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  • DA UTOPIA AO UTOPISMO DESIGN E PROCESSO NA CIDADE MODERNA

    Andr Monteiro Miranda Alves Campos

    Mestrado em Design Espao urbano e interiores

    2012

  • ESAD ESCOLA SUPERIOR DE ARTES E DESIGN, MATOSINHOS

    Avenida Calouste Gulbenkian4460-268 Senhora da HoraMatosinhos, PortugalT +351 229 578 750F +351 229 552 643www.esad.pt

  • DA UTOPIA AO UTOPISMO DESIGN E PROCESSO NA CIDADE MODERNA

    Andr Monteiro Miranda Alves Campos

    Orientador: Professor Doutor Jos Manuel da Silva Brtolo

    Coorientadora: Professora Mestre Maria Joo Baltazar

    Mestrado em Design Espao urbano e interiores

    2012

  • Resumo

    Palavras-chave: Utopia, Modernidade, Cidade, Projeto

    No princpio do sculo XXI a nossa relao com o Movimento Moderno continua ainda intrnseca em toda a sociedade. Os ideais e termos modernistas, fundados no incio do sculo XX, foram so-frendo uma transformao social e projetual que atravessaram todo o sculo e transfiguraram o design das suas formas modernista, s formas ps-modernistas e, por fim, condio contempornea que vivemos.

    Enquanto muitos dos projetos representaram a traduo de mui-tas das vises e ideologias associadas a estes movimentos, o esprito permaneceu utpico e com ele muitas das vises formuladas. Partin-do da interligao entre os conceitos de design, cidade e utopia, per-corremos e mapeamos algumas das experimentaes que interligam o utopismo e o design ao longo do espao temporal do Movimento Moderno, debatendo e refletindo, a ambivalncia de conceitos como autoridade e desordem, sonho e realidade, e processo e resultado que incorporaram a transformao que o design sofreu at ao pre-sente enquadramento na realidade contempornea.

  • Abstract

    Key words: Utopia, Modernity, City, Project

    In the beginning of the twenty-first century our relationship with the Modern Movement is still inherent in the whole society. The ideals and modernist terms, founded in the early twentieth cen-tury, have been experiencing a social and projectual transformation that crossed the entire century and transfigured the design of its modernist forms, to postmodernist forms, and finally, to the con-temporary condition in which we live.

    While many projects represented the translation of several vi-sions and ideologies associated with these movements, the utopian spirit remained, and with him, many of the views expressed. Star-ting from the interconnection between the concepts of design, city and utopia, we traveled and mapped some of the experiments that connect the utopianism and the design along the timeline of the Modern Movement, debating and reflecting the ambivalence of con-cepts such as authority and disorder, dream and reality and process and outcome that incorporated the transformation that the design has suffered up to the contemporary reality framework.

  • Agradecimentos

    No presente estudo tive o apoio e contributo de vrias pessoas que me auxiliaram em diferentes tarefas e fases de investigao a quem desejo expressar os meus agradecimentos.

    Ao meu orientador Professor Doutor Jos Manuel da Silva Br-tolo e minha coorientadora Professora Mestre Maria Joo Baltazar pelo acompanhamento realizado ao longo de todo o trabalho e pelo apoio terico-cientfico.

    Professora Doutora Maria Teresa Castilho pelo apoio teri-co-cientfico na abordagem temtica e toda a disponibilidade de acompanhamento prestado ao longo do presente estudo.

    minha famlia que sempre me apoiou e esteve presente em qualquer projeto da minha vida. Ao meu pai e minha me um agradecimento especial por todo o acompanhamento e incentivo que me tm vindo a prestar. minha irm por toda a disponibilidade demonstrada, apoio e acompanhamento prestados.

    A todos os meus amigos que me acompanharam e ajudaram di-reta ou indiretamente e partilharam comigo, no espao temporal do presente processo, todas as emoes associadas.

  • Indice

    Introduo

    1. Uma modernidade para um novo mundo

    1.1. A morte do projeto historicista

    1.2. A utopia modernista: projetar a tabula rasa do novo mundo

    1.2.1. La Ville Radieuse: a recusa da utopia como utopia?

    1.2.2. A cidade cenogrfica: a utopia para um Portugal modernista

    1.2.3. Feira Mundial de Nova Iorque (1939-40): a janela para o mundo de amanh

    2. Um novo mundo para a modernidade

    2.1. As vanguardas ps-modernas: critical utopias

    2.1.1. O happening tecnolgico

    2.1.2. Do espao urbano ao espao domstico

    3. Contemporaneidade e altermodernidade: as narrativas disruptivas

    3.1. A condio zero

    3.2. O designer como semionauta no contexto micro-utpico

    Concluso

    Referncias bibliogrficas

    Lista de imagens

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    Introduo

    A cidade, espao territorial de aglomerao populacional em lar-ga escala, fora desde sempre caracterizada pelos socilogos como um espao de estranhos, um espao privilegiado para a coexistncia e intercmbio de diferentes modos de vida, culturas e pensamentos ideolgicos associados ao seu mundo envolto.

    O progressivo deslocamento dos homens para estes grandes aglomerados populacionais, com maior nfase a partir do final do sculo XIX, incitou gradualmente a polifonia e a diversidade que hoje a cidade progressivamente vai assumindo e possuindo. Fato-res como a individualizao, o anonimato, a heterogeneidade, a variedade e o pluralismo, quando relacionados, impulsionam uma cultura prpria baseada na interao humana. Esta constituda por uma imensa quantidade de intensas, consecutivas e breves im-presses, que regulam o relacionamento das grandes densidades populacionais, provocando consequentemente o distanciamento ou a aproximao individual. Forma-se ento a cultura da diferena e da heterogeneidade, que nos incita para o confronto e a hibridao do pensamento, instigando a teorizao, a reflexo, a tentativa de mudana, e a projeo mental do futuro e da novidade (Innerarity, 2008). A cidade como um espao de constante evoluo e mudana, quer como projeto idealizado, quer como projeto construdo, rein-venta-se de forma consecutiva na busca pelo processo evolutivo e pela mudana, permitindo adaptar e transformar o espao em que os seus residentes habitam s novas relaes organizacionais. Essa reconstruo, experimentao projectual que confronta os espaos e as relaes em que as pessoas se inserem e interagem, torna-se o principal tradutor de todo o pensamento experimental e dos desejos pela mudana (Santos, 2007).

    A partir desta perspetiva reflexiva, a cidade fora desde sempre um espao estimulador da liberdade de expresso, e uma promessa utpica de emancipao econmica, poltica e social. Numa perspeti-va civilizacional esta torna-se um local de libertao do ser humano face natureza e as suas respetivas ameaas. Do ponto de vista pol-tico torna-se um espao de autonomia e de debate de coexistncias e de diferentes formas de pensamento. Do ponto de vista social torna-se o maior local agregador e integrador humano. Do ponto de vista

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    cultural torna-se um espao privilegiador da individualidade e da expresso prpria de cada pessoa, libertando-as do controlo social exercido pelas pequenas comunidades (Innerarity, 2008).

    Renem-se assim todas as condies para que as cidades se tor-nassem os principais focos civilizacionais de deciso e inovao, as-sumindo protagonismos culturais e polticos nos seus processos de modernizao e fundindo estruturas sociais, polticas e econmicas de forma a criar uma cultura urbana prpria.

    Neste contexto o interesse central do presente estudo Da Uto-pia ao Utopismo: design e processo na cidade moderna - enquadrar-se- no pensamento do ato projectual como uma ferramenta dessa mesma mudana e inovao, como um utenslio no seio da socieda-de, no modo como domina a matria, como ordena o espao, e como proporciona solues para problemas vigentes e desejos de mudan-ap. Tentaremos perceber como se enquadra a sua tarefa de assu-mir as mudanas que vo surgindo atravs das orgnicas sociais, e das novas formas de pensar e de habitar que delas culminam, e como instigada a mudana, atravs de uma viso crtica do ago-ra e do futuro, inerentemente associada ao utopismo, que poder funcionar como um sistema de orientao projectual para quebrar as relaes da ordem existente, de maneira a recuper-las num nvel diferente e melhorado. Ideias projetivas que podero ter um impacto real na medida em que podero ser adotadas pela condio presente ou por geraes futuras. Um enquadramento lgico de pensamento que ser impossvel realizar sem nos delimitarmos temporalmente ao Movimento Moderno e ao processo de design ocorrido ao longo do ltimo sculo. No princpio do sculo XXI a nossa relao com o Movimento Moderno continua ainda intrnseca, na medida em que o ambiente em que vivemos foi largamente modelado por este espao temporal. Os espaos habitacionais e urbanos em que vive-mos e nos relacionamos, os objetos que usamos, a linguagem grfica e multimdia que nos rodeia, foram criados ou influenciados pela esttica e ideologia do design moderno. Assim, para a compreenso de uma sociedade que ainda se identifica com os termos Modernos, como uma sociedade a que muitos apelidam de Ps-Moderna, ou Ps-ps-moderna, teremos de analisar o seu percurso at ao culmi-nar na condio contempornea.

    Captulo 1: Uma modernidade para um novo mundo

    O mundo contemporneo, como j referido anteriormente, con-tinua a ter em conta referncias provenientes do Movimento Mo-

    p A interligao do utopismo e do de-sign assumida por diversos autores ao longo da histria do design como uma certeza. Desde Le Corbusier, a Manfredo Tafuri, passando por ales-sandro Mendini, desde 2010 como editor chefe da Domus com a temtica La nuova utopia, o interesse da inter-ligao destes dois conceitos afirma-se como uma constante renovvel. Para melhor compreenso das afirmaes por ns expressas citamos Enzo Mari (2009): As pessoas no entendem bem. A utopia um lugar que no existe, e que no pode ser realizado. As utopias sempre indicaram um per-curso, so um corrimo tico, so algo que indica o fazer bem, mas a utopia, por definio, no pode ser realizada. O design constitui uma utopia..

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    derno. Estamos rodeados pelos objetos, ambientes e ideologias construtivas que foram introduzidas pelo design modernista e de-senvolvidas ao longo do sculo at condio presente. Deste modo, mapear e estudar as fundaes e o posicionamento das suas primei-ras abordagens na sociedade torna-se essencial para conseguirmos compreender o desenrolar das suas ideologias at contemporanei-dade.

    Para o estudo desta primeira fase experimentalista tomamos em conta as influncias que o novo mundo tecnolgico emergente as-sume na sociedade em geral e de que modo este leva o ato projetual a assumir a utopia de um mundo tecnolgico, global e perspetiva-do a nvel internacional em todas as suas artes associadas. Um ato projetual que surge como um processo que rejeita a singularidade de um estilo em prol de uma coleo de ideias, muitas delas per-didas ou ineficazes ao olhar contemporneo, cobrindo uma grande panplia de movimentos e estilos. Torna-se objeto de estudo deste captulo perceber como os grandes centros cosmopolitas ocidentais, de Moscovo a Nova Iorque, incitavam a renovao da ideia utpica associada a conceitos como a cidade, a tecnologia, a mquina, a abs-trao e a ambivalncia do passado com o futuro, e de que forma estes eram interpretados pelo projetista na tentativa de alcanar o melhoramento social.

