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5 DA REVOLUÇÃO ESCRAVA À MINUSTAH - A CONSTANTE VIOLÊNCIA POLÍTICA E A MILITARIZAÇÃO DA SOCIEDADE HAITIANA Uma análise da formação de grupos insurgentes como consequência dos ciclos de construção, destruição e reconstrução do Estado Haitiano Bruno Alcântara Conde da Silva Luis Adriano Castanho Vieira Junior Victória Albuquerque Silva Yuri Andrade de Sena 1 O mundo colonizado é um mundo cortado em dois. A linha divisória, a fronteira, está indicada pelos quartéis e as delegacias de polícia. Nas colônias, o interlocutor válido e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o gendarme ou o soldado. (...) O intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. (...) O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado. Frantz Fanon 2 1 Gostaríamos de agradecer ao mestrando Nelson Veras, do Departamento de História da Universidade de Brasília na frente de política, instituições e relações de poder, pelas valiosas sugestões, observações e críticas durante o processo de elaboração deste artigo. 2 Os Condenados da Terra, (p. 33).

DA R E VOL U Ç Ã O E S C R A VA À M I NU S T A H - A C ONS ... · estratificação da sociedade colonial “sendo composta por uma população de 480.000 negros, a de mulatos e

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5 DA REVOLUÇÃO ESCRAVA À MINUSTAH - A 

CONSTANTE VIOLÊNCIA POLÍTICA E A MILITARIZAÇÃO 

DA SOCIEDADE HAITIANA  

Uma análise da formação de grupos insurgentes como consequência 

dos ciclos de construção, destruição e reconstrução do Estado Haitiano  

Bruno Alcântara Conde da Silva 

Luis Adriano Castanho Vieira Junior 

Victória Albuquerque Silva 

Yuri Andrade de Sena  1

 

O mundo colonizado é um mundo cortado em dois. A linha divisória, a fronteira, está indicada pelos quartéis e as delegacias de polícia. Nas colônias, o interlocutor válido e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o gendarme ou o soldado. (...) O intermediário do poder utiliza uma linguagem de

pura violência. (...) O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado. Frantz Fanon  

2

1 Gostaríamos de agradecer ao mestrando Nelson Veras, do Departamento de História da Universidade de Brasília na frente de política, instituições e relações de poder, pelas valiosas sugestões, observações e críticas durante o processo de elaboração deste artigo. 2 Os Condenados da Terra, (p. 33).

 

Da Revolução Escrava à Minustah

1. INTRODUÇÃO 

Os ideais de política, Estado e estabilidade social permanecem ligados à ideia de soberania desde a formação do Estado moderno ocidental. As teorias das Relações Internacionais tradicionalmente atribuem essa associação ao pacto europeu firmado na Paz de Vestfália, tratados firmados em 1648 que acordaram o fim da Guerra dos Trinta Anos, conflito que teve por motivações as diferenças religiosas entre protestantes e católicos no Sacro Império.

Segundo esse modelo, os Estados teriam soberania dentro do território delimitado por suas fronteiras e teriam autoridade política máxima sobre quem habitasse ali dentro. No século XX, o sociólogo Max Weber, observando a crescente burocratização dos Estados ocidentais, sofisticou essa definição e passou a entender o Estado como o agente monopolizador do exercício da violência legítima dentro de uma sociedade, sendo esta definição conhecida como “conceito weberiano de Estado”. Contudo, à medida que afastamos a análise dos países europeus e vislumbramos aqueles denominados países periféricos no sistema internacional, entramos em contato com realidades em que há um Estado formalmente constituído, mas que muitas vezes não é a instituição de autoridade máxima naquele território.

O objetivo deste artigo é, portanto, analisar os contextos político, econômico e social da República Haitiana que dificultaram a construção da legitimidade do Estado perante a sociedade civil e a comunidade internacional, o que serviu de fundamento para a Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (MINUSTAH) pelo Conselho de Segurança da ONU. Para tanto, dividiremos o texto em três partes: (i) Da Revolução Escrava à Ditadura Duvalier; (ii)

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Da Revolução Escrava à Minustah

Fraqueza do Estado e Parâmetros de Análise; (iii) De Aristide à Crise dos anos 2000.

2. DA REVOLUÇÃO ESCRAVA À DITADURA DUVALIER: BREVE               

RECAPITULAÇÃO HISTÓRICA 

O Haiti é um país insular, localizado na América Central, e divide a ilha de Hispaniola com a República Dominicana. Ao norte, é banhado pelo Oceano Atlântico, e ao sul, pelo Mar do Caribe. Sua população é de 10,6 milhões de habitantes, composta por uma maioria de negros (95%) e uma minoria de brancos e mestiços (5%). Os idiomas oficiais são o creole e o francês, e sua capital se denomina Porto-Príncipe (Port-au-Prince). Considerado o país mais pobre das Américas, o Haiti apresenta o mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano da região (0,493). A economia haitiana tem por base a exportação de gêneros agrícolas como açúcar, café e cacau, sendo que dois quintos de sua população subsiste da produção agrícola familiar. (THE WOLRD FACTBOOK)

2.1. Divisão da ilha de Hispaniola e o estado de pré-revolução 

A Região do Caribe, durante o século XVI, foi uma das principais frentes da colonização espanhola sobre a América, mas no século seguinte o foco se direcionou às colônias do México e da região do Peru. As atividades de exploração da ilha de Hispaniola foram bastante reduzidas, de forma que os assentamentos coloniais dali funcionavam mais como um entreposto comercial do que como uma colônia. Nesse mesmo momento, a companhia francesa das Índias Ocidentais investiu na ocupação da costa de Hispaniola, a partir da ilha de Tortuga. No ano de 1697, através da assinatura do

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Tratado de Ryswick, a Espanha cede à França a colonização da porção oeste da ilha, acordo este que é ratificado no Tratado de Aranjuez, assinado em 1777. (CHAVES JR., 2005)

Imagem 2: Linha fronteiriça segundo o Tratado de Aranjuez, de 1777. (http://iasespaniola.weebly.com/tratados.html. Acesso em 13 de junho de 2018)

A porção oriental da ilha, com área de dois terços do total do território insular, permaneceria sob domínio espanhol, e o terço restante seria concedido à França. Tendo em vista que a ilha também era conhecida como Ilha de São Domingos, cada uma das metrópoles denominou sua porção da ilha com o equivalente em seu idioma, sendo a colônia espanhola chamada de “Santo Domingo”, que veio a originar a República Dominicana, e a colônia francesa, Saint-Domingue, futuro Haiti. Na administração de Saint-Domingue, a França adotou uma postura de maior investimento na estrutura de produção colonial, que consistiu basicamente em incentivos ao aumento da produção de açúcar, compra em massa de pessoas escravizadas da África e uma política voltada para o mercado externo. Essa política se mostrou singularmente rentável para a metrópole, de forma que, a partir de 1720, Saint-Domingue era a colônia que mais produzia açúcar no mundo. Moya Pons (1977, p.

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122) assinala que “em 1789 as exportações francesas totalizaram 17 milhões de libras esterlinas, dos quais 11 milhões foram dedicados ao comércio colonial de Saint Domingue”.

