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DADOS DE COPYRIGHT · Antologia Diversos Tradutores. Agradecemos, entre outros, aos sites Site lovecraft, Contos ... extremamente enigmática e que me senti um tanto avesso a mostrá-la

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  • OHOMEMQUEESCREVIASONHOS

    Antologia

    DiversosTradutores

  • Agradecemos, entre outros, aos sites Site lovecraft, Contos do Umbral e aos

    tradutores Renato Suttana, Nicolau Saio, Denilson Carareto, Mrio JorgeLailla Vargas, entre outros por disponibilizarem material para a composio destapequena antologia.

  • Sumrio

    Folha de RostoO Chamado De CthulhuO Caso de Charles Dexter WardO Medo EspreitaDagonO Horror em Red HookArthur JermynO TemploO Pntano LunarO InominvelO IntrusoA Sombra Sobre InnsmouthNas Montanhas da LoucuraO Depoimento de Randolph CarterO Horror de DunwichO Horror no MuseuUm Sussurro nas TrevasO FestivalHypnosA Maldio de SarnathDo AlmA Estampa da Casa MalditaO Horror Em Martins BeachOceano NoturnoFechado na CatacumbaA Casa AbandonadaA Cor que Veio do EspaoA coisa na soleira da portaNyarlathotepA ArvoreOs Sonhos na Casa AssombradaA Morte AladaO que vem com a luaOs Outros DeusesA Estampa da Casa MalditaMemriaA Transio de Juan RomeroVento FrioA Msica de Erich ZannO DescendenteA procura de IranonO InominvelA Tumba

  • EleO ForasteiroOs Gatos de UltharA Coisa no LuarNathicanaCelephaisOs Outros DeusesPolarisO LivroAstrophobosO Terrvel AncioO dirio de Alonzo TyperA ArmadilhaO Executor EltricoO Desafio do AlmPoesia e os DeusesOs Fungos de YuggothFechado na CatacumbaAlgumas notas sobre algo no-existenteNotas Quanto a Escrever Fico FantsticaA Histria do NecronomiconBiografia

  • O Chamado De Cthulhu(1926)

    concebvel que tais grandes poderes ou seres tenham sobrevivido... sobrevivido de um passado extremamente remoto, quando a conscincia eraprovavelmente manifestada em formas e contornos surgidos muito antes do advento da espcie humana... formas das quais somente a poesia e a lendapreservaram uma tnue memria e chamaram-nas de deuses, monstros, criaturas mticas das mais variadas espcies...

    - ALGERNON BLACKWOOD

    I. O HORROR NA ARGILAA coisa mais misericordiosa do mundo, creio eu, a incapacidade da mente humana em

    correlacionar todo o seu contedo. Vivemos numa plcida ilha de ignorncia em meio a negrosmares de infinito, e no est escrito pela Providncia que devemos viajar longe. As cincias, cadauma progredindo em sua prpria direo, tm at agora nos causado pouco dano; mas um dia ajuno do conhecimento dissociado abrir vises to terrveis da realidade e de nossa apavorantesituao nela, que provavelmente ficaremos loucos por causa dessa revelao ou fugiremos dessaluz mortal rumo paz e segurana de uma nova Idade das Trevas.

    Os teosofistas fizeram conjecturas sobre a apavorante imensido do ciclo csmico, do qualnosso mundo e a raa humana constituem meros incidentes transitrios. Eles aludiram aestranhas sobrevivncias em termos que congelariam o nosso sangue se no fossem mascaradospor ameno otimismo. Mas! no foi deles que veio o vislumbre das eras proibidas que me arrepiamquando nelas penso e me enlouquecem quando com elas sonho; esse vislumbre, como todos ospavorosos vislumbres da verdade, cintilou quando juntei duas peas separadas no caso, uma velhanotcia de jornal e as anotaes de um professor j falecido. Espero que ningum mais venha afazer essa juno; com certeza, se eu viver, nunca fornecerei voluntariamente elo algum de tonefasta cadeia. Acho que o professor tambm pretendia guardar segredo sobre a parte que eleconhecia, e que teria destrudo suas anotaes se a morte sbita no o tivesse levado antes.

    Meu conhecimento da coisa comeou no inverno de 1926 a 1927 com a morte do meu tio-av, George Gamell Angell, professor emrito de lnguas semticas da Universidade Brown, emProvidence, Rhode Island. O professor Angell gozava de grande renome como autoridade eminscries antigas e a ele recorriam com freqncia diretores de importantes museus, de modoque seu falecimento, aos noventa e dois anos de idade, deve ser lembrado por muitos. A nvel

  • local, esse interesse foi intensificado pela obscuridade da causa mortes. O professor retornava donavio de Newport quando caiu de repente, segundo testemunhas, aps ter sido empurrado porum negro com jeito de marinheiro, sado de um dos suspeitos e escuros ptios na encostangreme que formava um atalho entre o cais e a casa do finado na rua Williams. Os mdicosforam incapazes de achar qualquer distrbio visvel, mas concluram, aps perplexa discusso,que alguma obscura leso cardaca, agravada pela subida brusca de to ngreme colina por toidoso homem, fora responsvel pelo bito. Naquela poca no vi motivo algum para discordardesse diagnstico, mas ultimamente sinto-me inclinado a questionar e mais do que questionar.

    Como herdeiro e executor do meu tio-av, que morrera vivo e sem filhos, esperava-seque eu examinasse seus papis cuidadosamente, e com esse propsito levei todos os seus arquivose caixas para minha residncia em Boston. Grande parte do material que organizei ser publicadomais tarde pela Sociedade Arqueolgica Americana, mas havia uma caixa que eu acheiextremamente enigmtica e que me senti um tanto avesso a mostr-la a outros olhos. Havia sidofechada com cadeado e no encontrei a chave at que me ocorreu examinar o chaveiro pessoalque o professor levava sempre no bolso. Consegui, de fato, abri-la, mas ento pareceu-me que fois para dar de cara com outro segredo ainda maior e mais impermevel. Pois qual poderia ser osignificado do estranho baixo-relevo de argila e das esparsas anotaes, comentrios e recortesque achei? Teria o meu tio, nos ltimos anos de vida, se tornado crdulo das mais superficiaisimposturas? Resolvi que procuraria o excntrico escultor responsvel por essa aparenteperturbao da paz de esprito de um velho.

    O baixo-relevo era um tosco retngulo com menos de dois dedos de espessura e uns dozea quinze centmetros de comprimento, obviamente de origem moderna. O seu desenho, contudo,nada tinha de moderno na atmosfera e no que sugeria; pois, embora os caprichos do cubismo edo futurismo sejam muitos e desvairados, no reproduzem com freqncia aquela regularidadecrptica que se insinua na escrita pr-histrica. E a maior parte daqueles desenhos com certezaparecia algum tipo de escrita, ainda que a minha memria, bastante familiarizada com os papis ecolees do meu tio, no conseguisse identific-la ou sequer suspeitar de suas afiliaes maisremotas.

    Acima desses hierglifos aparentes havia uma figura de evidente inteno pictrica,embora sua execuo impressionista impedisse uma idia muito clara de sua natureza. Parecia umtipo de monstro, ou de smbolo representando um monstro, cuja forma s uma mente doentiapoderia conceber. Se eu disser que minha algo extravagante imaginao lhe atribua ao mesmotempo os traos de um polvo, de um drago e de uma caricatura humana, no estarei sendo infielao esprito da coisa. Uma cabea polpuda e tentaculada encimava um corpo grotesco e escamosodotado de asas rudimentares; mas era o contorno geral do todo que chocava. Atrs da figurahavia uma vaga sugesto de cenrio de arquitetura ciclpica.

    Essa singularidade era acompanhada, alm de uma pilha de recortes de jornal, por escritoscom a caligrafia mais recente do professor Angell, sem qualquer pretenso a estilo literrio. Oque parecia ser o documento principal tinha por ttulo "CULTO DE CTHULHU" em letras defrma, para evitar a leitura incorreta de palavra to inaudita. Esse manuscrito estava dividido emduas sees, a primeira das quais intitulada "1925 -Sonho e Interpretao do Sonho de H. A.Wilcox, Rua Thomas, 7, Providence, R. L", e a segunda, "Narrativa do Inspetor John R. Lagrasse,

  • Rua Bienville, 121, Nova Orleans, La., na reunio de 1908 da S. A. A. - Notas do Mesmo, &Relato do Prof. Webb". Todos os demais manuscritos eram notas breves, sendo algumas delasrelatos de sonhos esquisitos de diferentes pessoas, citaes de livros e revistas teosficas(principalmente de A Atlntlda e a Perdida Lemria de W. Scott-Elliott) ou ainda comentriossobre antiqussimos e ainda remanescentes sociedades secretas e cultos proibidos, comreferncias a trechos de compndios de mitologia e antropologia tais como O Ramo de Ouro, deJames G. Frazer, e Culto s Bruxas na Europa Ocidental, de Miss Murray. Os recortes referiam-se basicamente a doenas mentais raras e surtos de alucinaes coletivas na primavera de 1925.

    A primeira metade do manuscrito principal narrava uma estria muito peculiar.Aparentemente no dia 1 de maro de 1925, um moo magro, moreno, de aspecto neurtico eexcitado, visitou o professor Angell trazendo consigo o singular baixo-relevo de argila, que estavaento recente e mido. Seu carto trazia o nome de Henry Anthony Wilcox e meu tioreconhecera-o como o filho mais novo de uma excelente famlia que ele conheciasuperficialmente, e que estivera estudando escultura na Escola de Desenho de Rhode Island evivendo sozinho no edifcio Fleur-de-Lys perto daquela instituio. Wilcox era um jovem precocede reconhecido talento porm grande excentricidade, e desde a infncia despertara ateno devidos estrias esdrxulas e aos sonhos bizarros que tinha o hbito de contar. Ele chamava a simesmo de "psiquicamente hipersensvel", mas a gente convencional da antiga cidade comercialconsiderava-o apenas "esquisito". Sem nunca se misturar muito com os seus, gradualmenteafastara-se do convvio social e s era conhecido de um pequeno grupo de estetas de outrascidades. Mesmo o Clube de Arte de Providence, ansioso por preservar seu conservadorismo,desistira de t-lo entre seus membros.

    Na ocasio da visita, continuava o manuscrito do professor, o escultor pediu abruptamentea assistncia do conhecimento arqueolgico de seu anfitrio para identificar os hierglifos dobaixo-relevo. Falava de um jeito sonhador e afetado que denotava pose e alienao; e foi comcerta rispidez que meu tio respondeu-lhe, pois a notria frescura do tablete indicava relao comtudo menos com arqueologia. A rplica do jovem Wilcox, que impressionou meu tio o bastantepara que este a recordasse e a registrasse textualmente, foi feita num tom fantasticamente poticoque deve ter caracterizado toda a sua conversa e que desde ento verifiquei ser bem prprio dele;ele disse: "Realmente novo, pois o fiz na noite passada durante um sonho que tive com cidadesestranhas; e sonhos so mais antigos do que a cismarenta Tiro, a contemplativa Esfinge ou aBabilnia dos jardins suspensos."

    Foi ento que ele comeou a narrativa desconexa que subitamente despertou umamemria adormecida e conquistou o interesse febril do meu tio. Um leve tremor de terraocorrera na noite anterior, o mais intenso registrado na Nova Inglaterra em anos, e afetaravivamente a imaginao de Wilcox. Este, ao se recolher, tivera um sonho sem precedentes, comgrandes cidades ciclpicas de blocos titnicos e monlitos que alcanavam o cu, todos gotejandolodo verde e impregnados de horror latente. Hierglifos cobriam as paredes e colunas, e de algumponto indeterminado, abaixo, vinha uma voz que no era uma voz, e sim uma sensao caticaque s a fantasia poderia transmudar em som, mas que ele tentou traduzir num amontoado quaseimpronuncivel de letras: "Cthulhu fhtagn ".