    Abordando a temtica, perspetivamos e confrontamos diferen-tes vises projetuais que espelham a viso moderna at II Grande Guerra. Referenciamos deste modo, e introduzidos pela sociedade tecnolgica emergente, os Futuristas e os seus projetos utpicos como a La citt nuova de Antonio Sant Elia. Estes sero alvo de estudo para compreenso das origens que, conjuntamente com ou-tros movimentos menores, fundariam o modernismo e consequen-temente aboliriam os revivalismos e os historicismos provenientes do sculo XIX. No seguimento ideolgico das bases fundadoras do Movimento Moderno estudaremos como este se ir desenvolver ao longo da primeira metade do sculo XX, mapeando e confrontando diferentes perspetivas do ato projetual modernista. Para tal aborda-mos trs perspetivas que assumiam o melhoramento da cidade e a sociedade em geral atravs de pontos ideolgicos dspares: a recusa do projeto como utopia ou revoluo que Le Corbusier, atravs do seu projeto La Ville Radieuse, ambicionava para uma sociedade que se queria limpa, mecanizada, funcional e longe de historicismos, a adaptao do projeto s exigncias revivalistas do Fascismo que assolava os pases Europeus atravs do caso de estudo da interpreta-o cnica e heterpica que foi a Exposio do Mundo Portugus, e

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    os ideais utpicos presentes na Feira Mundial de Nova Iorque (1939-1940) que, contextualizados numa sociedade que se pretendia con-sumista, incentivavam as pessoas a reformular o seu mundo envolto para atingir o novo ideal projetivo que os designers dos pavilhes da exposio defendiam.

    O projetista modernista destacava-se como uma autoridade que impunha a modernidade sociedade no contexto da cidade. Muitas dessas experimentaes ideolgicas ficaram por representaes ut-picas que, devido necessidade de um elevado oramento, apenas se chegaram a materializar atravs do carter expositivo. Intimamente associadas ao utopismo estas formularam uma terra de ningum que todos deveriam aspirar a habitar.

    Captulo 2: Um novo mundo para a modernidade

    A II Grande Guerra, caracterizada pelos horrores dos regimes to-talitrios, abria novamente debate para a reconstruo da sociedade, da cidade e da modernidade. O desmantelamento do CIAM em 1958 espelhava a desorientao ideolgica que viria mais tarde a impul-sionar a criao de uma srie de grupos politizados e movimentos sociais como os ecologistas, as feministas, os New left thinkers, e o movimento estudantil, que em 1968 iriam expressar-se numa revol-ta social escala mundial. O estado de desorientao, de sofrimento, de explorao, da crise moral e poltica da sociedade, impulsionavam a renovao do utopismo a partir da derrocada do estado vigente.

    Conjuntamente com os movimentos sociais e as respetivas pol-ticas nascem tambm, nas artes em geral, as vanguardas ps-moder-nas e o movimento anti-design. Grupos associados ao projeto de de-sign, sendo mais tarde apelidados de radicaisq, que intensificaram a procura de alternativas e privilegiaram o cariz utpico nas suas intervenes, quer fosse no contexto Europeu com as exploraes tecnolgicas dos Archigram ou os ensaios distpicos dos Archizoom e as experimentaes participativas do S.A.A.L., quer fosse no pa-norama Norte-americano com as performances e eventos contra cul-turais dos AntFarm, ou no contexto Nipnico com os Metabolistas a expressarem a cidade sob a forma de um organismo vivo. Eram cria-das utopias, ainda que fossem imperfeitas e de curta durao, que atualizavam o meio urbano para o novo desejo social. Utopias que, com as suas caractersticas de carcter renovador, se designaram de Critical Utopias (Vieira, 2010).

    Apesar destas vises terem, na generalidade, permanecido no imaginrio urbano e nunca terem encontrado uma expresso cons-

    q O termo radical usado para deno-minar estes grupos de design desen-volvido e cunhado por Germano Ce-lant na dcada de 1960. Aps conhecer Alessandro Mendini, na poca editor da revista Casabella, convidado a colaborar com a publicao num con-texto ideolgico mais ligado arquite-tura. A transio do contexto da arte para a arquitetura leva a que Germano Celant procure interligar e reforar os laos entre as duas temticas. assim, neste seguimento ideolgico de fuso, que o autor comea a utilizar o termo radical e o publica em 1969, de forma oficiosa, no artigo Radical Architectu-re to Arte Povera. Mas s na exposio Italy: the new domestic landscape, rea-lizada no Museum of Modern Art de Nova Iorque em 1972, que o design primeiramente denominado por Germano Celant como Radical design (Casciani, 2010).

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    trutiva, o seu desejo de questionar a realidade, ao influenciar conce-es de espao, ao revelar desejos por alternativas e ao incentivar o desenvolvimento de novas intervenes urbanas, faz delas uma base slida e pragmtica no estudo contemporneo da cultura de proje-to. Compreender a forma como estas pem em causa, reinterpre-tam, reformulam e desenvolvem o pensamento modernista e as suas propostas urbanas do incio do sculo XX ir criar-nos uma base slida de conhecimento de como o utopismo aliado ao ato projetual podero reformular, mais pragmaticamente, o mundo em que vive-mos. Este espao temporal ps-moderno formular-se- como uma base ideolgica e uma introduo a uma terceira fase do Movimento Moderno que hoje vivemos.

    Captulo 3: Contemporaneidade e altermodernidade: as narrati-vas disruptivas

    Vivemos hoje numa poca em que a crise econmica, ecolgica, social, poltica e filosfica voltam a impulsionar os revivalismos e a procura por um sistema internacional econmico baseado na per-feio. A esta nova condio, Pierre Bourdieu (1998), designa de utopie du noliberalisme. Albergado no medo de grandes depresses como as que aconteceram no passado, este sistema procura a lgica do mercado puro atravs da aplicao de um conjunto de polticas baseadas na represso e sancionamentos para todo o tipo de obst-culos que vo de encontro ao mtodo estipulado. Um sistema que se quer automatizado e implacvel e que vise como objetivo final, numa perspetiva monetria, o fator lucrativo. Ao processo de im-plementao desta lgica vo-se aglomerando fatores como a enfa-tizao das diferenas sociais, a substituio do fator cultural pelo fator comercial e a privatizao e destruio da esfera pblica e do seu respetivo patrimnio.

    Conscientes de que o patrimnio pblico seria o ltimo ele-mento capaz de contra agir sobre os efeitos impostos e abdicando da reduzida teorizao da forma e contra forma e ao/reao, co-meam a surgir exponencialmente em projetos e conferncias no campo das artes, novos padres associados ao que Andrew Blauvelt (2011) define como componentes de uma terceira fase da histria do Movimento Moderno. A era do design relacional e contextual, que se impe contra a individualizao e privatizao dos valores sociais, assume-se como um processo de reclamao do espao p-blico atravs da sua dimenso performativa, pragmtica, aberta, ex-periencial, participativa e orientada para o processo. Uma prtica

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    que fundada pelas experimentaes do sculo XX, e se apoia em movimentos sociais emergentes como occupy wallstreet, mas que se preocupa mais com os efeitos do design que vo para alm do seu objeto final, conotaes inerentes ou simbolismo cultural.

    Numa lgica pragmtica de curto prazo, em que o risco se tor-na um dos principais obstculos ao sistema vigente, a sociedade contempornea reflete uma inaptido de pensar o futuro como um domnio para a reflexo e a especulao dos valores presentes. O captulo 3 surge assim como uma interpretao para uma terceira vaga do Movimento Moderno, como um terminar da revisitao e mapeamento entre o pensvel e o impensvel ao longo da mo-dernidade. A perceo e reinterpretao da condio presente como culminar de um processo, torna-se a base para percebermos qual o enquadramento do designer na sociedade atual e de como este pode-r ser o tradutor do ethos contemporneo. Uma tomada de posio que se afaste dos aspetos urbansticos e vivencias tomados como certos. Um desafio s definies comuns sobre o que possvel e impossvel. Uma reformulao do conceito de projeto que aspire a novas formas de intenes crticas utpicas que, no final, abanem o terreno imaginativo nos quais as cidades so pensadas, concebidas e vividas.

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    Uma modernidade para um novo mundo

    A viragem do sculo XIX para o sculo XX trouxe uma nova experiencia de vivncia urbana. O contexto citadino europeu e norte-americano, ricos nos recentes conhecimentos e desenvolvi-mentos cientficosr, transformava-se gradualmente pela mo da industrializao. O quotidiano e a nova experincia habitacional urbana transformavam-se de forma constante e a um ritmo vertigi-noso. Esta experiencia, sem um fim vista, exigia, em unio com a metrpole, um conjunto de novas infraestruturas que traduzissem todo o desenvolvimento inerente. Surgiam novos espaos, meios de comunicao social, horrios, servios, produtos e domnios cien-tficos para alimentar os desejos e devaneios das massas popula-cionais. Crescia assim um novo ambiente urbano alimentado pelas multides, pelo crescente trfego de carros puxados a cavalo, pela artificialidade associada nova iluminao e renovada publicidade que se caraterizava agora por novas concees de montras, cartazes de rua e billboards, e pela crescente capitalizao urbana (Baltazar, 2010).

    O fascnio vivia agora em comunho com o horror. Os avanos tecnolgicos, unanimemente considerados como fatores de melho-ramento das condies de vida da populao, ao mesmo tempo que remodelavam e caracterizavam a crescente evoluo da sociedade Ocidental, incitavam a novos comportamentos humanos. Os modos de vida, inseridos num sistema social industrializado e capitaliza-do, surgiam exponencialmente mecanizados. A sociedade em que o ser humano se integrava e interagia, assemelhava-se gradualmente a uma grande mquina industrial que tornava o indivduo numa pequena pea de engrenagem. Esta sociedade utpica e mecanicista refletia o conceito de eficincia no contexto urbano, expressando a necessidade de estandardizao e disciplinao da individualizao dos comportamentos humanos (Eaton, 2001). A fora de trabalho tornava-se a funo primordial para que a mquina urbana pudes-se continuar a funcionar eficientemente, acelerando, o fator tempo, vertiginosamente at contemporaneidade.

    O despertar da sociedade para as mudanas que adivinham da industrializao, estimulou o interesse dos artistas e designers para o novo fenmeno urbano. Surgia um interesse renovado de conectar

    r A viragem do sculo XIX para o s-culo XX caracterizou-se por um inten-so desenvolvimento cientfico que se traduziu em diversos objetos e siste-mas inovadores para a poca. Podemos enfatizar exemplos como o aproveita-mento da energia eltrica, a inveno de inmeras mquinas como a calcu-ladora, o gramofone, o microfone, ou a mquina de escrever, e o encurtar de distncias com o design de objetos como o telefone, o rdio, o telgrafo, o automvel e o avio (Eaton, 2001). Tais descobertas permitiram reformu-lar profundamente a sociedade em que as populaes viviam e instaurar um novo habitar associado.