Todavia, o sucesso econômico estava atrelado a uma estrutura social instável. Chaves Jr. (2005, p. 67) ilustra a estratificação da sociedade colonial “sendo composta por uma população de 480.000 negros, a de mulatos e homens livres chegava a 60.000 e os brancos, principalmente os franceses, eram cerca de 20.000.” Ao mesmo tempo em que Saint-Domingue era conhecida como a “Pérola do Caribe”, o regime colonial impunha condições desumanas para os escravos que trabalhavam submetidos ao sistema de plantation (CHAVES JR., 2005). 3

Essa situação seria radicalmente alterada a partir da deflagração da Revolução Francesa em 1789. Os ideais iluministas atravessaram o Atlântico fazendo crescer a demanda dos negros escravizados pela liberdade, ao mesmo tempo em que os franceses donos de terras, ainda que monarquistas, adotavam uma postura relativamente peculiar. Enquanto ansiavam por autonomia política e seu estabelecimento como autoridade máxima da colônia, os latifundiários brancos não estavam dispostos a aceitar o pleito da abolição da escravidão, o que os levou posteriormente a se aliar à Inglaterra. Entre esses dois grupos havia também a classe dos mulatos libertos, cujos interesses consistiam na concretização da igualdade política prevista cem anos antes, no Código Negro de 1685. Tendo em vista que os detentores do poder político em

3 Plantation é o nome dado a um modelo de organização econômica em que se destacam quatro aspectos principais: latifúndio, monocultura, mão-de-obra escrava e produção voltada para a exportação. Foi muito utilizado na colonização das Américas. O termo "plantation" define um sistema econômico agrícola e não deve ser interpretado como uma simples tradução de "plantação" (ANGELO, 2009).

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Saint-Domingue eram os latifundiários e as autoridades coloniais, a estratégia mulata se via limitada às vias diplomáticas de negociação. (CHAVES JR., 2005)

2.2. A Revolução Haitiana 

Em 1791, porém, ocorre uma rebelião negra, em que os escravos nas fazendas açucareiras assassinaram os senhores que os oprimiram e destruíram as plantações. Os efeitos desses movimentos implicaram em nova agitação política em Saint-Domingue. Bushneil (2010) ilustra uma

divisão de forças sociais, de escravos rebeldes contra os latifundiários brancos e os petit blancs (pequenos brancos), constituindo a principal ambiguidade no papel decisivo dos mulatos, que se sentiam prejudicados pela ordem pré-revolucionária, mas eram reticentes quanto a se aliar com os escravos, entre outras razões por seu sentimento de superioridade frente a estes (BUSHNEIL, 2010, p. 4

29, tradução nossa).

Passados dois anos de instabilidade na colônia, resultante do alastramento da revolta escrava, as autoridades coloniais enviaram emissários com o objetivo de restabelecer a ordem e os interesses metropolitanos sobre a ilha. A posição dos rebeldes com relação ao governo revolucionário francês era dividida: para parte deles, a chegada dos oficiais da metrópole representava verdadeiro risco à sua liberdade, enquanto a outra parcela acreditava que conseguiria

4 Tradução livre. Versão original: “una división de fuerzas sociales, de esclavos rebeldes contra los plantadores blancos y los petits blancs o "pequeños blancos", consistiendo la principal ambigüedad en el papel decisivo de los libres de color, que se sentían agraviados por el orden pre revolucionario, pero vacilaban en hacer causa común con los esclavos, entre otras razones por su sentimiento de superioridad frente a ellos”.

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consolidar a nova situação através do apoio dos jacobinos e institucionalizar os seus pleitos políticos. Nessa situação, os comissários buscaram o suporte dos mulatos, através da concessão do direito ao voto, e dos negros escravizados, por meio da abolição da escravidão em 29 de agosto de 1793, medida aprovada pelo Parlamento Revolucionário seis meses depois (SCARAMAL, 2006).

Nos anos posteriores, entretanto, outros agentes se envolveram na situação grave pela qual passava o Império Francês. O Reino da Espanha e a Inglaterra, que declararam guerra à França Revolucionária, intervieram no processo revolucionário colonial. O primeiro realizou o envio de armamentos aos exércitos negros, a partir da fronteira com Santo Domingo, enquanto os segundos, apoiados por partes dos brancos e mulatos, buscaram a tomada da colônia para o seu domínio (SCARAMAL, 2006).

Nesse cenário, emerge a liderança de Toussaint L’Ouverture, um ex-escravizado alforriado que se tornou general militar no comando dos exércitos de negros. L’Ouverture se destacou como o único líder negro capaz de unir milhares de ex-escravizados contra as tropas inglesas. (CHAVES JR., 2005) Assim que houve a abolição da escravidão, Toussaint integrou as forças republicanas, mas, para conter a invasão inglesa, aliou-se às forças espanholas (SCARAMAL, 2006).

A liderança mulata, por sua vez, ganhou força política e militar com a expulsão dos ingleses das partes sul e oeste de ilha, de forma que uma de suas lideranças assumiu o controle da capital de Saint Domingue, Le Cap. Entretanto, assim que o governador-geral da ilha e partidário de Toussaint, demonstrou interesse em controlar a liderança mulata, a população que apoiava este não aceitou, o que adicionou um novo elemento para a Revolução: a divisão entre negros e mulatos (SCARAMAL, 2006).

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Em março de 1796, o exército de Toussaint, auxiliado pelo também comandante negro Dessalines, derrotou o de Villate e permitiu que Laveaux tomasse o controle de Le Cap. Em recompensa, L’Ouverture tornou-se a segunda autoridade da ilha, o que não foi bem recepcionado pela por parte da classe mulata que eram donas de plantações, proprietários de terras dos quais estavam desejosos pela volta da escravidão. As forças mulatas buscaram novamente se sobrepor às negras nos anos posteriores, sem sucesso, até que foram derrotadas decisivamente em agosto de 1800, com significante parte de suas lideranças sendo deportadas ou fugindo para Cuba e França (SCARAMAL, 2006).

Como líder político, Toussaint “não proclamou formalmente a independência política, mas as iniciativas autonomistas por ele converteram de fato Saint Domingue em um país independente, feito que imediatamente suscitou a intervenção armada da metrópole francesa” (SCARAMAL, 2006, p. 37). Para reorganizar a economia, o líder negro ordenou que os ex-escravos permanecessem trabalhando nas fazendas, em troca de alimentação e mais um quarto da produção, enquanto o resto seria dividido entre os proprietários do engenho e o governo. Finalmente, em 1801, Toussaint ocupou Santo Domingo, tendo em vista que a parte oriental da ilha havia sido cedida pela Espanha à França no Tratado de Basileia (1795). Em julho do mesmo ano, convocou uma Assembleia e aprovou a primeira constituição da ilha unificada, que o nomeou governador vitalício, sem consultar a metrópole. (SCARAMAL, 2006)

Em resposta, Napoleão Bonaparte enviou uma poderosa tropa, sob comando do General Victor Manuel Leclerc, seu cunhado, como parte de sua política visando recuperar o domínio sobre a colônia mais lucrativa do mundo até então. As tropas metropolitanas contavam com o apoio dos mulatos, mas perderam os conflitos para os exércitos dos libertos. Toussaint, porém, quando aceitou as

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propostas para negociação, foi capturado por Leclerc e enviado a uma prisão na França, onde faleceu em 7 de abril de 1803. A ilha seria novamente desmembrada, com a parte oriental ficando sob comando de Leclerc e a oriental sob outra liderança miliar. Leclerc restaurou a escravidão e promoveu um governo autoritário, o que ocasionou a rápida formação de uma resistência, liderada por Jean Jacques Dessalines (SCARAMAL, 2006).

Dessalines então trocou a bandeira tricolor da França por outra azul e vermelha, com o lema “liberdade ou morte”, e suas tropas promoveram a capitulação das tropas napoleônicas em novembro de 1803. Percebendo que a administração metropolitana não estava mais disposta a concessões, o comandante anunciou a independência do Haiti em 1º de janeiro de 1804 e, no ano seguinte, foi proclamada a Constituição do Império do Haiti. Como governante, porém, Dessalines perseguia opositores e promovia métodos violentos para lidar tanto com seus inimigos, quanto com os cidadãos do Haiti, de forma que, em 17 de outubro de 1806, como fruto de uma conspiração, os generais e o alto de escalão do governo realizaram uma emboscada e o assassinaram (SCARAMAL, 2006).

