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DADOS DE COPYRIGHT...N”ossa felicidade aqui é glória vã Este mundo falso é apenas transitório A carne é fraca e o demônio, esperto Timor mortis conturbai me.” “Lamento

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DADOSDECOPYRIGHT

Sobreaobra:

ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

Éexpressamenteproibidaetotalmenterepudiávelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresenteconteúdo

Sobrenós:

OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:LeLivros.orgouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.

"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluiraumnovonível."

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CHARLIEFLETCHER

CORAÇÃODEPEDRA

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Títulooriginal:STONEHEART

1aedição—outubrode2007

EDITOREPUBLISHERLuizFernandoEmediato

DIRETORAEDITORIALFernandaEmediato

PRODUÇÃOEDITORIALDanieleCajueiroAnaJuliaCury

REVISÃODETRADUÇÃONanaVazdeCastroREVISÃOHugoLangoneIzabelCuryDIAGRAMAÇÃO

AbreusSystemCIP-BRASIL.CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJFletcher,CharlieCoraçãodepedra/CharlieFletcher;

TraduçãoEudaLídiaCavalcanteLutherRiodeJaneiro:GeraçãoEditorial,2007Traduçãode:StoneHeartISBN978-85-6030-210-91.Literaturainfanro-juvenil.

I.Luther,EudaLidiaCavalcante.II.Título.III.Título:Coraçãodepedra.IV.Série.07-1577CDD:028.5CDU:087.52007

ImpressonoBrasilPrintedinBrazil

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Aosmeuspais,MargaretePaulFletcher,comcarinhoeagradecimento,fazedoresdeumainfânciafelizalémdemuitomais...

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“As coisas que os homens fizeram com suas mãos alertas, colocando dentro a vida maleável,permanecerãovivasatravésdosanospelatransferênciadotoqueecontinuarãobrilhandoporlongosanos.Eporestarazão,objetosantigoscontinuammaravilhosamenteaquecidoscomocalordavidadaqueleshomensjáesquecidosqueasfizeram.”CoisasqueosHomensFizeram,D.H.Lawrence,1929.N”ossafelicidadeaquiéglóriavãEstemundofalsoéapenastransitórioAcarneéfracaeodemônio,espertoTimormortisconturbaime.”“LamentoaosFazedores”,WilliamDunbar(?1460-1520).

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ABARRIGADABALEIAEOSDENTESDOMACACOGEORGENUNCA PERDEUTEMPO procurandoas razõesporqueelequeria fazerparte.Eraoquequeria.Assimeramascoisas.Ousefazpartedogrupoounão;efazerpartedogrupo,estarpordentro,eramuitomaisseguro.Nãoeraotipodecoisaquesequestiona.Eraassimepronto.Naexcursãoanteriordaescola,elesvisitaramoMuseudaGuerraeaprenderamtudosobreasbatalhasem trincheiras.George sabiaqueassimeraavida:manter a cabeçaabaixodoparapeitoparanão seratingido.Claroqueissofoinoanoanterior,nopassado,comotodasascoisasquefaziampartedesercriança.Eleàsvezesaindapensavasobreisso.Aindase lembravacomoeraasensaçãodesercriança.Masagoratinhaultrapassadoisso.Tinhadozeanos.DozedeVerdade,não“ApenasDoze”,comoseupaidissenaúltimavezquesefalaram.Elesabiaqueosseusdozeanosnãotinhamnadaavercomosdozeanosdeseupaiporqueele tinhavisto fotografiasdeseupaiquandocriançacomacaradequemnãosabiadenada, de óculos e meio gordo, tudo o que — da perspectiva dos doze anos de George — seria oequivalenteaestarsentadobememcimadoparapeitocomumalvopintadonacabeçagritando“Olhaeuaqui!”.Georgeselembravadasconversasedasrisadascomseupaiquandofalavamsobrecoisasassim,antesdeseupaisemudar,eentãoasconversasforamsecandoatéquasenãohavermaisnenhuma.Elejánãofalavamuitoemcasatambém.Suamãesequeixava,geralmentecomele,masàsvezesparaoutraspessoas,nomeiodanoite,notelefone,quandoachavaqueeleestavadormindo.Emalgumlugardentrodeledoíaumpoucoquandoouviasuamãedizeraquilo—nãotantocomoquandoeladiziaqueelecostumavaterumsorrisolindo,masquase.Enemchegavapertodotantoquedoíanãopoderdizermaisnadaparaoseupai,nuncamais.O problema é que ele não deixava de falar de propósito. Era uma coisa que parecia simplesmenteacontecer,assimcomoquandocaemosdentesdeleite,ouquandoseganhaaltura.Bom,ofatodeelenãoestarcrescendotãorápidoquantoquerianaquelemomentofaziapartedoproblema.Suaalturaeraamédiaparaasuaidade,talvezatéumpoucomaisqueamédia—noentantoelesesentiamenor, do mesmo jeito como se sentia às vezes mais velho do que sua idade. Ou talvez nem fosseexatamentemaisvelho,esimumpoucomaisbatidoedesalinhadodoqueosseuscolegasnasaladeaula—domesmojeitoquesuasroupas.Suasroupaseramlavadastodasjuntasnamáquina,ascoloridaseasbrancas, e embora suamãe dissesse que não fazia amínima diferença, fazia sim.As roupas ficavamencardidas,cinzas,desbotadas.EeraassimqueGeorgesesentianamaioriadasvezes.Certamenteeraassimquesesentiaagora,hoje,enãopoderveroqueaconteciaàsuafrenteofaziasesentiraindamaisinsignificantedoqueonormal;tudooqueeleconseguiavereraabarrigadabaleiaeascabeças do resto de sua turma enquanto eles se agrupavam ao redor do guia domuseu, quemostravaalgumacoisainteressante.Tentousearrastarumpoucoparafrente,massóconseguiuumacotoveladanascostelas.Georgetentousairparaoladodogrupoparatentarumnovoângulodevisão,cuidadosoemnãoempurrarninguém.Achouumlugaremquequasedavaparaouvireseaproximou,espiandopelovãoentreumaprateleirade

