Upload
theodor-adorno
View
34
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
MESTRADO EM FILOSOFIA
PINTURA E CORPO
NA FILOSOFIA DE MERLEAU-PONTY
Jos Martins de Lima Neto
Joo Pessoa - PB
2012
JOS MARTINS DE LIMA NETO
PINTURA E CORPO
NA FILOSOFIA DE MERLEAU-PONTY
Dissertao apresentada ao Mestrado em Filosofia, Centro
de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal da Paraba, como requisito parcial para a obteno
do grau de Mestre.
Orientador: Iraquitan de Oliveira Caminha
Joo Pessoa - PB
2012
JOS MARTINS DE LIMA NETO
PINTURA E CORPO
NA FILOSOFIA DE MERLEAU-PONTY
Dissertao apresentada ao Mestrado em Filosofia, Centro
de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal da Paraba, como requisito parcial para a obteno
do grau de Mestre.
_______________________________
Doutor Iraquitan de Oliveira Caminha (Orientador)
Universidade Federal da Paraba
_______________________________
Doutora Constana T. Marcondes Csar
Universidade Federal de Sergipe
________________________
Doutor Bartolomeu Leite Silva
Universidade Federal da Paraba
Joo Pessoa, 26 de outubro de 2011.
DEDICATRIA
Para Alessandra...
AGRADECIMENTOS
Inicialmente, agradeo ao professor Monclar Valverde, por despertar o meu
interesse e pela iniciao nas pesquisas da obra de Merleau-Ponty.
Agradeo ao orientador Iraquitan Caminha, por no deixar de acreditar na
realizao deste trabalho, pelas orientaes e pelo constante incentivo.
Aos professores Deive Redson Melo dos Santos e Bartolomeu Leite Silva,
agradeo pela atenta leitura deste trabalho e pelos gentis conselhos durante a
qualificao; professora Constana Marcondes Csar, por ter aceitado participar da
Banca Examinadora.
Agradeo ao Departamento de Educao Campus I da UNEB, por me conceder o
tempo necessrio para a concluso desta pesquisa.
Universidade do Estado da Bahia, agradeo pela bolsa.
Agradeo a Alan Sampaio, pela motivao, pelas conversas e crticas
fundamentais para a concretizao desta dissertao e pelas revises.
Por fim, agradeo, em especial, Maria de Ftima Medeiros, pela acolhida e
apoio em Joo Pessoa, sem os quais este trabalho no seria concludo.
RESUMO
A meta desta dissertao foi verificar o porqu da recorrncia da pintura na
filosofia de Merleau-Ponty. Para tanto, analisamos os textos A dvida de Czanne , A
linguagem indireta e as vozes do silncio e O olho e o esprito que tratam diretamente da
pintura, demonstrando a sua funo em cada um deles, levando em considerao as
noes de corpo e expresso. Inicialmente, analisamos a concepo de corpo que teve
como objetivo resgatar o aspecto primordial do sensvel, em seguida, tratamos da teoria
da expresso merleau-pontiana que toma a expresso pictrica como privilegiada, por
fim apresentamos a pintura relacionada com os temas da histria e da visibilidade.
Conclumos que Merleau-Ponty no concebe a pintura como cpia ou representao da
Natureza. Na sua filosofia, ela no mera ilustrao. o meio de demonstrar a pertinente
aproximao entre a filosofia e a arte no debate acerca da experincia esttica. A
expresso pictrica nos d a emergncia constitutiva da visibilidade, nos revelando uma
abertura ao ser que configura a ontologia selvagem pretendida por Merleau-Ponty.
RSUM
Le but de cette dissertation a consist a vrifier le pourquoi de la rcurrence de la
peinture dans la philosophie de Merleau-Ponty. Nous avons pour cela analys les textes
Le doute de Czanne, Le langage indirect et Lil et lesprit, qui traitent directement de
la peinture, en dmontrant sa fonction en chacun dentre eux, en prenant en considration
les notions de corps et dexpression. Nous avons tout dabord analys la conception de
corps qui a eu pour objet de retrouver laspect primordial du sensible, ensuite nous avons
trait de la thorie de lexpression merleau-pontienne qui privilgie lexpression
picturale, enfin nous avons prsent la peinture dans son rapport avec les thmes de
lhistoire et de la visibilit. Nous en avons conclu que Merleau-Ponty ne conoit pas la
peinture comme copie ou reprsentation de la Nature. Dans sa philosophie elle nest pas
une simple illustration. Elle est le moyen de dmontrer le rapprochement pertinent entre
la philosophie et lart dans le dbat au sujet de lexprience esthtique. Lexpression
picturale nous prsente lmergence constitutive de la visibilit, en nous rvlant une
ouverture ltre qui configure lontologie sauvage dfendue par Merleau-Ponty.
LISTA DE ABREVIATURAS
DAS OBRAS DE MERLEAU-PONTY
AD Les aventures de la dialectique.
CNP Le cinma et la nouvelle psychologie
DC La doute de Czanne.
EC A estrutura do comportamento.
EF Elogio da filosofia.
FS O filsofo e sua sombra.
HT Humanismo e terror.
In Un indit de Merleau-Ponty.
LI A linguagem indireta e as vozes do silncio.
N La Nature.
PhP Phnomnologie de la perception.
PM A prosa do mundo.
PP O primado da percepo e suas consequncias filosficas.
OE LOeil et lEspirit.
S Signes.
SNS Sens et non-sense.
VI Le Visible et lInvisible.
Nota: As pginas indicadas ao longo da dissertao, quando forem feitas referncias a
PhP, DC, CNP, LI, OE e VI, so primeiro as da edio francesa, seguidas da numerao
da edio brasileira, conforme indicado nas Referncias. Nos demais casos, a numerao corresponde s edies brasileiras.
SUMRIO
INTRODUO .................................................................................................................. 9 1 CORPO E EXPERINCIA ESTTICA ....................................................................... 13
1.1 RESTITUIO DO NOSSO CONTATO PRIMORDIAL COM O MUNDO DA PERCEPO .......... 14 1.2 A RELAO ALMA-CORPO: CRTICA DAS CONCEPES CLSSICAS .............................. 20 1.3 O CORPO FENOMENAL .................................................................................................. 26 1.4 DO CORPO CARNE ..................................................................................................... 30
2 A EXPRESSO ............................................................................................................ 35 2.1 A PERCEPO E O MUNDO PERCEBIDO ......................................................................... 35 2.2 O MILAGRE DA EXPRESSO .......................................................................................... 40
2.4 A EXPRESSO PICTRICA E A LINGUAGEM VERBAL ...................................................... 54 3 PINTURA E VISIBILIDADE ....................................................................................... 59 3.1 MERLEAU-PONTY E MALRAUX: A PINTURA CLSSICA E A PINTURA MODERNA. ........... 59 3.2 A HISTORICIDADE: A UNIDADE E O INACABAMENTO DA PINTURA ................................. 63
3.3 A PINTURA E A VISO ................................................................................................... 69 3.4 O OLHO E O VISVEL O ESPRITO E O INVISVEL .......................................................... 74 CONCLUSO .................................................................................................................. 81 REFERNCIAS ............................................................................................................... 84
9
INTRODUO
a arte, e notadamente a pintura, nutrem-se nesse lenol bruto do
qual o ativismo nada quer saber, elas so mesmo as nicas a
faz-lo com toda inocncia.
Merleau-Ponty. OE
Merleau-Ponty afirma, em O Olho e o Esprito, que h um privilgio da pintura
em relao expresso do ser, nossa imerso no ser, em detrimento, por exemplo, da
poesia e da msica. Referncia recorrente em sua filosofia, a pintura nunca serviu a
Merleau-Ponty como mera ilustrao.
A relao fecunda entre arte e filosofia, mesmo quando a filosofia se ops arte,
inegvel, ainda que a pintura, em especial, tenha um papel de destaque tanto do ponto
de vista fenomenolgico quanto ontolgico, isto , algo novo na histria da Filosofia. Por
que a arte um meio privilegiado para se pensar o problema do ser? E por que a pintura
tem, para Merleau-Ponty, um papel de destaque? O problema trata da visibilidade em seu
estado primrio, se assim podemos dizer, ou seja, da reversibilidade existente entre
visvel e vidente. Ele diz respeito ao mundo pr-humano mostrado atravs da pintura e
que s ela pode mostrar com toda inocncia e brutalidade. justamente o ser bruto que
o pintor busca captar para transformar a tela em branco no quadro que o convoca.
Um dos motivos da importncia atribuda pintura por Merleau-Ponty o
privilgio que ela tem de captar o ser mudo sem arranc-lo do seu mutismo. A pintura,
em geral, consiste, como afirma Jean-Yves Mercury, em uma aproximao silenciosa do
mundo, porm ela libera, por assim dizer, o silncio obstinado e obsceno do mundo e das
coisas e os transforma, pelo prprio ato da criao pictrica, no silncio rumorejante
10
palavras, de sentido e de expresso 1. Segundo Franois Cavallier, Merleau-Ponty
procura a fala e o pensamento como o pintor pinta2.
pela dedicao fenomenologia da percepo que pde surgir, em Merleau-
Ponty, o problema da visibilidade como cerne de uma ontologia, que se encontra
inacabada nas notas de seu livro pstumo O visvel e o invisvel e que se contrape
metafsica clssica. A retomada do contato primeiro do homem com o mundo que se abre
conduz-nos a uma valorizao dos sentidos, inclusive para o conhecimento. A aparece a
pintura como uma expresso privilegiada para pensar a nossa relao mais ntima com o
mundo e o ser.
Como surge o sentido ou de onde ele advm? O que confere sentido s coisas, ao
mundo e s nossas aes? O mundo que percebemos, do qual falamos e sobre o qual
refletimos, um decalque do mundo real? Ou uma representao de um mundo perdido
para ns sujeitos? Diante de tais questes, parece que a pintura tem algo a dizer ao
filsofo.
A pintura moderna, e em especial a de Paul Czanne, na medida em que nos
liberta da ideia de representacionismo, tem uma particular ateno de Merleau-Ponty. A
pintura no realiza, nem nunca realizou uma representao das coisas, ainda que assim
pudessem pensar, inclusive, os pintores. Ao contrrio, faz-nos ver um mundo que
essencialmente carnal, que tem densidade. Um mundo que no est alm do sensvel,
mas se realiza nesse sensvel.
Com base na reversibilidade entre o visvel e o vidente, a pintura encontra as
coisas em estado nascente, realiza o enigma da visibilidade e expe um tipo de reflexo
pr-consciente. Ela mostra que a interpretao e o sentido das coisas no passam
necessariamente pela conscincia, pois a prpria percepo j fornece um sentido
nascente.