2.3. Século XIX e início do Século XX 

Henri Christophe sucedeu Dessalines na condição de oficial 5

mais antigo e se tornou o segundo chefe de estado do Haiti independente e comandante da parte norte do país. A legitimidade de seu governo, no entanto, foi rapidamente contestada pelos mulatos do sul e do oeste, o que ocasionou a divisão do país pelos próximos quinze anos entre um Reino na região Norte e uma República na

5 Também conhecido como “Henry Christopher” entre os historiadores provenientes da língua inglesa.

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região Sul. No primeiro, Christopher estabeleceu a monarquia, criou uma classe nobre negra e impôs uma economia agrícola fortemente militarizada, o que propiciou relativa estabilidade econômica e concentração do poder político. Na segunda, o líder mulato Alexandre Pétion teve seu poder rapidamente questionado pela população negra e, em resposta, o presidente realizou uma política de distribuição de terras. (TROUILLOT, 1990)

Os dois Estados tiveram pouca estabilidade. Assim que Christopher se suicidou e Pétion morreu, respectivamente em 1816 e 1818, o General Jean-Pierre Boyer assumiu o poder da República e reunificou o Haiti em 1822. Em seu governo, adotou uma política de beneficiamento dos mulatos e buscou reviver o sistema plantation de produção. No mesmo ano, realizou um ataque a Santo Domingo e reunificou a ilha, abolindo a escravidão na parte incorporada. Essa primeira geração de governantes haitianos, nos termos de TROUILLOT (1990),

concordavam com dois princípios, embora eles entrassem em conflito sobre todo o resto. Primeiro, a escravidão enquanto instituição deveria ser abolida para sempre do Haiti e de qualquer outro lugar que o Estado haitiano pudesse alcançar. Nenhum dos primeiros líderes do Haiti se envolveria com esse problema depois de 1802. Segundo, todos concordavam em manter as plantations em larga escala orientadas para exportação e um sistema de produção que produziria resultados similares aos do

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regime de escravidão (TROUILLOT, 1990, pp. 6

48-49).

Um dos maiores problemas do Haiti independente foi o isolamento diplomático que lhe foi imposto pelos outros países. As potências europeias, todas escravocratas à época, temendo que processos semelhantes à Revolução Haitiana (fim do sistema colonial e da escravidão) ocorressem em suas colônias se recusaram a reconhecer a independência do país. Da mesma forma o grupo no Congresso que representava os interesses dos estados sulistas nos Estados Unidos influenciava na Câmara e no Senado para que, embora fosse um país americano, este não fosse reconhecido. A França, em especial, ignorou a declaração de independência do país, o que promoveu temor na classe política haitiana de que a antiga metrópole poderia intervir no país a qualquer momento e tentar restaurar a ordem colonial. (TROUILLOT, 1990)

Na década de 1830, ainda após a assinatura de um acordo de pagamento de indenizações, a França reconhece a independência haitiana, mas a situação diplomática entre os dois países permaneceria complicada em virtude de termos ambíguos nos documentos, o que gerava o receio de uma possível nova tentativa de colonização do país.No âmbito do América, a situação não é mais favorável ao país caribenho. Não obstante os fatos de que, desde antes da independência, as relações comerciais entre os Estados

6 Tradução livre. Versão original: “This brief account makes clear the degree of which the first Haitian leaders, regardless of color and origin, fundamentally agreed on two principles, even though they fought about almost everything else. First, slavery as an institution was to be forever abolished from Haiti and from anywhere else the Haitian state could reach. None of Haiti’s first statesmen wavered on this issue after 1802. Second, all agreed on the need to maintain large-scale export-oriented plantations and a labor system that would produce results similar to those of the slave regime.”

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Unidos e Haiti eram intensas e, em 1851, as importações haitianas vindas daquele país ultrapassaram o valor das mexicanas, e que o comércio entre ambos tinha maior volume que aquele entre os Estados Unidos e o resto da América Latina (TROUILLOT, 1990, p. 53), o reconhecimento diplomático só veio em 1862, durante a Guerra Civil Americana.

O governo de Boyer se encerra em 1843, após um levante popular que força o general a se exilar. Como legado de seu governo, tem-se a substituição do predomínio do açúcar pelo do café na malha exportadora do país e o aumento da dívida pública, principalmente por conta da indenização para a França e de seus juros, ao mesmo tempo em que novas classes passam a disputar o poder político. Em primeiro lugar, temos os oficiais negros - beneficiados por Toussaint e Dessalines - que detinham boa parte das terras do interior e se valiam da propriedade desses bens para aumentar a carga de trabalho sobre o campesinato, classe que se empobreceu à medida que a falta de investimento reduziu a produtividade. Este grupo se destaca a partir do fim de 1843 e ascende costumeiramente ao poder político, a maior parte dos presidentes entre 1847 e 1915 é de pele escura e provém dessa classe, em decadência.

Nas cidades, a realidade é outra. O progressivo aumento do comércio com os Estados Unidos e com os países europeus propicia a ascensão de uma burguesia mulata, a qual financia as dívidas do Estado e influencia a elevação destas, como forma de garantir suas atividades econômicas. Em virtude do aumento da circulação de capital, a classe de funcionários públicos oficiais de baixa patente e soldados sofre grande aumento em seu número, dada a prática dos governos do século XIX de beneficiar os cidadãos urbanos para garantir apoio político. Para financiar essa nova burocracia,

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sucessivos governos taxavam cada vez mais a produção dos camponeses. (TROUILLOT, 1990)

Assim, ao longo da segunda metade do século XIX, a política haitiana é marcada pela aliança entre oligarquias políticas e mercadores (geralmente estrangeiros), em que uma classe urbana crescia às custas do aumento de impostos e do endividamento da população do campo. Nesse contexto, TROUILLOT (1990) assim resume o período:

O Estado funcionava como um agente econômico (extraindo e redistribuindo o excesso da produção) em benefício dos agentes locais dele dependentes. Em troca, esses agentes exportavam a maior parte do excedente, junto dos produtos nacionais. Como resultado, a acumulação de capital tanto pelo estado quanto pelas demais classes sociais não foi possível. A mobilidade social fora da estrutura do Estado permaneceu marginal, e o Estado estava permanentemente enfraquecido por sua incapacidade de unir política e sociedade civil. Finalmente, em virtude dessas fraquezas fundamentais, os governos que se sucederam e eram a expressão desse Estado foram necessariamente autoritários, por terem precisado usar de repressão para conter a sociedade civil que não conseguir controlar pela persuasão. Porém, seus meios inerentemente antidemocráticos de manutenção do poder os deixou vulneráveis a golpes, insurreições e rebeliões (TROUILLOT, 1990, p. 71, tradução nossa). 7

7 Tradução livre. Versão original: “From a structural viewpoint, the state functioned as an economic agent (extracting and redistributing the surplus) for the benefit of the local agents of dependence. These agents in turn exported most of the surplus, together with the local goods. As a result, capital accumulation by either the state or the strata that furnished its

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2.4. Intervenção dos Estados Unidos 