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metalcheiadepanfletoscoloridoseummeninoqueerapelomenosdezcentímetrosmaisaltoqueele.Equando tocou na prateleira com seu ombro e se virou para segurá-la, omenino também se virou e oencarou.Georgeabriuumsorrisoemresposta,umreflexo.Omeninonãoretornouosorriso.Apenasdeu-lheascostasdenovosemumapalavra.Georgenãosepreocupavaemserignorado.Naverdade,ficoualiviado.Omeninoeraumdaquelesque inventavamapelidos.Tinhaodomde inventarosapelidosmaiscruéispara seus colegas, e pior ainda, fazia os apelidos grudarem. Ele quase se tornou amigo de Georgequandoeramnovatos,maslogodescobriuqueoseudomoimpregnavacomumacertainvulnerabilidade,umpoderqueolivravadanecessidadedeteramigos.Tinhaapenasseguidores.Eissoeraoqueofaziaperigoso.Omeninovirou-separaGeorge.Destavezfalou:—Possoajudá-loemalgumacoisa?Georgecongelou.Elogotentoudisfarçarseucongelamentocomumoutrosorrisoeumdardeombros.—Não.É...Apenastentandoummelhor...—Nãofiqueparadoatrásdemim.Omenino voltou a olhar para a frente. Outros da classe, porém, assistiram a tudo e nos olhos delesGeorgeviualgoquereconheceu.Nãoerainteresse,certamentenãoerasimpatia,nemmesmoantipatia.Apenasumagratidãodisfarçadapornãoseremoalvodavez.Georgeentãoengoliuemsecoeficouondeestava.Sabiaosuficienteparanãoservistocedendo.Issoseriao fim,eleseriaengolido.Sabiaquehaviaumnívelabaixodoqualnãosedeviaafundar,porqueumavezláembaixo,nofundo,nãohaviaumaescadaparapodersubirdevolta.Umavezdentrodopoço,virava-sepresafácilparaqualquerumequalquerumfariapicadinhodevocê.PorissoGeorgeolhouparaoquadradodemármoreemquepisavaedecidiuficarali.Haviaprofessoresaoredor.Oquedepiorpoderiaacontecer?Omeninocalmamenteesticouobraçoparatrásederrubouaprateleira,bememcimadeGeorge.Eledeuumpassoatrás,masnãohaviaespaçosuficiente,eassimempurrouacolunademetalcomasmãosparase proteger.A prateleira bateu no chão comumbarulhometálico estrondoso, espalhando os panfletospelochãodemármoreaoredordeGeorge.Asaladerepenteficouemsilênciototal.Osrostosseviraram.Omeninovirou-secomoosoutros,umardeinocênciaefascinaçãologosetransformandoemchoqueesurpresa.—Caramba,Chapman!Ogrupodemeninosao seu redor sedissolveuemumaanarquiabarulhenta, eos três adultos,osdoisprofessoreseoguiaficaramprocurandooculpado.Ecomtodomundoinclinadoeapontando,láestavaele,suacabeçaacimadoparapeito,ospésafundadosnalamadepanfletoscoloridosaoseuredor.OSr.Killingbeckoperfuroucomolhosdefranco-atirador,e,firmandoodedonogatilho,miroueatirouabalaemformadeumaúnicapalavra.—Chapman.Georgesentiuseurostoruborizar.Killingbeckestalouosdedosparaosoutrosmeninos.—VocêstodosarrumemabagunçaqueoChapmanfez!Você:venhacomigo.

