nos tempos actuais sobre a educação para os valores corresponde à mesma preocupação fundamental: como se transmite a virtude? No entanto, tudo parece indicar que a resposta a esta pergunta, no nosso tempo, como em todos, deve ser bem mais prudente do que o que por aí se diz e se faz com muita frequência.

É neste contexto que devemos situar a tão famosa quanto mal compreendida critica de Platão à democracia. A objecção que Platão apresenta à democracia (não esqueçamos que foi a democracia ateniense que executou Sócrates) não é nada que não seja do nosso conhecimento: a democracia facilmente se torna em demagogia10, quando a palavra é objecto de comércio e de manipulação. Todos sabemos que, actualmente, nenhum partido consegue ganhar eleições “democráticas” sem um acordo prévio (tácito ou explícito) com alguns meios de comunicação de

massas e sem despesas exorbitantes em “campanhas eleitorais”.

A este respeito, poder-se-á objectar se não estamos a confundir dois domínios separados, a ética e a política. Mas precisamente esta é a grande descoberta de Platão: a impossibilidade de separar a ética da política. Na sua opinião, caso a virtude fosse transmissível e fosse possível a existência de uma cidade mais ou menos justa, tal situação não resultaria simplesmente de ter boas leis e boas instituições. A justiça é, antes de tudo e sobretudo, uma virtude da alma humana. Não pode haver uma cidade justa composta por homens injustos.

Mas, afinal, o que é a justiça para Platão? Tal como para Aristóteles, a justiça é uma questão matemática: fazer cada um aquilo que lhe é adequado, isto é, equidade e retribuição mútua. Embora Aristóteles só proponha uma via ao homem, por, no seu entender, a humanidade ser a mesma coisa para todos, Platão, muito mais pragmático e conhecedor da política concreta, propõe diferentes vias para a justiça. Isto é: segundo Platão, poderia acontecer que fosse pedir

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demasiado que todos os homens aspirassem à perfeição. Assim sendo, o que deverá fazer-se é pedir a cada um aquilo que possa dar à comunidade e dar a cada um aquilo que queira obter dela. Isto será a justiça para Platão.

Para sabermos o que é adequado a cada homem, é necessário que os classifiquemos, isto é, é necessário que procedamos à classificação das almas dos homens.

Tendo essa classificação uma clara intenção política, as suas consequências podem ser encontradas na organização da cidade proposta na Politeia (República). No entanto, a fonte, onde podemos encontrar a sua concepção da alma, é o mito do carro alado explicado por Sócrates no diálogo Fedro.

Interpretemos, então, o mito. Os grego concebem a vida como auto-movimento e a alma como o princípio desse auto-movimento vital. A alma é, assim, como que o “motor” do corpo, se por movimento entendermos qualquer mudança (crescimento, aprendizagem, etc.). Para entender a alma, temos de a decompor nos seus elementos. Entre esses

elementos, deve haver “forças” ou “motores” que serão as causas dos impulsos, isto é, daquilo que tem o poder de mover o homem.

Segundo Platão, o homem move-se por dois impulsos básicos: os desejos e as paixões. Os desejos, aquilo que mais nos aproxima dos animais (embora, pela sua plasticidade, sejam muito diferentes dos impulsos e instintos animais) relacionam-se com a materialidade do nosso corpo: impulsos sexuais, fome, etc. Os desejos é o que é representado, no mito, pelo “cavalo negro”. Por outro lado, também somos movidos por paixões: o amor, o ódio, a glória, o sucesso, a riqueza.... Por fim, há um terceiro princípio na alma: o condutor ou áuriga, que não tem força nenhuma, só a capacidade de ver. Por isso, a sua única missão é a de conduzir, guiar o carro o mais alto possível, mas em harmonia, evitando a ruptura da parelha de cavalos. Este terceiro princípio da alma é a forma platónica de entender a sabedoria.

Nesta perspectiva, haverá que reconhecer que Platão não é em absoluto um racionalista, como muitas vezes tem sido qualificado, uma vez que, para ele, a razão

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(logos) carece de força própria e depende tanto dos desejos como das paixões, que lhe emprestam as suas forças não destrutivas ou paralisantes, para conduzir os homens.