O objetivo central deste trabalho investigar o lugar privilegiado da pintura no
pensamento de Merleau-Ponty. Para tanto, deveremos analisar sua concepo de corpo,
com destaque para o que ele chama de corpo prprio, identificar as principais
1 MERCURY, Jean-Yves. Lexpressivit chez Merleau-Ponty: du corps la peinture. Paris: LHarmattan,
2000, p. 228: En ce sens la peinture constitue bien une appoche silencieuse du monde mais elle libre, pour ainsi dire, le silence ttu et obscne du monde et des choses en les transformant, par lacte mme de la cration picturale, en les silences bruissants de paroles, de sens, dexpression.
2 CAVALLIER, Franois. Premires leons sur Lil et lesprit de M. Merleau-Ponty. Paris: PUF, 1998,
p. 97: Merleau-Ponty cherce parler et penser comme peint le peintre.
11
caractersticas da sua noo de expresso e analisar o desenvolvimento de uma ontologia
da viso, vinculada a uma reflexo sobre a experincia esttica.
Privilegiaremos os textos em que Merleau-Ponty trata explicitamente da pintura,
visto que nosso objetivo situar o papel dessa no desenvolvimento da filosofia merleau-
pontiana. Nossa investigao visa, atravs do dilogo com uma bibliografia pertinente ao
tema da expresso, a realizar uma interpretao do papel da pintura no pensamento
merleau-pontiano, por meio de ideias que se encontram dispersas ou insinuadas nele.
Inicialmente, partiremos da ideia merleau-pontiana de restituio do sensvel, que
se inicia j, em A estrutura do comportamento, por meio do dilogo com a tradio
filosfica e a cincia moderna, as quais privilegiaram a razo (conscincia) em
detrimento da experincia sensvel, fortalecendo a viso dualista que separa corpo e
alma. Merleau-Ponty discute, em especial com a psicologia moderna, a noo de
comportamento. Destacamos, nesse livro, o quarto captulo que trata das relaes entre a
alma e o corpo, no qual a noo de corpo vivido ganha destaque e, posteriormente, ser
fundamental ao projeto de restituio do sensvel de Merleau-Ponty. J na
Fenomenologia da percepo, o tema central a percepo e a reflexo em torno da
experincia sensvel com base na noo de corpo como corpo prprio.
Em seguida, trataremos da sua teoria da expresso. Particularmente, na
Fenomenologia da percepo, mostraremos uma ponderao sobre a noo de expresso
a partir dos atos da expresso autntica aqueles do escritor, do artista ou do filsofo3,
ou seja, encontra-se a uma diviso entre o carter institudo e instituinte da prpria
expresso fala falada e fala falante. Procuraremos estudar essa noo de
expresso criadora (como chamar mais tarde) relacionando-a ao tema do corpo
prprio.
Em A dvida de Czanne, encontramos um problema que parece se destacar da
reflexo do corpo prprio, tal como se d no sexto captulo da Fenomenologia da
percepo, em que Merleau-Ponty dedica-se, como indica o ttulo, a pensar sobre a tarefa
do pintor a quem mais se referiu em seus textos Czanne. Tendo em vista a inferncia
da pintura como atividade de todo pintor, buscaremos explicitar como o filsofo a
3 MERLEAU-PONTY, Maurice. Phnomnologie de la perception. Paris: Editions Gallimard, 1945. [Ed.
Brasileira: Fenomenologia da percepo. Traduo de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. So Paulo:
Martins Fontes, 1999. (Tpicos).] p.229;267.
As demais notas a seguir, que se referirem a esta obra, sero indicadas pelas iniciais PhP, acompanhadas de
seus respectivos nmeros de pginas.
12
compreendeu como expresso primordial, aquela que encontra as coisas em estado
nascente. E, a partir do dilogo com a pintura moderna4, que se realiza tambm em A
linguagem indireta e as vozes do silncio, destacaremos a contraposio esttica da
representao, atravs de sua esttica da expresso.
Buscaremos em A linguagem indireta e as vozes do silncio, alm da importncia
concedida pintura moderna, atentar para o ponto de vista da pintura como sendo uma
linguagem muda, e para a distino entre a pintura e a linguagem verbal e, de modo
mais explcito, a sua concepo de expresso criadora e expresso primria em que
procura restabelecer a unidade viva prpria pintura (diferente de Malraux, que
encontrava essa unidade no Museu). Nas palavras de Lacoste: no a partir de um objeto
que seria permanente (a natureza) e que os pintores se contentariam em imitar, mas a
partir de uma tarefa que, de certo modo, permanece eterna: instituir o encontro do olhar
com as coisas que o solicitam5.
E por fim, em O olho e o esprito, a reflexo que sempre acompanhou Merleau-
Ponty d-se por via da tomada da pintura como a expresso privilegiada, que expressa o
enigma da visibilidade. Investigaremos o carter ontolgico que concedido pintura,
como aquela expresso que mostrar a fisso do ser e que possibilitar ver um
pensamento do ser encarnado e a ideia de reversibilidade entre visvel e vidente que
advm da prpria deiscncia do ser. Destacamos, ainda, a parte intitulada O
Entrelaamento o quiasma do livro O visvel e o invisvel que, apesar de no tratar
diretamente da pintura, ser fundamental para uma maior compreenso do significado
das noes que aparecem em O olho e o esprito.
4 Consideramos como pintura moderna aquela que foi desenvolvida no mesmo perodo designado pela
histria da arte como arte moderna e, conforme Jos Cmara, assim designamos a arte resultante das rupturas que, na sequncia da experincia impressionista, determinaram todo o caminho posterior da arte
ocidental. In: CMARA, Jos Bettencourt da. Do esprito do pintor ao olhar do filsofo: Maurice Merleau-Ponty e Paul Czanne. Lisboa, Salamandra, 1996, p. 12. 5 LACOSTE, Jean. A expresso. In: ______. A filosofia da arte. Traduo de lvaro Cabral. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p. 105-6.
13
1 CORPO E EXPERINCIA ESTTICA
H mais razo no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E
por que o teu corpo, ento, precisa logo da tua melhor
sabedoria?
(Nietzsche. Assim falou Zaratustra, I, Dos desprezadores do corpo)
Tornou-se comum aos filsofos, desde a antiguidade, tratar o corpo com certo
desprezo. no pensamento de Nietzsche que encontramos um dos primeiros momentos
de denncia a esse tratamento imprprio dado ao corpo. No discurso Dos desprezadores
do corpo de Assim falou Zaratustra, Nietzsche apresenta uma dura oposio a Ren
Descartes e, por extenso, aos seus seguidores, pois esse fez do desprezo pelo corpo um
dos principais emblemas do seu projeto filosfico. nesse desprezo pela experincia
sensvel que a razo cartesiana se constitui como fundamento subjetivo para a filosofia e
para as cincias modernas. importante ressaltarmos que Descartes no foi o primeiro.
J h muito tempo, encontramos, na cultura ocidental, a opo pelo dualismo, por uma
viso do mundo e da existncia divididos em duas dimenses. Para sermos mais precisos,
podemos dar o exemplo clssico dos dois mundos platnicos, inteligvel e sensvel, e do
seu modo de ver a alma e o corpo como tendo origens absolutamente distintas. Esses do
alma um tratamento privilegiado, cabendo-lhe o papel de dominar o corpo. esse
dualismo que Merleau-Ponty quer superar.
A reflexo sobre o corpo atravessa todo o pensamento de Merleau-Ponty, desde A
estrutura do comportamento at o inacabado O visvel e o invisvel. Em geral, os
comentadores dividem a obra do filsofo em duas fases, uma fenomenolgica e outra
ontolgica6. Apesar disso, as principais noes permanecem com constantes revises nos
dois momentos. O nosso propsito, neste momento, descrever como a noo de corpo
6 Monclar Valverde chama a ateno para o curioso fato de que, entre a primeira e a segunda fase do
pensamento merleau-pontiano, passaram-se 10 anos que foram definidos simplesmente como um perodo
intermedirio. Para ele, este um momento decisivo do seu pensamento no podendo ser reduzido a uma
mera fase de transio, Valverde o definiu como uma hermenutica da sensibilidade. (Cf. VALVERDE, Monclar (Org.) Merleau-Ponty em Salvador. Salvador: Arcdia, 2008, p. 176-7).
14
se desenvolve em seu pensamento e qual a importncia dela, mesmo quando considerada
uma possvel mudana na orientao de sua filosofia. No pretendemos, porm, percorrer
todas as etapas da sua elaborao conceitual sobre o corpo, pois demandaria uma
dedicao especfica. O nosso objetivo, neste captulo, explicitar como o projeto
merleau-pontiano de restituir nosso contato primordial com o mundo da percepo se
articula com a reflexo sobre o corpo, a estabelecendo uma oposio s filosofias que
privilegiaram a conscincia subjetividade em detrimento da corporeidade.
1.1 RESTITUIO DO NOSSO CONTATO PRIMORDIAL COM O MUNDO DA PERCEPO
O projeto de restituio se caracteriza como a retomada do mundo da percepo,
mundo pr-objetivo que visa ainda ao rompimento com os postulados ontolgicos das
filosofias fundamentadas no pensamento de Ren Descartes, expoente mximo do
dualismo, segundo Merleau-Ponty. Ao se explicitar, em detrimento da reflexo, a
primordialidade da experincia sensvel, que ser possvel compreender o mundo
objetivo, restituindo coisa sua fisionomia concreta, aos organismos, sua maneira
prpria de tratar o mundo7 e subjetividade, sua inerncia histrica.
Para Merleau-Ponty, a reflexo radical, procedimento crtico realizado sobre o
pensamento, que possibilitar a retomada de nossa experincia primordial do mundo da
percepo. Isso no significa uma renuncia reflexo em favor simplesmente de um
contato imediato com as coisas, e sim a retomada do lugar original de onde poderemos
compreender a reflexo na sua prpria gnese. Em Fenomenologia da percepo, seu
objetivo tratar da reflexo e da conscincia, mas sob um prisma inusitado, o de uma
conscincia do corpo prprio, encarnada.