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Georgefoiatrásdoprofessor,afastando-sedogrupo.SeguiramdasaladabaleiaatéosaguãocentraldoMuseudeHistóriaNatural.OSr.Killingbeckparounomeiodosalão,bemembaixodoesqueletododinossauro,emandouGeorgeseaproximar.George conhecia bem o Sr. Killingbeck para não começar elemesmo o que estava por vir. Por issoapenasesperou.Abocadohomemsemoviavagarosamente.Elasempresemoviacomose tudooquedissessetivesseumgostoamargoeprecisassesercuspidoantesdecausarmaisdoreagoniaparaele.—Humm,mediga,vocêestavatentandoserrude,Chapman,ouissolhevemnaturalmente?—Nãofuieu,senhor.—Quemfoi,então?Nãohaviaumarespostapara isso.PelomenosumarespostaqueGeorgepudessedar.Elesabiamuitobem.OSr.Killingbecksabiamuitobem.PorissoGeorgeficoucalado.—Covardiamorale insolênciaestúpida.Nadamuitoatrativo,Chapman.Nadadoquevocêveioaquiparaaprender,nãoémesmo?GeorgeficoupensandoemqueplanetaestavaoSr.Killingbeck.Planeta1970ouporaí,provavelmente.NãoumplanetaemqueGeorgepudesserespirar.Elecomeçouasentirfaltadear.Seurostocomeçouaesquentarlentamente,umcalorqueelesentiasemver.—Aquilo foiumacoisa imperdoável, rapaz.Vocêsecomportoucomoalguém totalmente incivilizado.Comoaquelemacacoali.Odedomagroapontouparaummacacoemumajauladevidro,seusdentesevidentesnosorrisoqueerasuaúltimamensagemparaomundo.Georgesabiamuitobemcomoeraisso.—Vocêéumincivilizado,Chapman.Oquevocêé?Georgeolhouparaomacaco,pensandocomoseusdenteseramforteseassustadores.Pareciampresasdeverdade.OSr.Killingbeckpreparouaboca.Georgeachouumabolotademassadeceranobolsoecomeçouamodelá-lacomseusdedos.Aindatinhaocontornoirregulardeumrostoqueeletinhamodeladonoônibus.—Acho que o momento exige um pouco mais do que este silêncio amuado, Chapman. Penso que aocasiãoexigeumpedidodedesculpas,paracomeçar.George passou o dedo sobre a boca aberta do rosto demassa, pressionando-a para abri-la umpoucomais.—Tireasmãosdobolso.Georgeamassouonarizdorostoetirouamãodobolso.— Você vai pedir desculpas nem que tenha de ficar de castigo aqui o dia inteiro. Você está meentendendo?Georgetrabalhouamassanasuamãofechada.—Ouvocêpodemedizerquemfoioculpado.Estámeentendendo?Georgeentendia.Haviaaespada.Ehaviaaparede.Eele,bemnomeiodosdois.Nãopodiadedurarooutromenino,mesmo que fosse um provocador e valentão, porque dedurar o empurraria para aquele

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lugar tão baixo aos olhos dos outrosmeninos que não apenas lhe faltaria a escada para subir, comotambémnãohaverianemochão.Sede-durassealguém,orestodasuavidaseriapassadacaindoemumpoçosemfundoqueficavacadavezmaisfundoemaisescuroenuncaacabava.Estaeraaespada.Erasimples.Aparedeeramenossimples,talvezporsertãogrande,impossíveldemover.Aparedeeratodooresto.Aparedeerasuavida.A parede era tudo o que o fizera chegar àquelemomento. E omomento o grampeava, não lhe dandoespaçoparacorrer.—Chapman?Impaciente,odedodoSr.Killingbeckbatiadelevenovincodapernadesuascalças.Georgeolhouparaaspresasdomacaco.Seriatãofácilparaelasabocanharemaquelepedaçoimpacientede pele ressequida e ossos ralos.Desejou tanto ter aqueles dentes na sua boca.Queriamuitomorderaquelededoecuspi-lonacaradoSr.Killingbeck.Seudesejoeratãointensoqueatésentiaatrituraeaquebradosossosequaseogostodosangue.Estesentimentofoitãoimediato,quasetãoreal,queelederepentesentiumedo,seusvestígiosaindaescurosepegajososnasuamente.Nunca,jamais,haviatidoumpensamentodesses.Ochoqueoencolheupordentroeofezesquecerdoquefalava.—Senhor?—Então?AvozdoSr.Killingbeckotrouxedevoltaparaoagora,omomentoentreaespadaeaparede.Nãosabiao que faria. De repente, percebeu pelo ardido nos olhos que havia uma possibilidade muito maistraiçoeira.EGeorgenãochoraria.Esabendooqueelecertamentenãofaria,derepentedeixoutudoevidente.Sabiaoquefaria,oquediria.Esabiadizê-lobemdevagar,bemcalmo,paraqueacoisaqueestavaexplodindonasuagargantanãoosufocasse.—Compreendoqueéistoqueosenhorpensaqueeudevofazer.OSr.Killingbeckolhouparaelecomasurpresadeumhomemfamintocujacomidaderepenteomorde.Suabocaparoudemastigaroqueestavapreparandoparadizer.—Maseunãoconcordo.AspupilasdoSr.Killingbeckviraramumpontofinalnomeiodaírisdeseusolhos.Georgesabiaquetinhacometidoumerro.Sabia,comaquelasúbitaintimidadequeodeixavaaindamaisapavorado do que a imagem do dedo decepado, que o Sr. Killingbeck queria machucá-lo. Sentiu acoceiranamãodoprofessorquandoelecerrouopulso.—Bem,bem,bem.Muitobem.O Sr. Killingbeck fechou os olhos e passou a mão livre entre seus cabelos grisalhos, que seencaracolavamao redordo crânio, como se ele estivesse tentando tirarGeorgedopensamento comamassagem.—Vaificaraquiatédecidirpedirdesculpas.Senãotiverpedidoatéahoradeirmosembora,vocênãoimaginaemquesituaçãoterásemetido.Vaificardepé,reto,sempodersesentar,nãoéparapôrasmãos