Importa agora explicar a diferença entre desejos e paixões e por que é que Platão considera a paixão um princípio positivo (que nos ajuda a ir mais alto) e considera o desejo um princípio negativo (que nos faz rastejar).

A diferença é, muitas vezes, subtil. Por exemplo, o desejo sexual é simplesmente isso mesmo: desejo; pelo contrário, o amor é uma paixão. Mas será realmente tão fácil distingui-los? Do mesmo modo, enquanto todos os vícios resultantes de uma excessiva subordinação ao corpo (como a gula) são desejos, já a subordinação àquilo que nos permite usufruir desses vícios (o dinheiro) é uma paixão. Como poderemos, então, estabelecer diferenças e hierarquias entre eles?

Por desejo, devemos entender toda a inclinação ou tendência imediata para algo. Aqui, a palavra chave é “imediata”. O desejo não é auto-consciente, é um

simples impulso, que não contém em si os seus próprios limites: assim, quando temos muita fome, tendemos a servir-nos de mais comida do que a que somos capazes de comer (ter mais olhos do que barriga) e muito mais do que a que nos convém comer. O mesmo acontece com todos os desejos. A imagem de Platão para o desejo é a de fluxo. Os desejos são um fluxo interminável, incapaz de refrear-se a si mesmo e que só nos pode conduzir à doença, à pobreza e, em geral, à infelicidade.

A imagem de fluxo também é correcta num outro sentido. Os desejos só o são de um objecto determinado, até que sejam saciados. Isto implica que, para manter viva a chama do desejo, que pode ser muito facilmente confundida com a chama da vida, temos de mudar continuamente o objecto do desejo. Em termos hegelianos, diríamos que o desejo só é, no fundo, desejo de desejar (para sentir-se vivo).

É aqui que aparecem as paixões, por uma superação dialéctica. Neste sentido, a paixão supera o simples desejo.

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As paixões são também uma força que, não sendo controlada, nos pode conduzir às piores desgraças. Mas têm algo a seu favor: a capacidade de sacrifício. Com efeito, se para alguém é muito importante ser o primeiro em algo (paixão pelo sucesso), terá de ser capaz de se sacrificar para o conseguir. Isto é o que a paixão tem de bom e, por isso, ajuda-nos a subir mais alto, porque contém em si a capacidade para o esforço, que, como vimos, é fundamental para a transmissão da virtude. Aquele que não seja capaz de se sacrificar por nada, que não tenha paixões, não alcançará nunca a virtude.

No entanto, embora, na sua componente sócio-comunitária, a virtude seja desejada e apreciada pela generalidade das pessoas, ela será sobretudo procurada por aqueles que queiram triunfar na vida. Mesmo que a virtude não seja desejada por si mesma, mas pelo respeito e admiração que inspira nos outros, a verdade é que ela será de qualquer modo muito útil para a convivência social sem que, só por isso, se constitua num bom princípio moral. Dito de outro modo: o respeito pelo que “seja dito” a respeito dos

nossos actos é fundamental para uma vida harmonizada na sociedade; perdendo-se este respeito (sentimento de vergonha ou de culpa), a sociedade estará perdida; se, para além de respeitarmos o “que possa ser dito”, nos apropriarmos da virtude pública como algo “apreciável em si mesma”, então ela surgirá em todo o seu esplendor. Assim pensa Platão. Por isso, faz representar as paixões pelo cavalo branco. Este princípio, comandado pelas paixões, poderia parecer politicamente conservador, se não se desse o caso de Platão o submeter ao auto-conhecimento, ao conhecimento de si mesmo.

À Razão compete, por conseguinte, conduzir as paixões com moderação e sabedoria, conjugando-as com o desejo, de modo a que a parelha de cavalos se mantenha coesa e que, em resultado disso, seja mantida a aspiração à perfeição.

