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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MESTRADO EM FILOSOFIA PINTURA E CORPO NA FILOSOFIA DE MERLEAU-PONTY José Martins de Lima Neto João Pessoa - PB 2012

m. ponty pintura clássica e moderna.pdf

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    MESTRADO EM FILOSOFIA

    PINTURA E CORPO

    NA FILOSOFIA DE MERLEAU-PONTY

    Jos Martins de Lima Neto

    Joo Pessoa - PB

    2012

  • JOS MARTINS DE LIMA NETO

    PINTURA E CORPO

    NA FILOSOFIA DE MERLEAU-PONTY

    Dissertao apresentada ao Mestrado em Filosofia, Centro

    de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade

    Federal da Paraba, como requisito parcial para a obteno

    do grau de Mestre.

    Orientador: Iraquitan de Oliveira Caminha

    Joo Pessoa - PB

    2012

  • JOS MARTINS DE LIMA NETO

    PINTURA E CORPO

    NA FILOSOFIA DE MERLEAU-PONTY

    Dissertao apresentada ao Mestrado em Filosofia, Centro

    de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade

    Federal da Paraba, como requisito parcial para a obteno

    do grau de Mestre.

    _______________________________

    Doutor Iraquitan de Oliveira Caminha (Orientador)

    Universidade Federal da Paraba

    _______________________________

    Doutora Constana T. Marcondes Csar

    Universidade Federal de Sergipe

    ________________________

    Doutor Bartolomeu Leite Silva

    Universidade Federal da Paraba

    Joo Pessoa, 26 de outubro de 2011.

  • DEDICATRIA

    Para Alessandra...

  • AGRADECIMENTOS

    Inicialmente, agradeo ao professor Monclar Valverde, por despertar o meu

    interesse e pela iniciao nas pesquisas da obra de Merleau-Ponty.

    Agradeo ao orientador Iraquitan Caminha, por no deixar de acreditar na

    realizao deste trabalho, pelas orientaes e pelo constante incentivo.

    Aos professores Deive Redson Melo dos Santos e Bartolomeu Leite Silva,

    agradeo pela atenta leitura deste trabalho e pelos gentis conselhos durante a

    qualificao; professora Constana Marcondes Csar, por ter aceitado participar da

    Banca Examinadora.

    Agradeo ao Departamento de Educao Campus I da UNEB, por me conceder o

    tempo necessrio para a concluso desta pesquisa.

    Universidade do Estado da Bahia, agradeo pela bolsa.

    Agradeo a Alan Sampaio, pela motivao, pelas conversas e crticas

    fundamentais para a concretizao desta dissertao e pelas revises.

    Por fim, agradeo, em especial, Maria de Ftima Medeiros, pela acolhida e

    apoio em Joo Pessoa, sem os quais este trabalho no seria concludo.

  • RESUMO

    A meta desta dissertao foi verificar o porqu da recorrncia da pintura na

    filosofia de Merleau-Ponty. Para tanto, analisamos os textos A dvida de Czanne , A

    linguagem indireta e as vozes do silncio e O olho e o esprito que tratam diretamente da

    pintura, demonstrando a sua funo em cada um deles, levando em considerao as

    noes de corpo e expresso. Inicialmente, analisamos a concepo de corpo que teve

    como objetivo resgatar o aspecto primordial do sensvel, em seguida, tratamos da teoria

    da expresso merleau-pontiana que toma a expresso pictrica como privilegiada, por

    fim apresentamos a pintura relacionada com os temas da histria e da visibilidade.

    Conclumos que Merleau-Ponty no concebe a pintura como cpia ou representao da

    Natureza. Na sua filosofia, ela no mera ilustrao. o meio de demonstrar a pertinente

    aproximao entre a filosofia e a arte no debate acerca da experincia esttica. A

    expresso pictrica nos d a emergncia constitutiva da visibilidade, nos revelando uma

    abertura ao ser que configura a ontologia selvagem pretendida por Merleau-Ponty.

  • RSUM

    Le but de cette dissertation a consist a vrifier le pourquoi de la rcurrence de la

    peinture dans la philosophie de Merleau-Ponty. Nous avons pour cela analys les textes

    Le doute de Czanne, Le langage indirect et Lil et lesprit, qui traitent directement de

    la peinture, en dmontrant sa fonction en chacun dentre eux, en prenant en considration

    les notions de corps et dexpression. Nous avons tout dabord analys la conception de

    corps qui a eu pour objet de retrouver laspect primordial du sensible, ensuite nous avons

    trait de la thorie de lexpression merleau-pontienne qui privilgie lexpression

    picturale, enfin nous avons prsent la peinture dans son rapport avec les thmes de

    lhistoire et de la visibilit. Nous en avons conclu que Merleau-Ponty ne conoit pas la

    peinture comme copie ou reprsentation de la Nature. Dans sa philosophie elle nest pas

    une simple illustration. Elle est le moyen de dmontrer le rapprochement pertinent entre

    la philosophie et lart dans le dbat au sujet de lexprience esthtique. Lexpression

    picturale nous prsente lmergence constitutive de la visibilit, en nous rvlant une

    ouverture ltre qui configure lontologie sauvage dfendue par Merleau-Ponty.

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    DAS OBRAS DE MERLEAU-PONTY

    AD Les aventures de la dialectique.

    CNP Le cinma et la nouvelle psychologie

    DC La doute de Czanne.

    EC A estrutura do comportamento.

    EF Elogio da filosofia.

    FS O filsofo e sua sombra.

    HT Humanismo e terror.

    In Un indit de Merleau-Ponty.

    LI A linguagem indireta e as vozes do silncio.

    N La Nature.

    PhP Phnomnologie de la perception.

    PM A prosa do mundo.

    PP O primado da percepo e suas consequncias filosficas.

    OE LOeil et lEspirit.

    S Signes.

    SNS Sens et non-sense.

    VI Le Visible et lInvisible.

    Nota: As pginas indicadas ao longo da dissertao, quando forem feitas referncias a

    PhP, DC, CNP, LI, OE e VI, so primeiro as da edio francesa, seguidas da numerao

    da edio brasileira, conforme indicado nas Referncias. Nos demais casos, a numerao corresponde s edies brasileiras.

  • SUMRIO

    INTRODUO .................................................................................................................. 9 1 CORPO E EXPERINCIA ESTTICA ....................................................................... 13

    1.1 RESTITUIO DO NOSSO CONTATO PRIMORDIAL COM O MUNDO DA PERCEPO .......... 14 1.2 A RELAO ALMA-CORPO: CRTICA DAS CONCEPES CLSSICAS .............................. 20 1.3 O CORPO FENOMENAL .................................................................................................. 26 1.4 DO CORPO CARNE ..................................................................................................... 30

    2 A EXPRESSO ............................................................................................................ 35 2.1 A PERCEPO E O MUNDO PERCEBIDO ......................................................................... 35 2.2 O MILAGRE DA EXPRESSO .......................................................................................... 40

    2.4 A EXPRESSO PICTRICA E A LINGUAGEM VERBAL ...................................................... 54 3 PINTURA E VISIBILIDADE ....................................................................................... 59 3.1 MERLEAU-PONTY E MALRAUX: A PINTURA CLSSICA E A PINTURA MODERNA. ........... 59 3.2 A HISTORICIDADE: A UNIDADE E O INACABAMENTO DA PINTURA ................................. 63

    3.3 A PINTURA E A VISO ................................................................................................... 69 3.4 O OLHO E O VISVEL O ESPRITO E O INVISVEL .......................................................... 74 CONCLUSO .................................................................................................................. 81 REFERNCIAS ............................................................................................................... 84

  • 9

    INTRODUO

    a arte, e notadamente a pintura, nutrem-se nesse lenol bruto do

    qual o ativismo nada quer saber, elas so mesmo as nicas a

    faz-lo com toda inocncia.

    Merleau-Ponty. OE

    Merleau-Ponty afirma, em O Olho e o Esprito, que h um privilgio da pintura

    em relao expresso do ser, nossa imerso no ser, em detrimento, por exemplo, da

    poesia e da msica. Referncia recorrente em sua filosofia, a pintura nunca serviu a

    Merleau-Ponty como mera ilustrao.

    A relao fecunda entre arte e filosofia, mesmo quando a filosofia se ops arte,

    inegvel, ainda que a pintura, em especial, tenha um papel de destaque tanto do ponto

    de vista fenomenolgico quanto ontolgico, isto , algo novo na histria da Filosofia. Por

    que a arte um meio privilegiado para se pensar o problema do ser? E por que a pintura

    tem, para Merleau-Ponty, um papel de destaque? O problema trata da visibilidade em seu

    estado primrio, se assim podemos dizer, ou seja, da reversibilidade existente entre

    visvel e vidente. Ele diz respeito ao mundo pr-humano mostrado atravs da pintura e

    que s ela pode mostrar com toda inocncia e brutalidade. justamente o ser bruto que

    o pintor busca captar para transformar a tela em branco no quadro que o convoca.

    Um dos motivos da importncia atribuda pintura por Merleau-Ponty o

    privilgio que ela tem de captar o ser mudo sem arranc-lo do seu mutismo. A pintura,

    em geral, consiste, como afirma Jean-Yves Mercury, em uma aproximao silenciosa do

    mundo, porm ela libera, por assim dizer, o silncio obstinado e obsceno do mundo e das

    coisas e os transforma, pelo prprio ato da criao pictrica, no silncio rumorejante

  • 10

    palavras, de sentido e de expresso 1. Segundo Franois Cavallier, Merleau-Ponty

    procura a fala e o pensamento como o pintor pinta2.

    pela dedicao fenomenologia da percepo que pde surgir, em Merleau-

    Ponty, o problema da visibilidade como cerne de uma ontologia, que se encontra

    inacabada nas notas de seu livro pstumo O visvel e o invisvel e que se contrape

    metafsica clssica. A retomada do contato primeiro do homem com o mundo que se abre

    conduz-nos a uma valorizao dos sentidos, inclusive para o conhecimento. A aparece a

    pintura como uma expresso privilegiada para pensar a nossa relao mais ntima com o

    mundo e o ser.

    Como surge o sentido ou de onde ele advm? O que confere sentido s coisas, ao

    mundo e s nossas aes? O mundo que percebemos, do qual falamos e sobre o qual

    refletimos, um decalque do mundo real? Ou uma representao de um mundo perdido

    para ns sujeitos? Diante de tais questes, parece que a pintura tem algo a dizer ao

    filsofo.

    A pintura moderna, e em especial a de Paul Czanne, na medida em que nos

    liberta da ideia de representacionismo, tem uma particular ateno de Merleau-Ponty. A

    pintura no realiza, nem nunca realizou uma representao das coisas, ainda que assim

    pudessem pensar, inclusive, os pintores. Ao contrrio, faz-nos ver um mundo que

    essencialmente carnal, que tem densidade. Um mundo que no est alm do sensvel,

    mas se realiza nesse sensvel.