Ser preciso buscar a essncia do mundo e, segundo Merleau-Ponty, busc-la no
buscar aquilo que o mundo em ideia, uma vez que o tenhamos reduzido a tema de
discurso, buscar aquilo que de fato ele para ns antes de toda tematizao8. A tarefa
da reflexo radical no poder fundar-se aqum de nossa existncia perceptiva, como
7 PhP, p. 69; 89-90.
8 PhP, p. X; 13.
15
tambm no poder abrir mo dos pensamentos, pois correr o risco de nem chegar a
refletir, muito menos alcanar o irrefletido.9
A questo que se coloca a de saber como se processa a passagem da experincia
no mundo percebido que, como veremos, inacabada para a representao no mundo
inteligvel. Como se d a passagem do inacabado, indeterminado, ao que determinado
pela anlise reflexiva? O intelectualismo sequer coloca essa questo, pois, para ele, a
experincia perceptiva como adequao e coincidncia do sujeito ao objeto, dessa
forma, no reconhece o carter fenomenal de nossa experincia do mundo.
O pensamento de sobrevoo, caracterizado por Merleau-Ponty como o da cincia
moderna, se constitui pelo afastamento entre o sujeito perceptivo e o objeto percebido,
esse fundado pela f perceptiva e pela reflexo e, da mesma forma, pelo espectador
estrangeiro. A atividade reflexiva, caracterizada pela f perceptiva, considera que nos
encontramos diante de um mundo previamente constitudo, que a atividade intelectiva
sobrevoa. Da decorre o fato de a cincia acreditar que possvel conhecer o mundo, sem
habit-lo, assim como o intelectualismo acredita poder alcanar a verdade do mundo pelo
pensamento objetivamente. Segundo Jos Sombra, isso possvel porque ele ignora a
atitude intencional e perceptiva do sujeito10.
Merleau-Ponty comea o ensaio O olho e o esprito dizendo que a cincia
manipula as coisas, mas renuncia a habit-las e que, s de vez em quando, ela depara-se
com o mundo atual11
. Essa atitude tpica da cincia descrita pela metfora do
pensamento estrangeiro. Para Merleau-Ponty, as relaes do homem (sujeito) com o seu
mundo se do como relaes de causalidade determinadas pela viso de exterioridade,
no levando em conta que essas so de significado e de uma conscincia ou de um
sujeito presente e inerente ao mundo12. A atitude do pensamento estrangeiro
caracterstica do observador estrangeiro, que est em toda parte e em parte alguma: ele
observa o mundo de fora, do exterior, enganando-se, ao pensar, que se encontra fora do
9 Cf. MLLER, M. J. Merleau-Ponty: acerca da expresso. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 49.
10 SOMBRA, Jos de Carvalho. A subjetividade corprea: a naturalizao da subjetividade na filosofia de
Merleau-Ponty. So Paulo, Ed. UNESP, 2006, p.47. 11
MERLEAU-PONTY, Maurice. Lil et Lesprit. Paris: Editions Gallimard, 1997. [Ed. Brasileira: In: ______. O olho e o esprito: seguido de A linguagem indireta e as vozes do silncio e A dvida de
Czanne/Maurice Merleau-Ponty. Traduo de Paulo Neves e Ermanita Galvo Gomes Pereira. So
Paulo: Cosac & Naify, 2004. p. 9;13.
As demais notas a seguir, que se referirem a esta obra, sero indicadas pelas iniciais OE, acompanhadas
de seus respectivos nmeros de pginas. 12
SOMBRA. op. cit., p. 48.
16
mundo. Ele no se situa no mundo, portanto no tem ponto de vista, no tem perspectiva,
logo no reconhece o perspectivismo da percepo e, por isso, no pode admitir que
nosso saber das coisas s seja alcanado a partir de perspectivas parciais. Essas no
esgotam de modo algum a experincia que temos das coisas e do mundo. E como afirma
Merleau-Ponty:
O pensamento no nada de interior, ele no existe fora do mundo e fora das palavras. O que nos engana a respeito disso, o que nos faz acreditar em um
pensamento que existiria para si antes da expresso, so os pensamentos j
constitudos e j expressos dos quais podemos lembrar-nos silenciosamente e
atravs dos quais nos damos iluso de uma vida interior.13
A fim de conferir outro status ontolgico experincia, para Merleau-Ponty,
antes de determinar o ser dos fenmenos, deve-se indagar sobre como podemos exprimir
o ser dos fenmenos. E segundo ele, o fato de ter que passar pelas essncias no significa
que devemos tom-las por objeto, mas sim reconhecer que nossa existncia est presa
ao mundo de maneira demasiado estreita para conhecer-se enquanto tal no momento em
que se lana nele, e que ela precisa do campo da idealidade para conhecer e conquistar
sua facticidade.14
No cabe questionar se ns percebemos verdadeiramente o mundo, pois o mundo
aquilo que ns percebemos.15
O mundo est diante de ns, antes de qualquer
idealizao, portanto seria artificial faz-lo derivar de uma srie de snteses que ligariam
as sensaes, depois os aspectos perspectivos do objeto, quando ambos so justamente
produtos da anlise e no devem ser realizados antes dela.16 Merleau-Ponty pretende
voltar ao mundo antes da significao reflexiva, o mundo pr-objetivo, o mundo da
percepo, o mundo do esprito selvagem17
e do ser bruto18
. Para isso, ser necessrio
retornar s coisas mesmas, como ele diz:
13
PhP, p. 213; 249. 14
Cf. PhP, p. IX; 11-12. 15
PhP, p. XI; 13. 16
PhP, p. IV; 5. 17
Esprito Selvagem o esprito de prxis que quer e pode alguma coisa, o sujeito que no diz eu penso, e sim eu quero, eu posso, mas que no saberia como concretizar isso que ele quer e pode seno querendo e podendo, isto , agindo, realizando uma experincia e sendo essa prpria experincia. O que
torna possvel a experincia criadora a existncia de uma falta ou de uma lacuna a serem preenchidas,
sentidas pelo sujeito como inteno de significar alguma coisa... H um inteno significativa que ,
simultaneamente, um vazio a ser preenchido e um vazio determinado que solicita o querer poder do agente.
(...) O Esprito Selvagem atividade nascida de uma fora eu quero, eu posso e de uma carncia ou lacuna que exigem preenchimento significativo. O sentimento do querer-poder e da falta suscita a ao
significadora que , assim, experincia ativa de determinao do indeterminado: o pintor desvenda o
17
Retornar s coisas mesmas retornar a este mundo anterior ao conhecimento
do qual o conhecimento sempre fala, e em relao ao qual toda determinao
cientfica abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relao
paisagem primeiramente ns aprendemos o que uma floresta, um prado ou um riacho.
19
Segundo Carlos Alberto Ribeiro de Moura, o retorno s coisas no outro
procedimento seno o de voltar aos atos atravs dos quais se tem um conhecimento dos
objetos20. Ora, por estarmos o tempo todo numa relao com o mundo, que a nica
forma de nos darmos conta disso suspendendo tal movimento, recusando-lhe nossa
cumplicidade, ou ainda, coloc-lo fora de jogo21
. suspendendo os prejuzos que
temos acerca do mundo que poderemos vislumbrar o solo originrio de onde os prprios
juzos nascem. Falar de suspenso o mesmo que falar de restituio medida que
pensemos que a concepo de mundo, a ser suspensa, foi constituda tomando o mundo
como j dado, previamente determinado pela conscincia reflexiva. O movimento de
suspenso dos prejuzos sobre o mundo da percepo o libera do peso ontolgico da
tradio.
O primeiro ato filosfico seria, ento, o de retornar ao ambiente perceptivo
originrio o mundo vivido. Esse ato inicia-se com a radicalizao engendrada pela
suspenso. Aqui percebemos claramente a filiao de Merleau-Ponty fenomenologia de
Husserl22
. Tal intento, porm, no uma novidade na histria da filosofia. Descartes j
invisvel, o escritor quebra o silncio, o pensador interrompe o impensado. Realizam um trabalho no qual
vem exprimir-se o co-pertencimento de uma inteno e de um gesto inseparveis, de um sujeito que s se
efetua como tal porque sai de si para ex-por sua interioridade prtica como obra. isso criao, fazendo
vir ao Ser aquilo que sem ela nos privaria de experiment-lo. In: CHAUI, Marilena. Experincia do Pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. So Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 153-4. 18
Conforme Marilena Chau o Ser Bruto o ser de indiviso, que no foi submetido separao (metafsica e cientfica) entre sujeito e objeto, alma e corpo, conscincia e mundo, percepo e
pensamento. Indiviso, o Ser Bruto no uma positividade substancial idntica a si mesma e sim pura
diferena interna de que o sensvel, a linguagem e o inteligvel so dimenses simultneas e entrecruzadas
(...) Ser de indiviso, o Ser Bruto o que no cessa de diferenciar-se por si mesmo, duplicando todos os
seres, fazendo-os ter um fora e um dentro reversveis e parentes. Assim, se por ele que somos dados ao
ser, (...) no entanto, por ns que ele se manifesta, como o instante glorioso em que o pintor faz vir ao
visvel um outro visvel, que recolhe o primeiro e lhe confere um sentido novo. O mundo da cultura,
fecundidade que passa, mas no cessa, o parto interminvel do Ser Bruto e do Esprito Selvagem. In: CHAUI, Marilena. Experincia do Pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. So Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 155-6. 19
PhP, p. III; 4. 20
MOURA, Carlos A. Ribeiro de. Crtica da Razo na Fenomenologia. So Paulo: EDUSP, 1989, p. 22. 21
PhP, p. VIII; 10. 22
No final do sculo XIX, o psicologismo e o positivismo, em geral, pretendiam determinar as vias para o
conhecimento cientfico. O psicologismo encontrava nos fatos empricos a fonte de todo o conhecimento, inclusive filosfico. Para Husserl, ao contrrio, a base do conhecimento deveria ser indicada pela prpria
18
diz ser necessrio se desfazer das opinies que acreditava para alcanar resultados
seguros nas suas investigaes:
H j algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos,
receber muitas falsas opinies como verdadeiras, e de que aquilo que
depois eu fundei em princpios to mal assegurados no podia ser seno
mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessrio tentar
seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opinies a
que at ento dera crdito, e comear tudo novamente desde os
fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas
cincias.23
Ele toma uma atitude radical diante da tradio. atravs da dvida, tornada
mtodo, que se pode alcanar a certeza. Husserl, por sua vez, adotando procedimento
semelhante, tomado de forma radical, investe na reduo fenomenolgica epoch,
suspenso de nossa relao com o mundo, de nossa crena nas coisas para voltar aos
fenmenos s coisas mesmas, antes de qualquer representao. Assim como Husserl, e
de outro modo Descartes, Merleau-Ponty adota procedimento semelhante quando prope
a suspenso dos prejuzos para retornar experincia original, da qual o sentido emerge.