    Essa mixrdia verbal foi a chave para a lembrana que excitou e perturbou o professor

  • Angell. Ele interrogou o escultor com mincia cientfica e estudou com intensidade quasefrentica o baixo-relevo no qual o rapaz se encontrara trabalhando, enregelado e apenas com suasroupas de dormir, quando acordou, atnito. Meu tio culpou sua velhice, Wilcox disse depois, porsua demora em reconhecer tanto os hierglifos quanto o desenho pictrico. Muitas das perguntasdele pareceram altamente despropositadas ao visitante, especialmente as que tentavam relacionara figura com cultos ou sociedades estranhas; e Wilcox no pde compreender as repetidaspromessas de silncio que recebeu em troca de sua confisso de ser membro de alguma difundidairmandade mstica ou pag. Quando o professor Angell se convenceu de que o escultor realmentedesconhecia qualquer culto ou sistema de cincia oculta, assediou seu visitante com pedidos deque viesse relatar-lhe futuramente os sonhos que voltasse a ter. Isso deu frutos regulares, poisaps a primeira entrevista o manuscrito registra visitas dirias do rapaz, durante as quais elenarrava fragmentos surpreendentes de sua imagstica noturna, centrada sempre num assustadorpanorama ciclpico de megalitos escuros e gotej antes, com uma voz ou inteligncia subterrneaclamando monotonamente em enigmticos impactos sensrios. Os dois sons maisfreqentemente repetidos eram aqueles traduzidos pelas letras " Cthulhu " e "R'lyeh ".

    No dia 23 de maro, continuava o manuscrito, Wilcox no apareceu; em sua residnciainformaram que ele havia sido acometido por uma espcie desconhecida de febre e levado para acasa de sua famlia na rua Waterman. Havia gritado noite, acordando vrios outros artistas doprdio, e manifestara desde ento apenas alternaes de inconscincia e delrio. Meu tio telefonouimediatamente para a famlia, e a partir da acompanhou o caso de perto, indo muitas vezes aoconsultrio do Dr. Tobey, o mdico encarregado, na Rua Thayer. A mente febril do rapazaparentemente ocupava-se de coisas estranhssimas, e o doutor de vez em quando estremecia aofalar delas. Essas coisas no somente repetiam o que ele sonhara antes, mas tambm incluamuma coisa gigantesca "com milhas de altura" que caminhava ou se movia. Em nenhum momentodescrevera o objeto, mas ocasionais palavras frenticas, conforme repetidas pelo Dr. Tobey,convenceram o professor de que devia tratar-se da inominvel monstruosidade que Wilcoxprocurara representar em sua escultura do sono. Referncias a esse objeto, acrescentou o doutor,eram invariavelmente preldio queda do rapaz na letargia. Sua temperatura, curiosamente, noestava muito acima da normal; mas todo o seu estado parecia indicar antes febre do queperturbao mental.

    No dia 2 de abril, por volta das 3 da tarde, todos os sinais da enfermidade de Wilcoxdesapareceram subitamente. Sentou-se empertigado na cama, atnito por encontrar-se em casa eignorando completamente o que acontecera em sonho ou realidade desde a noite de 22 de maro.Tendo recebido alta do mdico, voltou para o seu alojamento trs dias depois; porm no foimais de nenhuma serventia para o professor Angell. Todos os vestgios de sonhos bizarroshaviam desaparecido com a convalescena, e meu tio no registrou mais seus sonhos aps umasemana de relatos inteis e irrelevantes de vises absolutamente normais.

    Neste ponto terminava a primeira parte do manuscrito, mas referncias a algumas dasanotaes dispersas deram-me muito o que pensar, tanto, na verdade, que somente o enraizadoceticismo que ento constitua minha filosofia pode explicar o fato de que eu continuavaduvidando do artista. As anotaes em questo eram aquelas que descreviam os sonhos de vriaspessoas durante o mesmo perodo em que o jovem Wilcox tivera as suas estranhas vises. Meu

  • tio, ao que parece, havia rapidamente organizado um esquema prodigiosamente amplo deinvestigao entre quase todos os amigos que podia interrogar sem impertinncia, pedindo-lhesrelatos de seus sonhos de todas as noites e datas de quaisquer vises incomuns a partir de certodia. A receptividade ao seu pedido parece ter variado; mas ele deve ter recebido, no mnimo, maisrespostas do que um homem normal poderia dar conta sem uma secretria. Essa correspondnciaoriginal no foi preservada, porm suas anotaes constituam um resumo abrangente erealmente significativo dela. As pessoas comuns da sociedade e do mundo dos negcios otradicional "sal da terra" da Nova Inglaterra - deram um resultado quase completamentenegativo, embora casos esparsos de impresses noturnas desagradveis mas indefinidas apareamaqui e ali, sempre entre 23 de maro e 2 de abril - o perodo de delrio do jovem Wilcox. Oshomens de cincia no foram afetados em grau muito maior, apesar de quatro casos de descriovaga sugerirem vislumbres fugazes de paisagens estrambticas, e de um caso mencionar certopavor de algo anormal.

    Foi dos artistas e poetas que as respostas pertinentes vieram, e tenho certeza de que opnico teria se instaurado se eles tivessem podido comparar as anotaes. Como eu no tinha ascartas originais, meio que suspeitei que o compilador houvesse feito perguntas tendenciosas ouorganizado a correspondncia em concordncia com o que ele havia latentemente resolvido ver.Por essa razo continuei a achar que Wilcox, tendo tomado conhecimento das informaes que omeu tio possua, estivera pregando uma pea no veterano cientista. Essas respostas de estetascontavam uma histria perturbadora. Entre 28 de fevereiro e 2 de abril uma grande proporodeles havia sonhado com coisas bizarras, sonhos cuja intensidade era incomensuravelmente maiordurante o perodo do delrio do escultor. Cerca de um quarto das respostas falava de cenas e desons que nada diferiam dos que Wilcox descrevera, e alguns desses sonhadores confessaram ummedo agudo da coisa gigantesca e inominvel visvel no final. Um dos casos, que a anotaodescreve com particular nfase, era serssimo. O indivduo em questo, um arquiteto de granderenome, inclinado teosofia e ao ocultismo, foi acometido de loucura violenta na data da crise dojovem Wilcox, e expirou vrios meses mais tarde aps gritar incessantemente que o salvassem dasgarras de uma besta que escapara do inferno. Se o meu tio tivesse se referido a esses casos pornome e no apenas por nmero, eu teria tentado obter alguma corroborao e feito algumainvestigao pessoal; do jeito que estava, consegui localizar somente uns poucos missivistas.Todos estes, no entanto, confirmaram as anotaes plenamente. Muitas vezes tenho meperguntado se todas as pessoas interrogadas pelo professor se sentiram to perplexas quantoaquele grupo. Sorte deles nunca terem recebido explicao nenhuma.

    Os recortes de jornal, como j disse, mencionavam casos de pnico, manias eexcentricidades ocorridos durante o perodo em questo. O professor Angell deve ter empregadoum escritrio especializado na coleta de recortes, pois o nmero de artigos era tremendo, e asfontes espalhavam-se por todo o planeta. Um recorte falava de um suicdio noturno em Londres,onde um sonmbulo pulara de uma janela aps um grito lancinante. Outro consistia numa cartadesconexa ao editor de um jornal na Amrica do Sul, em que um fantico, baseado em vises quetivera, predizia um futuro calamitoso. Um despacho da Califrnia descrevia uma colnia deteosofistas envergando em massa tnicas brancas espera de certo "glorioso advento" que nuncachegava, ao passo que notcias da ndia falavam reservadamente sobre graves tumultos nativospor volta do fim de maro. Orgias de vodu multiplicaram-se no Haiti e postos avanados na

  • frica reportaram murmrios agourentos. Oficiais norte-americanos nas Filipinas encontraramhostilidade por parte de certas tribos nessa poca e policiais de Nova Iorque foram atacados pormultides de levantinos histricos na noite de 22 para 23 de maro. O oeste da Irlanda tambmfoi infestado de rumores inacreditveis e lendas, e um pintor fantstico chamado Ardois-Bonnotexibiu um delirante quadro intitulado Paisagem Onrica no salo de primavera de Paris de 1926.E to numerosos so os tumultos registrados em hospcios que s por milagre a fraternidademdica deixou de notar estranhos paralelismos e tirar concluses mistificadas. Em suma, umsurpreendente punhado de recortes, e com assombro que me lembro hoje do empedernidoracionalismo com que os pus de lado. Mas eu estava ento convencido de que o jovem Wilcoxtivera conhecimento dos assuntos antigos mencionados pelo professor.

    II. O RELATO DO INSPETOR LEGRASSEOs assuntos antigos que haviam feito o sonho e o baixo-relevo do escultor to

    significativos para o meu tio constituam o tema da segunda metade do seu longo manuscrito.Parece que anteriormente o professor Angell tinha visto uma vez os contornos infernais dainominada monstruosidade, confundira-se diante dos hierglifos desconhecidos e escutara asagourentas slabas que s podem ser grafadas como "Cthulhu"; e tudo isso interligado de formato espantosa e horrvel, que no de admirar que tenha perseguido o jovem Wilcox comperguntas e exigncias de informaes.

    Essa prvia experincia ocorrera em 1908, dezessete anos antes, quando a SociedadeArqueolgica Americana realizou seu encontro anual em Saint Louis. O professor Angell, comoconvinha a algum de sua autoridade e realizaes, tivera um papel proeminente em todas asdeliberaes, e foi um dos primeiros a serem abordados por diversos leigos que aproveitaram aoportunidade para fazer perguntas e pedir opinio de peritos sobre certos problemas.

    O principal desses leigos, que em breve se tornaria o foco de interesse de toda a reunio,foi um homem de meia-idade e aparncia convencional que tinha viajado desde Nova Orleanspara obter certa informao especial impossvel de obter de qualquer fonte local. Seu nome eraJohn Raymond Legrasse e sua profisso era a de inspetor de polcia. Trazia com ele a razo desua visita, uma grotesca, repulsiva e aparentemente antiqussima estatueta de pedra cuja origemno conseguia determinar.

    No se deve imaginar que o inspetor Legrasse tivesse o menor interesse em arqueologia; aocontrrio, seu desejo de esclarecimento era movido por consideraes puramente profissionais. Aestatueta, dolo, fetiche ou o que quer que fosse, fora capturada alguns meses antes nas florestaspantanosas do sul de Nova Orleans durante uma batida policial num suposto culto de vodu; e tosingulares e medonhos eram os ritos ligados pea, que a polcia de imediato percebeu que derade cara com um culto sinistro totalmente desconhecido para eles e infinitamente mais diablicoque o mais negro dos crculos africanos de vodu. Sobre a sua origem, alm das estriasesdrxulas e inacreditveis arrancadas aos membros capturados, absolutamente nada pde serdescoberto. Da a ansiedade da polcia por qualquer conhecimento de coisas antigas que pudesseajud-la a identificar o smbolo aterrador e, atravs dele, descobrir a fonte daquele culto.