Nesta descrição relata-se o que seria o ideal, segundo Platão, no entanto o seu pragmatismo leva-o a reconhecer que são poucos os que aspiram à verdadeira perfeição como algo desejável por si mesmo. Segundo a classificação de Platão, a cada

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parte da alma corresponde uma tipo de homem. Há, portanto, homens guiados prioritariamente pelo desejo, há homens prioritariamente guiados pelas paixões e há homens prioritariamente guiados pela sabedoria. Consistindo a justiça em que cada um faça aquilo que lhe é próprio, esta tipologia de Platão conduz a uma divisão política da comunidade. Esta divisão não é estática, consiste num equilíbrio dinâmico que resulta precisamente do facto de o problema central da comunidade, o principal problema político, ser precisamente a transmissão da virtude. É por esta razão que o Mito da Caverna é tão determinante para a compreensão de toda a filosofia de Platão.

Vejamos agora como é que o esquema de forças, que movem a alma, pode ser expresso de outro modo, uma vez que constitui o núcleo central do que mais tarde (na época moderna, sobretudo com Kant), será chamado o problema da vontade. Para que haja algo a que possamos chamar vontade, são necessários três elementos:

1. Desejos ou apetites. O desejo, uma vez que, em última análise, deseja sempre tudo, constitui-se como um fluxo incessante e indeterminado. Os desejos constituem a base do nosso querer, e a sua satisfação proporciona-nos a felicidade mais imediata.

2. Mas, precisamente em resultado da sua indeterminação (o querer sempre tudo), precisam de algo que os determine: temos de renunciar a algumas coisas para conseguir outras. A satisfação dos nossos apetites, muitas vezes (na realidade, quase sempre), requer esforço. A esta capacidade de nos sacrificarmos por algo é aquilo a que se chama força de vontade, representada pelo cavalo brando no mito de Platão. Em resumo: quem tudo quiser e não for capaz de fazer o menor sacrifício para conseguir alguma coisa, aposta em todos os números que garantidamente não lhe darão nunca a sorte grande. Ao processo que nos permite fazer opções, abdicando de alguns dos nossos

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dese jos , chama-se, nos d ias de ho je , determinação da vontade.

3. Por fim, à razão compete mediar as duas forças anteriores. Temos de decidir sobre quais os objectivos que são mais viáveis ou plausíveis e quais os que são uma verdadeira loucura. A vontade é livre, se a decisão da razão estiver acima das duas forças (desejos e paixões) e se as puder contemplar a uma certa distância. Fique, todavia, bem claro que quando se fala de razão, em Platão, não nos estamos a referir ao mero cálculo (deliberação), mas a uma faculdade que nos permite discernir sobre os objectivos mais cabais. Para Platão, como para outros filósofos (sobretudo Kant), a razão é o verdadeiro critério da virtude, e não o benefício ou o prejuízo de uma escolha.

Nesta ordem de pensamento, porque, para Platão, nem todos os homens se encontram no mesmo nível de virtude ao mesmo tempo, e alguns nem sequer ambicionam a perfeição, podemos classificar os indivíduos em função precisamente da situação em

que se encontram face à virtude. Deste modo, entende ele, será possível fazer a justiça na cidade, respeitando cada um.

Há indivíduos, em que predomina claramente o fluxo dos desejos e a incapacidade para o sacrifício. Estes indivíduos são felizes como consumidores. Neles, e no facto de constituírem a maioria, baseia-se o consumismo da sociedade, do tempo de Platão, como do nosso (ainda que o do nosso tempo seja muito distinto). A estes consumidores não podemos pedir que se sacrifiquem pelo bem comum, só lhes podemos pedir que produzam aquilo que consomem. Por outro lado, a estes indivíduos não lhes interessa a política (o governo do que é comum), a não ser que vejam nela uma oportunidade de negócio. Por isso, segundo Platão, é preferível mantê-los afastados da actividade política. Platão chama a este grupo os produtores, por estas mesmas razões. Não devemos ver nesta classificação nada que se pareça sequer com uma divisão de classes sociais. O conceito de classes sociais é moderno e não se aplica à antiguidade; por outro lado, o conceito de produtores

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de Platão, aplicado ao nosso tempo, seria seguramente transversal a todas as classes sociais, uma vez que se refere a indivíduos dominados pelos desejos e pela incapacidade para o sacrifício.