Para Descartes, o ato de desfazer-se das opinies visa, sobretudo, a constituio de uma
subjetividade que existisse independentemente da experincia sensvel e da qual tambm
se afasta, j Merleau-Ponty, ao contrrio, denuncia que esse ato fez com que a filosofia
reflexiva esquecesse a sua origem, que possibilita sua prpria constituio. preciso
ressaltar que Merleau-Ponty tende a se distanciar da filosofia transcendental de Husserl,
por perceb-la uma grande filiao ao idealismo transcendental, fundamentada na noo
de conscincia constituinte. Para ele, o contrrio, uma filosofia do corpo que devemos
fundar.
filosofia, que ele definiu como filosofia transcendental, negando, assim, ao psicologismo a possibilidade de
constituio das cincias e, conforme ele, tal funo caberia a uma cincia absolutamente rigorosa. Essa
a filosofia, pois ela cria seus mtodos. Merleau-Ponty, seguindo a senda de Husserl, busca esse rigor. E o
faz tomando o pensamento de Husserl como ponto de partida e como problemtico. O que ele v de
problemtico inicialmente e que combater na Fenomenologia da Percepo que a filosofia
transcendental proposta como um tipo de neocartesianismo, com base na ideia de uma filosofia da
conscincia, a partir das noes de reduo fenomenolgica e de constituio. Ao retomar, em O filsofo e
sua sombra, a ideia de reduo fenomenolgica, Merleau-Ponty volta a problematiz-la. Ele pretende ver
uma certa indicao ontolgica que constitutiva ao pensamento de Husserl e, entretanto, no evidente.
A impossibilidade de uma reduo absoluta indica, para Merleau-Ponty, o impensado de Husserl, sua
sombra. Para Merleau-Ponty, o fundante no ser nem a Natureza nem o Esprito, mas o Ser Bruto. 23
DESCARTES, Ren. Meditaes. In: _______. DESCARTES, Ren. Os pensadores. Trad.: J.
Guinsburg e Bento Prado Junior. 1. ed. So Paulo: Abril S. A. Cultural, 1973, p. 93.
19
O retorno ao sensvel deve partir da crtica da noo de reflexo, e a reflexo
radical constitui-se como crtica das noes clssicas da reflexo. O desafio merleau-
pontiano o de comear a refletir sobre o comeo da reflexo. Porm, como a reflexo
crtica pode resgatar o que nela permanece irrefletido? A restituio do mundo da
percepo, iniciada pela suspenso, mais do que uma nova ontologia, , para a reflexo, a
busca de sua prpria origem.
O sujeito da conscincia constituinte caracterizado pelo pensamento de
sobrevoo, prprio da cincia. Esse no reconhece o enraizamento do homem no mundo; a
relao do homem com o mundo s possvel atravs da ao constitutiva da
conscincia. Merleau-Ponty no admite a reduo operada pelo intelectualismo do
vivido, da experincia perceptiva que temos com o mundo quilo que mentalmente
construdo, assim reduzido condio de objeto. O mundo no uma representao, no
j dado, no uma representao constituda pelo sujeito. Aqum das representaes
do mundo, estabelecidas pelos intelectualistas e empiristas, h uma significao do
percebido que no tem equivalncia no universo do entendimento, um meio perceptivo
que ainda no o mundo objetivo, um ser perceptivo que ainda no ser determinado24.
Como resultado do esquecimento de sua origem, a reflexo clssica reduziu a
realidade dimenso de objeto o em si e o para si, tornando assim a percepo um
objeto de pensamento. No h a, de fato, percepo e sim um pensamento de perceber.
Para o intelectualismo, ela analtica, construda; para o empirismo, ela resultado de
operaes de sntese realizadas pela memria a partir dos dados dos sentidos.
Segundo Merleau-Ponty, o real deve ser descrito, no construdo ou constitudo,
ou seja, no podemos assimilar a percepo s snteses que so da ordem do juzo, da
predicao. A cada instante, nosso campo perspectivo preenchido de reflexos, de
impresses tteis fugazes que no podemos ligar de maneira exata ao que percebemos e
que, todavia, situamos de imediato no mundo.25
O milagre da expresso esse ato
criativo de nossa existncia junto ao espao pr-objetivo que Merleau-Ponty chama de
ateno originria, para dar conta da passagem do indeterminado ao determinado e da
passagem de uma determinao a outra, como movimentos expressivos de um corpo
situado; e, por isso, ele dir que preciso colocar a conscincia em presena de sua vida
24
PhP, p. 58; 77. 25
PhP, p. IV; 5.
20
irrefletida nas coisas e despert-las para sua prpria histria que ela esquecia.26 essa
atividade criadora que tanto o intelectualismo quanto o empirismo no reconhecem,
medida que tomam o mundo percebido como j dado. Ao contrrio, os empiristas e os
intelectualistas pretendem que nossa subjetividade tenha aquela dignidade do mundo
descrito pela fsica. Mas o modo como o constitumos para ns mesmos,
completamente diferente daquele automatismo que nos daria um mundo idntico para
todos. Por isso Merleau-Ponty afirma:
[...] eu sou a fonte absoluta; minha experincia no provm de meus
antecedentes, de meu ambiente fsico e social, ela caminha em direo a eles e
os sustenta, pois sou eu quem faz ser para mim (e. portanto, ser no nico
sentido que a palavra possa ter para mim) essa tradio que escolho retomar,
ou este horizonte cuja distncia em relao a mim desmoronaria, visto que ela
no lhe pertence como uma propriedade, se eu no estivesse l para percorr-la
como o olhar.27
Da o esforo de superar as grandes dicotomias da metafsica. Uma outra
metafsica, a partir de Merleau-Ponty, dever repensar as relaes entre sujeito e objeto,
conscincia e mundo, alma e corpo, atividade e passividade, sem constitu-las ao modo
de oposio.
1.2 A RELAO ALMA-CORPO: CRTICA DAS CONCEPES CLSSICAS
Em A estrutura do comportamento (1942), a pretenso de Merleau-Ponty, como
ele prprio indica, a de compreender as relaes entre a conscincia e a natureza28.
Para cumprir esse objetivo, ele parte do dilogo com as cincias de sua poca (fsica,
fisiologia, biologia, psicologia, neurofisiologia), e, sobretudo, com a tradio filosfica,
que, segundo ele, serve de fundamento para essas cincias. Expondo de maneira
sistemtica os resultados de algumas pesquisas cientficas, ele abriu caminho para o
26
PhP, p. 40; 60. 27
PhP, p. III; 3. 28
MERLEAU-PONTY, Maurice. A estrutura do comportamento. Traduo de Mrcia Valria Martinez
de Aguiar. So Paulo: Martins Fontes, 2006. p.1
As demais notas a seguir, que se referirem a esta obra, sero indicadas pelas iniciais EC, acompanhadas de
seus respectivos nmeros de pginas.
21
questionamento sobre se os resultados alcanados por tais pesquisas seriam suficientes
para estabelecer e fundamentar concepes sobre a relao entre a conscincia e a
natureza. Merleau-Ponty, entretanto, no pretende invalidar tais pesquisas, mas apontar
que seu modelo terico no pode dar conta daquela relao, enquanto permanece preso
dicotomia dualista.
Inicialmente, Merleau-Ponty discute com os modelos da psicologia de sua poca
sobre a noo de comportamento. Destacamos, em A estrutura do comportamento, o
quarto captulo que trata da relao entre a alma e o corpo, em que a noo de corpo
vivido ganha destaque e ser fundamental ao projeto de restituio do sensvel merleau-
pontiano. Segundo o prprio, a tarefa da filosofia deve ser a de descrever e no a de
explicar, pois a explicao o modelo das cincias naturais que trata dos fenmenos
como objetos. Ele pretende, dessa forma, compreender a relao entre a alma e o corpo.
O primeiro e o segundo captulos de A estrutura do comportamento so
destinados a uma exposio crtica das teorias psicolgicas. O pensamento criticista
afirma que aquilo que conhecemos da natureza formado pela conscincia, e esse o
debate inicial de Merleau-Ponty, desenvolvido numa trama estrutural muito peculiar: ele
expe as pesquisas com seus avanos e limitaes. Pensando o fenmeno psquico no a
partir do homem como Descartes, mas atravs da noo de comportamento, ele pretende
afastar-se do criticismo e do naturalismo. O criticismo caracterizado pela forma de
tratar a natureza como sendo uma constituio da conscincia. J o naturalismo
estabelece que os fenmenos psquicos tm origem nos processos fisiolgicos, e
seguindo tal orientao, o comportamento seria o efeito da ao da natureza sobre o
indivduo. Para esse pensamento, a natureza um conjunto de eventos concretos, e a
conscincia uma parte desse todo como efeito de eventos fisiolgicos, conforme o
materialismo, ou uma fora espiritual, conforme o espiritualismo.29
Os primeiros exemplos analisados por Merleau-Ponty so os da teoria do reflexo,
que pretendeu explicar o comportamento pelo princpio da causalidade, atravs de uma
psicologia cientfica, estudando o comportamento e no mais a alma. Ele critica a teoria
do reflexo por essa conceber o organismo como objeto fsico: partes extrapartes.
Seguindo as concepes filosficas clssicas, a psicologia tende a explicar o
comportamento atravs das relaes causais, por um tipo de reducionismo, orientando-se
29
Cf. FERRAZ, Marcus A. Sacrini. Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponty. Campinas, SP.
Papirus, 2009, p. 22.
22
pelo princpio do reflexo condicionado de Pavlov (comportamentos: animal-inferior;
humano-superior). Dessa maneira, a filosofia clssica no d conta da relao entre
natureza e conscincia, pois esta no uma realidade psquica ou alguma espcie de
efeito e, sim, uma estrutura.30
O exemplo da melodia, utilizado por Merleau-Ponty ao analisar os
comportamentos superiores, segue as consideraes da teoria da Gestalt, para a qual nem
todo fenmeno se resume a relaes de causalidade.
Enquanto as notas consideradas isoladamente tm um significado equvoco,
sendo capazes de entrar numa infinidade de conjuntos possveis, cada uma
delas, na melodia, exigida pelo contexto e contribui por seu lado a exprimir
alguma coisa que no est contida em nenhuma delas e que as liga
interiormente. As mesmas notas em duas melodias diferentes no so
reconhecidas como tais. Inversamente, a mesma melodia poder ser tocada
duas vezes sem que as duas verses comportem um nico elemento comum, se
ela foi transposta.31
A melodia uma forma cujo sentido no se reduz soma das notas particulares
que a compem, visto que tal forma pode se manter em diferentes tonalidades. A melodia
pode ser concebida tal qual uma unidade de significao que atribui funes aos dados
sonoros que a compem e, nesse sentido, exerceria um papel transcendental na
organizao de uma experincia musical. As estruturas perceptivo-motoras humanas no
so poderes puros, mas capacidades polarizadas pelas situaes mundanas o homem
est situado no mundo.