    O inspetor Legrasse no estava de forma alguma preparado para a sensao que a sua

  • interveno causou. Um simples olhar ao objeto fora suficiente para lanar os homens de cinciaali reunidos num estado de tensa excitao, e eles no perderam tempo em se amontoar ao redordele para encarar de perto a diminuta imagem cuja profunda estranheza e aparncia deantigidade genuna e abismal indicavam panoramas arcaicos ainda por revelar. Nenhuma escolaconhecida de escultura animara aquele terrvel objeto, e no entanto sculos, at milnios pareciamgravados em sua baa e esverdeada superfcie de pedra no identificada.

    A imagem, que foi finalmente passada devagar de mo em mo para exame mais atento ecuidadoso, tinha entre quinze e dezoito centmetros de altura e era de elaborado artesanato.Representava um monstro vagamente antropide, mas com uma cabea semelhante de umpolvo e cujo rosto era uma massa de tentculos, de corpo escamoso com aspecto elstico,prodigiosas garras nas patas dianteiras e traseiras, e asas longas e estreitas atrs. Essa coisa, queparecia imbuda de assustadora e inatural malignidade, tinha uma corpulncia algo intumescida eestava agachada ameaadoramente sobre um bloco retangular ou pedestal coberto de caracteresindecifrveis. As pontas das asas tocavam a beirada traseira do bloco, o assento ocupava o centroe as compridas e recurvadas garras das patas traseiras dobradas sobre si mesmas, agarravam abeirada dianteira e estendiam-se por um quarto da altura do pedestal. A cabea cefalpode estavainclinada para frente, de modo que as extremidades dos tentculos faciais varriam as costas dasmacias patas dianteiras que agarravam os joelhos dos membros traseiros. 0 aspecto geral eraanormalmente vivido, e ainda mais sutilmente assustador pelo fato de sua origem ser totalmentedesconhecida. Embora sua vasta, espantosa e incalculvel antigidade fosse inegvel, a estatuetano apresentava ligao com nenhum tipo de arte pertencente mocidade da civilizao, ou, naverdade, a qualquer poca.

    O seu prprio material era um mistrio, pois a pedra lisa e negro-esverdeada com pintasdouradas ou iridescentes e estrias no se assemelhava a nada familiar geologia ou mineralogia.Os caracteres ao longo da base eram igualmente intrigantes, e nenhum dos cientistas ali presentes,apesar de representarem metade do conhecimento mundial nesse campo, teve a menor noosequer da mais remota filiao lingustica deles. Tal como o tema e o material, esses caracterespertenciam a alguma coisa horrivelmente distante e alheia humanidade como a conhecemos,algo que sugeria de forma assustadora antigos e profanos ciclos de vida dos quais nosso mundo enossas concepes no fazem parte.

    No entanto, enquanto os vrios cientistas balanavam a cabea e admitiam-se derrotadosperante o enigma trazido pelo inspetor, havia na reunio um homem a quem pareceramestranhamente familiares aquelas monstruosas forma e escrita, e que ento falou com certahesitao do pouco que sabia a respeito. Ele era o falecido William Channing Webb, professor deantropologia na Universidade de Princeton e explorador de considervel renome.

    O professor Webb participara, quarenta e oito anos antes, de uma expedio Groenlndia e Islndia em busca de inscries rnicas, que no conseguiu achar; e ao percorrera costa oeste da Groenlndia havia encontrado uma singular tribo de esquims degenerados cujareligio, uma curiosa forma de culto ao diabo, provocou-lhe calafrios com sua repelncia edeliberada sede de sangue. Tratava-se de um credo do qual os outros esquims pouco sabiam, eque s mencionavam com estremecimentos de horror, dizendo que vinha de eras terrivelmenteantigas, anteriores criao do mundo. Alm de ritos inenarrveis e sacrifcios humanos, havia

  • alguns esquisitos rituais hereditrios dirigidos a um supremo diabo ancio ou tornasuk, dos quaiso professor Webb fizera uma cuidadosa transcrio fontica com a ajuda de um idoso angekokou bruxo-sacerdote, grafando os sons em caracteres romanos o melhor que pde. Porm, o quemais interessava era o fetiche que esse culto idolatrava e em torno do qual danavam quando aaurora boreal lambia os picos gelados. Segundo declarou o professor, tratava-se de um toscobaixo relevo de pedra que compreendia uma figura medonha e algumas inscries crpticas; e, atonde podia afirmar, coincidia, nos aspectos essenciais, com a coisa bestial que se tornara centrodas atenes na reunio.

    Essas informaes, recebidas com assombro e emoo pelos presentes reunio, foramainda mais emocionantes para o inspetor Legrasse, que imediatamente comeou a assediar o seuinformante com perguntas. Tendo anotado e transcrito um ritual oral entre os sectrios brejeirosque seus homens haviam prendido, pediu ao professor que procurasse lembrar o melhor quepudesse das slabas anotadas entre os esquims diabolistas. Seguiu-se ento uma exaustivacomparao de detalhes e um momento de boquiaberto silncio, quando tanto o detetive quantoo cientista concordaram na identidade virtual da frase comum aos dois ritos infernais todistantes um do outro como se pertencessem a mundos diferentes. O que, essencialmente, tantoos bruxos esquims quanto os sacerdotes brejeiros da Louisiana entoavam aos seus dolos eraalgo semelhante ao que vai abaixo, sendo as divises entre palavras supostas por analogia com asquebras tradicionais na frase quando cantada em voz alta:

    "Ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh wgah'naglfhtagn."Nesse ponto Legrasse levava vantagem sobre o professor Webb, pois vrios dos seus

    prisioneiros mestios haviam-lhe repetido o que celebrantes mais velhos haviam-lhes dito sobre osignificado dessas palavras. Esse texto dizia mais ou menos o seguinte:

    "Na sua casa em R'lyeh, Cthulhu morto espera sonhando."Ento, em resposta s urgentes solicitaes de todos, o inspetor Legrasse narrou, to

    detalhadamente quanto possvel, sua experincia com os idlatras dos pntanos, contando umaestria qual pude ver que o meu tio atribua enorme importncia. Fazia lembrar os sonhos maisdesvairados dos mitmanos e teosofistas, alm de revelar um grau surpreendente de imaginaocsmica, que nunca se esperaria entre aqueles marginais e prias da sociedade.

    No dia 1 de novembro de 1907 chegara polcia de Nova Orleans um chamado frenticoda regio de pntanos e lagoas ao sul. Os grileiros de l, na maioria descendentes primitivos, masde boa ndole, dos homens de Lafitte, estavam tomados do mais absoluto pnico por causa deuma coisa desconhecida que viera sobre eles noite. Tratava-se de vodu, aparentemente, mas deuma espcie de vodu muito mais terrvel do que qualquer outra que j tinham visto; e algumas desuas mulheres e crianas haviam desaparecido desde que o malvolo tant comeara a baterincessantemente bem para dentro das sombrias florestas, onde nenhum morador da regio seaventurava. Ouviam-se gritos insanos e berros apavorantes, cnticos que gelavam o sangue echamas demonacas que bruxuleavam; e ningum mais suportava aquilo, acrescentou o assustadomensageiro.

    Ento um grupo de vinte policiais, em duas carruagens e um automvel, havia partido noFim da tarde com o trmulo grileiro como guia. No fim da estrada transitvel desceram e

  • chapinharam por milhas em silncio, em meio aos terrveis bosques de ciprestes onde nuncaraiava o dia. Medonhas razes e malignas barbas-de-velho dificultavam a caminhada, e de vez emquando uma pilha de pedras midas ou fragmentos de uma parede apodrecida intensificavam,com sua sugesto de povoao srdida, uma angstia que cada rvore mal formada e a profusode fungos contribua para criar. Por fim, a aldeia dos grileiros, um ajuntamento miservel decabanas, ficou vista, e moradores histricos acorreram para refugiar-se em volta do grupo delanternas balouantes. O som abafado dos tants j se ouvia ao longe, bem longe; e um gritoagudo como um guincho vinha em intervalos desiguais quando o vento mudava de direo.Tambm um claro avermelhado parecia filtrar-se atravs da plida vegetao rasteira, oriundo deavenidas interminveis de noite selvagem. Todos os assustados grileiros recusaram-seterminantemente a dar um passo sequer rumo quele culto mpio, de modo que o inspetorLegrasse e seus dezenove colegas embrenharam-se sem guia nas arcadas negras de terror pelasquais nenhum deles jamais passara antes.

    A regio em que agora se aventuravam os policiais era tradicionalmente de m reputao,desconhecida e inexplorada pelos brancos. Corriam lendas sobre um lago oculto nuncacontemplado por mortais, no qual vivia uma gigantesca e disforme criatura poliposa branca comolhos luminosos; e os grileiros sussurravam que diabos com asas de morcego voavam para forade cavernas nas entranhas da terra meia-noite para adorar aquele ser. Diziam que ele estivera lantes de D'Iberville, antes de La Salle, antes dos ndios e antes mesmo dos saudveis animais epssaros das florestas. A criatura era o pesadelo encarnado e v-la significava morrer. Mastambm fazia os homens sonharem, por isso sabiam que deviam manter-se afastados. A atualorgia vodu ocorria, de fato, no limite daquela rea amaldioada, da o prprio local do culto tertalvez aterrorizado os grileiros mais do que os sons chocantes e os incidentes.

    S a poesia ou a loucura poderiam descrever fielmente os barulhos ouvidos pelos homensde Legrasse ao avanarem pelos atoleiros negros rumo ao claro vermelho e aos tants abafados.Existem sons caractersticos de homens e caractersticos de bestas, e pavoroso escutar umquando a fonte deveria produzir o outro. A fria animal e a licenciosidade orgistica ali eramatiadas a nveis demonacos por uivos e xtases guinchantes que reverberavam por aquelesbosques cobertos de noite como tempestades pestilenciais emanadas dos abismos do inferno. Devez em quando as ululaes menos organizadas cessavam, e do que parecia um coro bemtreinado de vozes roucas, elevava-se como uma ladainha aquela frase ou ritual nefando:

    "Ph'nglul' mglw'nafh Cthulhu R'lych wgah'naglfhtagn. "Foi ento que os homens, tendo alcanado um local onde as rvores eram mais finas, de

    repente avistaram o prprio espetculo. Quatro deles cambalearam, um desfaleceu e doisemitiram um grito frentico que a louca cacofonia da orgia afortunadamente encobriu. Legrassejogou gua do pntano no rosto do homem desmaiado e todos ficaram trmulos e quasehipnotizados de horror.

    Numa clareira natural do pntano havia uma ilha de relva com cerca de meio hectare, semrvores e toleravelmente seca. Nela saltava e se retorcia uma indescritvel horda de anormalidadehumana, que s um Sime ou um Angarola poderiam pintar. Sem roupa alguma, aquelas criaturashbridas zurravam, berravam e se contorciam ao redor de uma monstruosa fogueira circular, no

  • meio da qual erguia-se, revelado por ocasionais frestas na cortina de chamas, um imponentemonlito de granito com uns dois metros e meio de altura; em cima dele, numa pequenezincongruente, jazia a nefasta estatueta. De um amplo crculo de dez cadafalsos dispostos aintervalos regulares, com o monlito cingido de chamas ao centro, pendiam de ponta-cabea oscorpos atrozmente mutilados dos indefesos grileiros que haviam desaparecido. Era dentro dessecrculo que a roda de adoradores pulava e rugia da esquerda para a direita numa bacanal sem fimentre o anel de cadveres e o anel de fogo.