    Com base na reversibilidade entre o visvel e o vidente, a pintura encontra as

    coisas em estado nascente, realiza o enigma da visibilidade e expe um tipo de reflexo

    pr-consciente. Ela mostra que a interpretao e o sentido das coisas no passam

    necessariamente pela conscincia, pois a prpria percepo j fornece um sentido

    nascente.

    O objetivo central deste trabalho investigar o lugar privilegiado da pintura no

    pensamento de Merleau-Ponty. Para tanto, deveremos analisar sua concepo de corpo,

    com destaque para o que ele chama de corpo prprio, identificar as principais

    1 MERCURY, Jean-Yves. Lexpressivit chez Merleau-Ponty: du corps la peinture. Paris: LHarmattan,

    2000, p. 228: En ce sens la peinture constitue bien une appoche silencieuse du monde mais elle libre, pour ainsi dire, le silence ttu et obscne du monde et des choses en les transformant, par lacte mme de la cration picturale, en les silences bruissants de paroles, de sens, dexpression.

    2 CAVALLIER, Franois. Premires leons sur Lil et lesprit de M. Merleau-Ponty. Paris: PUF, 1998,

    p. 97: Merleau-Ponty cherce parler et penser comme peint le peintre.

  • 11

    caractersticas da sua noo de expresso e analisar o desenvolvimento de uma ontologia

    da viso, vinculada a uma reflexo sobre a experincia esttica.

    Privilegiaremos os textos em que Merleau-Ponty trata explicitamente da pintura,

    visto que nosso objetivo situar o papel dessa no desenvolvimento da filosofia merleau-

    pontiana. Nossa investigao visa, atravs do dilogo com uma bibliografia pertinente ao

    tema da expresso, a realizar uma interpretao do papel da pintura no pensamento

    merleau-pontiano, por meio de ideias que se encontram dispersas ou insinuadas nele.

    Inicialmente, partiremos da ideia merleau-pontiana de restituio do sensvel, que

    se inicia j, em A estrutura do comportamento, por meio do dilogo com a tradio

    filosfica e a cincia moderna, as quais privilegiaram a razo (conscincia) em

    detrimento da experincia sensvel, fortalecendo a viso dualista que separa corpo e

    alma. Merleau-Ponty discute, em especial com a psicologia moderna, a noo de

    comportamento. Destacamos, nesse livro, o quarto captulo que trata das relaes entre a

    alma e o corpo, no qual a noo de corpo vivido ganha destaque e, posteriormente, ser

    fundamental ao projeto de restituio do sensvel de Merleau-Ponty. J na

    Fenomenologia da percepo, o tema central a percepo e a reflexo em torno da

    experincia sensvel com base na noo de corpo como corpo prprio.

    Em seguida, trataremos da sua teoria da expresso. Particularmente, na

    Fenomenologia da percepo, mostraremos uma ponderao sobre a noo de expresso

    a partir dos atos da expresso autntica aqueles do escritor, do artista ou do filsofo3,

    ou seja, encontra-se a uma diviso entre o carter institudo e instituinte da prpria

    expresso fala falada e fala falante. Procuraremos estudar essa noo de

    expresso criadora (como chamar mais tarde) relacionando-a ao tema do corpo

    prprio.

    Em A dvida de Czanne, encontramos um problema que parece se destacar da

    reflexo do corpo prprio, tal como se d no sexto captulo da Fenomenologia da

    percepo, em que Merleau-Ponty dedica-se, como indica o ttulo, a pensar sobre a tarefa

    do pintor a quem mais se referiu em seus textos Czanne. Tendo em vista a inferncia

    da pintura como atividade de todo pintor, buscaremos explicitar como o filsofo a

    3 MERLEAU-PONTY, Maurice. Phnomnologie de la perception. Paris: Editions Gallimard, 1945. [Ed.

    Brasileira: Fenomenologia da percepo. Traduo de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. So Paulo:

    Martins Fontes, 1999. (Tpicos).] p.229;267.

    As demais notas a seguir, que se referirem a esta obra, sero indicadas pelas iniciais PhP, acompanhadas de

    seus respectivos nmeros de pginas.

  • 12

    compreendeu como expresso primordial, aquela que encontra as coisas em estado

    nascente. E, a partir do dilogo com a pintura moderna4, que se realiza tambm em A

    linguagem indireta e as vozes do silncio, destacaremos a contraposio esttica da

    representao, atravs de sua esttica da expresso.

    Buscaremos em A linguagem indireta e as vozes do silncio, alm da importncia

    concedida pintura moderna, atentar para o ponto de vista da pintura como sendo uma

    linguagem muda, e para a distino entre a pintura e a linguagem verbal e, de modo

    mais explcito, a sua concepo de expresso criadora e expresso primria em que

    procura restabelecer a unidade viva prpria pintura (diferente de Malraux, que

    encontrava essa unidade no Museu). Nas palavras de Lacoste: no a partir de um objeto

    que seria permanente (a natureza) e que os pintores se contentariam em imitar, mas a

    partir de uma tarefa que, de certo modo, permanece eterna: instituir o encontro do olhar

    com as coisas que o solicitam5.

    E por fim, em O olho e o esprito, a reflexo que sempre acompanhou Merleau-

    Ponty d-se por via da tomada da pintura como a expresso privilegiada, que expressa o

    enigma da visibilidade. Investigaremos o carter ontolgico que concedido pintura,

    como aquela expresso que mostrar a fisso do ser e que possibilitar ver um

    pensamento do ser encarnado e a ideia de reversibilidade entre visvel e vidente que

    advm da prpria deiscncia do ser. Destacamos, ainda, a parte intitulada O

    Entrelaamento o quiasma do livro O visvel e o invisvel que, apesar de no tratar

    diretamente da pintura, ser fundamental para uma maior compreenso do significado

    das noes que aparecem em O olho e o esprito.

    4 Consideramos como pintura moderna aquela que foi desenvolvida no mesmo perodo designado pela

    histria da arte como arte moderna e, conforme Jos Cmara, assim designamos a arte resultante das rupturas que, na sequncia da experincia impressionista, determinaram todo o caminho posterior da arte

    ocidental. In: CMARA, Jos Bettencourt da. Do esprito do pintor ao olhar do filsofo: Maurice Merleau-Ponty e Paul Czanne. Lisboa, Salamandra, 1996, p. 12. 5 LACOSTE, Jean. A expresso. In: ______. A filosofia da arte. Traduo de lvaro Cabral. Rio de

    Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p. 105-6.

  • 13

    1 CORPO E EXPERINCIA ESTTICA

    H mais razo no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E

    por que o teu corpo, ento, precisa logo da tua melhor

    sabedoria?

    (Nietzsche. Assim falou Zaratustra, I, Dos desprezadores do corpo)

    Tornou-se comum aos filsofos, desde a antiguidade, tratar o corpo com certo

    desprezo. no pensamento de Nietzsche que encontramos um dos primeiros momentos

    de denncia a esse tratamento imprprio dado ao corpo. No discurso Dos desprezadores

    do corpo de Assim falou Zaratustra, Nietzsche apresenta uma dura oposio a Ren

    Descartes e, por extenso, aos seus seguidores, pois esse fez do desprezo pelo corpo um

    dos principais emblemas do seu projeto filosfico. nesse desprezo pela experincia

    sensvel que a razo cartesiana se constitui como fundamento subjetivo para a filosofia e

    para as cincias modernas. importante ressaltarmos que Descartes no foi o primeiro.

    J h muito tempo, encontramos, na cultura ocidental, a opo pelo dualismo, por uma

    viso do mundo e da existncia divididos em duas dimenses. Para sermos mais precisos,

    podemos dar o exemplo clssico dos dois mundos platnicos, inteligvel e sensvel, e do

    seu modo de ver a alma e o corpo como tendo origens absolutamente distintas. Esses do

    alma um tratamento privilegiado, cabendo-lhe o papel de dominar o corpo. esse

    dualismo que Merleau-Ponty quer superar.

    A reflexo sobre o corpo atravessa todo o pensamento de Merleau-Ponty, desde A

    estrutura do comportamento at o inacabado O visvel e o invisvel. Em geral, os

    comentadores dividem a obra do filsofo em duas fases, uma fenomenolgica e outra

    ontolgica6. Apesar disso, as principais noes permanecem com constantes revises nos

    dois momentos. O nosso propsito, neste momento, descrever como a noo de corpo

    6 Monclar Valverde chama a ateno para o curioso fato de que, entre a primeira e a segunda fase do

    pensamento merleau-pontiano, passaram-se 10 anos que foram definidos simplesmente como um perodo

    intermedirio. Para ele, este um momento decisivo do seu pensamento no podendo ser reduzido a uma

    mera fase de transio, Valverde o definiu como uma hermenutica da sensibilidade. (Cf. VALVERDE, Monclar (Org.) Merleau-Ponty em Salvador. Salvador: Arcdia, 2008, p. 176-7).

  • 14

    se desenvolve em seu pensamento e qual a importncia dela, mesmo quando considerada

    uma possvel mudana na orientao de sua filosofia. No pretendemos, porm, percorrer

    todas as etapas da sua elaborao conceitual sobre o corpo, pois demandaria uma

    dedicao especfica. O nosso objetivo, neste captulo, explicitar como o projeto

    merleau-pontiano de restituir nosso contato primordial com o mundo da percepo se

    articula com a reflexo sobre o corpo, a estabelecendo uma oposio s filosofias que

    privilegiaram a conscincia subjetividade em detrimento da corporeidade.

    1.1 RESTITUIO DO NOSSO CONTATO PRIMORDIAL COM O MUNDO DA PERCEPO

    O projeto de restituio se caracteriza como a retomada do mundo da percepo,

    mundo pr-objetivo que visa ainda ao rompimento com os postulados ontolgicos das

    filosofias fundamentadas no pensamento de Ren Descartes, expoente mximo do

    dualismo, segundo Merleau-Ponty. Ao se explicitar, em detrimento da reflexo, a

    primordialidade da experincia sensvel, que ser possvel compreender o mundo

    objetivo, restituindo coisa sua fisionomia concreta, aos organismos, sua maneira

    prpria de tratar o mundo7 e subjetividade, sua inerncia histrica.

    Para Merleau-Ponty, a reflexo radical, procedimento crtico realizado sobre o

    pensamento, que possibilitar a retomada de nossa experincia primordial do mundo da

    percepo. Isso no significa uma renuncia reflexo em favor simplesmente de um

    contato imediato com as coisas, e sim a retomada do lugar original de onde poderemos

    compreender a reflexo na sua prpria gnese. Em Fenomenologia da percepo, seu

    objetivo tratar da reflexo e da conscincia, mas sob um prisma inusitado, o de uma

    conscincia do corpo prprio, encarnada.