A situação interna do país se altera no ano de 1915, quando os Estados Unidos promovem uma invasão à ilha, sob alegação oficial de que “a óbvia anarquia política no Haiti deu aos Estados Unidos o dever moral de proteger a vida dos estrangeiros, inclusive de seus próprios cidadãos” (TROUILLOT, 1990, p. 100). Essa 8

justificativa se mostra bastante questionável tendo em vista que: (i) a influência alemã no país era maior que a norte-americana, o que não se mostrava estrategicamente favorável para os EUA no segundo ano da Primeira Guerra Mundial; (ii) os Estados Unidos possuíam muitos empréstimos concedidos ao Estado haitiano, que se mostrava cada vez menos capaz de honrá-los. (TROUILLOT, 1990)

Os marines norte-americanos realizaram intervenções diretas na política haitiana nos primeiros anos de ocupação, como a eleição do presidente Phillippe-Sudre Dartiguenave sob mira de uma centena de marines armados. Além disso, os estrangeiros tomaram o controle das casas alfandegárias, dissolveram o exército haitiano e impuseram uma convenção que lhes deu o direito de exercer o poder de polícia e controlar as finanças do país pelo prazo de dez anos. A resistência

personnel was well nigh impossible. Social mobility outside the state structure remained marginal and the state was permanently weakened by its inability to unite political and civil society, Finally, because of that fundamental weakness, the governments that succeeded each other and were expressions of that state were necessarily authoritarian, for they had to use repression to check the civil society that they were unable to control through persuasion. But they inherently undemocratic ways of maintaining power left them open to coups, insurrections, and rebellions.” 8 Tradução livre. Versão original: “The official reason for the occupation was that the obvious political anarchy in Haiti gave the United States the moral duty of protecting the lives of foreigners, including its own citizens.”

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haitiana não reagiu bem a essas medidas, e, como forma de pressionar os nacionais, os marines fecharam o Senado em abril de 1916 e no ano seguinte estenderam a validade da convenção para mais dez anos. Os maiores nomes das lideranças nacionalistas – o latifundiário Charlemagne Péralte e Benoit Batraville, seu sucessor – ambos foram assassinados pelo exército norte-americano respectivamente em 1919 e 1920, o que ocasionou o fim da resistência armada. (TROUILLOT, 1990)

Ademais, os marines treinaram soldados e combatentes que viriam a estruturar a Garde, o novo exército haitiano, que em 1937 passaria a ter 4.357 membros (TROUILLOT, 1990, p. 105). Esse novo grupo militar tinha experiência vinculada à repressão dos próprios cidadãos haitianos, comportamento este que se tornara comum desde a segunda metade do século anterior. Trouillot (1990) enfatiza que “os jovens que entravam nas novas forças armadas não teriam dúvidas do que era esperado deles – não depois do assassinato de Péralte e de Batraville ” (TROUILLOT, 1990, p. 106). Ao longo 9

da ocupação, a influência dos marines, portanto, se torna menos ostensiva, espraiando-se para a formação de novas lideranças, o que permite que a eleição do mulato Sténio Vincent nas eleições de 1930 sem a interferência do exército estrangeiro.

As últimas tropas invasoras saíram do país no ano de 1934, e sua presença deixou marcas tanto de longo quanto de curto prazo. Enquanto estiveram no domínio político do Haiti, os marines lograram estabilizar a moeda e reduzir a corrupção no governo, o que ocasionou a redução da dívida pública, transformando o país em um

9 Tradução livre. Versão original: “This point must be emphasized: the young men who joined the new armed forces could not have had any doubt as to what was expected of them - not after the murder of Péralte, not after the killing of Batraville.”

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dos poucos que manteve seu orçamento superavitário no período da Grande Depressão. Embora os anos de ocupação tenham rompido um ciclo até então constante de golpes militares, esse período trouxe quatro consequências negativas para o país: (i) aumento da dependência econômica sobre a exportação de café; (ii) centralização do poder na capital, Port-au-Prince, o que reduziu a influência de lideranças locais e dos latifundiários; (iii) homogeneização da classe mercadora que se aliou aos agentes políticos; e (iv) agravamento das tensões raciais, tendo em vista a política de favorecimento de políticos e generais mulatos pelos oficiais norte-americanos. (TROUILLOT, 1990)

Ao fim do mandato de Vincent, a influência da política norte-americana no país permanecia forte, plasmando-se na eleição do mulato Elie Lescot. “A proeminência da administração dos mulatos na presidência, um legado da ocupação, atingiu seu ápice durante sua presidência. ” (TROUILLOT, 1990, p. 108). No 10

entanto, em janeiro de 1946 seu governo sofre um forte abalo em virtude de manifestações de estudantes e de intelectuais de classe média que demandavam mais liberdades civis e novas eleições para o Legislativo. Nesse cenário, uma junta militar, liderada pelo Major Paul Magloire, membro da Garde, destitui o presidente, organiza novas eleições legislativas e elege o negro Dumarsais Estimé, no que foi chamado de “Revolução de 1946”. (TROUILLOT, 1990)

No poder, Estimé favoreceu o setor da oligarquia negra, que via seu poder econômico prosperar no boom econômico que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que promoveu políticas trabalhistas, como a elevação do salário mínimo

10 Tradução livre. Versão original: “The prominence of light-skinned people in the administration, a legacy of the occupation, reached its height during his presidency.”

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e a legalização dos partidos comunistas e socialistas. Esta última medida, no entanto, foi rapidamente revertida ao passo em que a conformação da Guerra Fria se amolda. Além disso, seu governo é conhecido pelo aumento dos empréstimos estrangeiros, grande quantidade de obras públicas, aumento das exportações e ascensão da burguesia e da classe média negras. (TROUILLOT, 1990)

A política de promoção da classe negra, contudo, não agradou a elite mulata, que desejava voltar ao poder e encontrou em Paul Magloire, coronel do exército, a liderança capaz de derrubar Estimé. No dia 10 de maio de 1950, o presidente é deposto por uma junta militar, novas eleições são realizadas e Magloire logra a presidência da república, com apoio de amplos setores da sociedade. A esse respeito, Pierre-Charles (1990, p. 198) narra que o coronel

não só gozava do apoio unânime da casta militar como também da burguesia mulata, de um importante setor da oligarquia negra ex-estimeista e dessa pequena burguesia também negra ansiosa de beneficiar-se de alguma função pública. Era um governo forte com um respaldo amplo nos meios políticos.

A primeira metade da década é marcada pela expansão das exportações haitianas, pelo crédito ilimitado concedido pelos bancos norte-americanos, pela continuidade das obras de Estimé e por um forte militarismo. A situação se altera a partir de 1955, quando a crise no capitalismo internacional derrubam as exportações haitianas e o governo perde o apoio dos setores que lhe sustentavam. Assim, setores da oposição, percebendo que o poder de Magloire estava se encerrando, mobilizam os esforços eleitorais, o que também contamina os agentes governamentais para preparar a transição. (PIERRE-CHARLES, 1990)

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Como reação a esse cenário, Magloire renuncia à presidência, mas busca permanecer como Chefe do Estado-Maior do Exército, manobra esta que se mostra incapaz de conter as greves trabalhistas que seguem no ano de 1955. A cena política que se desenha no ano seguinte é de um exército “demasiadamente desprestigiado e desunido” (PIERRE-CHARLES, 1990, p. 202); um poder legislativo que se deixou submeter ao poder de Magloire e se encontrava sem legitimidade; e de uma oposição fortalecida para galgar os postos de poder. Dessa maneira, são lançadas quatro candidaturas à Presidência: (i) Louis Déjoie, representando a alta burguesia mulata e industrial, que tinha o apoio de lideranças regionais e de parte do oficialato; (ii) Clément Jumelle, candidato da situação, representando o poder burocrático; (iii) François Duvalier, representando a oligarquia negra, algumas lideranças locais e a intelectualidade negra, traz a campanha pela volta do programa de governo de Estimé; e (iv) Daniel Fignolé, representando o setor sindical e as massas urbanas e rurais. (PIERRE-CHARLES, 1990)