    Pode ter sido s imaginao, como podem ter sido apenas ecos, que induziram um doshomens, um excitvel hispnico, a julgar ter ouvido respostas antifonais ao ritual, vindas de umdistante e penumbroso ponto no fundo da floresta de antigas lendas e horrores. Mais tardeencontrei e interroguei esse homem, Joseph D. Galvez, que mostrou ter uma imaginaodelirante; de fato, ele chegou ao extremo de sugerir ter escutado um leve rufiar de grandes asas evislumbrado olhos fulgurantes bem como um montanhoso vulto branco alm das rvoresremotas mas eu suponho que ele andara assimilando muita superstio local.

    Na verdade, a pausa horrorizada dos homens foi de durao relativamente curta. O devervinha em primeiro lugar; e embora houvesse quase cem celebrantes naquela horda, a polciaconfiou em suas armas de fogo e investiu resolutamente contra a nauseante turba. Por cincominutos o alarido e o caos resultantes foram indescritveis. Golpes selvagens foram vibrados,tiros foram disparados e fugas ocorreram, mas no final Legrasse pde contar uns quarenta e setesoturnos prisioneiros, os quais forou a vestirem-se depressa e formar uma fila entre duas fileirasde policiais. Cinco dos adoradores jaziam mortos e dois gravemente feridos foram carregados empadiolas improvisadas por seus camaradas. A imagem sobre o monlito foi, lgico,cuidadosamente removida e levada embora por Legrasse.

    Interrogados na chefatura de polcia aps uma jornada tensa e extenuante, verificou-se quetodos os prisioneiros eram de classe social nfima, mestios e mentalmente perturbados. Amaioria era de marinheiros, e um magote de negros e mulatos, quase todos das ndias Ocidentaisou portugueses das ilhas de Cabo Verde, dava uma tintura de vodu ao culto heterogneo. Antes,porm, que muitas perguntas fossem feitas, ficou claro que se tratava de algo muito maisprofundo e antigo do que o fetichismo negro. Degradadas e ignorantes que eram, aquelascriaturas atinham-se com surpreendente consistncia idia central de seu credo abominvel.

    Eles adoravam, segundo disseram, os Grandes Antigos, que viveram muitas eras antes daexistncia do homem e que chegaram ao recm-criado mundo vindos do cu. Esses Antigoshaviam agora desaparecido no interior da terra e sob o mar; porm, mesmo mortos, haviamtransmitido seus segredos em sonhos ao primeiro homem, que instaurou um culto que jamaismorrera. Era esse o culto que professavam, e os prisioneiros afirmaram que ele sempre existira esempre existiria, oculto em distantes locais desertos e sombrios por todo o mundo, at o tempoem que o sumo sacerdote Cthulhu, de sua escura morada na poderosa cidade de R'lyeh, sob asguas do mar, se levantasse e pusesse de novo a terra sob seu domnio. Um dia ele chamaria,quando as estrelas estivessem prontas, e o culto secreto estaria sempre espera para libert-lo.

    At l, nada mais seria dito. Havia um segredo que nem a tortura poderia extrair. Ahumanidade no estava de forma alguma sozinha entre os seres conscientes da terra, pois formas

  • saam das trevas para visitar os poucos fiis. Mas esses no eram os Grandes Antigos. Nenhumhomem jamais vira os Antigos. O dolo esculpido representava o grande Cthulhu, mas ningumpoderia dizer se os outros eram ou no exatamente como ele. Ningum era capaz hoje em dia deler a antiga escrita, porm as coisas eram transmitidas por tradio oral. O cntico ritual no erao segredo - este nunca era falado em voz alta, apenas sussurrado. O cntico significava apenasisto: "Na sua casa em R'lyeh, Cthulhu morto espera sonhando".

    Apenas dois dos prisioneiros foram considerados sos o bastante para serem enforcados;os demais foram internados em diversas instituies. Todos negaram participao nosassassinatos rituais e asseveraram que estes haviam sido obra dos Asas Negras, que tinham vindoa eles oriundos do seu imemorial ponto de encontro na floresta assombrada. Mas dessesmisteriosos aliados nenhum relato coerente pde ser obtido. A maior parte do que a polciaconseguiu averiguar veio de um mestio fabulosamente idoso chamado Castro, que afirmava terviajado a portos longnquos e falado com lderes imortais do culto nas montanhas da China.

    O velho Castro recordava-se de fragmentos de medonhas lendas que empalideciam asespeculaes dos teosofistas e faziam homem e mundo parecerem recentes e efmeros. Houvepocas em que outros Seres dominavam a terra, e Eles haviam erigido cidades colossais. Deacordo com o que os chineses imortais lhe haviam dito, vestgios desses Seres podiam ainda serencontrados nas rochas ciclpicas em ilhas do Pacfico. Todos Eles haviam morrido muitas erasantes da chegada do homem, mas havia artes capazes de faz-los reviver quando as estrelasretornassem s posies certas no ciclo da eternidade. Eles mesmos tinham vindo das estrelas etrazido consigo Suas imagens.

    Esses Grandes Antigos, prosseguiu Castro, no se compunham inteiramente de carne eossos. Tinham forma - no o provava aquela imagem talhada nas estrelas? -, mas essa forma noera feita de matria. Quando as estrelas assumiam a configurao correta, Eles podiamtransportar-se de um mundo para outro pelo espao sideral; mas quando as estrelas no eramfavorveis, Eles no podiam viver. Contudo, embora j no vivessem, Eles nuncaverdadeiramente morriam. Jaziam todos em suas moradas de pedra na grande cidade de R'lyeh,preservados pelos encantamentos do poderoso Cthulhu para uma gloriosa ressurreio quando asestrelas e a terra estivessem mais uma vez prontas para Eles. Chegado esse tempo, porm, algumafora exterior precisaria liberar Seus corpos. Os encantamentos que Os preservavam intactostambm Os impediam de fazer o movimento inicial, e tudo que podiam fazer era ficar despertosnas trevas e meditar, enquanto milhes de anos se escoavam. Sabiam de tudo o que acontecia nouniverso, pois comunicavam-se por telepatia. Mesmo naquele instante conversavam em Suastumbas. Quando, aps infindveis eras de caos o primeiro homem surgiu, os Grandes Antigosfalaram aos mais sensveis dentre eles dando forma aos seus sonhos, pois s assim Sua linguagemconseguia alcanar as mentes carnosas dos mamferos.

    Em seguida, sussurrou Castro, aqueles primeiros homens formaram o culto ao redor depequenos dolos que os Grandes lhes haviam mostrado, dolos trazidos de estrelas sombrias nanoite dos tempos. Aquele culto jamais morreria at que as estrelas ficassem propcias de novo, eento os sacerdotes secretos tirariam o grande Cthulhu da Sua tumba para que Este fizessereviver os Seus sditos e retomasse o Seu domnio sobre a terra. O tempo seria fcil dereconhecer, pois por essa poca a humanidade j teria se tornado como os Grandes Antigos:

  • livres, selvagens, alm do bem e do mal, ignorando leis e preceitos morais, com todo mundogritando, matando e farreando em meio a feroz alegria. Ento os Antigos, libertados, ensinar-lhes-iam novas formas de berrar e matar e farrear com alegria desenfreada, e toda a terra seinflamaria num holocausto de xtase e liberdade. At l, cabia ao culto, mediante ritosapropriados, manter viva a memria daqueles procedimentos antediluvianos e prefigurar aprofecia da volta d'Eles.

    Em priscas eras homens eleitos haviam falado com os sepultados Antigos em sonhos, masento algo acontecera: a grande cidade de pedra de R'lyeh, com seus monlitos e sepulcros,afundara sob as ondas, e as guas profundas, repletas do nico mistrio primordial que nem opensamento pode atravessar, haviam interrompido o intercmbio espectral. Mas a memria nuncamorreu, e os sumos sacerdotes diziam que a cidade emergiria de novo quando as estrelas sealinhassem corretamente. Ento vieram das profundezas da terra os seus espritos negros,bolorentos e trevosos, cheios de rumores ancestrais colhidos em cavernas sob esquecidos leitosocenicos. Mas deles o velho Castro no ousou falar muito. Calou-se apressadamente, e nohouve persuaso ou sutileza capaz de extrair-lhe mais informaes sobre o assunto.Curiosamente, evitou tambm mencionar o tamanho dos Antigos. A respeito do culto, afirmoucrer que sua sede ficava nos desertos inacessveis da Arbia, onde Irem, a Cidade dos Pilares,sonha oculta e intacta. No tinha relao com os cultos de bruxaria europeus e, exceto por seusmembros, era virtualmente desconhecido. Nenhum livro jamais aludiu diretamente a ele, emboraos chineses imortais dissessem que havia duplos sentidos no Necronomicon, do rabe loucoAbdul Alhazred, que os iniciados poderiam interpretar como quisessem, especialmente opolmico dstico:

    No est morto o que pode eternamente jazer, E com estranhas eras pode at a mortemorrer.

    Legrasse, bastante impressionado e no pouco estupefato, havia investigado em vo sobreas afiliaes histricas do culto. Aparentemente Castro dissera a verdade ao afirmar que eratotalmente secreto. As autoridades da Universidade de Tulane no puderam dar esclarecimentoalgum tanto a respeito do culto quanto da imagem, e agora o detetive viera consultar as maioresautoridades do pas, sem nada obter alm da estria da Groenlndia contada pelo professorWebb.

    O interesse febril despertado na reunio por Legrasse e sua narrativa, corroborada pelaestatueta, encontra eco na subseqente correspondncia dos que estavam presentes, embora hajaescassa meno ao incidente na publicao formal da sociedade. Cautela a preocupao mximadaqueles que esto acostumados charlatanice e impostura ocasionais. Legrasse emprestou aimagem por algum tempo ao professor Webb, mas com a morte deste, foi-lhe devolvida e com elepermanecia quando a vi, no faz muito tempo. uma coisa verdadeiramente medonha, einequivocamente aparentada escultura sonhada e esculpida pelo jovem Wilcox.

    No me surpreendeu que a narrativa do escultor tivesse alvoroado o meu tio, pois queidias poderiam ocorrer-lhe, aps saber o que Legrasse descobrira sobre o culto, ao ouvir umrapaz sensvel dizer-lhe que sonhara no somente a figura e os hierglifos exatos da imagemencontrada no pntano e do demonaco baixo-relevo da Groenlndia, como tambm escutara em

  • seus sonhos pelo menos trs das palavras precisas da frmula emitida tanto pelos diabolistasesquims quanto pelos mestios da Louisiana? Foi a coisa mais natural que o professor Angelliniciasse uma investigao aprofundada, ainda que eu privadamente suspeitasse que o jovemWilcox ouvira falar do culto de maneira indireta e tivesse inventado uma srie de sonhos paraintensificar e manter o mistrio, s custas do meu tio. As narrativas de sonhos e os recortescoletados pelo professor eram, claro, forte corroborao; mas o meu racionalismo e aextravagncia da coisa toda levaram-me a adotar o que julguei ser a concluso mais sensata.Assim, depois de estudar detidamente o manuscrito mais uma vez e de correlacionar as anotaesteosficas e antropolgicas na narrativa feita por Legrasse sobre o culto, fiz uma viagem aProvidence para ver o escultor e repreend-lo devidamente por divertir-se s custas de umhomem letrado e idoso.