A Gestalttheorie usa a noo de forma em contraposio psicologia clssica
que segue a causalidade linear. Os experimentos dos psiclogos da Gestalttheorie
pretendiam provar que os seres vivos no reagem automaticamente a estmulos isolados,
mas que esses recebem seu sentido em relao a uma forma pela qual o organismo
apreende a situao vivida, assim como cada nota realiza sua funo em relao ao todo
de uma melodia. Os estmulos devem se correlacionar com as estruturas pelas quais os
organismos se inserem no mundo para que possam estimular alguma reao. O
pensamento causal no considera essa relao, logo ele no pode ser preciso quanto ao
estudo do comportamento.
30
EC, p. 4. 31
EC, p. 138.
23
O pensamento criticista no reconhece o contato da conscincia com o real, para
ele, a conscincia s se relaciona com fenmenos constitudos por ela mesma. Merleau-
Ponty, ao contrrio, concebe o organismo como um corpo vivo em situaes e relaes
num meio, no como um objeto. As estruturas percebidas no so apenas unidades de
significao constitudas subjetivamente. Segundo Marcus Sacrini Ferraz, a noo de
forma (Gestalt) unifica significao e existncia, por meio do arranjo fenomenal
percebido, manifesta-se um sentido que no se reduz a uma mera construo subjetiva,
mas que inerente ao meio percebido32.
A noo de comportamento sugere um campo de formas percebidas atravs do
qual os fenmenos so apreendidos: a natureza no se exibe como uma ordem de
eventos determinantes da conscincia, mas sim como uma camada de fatos sensveis,
cuja organizao homognea em relao s formas derivadas das estruturas perceptivas
dos organismos33. Entre a natureza e a conscincia, h uma correlao perceptiva, h um
contato direto da conscincia com a natureza, e no com objetos constitudos. A
conscincia vive nas coisas.
Ao analisar as trs ordens que compem o mundo, fsica, vital e humana34
,
Merleau-Ponty as concebe como estruturas concretas ordenadas seguindo parmetros
perceptivos; h uma mtua relao perceptiva; as estruturas subjetivas no so a causa da
organizao da experincia. Os fenmenos fsicos e vitais supem uma manifestao
para a percepo humana. Na percepo das estruturas, h uma interao entre a
percepo e os materiais sensveis; o sujeito da percepo apreende um sentido j
esboado na ordenao dos prprios eventos mundanos; as formas percebidas apresentam
um sentido latente na prpria natureza. Merleau-Ponty, no artigo O cinema e a nova
psicologia35 , afirma que a percepo no uma espcie de cincia em embrio ou um
exerccio da inteligncia. Precisamos reencontrar uma permutabilidade com o mundo e
uma presena, nele, mais antiga do que a inteligncia36.
32
FERRAZ, Marcus A. Sacrini. op. cit., p. 24. 33
Id., ibid., p. 25. 34
Cf. EC, cap. III. 35
Le cinma et la nouvelle psychologie o titulo de conferncia proferida em 13 de maro de 1945 no
Institut des Hautes tudes cinmatographiques, publicada em Sens et non-sens, e que pode ser lido
como uma aplicao dos resultados de EC. 36
MERLEAU-PONTY, Maurice. Le cinma et la nouvelle psychologie. In:______. Sens et non-sens. Paris:
Gallimard, 1996. p.13-32. [Ed. Brasileira: O cinema e a nova psicologia. In: XAVIER, Ismail (org.). A
experincia do cinema. Rio de Janeiro: Edies Graal, Embrafilme, 1983. p. 66;108. As demais notas a
24
Existe uma percepo analtica que posterior apreenso das formas. Da
decorre a crtica de Merleau-Ponty psicologia clssica, pois essa considera que a
unidade existente entre as partes do campo visual construda pela inteligncia. Mas, a
percepo no a decifrao intelectual dos dados sensveis. Para a psicologia clssica, a
percepo um autntico decifrar intelectual dos dados sensveis, uma espcie de
princpio de cincia37.
A Gestalttheorie rejeita a noo de sensao, mostrando-nos que no podemos
distinguir os signos de sua significao, o que sentido pensado e, como nos afirma
Merleau-Ponty, quando percebo, no imagino o mundo: ele se organiza diante de
mim38. O pensamento e a percepo se fazem nas coisas. Mediante a percepo,
podemos compreender a relao entre alma e corpo. O corpo a sede da percepo.
Contrariando Descartes que dizia que vemos da alma, preciso sim, para ver, abrir os
olhos do corpo. A Gestalttheorie nos ensina de novo a observar este mundo, com o qual
estamos em contato, atravs de toda a superfcie de nosso ser, enquanto a psicologia
clssica renunciava ao mundo vivido, em favor daquele que a inteligncia conseguia
construir39.
Diferentemente da ontologia de inspirao cartesiana, Merleau-Ponty no parte de
uma prvia definio de mundo. O homem um ser situado, ele est lanado no mundo
numa relao originria; no , portanto, uma conscincia que constri o mundo. A
conscincia est ancorada no mundo, e o corpo no um instrumento que a
conscincia manipula de fora, ele o primeiro meio da nossa existncia como ser-no-
mundo pensado, principalmente, a partir de Heidegger (Ser e tempo)40. A percepo
no pode ser explicada pela causalidade: coisacorpoalma, como quis o realismo
ingnuo. Segundo Merleau-Ponty, as dificuldades do realismo vm justamente de ele
querer converter numa ao causal essa relao original e inserir a percepo na natureza.
Contra a ideia de uma conscincia constituinte, temos a facticidade do mundo externo. A
seguir, que se referirem a esta obra, sero indicadas pelas iniciais CNP, acompanhadas de seus
respectivos nmeros de pginas. 37
CNP, p. 64; 106. 38
CNP, p. 63; 107. 39
CNP, p. 68; 110. 40
A noo heideggeriana de Mundo foi fundamental para que Merleau-Ponty pudesse pensar a nossa
relao com e no mundo. O ser-no-mundo possibilitou a superao da perspectiva constituidora do
mundo do idealismo transcendental. A noo de mundo, porm, j se encontra na obra de Husserl, como
mundo da vida Lebenswelt.
25
antinomia realismo-idealismo pode ser superada somente no terreno da experincia
perceptiva e essa sua tese central.
A unidade alma-corpo no pensada, mas sim uma estrutura concreta. A alma e o
corpo so dois aspectos do modo do homem estar no mundo. Merleau-Ponty introduz a
ideia de relao para descrever essa unio do corpo com a conscincia e com mundo, o
corpo portador dessa dialtica. O organismo humano uma totalidade englobante:
matria, vida, conscincia so momentos de uma nica dialtica. A noo de relao
dialtica torna-se central no pensamento merleau-pontiano. Como se pode observar na
percepo, h uma atividade estruturante que vai alm da contraposio exterioridade-
interioridade; h uma dialtica que no descritvel em termos de pura passividade ou de
pura criatividade. essa dialtica que devemos explicar se quisermos superar a
antinomia alma-corpo. a prpria coisa que alcanamos na percepo, pois toda coisa
qual se pode pensar um significado de coisa, e chamamos percepo o ato em que
esse significado se revela a mim41.
Andrea Bonomi afirma que, em A estrutura do comportamento, o problema do
transcendental identificado com o da dialtica42
. Para ele, Merleau-Ponty mostra como
o objeto da investigao transcendental no o conjunto das estruturas da conscincia,
enquanto condies de possibilidade da experincia, mas o comportamento psquico-
humano enquanto totalidade que inclui e forma os nveis inferiores, segundo uma
estruturao peculiar.
A anlise intelectual uma ao posterior percepo das formas, que deve ser
considerada como o nosso meio de percepo mais espontneo. H uma percepo do
todo que mais primitiva e natural. As formas no so constitudas pela inteligncia,
porm captadas pelo olhar, na medida em que esse abarca ou adota a organizao do
campo visual43
. A percepo no simplesmente uma inteleco, pois sempre
mediatizada pelo corpo, que de uma s vez, contingncia e transcendncia.
O idealismo atesta que h uma composio do espiritual com o fisiolgico, e a
conscincia atividade constituinte. O naturalismo, por sua vez, reduz os processos
psquicos a um desdobramento dos processos orgnicos que podem ser explicados nos
termos das relaes causais. Para Merleau-Ponty, o corpo est presente alma como as
41
EC, p. 309. 42
BONOMI, Andrea. Fenomenologia e Estruturalismo. Trad. Joo Paulo Monteiro, Patrizia Piozzi e
Mauro Almeida Alves. So Paulo: Perspectiva, 1974, p. 36-7. 43
Cf. CNP, p. 107.
26
coisas exteriores o esto, em nenhum dos casos se trata de uma relao causal entre dois
termos: A unidade do homem no foi ainda rompida, o corpo no foi despojado de
predicados humanos, ainda no se tornou mquina, a alma ainda no foi definida como
existncia para si44.
Para a fenomenologia, a conscincia uma atividade, no uma coisa; esse foi,
para Husserl, o maior erro de Descartes. E o corpo tambm no uma coisa, ns
estamos no mundo, e o corpo o invlucro vivo de nossas aes. O corpo ou as
representaes mentais no constituem barreiras entre a conscincia e a realidade; o
fsico, o vital e o indivduo psquico no se distinguem, a no ser como diferentes graus
de integrao. Uma vez que o homem se identifica plenamente com a terceira dialtica,
ou seja, j no deixa jogar sobre si sistemas de conduta isolados, a alma e o corpo no se
distinguem mais45. Encontramo-nos na presena de trs acontecimentos: orgnico, da
natureza e do pensamento, que configuram a unidade de trs planos de significao ou
formas de unidade, estruturada por uma dialtica.
Corpo e alma no se contrapem mais na perspectiva merleau-pontiana: o que
est no interior, tambm est no exterior46.