    Figura 1: MetropolisPaul Citroen1923

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    as diferentes artes ao novo espirito da poca. Era preciso reformular e equiparar o pensamento de projeto ao espirito da sociedade emer-gente. O mundo precisava de ser repensado sob a alada da mecani-zao e a racionalizao. Do mais elementar objeto do quotidiano do ser humano, passando pelas ferramentas que utiliza e terminan-do nos locais que habita ou interage, surgia a ideia da necessidade de reequipar e revestir o novo individuo. A mquina e a produo em massa assumiam-se como modelo inspiratrio para as artes e o design. A beleza perdia o ornamento medida que ganhava a racio-nalizao e a funcionalizao num ato de projeto que tinha de ser pensado para as mquinas, concebido pela industria e experienciado como um resultado do novo mundo tecnolgico. Nenhuma ideia se tinha tornado mais central na colaborao entre artistas, designers e arquitetos que sonhar com uma sociedade moldada pela tecnologia, caracterizada no final, pela perfeio idealista associada mquina (Wilk, 2006).

    1.1. A morte do projeto historicistas

    a partir de Itlia que expomos ao mundo este nosso violento, perturbador

    e incendirio manifesto. A partir de hoje fundamos o Futurismo porque queremos

    livrar esta terra dos hediondos e gangrenosos professores, arquelogos, cicerones, e

    antiqurios. [] Museus, cemitrios!...verdadeiramente idnticos no sinistro empur-

    rar de corpos que no conhecem. Dormitrios pblicos onde se dorme para sempre

    lado a lado com seres detestveis ou desconhecidos. [] Ns queremos libert-la dos

    inmeros museus que a cobrem como muitos cemitrios. Peguem nas vossas picare-

    tas, nos vossos machados e martelos e destruam, destruam sem piedade as cidades

    veneradas!t (Tommaso Marinetti, 1909, p. 1, traduo livre).

    O design modernista, assim como introduzimos anteriormen-te, nascia conjuntamente com a utopia do projeto para um novo mundo tecnolgico, traduzindo-se inicialmente na emergncia de diversos movimentos experimentalistas da nova condiou. Des-tes movimentos enfatizamos o Futurismo como o mais completo movimento artstico e social que se expandiria por todos os campos da arte, e influenciaria uma nova gerao de projetistas no seio do movimento moderno.

    O Futurismo como movimento artstico e literrio, surge oficial-mente a 20 de Fevereiro de 1909 com a publicao Manifeste du fu-turisme no jornal francs Le Figaro. O seu autor, Filippo Marinetti, rejeitando o passado e incentivando a participao violenta do povo

    s Para a formulao deste ttulo ins-piramo-nos na passagem original de Tommaso Marinetti publicada no jor-nal Le Figaro no ano de 1909: Nous sommes sur le promontoire extrme des sicles! .... A quoi bon regarder derrrire nous, du moment quil nous faut dfoncer les vantaux mystrieux de limpossible? Le Temps et lEspace sont morts hier.

    t Transcrevemos a passagem origi-nal em francs: Cest en Italie que nous lanons ce manifeste de vio-lence culbutante et incendiaire, par lequel nous fondons aujourdhui le Futurisme, parce que nous voulons dlivrer lItalie de sa gangrne de pro-fesseurs, darchologues, de cicrones et dantiquaires. [...] Muses, cimeti-res!... Identiques vraiment dans leur sinistre coudoiement de corps qui ne se connaissent pas. Dortoirs publics o lon dort jamais cte cte avec des tres has ou inconnus. Frocit rciproque des peintres et des sculp-teurs sentre-tuant coups de lignes et de couleurs dans le mme muse.[...] Viennent donc les bons incendiai-res aux doigts carboniss!... Les voici! Les voici!... Et boutez donc le feu aux rayons des bibliothques! Dtournez le cours des canaux pour inonder les caveaux des muses!... Oh! quelles na-gent la drive, les toiles glorieuses! A vous les pioches et les marteaux!... sapez les fondements des villes vn-rables..

    u A ideologia de vanguarda associada ao design moderno introduzida na sociedade atravs da experimentao dos paradigmas vigentes por parte de diversos movimentos artsticos. A sua contribuio acabar por se ca-racterizar numa sucesso de ismos. Desta lista poderemos enfatizar a contribuio do Construtivismo ao negar a arte pura em prol das novas perspetivas oferecidas pela indstria, a formulao da noo do abstrato e do geomtrico por Kazimir Malevich no movimento Suprematista, naquela que foi considerada a primeira escola sistmica de pintura abstrata do movi-mento moderno, o movimento De Stijl que se assumiu como um dos mais pu-ros movimentos abstratos da poca e o Futurismo atravs da sua radicalidade de incentivo participao popular e artstica num futuro que rejeita-se e rompe-se com os valores desatualiza-dos do passado (Blauvelt, 2011).

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    e da classe artstica em prol de um novo futuro, dava os primei-ros passos para a introduo do movimento futurista na sociedade Italiana e internacional. Fundava tambm, simultaneamente, algu-mas das principais bases para um novo pensamento urbano e social que assumiria a rutura do projeto sob o ponto de vista historicista. (Gentile, 2010) A esta ideologia associava-se um idealismo polti-co nacionalista, que mais tarde se associaria aos ideais intelectuais de Mussolini, caracterizados pela radicalidade e pela violncia. O projeto urbano ganhava uma nova combinao de ideais polticos e tecnolgicos que honravam tanto a guerra, a agresso e o militaris-mo, como a velocidade, o movimento, a mecanizao, a tecnologia e a desordem energtica. S esta abordagem permitiria praticar a hi-gienizao do mundo para a nova metamorfose social e tecnolgica caracterstica da cidade moderna (Eaton, 2001).

    A cidade Futurista deveria espelhar a atitude revolucionria da urbe emergente, absorvendo a sua energia como estimulante para uma nova era, longe da urbanidade passada, melanclica e doentiav. Os novos ritmos urbanos, traduzidos infraestruturalmente sob a forma de estaleiros, estaes ferrovirias, fbricas, pontes, locomoti-vas e qualquer tipo de estrutura que enfatiza-se o ritmo acelerado do meio urbano, eram enaltecidos pelos Futuristas e assumidos como base para o ato de projeto.

    A primeira viso utpica dos Futuristas para o contexto urba-

    v Obras como La citt che sale de Um-berto Boccioni, retrato da luta pela imposio da nova condio em detri-mento da condio passada, e Dyna-mism of a dog on a leash de Giacomo Balla, expresso de uma nova urbe dominada pela velocidade e novos rit-mos de vida, retratam, pela perspetiva Futurista, a nova sociedade emergente e os valores pelos quais ela dever-se-ia reger futuramente.

    Figura 2:

    Figura 2: La Citt NuovaSantElia1914

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    no oficializa-se formalmente sob o ttulo La Citt Nuova. Projetada pelo arquiteto italiano Antonio Sant Elia e exibida pela primeira vez na exposio Nuove tendenze em Maio de 1914, La Citt Nuova, era a primeira viso dos novos moldes sob o qual a cidade moderna dever-se-ia apresentar futuramente. Esta, abordada como uma m-quina dinmica que abraava os novos ritmos e rompia com o ante-rior projeto urbano, deveria tornar-se um ataque direto e violento s ideias clssicas ligadas elegncia e aparnciaw (Pinder, 2005). Vas-tas reas habitacionais davam lugar construo de cidades monu-mentais que assumiam a funcionalidade e rejeitavam o ornamento, privilegiando, no final, todos os recursos tecnolgicos e cientficos que poderiam satisfazer todas as necessidades dos novos hbitos e espritos (Eaton, 2001). Uma mquina massiva e dinmica que abraava os ritmos da rpida urbanizao dos finais do sculo XIX e os princpios do sculo XX. A dinmica industrial, j referenciada anteriormente por elementos como as fbricas, os motores autom-veis, a locomotiva e os avies, tornava-se o smbolo da velocidade, energia e eficincia mecnica, e servia como guia para o projeto da nova cidade (Kim, 2005). Nascia uma nova condio projetual cuja existncia poderia apenas ser justificada com as condies nicas da vida moderna e nunca como uma continuidade histrica. Uma nova cidade para um novo estado de esprito!

    O prottipo urbano teorizado e traado pelos Futuristas, servi-ria como ponto de partida para as dramticas mudanas projetuais urbanas que a cidade moderna viria a sofrer futuramente. As ima-ginaes e devaneios Futuristas funcionariam como alicerces para a remodelao projetual que a primeira fase do Movimento Moderno viria a assumir ao introduzir, aps a I Grande Guerra, experimen-taes como a Ville Radieuse que punham de parte j o programa futurista, com o seu ativismo nacionalista intrnseco, davam lugar a um pensamento mais social e aproximado do habitante do contexto urbano.

    O futurismo pode ser encarado, no final, como um fora introdu-tria do ser humano livre que quanto mais liberdade usufrui mais desprezo lana sobre a cultura e sociedade em que se insere. O ser humano livre assumia-se como um guerreiro, alojando com ele sen-timentos que poderamos afirmar estarem j relacionados com uma postura de vanguarda. a violenta erupo que se tornou o Futu-rismo que leva a que cada ser humano pensador da poca sentisse a necessidade de realizar interiormente e exteriormente uma mudan-a intelectual progressista. (Rowe & Koetter, 1983).

    w Para melhor compreenso da ideia expressa, salientamos a expresso do arquiteto Sant Elia (1914, Maio): The problem of Modern architecture is not a problem of rearranging its lines; not a question of finding new moldings; new architraves for doors and windo-ws But to raise the new-built struc-ture on a sane plan, gleaning every benefit of science and technology re-jecting all that is heavy, grotesque and unsympathetic to us (tradition, style, aesthetics, proportion)..

    Figura 3: La Citt NuovaSantElia1914

  • Figura 3:

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    1.2. A utopia modernista: projetar a tabula rasa do novo mundo

    Arquitetura e planeamento urbano! Temos de equipar a era da mquina! Te-

    mos de usar os resultados dos triunfos tcnicos modernos para tornar o ser huma-

    no livre.x (Corbusier, 1967, p. 155, traduo livre).

    O problema de adaptao, nas quais as realidades da nossa vida se pem

    em questes. A sociedade est preenchida de desejos violentos que poder obter ou

    no. Tudo reside neste facto: tudo depende do esforo realizado e a ateno presta-

    dos a estes sintomas alarmantes. Arquitetura ou revoluo. A revoluo pode ser

    evitada.po (Corbusier, 1986, p. 289, traduo livre).