    Wilcox ainda vivia sozinho no edifcio Fleur-de-Lys, na Rua Thomas, uma hediondaimitao vitoriana da arquitetura bret do sculo xv1, que pavoneia sua fachada de estuque emmeio s lindas casas coloniais na antiga colina, e sombra do mais esplndido campanriogeorgiano dos Estados Unidos. Encontrei-o trabalhando em seus aposentos, e de imediatoconstatei, a julgar pelas suas peas espalhadas, que seu talento era de fato profundo e original.Acredito que um dia ele ser aclamado como um dos grandes decadentistas, pois cristalizou naargila e um dia refletir no mrmore os pesadelos e fantasias que Arthur Machen evoca na prosa eClark Ashton Smith torna visvel no verso e na pintura.

    Moreno, franzino e de aspecto algo desleixado, ele se voltou languidamente ao me ouvirbater porta e, sem se levantar, perguntou-me a que vinha. Quando eu lhe disse quem eu era, eledemonstrou certo interesse; pois meu tio despertara-lhe a curiosidade ao investigar seus sonhosestranhos, embora nunca tivesse explicado a razo do seu interesse. Eu tampouco expliquei, masprocurei sutilmente fazer com que se abrisse comigo.

    Em pouco tempo fiquei convencido da sua absoluta sinceridade, pois falou nos sonhos deum modo inequvoco. Os sonhos e o resduo subconsciente deles haviam influenciadoprofundamente a sua arte, e ele me mostrou uma esttua mrbida cujos contornos quase mefizeram estremecer com a fora de seu poder de negra evocao. No se lembrava de ter visto ooriginal daquilo, exceto no seu prprio baixo-relevo onrico, mas os contornos haviam-seformado insensivelmente sob suas mos. Era, sem dvida, o vulto gigantesco que ele entrevira noseu delrio. Deixou claro nada saber sobre o culto secreto, salvo o que o infatigvel interrogatriodo meu tio deixara escapar; e de novo me esforcei por imaginar algum modo pelo qual elepudesse ter recebido as estranhas impresses.

    Falou de seus sonhos num modo estranhamente potico, fazendo-me ver com assustadoranitidez a mida cidade ciclpica de lodosa pedra verde (cuja geometria, ele enfatizousingularmente, estava "toda errada") e escutar com apavorada expectativa a evocao incessante equase mental oriunda do subterrneo da terra: "Cthulhu fhtagn", "Cthulhu lhtagn".

    Essas palavras tinham feito parte daquele ritual macabro que falava do morto Cthulhu espera, sonhando, na sua tumba de pedra em R'lyeh, e senti-me profundamente abalado, apesardo meu racionalismo. Eu tinha certeza de que Wilcox ouvira falar no culto por acaso, mas logose esquecera dele em meio massa de suas leituras e imaginao igualmente bizarras. Mais tarde,

  • em virtude da impressionabilidade do moo, a lembrana achara expresso subconsciente emsonhos, no baixo-relevo e na medonha esttua que eu agora via, de modo que sua imposturasobre o meu tio fora totalmente inocente. O rapaz, ao mesmo tempo meio afetado e ligeiramentemal-educado, no era do tipo que eu jamais poderia vir a gostar; mas eu estava ao menos dispostoa reconhecer tanto o seu gnio quanto a sua honestidade. Despedi-me dele amigavelmente,desejando-lhe todo o sucesso que seu talento promete.

    A questo do culto continuava a me fascinar, e s vezes eu tinha vises de fama pessoalobtida graas a pesquisas sobre sua origem e conexes. Visitei Nova Orleans, conversei comLegrasse e outros participantes da batida policial, vi a monstruosa imagem e at entrevistei algunsprisioneiros mestios ainda vivos; o velho Castro, infelizmente, j morrera havia alguns anos. Oque ouvi ento, de forma to ntida e em primeira mo, embora no fosse mais que umaconfirmao detalhada daquilo que meu tio escrevera, voltou a me estimular, pois tive a certezade estar na pista de uma religio muito real, muito secreta e muito antiga, cuja descoberta faria demim um antroplogo de renome. Minha atitude era ainda de absoluto materialismo, comogostaria que ainda fosse, e descartei com inexplicvel m vontade a coincidncia entre os relatosde sonhos e os esquisitos recortes colecionados pelo professor Angell.

    Uma coisa que comecei a suspeitar e que agora infelizmente eu sei; que a morte do meutio nada teve de natural. Ele caiu de uma ladeira estreita que saa de um antigo cais repleto demestios estrangeiros, aps um descuidado empurro de um marinheiro negro. No esqueci osangue misto e atividades navais dos membros do culto na Louisiana, e no me surpreenderia seviesse a ouvir falar de mtodos secretos e agulhas envenenadas to implacveis e antigas quantoos rituais e credos crpticos. verdade que Legrasse e seus homens foram deixados em paz; masna Noruega, um certo homem do mar, que viu coisas, morreu. Ser que as investigaes maisprofundas do meu tio, aps o encontro com o escultor, no poderiam ter chegado a ouvidossinistros? Eu acho que o professor Angell morreu porque sabia demais ou estava prestes a saberdemais. Se terei o mesmo fim que ele, o que me resta saber, pois agora eu tambm sei demais.

    III. A LOUCURA QUE VEIO DO MARSe aprouver aos cus conceder-me algum dia uma bno, pedirei que seja o esquecimento

    total dos resultados do mero acaso que fixou meus olhos num certo pedao perdido de papel queforrava uma prateleira. No era algo com que eu normalmente tropearia no curso da minharotina diria, pois tratava-se de um velho nmero de um jornal australiano, o Sydney Bulletin, de18 de abril de 1925. A notcia escapara at mesmo ao escritrio de recortes que, na poca de suapublicao, coletava avidamente material para a pesquisa do meu tio.

    Eu havia praticamente deixado de lado minhas investigaes sobre o que o professorAngell chamava "Culto de Cthulhu", e estava visitando um letrado amigo em Paterson, NovaJersey, curador de um museu local e renomado mineralogista. Um dia, examinando amostras dereserva colocadas desordenadamente sobre as prateleiras de uma sala nos fundos do museu, meuolhar foi atrado por uma estranha gravura num dos velhos jornais espalhados debaixo daspedras. Era o exemplar do Sydney Bulletin a que me referi, pois meu amigo tinha amplas ligaesem todos os pases imaginveis; e a figura era uma litografia de uma horrorosa estatueta de pedraquase idntica que Legrasse encontrara no pntano.

  • Ansiosamente afastando da folha de jornal os preciosos espcimes minerais, estudei anotcia detalhadamente, mas fiquei desapontado ao ver que no era muito extensa. O que sugeria,no entanto, era de imensa importncia para minha investigao algo desalentada, e rasgueicuidadosamente o recorte a fim de empreender ao imediata. Dizia o seguinte:

    NAVIO ABANDONADO ENCONTRADO NO MARVigilant chega rebocando iate neozelands armado e avariado. Encontrados a bordo um sobrevivente e

    um morto. Estria de batalha desesperada e mortes em alto-mar. Marinheiro salvo recusa-se a dar detalhes daestranha experincia. Misterioso dolo achado em seu poder. Ser aberto Inqurito.

    O cargueiro da Morrison Co., Vigilant, proveniente de Valparaso, atracou esta manh noporto de Darling, trazendo a reboque o avariado e inutilizado, mas fortemente armado, iate avapor Alert, com matrcula de Dunedin, N. Z., que fora avistado no dia 12 de abril na latitude sul34 21', longitude oeste 152 17', com um homem vivo e um morto a bordo.

    O Vigilant deixou Valparaso a 25 de maro e, no dia 2 de abril, sua rota foiconsideravelmente desviada para sul por fortssimas tempestades e ondas monstruosas. Em 12 deabril foi avistado o barco deriva, e embora aparentemente abandonado pela tripulao, foramencontrados a bordo um sobrevivente em estado de semi-delrio e um homem com evidncias deestar morto h mais de uma semana.

    O sobrevivente agarrava um horrvel dolo de pedra de origem desconhecida e cerca deum p de altura, a respeito de cuja natureza as autoridades da Universidade de Sydney, da RoyalSociety e do Museu de College Street confessaram a mais absoluta ignorncia, e que osobrevivente afirma ter encontrado na cabina do iate, num pequeno relicrio esculpido, deformato comum.

    Aps recuperar a conscincia, esse homem narrou uma estria excessivamente estranha depirataria e chacina. Seu nome Gustaf Johansen, noruegus de alguma instruo, e servira comosegundo-oficial da escuna Emma, de Auckland, que zarpou de Callao a 20 de fevereiro, comtripulao de onze homens.

    A Emma, disse ele, foi retardada e largamente desviada de seu curso na direo sul pelagrande tempestade de 1 de maro; no dia 22 desse ms, na latitude sul 49 51' e longitude oeste128 34', encontrou o Alert, tripulado por um esquisito e mal-encarado grupo de canacas emestios. Recebendo ordem peremptria de voltar, o capito Collins recusou-se, ao que oestranho grupo abriu fogo violentamente e sem aviso sobre a escuna, com uma bateriapeculiarmente pesada de canhes de bronze que faziam parte do equipamento do iate.

    Os homens da Emma reagiram, prosseguiu o sobrevivente, e embora a escuna comeasse aafundar devido a tiros que a atingiram abaixo da linha de flutuao, conseguiram abordar aembarcao inimiga e lutar corpo a corpo com os selvagens sobre o convs do iate, sendoforados a mat-los todos, o nmero destes sendo ligeiramente maior, por causa de seu modoferoz e desesperado, ainda que despreparado, de lutar.

    Trs homens da Emma, incluindo o capito Collins e o primeiro-oficial Green, forammortos, e os oito restantes, sob comando do segundo-oficial Johansen, prosseguiram viagem noiate capturado, seguindo na direo original a fim de constatar se havia alguma razo para a

  • ordem de retornar que tinham recebido.No dia seguinte, ao que parece, desembarcaram numa pequena ilha, embora no conste a

    existncia de ilha alguma naquela parte do oceano. Seis homens morreram em terra, ainda queJohansen seja estranhamente reticente sobre essa parte da estria, limitando-se a afirmar quecaram num abismo rochoso.

    Parece que mais tarde ele e um companheiro voltaram ao iate e tentaram prosseguirviagem, mas foram atingidos pela tempestade do dia 2 de abril.

    A partir desse dia at seu resgate no dia 12, o homem se lembra de pouca coisa, e no serecorda sequer de quando William Briden, seu companheiro, morreu. A morte de Briden norevela causa aparente e provavelmente deveu-se a choque emocional ou exposio contnua sintempries.

    Notcias recebidas de Dunedin informam que o Alert era bem conhecido por l comonavegador de cabotagem e que gozava de m reputao nos meios martimos. Era de propriedadede um curioso grupo de mestios cujas freqentes reunies e viagens noturnas aos bosquesdespertavam considervel curiosidade; zarpara com grande pressa logo depois da tempestade edos tremores de terra de 1 de marco.

    Nosso correspondente em Auckland atribui Emma e sua tripulao uma reputaoexcelente, e Johansen descrito como homem sbrio e valoroso.

    Amanh o almirantado abrir inqurito sobre o incidente, no qual sero feitos todos osesforos para induzir Johansen a falar mais do que at o momento.

    Isso era tudo, juntamente com a foto da imagem infernal; mas que sucesso de idiasdesencadeou na minha mente! Aqui estavam novos tesouros de informao sobre o Culto deCthulhu, bem como evidncias de que possua estranhos interesses no mar tanto quanto em terra.Que motivo levara a tripulao de mestios a ordenar o retorno da Emma enquanto navegavamcom aquele medonho dolo? Qual era a ilha desconhecida onde seis membros da tripulao daEmma haviam morrido e sobre a qual o imediato Johansen guardava tanto segredo? O quehaveria descoberto a investigao do almirantado e o que se saberia em Dunedin sobre aqueleculto nefasto? E o mais surpreendente de tudo: que profunda e sobrenatural ligao de datas eraessa que dava um significado maligno e agora inegvel aos vrios episdios to cuidadosamenteanotados por meu tio?