1.3 O CORPO FENOMENAL
Apesar de manter o mesmo procedimento crtico do dilogo com a psicologia, na
Fenomenologia da percepo, Merleau-Ponty elege, como tema central, a percepo e
no mais o comportamento, como fizera em A estrutura do comportamento, realizando,
nesse momento, as crticas s filosofias cartesianas e ps-cartesianas, tendo como
pensadores principais Descartes, Kant e Husserl. Se, em A estrutura do comportamento,
os alvos principais foram tanto o materialismo da cincia positivista, que concebia o
corpo como um objeto, quanto concepo espiritualista que, por sua vez,
descredenciava o corpo, considerando-o oposto alma, na Fenomenologia da percepo,
a discusso ser mais acentuadamente com o intelectualismo. Na introduo da
44
EC, p. 291-292. 45
EC, p. 313. 46
GOETHE apud CNP, p. 75; 117.
27
Fenomenologia da percepo, intitulada Os prejuzos clssicos e o retorno aos
fenmenos, desenvolvida uma reviso do modo como os clssicos trataram a
sensao, a percepo.
O intelectualismo fez a ciso do homem com o seu prprio corpo. Em Descartes,
por exemplo, isso fica evidente quando percebemos a prevalncia da razo sobre o
sensvel o corpo. Segundo Merleau-Ponty, Descartes e, sobretudo, Kant desligaram o
sujeito ou a conscincia, fazendo ver que eu no poderia apreender nenhuma coisa como
existente, se, primeiramente, eu no me experimentasse existente no ato de apreend-
la47. Ora, esse desligamento gera a dificuldade de se explicar como possvel o
conhecimento, uma vez que eu que sou, sou distinto do corpo pelo qual a conscincia
se liga ao mundo. H a uma recusa do aspecto corporal de nossa existncia, pois, para
Descartes e Kant, a ligao feita pela anlise consciente exercida pelo intelecto. Na
perspectiva merleau-pontiana, isso seria impossvel, pois nossa capacidade reflexiva est
intrinsecamente vinculada ao corpo e percepo. curioso notarmos, na passagem
acima citada, que Merleau-Ponty, fazendo referncia apreenso de alguma coisa como
existente, fala de uma experincia de pensamento, e que a certeza cartesiana s ser
alcanada com a clareza que um termo notadamente originado da experincia sensvel.
O corpo na concepo do materialismo cientfico positivista um objeto, partes
extrapartes. Ele , apenas, mais um objeto dentre os demais. J o espiritualismo
desconsidera o corpo, opondo-o alma. Merleau-Ponty afirma, em a Fenomenologia da
percepo, que no temos um corpo, mas sim, somos nosso corpo; ou ainda, que o nosso
corpo o nosso mediador de um mundo48, ele o nosso meio geral de ter um
mundo49.
Descartes considera a res cogitans como essncia do ser humano, do ser pensante,
colocando o corpo junto dos objetos do mundo como res extensa , que tm em comum
o fato de poderem ser divididos em vrias partes, e esse corpo-objeto caracterizado por
ser capaz de perceber, afinal, possui rgos de sentido: ele um organismo biolgico e
est no mundo junto com os outras coisas. Em relao ao corpo humano, tal noo
limitada, pois, ao mesmo tempo em que ele percebido no mundo, tambm pode
perceber. Ele tanto pode ser objeto quanto sujeito. O ser humano um sujeito de
47
PhP, p. III; 04. 48
PhP, p. 169; 201. 49
PhP, p. 171; 203.
28
percepo, encarnado e no uma entidade interior, ele est em situao, est no mundo,
em uma abertura sem limites, no simplesmente uma coisa. O sujeito de percepo vive
em seu corpo e no o observa do exterior (de cima, de baixo, de frente, de lado ou de trs,
por dentro ou por fora). Ele corpreo.
O corpo vivido de nossa experincia diferente do corpo objeto da cincia. Na
Fenomenologia da percepo, Merleau-Ponty ainda preserva certo dualismo (at uma
substancialidade); ainda est preso ideia de uma conscincia, mesmo que encarnada
uma subjetividade encarnada; ele fica preso conscincia constituinte. Porm ele,
assim como Descartes, no admite a metfora aristotlica do piloto em seu navio50
, nem
por isso ele adere ideia cartesiana de uma unio entre substncias distintas, que concebe
a existncia da alma independente dessa unio com o corpo. Ns temos um corpo, e no
estamos, simplesmente, dentro dele. Para Merleau-Ponty:
Engajo-me com meu corpo entre as coisas, elas coexistem comigo enquanto
sujeito encarnado, e essa vida nas coisas no tem nada de comum com a
construo dos objetos cientficos. Da mesma maneira, no compreendo os
gestos do outro por um ato de interpretao intelectual, a comunicao entre as
conscincias no est fundada no sentido comum de suas experincias, mesmo
porque ela o funda: preciso reconhecer como irredutvel o movimento pelo
qual me empresto ao espetculo, me junto a ele em um tipo de reconhecimento
cego que precede a definio e a elaborao intelectual do sentido.51
O corpo no pode ser determinado, como quis a tradio, por sua exterioridade,
como coisa extensa, nem to pouco como depositrio de uma substncia interior, de uma
coisa pensante (conscincia, razo). Ele abertura, ele est situado no mundo, lanado ao
mundo numa relao de troca, numa dialtica, na ambgua relao de quem toca e
tocado, do vidente e do visvel. A cincia constituda no laboratrio limitada a um
contexto constitudo por ela mesma, ela no reconhece essa inerncia, fora desse
contexto, no mundo vivido; ela se torna imprecisa e apenas aproximativa. preciso
considerar o aspecto corporal de nossa existncia.
O corpo prprio no uma presena concreta, e sim um campo de localizao no
qual se d a articulao do sensvel. Para aparecer no mundo, preciso ser um corpo.
Para ser-no-mundo, s possvel pelo corpo. E o mundo aqui no o mundo objetivo da
50
Para uma confrontao entre as filosofias de Descartes e de Merleau-Ponty, ver MOURA, Carlos Alberto
Ribeiro de. A cera e o abelhudo. In: ____. Racionalidade e crise. So Paulo: Discurso/Edufpr, 2001. p.
237-269 51
PhP, p. 216; 252.
29
cincia, nem to pouco o mundo das relaes de causalidade construdo pelo
intelectualismo, , ao contrrio, o mundo do corpo sujeito de percepo, corpo enraizado
no mundo da experincia sensvel.
A atividade reflexiva se refere ao que foi pr-reflexivamente dado. Por isso, o
pr-reflexivo deve ser tomado como o solo original do qual surge a prpria reflexo, os
pensamentos. Primeiro vivemos no mundo, somos sujeitos encarnados, nossa experincia
sensvel bsica, s depois pensamos. Primeiro eu posso e, s depois, porque temos
um corpo, pensamos eu penso52. Ser corpo estar atado a um certo mundo, e nosso
corpo no est primeiramente no espao: ele no espao.53. No podemos considerar as
diferentes partes de nosso corpo, seus aspectos visuais, tteis e motores, como
simplesmente coordenadas54
. Retornar ao sensvel retornar experincia originria e
fundante na qual as coisas ganham sentido. A reflexo uma atividade segunda, que
surge no contato com um mundo, que se organiza diante de ns, no enquanto um
espectador estrangeiro. na atividade fundante que o mundo nos dado, no como
previamente constitudo, como quis o pensamento pr-judicativo. Antes de ser pensado, o
mundo vivido, ele o mundo da vida Lebenswelt, e , nele, que vemos o espetacular
milagre da expresso. Isso s possvel porque o sujeito da percepo em seu corpo.
a nossa experincia originria que Merleau-Ponty quer retomar, pois nela que
percebemos o aparecer do mundo, que s possvel pelo corpo, e no por uma inspeo
do esprito, ou por uma construo da memria como sugerem respectivamente
intelectualistas e empiristas. E ainda segundo Merleau-Ponty:
a reflexo no se retira do mundo em relao unidade da conscincia
enquanto fundamento do mundo; ela toma distncia para ver brotar as
transcendncias, ela distende os fios intencionais que nos ligam ao mundo para
faz-los aparecer, ela s conscincia do mundo porque o revela como estranho e paradoxal.
55
O nosso corpo, como campo fenomenal, est aberto ao aparecer das coisas,
possibilitando o nosso contato primeiro com o mundo. O sujeito encarnado o corpo
52
A esse respeito Marilena Chau nos esclarece que: O corpo que no coisa nem ideia, mas espacialidade e motricidade, recinto ou residncia e potncia exploratria, no da ordem do eu penso, mas do eu posso. (CHAU, Marilena. Experincia do Pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. So Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 68.)
53 PhP, p. 173; 205.
54 PhP, p. 174; 206.
55 PhP, p. VIII; 10.
30
sujeito que conhece , relaciona-se diretamente com o mundo sem mediaes exteriores
ou interiores, o meio o corpo que est no mundo e, pelo corpo, percebemos o mundo
em ns. Estamos inseridos no mundo e encarnados num corpo.
A superao do kantismo, ou simplesmente a sua crtica, foi possvel pela
fenomenologia existencial derivada da fenomenologia da percepo e foi, sob a
influncia de Heidegger, que Merleau-Ponty chegou a ela. Mas ele o faz de um modo
mpar e diferente de Heidegger; no importa s a noo de compreenso, mas a de
expresso; se h Dasein em Merleau-Ponty, esse antes de tudo um corpo:
por meu corpo que compreendo o outro, assim como por meu corpo que
percebo coisas. Assim compreendido, o sentido do gesto no est atrs dele, ele se confunde com a estrutura do mundo que o gesto desenha e que por
minha conta eu retomo, ele se expe no prprio gesto assim como, na experincia perceptiva, a significao da chamin no est para alm do
espetculo sensvel e da chamin ela mesma, tal como meus olhares e meus
movimentos a encontram no mundo.56
O corpo , para Merleau-Ponty, o prprio movimento de expresso, que projeta
as significaes no exterior, determinando-lhes um lugar e permitindo que as coisas
existam enquanto tais, sob nossas mos, sob nossos olhos. Ele a origem do sentido de
todos os espaos expressivos e no, simplesmente, mais um desses espaos57
. Por isso,
no com um objeto fsico que o corpo deve ser comparado, mas com uma obra de
arte58
.
1.4 DO CORPO CARNE
Para Merleau-Ponty, o corpo dividido em parte no seria mais um corpo, e sim
um amontoado de rgos ou partes slidas ou, como ele diz, uma imagem empobrecida
do corpo fenomenal:
a cincia que nos habitua a considerar o corpo como uma reunio de partes,
e tambm a experincia de sua desagregao na morte. Ora, o corpo
decomposto, precisamente, no mais um corpo. Se eu recoloco minhas
56
PhP, p. 216-7; 217. 57
PhP, p. 171; 202. 58
PhP, p. 176; 208.