    O fervor utpico, despoletado pelos horrores da I Grande Guer-ra e a instabilidade a que eles seguirampp, espalhava-se pela sociedade a um ritmo acelerado e substitua, como fator privilegiado, a dimen-so tecnolgica, defendia aguerridamente pelos Futuristas, pela di-menso social. Apesar de ainda se considerar a utopia tecnolgica, surgia agora uma crena mais expressiva de que a condio humana poderia ser mudada e curada pelas novas abordagens projetuais da arte e do design mais espirituais, mais sensuais, e mais racionais (Wilk, 2006).

    A necessidade de uma governao racional e eficiente para atin-gir as mudanas necessrias e desejadas a nvel econmico e social ajudavam a fermentar as novas correntes ideolgicas. Politicamente associados a sistemas totalitrios, que mais tarde viriam a atingir o seu auge por toda a Europapq, estes novos e emergentes grupos tec-nocratas pretendiam atacar a desordem que se vinha a instalar nos pases da sociedade ocidental. Aspirava-se a uma liderana ditatorial que concedesse a um grupo elite, com conhecimentos e experiencia, poderes para gerir os seus pases de forma ordeira, e eficiente e de modo planeado. A necessidade de um chefe supremo para o planea-mento da cidade e consequente gesto no passou ao lado dos proje-tistas. A possibilidade de sonhar com a aprovao de novos planos polticos e projetuais para a cidade abria um novo e quase infinito leque de possibilidades. A tentao da possibilidade de construo de novos sistemas urbanos completos, coerentes, justos e sobretudo indiscutveis, era para muitos a crena de que a era industrial ainda s tinha sido percorrida numa primeira fase e que a sociedade oci-dental estava prestes a entrar numa vanguarda modernista (Eaton, 2001).

    A urgncia de mudana da desordem e do caos instalado nas grandes cidades e na sociedade em geral, assume-se, no seio

    pq O panorama Portugus, com a im-posio do Estado Novo atravs do golpe militar realizado a 28 de Maio de 1926, no foi exceo regra. Alimen-tado pela rutura com a instabilidade gerada pela Primeira Repblica, a Se-gunda Repblica, como viria a ser ape-lidado posteriormente, defendia ideo-logias conservadoras e autoritrias. A necessidade de ordem e equilbrio nas contas pblicas e destinos futuros do pas levou a que Antnio de Oliveira Salazar, anteriormente Ministro das Finanas, surgisse como principal po-ltico associado liderana do regime.

    x Transcrevemos a passagem original em ingls: Architecture and City plan-ning! We must equip the machine age! We must use the results of modern technical triumphs to set man free..

    po Transcrevemos a passagem original em ingls: The problem is one of adap-tation, in which the realities of our life are in question. Society is filled with a violent desire for something which it may obtain or may not. Everything lies in that: everything depends on the effort made and the attention paid to these alarming symptons. Architectu-re or Revolution. Revolution can be avoided..

    pp carnificina ocorrida durante a I Grande Guerra seguiu-se a turbulncia gerada por revolues na Rssia e na Alemanha, o crash na bolsa Nova-ior-quina de Wall street, e a consequente crescente subida do desemprego e da inflao. Todos estes fatores viriam a ser refletidos no aumento do des-contentamento populacional perante a condio democrtica parlamentar em que viviam. Classificando-a como inoperativa e obsoleta era ambiciona-da uma mudana social que corres-pondesse e satisfizesse o meio social, econmico e poltico.

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    dos principais projetistas envolvidos nos Congrs Internationaux dArchitecture Modernepr, como a principal prioridade a enfrentar para a mudana e resoluo dessas mesmas crises sociais e urbanas. A expresso arquitetura ou revoluo (Corbusier, 1986, p. 289, traduo livre) usada por Le Corbusier manifestava a crena que os intervenientes do CIAM tinham na mudana do espao urba-no atravs da radicalidade do ato projetual e do planeamento ur-bano. Este dever-se-ia estender aos mediticos domnios dos aspe-tos sociais, culturais e polticos, influenciando-os e adaptando-os, conjuntamente com quem habita a cidade, numa soluo final. O projeto assumia uma nova forma interpretativa da cidade, que nem sempre se uniformizou na sua abordagem projetual, na procura da vigilncia do caos e na tentativa de controlo da existncia desordei-ra e da ambivalncia. O projetista, nova autoridade no singular, dever-se-ia enquadrar numa pirmide hierrquica que solucionava os problemas urbanos a partir de uma elite administrativa. Esta en-tidade deveria guiar o povo, posicionado no fundo da pirmide, e impor, num projeto de colonizao, a modernidade aos inciviliza-dos. neste enquadramento ideolgico que o designer se comea a denominar como um doutor do espao e do tempo, formulando e transmitindo a nova perceo da cidade e investindo projetualmente na mudana dos hbitos comportamentais da sociedade em prol de uma mudana social (Pinder, 2005).

    pr Fundados no ano de 1928, os Congrs Internationaux dArchitecture Moderne foram uma organizao res-ponsvel por uma srie de eventos e congressos organizados pelos mais influentes arquitetos da poca. Enca-beada por Le Corbusier, esta organi-zao tinha como objetivo principal espalhar os principais princpios do Movimento Moderno. Abordando domnios como a arquitetura, o urba-nismo, a paisagem, o design industrial e as artes em geral, a CIAM abordava o ato projetual como uma ferramenta poltica e econmica que ambicionava remodelar e mudar o mundo. O seu desmantelamento acaba por ocorrer no ano de 1959 quando diversas vises projetuais comeam a divergir do c-none comum da organizao.

  • 26

    1.2.1. La ville radieuse: a recusa da utopia como utopia?

    Abraando as vanguardas tecnolgicas e industriais, Le Corbu-sier, assim como os futuristas o haviam feito anteriormente, abor-da a cidade com uma viso mecanicista. Mas a sua viso, embora com um seguimento ideolgico que se apodera de diversas fontes de conhecimento do Futurismo, rompe com o esprito anrquico e catico que estes procuravam. O seu projeto urbanstico, com a mquina como o principal smbolo ideolgico, deixara de ser ins-pirado nas caractersticas violentas e selvagens que os Futuristas defendiam. Le Corbusier assumia agora o projeto urbano atravs de caractersticas geomtricas, da eficincia, da preciso, do poder e da ordem (Pinder, 2005). Partia-se em busca de uma nova linguagem plstica que deveria ser apreendida de forma simplificada e acess-vel. Um projeto racional que se adaptasse a todos os meios no qual este se inserisse e que aspirasse ao conceito de universalidade, na medida em que transcendesse todas as diferenas sociais e culturais (Blauvelt, 2011).

    A Grande Guerra, e os efeitos destrutivos que teve na sociedade em geral, levou Le Corbusier a considerar a cidade como uma tabula rasa para uma nova era. Nascia o pensamento de que o artista deve-ria agora interpretar as verdades fundamentais de maneira a dar for-ma a este novo mundo. A sua perspetiva deveria ser harmoniosa e industrializada, afastando a descoordenao entre a sociedade e o seu ambiente fsico, e evitando novas revolues. Assim, em 1922, Le Corbusier apresenta pela primeira vez a pblico, no Paris Salon d Automne, os primeiros esboos do seu projeto A contemporary city for three million people. O seu projeto, imaginado numa plancie sem qualquer tipo de vestgios habitacionais, abordava a cidade atravs de uma beleza de ordem. O seu corao, anteriormente espao que albergava palcios ou locais religiosos, transformava-se agora num local de transporte, de comunicao e intercambio, baseado em liga-es pedonais, rodovirias, ferrovirias e areas. Este seria rodeado por vinte e quatro arranha-cus que albergariam o centro empre-sarial e de poder da cidade, sedeando entre quinhentos mil e oito-centos mil trabalhadores e locais sociais como lojas, restaurantes e comodidades culturais. Seria este o crebro da cidade onde os gabi-netes dos capites da industria, da finana e da poltica administra-riam a ordem de todo o conjunto urbano (Eaton, 2001).

    Figura 4: Quarteiro residencialA Contemporary City for Three Million PeopleLe Corbusier1922

    Figura 5: Quarteiro residencialA Contemporary City for Three Million PeopleLe Corbusier1922

    Figura 6: Estao CentralA Contemporary City for Three Million PeopleLe Corbusier1922

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    Figura 4:

    Figura 5:

    Figura 6:

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    Apesar de facilmente apelidveis de utpicas, estas vises, quan-do questionadas pela sua viabilidade de construo, eram recusadas por Le Corbusier como tal. A ideia de que esta seria uma cidade atual e pertinente para a poca levou-o inclusive a trabalhar sobre o seu projeto para o apresentar posteriormente, em 1925, no Pavillion de l esprit nouveau para a Exposition International ds Arts Dcoratifs et Industriels. Propondo-se a recusar a ideia utpica que se tinha ge-rado volta do seu projeto e notoriamente influenciado pela viagem que havia realizado cidade de Manhattan, Le Corbusier, transfor-ma o seu projeto numa verso pragmtica para a reconstruo da cidade de Paris e constri a sua maqueta Voisin Plan. A sua propos-ta caraterizada pela destruio do centro de Paris a norte do rio Siena, rotulando esses quarteires como zonas doentes da cidade, que precisavam de ser limpos do lixo antigo. Conforme a grelha urbanstica da Contemporary city for three million people, Le Corbu-sier, projeta dezoito arranha-cus para os poderes administrativos e comerciais que se faziam acompanhar de inmeros andares de luxo. Defendendo um novo e eterno apoderar do centro da cidade, a sua ideia fazia tabula rasa do centro de Paris e apenas preservava uma srie de monumentos especificamente seleccionados conforme a sua relevncia histrica (Pinder, 2005). Mais uma vez as suas ideias foram rejeitadas e desprezadas pela crtica, pelos polticos e pelos industriais franceses que, apesar de favorveis s ideias industriais subjacentes, ainda tinham muitas dvidas quanto viabilidade de construo de tal projeto.

    Figura 7: Voisin PlanLe Corbusier1925

    Figura 7:

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    Na dcada de 1930, Le Corbusier, reformulando as suas ideias urbansticas e num ltimo flego para conseguir traduzir o seu pro-jeto para a realidade, publica a Ville Radieuse para a cidade de Esto-colmo. Com apenas algumas diferenas na distribuio de habita-es em funo do tamanho da famlia em vez da sua posio social e econmica, o novo projeto continuava a tentar praticar a limpeza e purificao do caos e da monotonia atravs da arquitetura. O seu projeto, uma vez mais fracassado, nunca teve um fim concretizvel. Apesar disso, as suas ideias foram inspirao para outros arquitetos que, segundo Le Corbusier, no as souberam aplicar devidamente. Esta insatisfao crescente leva a que Le Corbusier se afaste do pa-norama capitalista e se aliste no sindicalismo de direita. Os seus planos, como conjunto, nunca conseguiram ter um fim pragmtico, excetuando a srie de Unidades de Blocos Habitacionais que espa-lhou por Frana aps a II Grande Guerra Fishman, 1982).