    A 1 de maro (nosso 28 de fevereiro, segundo a hora do meridiano de Greenwich) haviamocorrido o terremoto e a tempestade. De Dunedin o Alert e sua revoltante tripulao haviamzarpado ansiosamente, como se atendessem a um imperioso chamado, enquanto do outro lado daterra poetas e artistas haviam comeado a sonhar com uma estranha e lodosa cidade ciclpica, eum jovem escultor moldara durante o sono a forma do temvel Cthulhu. A 23 de maro atripulao da Emma desembarcava numa ilha desconhecida, deixando ali seis mortos; e na mesmadata os sonhos de homens sensveis assumiam grande nitidez e se ensombreciam com o pavor daperseguio maligna de um monstro gigantesco, ao passo que um arquiteto enlouquecia e umescultor mergulhava repentinamente em total delrio! E o que dizer daquela tempestade de 2 deabril - data em que cessaram todos os sonhos da cidade lodosa e Wilcox emergiu inclume docativeiro de sua estranha febre? O que dizer de tudo isso e das aluses do velho Castro sobre os

  • Antigos, submersos filhos das estrelas cujo reinado estava prximo, do fervoroso culto que lhesera dedicado e do domnio que tenham sobre os sonhos? Estaria eu cambaleando beira dehorrores csmicos alm da capacidade humana de suport-los? Se assim fosse, deveriam serhorrores apenas da mente, pois de alguma forma o dia 2 de abril pusera fim a qualquer ameaamonstruosa que iniciara seu assdio contra a alma da humanidade.

    Naquela noite, aps um dia inteiro de telegramas apressados e tomada de providncias,despedi-me do meu anfitrio e embarquei num trem para So Francisco. Em menos de um msestava em Dunedin, onde, contudo, descobri que pouco se sabia acerca dos estranhos membrosdo culto que haviam freqentado as velhas tavernas do cais. A ral do porto era comum demaispara fazer jus a qualquer meno especial, embora se falasse vagamente sobre uma excurso terraadentro que aqueles mestios haviam feito, e durante a qual tnues batidas de tambor e labaredasvermelhas nas colinas distantes tinham-se feito notar.

    Em Auckland soube que Johansen havia retornado com os cabelos loiros totalmentebrancos aps um interrogatrio superficial e inconcludente em Sydney, e que depois vendera suapequena casa na Rua Oeste e zarpara com a esposa para seu antigo lar em Oslo. Nem aos seusamigos quis contar sobre a sua eletrizante experincia mais do que contara aos oficiais doalmirantado, e o mximo que puderam fazer foi dar-me o endereo dele em Oslo.

    Depois disso fui a Sydney e conversei sem proveito algum com marinheiros e integrantesdo tribunal martimo. Vi o Alert, agora vendido e sendo usado como cargueiro no Cais Circular,em Sydney Cove, mas nada ganhei com a visita neutra embarcao. A imagem agachada, comsua cabea de polvo, corpo de drago, asas escamosas e pedestal coberto de hierglifos eraconservada no Museu de Hyde Park, e eu a estudei detidamente, constatando ser obra derematada e artstica malignidade, dotada do mesmo mistrio profundo, assustadora antigidade eestranheza aliengena de material que eu observara no espcime menor de Legrasse. O curadorme contou que os gelogos consideravam-na um monstruoso enigma, pois juravam no haver nomundo rocha igual quela. Ento me lembrei, com um calafrio, do que o velho Castro dissera aLegrasse sobre os primordiais Grandes: "Tinham vindo das estrelas, trazendo consigo Suasimagens".

    Abalado por uma revoluo mental como nunca experimentara antes, resolvi visitar oimediato Johansen em Oslo. Embarcando rumo a Londres, mal cheguei l e tomei imediatamenteum navio para a capital norueguesa, onde desembarquei em um dia de outono nos bem cuidadoscais sombra do Egeberg.

    O endereo de Johansen, segundo apurei, ficava na Cidade Velha do rei HaroldHaardrada, o bairro que manteve vivo o nome de Oslo durante os sculos em que a capitalmascarou-se sob o nome de "Cristinia". Fiz o breve trajeto de txi, e foi com o coraopalpitante que bati porta de um antigo e belo edifcio com fachada de estuque. Atendeu-meuma mulher de rosto triste vestida de preto, e a decepo se abateu sobre mim quando ela meinformou, num ingls trpego, que Gustaf Johansen havia morrido.

    Ele no sobrevivera muito tempo aps o seu regresso, contou-me sua viva, pois osacontecimentos no mar em 1925 haviam-no al quebrado. Johansen no contara esposa mais doque contara ao pblico, porm deixara um longo manuscrito - sobre "assuntos tcnicos", segundo

  • disse - escrito em ingls, com o propsito evidente de salvaguard-la do perigo de uma leituracasual. Durante um passeio por uma vi ela estreita prxima s docas de Gothenburg, foraderrubado por um pesado fardo de jornais cado da janela de um sto. Dois marinheiros deLascar imediatamente ajudaram-no a levantar-se, mas antes que a ambulncia chegasse, ele jestava morto. Os mdicos no encontraram causa especfica para o bito, atribuindo-o aproblemas cardacos e constituio debilitada.

    Senti ento remoer-me as entranhas aquele obscuro terror que nunca mais me deixar atque eu tambm venha a repousar, "acidentalmente" ou de outra forma. Tendo persuadido a vivade que minha ligao com os "assuntos tcnicos" de seu marido davam-me direito ao manuscrito,levei o documento comigo e comecei a l-lo no navio de volta a Londres.

    A redao era simples e sem elegncia de estilo - tentativa de marinheiro ingnuo decompor um dirio a posteriri - e procurava reconstituir, dia a dia, aquela ltima e fatdicaviagem. No h por que transcrev-lo na ntegra com toda a sua ilegibilidade e redundncias, masnarrarei o essencial do seu contedo para mostrar por que o barulho da gua contra o casco donavio tornou-se to insuportvel para mim que tampei meus ouvidos com algodo.

    Johansen, graas a Deus, no sabia de tudo, mesmo tendo visto a cidade e a Coisa, masnunca voltarei a dormir calmamente de novo ao pensar nos horrores que espreitamincessantemente a vida no tempo e no espao, e naquelas mpias blasfmias oriundas deimemoriais estrelas que sonham nas profundezas do mar, conhecidas e adoradas por um culto depesadelo pronto e ansioso por solt-las sobre o mundo assim que outro terremoto traga de novo tona sua monstruosa cidade de pedra.

    A viagem de Johansen havia comeado exatamente como ele contou ao almirantado. Aescuna Emma, com lastro, deixara Auckland a 20 de fevereiro, e sentira toda a fora datempestade causada pelo terremoto que deve ter feito emergir os horrores que preencheram ossonhos de tantos homens. Recuperado o controle da embarcao, esta prosseguia normalmentequando foi abordada pelo Alert a 22 de maro, e pude sentir a tristeza do imediato ao descrever obombardeio e afundamento do seu barco. Dos satanistas trigueiros do Alert ele fala comsignificativo horror. Havia neles algo de peculiarmente abominvel que fazia com que a suadestruio parecesse quase um dever, e Johansen demonstra ingnua surpresa frente acusaode desumanidade levantada contra o seu grupo durante os trabalhos da corte de inqurito. Ento,levados adiante pela curiosidade no iate capturado, sob o comando de Johansen, os homensavistaram uma enorme coluna de pedra que se projetava fora do mar, e na latitude sul 47 9' elongitude oeste 126 43', deram com um litoral de lama, lodo e alvenaria ciclpica coberta demusgo que no podia ser outra coisa seno a substncia tangvel do supremo terror do planeta - acadavrica cidade-pesadelo de R'lyeh, construda h incontveis eras antes da Histria pelosgigantescos e nefastos vultos procedentes das estrelas sem luz. Ali jaziam o grande Cthulhu esuas hordas, ocultos em verdes criptas lodosas de onde finalmente, aps ciclos incalculveis,emitiam os pensamentos que infundem medo nos sonhos dos sensveis e conclamamimperiosamente os fiis a uma peregrinao de libertao e restaurao. Johansen nada suspeitavasobre isso, mas Deus sabe que ele logo veria o bastante!

    Suponho que apenas o cume de uma montanha, a revoltante cidadela coroada por ummonlito, onde estava sepultado o grande Cthulhu, emergiu verdadeiramente das guas. Quando

  • penso na extenso de tudo o que pode estar espreita l embaixo, quase tenho vontade de mematar de uma vez. Johansen e seus homens estavam boquiabertos perante a csmica majestadedaquela gotejante Babilnia de demnios ancestrais, e devem ter adivinhado, sem maiororientao, que no se tratava de nada proveniente deste ou de qualquer planeta so. Perplexotemor diante do incrvel tamanho dos blocos de pedra esverdeados, da estonteante altura dogrande monlito esculpido e da assombrosa identidade entre as colossais esttuas e baixos-relevose a esdrxula imagem encontrada no relicrio do Alert, flagrante em cada linha da assustadadescrio do imediato.

    Sem ter qualquer noo da escola artstica a que se d o nome de futurismo, Johansenchegou a algo muito prximo quando falou sobre a cidade; pois, ao invs de descrever qualquerestrutura ou edifcio definidos, ele se refere apenas s amplas impresses de vastos ngulos esuperfcies de pedra superfcies grandes demais para pertencer a qualquer coisa correta ouapropriada nesta terra, e mpias com aquelas horrveis imagens e hierglifos. Menciono a alusodele a ngulos porque sugere algo que Wilcox me dissera sobre seus arrepiantes sonhos; ele haviadito que a geometria do local do sonho era anormal, no-euclidiana, e perturbadoramente repletade esferas e dimenses alheias s nossas. Agora um marujo iletrado sentia a mesma coisaencarando a terrvel realidade.

    Johansen e seus homens desembarcaram numa lamacenta encosta daquela monstruosaacrpole, e galgaram com dificuldade os titnicos blocos escorregadios que no poderiam seruma escada para mortais. No cu, o prprio sol parecia distorcido quando visto atravs domiasma polarizador que subia daquela perverso encharcada de mar, e uma serpenteante ameaae suspense pareciam espreitar de soslaio naqueles insanamente ilusrios ngulos de rocha talhada,onde um segundo olhar mostrava concavidade aps o primeiro ter mostrado convexidade.

    Algo muito prximo ao pavor j sobreviera a todos os exploradores antes que coisa maisdefinida do que pedra, lodo e algas fosse vista. Cada um deles teria fugido se no temesse azombaria dos demais, e foi com entusiasmo mnimo que procuraram - em vo, como se veria -alguma pequena lembrana para levar consigo.

    Foi Rodrigues, o portugus, que galgou o p do monlito e gritou o que havia encontrado.Os demais seguiram-no e olharam cheios de curiosidade a imensa porta esculpida com o jfamiliar baixo relevo da lula-drago. Segundo Johansen, era como uma enorme porta de celeiro; etodos julgaram ser uma porta devido ao dintel, umbral e batente ornamentados em volta, emborano conseguissem determinar se era plana como um alapo ou oblqua como uma porta externade poro. Como Wilcox diria, a geometria daquele lugar era toda errada. No se podia ter certezade que o mar e a terra fossem horizontais, da a posio relativa de tudo o mais parecerfantasmagoricamente varivel.