O ano de 1956 tampouco foi estável. Depois da renúncia de Magloire, o presidente da Suprema Corte foi nomeado presidente interino, em meio a fortes dúvidas sobre a vigência da Constituição. Nos meses seguintes, outro juiz assumiu a presidência e ficou responsável por realizar novas eleições, governo marcado por suspeitas de favorecimento da coligação Fignolé-Déjoie. Nesse contexto, as facções do exército formadas por negros e apoiadores de Déjoie se preparavam para uma guerra civil pelo controle da instituição, o que foi apaziguado pela posse provisória de Fignolé da presidência. Com um membro tão radical no poder, membros das elites e a embaixada norte-americana trataram de articular um novo golpe militar de Estado, que instituiu nova comissão e elegeu François Duvalier presidente. (PIERRE-CHARLES, 1990

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2.5. Dinastia Duvalier 

François Duvalier nasceu em Porto Príncipe no ano de 1907 e se formou em Medicina pela Universidade do Haiti em 1934. Após concluir seus estudos nos Estados Unidos, ele retorna ao seu país natal e auxilia em campanhas de erradicação de diversas doenças tropicais. Durante essa época ele fica conhecido entre as populações rurais e ganha o apelido de Papa Doc Duvalier, e se torna popular entre a população pobre (ABBOTT, 2011).

Duvalier se envolve pela primeira vez com a política durante o governo de Estimé, durante o qual assume cargos ligados à saúde pública. Mas, após o golpe militar de 1950, ele se afasta do governo e volta a praticar medicina, embora sem jamais esquecer a humilhação causada pelo golpe. O seu ativismo contra o presidente Magloire acabaria lhe custando o trabalho e a hostilidade do governo, o que o força a se esconder (ABBOTT, 2011).

Após a queda de Magloire, Duvalier apresenta sua candidatura à presidência e se envolve no complicado jogo político dos governos provisórios. Ele se apresentou como um nacionalista e populista, e conforme outros candidatos deixam a corrida eleitoral, se consolida como o principal representante dos negros e pobres. Mesmo com sua popularidade e o apoio de uma razoável parte da elite, ele não deixou de usar técnicas violentas para conseguir votos, sequestrando votantes do seu opositor, forçando as urnas a fecharem mais cedo uma vez que seus apoiadores já tivessem votado e fraudando votos sempre que possível, assim como seu adversário (ABBOTT, 2011).

E, assim, François Duvalier foi eleito presidente do Haiti. Entretanto, mesmo antes de sua posse, a tensão política no Haiti

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atingiu um ponto crítico. Seu concorrente e outros políticos de importância denunciaram o resultado das eleições e lançaram uma onda de protestos e ataques a bases do governo. E o governo interino respondeu com toques de recolher e repressão policial, com o apoio dos duvalieristas (ABBOTT, 2011).

Os primeiros atos de Duvalier foram de cunho repressivo. Antes de poder tomar medidas sócio-econômicas, ele precisava assegurar seu posto, de forma que ordenou a prisão ou assassinato de muitos dos seus críticos. Além disso, ele criou a Milice des Volontoires de la Sécurité Nationale (a Milícia de Voluntários da Segurança Nacional), que ficaria conhecida pelo nome criolo Tonton Macoutes, traduzido como “bicho-papão”. Eles vinham de diversas origens sociais, mas principalmente do meio rural e com o tempo se tornaram extremamente poderosos, matando opositores do presidente e qualquer um que se opusesse a eles, seja em caráter político ou pessoal (ABBOTT, 2011).

Porém, para se manter no poder era necessário mais do que o massacre de opositores. Papa Doc sempre procurou ter o apoio tanto da Igreja Católica, quanto dos Estados Unidos, ambos extremamente importantes para qualquer um que quisesse se manter no poder no Haiti. E ele teve bastante sucesso nessa busca, principalmente em relação aos EUA, que doou uma grande quantidade de verba para o país caribenho e forneceu treinamento e equipamento para o exército (NICHOLLS, 1986).

O apoio americano vinha principalmente por causa da Guerra Fria, uma vez que Duvalier era anticomunista. Esse se intensificou principalmente após a Revolução Cubana em 1960 e após a morte de Kennedy. De toda forma, com apoio internacional e sob controle da situação política doméstica, Papa Doc pôde se tornar presidente vitalício, mantendo o poder até sua morte em abril de

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1971 e o passando para seu filho, Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc (NICHOLLS, 1986).

Jean-Claude Duvalier nasceu em 1951 em Porto Príncipe. Seu pai assumiu o poder quando ele ainda era muito novo, de forma que ele foi criado dentro do palácio presidencial, o que influenciou muito na sua personalidade. De fato, o gosto pelo luxo era uma marca do novo ditador. Sob seu governo, a corrupção que reinava no Haiti alcançou níveis ainda maiores (NICHOLLS, 1986).

Baby Doc reforçou uma política de acomodamento, já iniciada pelo seu pai. Ele coibiu as maiores atrocidades dos tonton macoutes e deu sinais de um início de liberalização política. Além disso, ele passou a promover uma modernização econômica do país, na tentativa de recuperar a economia do Haiti da recessão. Isso o levou a se aproximar mais da classe econômica, pessoas que entendiam os interesses do Banco Mundial e outros organismos financeiros internacionais (NICHOLLS, 1986).

Todavia, essas ações criaram uma tensão entre os apoiadores do regime. Os novos homens de negócio que aconselhavam Jean-Claude não gostavam de trabalhar com a velha guarda duvalierista, principalmente os macoutes, e o sentimento era recíproco. Além disso, a corrupção do regime sob o novo ditador atingia níveis cada vez maiores, incomodando até mesmo a sua base de apoiadores (NICHOLLS, 1986).

Na década de 1980, as demonstrações populares contra o regime se intensificaram, chegando ao ponto de revolta, e foram duramente reprimidas. Todavia, Baby Doc sofria pressão de todos os lados para que renunciasse, tanto de autoridades internacionais da América, incluindo o próprio presidente dos EUA, Ronald Reagan, quanto dos homens de negócio haitianos. Ele fugiu para a França no dia 7 de fevereiro de 1986, deixando para trás um país arruinado e

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dando fim a um regime autoritário que durou 29 anos e deixou dezenas de milhares de mortos (NICHOLLS, 1986).

3. FRAQUEZA DO ESTADO E PARÂMETROS DE ANÁLISE 

3.1. Conceito de Estado Falido e suas problemáticas; 

A unidade política autônoma do Estado consolidou-se no mundo como sendo considerada a principal e mais pertinente forma de organização jurídica, política, econômica e social – isso dentro da ótica ocidental. Desse modo, a realidade global passou a moldar-se seguindo esse modelo, seja voluntariamente ou impositivamente (CARVALHO, 2007).

As funções e os objetivos atribuídas ao Estado ao longo dos séculos foram se transformando e, gradativamente, assumiram as mais diferentes características, mudando drasticamente do conceito tradicional (Estado weberiano) para o contemporâneo. Segundo muitos teóricos, a característica mais importante do Estado é o fato dele teoricamente “fornecer aos cidadãos residentes em seu território o mais crucial bem político: a segurança humana”, atributo do qual este presente trabalho se propõe a dar mais enfoque (CARVALHO, 2007, p. 26).

O conceito de Estado Falido (failed state, em inglês) – ou o processo de falência – possui suas divergências e discordâncias entre os autores que trabalham com o tema, mas se tem um conceito base, usualmente utilizado para se referir a um Estado que esteja em determinada condição de colapso institucional. A falência estatal, portanto, pode ser conceituada como sendo quando algum Estado não consegue assegurar às suas sociedades o fornecimento de bens

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mínimos, dentro dos princípios weberianos (CARVALHO, 2007; PEREIRA, 2016).