    Ser preciso buscar a essncia do mundo e, segundo Merleau-Ponty, busc-la no

    buscar aquilo que o mundo em ideia, uma vez que o tenhamos reduzido a tema de

    discurso, buscar aquilo que de fato ele para ns antes de toda tematizao8. A tarefa

    da reflexo radical no poder fundar-se aqum de nossa existncia perceptiva, como

    7 PhP, p. 69; 89-90.

    8 PhP, p. X; 13.

  • 15

    tambm no poder abrir mo dos pensamentos, pois correr o risco de nem chegar a

    refletir, muito menos alcanar o irrefletido.9

    A questo que se coloca a de saber como se processa a passagem da experincia

    no mundo percebido que, como veremos, inacabada para a representao no mundo

    inteligvel. Como se d a passagem do inacabado, indeterminado, ao que determinado

    pela anlise reflexiva? O intelectualismo sequer coloca essa questo, pois, para ele, a

    experincia perceptiva como adequao e coincidncia do sujeito ao objeto, dessa

    forma, no reconhece o carter fenomenal de nossa experincia do mundo.

    O pensamento de sobrevoo, caracterizado por Merleau-Ponty como o da cincia

    moderna, se constitui pelo afastamento entre o sujeito perceptivo e o objeto percebido,

    esse fundado pela f perceptiva e pela reflexo e, da mesma forma, pelo espectador

    estrangeiro. A atividade reflexiva, caracterizada pela f perceptiva, considera que nos

    encontramos diante de um mundo previamente constitudo, que a atividade intelectiva

    sobrevoa. Da decorre o fato de a cincia acreditar que possvel conhecer o mundo, sem

    habit-lo, assim como o intelectualismo acredita poder alcanar a verdade do mundo pelo

    pensamento objetivamente. Segundo Jos Sombra, isso possvel porque ele ignora a

    atitude intencional e perceptiva do sujeito10.

    Merleau-Ponty comea o ensaio O olho e o esprito dizendo que a cincia

    manipula as coisas, mas renuncia a habit-las e que, s de vez em quando, ela depara-se

    com o mundo atual11

    . Essa atitude tpica da cincia descrita pela metfora do

    pensamento estrangeiro. Para Merleau-Ponty, as relaes do homem (sujeito) com o seu

    mundo se do como relaes de causalidade determinadas pela viso de exterioridade,

    no levando em conta que essas so de significado e de uma conscincia ou de um

    sujeito presente e inerente ao mundo12. A atitude do pensamento estrangeiro

    caracterstica do observador estrangeiro, que est em toda parte e em parte alguma: ele

    observa o mundo de fora, do exterior, enganando-se, ao pensar, que se encontra fora do

    9 Cf. MLLER, M. J. Merleau-Ponty: acerca da expresso. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 49.

    10 SOMBRA, Jos de Carvalho. A subjetividade corprea: a naturalizao da subjetividade na filosofia de

    Merleau-Ponty. So Paulo, Ed. UNESP, 2006, p.47. 11

    MERLEAU-PONTY, Maurice. Lil et Lesprit. Paris: Editions Gallimard, 1997. [Ed. Brasileira: In: ______. O olho e o esprito: seguido de A linguagem indireta e as vozes do silncio e A dvida de

    Czanne/Maurice Merleau-Ponty. Traduo de Paulo Neves e Ermanita Galvo Gomes Pereira. So

    Paulo: Cosac & Naify, 2004. p. 9;13.

    As demais notas a seguir, que se referirem a esta obra, sero indicadas pelas iniciais OE, acompanhadas

    de seus respectivos nmeros de pginas. 12

    SOMBRA. op. cit., p. 48.

  • 16

    mundo. Ele no se situa no mundo, portanto no tem ponto de vista, no tem perspectiva,

    logo no reconhece o perspectivismo da percepo e, por isso, no pode admitir que

    nosso saber das coisas s seja alcanado a partir de perspectivas parciais. Essas no

    esgotam de modo algum a experincia que temos das coisas e do mundo. E como afirma

    Merleau-Ponty:

    O pensamento no nada de interior, ele no existe fora do mundo e fora das palavras. O que nos engana a respeito disso, o que nos faz acreditar em um

    pensamento que existiria para si antes da expresso, so os pensamentos j

    constitudos e j expressos dos quais podemos lembrar-nos silenciosamente e

    atravs dos quais nos damos iluso de uma vida interior.13

    A fim de conferir outro status ontolgico experincia, para Merleau-Ponty,

    antes de determinar o ser dos fenmenos, deve-se indagar sobre como podemos exprimir

    o ser dos fenmenos. E segundo ele, o fato de ter que passar pelas essncias no significa

    que devemos tom-las por objeto, mas sim reconhecer que nossa existncia est presa

    ao mundo de maneira demasiado estreita para conhecer-se enquanto tal no momento em

    que se lana nele, e que ela precisa do campo da idealidade para conhecer e conquistar

    sua facticidade.14

    No cabe questionar se ns percebemos verdadeiramente o mundo, pois o mundo

    aquilo que ns percebemos.15

    O mundo est diante de ns, antes de qualquer

    idealizao, portanto seria artificial faz-lo derivar de uma srie de snteses que ligariam

    as sensaes, depois os aspectos perspectivos do objeto, quando ambos so justamente

    produtos da anlise e no devem ser realizados antes dela.16 Merleau-Ponty pretende

    voltar ao mundo antes da significao reflexiva, o mundo pr-objetivo, o mundo da

    percepo, o mundo do esprito selvagem17

    e do ser bruto18

    . Para isso, ser necessrio

    retornar s coisas mesmas, como ele diz:

    13

    PhP, p. 213; 249. 14

    Cf. PhP, p. IX; 11-12. 15

    PhP, p. XI; 13. 16

    PhP, p. IV; 5. 17

    Esprito Selvagem o esprito de prxis que quer e pode alguma coisa, o sujeito que no diz eu penso, e sim eu quero, eu posso, mas que no saberia como concretizar isso que ele quer e pode seno querendo e podendo, isto , agindo, realizando uma experincia e sendo essa prpria experincia. O que

    torna possvel a experincia criadora a existncia de uma falta ou de uma lacuna a serem preenchidas,

    sentidas pelo sujeito como inteno de significar alguma coisa... H um inteno significativa que ,

    simultaneamente, um vazio a ser preenchido e um vazio determinado que solicita o querer poder do agente.

    (...) O Esprito Selvagem atividade nascida de uma fora eu quero, eu posso e de uma carncia ou lacuna que exigem preenchimento significativo. O sentimento do querer-poder e da falta suscita a ao

    significadora que , assim, experincia ativa de determinao do indeterminado: o pintor desvenda o

  • 17

    Retornar s coisas mesmas retornar a este mundo anterior ao conhecimento

    do qual o conhecimento sempre fala, e em relao ao qual toda determinao

    cientfica abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relao

    paisagem primeiramente ns aprendemos o que uma floresta, um prado ou um riacho.

    19

    Segundo Carlos Alberto Ribeiro de Moura, o retorno s coisas no outro

    procedimento seno o de voltar aos atos atravs dos quais se tem um conhecimento dos

    objetos20. Ora, por estarmos o tempo todo numa relao com o mundo, que a nica

    forma de nos darmos conta disso suspendendo tal movimento, recusando-lhe nossa

    cumplicidade, ou ainda, coloc-lo fora de jogo21

    . suspendendo os prejuzos que

    temos acerca do mundo que poderemos vislumbrar o solo originrio de onde os prprios

    juzos nascem. Falar de suspenso o mesmo que falar de restituio medida que

    pensemos que a concepo de mundo, a ser suspensa, foi constituda tomando o mundo

    como j dado, previamente determinado pela conscincia reflexiva. O movimento de

    suspenso dos prejuzos sobre o mundo da percepo o libera do peso ontolgico da

    tradio.

    O primeiro ato filosfico seria, ento, o de retornar ao ambiente perceptivo

    originrio o mundo vivido. Esse ato inicia-se com a radicalizao engendrada pela

    suspenso. Aqui percebemos claramente a filiao de Merleau-Ponty fenomenologia de

    Husserl22

    . Tal intento, porm, no uma novidade na histria da filosofia. Descartes j

    invisvel, o escritor quebra o silncio, o pensador interrompe o impensado. Realizam um trabalho no qual

    vem exprimir-se o co-pertencimento de uma inteno e de um gesto inseparveis, de um sujeito que s se

    efetua como tal porque sai de si para ex-por sua interioridade prtica como obra. isso criao, fazendo

    vir ao Ser aquilo que sem ela nos privaria de experiment-lo. In: CHAUI, Marilena. Experincia do Pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. So Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 153-4. 18

    Conforme Marilena Chau o Ser Bruto o ser de indiviso, que no foi submetido separao (metafsica e cientfica) entre sujeito e objeto, alma e corpo, conscincia e mundo, percepo e

    pensamento. Indiviso, o Ser Bruto no uma positividade substancial idntica a si mesma e sim pura

    diferena interna de que o sensvel, a linguagem e o inteligvel so dimenses simultneas e entrecruzadas

    (...) Ser de indiviso, o Ser Bruto o que no cessa de diferenciar-se por si mesmo, duplicando todos os

    seres, fazendo-os ter um fora e um dentro reversveis e parentes. Assim, se por ele que somos dados ao

    ser, (...) no entanto, por ns que ele se manifesta, como o instante glorioso em que o pintor faz vir ao

    visvel um outro visvel, que recolhe o primeiro e lhe confere um sentido novo. O mundo da cultura,

    fecundidade que passa, mas no cessa, o parto interminvel do Ser Bruto e do Esprito Selvagem. In: CHAUI, Marilena. Experincia do Pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. So Paulo:

    Martins Fontes, 2002, p. 155-6. 19

    PhP, p. III; 4. 20

    MOURA, Carlos A. Ribeiro de. Crtica da Razo na Fenomenologia. So Paulo: EDUSP, 1989, p. 22. 21

    PhP, p. VIII; 10. 22

    No final do sculo XIX, o psicologismo e o positivismo, em geral, pretendiam determinar as vias para o

    conhecimento cientfico. O psicologismo encontrava nos fatos empricos a fonte de todo o conhecimento, inclusive filosfico. Para Husserl, ao contrrio, a base do conhecimento deveria ser indicada pela prpria

  • 18

    diz ser necessrio se desfazer das opinies que acreditava para alcanar resultados

    seguros nas suas investigaes:

    H j algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos,

    receber muitas falsas opinies como verdadeiras, e de que aquilo que

    depois eu fundei em princpios to mal assegurados no podia ser seno

    mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessrio tentar

    seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opinies a

    que at ento dera crdito, e comear tudo novamente desde os

    fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas

    cincias.23

    Ele toma uma atitude radical diante da tradio. atravs da dvida, tornada

    mtodo, que se pode alcanar a certeza. Husserl, por sua vez, adotando procedimento

    semelhante, tomado de forma radical, investe na reduo fenomenolgica epoch,

    suspenso de nossa relao com o mundo, de nossa crena nas coisas para voltar aos

    fenmenos s coisas mesmas, antes de qualquer representao. Assim como Husserl, e

    de outro modo Descartes, Merleau-Ponty adota procedimento semelhante quando prope

    a suspenso dos prejuzos para retornar experincia original, da qual o sentido emerge.