    Briden empurrou a pedra em diversos lugares, sem resultado. Em seguida Donovan tateoudelicadamente as beiradas, pressionando cada ponto em separado. Escalou interminavelmente agrotesca cornija de pedra - isto , diramos "escalar" se a coisa no fosse mesmo horizontal -enquanto os homens se perguntavam, atnitos, corno alguma porta no universo poderia ser tovasta. Ento, muito devagar e suavemente, o painel de meio hectare de extenso ps-se a cederpara dentro na parte de cima, ao que puderam constatar que estava equilibrada.

  • Donovan deslizou ou de alguma forma propulsou-se para baixo ou ao longo do batente eveio juntar-se aos companheiros, e todos assistiram estranha recesso do portalmonstruosamente esculpido. Naquela fantasia de distoro prismtica, ele se moviaanomalamente em sentido diagonal, subvertendo todas as regras da matria e da perspectiva.

    A abertura era negra, de uma escurido quase palpvel. Aquela tenebrosidade tinha, comefeito, uma qualidade positiva, pois escurecia partes das paredes internas que deveriam estarclaras, e na verdade se evolava como fumaa de seu imemorial aprisionamento, visivelmenteeclipsando o sol medida em que se esquivava pelo cu encolhido e convexo com esvoaantesasas membranosas. O fedor que subiu das recm-abertas profundezas era insuportvel, e logodepois Hawkins, que tinha ouvido apurado, julgou captar um asqueroso chapinhar vindo l debaixo. Todos ficaram atentos, e continuavam atentos quando Aquilo assomou babosamente vista e, s apalpadelas, espremeu Sua gelatinosa imensido verde atravs da passagem negra parafora, ganhando o ar contaminado daquela peonhenta cidade de loucura.

    A caligrafia do pobre Johansen quase cedeu ao escrever essa parte. Dos seis homens queno voltaram ao navio, ele acha que dois morreram de puro pavor naquele instante amaldioado.A Coisa no pode ser descrita - no existem palavras capazes de expressar tais abismos de loucuraestridente e imemorial, tais contradies aliengenas de toda matria, fora e harmonia csmica.Uma montanha caminhava, ou cambaleava! Deus! No admira que do outro lado da terra umgrande arquiteto enlouquecesse e o pobre Wilcox delirasse de febre naquele instante teleptico! ACriatura dos dolos, o verde e pegajoso rebento das estrelas, despertara para reclamar o que eraseu. As estrelas estavam novamente alinhadas, e o que um culto milenar falhara em fazer por f,um bando de marinheiros inocentes fizera por acaso. Aps trilhes de anos, o grande Cthulhuestava solto mais uma vez, e vido de prazer.

    Trs homens foram varridos pelas flcidas garras antes que algum pudesse se voltar parafugir. Que descansem em paz, se que h algum descanso no universo. Foram eles Donovan,Guerrera e Angstrom. Parker escorregou enquanto os outros trs disparavam freneticamentesobre panoramas interminveis de rocha esverdeada rumo ao bote, e Johansen jura que ele foitragado por um ngulo de alvenaria que no devia estar l, um ngulo que, sendo agudo,comportava-se como se fosse obtuso. De modo que somente Briden e Johansen alcanaram obote, e remaram desesperadamente para o Alert enquanto a montanhosa monstruosidade desciadesajeitadamente pelas pedras limosas e hesitava, cambaleante, beira d'gua.

    O vapor continuava a sair do iate a despeito da sada de todos os homens para a praia,portanto bastou alguns momentos de febril corre-corre entre rodas e motores para fazer o Alertpartir. Lentamente, em meio aos horrores distorcidos daquele indescritvel e infernal cenrio, oiate comeou a singrar as guas mortferas, enquanto sobre as pedras lavradas daquela praiasepulcral que no pertencia a este planeta, a Coisa titnica vinda das estrelas espumava e vozeavacomo Polifemo praguejando contra o navio de Odisseu em fuga. Ento, mais ousado que olendrio ciclope, o grande Cthulhu deslizou oleosamente para dentro d'gua e comeou aperseguir o iate, erguendo ondas com suas braadas de potncia csmica. Briden olhou para trs eenlouqueceu, com ocasionais acessos de riso, at que a morte foi encontr-lo certa noite nacabina, enquanto Johansen errava pelo convs a delirar.

  • Mas Johansen ainda no se rendera. Sabendo que a Coisa alcanaria facilmente o Alertantes que o vapor atingisse a presso mxima, optou por uma sada desesperada: regulando omotor para velocidade total, correu como um raio ao convs e reverteu o timo. O mar cobriu-sede remoinhos e espuma, e enquanto o vapor subia cada vez mais, o valente noruegus dirigiu anave contra a abominao gelatinosa que o perseguia erguendo-se das imundas ondas espumantescomo o castelo de popa de um galeo demonaco. A medonha cabea de polvo com tentculosretorcendo-se chegava quase altura do gurups do resoluto iate, mas Johansen prosseguiuinabalavelmente.

    Houve um estouro como o de uma bexiga rebentando, o derrame de uma nojeiralamacenta como a que jorra de um peixe-lua partido, um fedor como de mil sepulturas abrindo-se de chofre e um som que o cronista negou-se a registrar. Por um instante o barco foiemporcalhado por uma nuvem verde, acre e cegante, e logo depois havia apenas umempeonhado fervilhar r, onde - Deus do Cu! a espalhada plasticidade daquele inominvelrebento sideral estava nebulosamente recompondo-se na sua execrvel forma original,distanciando-se cada vez mais medida em que o Alert ganhava velocidade de seu vaporascendente.

    Isso foi tudo. Depois disso Johansen limitou-se a contemplar o dolo na cabina e aprovidenciar comida para si e para o manaco risonho do seu lado. No tentou navegar depoisdaquela faanha, pois a experincia como que lhe esvaziara a alma. Sobreveio ento a tempestadede 2 de abril e uma concentrao de nuvens que lhe obscureceram a conscincia. Teve umasensao de turbilho espectral por lquidos golfos de infinito, de Jornadas estupefacientesatravs de universos giratrios numa cauda de cometa, e de mergulhos histricos das profundezasdo inferno at a lua e da lua de volta s profundezas do inferno, tudo isso animado por um corogargalhante dos deuses ancestrais, disformes e hilrios, e dos zombeteiros demnios do Trtaro,verdes e com asas de morcego.

    Sado desse sonho veio o socorro - o Vigilant, a corte do almirantado, as ruas de Dunedine a longa viagem de volta ao lar, velha casa s margens do Egeberg. No podia falar nada - t-lo-iam julgado louco. Ele haveria de escrever o que sabia antes que a morte chegasse, mas eranecessrio que sua esposa de nada desconfiasse. A morte viria como uma bno se ao menosobliterasse as lembranas.

    Esse foi o documento que eu li, e que ento coloquei na caixa de metal junto com o baixo-relevo e os papis do professor Angell. A eles acrescentarei este meu relato -prova da minhasanidade, no qual reuni as peas de algo que, espero, nunca mais ningum volte a decifrar. Vitudo o que o universo pode conter de horror, e depois disso at mesmo os cus primaveris e asflores de vero sero veneno para mim. Mas no creio que minha vida ser longa. Como meu tiose foi, como o pobre Johansen se foi, tambm eu irei. Sei demais, e o culto ainda vive.

    Cthulhu tambm vive ainda, acredito, naquele precipcio de pedra que o vem abrigandodesde a infncia do sol. Sua amaldioada cidade tornou a afundar, pois o Vigilant percorreuaquela regio aps a tempestade de abril; mas seus adoradores na terra ainda urram, saltam ematam ao redor de dolos sobre monlitos em locais ermos e solitrios.

    Ele deve ter sido surpreendido pelo afundamento quando se achava no seu abismo negro,

  • do contrrio o mundo inteiro estaria agora berrando de pavor e frenesi. Quem sabe qual ser ofinal? O que emergiu pode afundar, e o que afundou pode emergir. A repugnncia supremaaguarda sonhando nas profundezas e a podrido paira sobre as precrias cidades dos homens. Otempo vir... mas no devo, nem posso pensar! S me resta a esperana de que, se eu nosobreviver a este manuscrito, meus testamenteiros tenham mais precauo que audcia e impeamque outros olhos o vejam.

    * * *

  • O Caso de Charles Dexter Ward

  • CaptuloUmUM RESULTADO E UM PRLOGO

    1DE UM HOSPITAL particular para doentes mentais, nas proximidades de Providence,

    em Rhode Island, desapareceu h pouco tempo uma pessoa extraordinariamente singular.Chamava-se Charles Dexter Ward e fora internado com grande relutncia do pai, o qual,pesaroso, vira sua aberrao transformar-se de mera excentricidade numa lgubre obsesso queimplicava a possibilidade de tendncias assassinas e uma mudana peculiar de sua estruturamental. Os mdicos confessam-se bastante desconcertados com seu caso, pois apresentasingularidades de carter fisiolgico geral e, ao mesmo tempo, psicolgico.

    Em primeiro lugar, o paciente parecia estranhamente mais velho do que atestavam seusvinte e seis anos. verdade que uma perturbao mental faz uma pessoa envelhecer depressa,mas o rosto desse jovem assumira uma aparncia grcil que s os muito idosos normalmenteadquirem. Em segundo lugar, seus processos orgnicos mostravam uma certa estranheza depropores que no encontrava paralelo na experincia mdica. A respirao e o funcionamentocardaco tinham uma desconcertante falta de simetria, a voz sumira, a ponto de lhe ser impossvelemitir qualquer som mais alto do que um sussurro, a digesto era incrivelmente prolongada ereduzida ao mnimo, e as reaes nervosas aos estmulos comuns no tinham qualquer relaocom tudo o que, normal ou patolgico, fora antes registrado no passado. A pele eramorbidamente fria e a estrutura celular do tecido parecia exageradamente spera e frouxa. Atuma marca de nascena, grande e cor de oliva sobre o quadril direito, havia desaparecido e, aomesmo tempo, formara-se sobre seu peito uma verruga muito peculiar, uma mancha enegrecida,da qual no havia sinal antes. Em geral, todos os mdicos concordam que em Ward os processosmetablicos estavam retardados num grau inusitado.

    Do ponto de vista psicolgico, Charles Ward era singular. Sua loucura no tinha nenhumaafinidade com qualquer caso j registrado, inclusive nos tratados mais recentes e abrangentes, e secombinava a uma energia mental que o tornaria um gnio ou um lder no tivesse degenerado emformas estranhas e grotescas. O doutor Willett, o mdico da famlia Ward, afirma que toda acapacidade mental do paciente, a julgar por sua reao s questes externas esfera de suainsanidade, em realidade aumentara desde que adoecera. Ward, em verdade, sempre fora umestudioso e um apreciador de antiguidades; mas mesmo suas obras anteriores mais brilhantes nomostravam o prodigioso domnio e a profundidade revelados durante os exames a que ospsiquiatras o submeteram. Em realidade, foi difcil conseguir sua internao legal no hospital, topoderosa e lcida parecia a mente do jovem, e somente as provas apresentadas por outras pessoase a quantidade de lacunas anormais em seu cabedal de informaes, em contraposio suainteligncia, permitiram que ele fosse por fim internado. Na poca de seu desaparecimento eraum vido leitor e um conversador to grande quanto sua fraca voz lhe permitia, e observadoresagudos, incapazes de prever sua fuga, prognosticavam que ele no demoraria muito a obter aautorizao para sair do hospital.