Um outro grupo de pessoas aspira, acima de tudo, a ser reconhecido; esses buscam a honra, a fama, a glória, o êxito. Se deixássemos o governo da cidade nas suas mãos, seriam tanto ou mais perigosos do que os anteriores, como acontece nas ditaduras militares, porque não hesitariam em inventar guerras só para poderem ser condecorados, como diz Platão. No entanto devemos reconhecer neles a capacidade para sacrificarem todos os seus desejos, a própria vida, se for caso disso, para salvar a comunidade. Por isso, Platão acha que devem ser os guardiães da cidade.

O ideal, já o vimos, consiste no equilíbrio entre as duas forças da alma, sob o comando da razão. Filósofo é aquele que é capaz de sacrificar os seus desejos e as suas paixões em nome do conhecimento “simplesmente porque sim”. Só aquele que assim governa a sua alma tem capacidade para governar a

cidade. O bom governo implica a manutenção do equilíbrio dinâmico entre as duas forças opostas: os produtores e os guardiães. Este equilíbrio consegue-se, dando-se a cada um aquilo de que necessita e só lhe pedindo aquilo que possa dar à comunidade.

Observemos, de passagem, que, segundo Platão, deve aceder ao poder aquele que não o deseja nem o quer, uma vez que será o único que não converterá a cidade num grande mercado ou numa praça militar.

Sobre o que diz no Fedro, a respeito da transmissão da virtude, ainda há um assunto que merece destaque: o papel da escrita.

O Fedro é um dos documentos essenciais11 para compreender a critica de Platão à escrita. É também aquele que é muito referenciado pela escola de Tübingen para situar o diálogo no contexto da filosofia de Platão como tarefa filosófica. A critica que se faz neste diálogo, através do mito de Teut e Tamis, segue a linha já esboçada no Ménon: as palavras podem ser muito atraentes; pode haver indivíduos que devorem livros como quem devora manjares (este parece ser o perfil de Fedro); mas a partir do momento em que a

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palavra pode ser comprada e vendida, objecto de troca, de luxo ou de moda, fica difícil conseguir que essa palavra nos conduza ao conhecimento interior. A palavra, por si só, não consegue defender-se do mau uso que possa ser feito dela.

Esta cr i t ica é uma pista fundamental para entendermos como devem ser lidos os diálogos platónicos: nenhum dos personagens é a voz oculta de Platão; pelo contrário, Platão obriga-nos a jogar o jogo que está a ser jogado, obriga-nos a fazer um esforço para ver para além do que é mostrado.

3.4 Os Últimos Diálogos de Platão e as Doutrinas não Escritas

Os diálogos Timeu, Leis, Político, Teeteto, Sofista, Parménides e outros costumam ser considerados como pertencentes à última etapa de Platão.

A tradição saxónica utilizou a estilometria para pôr em evidência as supostas contradições com o conteúdo de outros diálogos anteriores. Já nos referimos a isto.

Só falta dizer que estes últimos diálogos tornam-se especialmente ricos se, em vez de procurarmos contradições, procurarmos uma aproximação com as doutrinas ensinadas por Aristóteles, supostamente ensinadas por Platão na Academia.

Segundo Aristóteles, os princípios platónicos seriam o Uno e a Díade Indefinida.

Tentemos, então interpretar estes últimos diálogos, à luz das doutrinas não escritas, tal como o fazem os hermeneutas da Escola de Tübingen.

Antes de mais, é conveniente esclarecer que a dualidade originária de princípios em Platão, contém suficiente rigor para não cair na duplicação de um hipotético Uno originário (como acontece no Neoplatonismo). O princípio oposto à multiplicidade (díade indefinida do grande e do pequeno) não é entendido com contrário à unidade, mas como contraditório, isto é, como não unidade, como indeterminado e ilimitado...

Neste sentido, os princípios participam em conjunto no ser, de um modo idêntico a como o fazem a matéria e a forma em Aristóteles.

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Por outro lado, estes princípios explicariam a concepção dialéctica de Platão:

➡ Uma dialéctica positiva: todas as coisas têm determinações, portanto são unas.