    Mas contrariamente ideia formulada por Le Corbusier, muitas experimentaes formuladas por outros autores no mesmo contex-to ideolgico tiveram uma qualidade e impacto to grande quanto as suas. Poderemos referir como exemplo as formulaes projetuais de Cassiano Branco que, contextualizadas no panorama Portugus e notoriamente comparados com os planos de Le Corbusier para Paris ou as vises utpicas da La Citt Nuova de Sant Ellia, se afirmam

    Figura 8: Ville RadieuseLe Corbusier1930

    Figura 8:

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    como propostas com grandes atributos. Os modelos que o arquiteto Cassiano Branco formula com projetos como a Cidade do Filme Por-tugus ou o Plano de Urbanizao da Costa da Caparica represen-tavam, tomando em conta o atraso temporal que Portugal vivia, o que melhor se fazia no contexto Portugus e Internacional da poca. Apesar da lacuna de conhecimento que transitava entre a Europa e Portugalps, Cassiano Branco projeta um plano urbano para a Costa da Caparica em que a luz, os cenrios, o movimento dos avies e automveis coexistem com grandes alamedas, amplos espaos de estacionamento e diversos espaos ldicos e culturais que se apoiam tambm num canal artificial para embarcaes de recreio. A viso utpica do autor assumiria um carter frente do seu contexto tem-poral e, mais tarde, viria a ser alvo de interesse pelo poder poltico e pela especulao imobiliria.

    Marcando o contexto projetual Portugus do sculo XX e solida-mente relacionado com o movimento modernista, Cassiano Branco , assim como muitos outros autores, influenciado e direcionado pelos ideais do Estado Novo (Brtolo, 2011). O seu percurso in-fluenciado pela vontade do regime em enaltecer o passado histrico portugus em que projeto e cenografia interligavam-se de modo a tentar criar uma viso ilusria e heterpicapt para o povo portugus.

    ps A comunicao entre Portugal e o resto da Europa era um fator quase inexistente. O conhecimento do que ocorria no exterior do mundo Lusfo-no era limitado e cingia-se a escassas viagens, raras publicaes ou relatos de experincias. Esta limitao comu-nicativa muito contribuiu para o sub-desenvolvimento projetual e o atraso ideolgico que Portugal assumia para com o resto do continente.

    pt Michel Foucault define primei-ramente htrotopies na conferncia Cercle dtudes architecturales em 1967. Segundo a sua definio, e no contexto apresentado no presente estudo, he-terotopia afirma-se como um espao singular real que confronta diversos espaos. Um microcosmos de dife-rentes ambientes de vrios locais ou espaos temporais que se materializa psicologicamente, por quem o utiliza, como um espao ambivalente entre a iluso e a realidade.

    Figura 9: Pormenor da soluo urbanstica para a Costa da CaparicaCassiano Branco1930

    Figura 10: Cidade do Filme PortugusCassiano Branco1930

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    Figura 9:

    Figura 10:

  • Figura 11:

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    1.2.2. A cidade cenogrfica: a utopia para um Portugal modernista

    () o projecto para a Costa da Caparica pode ser considerado o grande pro-

    jecto utpico da arquitectura portuguesa dos anos 30 e, sem surpresa, ao olharmos

    hoje para as magnificas planificaes como se estivssemos a ver um deslumbrante

    postal ilustrado de uma Caparica que nunca chegou a nascer. O que l se prope,

    pelo desmesurado da escala e pelo desajustamento entre os meios visionados e as

    perspectivas de lazer das classes dirigentes que, na sua maioria, se concentravam na

    linha do lado de c do Tejo e do Atlntico, dificilmente poderia ter sido concretizado

    no Portugal dos primeiros anos do Estado Novo (...) (Brtolo, 2011, p. 41)

    Os finais do sculo XIX e os princpios do sculo XX represen-taram um terrvel perodo identitrio para Portugalpu. O conceito de Estado Nacional tendia a enfraquecer gradualmente avizinhando-se um futuro afundamento econmico, social e democrtico. Numa urgncia nacional e perante o contexto historicamente agitado im-posta a ditadura do Estado Novo chefiada por Antnio de Oliveira Salazar.

    O Estado Novo, associado a valores e palavras de ordem como deus, ptria, autoridade, famlia e trabalho, contrariamente aos ante-riores governos, tendia a impor-se. Esta estabilidade muito se devia propaganda utilizada pelo regime. Propaganda que seria oficializa-da em 1933 com a criao do Secretariado de Propaganda Nacional, e que serviria como um dos departamentos com um papel fulcral na consolidao do poder poltico e da identidade nacional. De entre inmeros projetos de consolidao identitria nacional, a renova-o e a modernizao da sociedade atravs de um grande ciclo de grandes obras pblicas tendia a assumir-se como uma das principais vontades do regime (Milano, 2005). Assim, integrada num circuito premeditado de propaganda nova governao ideolgica Portugue-sapv, em 1938, Portugal veste-se poca com o anncio de Salazar, em nota oficiosa, de uma grande comemorao do duplo centenrio da independncia (1140) e da restaurao (1640) para o ano de 1940. Numa poca em que a guerra civil em Espanha assolava o pas vizi-nho e os regimes autoritrios pareciam impor-se na conturbada cena poltica europeia, o Estado Novo consolidava-se.

    A necessidade de realizar uma afirmao de unidade nacional levava a que Salazar nomeasse Antnio Ferro como secretrio-geral das Comemoraes Centenrias. A sua viso dividia o contexto Por-tugus em duas partes distintas: Lisboa como capital do imprio em que se deveria afirmar uma imagem de modernidade e o con-

    pv A ideia de uma grande exposio nacionalista para o ano de 1940 era j pensada desde 1929, ano em que o Crash da bolsa Nova-iorquina lanava a crise internacional. A iniciativa, as-sente sob um processo de propaganda internacional que pretendia desenvol-ver os temas do projeto Moderno e levar a imagem do chefe ao panora-ma internacional, materializava-se na Exposio Universal de Paris em 1937 e nas exposies e feiras de Nova Ior-que e So Francisco em 1939 (Rainha, 2010).

    pu A poca conturbada que Portugal viveu na transio de sculo foi despo-letada pelas sucessivas e rpidas mu-danas governamentais. O Regicdio de D. Carlos I e do seu irmo, o Prnci-pe Real D. Lus Filipe, no ano de 1908 e o posterior exlio do Rei D. Manuel II em 1910 viria instaurar a Primeira Repblica Portuguesa. Sofrendo tam-bm um duro golpe no ano de 1926, que levaria consequentemente sua queda, a Primeira Repblica dava lugar instaurao da Ditadura Militar que duraria at 1932. Com a subida, nesse mesmo ano, de Antnio de Oliveira Salazar, anterior Ministro das Finan-as, ao cargo de chefia do Governo, instaurar-se-ia a ditadura do Estado Novo at a Revoluo dos Cravos em 1974.

    Figura 11: O Estado Novo e a Exposio do Mundo PortugusSalazar, Dr. Augusto de Castro, Eng S e Melo e Arq. Cottinelli Telmo1940

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    texto provinciano que deveria mostrar o compromisso do interior rural tradicional com os ideais do regime. Assim, previstas de forma distinta, so formuladas duas intervenes comemorativas em dife-rentes regies do Pas: O Portugal dos Pequenitos e a Exposio do Mundo Portugus.

    Inicialmente pensada por Bissaia-Barreto, o Portugal dos Peque-nitos pretendia ser uma sntese historiogrfica do pas que expressa-se num parque temtico todo o mundo mitolgico que o Estado Novo propunha como imagem. Fazendo chegar a obra a Cassiano Branco, Bissaia-Barreto entregava os encargos ao seu gnio cenogr-fico que criaria uma celebrao de um Portugal faz de conta para uma terra de pequenitos.

    Assim, inaugurado em 1940, o Portugal dos Pequenitos surge como um espao em que o autor assume uma preocupao pela or-ganizao do espao no edificado, utiliza o seu gnio cenogrfico que se traduziria no carcter eminentemente ldico dos espaos, da representao quase naturalista de elementos como o rio, a foz e o oceano na integrao cnica de casas, praas, ruas e monumentos.

    Foi um dos trabalhos mais extensos de Cassiano Branco cujos seus 25 anos de projeto entre 1937 e 1962 viriam a refletir uma obra, privilegiava para os mais jovens, que ainda hoje se traduz, enquan-to parque urbano na zona de Santa Clara em Coimbra, como um dos parques temticos mais marcantes e visitados do pas (Brtolo, 2011).

    Figura 12: Portugal dos PequenitosCassiano Branco1937 - 1962Fotografia de Mrio Novais

    Figura 12:

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    Mas a Exposio do Mundo Portugus assumir-se-ia como o marco mais decisivo no sistema ideolgico do Estado Novo, tornan-do-se mesmo o seu mais importante acontecimento poltico-cultu-ral. Desejada e programada pelo prprio governante, que minuciosa-mente definiu os pontos do seu discurso, a exposio assumia uma dimenso indita em termos de recursos materiais e humanos, que nem mesmo o despoletar da II Grande Guerra viria a esmorecer. O empenho poltico nas comemoraes resultaria da compreenso da necessidade de legitimar pragmaticamente e publicamente uma re-presentativa prpria e relacionada ideologia. Para tal, projetada por Keil do Amaralpw, a Exposio do Mundo Portugus esforava-se por se associar aos traos mais marcantes do seu nacionalismo e a um passado mtico legitimador do futuro (Barros, 1996). Num momen-to de exaltao histrica,

    () buscou, pela mo dos artistas e a pena dos historiadores, difundir, com

    a clareza possvel, essas linhas invisveis da continuidade, que uniam a grandeza

    do passado, do presente e do futuro de Portugal. Corolrio de uma poltica de

    esprito, lanada na dcada anterior pelo audacioso director do Secretariado de

    Propaganda Nacional, Antnio Ferro, assiste-se mais conseguida conciliao da

    arte com a poltica no Estado Novo. Efmera e irrepetvel, contudo. Ningum escon-

    dia o valor propagandstico da exposio que o prprio Antnio Ferro sintetizaria:

    1140 [] explica 1640, como 1640 prepara 1940. Evocao histrico-ideolgica dos

    momentos edificantes, recheados de heris e lies exemplares. Espcie de fbula

    contada em imagens, smbolos, frases e palavras. A exposio ficaria como marco

    crucial da cumplicidade dos artistas com o Estado Novo ensaiada nos anos 30 e,

    simultaneamente, o seu ponto final e de viragem (Barros, 1996, p. 326).