    Para Descartes, o ato de desfazer-se das opinies visa, sobretudo, a constituio de uma

    subjetividade que existisse independentemente da experincia sensvel e da qual tambm

    se afasta, j Merleau-Ponty, ao contrrio, denuncia que esse ato fez com que a filosofia

    reflexiva esquecesse a sua origem, que possibilita sua prpria constituio. preciso

    ressaltar que Merleau-Ponty tende a se distanciar da filosofia transcendental de Husserl,

    por perceb-la uma grande filiao ao idealismo transcendental, fundamentada na noo

    de conscincia constituinte. Para ele, o contrrio, uma filosofia do corpo que devemos

    fundar.

    filosofia, que ele definiu como filosofia transcendental, negando, assim, ao psicologismo a possibilidade de

    constituio das cincias e, conforme ele, tal funo caberia a uma cincia absolutamente rigorosa. Essa

    a filosofia, pois ela cria seus mtodos. Merleau-Ponty, seguindo a senda de Husserl, busca esse rigor. E o

    faz tomando o pensamento de Husserl como ponto de partida e como problemtico. O que ele v de

    problemtico inicialmente e que combater na Fenomenologia da Percepo que a filosofia

    transcendental proposta como um tipo de neocartesianismo, com base na ideia de uma filosofia da

    conscincia, a partir das noes de reduo fenomenolgica e de constituio. Ao retomar, em O filsofo e

    sua sombra, a ideia de reduo fenomenolgica, Merleau-Ponty volta a problematiz-la. Ele pretende ver

    uma certa indicao ontolgica que constitutiva ao pensamento de Husserl e, entretanto, no evidente.

    A impossibilidade de uma reduo absoluta indica, para Merleau-Ponty, o impensado de Husserl, sua

    sombra. Para Merleau-Ponty, o fundante no ser nem a Natureza nem o Esprito, mas o Ser Bruto. 23

    DESCARTES, Ren. Meditaes. In: _______. DESCARTES, Ren. Os pensadores. Trad.: J.

    Guinsburg e Bento Prado Junior. 1. ed. So Paulo: Abril S. A. Cultural, 1973, p. 93.

  • 19

    O retorno ao sensvel deve partir da crtica da noo de reflexo, e a reflexo

    radical constitui-se como crtica das noes clssicas da reflexo. O desafio merleau-

    pontiano o de comear a refletir sobre o comeo da reflexo. Porm, como a reflexo

    crtica pode resgatar o que nela permanece irrefletido? A restituio do mundo da

    percepo, iniciada pela suspenso, mais do que uma nova ontologia, , para a reflexo, a

    busca de sua prpria origem.

    O sujeito da conscincia constituinte caracterizado pelo pensamento de

    sobrevoo, prprio da cincia. Esse no reconhece o enraizamento do homem no mundo; a

    relao do homem com o mundo s possvel atravs da ao constitutiva da

    conscincia. Merleau-Ponty no admite a reduo operada pelo intelectualismo do

    vivido, da experincia perceptiva que temos com o mundo quilo que mentalmente

    construdo, assim reduzido condio de objeto. O mundo no uma representao, no

    j dado, no uma representao constituda pelo sujeito. Aqum das representaes

    do mundo, estabelecidas pelos intelectualistas e empiristas, h uma significao do

    percebido que no tem equivalncia no universo do entendimento, um meio perceptivo

    que ainda no o mundo objetivo, um ser perceptivo que ainda no ser determinado24.

    Como resultado do esquecimento de sua origem, a reflexo clssica reduziu a

    realidade dimenso de objeto o em si e o para si, tornando assim a percepo um

    objeto de pensamento. No h a, de fato, percepo e sim um pensamento de perceber.

    Para o intelectualismo, ela analtica, construda; para o empirismo, ela resultado de

    operaes de sntese realizadas pela memria a partir dos dados dos sentidos.

    Segundo Merleau-Ponty, o real deve ser descrito, no construdo ou constitudo,

    ou seja, no podemos assimilar a percepo s snteses que so da ordem do juzo, da

    predicao. A cada instante, nosso campo perspectivo preenchido de reflexos, de

    impresses tteis fugazes que no podemos ligar de maneira exata ao que percebemos e

    que, todavia, situamos de imediato no mundo.25

    O milagre da expresso esse ato

    criativo de nossa existncia junto ao espao pr-objetivo que Merleau-Ponty chama de

    ateno originria, para dar conta da passagem do indeterminado ao determinado e da

    passagem de uma determinao a outra, como movimentos expressivos de um corpo

    situado; e, por isso, ele dir que preciso colocar a conscincia em presena de sua vida

    24

    PhP, p. 58; 77. 25

    PhP, p. IV; 5.

  • 20

    irrefletida nas coisas e despert-las para sua prpria histria que ela esquecia.26 essa

    atividade criadora que tanto o intelectualismo quanto o empirismo no reconhecem,

    medida que tomam o mundo percebido como j dado. Ao contrrio, os empiristas e os

    intelectualistas pretendem que nossa subjetividade tenha aquela dignidade do mundo

    descrito pela fsica. Mas o modo como o constitumos para ns mesmos,

    completamente diferente daquele automatismo que nos daria um mundo idntico para

    todos. Por isso Merleau-Ponty afirma:

    [...] eu sou a fonte absoluta; minha experincia no provm de meus

    antecedentes, de meu ambiente fsico e social, ela caminha em direo a eles e

    os sustenta, pois sou eu quem faz ser para mim (e. portanto, ser no nico

    sentido que a palavra possa ter para mim) essa tradio que escolho retomar,

    ou este horizonte cuja distncia em relao a mim desmoronaria, visto que ela

    no lhe pertence como uma propriedade, se eu no estivesse l para percorr-la

    como o olhar.27

    Da o esforo de superar as grandes dicotomias da metafsica. Uma outra

    metafsica, a partir de Merleau-Ponty, dever repensar as relaes entre sujeito e objeto,

    conscincia e mundo, alma e corpo, atividade e passividade, sem constitu-las ao modo

    de oposio.

    1.2 A RELAO ALMA-CORPO: CRTICA DAS CONCEPES CLSSICAS

    Em A estrutura do comportamento (1942), a pretenso de Merleau-Ponty, como

    ele prprio indica, a de compreender as relaes entre a conscincia e a natureza28.

    Para cumprir esse objetivo, ele parte do dilogo com as cincias de sua poca (fsica,

    fisiologia, biologia, psicologia, neurofisiologia), e, sobretudo, com a tradio filosfica,

    que, segundo ele, serve de fundamento para essas cincias. Expondo de maneira

    sistemtica os resultados de algumas pesquisas cientficas, ele abriu caminho para o

    26

    PhP, p. 40; 60. 27

    PhP, p. III; 3. 28

    MERLEAU-PONTY, Maurice. A estrutura do comportamento. Traduo de Mrcia Valria Martinez

    de Aguiar. So Paulo: Martins Fontes, 2006. p.1

    As demais notas a seguir, que se referirem a esta obra, sero indicadas pelas iniciais EC, acompanhadas de

    seus respectivos nmeros de pginas.

  • 21

    questionamento sobre se os resultados alcanados por tais pesquisas seriam suficientes

    para estabelecer e fundamentar concepes sobre a relao entre a conscincia e a

    natureza. Merleau-Ponty, entretanto, no pretende invalidar tais pesquisas, mas apontar

    que seu modelo terico no pode dar conta daquela relao, enquanto permanece preso

    dicotomia dualista.

    Inicialmente, Merleau-Ponty discute com os modelos da psicologia de sua poca

    sobre a noo de comportamento. Destacamos, em A estrutura do comportamento, o

    quarto captulo que trata da relao entre a alma e o corpo, em que a noo de corpo

    vivido ganha destaque e ser fundamental ao projeto de restituio do sensvel merleau-

    pontiano. Segundo o prprio, a tarefa da filosofia deve ser a de descrever e no a de

    explicar, pois a explicao o modelo das cincias naturais que trata dos fenmenos

    como objetos. Ele pretende, dessa forma, compreender a relao entre a alma e o corpo.

    O primeiro e o segundo captulos de A estrutura do comportamento so

    destinados a uma exposio crtica das teorias psicolgicas. O pensamento criticista

    afirma que aquilo que conhecemos da natureza formado pela conscincia, e esse o

    debate inicial de Merleau-Ponty, desenvolvido numa trama estrutural muito peculiar: ele

    expe as pesquisas com seus avanos e limitaes. Pensando o fenmeno psquico no a

    partir do homem como Descartes, mas atravs da noo de comportamento, ele pretende

    afastar-se do criticismo e do naturalismo. O criticismo caracterizado pela forma de

    tratar a natureza como sendo uma constituio da conscincia. J o naturalismo

    estabelece que os fenmenos psquicos tm origem nos processos fisiolgicos, e

    seguindo tal orientao, o comportamento seria o efeito da ao da natureza sobre o

    indivduo. Para esse pensamento, a natureza um conjunto de eventos concretos, e a

    conscincia uma parte desse todo como efeito de eventos fisiolgicos, conforme o

    materialismo, ou uma fora espiritual, conforme o espiritualismo.29

    Os primeiros exemplos analisados por Merleau-Ponty so os da teoria do reflexo,

    que pretendeu explicar o comportamento pelo princpio da causalidade, atravs de uma

    psicologia cientfica, estudando o comportamento e no mais a alma. Ele critica a teoria

    do reflexo por essa conceber o organismo como objeto fsico: partes extrapartes.

    Seguindo as concepes filosficas clssicas, a psicologia tende a explicar o

    comportamento atravs das relaes causais, por um tipo de reducionismo, orientando-se

    29

    Cf. FERRAZ, Marcus A. Sacrini. Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponty. Campinas, SP.

    Papirus, 2009, p. 22.

  • 22

    pelo princpio do reflexo condicionado de Pavlov (comportamentos: animal-inferior;

    humano-superior). Dessa maneira, a filosofia clssica no d conta da relao entre

    natureza e conscincia, pois esta no uma realidade psquica ou alguma espcie de

    efeito e, sim, uma estrutura.30

    O exemplo da melodia, utilizado por Merleau-Ponty ao analisar os

    comportamentos superiores, segue as consideraes da teoria da Gestalt, para a qual nem

    todo fenmeno se resume a relaes de causalidade.

    Enquanto as notas consideradas isoladamente tm um significado equvoco,

    sendo capazes de entrar numa infinidade de conjuntos possveis, cada uma

    delas, na melodia, exigida pelo contexto e contribui por seu lado a exprimir

    alguma coisa que no est contida em nenhuma delas e que as liga

    interiormente. As mesmas notas em duas melodias diferentes no so

    reconhecidas como tais. Inversamente, a mesma melodia poder ser tocada

    duas vezes sem que as duas verses comportem um nico elemento comum, se

    ela foi transposta.31

    A melodia uma forma cujo sentido no se reduz soma das notas particulares

    que a compem, visto que tal forma pode se manter em diferentes tonalidades. A melodia

    pode ser concebida tal qual uma unidade de significao que atribui funes aos dados

    sonoros que a compem e, nesse sentido, exerceria um papel transcendental na

    organizao de uma experincia musical. As estruturas perceptivo-motoras humanas no

    so poderes puros, mas capacidades polarizadas pelas situaes mundanas o homem

    est situado no mundo.