Em grande parte, as concepções acerca dos Estados em situação de falência “se baseiam nas dimensões institucionais do Estado, isto é, busca-se medir sua estatalidade de acordo com seus níveis de êxito e/ou falha” (PEREIRA, 2016, p. 44). Portanto, esta falência pode ocorrer em diversas dimensões, como na área da segurança, desenvolvimento econômico, representação política e distribuição de renda (HELMAN; RATNER, 1992).

Mais especificamente no caso do Haiti, justifica-se sua situação de falência por “convulsões de violência interna, de modo que o Estado não foi mais capaz de oferecer bens políticos a seus habitantes, perdendo legitimidade diante de sua população” (PEREIRA, 2016, p. 45). Ainda segundo essa visão, a “violência interna está diretamente associada com a propensão a falência, muito embora esta variante sozinha não seja capaz de designar a um Estado a condição de falência” (PEREIRA, 2016, p. 47), sendo necessário que outras instabilidades sejam incorporadas ao contexto do Estado em questão para que ele, de fato, chegue ao status de falido (PEREIRA, 2016; ROTBERG, 2003).

Traçando conceitos que envolvam as falhas estatais e a deficiência em suprir as demandas de suas população, surge a pergunta de quem, de fato, define parâmetros para essas falhas e designa uma situação de falência estatal, tendo em vista que esses fatores a serem considerados podem ser relativos.

Primeiramente, existe o Índice de Estados Frágeis (Fragile States Index, em inglês) que é um ranking anual que engloba 178 países, avaliando e mensurando a estabilidade desses Estados através de critérios como uma crescente pressão demográfica, intenso fluxo de refugiados, crises econômicas, criminalização ou deslegitimação

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do Estado, deterioração progressiva dos serviços públicos, violação contínua dos direitos humanos, dentre outras violências (FUND FOR PEACE, 2018; PEREIRA, 2016).

O índice foi criado pela organização não-governamental estadunidense Fund for Peace (Fundo Para a Paz), uma organização independente não-partidária e sem fins lucrativos que trabalha no intuito de prevenir conflitos e promover a segurança internacional. Seus resultados e método são reconhecidos internacionalmente e amplamente difundidos nos âmbitos acadêmico e político. Esse índice funciona como um ranking mundial que considera quatro critérios principais em sua metodologia para ranquear os Estados, sendo eles: Coesão, Econômico, Político e Social (FUND FOR 11

PEACE, 2018; PEREIRA, 2016).

11 Cada um dos quatro critério tem três indicadores avaliativos, sendo eles: (1) Coesão: Aparato de Segurança; Elites Faccionalizadas e Queixas de Grupo, (2) Econômico: Crise Econômica; Desenvolvimento Econômico Desigual (concentração de renda) e Fuga de Cérebros, (3) Político: Legitimidade do Estado; Serviços Públicos e Direitos Humanos e Estado de Direito, (4) Social: Pressões Demográficas; Refugiados e Deslocados Internos e Intervenção Externa.

Todas essas subcategorias recebem uma avaliação e uma nota (nesta nota quanto mais próximo do 10 mais “falido” é o Estado e quanto mais próximo de 0 mais “estável” é o Estado). As notas são somadas e se obtém escores dos indicadores (ver Imagem 3) que são compilados no ranking final, no qual são classificados por graus de fragilidade (alerta, atenção, estável e sustentável). O Haiti encontra-se na décima segunda posição (12ª) da lista deste ano, classificado como “alerta alto”. Para título de comparação, o país que desponta em primeiro lugar em 2018 (ou seja, o que tem os piores indicadores) é o Sudão do Sul e o com melhores resultados é a Finlândia, que está na 178ª posição (FUND FOR PEACE, 2018).

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Imagem 3: Índice de Estados Frágeis em 2018 (sustentável, estável, atenção e alerta) (FUND FOR PEACE, 2018, tradução nossa).

Imagem 4: Painel de indicadores do Haiti no Índice de Estados Frágeis (2018).

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É importante salientar que o fenômeno “Estados Falidos” é extremamente complexo e critérios de classificação padronizados, em certa medida, não abrangem a complexidade com que esse fenômeno se mostra na realidade, uma vez que ele apresenta características únicas em suas variadas manifestações (PEREIRA, 2016; CARVALHO, 2007).

Com isso, percebe-se que o emprego do termo nos meios acadêmico e político deve ser sempre problematizado, tendo em vista que taxar Estados que não seguem os paradigmas ocidentais neoliberais como sendo “falidos” é demasiadamente equivocado, considerando ainda que a realidade pós-colonial dessas localidades é extremamente complexa, e que “essa homogeneização das diferenças dos supostos Estados Falidos torna a compreensão e atuação sobre eles mais fácil, de modo que não se interpreta as múltiplas realidades de fato de tais entes estatais” (PEREIRA, 2016, p. 60; CARVALHO, 2007; BOAS; JENNINGS, 2006).

Desse modo, o uso indiscriminado desse discurso trouxe a premissa de atuação e intervenção por parte dos países ocidentais para a construção e fortalecimento de instituições efetivas (state building ) nesses Estados em situações de vulnerabilidade. Esse 12

12 “O state-building trata da (re)construção de instituições estatais em cenários pós-conflito, incluindo a formação das relações entre o Estado e a sua população, através das esferas institucionais. O state-building, como prática aplicada em cenários pós-conflitos, pode ter múltiplas formas de interpretação. Por um lado, sob uma visão mais ampla, é definida como o processo através do qual busca-se regular o modo pelo qual um Estado relaciona-se com sua própria população. Por outro lado, sob uma ótica mais estreita, é entendido como um processo meramente institucional e capacitador, focado na promoção da governança interna, a partir da reconstrução dos aparelhos burocráticos. Sob este entendimento, a primazia do processo está na criação de instituições legítimas e efetivas, capazes de

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discurso ainda é reforçado, retratando esses Estados frágeis como ameaças à segurança internacional devido à sua instabilidade, legitimando assim a postura tutelar de países ocidentais e, posteriormente, uma possível intervenção (CALL, 2008; PEREIRA, 2016).

4. DA CRISE HAITIANA ATÉ O ESTABELECIMENTO DA               

MINUSTAH (OU ENTÃO ASCENSÃO E QUEDA DE             

JEAN-BERTRAND ARISTIDE)  

4.1 A Instabilidade Política pós-Duvalier

Após a queda dos Duvalier, o Haiti voltou ao estado de instabilidade política. De 1986 até 1988, um governo militar sob o comando do general Henri Namphy governou o país com o compromisso de realizar novas eleições. Entretanto, após atentados realizados ou apoiados pelo exército durante as eleições de 1987, assim como o assassinato de candidatos à presidência, o pleito foi cancelado (CIDH, 1988). Novas eleições ocorreram no ano seguinte, com a vitória do candidato neoduvalierista Leslie Manigat, embora a votação tenha apresentado irregularidades e uma baixíssima participação popular (BELAN, 2017).

Todavia, o regime de Manigat durou menos de 1 ano, já que, em junho de 1988, os militares efetuaram um golpe e puseram Henri Namphy ao poder. Seu regime durou ainda menos, já que em setembro outro golpe militar o retirou e instalou o coronel Prosper Avril, este último encorajado pela falta de reação do governo ao

exercer sua autoridade e proporcionar segurança aos seus cidadãos” (MUNDORAMA, 2017, s.p.).