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nosbolsos,nãoéparachuparbalas,nãoéparasemoverumcentímetrodaqui,osvigiasdomuseunãoodeixarãosairanãoserqueestejacomorestodogrupo.Voltamosemumahoraemeiaparalhebuscareentãovocêsedesculpará,nafrentedetodos.Estámeentendendo?Seusolhosseabriram.Georgenãopiscou.—Estou.OSr.Killingbeckdeumeia-voltaefoiatrásdorestodaturma.Georgeouviuoestalodossaltosdelesobreochãodepedra.Georgeentãopôsasmãosnobolso.Sentou-senobanco.Pôsumchicletenaboca.Depoislevantou-se,foiatéaportaesaiu,enfrentandoochuviscoqueensopavaosdegrausdaentradadomuseu.Osvigiasnãoolharamparaelesequerumavez.

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OHORRORGEORGE EXPERIMENTOU O VENTO FRIO açoitando seu rosto quando saiu do museu. Sentiu-se terrível.Aquelesentimentonegroepegajosoaindaborbulhavanasuacabeçaeofrionoseurostosópioravaascoisas. Não sabia o que fazer naquele instante. Sabia apenas que precisava sair e ficar sozinho ummomento.Georgeagoratinhacertezadequeeramaisseguroemaisfácilficarsozinho.Decidiuissodepoisqueseupaimorreu,quandoavidaderepenteficoucheiadegentedizendotudooqueeraerrado,comosesuaspalavraspudessempreencherumpouquinhooburacoenormedentrodele.Estar sozinhopareciaumaestradadifícil, eàsvezes sua fraquezaacabavapor lhe trair:porexemplo,detestavaasimesmoportersorridoparaomeninoquederrubouaprateleiramóvelcomospanfletosemcimadele;aquilofoifraquezamomentânea,puraesimples.Eletraíraasimesmo.Tersorridofoiomesmoqueestartentandofazerumamigo,quandonaverdadeelesnãoseriamamigosnunca.Tersorrido foiumsinaldecovardia,denecessidade.EGeorgehaviadefinitivamentedecididoquenãoprecisavadeninguém,amigosounão.Achuvabatianoseurostoemrajadas.Eleolhouparacima,pensandoqueficarsozinhoeraoúnicojeito,jáqueestarsozinhosignificavaestarnocontroledoquepoderialheafetaredoquepoderiaserignorado.Acimadele,noaltodafachadadecoradadomuseu,haviaumbandodeanimaisimagináriostalhadosnasparedes,quasereais,masnãodeverdade.Lagartosqueexistiamapenasnaimaginaçãodeseuescultorsealternavamcompássarosdeumaaparênciaassustadoracomoumpterodáctilo.Ospterodáctilos tinhamdentesafiadosepontudos,queprotuberavamcomobicos tambémpontudos,eganchosameaçadoresseesticavamdesuasasas sempenas.Osolhoseramescancaradosemumolharcongelado,daquelesqueintimidamedesafiam.Georgesentiuoarfrionasgengivaseficouemdúvidaseestavasorrindooufazendoumacareta.Quantomais eleolhavapara cima,maispercebiaque a fachada inteiradoprédio fervilhavade esculturasdeanimaistalhadasempedra.Elasodeixavaminquieto.Nãosabiaporquê,masnãogostavadelas.Sentiu-se observado. Talvez fossem as janelas na frente do prédio; as pessoas podiam estar olhando pelosvidros,observandoo seu rostoavermelhadoe seusolhosardendode frustraçãoe lágrimasqueele serecusavaadeixarcair.George sabiao suficiente sobre autopiedadeparadetestá-la,maisdoquedetestavaoSr.Killingbeck,maisdoqueaespadaouaparede.Assim,virou-secontraafachadaelimpouosolhosparatercertezadequeninguémoviraquasechorar.Olhouparaorelógio:15h42.Elesficariamnomuseuatéas16h30pelomenos.Nãosabiaoquefaria.Viroueseencostoucontraaparededoprédio.Algumacoisaoespetounascostas.Atrásdele,àalturadesuacintura,nocantodopórticodomuseu,apequenaesculturadacabeçadeumdragãocinzeladanapedraoobservava.