    A Gestalttheorie usa a noo de forma em contraposio psicologia clssica

    que segue a causalidade linear. Os experimentos dos psiclogos da Gestalttheorie

    pretendiam provar que os seres vivos no reagem automaticamente a estmulos isolados,

    mas que esses recebem seu sentido em relao a uma forma pela qual o organismo

    apreende a situao vivida, assim como cada nota realiza sua funo em relao ao todo

    de uma melodia. Os estmulos devem se correlacionar com as estruturas pelas quais os

    organismos se inserem no mundo para que possam estimular alguma reao. O

    pensamento causal no considera essa relao, logo ele no pode ser preciso quanto ao

    estudo do comportamento.

    30

    EC, p. 4. 31

    EC, p. 138.

  • 23

    O pensamento criticista no reconhece o contato da conscincia com o real, para

    ele, a conscincia s se relaciona com fenmenos constitudos por ela mesma. Merleau-

    Ponty, ao contrrio, concebe o organismo como um corpo vivo em situaes e relaes

    num meio, no como um objeto. As estruturas percebidas no so apenas unidades de

    significao constitudas subjetivamente. Segundo Marcus Sacrini Ferraz, a noo de

    forma (Gestalt) unifica significao e existncia, por meio do arranjo fenomenal

    percebido, manifesta-se um sentido que no se reduz a uma mera construo subjetiva,

    mas que inerente ao meio percebido32.

    A noo de comportamento sugere um campo de formas percebidas atravs do

    qual os fenmenos so apreendidos: a natureza no se exibe como uma ordem de

    eventos determinantes da conscincia, mas sim como uma camada de fatos sensveis,

    cuja organizao homognea em relao s formas derivadas das estruturas perceptivas

    dos organismos33. Entre a natureza e a conscincia, h uma correlao perceptiva, h um

    contato direto da conscincia com a natureza, e no com objetos constitudos. A

    conscincia vive nas coisas.

    Ao analisar as trs ordens que compem o mundo, fsica, vital e humana34

    ,

    Merleau-Ponty as concebe como estruturas concretas ordenadas seguindo parmetros

    perceptivos; h uma mtua relao perceptiva; as estruturas subjetivas no so a causa da

    organizao da experincia. Os fenmenos fsicos e vitais supem uma manifestao

    para a percepo humana. Na percepo das estruturas, h uma interao entre a

    percepo e os materiais sensveis; o sujeito da percepo apreende um sentido j

    esboado na ordenao dos prprios eventos mundanos; as formas percebidas apresentam

    um sentido latente na prpria natureza. Merleau-Ponty, no artigo O cinema e a nova

    psicologia35 , afirma que a percepo no uma espcie de cincia em embrio ou um

    exerccio da inteligncia. Precisamos reencontrar uma permutabilidade com o mundo e

    uma presena, nele, mais antiga do que a inteligncia36.

    32

    FERRAZ, Marcus A. Sacrini. op. cit., p. 24. 33

    Id., ibid., p. 25. 34

    Cf. EC, cap. III. 35

    Le cinma et la nouvelle psychologie o titulo de conferncia proferida em 13 de maro de 1945 no

    Institut des Hautes tudes cinmatographiques, publicada em Sens et non-sens, e que pode ser lido

    como uma aplicao dos resultados de EC. 36

    MERLEAU-PONTY, Maurice. Le cinma et la nouvelle psychologie. In:______. Sens et non-sens. Paris:

    Gallimard, 1996. p.13-32. [Ed. Brasileira: O cinema e a nova psicologia. In: XAVIER, Ismail (org.). A

    experincia do cinema. Rio de Janeiro: Edies Graal, Embrafilme, 1983. p. 66;108. As demais notas a

  • 24

    Existe uma percepo analtica que posterior apreenso das formas. Da

    decorre a crtica de Merleau-Ponty psicologia clssica, pois essa considera que a

    unidade existente entre as partes do campo visual construda pela inteligncia. Mas, a

    percepo no a decifrao intelectual dos dados sensveis. Para a psicologia clssica, a

    percepo um autntico decifrar intelectual dos dados sensveis, uma espcie de

    princpio de cincia37.

    A Gestalttheorie rejeita a noo de sensao, mostrando-nos que no podemos

    distinguir os signos de sua significao, o que sentido pensado e, como nos afirma

    Merleau-Ponty, quando percebo, no imagino o mundo: ele se organiza diante de

    mim38. O pensamento e a percepo se fazem nas coisas. Mediante a percepo,

    podemos compreender a relao entre alma e corpo. O corpo a sede da percepo.

    Contrariando Descartes que dizia que vemos da alma, preciso sim, para ver, abrir os

    olhos do corpo. A Gestalttheorie nos ensina de novo a observar este mundo, com o qual

    estamos em contato, atravs de toda a superfcie de nosso ser, enquanto a psicologia

    clssica renunciava ao mundo vivido, em favor daquele que a inteligncia conseguia

    construir39.

    Diferentemente da ontologia de inspirao cartesiana, Merleau-Ponty no parte de

    uma prvia definio de mundo. O homem um ser situado, ele est lanado no mundo

    numa relao originria; no , portanto, uma conscincia que constri o mundo. A

    conscincia est ancorada no mundo, e o corpo no um instrumento que a

    conscincia manipula de fora, ele o primeiro meio da nossa existncia como ser-no-

    mundo pensado, principalmente, a partir de Heidegger (Ser e tempo)40. A percepo

    no pode ser explicada pela causalidade: coisacorpoalma, como quis o realismo

    ingnuo. Segundo Merleau-Ponty, as dificuldades do realismo vm justamente de ele

    querer converter numa ao causal essa relao original e inserir a percepo na natureza.

    Contra a ideia de uma conscincia constituinte, temos a facticidade do mundo externo. A

    seguir, que se referirem a esta obra, sero indicadas pelas iniciais CNP, acompanhadas de seus

    respectivos nmeros de pginas. 37

    CNP, p. 64; 106. 38

    CNP, p. 63; 107. 39

    CNP, p. 68; 110. 40

    A noo heideggeriana de Mundo foi fundamental para que Merleau-Ponty pudesse pensar a nossa

    relao com e no mundo. O ser-no-mundo possibilitou a superao da perspectiva constituidora do

    mundo do idealismo transcendental. A noo de mundo, porm, j se encontra na obra de Husserl, como

    mundo da vida Lebenswelt.

  • 25

    antinomia realismo-idealismo pode ser superada somente no terreno da experincia

    perceptiva e essa sua tese central.

    A unidade alma-corpo no pensada, mas sim uma estrutura concreta. A alma e o

    corpo so dois aspectos do modo do homem estar no mundo. Merleau-Ponty introduz a

    ideia de relao para descrever essa unio do corpo com a conscincia e com mundo, o

    corpo portador dessa dialtica. O organismo humano uma totalidade englobante:

    matria, vida, conscincia so momentos de uma nica dialtica. A noo de relao

    dialtica torna-se central no pensamento merleau-pontiano. Como se pode observar na

    percepo, h uma atividade estruturante que vai alm da contraposio exterioridade-

    interioridade; h uma dialtica que no descritvel em termos de pura passividade ou de

    pura criatividade. essa dialtica que devemos explicar se quisermos superar a

    antinomia alma-corpo. a prpria coisa que alcanamos na percepo, pois toda coisa

    qual se pode pensar um significado de coisa, e chamamos percepo o ato em que

    esse significado se revela a mim41.

    Andrea Bonomi afirma que, em A estrutura do comportamento, o problema do

    transcendental identificado com o da dialtica42

    . Para ele, Merleau-Ponty mostra como

    o objeto da investigao transcendental no o conjunto das estruturas da conscincia,

    enquanto condies de possibilidade da experincia, mas o comportamento psquico-

    humano enquanto totalidade que inclui e forma os nveis inferiores, segundo uma

    estruturao peculiar.

    A anlise intelectual uma ao posterior percepo das formas, que deve ser

    considerada como o nosso meio de percepo mais espontneo. H uma percepo do

    todo que mais primitiva e natural. As formas no so constitudas pela inteligncia,

    porm captadas pelo olhar, na medida em que esse abarca ou adota a organizao do

    campo visual43

    . A percepo no simplesmente uma inteleco, pois sempre

    mediatizada pelo corpo, que de uma s vez, contingncia e transcendncia.

    O idealismo atesta que h uma composio do espiritual com o fisiolgico, e a

    conscincia atividade constituinte. O naturalismo, por sua vez, reduz os processos

    psquicos a um desdobramento dos processos orgnicos que podem ser explicados nos

    termos das relaes causais. Para Merleau-Ponty, o corpo est presente alma como as

    41

    EC, p. 309. 42

    BONOMI, Andrea. Fenomenologia e Estruturalismo. Trad. Joo Paulo Monteiro, Patrizia Piozzi e

    Mauro Almeida Alves. So Paulo: Perspectiva, 1974, p. 36-7. 43

    Cf. CNP, p. 107.

  • 26

    coisas exteriores o esto, em nenhum dos casos se trata de uma relao causal entre dois

    termos: A unidade do homem no foi ainda rompida, o corpo no foi despojado de

    predicados humanos, ainda no se tornou mquina, a alma ainda no foi definida como

    existncia para si44.

    Para a fenomenologia, a conscincia uma atividade, no uma coisa; esse foi,

    para Husserl, o maior erro de Descartes. E o corpo tambm no uma coisa, ns

    estamos no mundo, e o corpo o invlucro vivo de nossas aes. O corpo ou as

    representaes mentais no constituem barreiras entre a conscincia e a realidade; o

    fsico, o vital e o indivduo psquico no se distinguem, a no ser como diferentes graus

    de integrao. Uma vez que o homem se identifica plenamente com a terceira dialtica,

    ou seja, j no deixa jogar sobre si sistemas de conduta isolados, a alma e o corpo no se

    distinguem mais45. Encontramo-nos na presena de trs acontecimentos: orgnico, da

    natureza e do pensamento, que configuram a unidade de trs planos de significao ou

    formas de unidade, estruturada por uma dialtica.

    Corpo e alma no se contrapem mais na perspectiva merleau-pontiana: o que

    est no interior, tambm est no exterior46.