31
orelhas, minhas unhas, meus pulmes, em meu corpo vivo, eles no aparecero
mais como detalhes contingentes. Eles no so indiferentes ideia que os
outros fazem de mim, eles contribuem para minha fisionomia ou para meu
aspecto, e talvez a cincia exprimir sobre forma de correes objetivas a
necessidade que eu tinha de ter orelha, unhas e pulmes assim feitos, se por
outro lado eu devia ser hbil ou desastrado, calmo ou nervoso, inteligente ou
tolo, se eu devia ser eu.59
O corpo humano no um simples objeto entre os demais, nem um simples
organismo como a biologia o tratou, ele antes uma abertura ao mundo, ele vive em
diferentes regimes numa nica existncia, articulado dinamicamente por um esquema
corporal e no por uma juno de partes e rgos. Senciente (sentant) e sensvel
(sensible), o corpo existindo como sujeito e objeto para si e em si est aberto ao da
histria e das cincias da vida. O esquema paradoxal do corpo que se movimenta,
entendido como corporeidade, enfatizado por Merleau-Ponty em vez da anlise
reflexiva. A unidade de nossa ao um sistema de equivalncia, Por ser fenomenal, o
corpo expressa a nossa insero no mundo.
O percurso seguido por Merleau-Ponty at A fenomenologia da percepo levou-
o a uma subjetivao do corpo, permanecendo ainda filiado metafsica dualista
substancialista. s em O visvel e o invisvel que o corpo deixa de ser apenas matria e
passa condio de carne, como elemento que participa do mundo sem ser apenas
objeto nem simplesmente sujeito. O ambicioso projeto da restituio do sensvel tem
com consequncia a constituio de um status ontolgico para o corpo para o sensvel
no mesmo nvel que antes ocupara a conscincia; porm, permanece, por isso mesmo,
em sua primeira fase, sem superar o dualismo e sim, apenas, confere ao corpo uma
dignidade substancial.
As noes inicias elaboradas sobre o corpo, a partir de A estrutura do
comportamento e da Fenomenologia da percepo, tiveram a reflexo sobre a percepo
como um dos enfoques centrais. Porm, como o prprio autor observara posteriormente,
reconhecer no corpo apenas um poder expressivo e consider-lo uma potncia subjetiva
no suficiente para resolver as limitaes impostas pelas filosofias por ele criticadas. O
corpo continuou junto das substncias, s que agora num lugar supostamente
privilegiado, o corpo prprio exigiu a constituio de uma ontologia que no admitisse
mais as perspectivas dicotmicas. Seu esforo de demonstrar que a subjetividade est
59
PhP, p. 493; 578.
32
enraizada no mundo, que ela uma subjetividade encarnada, ser superado atravs da
noo de carne, com a qual Merleau-Ponty busca superar os impasses postos pelo seu
projeto inicial, partindo agora da noo de carne e de uma nova perspectiva para falar da
experincia.
Nos seus ltimos trabalhos, Merleau-Ponty no abandona as categorias de corpo
objetivo e corpo fenomenal. No entanto, ele prprio fez a crtica da forma como tratou da
unio da alma com o corpo, pois no resolveu o problema, ou ainda manteve a relao
entre corpo objetivo e corpo fenomenal, assumindo ainda a distino entre a conscincia
e o objeto. na noo de carne que ele ir investir para se afastar das distines
assumidas entre corpo-sujeito e corpo-objeto. A carne ser a abertura para o mundo,
enquanto matria comum do corpo vidente e do mundo visvel. Merleau-Ponty toma a
noo de carne de Husserl, que usava Leib para se referir ao vivido. Para Merleau-
Ponty:
O que chamamos carne, essa massa interiormente trabalhada, no tem,
portanto, nome em filosofia alguma. Meio formador do objeto e do sujeito, no
o tomo de ser, o em si duro que reside num lugar e num momento nicos:
pode-se perfeitamente dizer do meu corpo que ele no est alhures, mas no
dizer que ele esteja aqui e agora, no sentido dos objetos; no entanto, minha
viso no os sobrevoa, ela no o ser que todo saber, pois tem sua inrcia e
seus vnculos, dela. preciso pensar a carne, no a partir das substncias,
corpo e esprito, pois seria ento a unio dos contraditrios, mas, dizamos,
como elemento, emblema concreto de uma maneira de ser geral.60
Ao falar de carne, Merleau-Ponty no pretendeu constituir uma antropologia.
Com a carne do visvel, ele quis dizer que o ser carnal, como ser das profundidades, em
vrias camadas ou de vrias faces, ser de latncia e apresentao de certa ausncia, um
prottipo do Ser, de que nosso corpo, o sensvel senciente, uma variante
extraordinria61. Nosso corpo , concomitantemente, corpo fenomenal e corpo objetivo,
mas tal paradoxo j est todo visvel, como, por exemplo, um cubo, que vejo inteiro sem,
todavia, poder ver todos os seus aspectos de uma s vez.
Para Merleau-Ponty, a carne no nem matria, nem esprito e, muito menos,
substncia. Por isso, ele recorre ao antigo termo elemento que os pr-socrticos
60
MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible et linvisible. Paris: Editions Gallimard, 1990. [Ed. Brasileira: O visvel e o invisvel. Traduo de Jos Artur Gianotti, Armando Mora dOliveira. 3. ed. So Paulo: Perspectiva, 1992. VI, p. 193-4; 142-3.
As demais notas a seguir, que se referirem a esta obra, sero indicadas pelas iniciais VI, acompanhadas de
seus respectivos nmeros de pginas. 61
VI, p. 179; 132-3.
33
usavam falar de gua, ar, terra e fogo, isto , no sentido de uma coisa geral, meio
caminho entre o indivduo espcio-temporal e a ideia, espcie de princpio encarnado que
importa um estilo de ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua. Nesse
sentido, a carne um elemento do Ser.62
Ao retornar, em O visvel e o invisvel, sua ideia de corpo da Fenomenologia da
percepo, ele comparar o corpo a uma folha de papel, a um ser de duas faces, pois ele
de um lado, coisa entre as coisas e, de outro, aquilo que as v e toca63, compreende
tanto a ordem do objeto quanto a do sujeito, ou como denominava, corpo objetivo e
corpo fenomenal. O ser, compreendido a partir dessa reflexo, um ser de duas
dimenses:
Se minha mo esquerda toca a minha mo direita e se de repente quero, com a
mo direita, captar o trabalho que a esquerda realiza ao toc-la, esta reflexo
do corpo sobre si mesmo sempre aborta no ltimo momento: no momento em
que sinto minha mo esquerda com a direita, correspondentemente paro de
tocar minha mo direita com a esquerda. Mas este malogro de ltimo instante
no retira toda a verdade a esse meu pressentimento de poder tocar-me
tocando: meu corpo no percebe, mas est como que construdo em torno da
percepo que se patenteia atravs dele: por todo o seu arranjo interno, por
seus circuitos sensori-motores, pelas vias de retorno que controlam e relanam
os movimentos, ele se prepara, por assim dizer, para uma percepo de si,
mesmo se nunca ele que ele prprio percebe ou ele quem o percebe. Antes da
cincia do corpo que implica a relao com outrem , a experincia de minha carne como ganga de minha percepo ensinou-me que a percepo no nasce
em qualquer lugar, mas emerge no recesso de um corpo.64
Esse o exemplo de Husserl, como aponta Iraquitan Caminha65
, e permanece na
dicotomia interior-exterior. Com a noo de carne universal, Merleau-Ponty busca
justamente escapar daquela sua antiga ideia do corpo como feito de duas faces: nele no
h duas camadas ou duas faces, e ele no , fundamentalmente, nem apenas coisa vista
nem apenas vidente, a Visibilidade ora errante ora reunida66. A viso, que seu
exemplo, e no apenas o tato, distncia em uma imerso. Logo, a viso no retm um
mundo em um recito privado minha conscincia . Mesmo a ideia de distncia no
suficientemente forte. Entre o corpo como sensvel e o corpo como senciente, diz
Merleau-Ponty, ao invs de distncia, o que h o abismo que separa o Em Si do Para
62
VI, p. 184; 136. 63
VI, p. 180; 133. 64
VI, p. 24-5; 20-1. 65
Cf. CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. O distante-prximo e o prximo-distante: corpo e percepo na
filosofia de Merleau-Ponty. Joo Pessoa: Editora Universitria da UFPB, 2010, cap. VII. 66
VI, p. 181; 134.
34
Si67. Mas, ento, como podemos pensar o senciente-sensvel? Qual o limite do corpo e
do mundo, j que o mundo tambm carne, isto , ser profundo, de latncia, com vrias
camadas de significaes? Ele responde com o conceito de entrelaamento ou quiasma.
No simples, porm, escapar da dicotomia, pois a reversibilidade do vidente e do
visvel, do tacto e do tangvel sempre iminente e nunca realizada de fato68.
A experincia considerada como reversibilidade, transitividade e reflexo carnal,
nos mostra que:
S sairemos desse impasse quando renunciarmos bifurcao entre a
conscincia de... e o objeto, admitindo que meu corpo sinrgico no objeto, que rene um feixe de conscincia aderente a minhas mos, a meus olhos, por meio de uma operao que lhes lateral, transversal, admitindo que
minha conscincia no a unidade sinttica, incriada, centrfuga, de uma multido de conscincia de..., tambm centrfugas, mas que sustentada, subtendida pela unidade pr-reflexiva e pr-objetiva do corpo.
69
67
VI, p. 180; 133. 68
VI, p. 194; 143. 69
VI, p. 186; 137-8.
35
2 A EXPRESSO
A expresso do que existe uma tarefa infinita.
Merleau-Ponty. DC.
2.1 A PERCEPO E O MUNDO PERCEBIDO
A problemtica que envolve a percepo est presente no pensamento de
Merleau-Ponty desde A estrutura do comportamento at o inacabado O visvel e o
invisvel, porem , na Fenomenologia da percepo, que ela ganha destaque central por
meio da tarefa de retorno radical s coisas mesmas. A descrio da percepo pelo
retorno s coisas pretende voltar ao momento originrio e primordial de apreenso de
onde todo sentido se origina, momento que tambm o solo sobre o qual todo
conhecimento se edifica. Esse retorno ser radical e tem um carter ontolgico, pois, para
Merleau-Ponty, a percepo de uma coisa me abre ao ser70
.
Merleau-Ponty no adere s filosofias que conceberam nossas relaes com o
mundo como tendo sido geradas por estmulos externos previamente determinados, pois
tais perspectivas filosficas conceberam o mundo (ou ainda sua significao),
previamente, antes de qualquer experincia nossa, no reconhecendo nossa adeso a ele.