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Elalembravaosobjetosqueseupaifazia—oucostumavafazer—noseuateliê.Nãoascoisasgrandes,asmaissérias,masospequenosanimaisdebrinquedoqueeleàsvezesmoldavacomargilaparafazerGeorge rir, quando era pequeno, nos dias em que omenino o encontrava trabalhando,mas nãomuitoocupado.A lembrançanãoodeixoualegre.Talvezporque tinhapensadoemseupaidemaisparaumsódia,outalvez porque o Dragão tinha presas que o lembraram do macaco, do gosto amargo na boca, do Sr.Killingbeck.Qualquerquetenhasidoarazão,oresultadofoiextremoeagudo.Odiouaqueleornamento.Georgeodiou-odemais.Seupunhosefechouesemovimentouantesqueeletivessetidotempodepensarnoqueestavafazendo.Quandopensou,soubequeiadoer.Sabiaquesangraria,quearrebentariaapeledosdedos,quetalvezatéquebrassealgumosso.Sabiaquenãose importava.Sabianaqueleespaçoqueestavamaispróximodoquererdoquedosaberquetudoissoerapossível,masquenãoseimportavacomnada.SeupunhotinhaomesmotamanhodacabeçadoDragão.Seupunhonãoerafeitodepedragranular.Nomicrossegundo antes do impacto ele percebeu que não sabia realmente o que sentiria ao fazer aquilo.Percebeuqueiafraturarseuprimeiroosso.Sentiumaisfrionasgengivasporqueestavamostrandomaisdentesemdesdém.Nãosentiuoimpacto.Apenasouviu.Ouviuoruídofeiodobaqueeomundosesacudiuumpouquinho.Algumacoisabateunoseupé.Georgefechouosolhoseagarrousuamãoporinstinto,esperandoaondadedor.Iasermuitoruim.Sópelo ruído jásabiaque foradanosério.Agoraque tinha feito, searrependia.Nãoqueriaolharparaamão,casoalgumacoisaesticasseparafora.Comoumosso,porexemplo.Confirmoucomaoutramão,cuidadosamente.Nãohavianenhumosso,mastinhadefinitivamentealgumacoisaúmida.Algumacoisasibilouparaele.Georgeabriuosolhos.Devetersidosuaimaginação.Virou-separachecarsuascostaseseupéchutoualgumacoisa.Olhouparaochão.EraacabeçadepedradoDragão.Acabeçaqueelehaviaquebradocomseumurro.Olhouparaopórtico.Láestavaopescoço,cortadoperfeitamentecomoporumbisturi.Georgeentãoresolveuolharparasuamão.Nenhumossoaparente.Nemmesmosangue.Sómolhadodachuva.Estavatudobem.ApanhouacabeçadoDragão.Nãodavaparaacreditar.Olhouparaela.Algumacoisa tinhamudado.Osolhosnãoo fitavammais.Nãoolhavaparanada.Anão serque ele estivesseenlouquecendo,oDragãotinhaolhadodiretoparaele.Agoraseusolhosestavamfechados.Decidiuquedeviatersidoumtruquedaluz.Ouviumaisumsilvoatrásdesi.Etambémumarranhadonomolhadoeumchiadoseco.Ele sabia, sem ter olhado, que o barulho devia ser de um dos vigias do museu, ou talvez do Sr.Killingbeckvoltandoparalhedarumabroncadaquelasporeletersaídodosaguão.Nãotinhaidéiadequal seria a reação do Sr. Killingbeck ao descobrir que seu aluno menos favorito tinha acabado dequebrarumornamentodaparededomuseu.