  • 2Somente o doutor Willett, que trouxera ao mundo Charles Ward e acompanhara o

    desenvolvimento de seu corpo e esprito, parecia alarmado com a idia de sua futura liberdade.Ele tivera uma terrvel experincia e fizera uma terrvel descoberta que no ousava revelar aoscolegas cticos. Em realidade, Willett guarda para si um pequeno mistrio em seu envolvimentocom o caso. Ele foi a ltima pessoa a ver o paciente antes da fuga e saiu daquela derradeiraentrevista num estado de horror misturado a alvio lembrado por muitos ao ser conhecida a fugade Ward, trs horas mais tarde. A fuga em si um dos mistrios no solucionados do hospital dodoutor Waite. Uma janela aberta sobre uma abrupta queda de vinte metros no a explicaria;contudo, aps aquela conversa com Willett, o jovem inegavelmente desaparecera. O prprioWillett no tem explicaes satisfatrias para oferecer, embora estranhamente seu esprito pareamais aliviado do que antes da fuga. Muitos, em realidade, acham que ele gostaria de dizer maiscoisas se acreditasse que um nmero considervel de pessoas lhe daria crdito. Encontrara Wardem seu quarto, mas, pouco depois que o mdico sara, os atendentes bateram em vo porta. Aoabri-la, constataram que o paciente no estava l e s encontraram a janela aberta atravs da qualuma brisa glida de abril trouxe para dentro uma nuvem de fino p cinza-azulado que quase ossufocou. verdade que os ces uivaram algumas vezes antes, mas isto foi enquanto Willett aindaestava presente; os animais no pegaram nada e em seguida se acalmaram. O pai de Ward foiinformado imediatamente por telefone, contudo pareceu mais entristecido do que surpreso.Quando o doutor Waite foi visit-lo pessoalmente, o doutor Willett j havia conversado com elee ambos negaram qualquer conhecimento ou cumplicidade na fuga. S foi possvel obter algumasindicaes de poucos amigos ntimos de Willet e de Ward pai, e mesmo estas eram extremamentefantsticas para que se lhes pudesse dar crdito. O nico fato concreto que at o momento nofoi descoberto nenhum vestgio do louco desaparecido.

    Charles Ward amava as coisas antigas desde a infncia e indubitavelmente adquirira essapredileo por causa da antiguidade da cidade em que vivia e pelas relquias do passado queenchiam cada canto da velha manso dos pais em Prospect Street, no cume da colina. Com opassar dos anos, sua paixo pelas coisas antigas aumentava de forma que histria, genealogia e oestudo da arquitetura, do mobilirio e da arte colonial acabaram por ocupar totalmente sua esferade interesses. importante lembrar estas predilees ao analisar sua loucura, pois muito emborano constituam absolutamente seu cerne, desempenham um papel proeminente em sua formasuperficial. As lacunas de informao detectadas plos psiquiatras estavam todas relacionadas aassuntos modernos e invariavelmente eram contrabalanadas por um correspondente e excessivo,embora exteriormente disfarado, conhecimento de assuntos do passado, revelado porm por umhbil interrogatrio: de modo que se poderia imaginar que o paciente literalmente se transferirapara uma poca anterior por alguma obscura espcie de auto-hipnose. O estranho era que Wardno parecia mais interessado pelas coisas antigas que conhecia to bem. Aparentemente, perderao apreo por elas por causa da mera familiaridade, e todos os seus esforos recentes estavamobviamente voltados para o domnio dos fatos comuns do mundo moderno que se haviamapagado de maneira to completa e inequvoca de seu crebro. E ele se esforava para escondertal aniquilao, mas era claro para quem o observava que todo o seu programa de leituras econversaes era determinado por um frentico desejo de sorver os conhecimentos de sua

  • prpria vida e da formao cultural e prtica comum do sculo XX que ele deveria possuir pelofato de ter nascido em 1902 e de ter sido educado nas escolas do nosso tempo. Os psiquiatrasperguntam-se agora, tendo em vista a destruio total de seu cabedal de informaes, como opaciente fugitivo conseguira fazer frente ao complexo mundo dos nossos dias; e a opiniocomum que estaria se escondendo numa funo humilde e discreta at que seu cabedal deinformaes modernas pudesse voltar ao nvel normal.

    O incio da loucura de Ward constitui matria de debate entre os psiquiatras. O doutorLyman, a eminente autoridade de Boston, situa-o entre 1919 e 1920, o ltimo ano que o rapazcursara na Escola Moses Brown, quando subitamente se desviou do estudo do passado para o dooculto e recusou preparar-se para a universidade, alegando que tinha pesquisas pessoais muitomais importantes a realizar. Com certeza, isto foi uma decorrncia da alterao dos hbitos deWard na poca, principalmente de sua busca contnua, nos registros da cidade e entre antigoscemitrios, de certa sepultura aberta em 1771: o tmulo de um ancestral chamado JosephCurwen, do qual alegara ter encontrado certos papis atrs dos lambris de uma casa muito antigade Olney Court, em Stampers Hill, em que notoriamente Curwen havia vivido.

    inegvel que no inverno de 1919-20 houve uma grande mudana em Ward; de fato, eleparou de repente suas atividades de antiqurio, empreendendo uma investigao profunda nocampo do ocultismo em seu pas e no exterior, alternando-a apenas busca estranhamenteobstinada do tmulo do seu antepassado.

    O doutor Willett, contudo, discorda substancialmente dessa opinio, baseando seu parecerno prolongado conhecimento ntimo do paciente e em algumas pesquisas e descobertasassustadoras feitas a seu respeito. Essas pesquisas e descobertas deixaram nele uma marca toprofunda que ao falar nelas sua voz treme e treme-lhe a mo ao escrever sobre elas. Willettadmite que a mudana ocorrida em 1919-20 parece marcar o incio de uma decadnciaprogressiva que culminou na horrvel, triste e misteriosa alienao mental de 1928, mas acredita,baseado na observao pessoal, que preciso fazer uma distino mais ntida. Reconhecendo queo rapaz sempre teve um temperamento pouco equilibrado e propenso a uma suscetibilidade e aum entusiasmo excessivos em suas reaes aos fenmenos que o cercavam, ele se recusa a admitirque as primeiras mudanas marcam a passagem da razo loucura; ao contrrio, prefere acreditarna prpria afirmao de Ward, de que descobrira ou redescobrira algo cujo efeito sobre opensamento humano seria provavelmente maravilhoso e profundo.

    A loucura verdadeira, ele tem certeza disso, apareceu com uma mudana posterior, depoisdo descobrimento do retrato e dos velhos papis de Curwen; aps uma viagem a estranhoslugares no exterior, aps recitar certas terrveis invocaes em estranhas e secretas circunstncias;depois de obter claramente certas respostas a essas invocaes e de redigir urna carta em condiesangustiantes e inexplicveis; depois da onda de vampirismo e dos infaustos boatos em Pawtuxet; edepois que a memria do paciente comeou a excluir as imagens contemporneas ao mesmotempo em que sua voz falhava e seu aspecto fsico ia sofrendo a sutil modificao que tantaspessoas mais tarde notaram.

    Somente nessa poca, salienta Willett com grande agudeza, o clima de pesadelo passou aser inquestionavelmente associado a Ward e o mdico, estremecendo de pavor, est seguro de queexistem provas bastante concretas corroborando a afirmao do rapaz quanto sua descoberta

  • crucial. Em primeiro lugar, dois trabalhadores muito inteligentes viram os velhos papis deJoseph Curwen quando ele os descobriu. Em segundo, o rapaz uma vez lhe mostrou tais papis euma pgina do dirio de Curwen, e cada um dos documentos tinha toda a aparncia deautenticidade. O buraco onde Ward afirmou t-los encontrado uma realidade visvel e Willetttivera oportunidade de v-los pela ltima vez e de modo bastante convincente num local em queningum acreditaria ou cuja existncia talvez jamais seria provada. Depois havia os mistrios e ascoincidncias das outras cartas de Orne e Hutchinson e o problema da caligrafia de Curwen edaquilo que os detetives trouxeram luz a respeito do doutor Allen; essas coisas e a terrvelmensagem em cursivo medieval encontrada no bolso de Willett quando recuperou a conscinciaaps sua experincia chocante.

    E mais conclusivos do que tudo so os dois horrendos resultados obtidos pelo mdico comcertas frmulas durante suas investigaes finais; resultados que praticamente comprovaram aautenticidade dos papis e de suas monstruosas implicaes, ao mesmo tempo em que os taispapis foram subtrados para sempre do conhecimento humano.

    3 preciso considerar os primeiros anos da vida de Charles Ward como algo que pertence

    ao passado e s antiguidades que ele amava to ardentemente. No outono de 1918, com umaconsidervel manifestao de entusiasmo pelo adestramento militar da poca, ele ingressara noprimeiro ano da Escola Moses Brown, que fica bem prxima de sua casa. O antigo edifcioprincipal, erguido em 1819, sempre agradara seu gosto pelas coisas antigas; e o amplo parque noqual se localiza a Academia atraa sua predileo pela paisagem. Suas atividades sociais erampoucas e passava grande parte de seu tempo em casa, em caminhadas sem destino, nas aulas edeveres e na busca de dados arqueolgicos e genealgicos na Prefeitura, na Assemblia Estadual,na Biblioteca Pblica, na Sociedade Cientfica, na Sociedade Histrica, nas bibliotecas JohnCarter Brown e John Hay da Brown University e na Biblioteca Shepley, recentemente inauguradaem Benefit Street. Ainda possvel retrat-lo como era naquele tempo: alto, magro, loiro, olhosatentos e ligeiramente curvo, trajado de maneira um tanto negligente. A impresso predominanteera de incua falta de jeito mais que de encanto pessoal.

    Suas caminhadas eram sempre aventuras pelo mundo do passado, durante as quais eletentava recapturar as mirades de relquias de uma fascinante cidade antiga, um retrato vivo ecoerente de outros sculos. Sua casa era uma grande manso georgiana no topo da colina bastantengreme que se ergue a leste do rio, e das janelas posteriores ele olhava atordoado a multido depinculos, cpulas, telhados e topos de arranha-cus da cidade baixa at as colinas em tons violetanos campos distantes, ao fundo. Aqui ele nascera e do belo prtico clssico na fachada de tijolosentre as duas janelas salientes a bab o conduzia para o primeiro passeio de carrinho; em frente pequena casa branca da fazenda de duzentos anos, que h muito a cidade absorvera, em direos imponentes escolas ao longo da rua suntuosa, cujas antigas manses quadradas de tijolos ecasas menores de madeira de prticos estreitos com pesadas colunas dricas pareciam sonhar,slidas e exclusivas em meio aos seus generosos parques e jardins.

    Havia sido conduzido tambm ao longo da sonolenta Congdon Street, um patamar abaixo

  • na colina ngreme e com todas as suas casas a leste sobre altos terraos. As pequenas casas demadeira em geral eram mais antigas aqui, pois ao crescer a cidade fora subindo por esta colina.Nesses passeios ele absorvera um pouco da cor de uma pitoresca aldeia colonial. A babcostumava parar e sentar-se nos bancos de Prospect Terrace para conversar com os guardas; euma das primeiras lembranas da criana era o imenso mar de nebulosos telhados, cpulas,campanrios e colinas distantes a ocidente, que vira numa tarde de inverno daquele grandeterrao com balaustrada, violeta e mstico contra um pr-de-sol apocalptico, de febris tonsvermelho