A percepo a experincia que nos abre para a realidade, ela abertura para. Ela
realizada no mundo e em ns. pela percepo que nos revelada a apario do mundo,
logo no poderamos conceb-lo existindo previamente e determinando nossas
experincias, como queriam os filsofos de inspirao empirista. Conforme nos assegura
Merleau-Ponty:
A percepo no uma cincia do mundo, no nem mesmo um ato, uma
tomada de posio deliberada; ela o fundo sobre o qual todos os atos se
destacam e ela pressuposta por eles. O mundo no um objeto do qual
70
A ideia de que na Fenomenologia da percepo h uma espcie de ontologia no seria aceita por todos
os seus comentadores, Esta tese defendida por Carlos Alberto Ribeiro de Moura, para quem no h
uma ruptura entre a Fenomenologia da percepo e O visvel e o invisvel.
36
possuo comigo a lei de constituio; ele o meio natural e o campo de todos
os meus pensamentos e de todas as minhas percepes explcitas. A verdade
no habita apenas o homem interior, ou, antes, no existe homem interior, o homem est no mundo, no mundo que ele se conhece.
71
A descrio do mundo percebido, proposta por Merleau-Ponty, a de um mundo
esttico, ou, como ele diz, como espao de transcendncia, espao de
incompossibilidades, de ecloso, de deiscncia, e no como espao objetivo-imanente72.
Ao contrrio dos empiristas e dos intelectualistas que acreditam no poder da atividade de
sntese que tornaria claro o mundo percebido, pois j pr-constitudo, para Merleau-
Ponty, o mundo percebido no definido e acabado, uma vez que ele aparece dessa
relao mtua entre ns e o mundo natural que, para ele, o de sentido bruto, o horizonte
de nossa existncia. Sendo assim, retornar s prprias coisas retornar ao momento no
qual experimentamos a coisa percebida como que pela primeira vez. Conforme Caminha,
esse retorno significa torn-la irredutvel a uma realidade em si e, ao mesmo tempo,
voltar presena do aparecer da coisa percebida, o que a torna irredutvel a uma
realidade para si73.
O percebido no se mostra em si mesmo e sim numa trama relacional. Segundo
Merleau-Ponty, a partir do momento que deixarmos de conceber a percepo como ao
do puro objeto fsico sobre o corpo humano e o percebido como resultado interior dessa
ao, parece que toda distino entre o verdadeiro e o falso, o saber metdico e os
fantasmas, a cincia e a imaginao, vem por gua abaixo74. O mundo percebido as
coisas aparece a um corpo que v em total entrelaamento com o que visto. No
percebemos o mundo de fora, no vemos o mundo com lentes como um cientista no
laboratrio analisa seus objetos de pesquisa. O mundo com o qual trabalha o cientista
aquele que se tem a distncia, sem qualquer imerso. Seu pensamento , como dir
Merleau-Ponty em uma expresso que ficou muito conhecida, pensamento de sobrevoo.
A f, em um mundo previamente determinado, orienta tanto os empiristas quanto
os intelectualistas, porm, como afirma Merleau-Ponty; Vemos as coisas mesmas, o
mundo aquilo que vemos frmulas desse gnero exprimem uma f comum ao homem
71
PhP., p. V; 06. 72
VI, p. 269-201. 73
CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. op. cit., p. 46. 74
VI, p. 45-35.
37
natural e ao filsofo desde que abre os olhos...75. E ainda: Assim , e nada se pode
fazer em contrrio. Ao mesmo tempo verdade que o mundo o que vemos e que,
contudo, precisamos aprender a v-lo76. A primeira viso, o primeiro contato com ele, o
primeiro prazer que temos dele, inicia-nos no ser: no se trata de modo algum de algo em
relao a um contedo, mas sim de uma abertura que nunca poder se fechar e da qual
depende todas as experincias seguintes. Porm, se o mundo que vemos no est
acabado, uma vez que o vemos em perspectivas, a tentativa de Merleau-Ponty
descrever a percepo entranhada no mundo que ela percebe no ato prprio de aparecer.
A ideia no nada de outro mundo; no um invisvel de fato, ou como uma coisa
escondida atrs de outra, no um invisvel absoluto, que nada teria a ver com o visvel,
mas o invisvel deste mundo, aquele que o habita, o sustenta e torna visvel, sua
possibilidade interior e prpria, o Ser desse ente.77
O ser que se percebe se move e, ao mover-se, se abre a infinitas perspectivas.
Com isso, constatamos a impossibilidade de uma sntese que d por acabado o mundo,
pois, se assim o fosse, tudo o ser no existiria. A atividade reflexiva no pode
colocar-se aqum ou alm do mundo do qual emerge e, ao mesmo tempo, tentar camuflar
essa relao. Merleau-Ponty nos afirma que um equivoco esquecer esse envolvimento
com o mundo em estado bruto:
A reflexo guarda tudo da f perceptiva: a convico de que h qualquer coisa,
que h o mundo, a ideia de verdade, a ideia verdadeira dada. Simplesmente,
essa brbara convico de ir s prprias coisas incompatvel com o fato da iluso ela a reduz ao que pretende dizer ou significa converte-a em sua verdade, descobrindo a a adequao e o consentimento do pensamento ao
pensamento, a transparncia do que penso para mim que o penso. A existncia
bruta e previa do mundo que acreditava encontrar j ali, abrindo os olhos,
apenas o smbolo de um ser que para si logo que , porque todo o seu ser
aparecer e, portanto, aparecer-se e que se chama esprito.78
Essa crena irresistvel, a f ingnua de que h algo, de que h o mundo,
a nossa primeira evidncia79. Conforme Caminha, a f perceptiva nos d a certeza de
que em nenhum momento, ns samos do mundo percebido, no sentido de que o mundo
75
VI, p. 17-15. 76
VI, p. 18-16. 77
VI, p. 198-146. 78
VI, p. 51-39. 79
PhP, p.XI; 14.
38
no outra coisa alm do que ns percebemos80. Para Merleau-Ponty, s pelo retorno
f perceptiva, revisando a anlise cartesiana, que superaremos a crise em que se
encontra nosso saber quando acredita fundar-se sobre uma filosofia que as suas prprias
tentativas destroem81.
O pensamento precisa reconhecer sua gnese, uma vez que ele malogrou na
tentativa de se instalar aqum da experincia perceptiva. necessrio que ele reconhea
sua origem no mundo percebido, que pr-reflexivo anterior, a qualquer tentativa de
objetivao realizada posteriormente abertura ao mundo, j constatada na f perceptiva.
O mundo sensvel anterior ao universo do pensamento, e esse s pode se constituir a
partir daquela experincia originria: tudo o que para ns se chama pensamento, exige
essa sua distncia, esta sua abertura inicial que constituem para ns campo de viso,
campo de futuro e passado... 82. O que afinal essa abertura?
Dizer h mundo significa que no se pode pensar o mundo de fora. Pensar o
mundo no operar com conceitos e encontrar no mundo a confirmao de certezas. Ao
contrrio, um ato de estar imerso, enraizado no mundo. No h dentro e fora, exterior e
interior. Trata-se, ento, de refletir sobre essa evidncia primeira: h mundo. O mundo
apario de uma completude nunca acabada. necessrio no s voltar s coisas, mas
tambm ao sujeito que percebe. H sujeito! Mas no ele quem constitui o mundo. Por
isso, Merleau-Ponty questiona: Quem v este vermelho?
O pensamento que toma como res, tanto o sujeito como o mundo, acaba por
conceb-los a partir da ideia de adequao de conhecimento e assim perde a relao que
estabelecemos com o mundo e ns mesmos83
. A fenomenologia comea pelo
questionamento mesmo dessa relao originria, a abertura para o mundo. O mundo
horizonte, mas porque, de alguma maneira, aquele que v pertence-lhe e est nele
instalado. Esse questionamento, porm, no a analisa, no visa se desfazer dessa
relao, como se ela tivesse sido feita por ajuntamento84:
A filosofia a f perceptiva interrogando-se sobre si mesma. Pode-se dizer
dela, como de toda f, que f porque possibilidade de dvida e esse
infatigvel percurso das coisas, que nossa vida, tambm uma interrogao
contnua. No s a filosofia, no incio o olhar que interroga as coisas. No
80
CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. op. cit., p. 59. 81
VI, p. 46-36. 82
VI, p. 28; 23. 83
VI, p. 42; 33. 84
VI, p. 136-101.
39
temos uma conscincia constituinte das coisas, como acredita o idealismo, ou
uma pr-ordenao das coisas conscincia, como acredita o realismo (eles
so indiscernveis no que aqui nos interessa, pois ambos afirmam a adequao
da coisa e do esprito) temos com nosso corpo, nossos sentidos, nosso olhar, nosso poder de compreender a fala e de falar, mensuradores para o Ser,
dimenses a que podemos remet-lo; no, porm uma relao de adequao e
de imanncia.85
O que o olhar interroga j est a, mas s est desde que ele o tenha encontrado.
Nossa viso vai s prprias coisas. Essa experincia privilegiada porque nos mostra,
com grande preciso, a presena perceptiva do mundo:
[...] nossa experincia que est aqum da afirmao e da negao, aqum do
juzo opinies crticas, operaes ulteriores mais velha que qualquer opinio, a experincia de habitar o mundo por meio de nosso corpo, a
verdade ns mesmos inteiramente sem que seja necessrio escolher nem
mesmo distinguir entre a segurana de ver e a de ver o verdadeiro, pois que so
por princpio uma mesma coisa portanto f, e no saber, porquanto o mundo aqui no est separado do domnio que temos sobre ele, sendo, ao invs de
afirmado, tomado como evidente, e ao invs de revelado, no dissimulado, no
refutado.86
Para Merleau-Ponty, no momento em que nos damos conta de nossa relao com
o mundo, de nossa abertura para o mundo e quando tentamos, pela reflexo, captur-la,
a perdemos. Essa abertura, como para Heidegger, a compreenso, mas essa pensada
corporalmente:
Vejo, sinto e certo que, para me dar conta do que seja ver e sentir, devo parar
de acompanhar o ver e o sentir no visvel e no sensvel onde se lanam,
circunscrevendo, aqum deles mesmo, um domnio que no ocupam e a partir
do qual se tornam compreensveis segundo seu sentido e sua essncia.
Compreend-los surpreend-los, pois a viso ingnua me ocupa inteiramente,
pois a ateno na viso, que se acrescenta a ela, retira alguma coisa desse dom
total, sobretudo, porque compre