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Enquantosevirava,botouacabeçadoDragãodentrodobolsodocasaco,esperandopoderesconderoquefez,massabendoquenãoiasesafarassimtãofácil.NãoeraoSr.Killingbeck.Eraalgomuitopior,algotãoterrívelque,selhefossedadotempoparapensar,eleteriadesejadoportudoquefossemesmooSr.Killingbeck.Nãoerahumano.Nãoerapossível.Noentanto,eraalgoqueestavasesoltandodafachadadepedradomuseueolhandoparaGeorgecomumolharfixodepuroódio.Enãoapenasódio—fometambém.Eraumpterodáctilo.Seusolhoseramlargosenãopiscavam,comoempermanentesurpresadedescobrirquehavia,sim,lugarpara eles em um crânio que não era bem uma cabeça,mas o alongamento de um bico pesado que seafunilava em um pescoço curvado com o esforço de carregar todos aqueles dentes. Seu corpo erapequenoeem formatodeumpombo, emboracompensassecomasasenormescomoasdemorcegosepernasdelgadasqueterminavamemnósegarrasafiadas.OPterodáctiloabriuefechouobiconoesforçodesedesprender,ealgosemelhanteaumarespiraçãosibiloudasprofundezasdesuagargantadepedra.OspulmõesdeGeorgeseesqueceramtotalmentederespirar.Acoisasedescoloudofrisocomumúltimoesforço.Tentouabrirasasas,massóconseguiudesdobrarumadelasantesdedesaparecerdavista,caindoabaixodoníveldoparapeito.George ouviu umbarulho como o baque de um saco cheio demalasmolhadas caindo na grama. Sempoderresistir,olhouparabaixodoparapeito.Omonstrocontinuavasedesdobrandoeajeitandosuasasasegarras.EledavaascostasparaGeorgeeesticava-secomoumanciãoselivrandodeumnónopescoço.Foientãoquesevirou.FixouosolhosemGeorge,olhosmortosdepedra.Eenquantoorestodocorposecontorciaparaseguiracabeçaeseemparelharcomela,Georgesabiaoqueaquelesolhosfaziam.Elesestavamsefixandoemumalvo.Eoalvoeraele.Comoparaconfirmarisso,oPterodáctiloergueuseubicoparaocéudechumboerangeuosdentescomobarulhosemelhanteaalguémtamborilandosobreoesqueletodeumhomemmorto.Baixouacabeça,apontouseubicoafiado,ecomeçouaseimpulsionarparaafrente,arrastandoosnósdesuasasas,sacudindoocorpoeasgarrasentreasasas,comoumdemôniodemuletas.Georgecorreu.

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CORRER,CORRERELE ALCANÇOU A ESQUINA da rua Exhibition, escorregou na curva e começou a correr, mais rápido,desviandodamultidãoqueentravanoMuseudeCiências.Quandonotaramecomeçaramareclamar,elejáeraapenasalembrançadospésmeiovagos,acinqüentametrosdali.Umguardadetrânsitotentousegurá-lo,oqueseriaaaçãodereflexodetodohomemdeuniformeaoverumacriançacorrendomuitorápidoemsuadireção.—Ei,você...George se desvencilhou do guarda e continuou correndo. Uma olhadela para trás lhe ofereceu ainstantâneaimagemdehorrordoPterodáctiloavançandonacalçadaatrásdele,compassadasterríveisecambaleantes. Omonstro parecia correr com suas pernas enquanto simultaneamente se jogava para afrentecomaajudadosnósdesuasasas.Ninguémpareciapercebernada.Georgegritouedobrouavelocidade,virandoaesquinaparaoutraruaelogoentrandoemoutra.Gritou“Socorro!”,masLondres é uma cidademovimentada.Nomomento em que as pessoas ouviam, ele jáhaviadesaparecido.Sentiuumapontada.Continuoucorrendo,voandopelaspequenasruasparalelas,tomandoadireçãodoparque.Vocêpodecontinuarcorrendoquandosenteumapontada,eadoracabapassando,masessadeviaserdeumtipodiferente.Continuoudoendoeoutrapontadasejuntouàprimeira.Estadoíaaindamais.Elenãoparouecontinuoucorrendodomesmojeito.Fugir de pesadelos é como eles começam. Nossos corpos têm lembranças antigas dos quais nossasmentesnãotêmconhecimentonenhum.EessaslembrançasfizeramGeorgecorreraindamaisrápido.EledobrouumaesquinaesedeparoucomaruaparalelaaosfundosdosJardinsdeKensington.Nãoconseguiaverumaentradaparaoparque,entãovirouàdireitaeacelerouaindamais.Atrásdele,oPterodáctilosurgiunaesquinaefungouoar.Georgecorria.Olhandopara trás,eleoviudiminuir.Pareciaquetinhaparadoparaadmiraroverdedoparque.Georgecorreuecorreuatéqueumcaminhãoatravessouseuângulodevisãoeelenãoconseguiuvermais.Quando não pôdemais ver omonstro,George teve tempo para sentir as pontadas nos lados. E entãotropeçounumapedradacalçadaecaiu.Levantou-serápidoeolhouparatrás.Nada.Nãosedeucontadomendigoatéeleoagarrareopararnaesquinadocruzamento.Georgevirou-se.—Oquê..?Umcaminhãoatravessouvelozocruzamento,bemnolugarondeGeorgetinhaestado.Omendigo o largou.George olhou por cima dos ombros. Não via nada.Desistiu então e se dobrou,