    Belm, local estabelecido para a implantao do certame, era o lo-cal ideal para validar o discurso historicista da Exposio do Mundo Portugus. O edificado presente e respetivo cenrio envolto associa-va-o intimamente utopia dos Descobrimentos Portuguesespx. Mas as pr-existncias no se confinavam apenas aos edifcios do regime. Embora a verso oficial veiculada pelos rgos de divulgao do re-gime Salazarista dar conta da zona de Belm que receberia o certa-me como uma zona no urbanizada e de carcter disponvel para receber a exposio agendada, esta expressava diferentes valores e importncias para a cidade. A necessidade de fazer tabula rasa das construes que o regime considerava velhas, feias e afrontativas relao do Mosteiro dos Jernimos com o rio, veio deitar por terra o ncleo de onde emanava a urbanidade belenense, quer pela sua densidade populacional, quer pela concentrao de imveis com va-

    pw Francisco Keil do Amaral, arquiteto portugus diplomado pela Escola de Belas-Artes de Lisboa, torna-se pela primeira vez uma figura colaborante do regime ao vencer o concurso para o pavilho portugus da Exposio Internacional das Artes e Tcnicas na Vida Moderna realizada no ano de 1937 em Paris. No ano seguinte in-gressa na Cmara Municipal de Lisboa como arquiteto urbanista at ao ano de 1949.

    px Integrados no cenrio urbano, o Mosteiro dos Jernimos, a Torre de Belm, a Praa Afonso de Albuquer-que e o rio Tejo, eram um excelente ponto de partida para uma exposio que pretendia exaltar os momentos mais notveis do passado e da nao.

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    lncias habitacionais e comerciais. Conjuntamente com estes valo-res estava tambm associado o percurso histrico multissecular que remontava ao sculo XVI. Apesar do reconhecimento do seu efetivo valor patrimonial por parte dos responsveis, o seu edificado foi demolido para cerca de metade da sua rea, exaltando, no final, o ca-rter excecional, aristocrata e erudito dos demais edifcios de Belm. Assim, os decisores da Exposio do Mundo Portugus construam uma histria mistificada, omitindo os factos menos gloriosos do passado e destruindo conscientemente a histria real do patrimnio urbano belenense (Nobre, 2010).

    Figura 13: Porta da FundaoExposio do Mundo PortugusCottinelli Telmo1940Fotografia de Mrio Novais

    Figura 14: Lago e Pavilho da Honra e de Lis-boaExposio do Mundo PortugusCottinelli Telmo1940Fotografia de Mrio Novais

    Figura 13:

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    Voltada, por causa da guerra, a um pblico quase que s nacional e modesto em termos culturais, a Exposio do Mundo Portugus transpunha a realidade para segundo plano enquanto a efemeridade e a teatralidade levavam o espetador da exposio a revisitar a uto-pia do imprio Portugus na busca pelo Imprio Global. O local, diante o Mosteiro dos Jernimos, celebrizava a teatralidade desejada para retratar tais sentimentos. Ali se projetou o ncleo da exposi-o que viria a comandar o resto do arranjo urbanstico. A grande Praa do Imprio, projetada por Cassiano Branco e sua distintiva sensibilidade na criao de ambientes cenogrficos, foi construda no centro da nova urbe e defronte para o Mosteiro dos Jernimos, e era delimitada por dois pavilhes perpendiculares ao mosteiro, o Pavilho de Honra e de Lisboa de Lus Cristino da Silva e o Pavilho dos Portugueses no Mundo de Cottinelli. A entrada da exposio, marcada por quatro imponentes guerreiros medievais com a Cruz Nacional de Ourique nos seus escudos, fazia-se a Nascente e dava acesso srie articulada de pavilhes histricos que abordavam os temas da fundao, da formao e conquista, da independncia, dos descobrimentos e grande esfera cujo interior transportava os visitantes para uma atmosfera mstica. Salientamos tambm a esttua da soberania, mulher imponentemente couraada e segu-rando uma esfera armilar, que numa expresso severa personificava a imponncia do imprio. Deixando uma grande abertura para a importante colaborao cnica do rio Tejo, o horizonte visual era preenchido por uma grande nau Portugal e o monumento do Pa-dro dos Descobrimentos de Cottinelli e de Leopoldo de Almeida, que instigava a reflexo patritica e o expansionismo Portugus e fazia jus glria do Infante Navegador.

    A Exposio do Mundo Portugus, no seu sentido esttico, mar-ca um ponto de passagem extremamente significativo, ao adotar o modernismo racionalista, embora em modesta proporo no con-texto Portugus, que se vinha a desenvolver na dcada de 1920 e 1930, transformando-o de um discurso internacionalista, que estava na base da cultura moderna, para um discurso de exaltao nacional. Era procurado o ficcionismo e o momento cnico, que se diria ps-modernista no sentido cronolgico e no quadro nacional (Frana, 2004).

  • Figura 15: Espelho de gua e Padro dos DescobrimentosExposio do Mundo PortugusCottinelli Telmo1940Fotografia de Mrio Novais

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    Encerrada a 2 de Dezembro de 1940, a Exposio do Mundo Por-tugus, constituiu um dos mais importantes momentos culturais do regime e um espelho da ideologia que se alastrava um pouco por toda a Europa e afundava pases em regimes totalitrios. A busca da utopia assente nos nacionalismos era encarada por muitos como a nica salvao para a mudana politica e social. Fices efmeras, teatralidade e encenao eram caractersticas incitadas s massas, envolvendo a decadncia e a realidade vivida. Incentivava-se assim a busca pelo novo mundo na procura da sociedade ideal e da nova ordem atravs de um pensamento ideolgico intimamente ligado idade de ouro (Griffin, 1994).

    Muito pelos horrores da II Grande Guerra, a decrescente quali-dade de vida populacional e o forado refgio, ao longo da dcada de 1940, do desenvolvimento da prtica moderna nos motivos fol-clricos e historicistas associados retrica popular, comearam-se a levantar as primeiras vozes contestatrias contra a dominante exaltao do espirito Portugus (Milano, 2005). O arquiteto Fer-nando Tvora, mestre e fundador da Escola do Porto, e a Organi-zao de Arquitetos Modernos surgem comos as principais figuras contestatrias das amarras que afundavam o projeto Moderno em historicismos e revivalismos e proporcionavam um novo folego, no contexto Portugus, ao Movimento Moderno. Renovao, recupe-rao histrica e regionalizao seriam as novas palavras de ordem de trabalho para os prximos anos (Santos, 2009).

    1.2.3. Feira Mundial de Nova Iorque (1939-40): a janela para o mundo de amanh

    Referido j anteriormente, Portugal havia participado tambm na Feira Mundial de Nova Iorque de 1939-40 com o objetivo de levar a imagem do Chefe ao panorama internacional. Pretendia-se uma expressa valorizao de um gosto moderno internacionalizado, acabando com o que at ento se fizera, mostrando no estrangeiro Portugal vestido poca (Frana, 2004, p. 81). Mas a sua parti-cipao, conjuntamente com o seu carcter nacionalista, apenas se assemelhava aos restantes principais pavilhes com o seu carcter cenogrfico, desenquadrando-se ideologicamente do principal obje-tivo e cnones da feira.

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    A Feira Mundial de Nova Iorque de 1939-40 foi uma exposio realizada no bairro de Queens em Flushing Meadows nos Estados Unidos da Amrica. Considerada uma das exposies mais espe-taculares alguma vez realizadas esta contou com 45 milhes de vi-sitantes durante as suas duas temporadas, classificando-se como o evento mais participado do sculo XX. A par do nmero de en-tradas, tambm o nmero de pases patentes na exposio excedeu qualquer expetativa ao serem colaboradoras sessenta naes estran-geiras e trinta e trs estados e territrios dos E.U.A..

    Idealizada para se interligar com o consumo de massas, a ex-posio realizou uma campanha promocional massiva por todo o pas e no mundo, com centenas de programas e eventos, atraindo a ampla cobertura dos mdia e aliciando investidores privados que se traduziu no final na compra de mais de mil expositores. O sucesso da anterior Century of Progress Internacional Expositionqo era a prova fsica de que uma exposio de cariz mundial poderia estimular em muito o comrcio local e a indstria de Nova Iorque. Assim, apesar de um ser necessrio um grande investimento inicial, esperava-se que os visitantes da feira injetassem bilies de dlares na economia da cidade. Argumentada e defendida nesta ideia ideolgica, a feira ganhou a colaborao de investidores privados e locais, de investi-dores estaduais e de governos federais e estrangeiros, anunciando uma entusistica noticia para os interesses pblicos e comerciais.

    Figura 16: Sala do Descobrimento do Atlnti-co. Epopeia Martima.Pavilho de Portugal na Exposio Internacional de Nova IorqueFred K.1939Fotografia de Mrio Novais

    Figura 16:

    qo Originalmente idealizada para co-memorar o passado da cidade de Chi-cago nos Estados Unidos da Amrica, a exposio, inaugurada no ano de 1933, acabou antes por simbolizar a es-perana para um futuro americano que se afundava na Grande Depresso. In-timamente ligada ao progresso tecno-lgico, a exposio acabou por trans-mitir a necessidade de entendimento e cooperao entre a cincia, o comrcio e os governantes para que pudesse ser construdo o caminho para um futuro melhor (Rydell, 1993).

  • Figura 17:

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    Planeada para recuperar cerca de 1216 hectares de pntanos, par-cialmente ocupados por lixo da cidade, a construo fsica da feira comea oficialmente na Primavera de 1936 com a mobilizao de mi-lhares de arquitetos, engenheiros, designers, artistas, trabalhadores independentes e pessoas relacionadas com o comrcio. Apesar de os prazos de construo serem apertados a feira foi programada para abrir no ano de 1939, pagando o seu tributo ao passado sob a forma de homenagem a George Washington no seu 150, e enfatizando a promessa do futuro com o tema construindo o mundo de amanh. Era objetivo expor os desenvolvimentos mais recentes e promisso-res de ideias, produtos, servios e fatores sociais dos dias atuais, de tal forma que o visitante pudesse obter uma viso do que poderia esperar para si e para a sua comunidade no caminho futuro para uma sociedade melhorada.

    Planeada para albergar diferentes reas comerciais a feira foi dividida em sete setores: diverso, comunicao, comunidade, in-teresses, alimentao, governo, produo e distribuio e transpor-te. Neles se distriburam os diferentes expositores tendo particular interesse as exposies da American Telephone and Telegraph Com-pany, onde as chamadas telefnicas de longa distncias poderiam ser realizadas sem qualquer tipo de custo associado, a companhia Borden, que oferecia demonstraes de mquinas de ordenha eletro-nicamente operveis e a companhia Westinghouse, que impressiona-va o pblico geral com mascotes corporativas e o seu sensacionalista Elektro Robot, que mais tarde apareceria com o seu co mecnico Sparko (Weglein et al., 2008). Salientamos porm, de maior interes-se para este trabalho cientfico, a exposio Democracity apresentada no interior do Perisphereqp e a exposio Futurama organizada pela empresa General Motors.