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Massacre de São João Bosco. Nesse incidente, no dia 11 de setembro de 1988, um grupo de ex-Tonton Macoutes cercou a Igreja de São João Bosco em Porto Príncipe e abriu fogo contra a congregação durante 3 horas, matando pelo menos 13 pessoas e queimando a igreja no final. Segundo testemunhas oculares, a polícia e os militares - havia um quartel do outro lado da rua -apenas olharam o massacre acontecer, sem procurar impedi-lo de alguma forma. Além disso, servidores da Prefeitura de Porto Príncipe também foram identificados entre os atacantes. E, após o incidente, um grupo de pessoas que participaram do atentado invadiu a televisão estatal, Telé Nationale, e ameaçou mais ataques (OEA, 1988).

Avril ocupou o governo até as eleições de 1990, que conduziram Jean-Bertand Aristide à presidência.

4.2 O governo de Jean-Bertrand Aristide 

Jean-Bertrand Aristide nasceu em 15 de julho de 1953 na cidade costeira de Port-Salut, no sul do Haiti. Foi ordenado padre em 3 de julho de 1982, na ordem dos salesianos. Muito ligado à Teologia da Libertação , seus sermões e discursos sempre foram muito 13

voltados aos pobres e contra o governo haitiano e as potências estrangeiras – tanto que o Massacre de São João Bosco tinha a ele como alvo, tendo o ataque ocorrido enquanto Aristide celebrava uma missa (ZÁRATE, 2010).

Esse atentado demonstra o tamanho da popularidade de Aristide, a ponto de um grupo tão grande se reunir para tentar

13 Teologia da Libertação é uma linha de pensamento dentro da Igreja Católica que defende que o foco da Igreja deve ser o auxílio aos mais pobres. A doutrina teve grande influência na América Latina e faz uso de uma visão marxista da sociedade.

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matá-lo. Então não foi surpresa quando ele foi eleito com mais de 60% dos votos no início de 1991, na primeira eleição verdadeiramente democrática, sem as acusações de fraude e irregularidades que sempre ocorreram nos pleitos haitianos. Entretanto, seu programa de governo e sua posição radical acabaram por afastar as elites tradicionais haitianas, assim como o exército e as potências estrangeiras. Por isso, o novo presidente eleito foi forçado a alterar seu tom agressivo e reduzir suas metas (BELAN, 2017).

Todavia, isso não foi o suficiente. Um grupo de militares comandado pelo General Raoul Cedrás tomou o poder e forçou Aristide a fugir do país. Os militares ameaçaram o Legislativo haitiano para que declarasse a vacância do cargo de presidente, e puseram Joseph Nérette, presidente do Supremo Tribunal, como Presidente da República. Esses acontecimentos instauraram uma era de perseguição e terror aos apoiadores do ex-presidente, com milhares de mortos e outros que foram forçados a fugir do país (BELAN, 2017).

Em prévias ocasiões de golpe militar no Haiti, as potências internacionais foram sempre neutras, quando não explicitamente favoráveis aos golpistas. Mas, na nova conjuntura pós-Guerra Fria, entrou em evidência a defesa dos direitos humanos e do Estado democrático, ambos anteriormente sacrificados na luta contra a ameaça comunista. Então, talvez tenha sido uma surpresa para os golpistas quando a comunidade internacional não reconheceu o novo governo e decretou um embargo (BELAN, 2017).

Essa forte reação internacional forçou os líderes militares a negociar com Aristide. O resultado foi o Accord de Governors Island, que previa o retorno do presidente eleito ao país em outubro de 1993, assim como outras medidas – como anistia aos participantes do golpe e a criação de uma nova polícia nacional (NATIONS

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UNIES, 1993). Entretanto, mesmo tendo assinado o acordo, o governo militar se recusou a cumpri-lo (UNSC, 1994).

Depois das vias pacíficas se esgotarem, a comunidade internacional passou à via armada. Em 31 de julho de 1994 o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a resolução 940, que autorizou uma força militar a invadir o Haiti e retornar o presidente legítimo ao poder. Essa invasão ocorreu sob o comando dos Estados Unidos sob o codinome Operation Uphold Democracy, e não registrou resistência armada por parte dos líderes militares que, face a uma grande força de invasão, concordaram em deixar o poder (BELAN, 2017).

4.3 O governo de René Preval 

Após seu retorno ao Haiti, Aristide termina seu mandato em 1996, tendo como um dos seus principais atos a dissolução do exército. Nas eleições, venceu para a presidência René Preval, membro do partido de Aristide, e pela primeira vez o país viu uma transição de poder democrática e pacífica. Todavia, tensões intrapartidárias fizeram com que o ex-presidente rompesse com o partido e formasse um novo (MARTÍNEZ, 2008).

A Organização Partidária Lavalas (Lavalas é a palavra em crioulo para avalanche) era a organização política presidida por Aristide na época da sua eleição. Assim como seu presidente, era uma organização de cunho bastante radical que teve de se ajustar quando chegou no governo – isso porque o apoio internacional veio com uma série de condições, principalmente por parte do Fundo Monetário Internacional (FMI) (BELAN, 2017).

Enquanto uma parte do partido não necessariamente apoiava as medidas, mas defendia que os acordos internacionais deveriam ser

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cumpridos, outra parte, liderada por Aristide, considerava o programa original do partido mais importante. Assim, o movimento Lavalas se dividiu, surgindo a Família Lavalas (Famni Lavalas) presidida pelo ex-presidente. Esse novo partido tinha uma característica mais personalista, e tinha como objetivo preparar o terreno político para uma reeleição de Aristide em 2001 (MARTÍNEZ, 2008).

E, de fato, o mandato de Preval foi marcado por uma série de medidas econômicas liberais. Ele conduziu um extenso programa de privatizações, ao qual a economia haitiana respondeu bem, crescendo e diminuindo a taxa de desemprego. Mas durante todo o seu período na presidência, houve grande oposição por parte da Famni Lavalas, o que o levou a fechar o parlamento em 1999 e governar via decreto (BELAN, 2017).

Como esperado, em 2001 Aristide foi re-eleito para a presidência. Todavia, essas eleições não contaram com observadores internacionais e houve diversas irregularidades, assim como uma baixa participação popular (MARTÍNEZ, 2008).

4.4 O retorno de Aristide e da violência política

O último mandato de Aristide foi bastante turbulento. Com sua legitimidade questionada desde a eleição, reinava um ar de hostilidade política. Além disso, as suas medidas acabaram por atingir negativamente a debilitada economia haitiana – prejudicando a sua relação com os seus principais benfeitores em questão de auxílio humanitário, ONU e Estados Unidos, que acabaram por cortar a ajuda monetária que era a principal fonte de renda do Haiti (BELAN, 2017).

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Embora sua popularidade nas classes mais baixas continuasse forte, a sua aceitação entre as elites era ainda menor do que no primeiro mandato. Eram comuns embates entre grupos de apoiadores de Aristide e apoiadores da oposição. Mortes políticas voltaram a ser frequentes como na época do governo Duvalier, com ex-membros do movimento Lavalas como principais alvos. Uma dessas gangues, chamada de Exército Canibal, acabou tendo um papel central na deposição do presidente (BELAN, 2017).

O Exército Canibal era uma gangue liderada por Amyut Métayer e sediada em Gonaïves. Em setembro de 2003, Amyut foi assassinado e seu irmão, Butteur Métayer, culpou Aristide pelo assassinato. Então, após assumir a liderança da gangue, mudou o nome da organização para Frente pela Libertação e Reconstrução Nacional (FLRN) e se insurgiu contra o governo (BELAN, 2017).