    1.3 O CORPO FENOMENAL

    Apesar de manter o mesmo procedimento crtico do dilogo com a psicologia, na

    Fenomenologia da percepo, Merleau-Ponty elege, como tema central, a percepo e

    no mais o comportamento, como fizera em A estrutura do comportamento, realizando,

    nesse momento, as crticas s filosofias cartesianas e ps-cartesianas, tendo como

    pensadores principais Descartes, Kant e Husserl. Se, em A estrutura do comportamento,

    os alvos principais foram tanto o materialismo da cincia positivista, que concebia o

    corpo como um objeto, quanto concepo espiritualista que, por sua vez,

    descredenciava o corpo, considerando-o oposto alma, na Fenomenologia da percepo,

    a discusso ser mais acentuadamente com o intelectualismo. Na introduo da

    44

    EC, p. 291-292. 45

    EC, p. 313. 46

    GOETHE apud CNP, p. 75; 117.

  • 27

    Fenomenologia da percepo, intitulada Os prejuzos clssicos e o retorno aos

    fenmenos, desenvolvida uma reviso do modo como os clssicos trataram a

    sensao, a percepo.

    O intelectualismo fez a ciso do homem com o seu prprio corpo. Em Descartes,

    por exemplo, isso fica evidente quando percebemos a prevalncia da razo sobre o

    sensvel o corpo. Segundo Merleau-Ponty, Descartes e, sobretudo, Kant desligaram o

    sujeito ou a conscincia, fazendo ver que eu no poderia apreender nenhuma coisa como

    existente, se, primeiramente, eu no me experimentasse existente no ato de apreend-

    la47. Ora, esse desligamento gera a dificuldade de se explicar como possvel o

    conhecimento, uma vez que eu que sou, sou distinto do corpo pelo qual a conscincia

    se liga ao mundo. H a uma recusa do aspecto corporal de nossa existncia, pois, para

    Descartes e Kant, a ligao feita pela anlise consciente exercida pelo intelecto. Na

    perspectiva merleau-pontiana, isso seria impossvel, pois nossa capacidade reflexiva est

    intrinsecamente vinculada ao corpo e percepo. curioso notarmos, na passagem

    acima citada, que Merleau-Ponty, fazendo referncia apreenso de alguma coisa como

    existente, fala de uma experincia de pensamento, e que a certeza cartesiana s ser

    alcanada com a clareza que um termo notadamente originado da experincia sensvel.

    O corpo na concepo do materialismo cientfico positivista um objeto, partes

    extrapartes. Ele , apenas, mais um objeto dentre os demais. J o espiritualismo

    desconsidera o corpo, opondo-o alma. Merleau-Ponty afirma, em a Fenomenologia da

    percepo, que no temos um corpo, mas sim, somos nosso corpo; ou ainda, que o nosso

    corpo o nosso mediador de um mundo48, ele o nosso meio geral de ter um

    mundo49.

    Descartes considera a res cogitans como essncia do ser humano, do ser pensante,

    colocando o corpo junto dos objetos do mundo como res extensa , que tm em comum

    o fato de poderem ser divididos em vrias partes, e esse corpo-objeto caracterizado por

    ser capaz de perceber, afinal, possui rgos de sentido: ele um organismo biolgico e

    est no mundo junto com os outras coisas. Em relao ao corpo humano, tal noo

    limitada, pois, ao mesmo tempo em que ele percebido no mundo, tambm pode

    perceber. Ele tanto pode ser objeto quanto sujeito. O ser humano um sujeito de

    47

    PhP, p. III; 04. 48

    PhP, p. 169; 201. 49

    PhP, p. 171; 203.

  • 28

    percepo, encarnado e no uma entidade interior, ele est em situao, est no mundo,

    em uma abertura sem limites, no simplesmente uma coisa. O sujeito de percepo vive

    em seu corpo e no o observa do exterior (de cima, de baixo, de frente, de lado ou de trs,

    por dentro ou por fora). Ele corpreo.

    O corpo vivido de nossa experincia diferente do corpo objeto da cincia. Na

    Fenomenologia da percepo, Merleau-Ponty ainda preserva certo dualismo (at uma

    substancialidade); ainda est preso ideia de uma conscincia, mesmo que encarnada

    uma subjetividade encarnada; ele fica preso conscincia constituinte. Porm ele,

    assim como Descartes, no admite a metfora aristotlica do piloto em seu navio50

    , nem

    por isso ele adere ideia cartesiana de uma unio entre substncias distintas, que concebe

    a existncia da alma independente dessa unio com o corpo. Ns temos um corpo, e no

    estamos, simplesmente, dentro dele. Para Merleau-Ponty:

    Engajo-me com meu corpo entre as coisas, elas coexistem comigo enquanto

    sujeito encarnado, e essa vida nas coisas no tem nada de comum com a

    construo dos objetos cientficos. Da mesma maneira, no compreendo os

    gestos do outro por um ato de interpretao intelectual, a comunicao entre as

    conscincias no est fundada no sentido comum de suas experincias, mesmo

    porque ela o funda: preciso reconhecer como irredutvel o movimento pelo

    qual me empresto ao espetculo, me junto a ele em um tipo de reconhecimento

    cego que precede a definio e a elaborao intelectual do sentido.51

    O corpo no pode ser determinado, como quis a tradio, por sua exterioridade,

    como coisa extensa, nem to pouco como depositrio de uma substncia interior, de uma

    coisa pensante (conscincia, razo). Ele abertura, ele est situado no mundo, lanado ao

    mundo numa relao de troca, numa dialtica, na ambgua relao de quem toca e

    tocado, do vidente e do visvel. A cincia constituda no laboratrio limitada a um

    contexto constitudo por ela mesma, ela no reconhece essa inerncia, fora desse

    contexto, no mundo vivido; ela se torna imprecisa e apenas aproximativa. preciso

    considerar o aspecto corporal de nossa existncia.

    O corpo prprio no uma presena concreta, e sim um campo de localizao no

    qual se d a articulao do sensvel. Para aparecer no mundo, preciso ser um corpo.

    Para ser-no-mundo, s possvel pelo corpo. E o mundo aqui no o mundo objetivo da

    50

    Para uma confrontao entre as filosofias de Descartes e de Merleau-Ponty, ver MOURA, Carlos Alberto

    Ribeiro de. A cera e o abelhudo. In: ____. Racionalidade e crise. So Paulo: Discurso/Edufpr, 2001. p.

    237-269 51

    PhP, p. 216; 252.

  • 29

    cincia, nem to pouco o mundo das relaes de causalidade construdo pelo

    intelectualismo, , ao contrrio, o mundo do corpo sujeito de percepo, corpo enraizado

    no mundo da experincia sensvel.

    A atividade reflexiva se refere ao que foi pr-reflexivamente dado. Por isso, o

    pr-reflexivo deve ser tomado como o solo original do qual surge a prpria reflexo, os

    pensamentos. Primeiro vivemos no mundo, somos sujeitos encarnados, nossa experincia

    sensvel bsica, s depois pensamos. Primeiro eu posso e, s depois, porque temos

    um corpo, pensamos eu penso52. Ser corpo estar atado a um certo mundo, e nosso

    corpo no est primeiramente no espao: ele no espao.53. No podemos considerar as

    diferentes partes de nosso corpo, seus aspectos visuais, tteis e motores, como

    simplesmente coordenadas54

    . Retornar ao sensvel retornar experincia originria e

    fundante na qual as coisas ganham sentido. A reflexo uma atividade segunda, que

    surge no contato com um mundo, que se organiza diante de ns, no enquanto um

    espectador estrangeiro. na atividade fundante que o mundo nos dado, no como

    previamente constitudo, como quis o pensamento pr-judicativo. Antes de ser pensado, o

    mundo vivido, ele o mundo da vida Lebenswelt, e , nele, que vemos o espetacular

    milagre da expresso. Isso s possvel porque o sujeito da percepo em seu corpo.

    a nossa experincia originria que Merleau-Ponty quer retomar, pois nela que

    percebemos o aparecer do mundo, que s possvel pelo corpo, e no por uma inspeo

    do esprito, ou por uma construo da memria como sugerem respectivamente

    intelectualistas e empiristas. E ainda segundo Merleau-Ponty:

    a reflexo no se retira do mundo em relao unidade da conscincia

    enquanto fundamento do mundo; ela toma distncia para ver brotar as

    transcendncias, ela distende os fios intencionais que nos ligam ao mundo para

    faz-los aparecer, ela s conscincia do mundo porque o revela como estranho e paradoxal.

    55

    O nosso corpo, como campo fenomenal, est aberto ao aparecer das coisas,

    possibilitando o nosso contato primeiro com o mundo. O sujeito encarnado o corpo

    52

    A esse respeito Marilena Chau nos esclarece que: O corpo que no coisa nem ideia, mas espacialidade e motricidade, recinto ou residncia e potncia exploratria, no da ordem do eu penso, mas do eu posso. (CHAU, Marilena. Experincia do Pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. So Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 68.)

    53 PhP, p. 173; 205.

    54 PhP, p. 174; 206.

    55 PhP, p. VIII; 10.

  • 30

    sujeito que conhece , relaciona-se diretamente com o mundo sem mediaes exteriores

    ou interiores, o meio o corpo que est no mundo e, pelo corpo, percebemos o mundo

    em ns. Estamos inseridos no mundo e encarnados num corpo.

    A superao do kantismo, ou simplesmente a sua crtica, foi possvel pela

    fenomenologia existencial derivada da fenomenologia da percepo e foi, sob a

    influncia de Heidegger, que Merleau-Ponty chegou a ela. Mas ele o faz de um modo

    mpar e diferente de Heidegger; no importa s a noo de compreenso, mas a de

    expresso; se h Dasein em Merleau-Ponty, esse antes de tudo um corpo:

    por meu corpo que compreendo o outro, assim como por meu corpo que

    percebo coisas. Assim compreendido, o sentido do gesto no est atrs dele, ele se confunde com a estrutura do mundo que o gesto desenha e que por

    minha conta eu retomo, ele se expe no prprio gesto assim como, na experincia perceptiva, a significao da chamin no est para alm do

    espetculo sensvel e da chamin ela mesma, tal como meus olhares e meus

    movimentos a encontram no mundo.56

    O corpo , para Merleau-Ponty, o prprio movimento de expresso, que projeta

    as significaes no exterior, determinando-lhes um lugar e permitindo que as coisas

    existam enquanto tais, sob nossas mos, sob nossos olhos. Ele a origem do sentido de

    todos os espaos expressivos e no, simplesmente, mais um desses espaos57

    . Por isso,

    no com um objeto fsico que o corpo deve ser comparado, mas com uma obra de

    arte58

    .

    1.4 DO CORPO CARNE

    Para Merleau-Ponty, o corpo dividido em parte no seria mais um corpo, e sim

    um amontoado de rgos ou partes slidas ou, como ele diz, uma imagem empobrecida

    do corpo fenomenal:

    a cincia que nos habitua a considerar o corpo como uma reunio de partes,

    e tambm a experincia de sua desagregao na morte. Ora, o corpo

    decomposto, precisamente, no mais um corpo. Se eu recoloco minhas

    56

    PhP, p. 216-7; 217. 57

    PhP, p. 171; 202. 58

    PhP, p. 176; 208.