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gemendocomadoreaexaustão,pensandoqueiavomitar.—Nãoprecisaagradecer...—disseomendigo.Georgeapontouparaaruavazia.Omendigoolhounadireçãoqueelemostrava.OPterodáctiloapareceudetrásdeumaárvoreeolhouparaeles.Maslogoseescondeuatrásdeoutraárvore.—Vocêviu?!—Georgegritoucomdificuldade,tentandoaspiraraquantidadeexatadeoxigênioparaseucorpo,enquantoseagarravacomforçaaosfiosrestantesdeseumundonormal.Omendigodeudeombrosenegoucomacabeça.—Sóporquevocêéparanóiconãoquerdizerqueelesrealmentenãoestejamatrásdevocê—disseele,edeuumasériederisadasquedavamaimpressãodequeestavaseengasgando.Georgechupouoar.Tudodoía.Seuspés, seusmúsculos, seuspulmões.Masacabeçaeraoquedoíamais.Nãoseviaqualquermovimentoportrásdaárvoredistante.Próximodelehaviamovimento.Algumacoisaacimadomendigo,nalateraldoprédio.Umacalhabastanteornamentada,trêssalamandrasfantásticassalientes,osrabosentrançados,ascabeçasinclinadasparabaixo,cadaumacommaisoumenosdoismetrosdecomprimento.Nãofoiisso,porém,quechamouaatençãodeGeorge.Oquechamousuaatençãofoiofatodequesemoviam.Georgeescancarouaboca.Acimadacabeçadomendigo,trêsdetalhesarquitetônicoscomeçaramasemexer.Eleouviuoschiadoseo barulho de suas escamas de pedra deslizando quando os rabos se destrancavam. Viu os olhos dassalamandrasseviraremparaele,asnarinasfungando.Umarrepiofriodeterroratravessousuanuca.Eleapontou.Omendigoseguiuseudedocomosolhos.Aexpressãoindagadora.—Oquê?Umadas salamandras se livroudasoutrasduase seencolheu,chiandoparaGeorge.Eleolhouparaomendigomaisumavez.—Vocênãovê?Georgeouviuumbaquedistante.Tirouosolhosdosnovoshorroresnaparededoprédioevoltou-separaoPterodáctilo,quevinhadesconjuntadonasuadireção,agoraaapenastrintametrosdele.George começou a correr. Passou por pessoas fazendo jogging. Passou por pessoas caminhando comseuscachorros.Passouporpessoasembicicletas.Ninguémparou.Ninguémolhou.Ninguémajudou.Ele,porém,nãodiminuiuoritmo.Quandoteveaoportunidadedesevirarporuminstanteparaolhar,viuassalamandrassearrastandopelacalhaaoladodacriatura,comummovimentoparaosladoscomooqueeletinhavistoemumprogramadetelevisãosobrecascavéis.Eraummovimentoterrívelemsi,cheiodeameaça,poder,crueldade.George correu pela calçada que ficava paralela ao Hyde Park, passando por um prédiomoderno detijolosvermelhoscomumatorre,umsoldadoeumcavalonafrente.Osoldadonemolhouparaele.

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Ele sentia cada passada nas solas dos sapatos, como se a calçada estivesse batendo nele e não ocontrário.Ouviasuaprópriarespiraçãocomosealguémestivessecorrendoaoseulado.Seupeitoardiacomoseestivessepegandofogopordentro.Arriscouumaolhadelaparatrás.—Ei!Atingiu em cheio a lixeira do gari, arrancando o último sopro de ar de seus pulmões e caindo numabagunçadevassourasesacosdelixopelacalçada.—Ei!!Georgeconseguiu respirardenovo,emaisumavez,emaisoutra, ecadavezdoíamaisqueaúltima.Esfregouaslágrimasdosolhos.—Vocêtámaluco?—queriasaberogari.Georgesacudiuacabeça.Nãoconseguiafalar.—Vailimpandotudo,garoto!—disseogari,aproximando-se.—Podecomeçaralimparagoramesmo!Georgecomeçouachorar.Ogarisesurpreendeu,deuumpassoparatrás,chocado.—Ei,esperaaí.O catarro descia do nariz deGeorge enquanto ele soluçava.O gari olhou ao redor.Coçou-se e ficouconstrangido,tantoquantoerapossívelparaumhomemcomumbuldoguetatuadonopescoço.—Esperaaí,amigo.Nãofoi...Olhouaoredordenovo.Aspessoasnoônibusolhavam,comoseelesestivessemnumprogramadetevê.Desconectados.Entediados.Passandootempo.Aspessoasnoscarrososignoravameseconcentravamnoscarrosasuafrente.Ummotoboypassouacelerado.Ogaripegouumavassourapartidanomeio.—Vocêquebrouminhavassoura,seu...George congelou. Atrás do ombro do gari, do outro lado da rua, enquanto um ônibus vermelho iadevagarinhoparafrente,eleviuderelanceumaescama.Umafaíscadeumbico.Eumacentelhadeumolhonefasto,escuro.OPterodáctilo andava para lá e para cá no lado oposto da rua, paralelo ao parque, usandoo tráfegocomocobertura.OsarbustosaoseuladosemexeramdenovoedestavezGeorgesevirounuminstanteeconseguiuverascaudasdastrêssalamandrasdesaparecendonafolhagem.—Oquê...?—perguntouogari.Masfalousozinho.Georgenãoestavamaislá.