    As exposies, Democracity e Futurama, assentes em solues projetadas pela arquitetura e pelo design, abordavam o futuro da cidade e o seu respetivo subrbio urbano atravs de uma perspetiva modernista. Durante uma das piores crises econmicas dos Esta-dos Unidos da Amrica, projetava-se uma viso futura mais radiosa, promovendo a ideia da cincia e do consumismo como a salvao para a Grande Depresso. Ambas as exposies, associadas ao es-pao urbano, antecipavam o mundo futuro atravs da inovao e o dinamismo, recorrendo a palavras de ordem como a tecnologia, a velocidade e a indstria. Estes eram os pilares basilares das suas vises utpicas para a urbe futura, traduzindo-se num modernis-mo americano que no se aplicava apenas ao espao urbano, mas tambm aos seus meios de transporte, ao seu mobilirio e a todos

    qp O Trylon & Perisphere, projetados por Wallace Harrison e Andre Fou-ilhoux, ficando o interior a cargo de Henry Dreyfuss, foram duas estrutu-ras modernistas que formaram o n-cleo central da primeira Feira Mundial de Nova Iorque. Medindo 210 metros verticais, o Trylon impe-se na poca como o mais alto elevador do mundo e o Perisphere como uma gigante esfera com aproximadamente 55 metros de dimetro. Posteriormente ambas as estruturas, a qual se dava o nome de Theme center, foram desmanteladas para uso de armamento na II Grande Guerra (Harrison, 1995).

    Figura 17: Poster exibicional do Perisphere e do The TrylonFeira Mundial de Nova Iorque1939 - 40

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    os dispositivos que interagiam com o ser humano (Bussler, 2008). Embora semelhantes, e em exibio paralelamente, as duas exposi-es sintetizavam, estilisticamente e ideologicamente, dois panora-mas diferentes no seio da arquitetura, do design e do planeamento urbano.

    O modelo Democracity, desenhado pelo designer industrial Hen-ry Dreyfuss, tinha como principal objetivo expressar o principal tema da feira: construir o mundo de amanh. Para tal tarefa foram pensados e projetados balces giratrios que albergariam os espeta-dores das exposies e que seriam, mais tarde, considerados o maior sistema eltrico movvel do mundo. Neles, ao longo de seis minutos, os espetadores iriam descobrindo o interior do Perisphere, que al-bergava uma imensa maqueta de uma cidade cheia de vida, ritmo e musica. A cidade, cheia de luminosidade, era idealizada para um mi-lho de pessoas, com uma populao ativa de duzentos e cinquen-ta mil trabalhadores. O seu espao urbano, interligado por grandes autoestradas ao longo de grandes reas verdes, era caracterizado por

    Figura 18:Figura 18: Democracity no interior do Peris-phereFeira Mundial de Nova IorqueHenry Dreyfuss1939 - 40

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    cinco cidades satlite com propriedades industriais e uma grande cidade central que funcionava como o corao de todo o sistema urbano. Apesar de atualmente estas vises nos parecerem banais, a Democracity teve uma grande influncia para os espetadores que vi-sitavam a Feira Mundial de Nova Iorque na medida em que esta era uma grande mudana que rompia com o mundo em que as pessoas viviam. No mundo projetado imperava a ordem, o rigor civilizacio-nal e o sentido de comunidade. Era um mundo em que as pessoas viviam, trabalhavam, faziam compras e divertiam-se em reas sufi-cientemente distintas uma das outras para se conseguir, no final, encontrar uma ordem geogrfica prpria. Para espetadores vindos da Grande Depresso, a ideia de um mundo ordenado em que as pessoas eram ao mesmo tempo livres era a viso de uma sociedade perfeita. O caos que tanto se temia e que era associado aos horro-res das guerras dava lugar a um mundo de amanh, construdo por milhes de homens e mulheres livres, independentes e interdepen-dentes. A exposio Democracity fazia, no final, juz promessa de uma vida pblica em que o balano entre a liberdade e a disciplina se equilibrava de forma complexa e que poderia ser construda a partir das ferramentas da poca (Wood, 2009).

    Figura 19: Figura 19: DemocracityFeira Mundial de Nova IorqueHenry Dreyfuss1939 - 40

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    Ligeiramente diferente, mas complementando de forma indireta a ideologia da exposio Democracity, estava sediada no pavilho da General Motors a exposio Futurama. Oferecendo uma viso pa-normica do mundo das estradas, das cidades e dos subrbios no ano de 1960, o designer industrial Norman Bel Geddes, realiza uma viso utpica da cidade que se materializava numa maqueta consti-tuda por meio milho de edifcios e cinquenta mil automveis mi-nuciosamente integrados em paisagens e sistemas de autoestradas. Sendo uma exposio patente no pavilho da General Motors a lgica de privilegiamento dos automveis e dos meios de transporte acaba por dividir a cidade em duas reas distintas: a de transporte, num primeiro nvel e com um grande sistema interligado de estradas, e a pedonal, num segundo nvel e com longas passarelas pedestres. Todo o cenrio privilegiava, assim como em Democracity, a ordem, o carter geomtrico, intimamente associado funcionalidade, e a dinmica, vinculada com a velocidade dos meios de transporte (Se-ven,2003). Os milhares de automveis dispostos pela cidade foram inclusive dispostos e espaados uniformemente de forma a se conse-guir sugerir a organizao e a falta de stress na Futurama. Em busca de financiamento para impulsionar tal projeto e consequentemente inflacionar a venda de automveis, era pretendido e idealizado pela General Motors um sistema de condies de trfego que assentasse no desenvolvimento nacional de vias de comunicao automobils-tica. Eram destacados os benefcios sociais do automvel e interliga-dos os conceitos de espao publico com o planeamento urbano das estradas de forma a transmitir uma mensagem de que a indstria e o novo planeamento urbano poderiam modificar caractersticas como os padres de sade, a limpeza, a higiene e a melhoria das con-dies de vida em geral. Associado tambm ao design dos objetos e edifcios patentes na maqueta estava o movimento Streamline mo-derneqq. Os seus princpios assentes na aerodinmica, racionalidade e movimento, alimentavam a sensao de inovao tecnolgica, de futuro, de velocidade, de mobilidade e de eficincia. Existia a crena de um design limpo e racional para todos os produtos e sociedades, alimentando a ideia de fluxo e eliminando a sensao de atrito em todas as reas da sociedade (Seven, 2003).

    neste contexto da modernidade que poderemos refletir sobre a funo do designer como um condensador das transformaes da sociedade em busca de novos modos de comunicar e esclarecimento para o novo pblico massificado. Este era o mediador, a pea neces-sria para realizar a ligao entre o pblico e o contexto social da poca de forma a se atingir a transformao social. Era assegurada

    qq Afundados na dcada da depresso econmica, os americanos viram sur-gir no mercado uma nova tendncia da Art Deco. A racionalizao, imperativa neste contexto econmico, despia a Art Deco do seu ornamento para dar lugar ao design aerodinmico associado ao movimento e velocidade desenvolvi-dos a partir do pensamento cientfico. Espalha-se por toda a sociedade uma srie de objetos ultra modernizados e racionalizados que gerariam consigo uma febre de consumo associada s novas formas futuristas.

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    como a sua principal tarefa, a realizao do processo de seleo e montagem dos diversos elementos a introduzir na mensagem para que o resultado final fizesse sentido para as massas. O pblico rece-tor silencioso deveria deixar de o ser para dar lugar a um espectador atuante. (Baltazar, 2010)

    A Feira Mundial de Nova Iorque de 1939, encerrou oficialmente no dia 27 de Outubro de 1940. Com a guerra a assolar os pases da Europa, a exposio comea a ser desmantelada logo no dia seguin-te O seu material de construo reutilizado para novas funes primordiais: alimentar o armamento usado para a guerra (Bussler, 2008).

    Figura 20: Futurama no Pavilho General Mo-torsFeira Mundial de Nova IorqueNorman Bel Geddes1939 - 40

    Figura 21: FuturamaFeira Mundial de Nova IorqueNorman Bel Geddes1939 - 40

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    Um novo mundo para a modernidade

    Os anos aps o conflito da II Grande Guerra foram caracteriza-dos, em diversas partes do mundo, pelos horrores dos regimes to-talitrios. O indivduo foi sendo gradualmente reduzido a um peo num enorme jogo de xadrez, uma pea numa imensa mquina, uma singularidade facilmente dispensvel. Esta mentalidade traduziu-se em milhes de mortes em nome dos regimes comunistas, fascistas e nazi (Eaton, 2001). A nica esperana para se conseguir sair desta condio seria comear a reconstruir a democracia e a modernida-de juntas. Uma modernidade que apesar de assumida no panorama internacional, estava agora assente sob um panorama indefinido, e consequentemente, era pela primeira vez seriamente posta em cau-sa. O rumo que havia tomado provara que no funcionava, e a nova indefinio orientativa teria de culminar numa resposta cujo pro-cesso teria de passar pela reformulao dos seus ideais. Os modelos urbanos da dcada de 1920 e 1930, de entre eles a Ville Radieuse, inseriam-se novamente no debate geral do panorama das artes, e criavam uma nova divergncia de interesses em torno da sua avalia-o. Questionava-se agora se estes projetos urbanos fariam parte de uma grande falsa promessa no qual se continuaria a perder tempo e posteriormente levaria no resoluo dos problemas da socie-dade, ou se ainda seria possvel reinterpretar a cidade Corbusiana como uma plataforma para relanar, numa fase aperfeioada para o contexto urbano, novamente essa tipologia de projeto baseado na cientificidade e na tecnocracia.

    Paralelamente, ao longo da dcada de 1960 e da dcada de 1970, o desapontamento e a incredibilidade humana relacionados com a perceo do desenrolar da histria ao longo do sculo veio instigar a tentativa de mudana social contra a condio geral vigente. Ali-mentando a ideia de mudana na sociedade em geral formam-se, neste perodo de tempo, grupos como o movimento estudantil de Maio de 1968, os ecologistas, as feministas ou os New left thinkers. Estas eram ideologias que nasciam da conscincia das falhas exis-tentes nas sociedades, do estado de desorientao, do sofrimento, da explorao e da crise moral e poltica. Na procura de alternativas, embora imperfeitas e de curta durao, o seu objetivo passava por impulsionar a sociedade e o estado vigente para a derrocada (Vieira,

    Figura 22: Manifestao de Maio de 1968Fotografia do documentrio Mourir trente ansRoumain Goupil1982

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    2010). O ano de 1968, culminar de todo o processo de insatisfao que

    se vinha a desenrolar desde o final da II Grande Guerra, torna-se uma data decisiva na histria poltica e cultural do Ocidente. Nesse ano, tanto nas ruas, como nas universidades ou nos meios de co-municao, foram despoletados, em capitais europeias como Paris, Berlim e Frankfurt, massivos protestos revolucionrios. Podemos destacar no panorama popular europeu os estudantes franceses que, contra os poderes reguladores do Estado, da polcia e da universida-de, ergueram barricadas em Paris e despoletaram um caos grevista sem precedentes que haveria de conduzir demisso do governo Francs. No panorama poltico destacamos a liberalizao poltica na Checoslovquia, em busca de uma descentralizao parcial da economia, bem como do relaxamento previsto s restries da li-berdade de imprensa e a sua democratizao, que acabaria com a invaso do pas por parte da Unio Sovitica e os membros do Pacto de Varsvia. Mas no s na Europa houveram manifestos, tambm nos Estados Unidos da Amrica o Black Power Movement amotinou-se pelos direitos civis dos afro-americanos nos EUA, encarando a represso violenta da polcia. Na sequncia do massacre da aldeia de My Lai do-se os protestos acesos por parte do politizado mo-vimento Hippie que sai rua conjuntamente com os motins nos guetos e respetiva represso policial aps o assassinato de Martin Luther King no Lorraine Motel em Memphis, Tennessee (Brtolo, 2009).