➡ Uma dialéctica negativa: Todas as tentativas de reduzir a coisa à sua determinação serão infrutíferas. Isto é: não é possível encontrar, de facto, a unidade que, de direito, deve existir.

Embora a Escola de Tubingen tire muito mais partido destes princípios, pela nossa parte limitar-nos-emos a assinalar que, tendo-os presentes, diálogos como o Parménides, incompreensíveis para uma boa parte da critica, adquirem muito mais sentido.

Para Platão, o Uno é tanto medida, como limite e norma. Deste modo, pode também ser identificado com o Bem que surge no mito da caverna como causa de tudo o que é. Quer isto dizer que o Bem já não é uma ideia, mas um princípio das Ideias, que está para além do ser.

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Capítulo 3

Leitura Ontológica do BemA compreensão do Bem (isto é: da perfeição) é tão importante para fazer bons carros como para construir boas comunidades.

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4. Leitura Ontológica do Bem

Embora tenha sido assumido, desde o princípio, que este texto se orientaria pela noção platónica de “justiça”, não seria correcto esquecer que uma enorme quantidade de leituras da obra de Platão partem de uma perspectiva ontológica.

Por isso, poderia parecer que este texto estaria a “desfigurar” a obra de Platão ou a evitar os elementos mais complexos e mais ricos do seu pensamento. Não é essa, em todo o caso, a minha opinião. O que acontece é exactamente o cont rá r io : nas interpretações ontológicas, o Bem da República é uma espécie de “reducionismo moral ou político” de Platão. Não se entende muito bem como pode um princípio moral ser o fundamento do que há (“a causa das estações do ano...”). Pela nossa parte, deixaremos àqueles que assim interpretam Platão o encargo de provar que a principal preocupação da sua obra é ontológica e que o moral e o político é algo assim como que “deduzido”, à maneira dos sistemas filosóficos do século XIX.

A tese aqui defendida é a de que o Bem é um princípio puramente ontológico, sem deixar, por isso, de ser moral ou político.

Vejamos então:

Antes de mais, coloquemos entra parêntesis as nossas actuais divisões e classificações que entendem que “o moral”, “o político” e “o ontológico” seriam ramos diferentes do saber. Recordemos que a palavra “bem”, no seu sentido ontológico, por acaso, é uma palavra que usamos ainda nesse sentido. Quando dizemos de algo, por exemplo, que “é um bom carro”, não nos estamos a referir aos seus valores morais, mas a coisa muito diferente: que cumpre perfeitamente a missão para que foi fabricado. Pelo contrário, um “mau carro” é aquele que acaba por não cumprir essa função. Um mau carro não deixa de ser um carro-carro, é simplesmente um carro que não presta. A expressão duplicada (“carro-carro” também é de uso acertado na nossa língua: uma maçã-maçã é uma maçã que tem todas as qualidades que deve ter. Utilizando agora a linguagem platónica, poderíamos dizer que só o triângulo matemático é

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triângulo-triângulo no seu sentido estrito, uma vez que todos os triângulos matérias têm sempre algo de imperfeito.

Por isso, a compreensão do Bem (isto é: da perfeição) é tão importante para fazer bons carros como para construir boas comunidades. Se hierarquizarmos estas coisas, chegaremos à conclusão de que é prioritário construir boas comunidades, porque, só neste contexto, podemos saber, mais para além do que é um bom carro, se os carros, em si, são bons.

Em jeito de conclusão, como foi dito no princípio, de acordo com a perspectiva de Jan Patocka, em Platão só há uma coisa, o cuidado da alma, que supõe tanto um projecto ontológico, como um projecto ético e político. Só a abstracção formal de um pensamento analítico os pode separar.

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Secção

1. CORNFORD,F.M.: La Teoria platónica del conocimiento, Ed. Paidós, Barcelona, 1983

2. PATOCKA, J.: Platon et l’Europe, Lagrasse: Ed Verdier, 1983

3. ROSEN, S.: Hermenutics as Politics. Odeon/Oxford University Press, 1987

4. SALE, J.: L’Ensenyament Platónic I: figures i desplaçaments. 1992

Bibliografia

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