A FLRN logo provou ser militarmente mais forte do que a mal-armada e numericamente fraca Polícia Nacional Haitiana (PNH). Além dessa vantagem, o conflito abriu uma caixa de pandora paramilitar, atraindo participantes exilados de golpes militares anteriores para a causa da Frente. Em 23 de fevereiro de 2004, os rebeldes tomaram Cap-Haitïen e já ameaçavam a capital, Porto Príncipe, onde os apoiadores de Aristide lançavam uma série de represálias contra a oposição (BELAN, 2017).

Após pedir ajuda às potências e ter seu pedido negado, sendo encorajado a “buscar soluções políticas”, chega a hora de Aristide mais uma vez fugir do país, num processo ainda hoje pouco esclarecido. O ex-presidente afirma ter sido sequestrado por agentes norte-americanos que o forçaram a escrever uma carta de renúncia e depois o levaram de avião até a República Centro-Africana. Já o governo dos Estados Unidos afirma que isso não é verdade,

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sustentando que Aristide escreveu a carta por sua própria vontade e que pediu ajuda para sair do Haiti (BELAN, 2017).

De toda e qualquer forma, Aristide deixou o Haiti e só voltaria anos depois, sem mais participar ativamente da política haitiana. Em 1º de março, a FLRN entrou triunfalmente em Porto-Príncipe – mas é claro que isso não resolveu a instabilidade político-social haitiana, com diversas violações aos direitos humanos ocorrendo diariamente (BELAN, 2017).

5. PÓS-ARISTIDE: O QUE A MINUSTAH ENCONTROU 

Ironicamente, foi no ano que marcou o bicentenário da independência do Haiti que o país se viu obrigado a aceitar ajuda externa para lidar com a perda de estabilidade política, a desordem pública e a não-manutenção do Estado de Direito. Essa ajuda externa veio na forma da MINUSTAH (do francês Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haïti), criada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) em 30 de abril de 2004 (WORLD REPORT, 2005).

A missão de paz, que surge por meio da Resolução 1542 (2004) do Conselho de Segurança, solicita a criação de uma força internacional para assegurar a ordem e a paz no Haiti. O parágrafo 7 da resolução enuncia as funções básicas da MINUSTAH que, apesar de estarem sujeitas a mudanças e já terem sofrido diversas alterações ao longo dos anos, mantém-se seguindo os três eixos anunciados na resolução supracitada: segurança, processo político e direitos humanos. Outro aspecto importante tratado nas resoluções posteriores trata do desenvolvimento social e econômico, bem como do aspecto humanitário relevante suscitado por este último item (CORBELLINI, 2009).

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A abdicação de Aristide e a assunção de Boniface Alexandre – presidente do Supremo Tribunal e segundo na linha de sucessão à presidência – não foi o suficiente para restabelecer a ordem no país e a MINUSTAH se viu atuando em um cenário caótico.

Com uma força policial “pequena, desmoralizada e mal treinada” (WORLD REPORT, 2005, s. p.) era difícil conter os grupos armados, que contavam com maior número de membros. Tais grupos não consistiam apenas em gangues, mas também em ex-militares, que cobravam salários atrasados e a reintegração do exército, por meio da tomada de diversos prédios públicos, pintados com a cor oficial do exército. Contra o governo, eles assumiam algumas de sua funções, como o patrulhamento das ruas e a manutenção de postos de controle tripulados (WORLD REPORT, 2005).

Enquanto os grupos armados assumiram certas atribuições do serviço de segurança pública, a polícia oficial agia de forma ilegal, prendendo e detendo inúmeros cidadãos, incluindo figuras importantes na política, além de diversos apoiadores de Aristide. No mesmo período, foram relatados espancamentos e execuções extrajudiciais por parte da força policial, como uma inversão de papéis não planejada. (WORLD REPORT, 2005)

O novo governo tentou cumprir a promessa de reconstruir o sistema judiciário do país, mas a lentidão do processo não acompanhou a velocidade com que o caos se instaurava. O sistema carcerário, por exemplo, encontrava-se superlotado, em más condições e precisando de instalações sanitárias (WORLD REPORT, 2005).

No âmbito internacional, a situação do Haiti também não era das melhores: os EUA continuaram a negar a presença de haitianos em território americano, e repatriavam os que fossem interceptados

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ao fugir de seu país de origem. Mais tarde, a CARICOM – Comunidade do Caribe ou Comunidade das Caraíbas (antiga Comunidade e Mercado Comum do Caribe) – cortaria os laços com o país, em novembro de 2004, alegando se basear em “princípios fundamentais de respeito aos direitos humanos” (WORLD REPORT, 2005).

Não surpreendentemente, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) “expressou grande preocupação com as condições de direitos humanos no Haiti”, em outubro, mesmo mês em que jovens – de sete a treze anos – foram assassinados em uma área pobre de Porto Príncipe, supostamente depois de serem torturados por policiais mascarados (WORLD REPORT, 2005).

CONCLUSÃO 

O presente artigo se propôs a analisar de forma sucinta os contextos político, econômico e social da República Haitiana, através de eventos chaves da história de sua formação estatal (desde a revolução escrava, as diversas sucessões governamentais até o advento da MINUSTAH no século XXI) a fim de se melhor compreender como a constante violência política e a militarização da sociedade haitiana provocou a formação de grupos insurgentes como consequência desses ciclos de construção, destruição e reconstrução do Estado haitiano.

Dessa forma a narrativa construída para explicar o arco da história haitiana neste trabalho foram iniciadas com a Revolução Haitiana deflagrada em 1791 e que abalou as estruturas de poder do mundo Ocidental. Entretanto essa quebra de paradigmas foi custosa ao Haiti independente, justamente pelo isolamento diplomático que foi imposto pelas potências europeias, todas escravocratas à época,

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temendo que processos semelhantes à Revolução Haitiana se espalhassem em seus respectivos países.

Durante quase todo o século XIX a realidade haitiana foi marcada por instabilidades políticas e econômicas marcada pelo aprofundamento das desigualdades sociais, tendo como ponto máximo, já no começo do século XX, com a intervenção militar feita pelos Estados Unidos da América em 1915, motivada, segundo os estadunidenses, pela iminente “anarquia” em que o Haiti estava imerso. Como consequência, essa intervenção impôs uma nova constituição e reorganizou a economia haitiana.

A segunda metade do século XX foi marcada por uma sucessão de governos instáveis e golpes de Estado que gradativamente enfraqueceram as instituições haitianas e foram minando a legitimação do Estado haitiano tanto internamente, diante de sua população como internacionalmente.

Outro ponto de extrema importância neste contexto e que ocupou lugar de destaque nas explanações deste artigo foi acerca dos conceitos empregados para classificar o Haiti e consequentemente legitimar as inúmeras intervenções que o Estado haitiano foi alvo historicamente. Classificá-lo como “Estado Falido” e justificar que as convulsões de violência interna impossibilitaram que o Estado seja incapaz de oferecer bens políticos a seus habitantes é um discurso construído a partir de paradigmas neoliberais que desconsideram o contexto social, político e histórico da colonização e seu legado até a contemporaneidade.

E foi justamente neste contexto que em 2004 o Haiti, assolado por uma crise política e econômica, através da resolução 1542 do Conselho de Segurança recebeu a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH).

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Com isso, o que percebemos com maior regularidade na trajetória da história haitiana é uma reutilização constante da violência política, fruto da militarização da sociedade haitiana desde a emancipação e independência do país. Esses dois fatores - a militarização e a violência política - são fundamentais para analisar os ciclos de construção, destruição e reconstrução do estado haitiano, e a formação constante de grupos insurgentes pode ser interpretado como sintoma - e reação - a todos esses fatores já mencionados.

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