  • 31

    orelhas, minhas unhas, meus pulmes, em meu corpo vivo, eles no aparecero

    mais como detalhes contingentes. Eles no so indiferentes ideia que os

    outros fazem de mim, eles contribuem para minha fisionomia ou para meu

    aspecto, e talvez a cincia exprimir sobre forma de correes objetivas a

    necessidade que eu tinha de ter orelha, unhas e pulmes assim feitos, se por

    outro lado eu devia ser hbil ou desastrado, calmo ou nervoso, inteligente ou

    tolo, se eu devia ser eu.59

    O corpo humano no um simples objeto entre os demais, nem um simples

    organismo como a biologia o tratou, ele antes uma abertura ao mundo, ele vive em

    diferentes regimes numa nica existncia, articulado dinamicamente por um esquema

    corporal e no por uma juno de partes e rgos. Senciente (sentant) e sensvel

    (sensible), o corpo existindo como sujeito e objeto para si e em si est aberto ao da

    histria e das cincias da vida. O esquema paradoxal do corpo que se movimenta,

    entendido como corporeidade, enfatizado por Merleau-Ponty em vez da anlise

    reflexiva. A unidade de nossa ao um sistema de equivalncia, Por ser fenomenal, o

    corpo expressa a nossa insero no mundo.

    O percurso seguido por Merleau-Ponty at A fenomenologia da percepo levou-

    o a uma subjetivao do corpo, permanecendo ainda filiado metafsica dualista

    substancialista. s em O visvel e o invisvel que o corpo deixa de ser apenas matria e

    passa condio de carne, como elemento que participa do mundo sem ser apenas

    objeto nem simplesmente sujeito. O ambicioso projeto da restituio do sensvel tem

    com consequncia a constituio de um status ontolgico para o corpo para o sensvel

    no mesmo nvel que antes ocupara a conscincia; porm, permanece, por isso mesmo,

    em sua primeira fase, sem superar o dualismo e sim, apenas, confere ao corpo uma

    dignidade substancial.

    As noes inicias elaboradas sobre o corpo, a partir de A estrutura do

    comportamento e da Fenomenologia da percepo, tiveram a reflexo sobre a percepo

    como um dos enfoques centrais. Porm, como o prprio autor observara posteriormente,

    reconhecer no corpo apenas um poder expressivo e consider-lo uma potncia subjetiva

    no suficiente para resolver as limitaes impostas pelas filosofias por ele criticadas. O

    corpo continuou junto das substncias, s que agora num lugar supostamente

    privilegiado, o corpo prprio exigiu a constituio de uma ontologia que no admitisse

    mais as perspectivas dicotmicas. Seu esforo de demonstrar que a subjetividade est

    59

    PhP, p. 493; 578.

  • 32

    enraizada no mundo, que ela uma subjetividade encarnada, ser superado atravs da

    noo de carne, com a qual Merleau-Ponty busca superar os impasses postos pelo seu

    projeto inicial, partindo agora da noo de carne e de uma nova perspectiva para falar da

    experincia.

    Nos seus ltimos trabalhos, Merleau-Ponty no abandona as categorias de corpo

    objetivo e corpo fenomenal. No entanto, ele prprio fez a crtica da forma como tratou da

    unio da alma com o corpo, pois no resolveu o problema, ou ainda manteve a relao

    entre corpo objetivo e corpo fenomenal, assumindo ainda a distino entre a conscincia

    e o objeto. na noo de carne que ele ir investir para se afastar das distines

    assumidas entre corpo-sujeito e corpo-objeto. A carne ser a abertura para o mundo,

    enquanto matria comum do corpo vidente e do mundo visvel. Merleau-Ponty toma a

    noo de carne de Husserl, que usava Leib para se referir ao vivido. Para Merleau-

    Ponty:

    O que chamamos carne, essa massa interiormente trabalhada, no tem,

    portanto, nome em filosofia alguma. Meio formador do objeto e do sujeito, no

    o tomo de ser, o em si duro que reside num lugar e num momento nicos:

    pode-se perfeitamente dizer do meu corpo que ele no est alhures, mas no

    dizer que ele esteja aqui e agora, no sentido dos objetos; no entanto, minha

    viso no os sobrevoa, ela no o ser que todo saber, pois tem sua inrcia e

    seus vnculos, dela. preciso pensar a carne, no a partir das substncias,

    corpo e esprito, pois seria ento a unio dos contraditrios, mas, dizamos,

    como elemento, emblema concreto de uma maneira de ser geral.60

    Ao falar de carne, Merleau-Ponty no pretendeu constituir uma antropologia.

    Com a carne do visvel, ele quis dizer que o ser carnal, como ser das profundidades, em

    vrias camadas ou de vrias faces, ser de latncia e apresentao de certa ausncia, um

    prottipo do Ser, de que nosso corpo, o sensvel senciente, uma variante

    extraordinria61. Nosso corpo , concomitantemente, corpo fenomenal e corpo objetivo,

    mas tal paradoxo j est todo visvel, como, por exemplo, um cubo, que vejo inteiro sem,

    todavia, poder ver todos os seus aspectos de uma s vez.

    Para Merleau-Ponty, a carne no nem matria, nem esprito e, muito menos,

    substncia. Por isso, ele recorre ao antigo termo elemento que os pr-socrticos

    60

    MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible et linvisible. Paris: Editions Gallimard, 1990. [Ed. Brasileira: O visvel e o invisvel. Traduo de Jos Artur Gianotti, Armando Mora dOliveira. 3. ed. So Paulo: Perspectiva, 1992. VI, p. 193-4; 142-3.

    As demais notas a seguir, que se referirem a esta obra, sero indicadas pelas iniciais VI, acompanhadas de

    seus respectivos nmeros de pginas. 61

    VI, p. 179; 132-3.

  • 33

    usavam falar de gua, ar, terra e fogo, isto , no sentido de uma coisa geral, meio

    caminho entre o indivduo espcio-temporal e a ideia, espcie de princpio encarnado que

    importa um estilo de ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua. Nesse

    sentido, a carne um elemento do Ser.62

    Ao retornar, em O visvel e o invisvel, sua ideia de corpo da Fenomenologia da

    percepo, ele comparar o corpo a uma folha de papel, a um ser de duas faces, pois ele

    de um lado, coisa entre as coisas e, de outro, aquilo que as v e toca63, compreende

    tanto a ordem do objeto quanto a do sujeito, ou como denominava, corpo objetivo e

    corpo fenomenal. O ser, compreendido a partir dessa reflexo, um ser de duas

    dimenses:

    Se minha mo esquerda toca a minha mo direita e se de repente quero, com a

    mo direita, captar o trabalho que a esquerda realiza ao toc-la, esta reflexo

    do corpo sobre si mesmo sempre aborta no ltimo momento: no momento em

    que sinto minha mo esquerda com a direita, correspondentemente paro de

    tocar minha mo direita com a esquerda. Mas este malogro de ltimo instante

    no retira toda a verdade a esse meu pressentimento de poder tocar-me

    tocando: meu corpo no percebe, mas est como que construdo em torno da

    percepo que se patenteia atravs dele: por todo o seu arranjo interno, por

    seus circuitos sensori-motores, pelas vias de retorno que controlam e relanam

    os movimentos, ele se prepara, por assim dizer, para uma percepo de si,

    mesmo se nunca ele que ele prprio percebe ou ele quem o percebe. Antes da

    cincia do corpo que implica a relao com outrem , a experincia de minha carne como ganga de minha percepo ensinou-me que a percepo no nasce

    em qualquer lugar, mas emerge no recesso de um corpo.64

    Esse o exemplo de Husserl, como aponta Iraquitan Caminha65

    , e permanece na

    dicotomia interior-exterior. Com a noo de carne universal, Merleau-Ponty busca

    justamente escapar daquela sua antiga ideia do corpo como feito de duas faces: nele no

    h duas camadas ou duas faces, e ele no , fundamentalmente, nem apenas coisa vista

    nem apenas vidente, a Visibilidade ora errante ora reunida66. A viso, que seu

    exemplo, e no apenas o tato, distncia em uma imerso. Logo, a viso no retm um

    mundo em um recito privado minha conscincia . Mesmo a ideia de distncia no

    suficientemente forte. Entre o corpo como sensvel e o corpo como senciente, diz

    Merleau-Ponty, ao invs de distncia, o que h o abismo que separa o Em Si do Para

    62

    VI, p. 184; 136. 63

    VI, p. 180; 133. 64

    VI, p. 24-5; 20-1. 65

    Cf. CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. O distante-prximo e o prximo-distante: corpo e percepo na

    filosofia de Merleau-Ponty. Joo Pessoa: Editora Universitria da UFPB, 2010, cap. VII. 66

    VI, p. 181; 134.

  • 34

    Si67. Mas, ento, como podemos pensar o senciente-sensvel? Qual o limite do corpo e

    do mundo, j que o mundo tambm carne, isto , ser profundo, de latncia, com vrias

    camadas de significaes? Ele responde com o conceito de entrelaamento ou quiasma.

    No simples, porm, escapar da dicotomia, pois a reversibilidade do vidente e do

    visvel, do tacto e do tangvel sempre iminente e nunca realizada de fato68.

    A experincia considerada como reversibilidade, transitividade e reflexo carnal,

    nos mostra que:

    S sairemos desse impasse quando renunciarmos bifurcao entre a

    conscincia de... e o objeto, admitindo que meu corpo sinrgico no objeto, que rene um feixe de conscincia aderente a minhas mos, a meus olhos, por meio de uma operao que lhes lateral, transversal, admitindo que

    minha conscincia no a unidade sinttica, incriada, centrfuga, de uma multido de conscincia de..., tambm centrfugas, mas que sustentada, subtendida pela unidade pr-reflexiva e pr-objetiva do corpo.

    69

    67

    VI, p. 180; 133. 68

    VI, p. 194; 143. 69

    VI, p. 186; 137-8.

  • 35

    2 A EXPRESSO

    A expresso do que existe uma tarefa infinita.

    Merleau-Ponty. DC.

    2.1 A PERCEPO E O MUNDO PERCEBIDO

    A problemtica que envolve a percepo est presente no pensamento de

    Merleau-Ponty desde A estrutura do comportamento at o inacabado O visvel e o

    invisvel, porem , na Fenomenologia da percepo, que ela ganha destaque central por

    meio da tarefa de retorno radical s coisas mesmas. A descrio da percepo pelo

    retorno s coisas pretende voltar ao momento originrio e primordial de apreenso de

    onde todo sentido se origina, momento que tambm o solo sobre o qual todo

    conhecimento se edifica. Esse retorno ser radical e tem um carter ontolgico, pois, para

    Merleau-Ponty, a percepo de uma coisa me abre ao ser70

    .

    Merleau-Ponty no adere s filosofias que conceberam nossas relaes com o

    mundo como tendo sido geradas por estmulos externos previamente determinados, pois

    tais perspectivas filosficas conceberam o mundo (ou ainda sua significao),

    previamente, antes de qualquer experincia nossa, no reconhecendo nossa adeso a ele.