    Apesar de se destacarem em termos mediticos, os eventos revo-lucionrios de 1968 eram apenas o culminar de um processo de ex-presso prpria e reao, que se havia vindo a desenrolado por mais de uma dcada, contra a autoridade e o status quo na Amrica do Norte e na Europa (Eaton, 2001). Era o ano-clmax para uma con-tracultura que se vinha opondo, em muitos campos do pensamento e da criao artstica, ao que se ento denominava como cultura dominante o paradigma Modernista, caraterizado pelo Interna-tional Style, presente nas sociedades ocidentais, pelo menos, desde o II ps-guerra. Era o apoderar do poder por parte da imaginao e dos desejos do ser humano, em que a contracultura se tornaria finalmente em cultura (Grande, 2008).

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    2.1. As vanguardas ps-modernas: critical utopiasqr

    O problema poltico real no era garantir se a cidade funcionava, era

    prevenir a cidade do presente dia de funcionar (com barricadas).qs (Bran-

    zi, 2006, pp. 142-143, traduo livre).

    O International Style, nascido dos novos avanos tecnolgicos, da produo em srie, da estandardizao e da ambio universal de projeto, era o pensamento ideolgico vigente desde o final da II Grande Guerra. Este, nascido do sonho modernista de tentar me-lhorar o ser humano e a sociedade em geral atravs do ato projetu-al, traduzia-se formalmente e conceptualmente a partir da vivncia quotidiana desencadeada pelo ritmo citadino e pelos novos meios de captao e representao do real e pela universalizao do proje-to (Baltazar, 2010). Mas, apesar de dominar o panorama do design e as artes em geral a nvel internacional, as suas solues rgidas e universais comeavam a ser postas em causa pelo novo homem ideolgico e as suas novas formas de habitar. Com o desenrolar da dcada de 1960 so introduzidos os primeiros passos numa socie-dade ps-industrial, e com ela desaparece, entre os muitos processos de transformao social e cultural, o mercado de massas de gran-de porte. O mercado, que anteriormente se estruturava e dividia de uma forma piramidal num pequeno grupo de lderes de topo e numa massa inerte de consumidores divididos por vrios grupos econ-micos, comea agora gradualmente a transformar-se num conjunto de figuras mais ativas enquanto sujeito social. Este novo individuo afasta-se do ser humano modernista que acompanhava os modos e costumes que lhe eram impostos, para escolher por si mesmos os seus padres de consumo e comportamento (Branzi, 1987).

    Nascia com esta nova expresso social, aliada transformao cultural e tecnolgica, um novo momento para reconfigurar o papel do designer e do seu projeto. O projeto modernista estava morto e a prova disso era o desmantelamento ocorrido no CIAM em 1959qt. O racionalismo europeu, descrito como o caminho para o progresso em prol de uma sociedade ordeira e desenvolvida, a par da indus-trializao como o nico caminho capaz de oferecer respostas a to-dos os problemas, contradies e limites da sociedade, levou a que a sociedade funcionasse de forma coletiva como um instrumento de reconstruo social. Mas essas mesmas contradies e limites da sociedade levaram a que a mquina social coletiva e democrtica

    qr Para a formulao deste ttulo ins-piramo-nos na ideia de Ftima Vieira (2010) em que nos apresentado o ter-mo: Critical Utopia. Segundo a defini-o da autora, esta apresenta-se como um vislumbre de um futuro melhor, mas nunca um futuro perfeito. Nele so exploradas as falhas da sociedade existente de forma a alertar os seus espectadores. O seu objetivo final atingido quando impulsiona os seus espectadores a procurar alternativas futuras para o estado vigente. Da es-tas se designarem Utopias Crticas (Vieira, 2010, p.18, traduo livre).

    qs Transcrevemos a passagem origi-nal em ingls: The real political pro-blem was not to guarantee that the city would function, but to prevent the present-day city from functioning (with barricades)..

    qt O CIAM acaba por ser desmate-rializado no ano de 1959 como con-sequncia das divergentes vises que comeavam a despoletar no seu inte-rior relativamente cultura de projeto. Aps Le Corbusier ter abandonado a entidade em 1955 devido ao crescente uso da lngua inglesa nas conferncias, comea-se a sentir o abandono ideol-gico no CIAM. Mais tarde e apostan-do na reforma ideolgica da entidade, nasceu o grupo Team 10 e os movimen-tos New Brutalism e Structuralism.

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    fosse gradualmente ganhando lentido na sua funo da procura de inovao, abrindo lugar para a reconstruo social no campo do design e da arquitetura. O problema deixava de envolver a concepo de uma cidade melhor mas sim apoderar-se da cidade do presente. O ato de projetar tinha agora novas funes que deixavam de se dirigir diretamente concepo da cidade futura ideal, mas na habilidade de desmistificar os sistemas da lgica em que a cidade do presente se baseava (Eaton, 2001). Nascia uma nova viso holstica do mundo e do ser humano que se estabelecia atravs de uma particular con-juntura histrica: cultura, sociedade e tecnologia eram, mais uma vez, as foras que desencadeavam uma necessria mudana social e poltica que se sustentava ideologicamente atravs de valores como a defesa da integridade do indivduo, a melhoria das condies ma-teriais assim como a contestao dos conflitos armados. (Baltazar, 2010, p. 105).

    Influenciado pela necessidade espcio-temporal crescente do cor-po e da mente humana para com os mtodos produtivos da socie-dade moderna, o ser humano, comea a demonstrar alguma fadiga para com o sistema capitalista vigente. Comea-se a formar uma se-parao uma desconexo entre as foras laborais e a sociedade em que vivem. A modernidade e o seu sistema de produtividade expo-nencial comeavam a ser rejeitados um pouco por todo o mundo num movimento contra cultural ps-industrial. Nunca deixando de se interligar, formam-se aes de recusa distintas de reformulao do Modernismo em que as suas abordagens vo-se disseminando por vrios continentes e contextos distintos.

    2.1.1. O happening tecnolgico

    Contextualizadas no panorama norte-americano, comeavam a surgir as primeiras formas de recusa do contexto modernista atra-vs da Drop City e o grupo Ant Farm. O espirito projetual norte-americano de rejeio despoletado pela fadiga crescente do sistema capitalista e a necessidade industrial de alimentar a produtividade e a expanso econmica. As suas vises, comummente conhecidas por dropping outqu, caraterizaram-se pela radicalidade e poder que a apatia, a recusa do estilo de vida normalizado e a inatividade perante os ciclos produtivos capitalistas tinham no seio da sociedade norte-americana. Formaram-se novos modos de habitar e viver apoiados numa reorganizao territorial e no fenmeno tecnolgico emergen-

    qu A expresso aplicava-se quando um individuo ou grupo pretendia sair ou recusava a inserir-se num grupo por razes prticas, necessidades ou desiluses com o sistema adotado. Na dcada de 1960, dropping out, era usa-do para caraterizar quem se desligava da sociedade estabelecida at ento. Inerentemente, a expresso est inti-mamente associado aos movimentos contra culturais da poca, com os hi-ppies e com as comunas.

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    te. Essa transformao primeiramente evidente nos Estados Uni-dos da Amrica atravs da deslocalizao de milhares de hippies para novas comunidades alternativas na Califrnia e no Novo Mxico. A Drop City foi uma das alternativas que se instituiu em 1965 no Colorado. Privilegiando um sistema que se baseava em valores como a felicidade, a comunidade e a recusa do tradicional sistema econ-mico, a Drop City despoletava um sentimento de revolta e irritao no segmento tradicionalista da classe mdia americana. A simples existncia de uma comunidade que se estabelecia e afirmava sem necessidade de quarenta horas de trabalho semanais era um murro no sistema econmico da sociedade ocidental. Os edifcios cpulas construdos a partir da reciclagem de material usado e da cultura consumista eram, literalmente, o lixo Americano (Scott, 2010).

    Influenciados por esta abordagem comunitria e coletiva, e apoiados no fenmeno tecnolgico emergente e no conceito de mo-bilidade, surgem os Ant Farm. Desenvolvendo uma prtica coletiva que suprimia o sentido individual em prol de uma inteligncia co-letiva, o grupo demarcava-se da figura do arquiteto e do designer modernista como projetista condensador do mundo que o rodeava. Mas a recusa no era total. Um dos principais pilares do grupo, j vindo a ser trabalhado na cidade desde as abordagens modernistas, foi o sentido de mobilidade. Mas a sua mobilidade torna-se distin-ta da poca modernista podendo-se afirmar tambm como efmera (Scott, 2007). Projetos como o Dream cloud on the beach, em que se privilegiava o sentido estrutural mutvel, leve e portvel, ou Spare

    Figura 23: Figura 23: Drop CityColorado, Estados Unidos da Am-rica1965

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    tire inflatable, que se afirmava atravs da dualidade de conceito per-manente/efmero, eram exemplos pragmticos da nova abordagem reformulada das caractersticas modernistas. Mas as suas caracters-ticas vanguardistas no se ficaram apenas pelo aspeto contra cultu-ral. O seu projeto Clean air pod demonstrava tambm que o sentido utpico estava bastante presente na sua realidade de projeto. Aler-tando, atravs de um carter performativo e irnico, para a poluio da qualidade do ar que se respirava, esta interveno objetivava o despertar dos espectadores para o futuro prximo que lhes era de-monstrado (Lord, 2010).

    Figura 24:

    Figura 25:

    Figura 24: Dream Cloud on the beachAnt Farm1969

    Figura 25: Spare tire inflateAnt Farm1970

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    2. U

    m n

    ovo

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    nida

    de

    Mas no s no panorama Norte-Americano se propagava este movimento contra cultural, tambm no contexto Europeu, com os Archigram, e no contexto Nipnico, com os Metabolistas, e a partir do fenmeno tecnolgico do qual os Ant farm se apropriavam, se desenvolviam abordagens para a mudana da sociedade e o respeti-vo sistema em que o ser humano vivia. Imaginando um futuro em que a crena de que a combinao dos avanos da tecnologia com a mudana social poderiam promover um ato projetual mais humano e pronto para as complexidades e oportunidades da vida contempo-rnea, os Archigram, formados em 1961 por jovens arquitetos lon-drinos, imaginavam o futuro atravs das suas publicaes, que