    A percepo a experincia que nos abre para a realidade, ela abertura para. Ela

    realizada no mundo e em ns. pela percepo que nos revelada a apario do mundo,

    logo no poderamos conceb-lo existindo previamente e determinando nossas

    experincias, como queriam os filsofos de inspirao empirista. Conforme nos assegura

    Merleau-Ponty:

    A percepo no uma cincia do mundo, no nem mesmo um ato, uma

    tomada de posio deliberada; ela o fundo sobre o qual todos os atos se

    destacam e ela pressuposta por eles. O mundo no um objeto do qual

    70

    A ideia de que na Fenomenologia da percepo h uma espcie de ontologia no seria aceita por todos

    os seus comentadores, Esta tese defendida por Carlos Alberto Ribeiro de Moura, para quem no h

    uma ruptura entre a Fenomenologia da percepo e O visvel e o invisvel.

  • 36

    possuo comigo a lei de constituio; ele o meio natural e o campo de todos

    os meus pensamentos e de todas as minhas percepes explcitas. A verdade

    no habita apenas o homem interior, ou, antes, no existe homem interior, o homem est no mundo, no mundo que ele se conhece.

    71

    A descrio do mundo percebido, proposta por Merleau-Ponty, a de um mundo

    esttico, ou, como ele diz, como espao de transcendncia, espao de

    incompossibilidades, de ecloso, de deiscncia, e no como espao objetivo-imanente72.

    Ao contrrio dos empiristas e dos intelectualistas que acreditam no poder da atividade de

    sntese que tornaria claro o mundo percebido, pois j pr-constitudo, para Merleau-

    Ponty, o mundo percebido no definido e acabado, uma vez que ele aparece dessa

    relao mtua entre ns e o mundo natural que, para ele, o de sentido bruto, o horizonte

    de nossa existncia. Sendo assim, retornar s prprias coisas retornar ao momento no

    qual experimentamos a coisa percebida como que pela primeira vez. Conforme Caminha,

    esse retorno significa torn-la irredutvel a uma realidade em si e, ao mesmo tempo,

    voltar presena do aparecer da coisa percebida, o que a torna irredutvel a uma

    realidade para si73.

    O percebido no se mostra em si mesmo e sim numa trama relacional. Segundo

    Merleau-Ponty, a partir do momento que deixarmos de conceber a percepo como ao

    do puro objeto fsico sobre o corpo humano e o percebido como resultado interior dessa

    ao, parece que toda distino entre o verdadeiro e o falso, o saber metdico e os

    fantasmas, a cincia e a imaginao, vem por gua abaixo74. O mundo percebido as

    coisas aparece a um corpo que v em total entrelaamento com o que visto. No

    percebemos o mundo de fora, no vemos o mundo com lentes como um cientista no

    laboratrio analisa seus objetos de pesquisa. O mundo com o qual trabalha o cientista

    aquele que se tem a distncia, sem qualquer imerso. Seu pensamento , como dir

    Merleau-Ponty em uma expresso que ficou muito conhecida, pensamento de sobrevoo.

    A f, em um mundo previamente determinado, orienta tanto os empiristas quanto

    os intelectualistas, porm, como afirma Merleau-Ponty; Vemos as coisas mesmas, o

    mundo aquilo que vemos frmulas desse gnero exprimem uma f comum ao homem

    71

    PhP., p. V; 06. 72

    VI, p. 269-201. 73

    CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. op. cit., p. 46. 74

    VI, p. 45-35.

  • 37

    natural e ao filsofo desde que abre os olhos...75. E ainda: Assim , e nada se pode

    fazer em contrrio. Ao mesmo tempo verdade que o mundo o que vemos e que,

    contudo, precisamos aprender a v-lo76. A primeira viso, o primeiro contato com ele, o

    primeiro prazer que temos dele, inicia-nos no ser: no se trata de modo algum de algo em

    relao a um contedo, mas sim de uma abertura que nunca poder se fechar e da qual

    depende todas as experincias seguintes. Porm, se o mundo que vemos no est

    acabado, uma vez que o vemos em perspectivas, a tentativa de Merleau-Ponty

    descrever a percepo entranhada no mundo que ela percebe no ato prprio de aparecer.

    A ideia no nada de outro mundo; no um invisvel de fato, ou como uma coisa

    escondida atrs de outra, no um invisvel absoluto, que nada teria a ver com o visvel,

    mas o invisvel deste mundo, aquele que o habita, o sustenta e torna visvel, sua

    possibilidade interior e prpria, o Ser desse ente.77

    O ser que se percebe se move e, ao mover-se, se abre a infinitas perspectivas.

    Com isso, constatamos a impossibilidade de uma sntese que d por acabado o mundo,

    pois, se assim o fosse, tudo o ser no existiria. A atividade reflexiva no pode

    colocar-se aqum ou alm do mundo do qual emerge e, ao mesmo tempo, tentar camuflar

    essa relao. Merleau-Ponty nos afirma que um equivoco esquecer esse envolvimento

    com o mundo em estado bruto:

    A reflexo guarda tudo da f perceptiva: a convico de que h qualquer coisa,

    que h o mundo, a ideia de verdade, a ideia verdadeira dada. Simplesmente,

    essa brbara convico de ir s prprias coisas incompatvel com o fato da iluso ela a reduz ao que pretende dizer ou significa converte-a em sua verdade, descobrindo a a adequao e o consentimento do pensamento ao

    pensamento, a transparncia do que penso para mim que o penso. A existncia

    bruta e previa do mundo que acreditava encontrar j ali, abrindo os olhos,

    apenas o smbolo de um ser que para si logo que , porque todo o seu ser

    aparecer e, portanto, aparecer-se e que se chama esprito.78

    Essa crena irresistvel, a f ingnua de que h algo, de que h o mundo,

    a nossa primeira evidncia79. Conforme Caminha, a f perceptiva nos d a certeza de

    que em nenhum momento, ns samos do mundo percebido, no sentido de que o mundo

    75

    VI, p. 17-15. 76

    VI, p. 18-16. 77

    VI, p. 198-146. 78

    VI, p. 51-39. 79

    PhP, p.XI; 14.

  • 38

    no outra coisa alm do que ns percebemos80. Para Merleau-Ponty, s pelo retorno

    f perceptiva, revisando a anlise cartesiana, que superaremos a crise em que se

    encontra nosso saber quando acredita fundar-se sobre uma filosofia que as suas prprias

    tentativas destroem81.

    O pensamento precisa reconhecer sua gnese, uma vez que ele malogrou na

    tentativa de se instalar aqum da experincia perceptiva. necessrio que ele reconhea

    sua origem no mundo percebido, que pr-reflexivo anterior, a qualquer tentativa de

    objetivao realizada posteriormente abertura ao mundo, j constatada na f perceptiva.

    O mundo sensvel anterior ao universo do pensamento, e esse s pode se constituir a

    partir daquela experincia originria: tudo o que para ns se chama pensamento, exige

    essa sua distncia, esta sua abertura inicial que constituem para ns campo de viso,

    campo de futuro e passado... 82. O que afinal essa abertura?

    Dizer h mundo significa que no se pode pensar o mundo de fora. Pensar o

    mundo no operar com conceitos e encontrar no mundo a confirmao de certezas. Ao

    contrrio, um ato de estar imerso, enraizado no mundo. No h dentro e fora, exterior e

    interior. Trata-se, ento, de refletir sobre essa evidncia primeira: h mundo. O mundo

    apario de uma completude nunca acabada. necessrio no s voltar s coisas, mas

    tambm ao sujeito que percebe. H sujeito! Mas no ele quem constitui o mundo. Por

    isso, Merleau-Ponty questiona: Quem v este vermelho?

    O pensamento que toma como res, tanto o sujeito como o mundo, acaba por

    conceb-los a partir da ideia de adequao de conhecimento e assim perde a relao que

    estabelecemos com o mundo e ns mesmos83

    . A fenomenologia comea pelo

    questionamento mesmo dessa relao originria, a abertura para o mundo. O mundo

    horizonte, mas porque, de alguma maneira, aquele que v pertence-lhe e est nele

    instalado. Esse questionamento, porm, no a analisa, no visa se desfazer dessa

    relao, como se ela tivesse sido feita por ajuntamento84:

    A filosofia a f perceptiva interrogando-se sobre si mesma. Pode-se dizer

    dela, como de toda f, que f porque possibilidade de dvida e esse

    infatigvel percurso das coisas, que nossa vida, tambm uma interrogao

    contnua. No s a filosofia, no incio o olhar que interroga as coisas. No

    80

    CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. op. cit., p. 59. 81

    VI, p. 46-36. 82

    VI, p. 28; 23. 83

    VI, p. 42; 33. 84

    VI, p. 136-101.

  • 39

    temos uma conscincia constituinte das coisas, como acredita o idealismo, ou

    uma pr-ordenao das coisas conscincia, como acredita o realismo (eles

    so indiscernveis no que aqui nos interessa, pois ambos afirmam a adequao

    da coisa e do esprito) temos com nosso corpo, nossos sentidos, nosso olhar, nosso poder de compreender a fala e de falar, mensuradores para o Ser,

    dimenses a que podemos remet-lo; no, porm uma relao de adequao e

    de imanncia.85

    O que o olhar interroga j est a, mas s est desde que ele o tenha encontrado.

    Nossa viso vai s prprias coisas. Essa experincia privilegiada porque nos mostra,

    com grande preciso, a presena perceptiva do mundo:

    [...] nossa experincia que est aqum da afirmao e da negao, aqum do

    juzo opinies crticas, operaes ulteriores mais velha que qualquer opinio, a experincia de habitar o mundo por meio de nosso corpo, a

    verdade ns mesmos inteiramente sem que seja necessrio escolher nem

    mesmo distinguir entre a segurana de ver e a de ver o verdadeiro, pois que so

    por princpio uma mesma coisa portanto f, e no saber, porquanto o mundo aqui no est separado do domnio que temos sobre ele, sendo, ao invs de

    afirmado, tomado como evidente, e ao invs de revelado, no dissimulado, no

    refutado.86

    Para Merleau-Ponty, no momento em que nos damos conta de nossa relao com

    o mundo, de nossa abertura para o mundo e quando tentamos, pela reflexo, captur-la,

    a perdemos. Essa abertura, como para Heidegger, a compreenso, mas essa pensada

    corporalmente:

    Vejo, sinto e certo que, para me dar conta do que seja ver e sentir, devo parar

    de acompanhar o ver e o sentir no visvel e no sensvel onde se lanam,

    circunscrevendo, aqum deles mesmo, um domnio que no ocupam e a partir

    do qual se tornam compreensveis segundo seu sentido e sua essncia.

    Compreend-los surpreend-los, pois a viso ingnua me ocupa inteiramente,

    pois a ateno na viso, que se acrescenta a ela, retira alguma coisa desse dom

    total, sobretudo, porque compre