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OARTILHEIROGEORGECORREUPARAOHYDEPARKCORNER,OentroncamentomaismovimentadodeLondres,ummardetrânsitoroendooasfaltoaoredordarotatóriarepletademonumentosemmeioàgramarala.Como uma bola de pinball, George corria entre os carros, tocando em capôs e porta-malas. Osmotoristasabusavamdasbuzinas,umrapaznumabicicletatevedefrearabruptamenteeapitouestridenteno ouvido de George, mas ele não deu bola e continuou empurrado pelo pânico que deixava seuspensamentosdormentes,opânicoquesesegueaopuroterrorfrio.Umcaminhãofreouruidosoquandoelesejogounafrenteebateunogradeadoenocimentodooutrolado.Georgeolhouparatrás.OPterodáctilooseguianumalinharetaimplacável,deliberadamente,sempressa,comoumpredadorquesabeterencurraladosuapresa.Epior doque esta coisahorrível e lenta que arrastavade formabarulhenta suas asas encouraçadas erangiaosdentesseaproximandoeraofatodequeGeorgeagorasabiaqueninguémmaisavia.Acoisasearrastavanasuadireçãopulandosobreoscapôsaosolhosdemotoristasquesimplesmentecontinuavamolhandoatravésdela.Elaarranhavao tetode taxis eosmotoristasnãoparavamde falarnemporum instante.Ninguémnosônibusolhavaaoredor,ninguémregistravanamenteaquelepesadelopré-históricodeossosedentesqueperseguiaumacriançapelaavenidamaismovimentadadeLondres.Acoisapulounagarupadeumamotocicletaefixouseuolhardiretamenteneleporumlongomomento.Omotoristadamotonãopercebeu,mesmoquandoelalevantouacabeçaeabriuseubicoparaocéu,numaimitaçãodeumchiadovitorioso.Dizemquenuncaseestámaissozinhodoquenomeiodeumamultidão,masestarsozinhonomeiodeumamultidão,enquanto seéperseguidoporumacoisamonstruosa semqueninguémperceba,émuitopior.Georgesearrastouporcimadasgradessemsedarcontadoqueestavafazendo.Ele se afastouaté serbloqueadopor setenta toneladasdepedrabrancadePortland.Fora encurraladopelasparedesdoMemorialdaArtilhariaRealdeGuerra.Olhouaoredoreporummomentopensouqueacoisaestavapenduradaimpossivelmenteacimadesuacabeça,prontaparaabocanhá-loeacabarcomopesadelodeumamaneiraterríveledolorida.Porém, o último pedacinho de suamente que ainda conseguia pensar direito percebeu que o que eleestava olhando era uma estátua escura, um soldado, um artilheiro trajando um uniforme da PrimeiraGuerraMundial,umchapéudemetalcobrindoseusolhos,osbraçosabertoscontraapedra,emdescanso.Osombroscobertosporumacapaimpermeávelqueporuminstanteforaconfundidacomasas.Ouviuumruídonasuafrente.Voltou-see,comumfrionabarriga,viuoPterodáctilosubindolentamenteagradeaapenasdoismetrosdele.Seucorpo,pensandosozinho,começouasemovercoladoàbasedoMemorial.Omonstro,porincrívelque pareça, olhou para longe. Agora George se movia com mais vontade, alcançando uma dasextremidades.

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Orabodeseuolhodevetercaptadoomovimento,porqueelenãooantecipou.Parousemsaberporquê.Ali, arrastando-se à sua frente, umadas salamandras de pedra.George começou a retornar para ondeestavaantesatéchegaraoutraponta.Denovoseuspéspararamfirmementesemelesaberporquê.Asoutrasduassalamandrasapareceramlentamenteaoredordooutrocanto,asbocasabertasnumchiadosilencioso.Georgenãotinhamaisopções.OPterodáctilovirou-separaolharparaele,devagar,fácil,odiosamente.Eoódionosseusolhoseraumódio antigo, umódioqueGeorgenão compreendia,masque sentia no seu âmago.Enomeiodoódiohaviacrueldadeetriunfo.Omonstrosabiaqueoacuara.Elepareceucresceràsuafrentequando levantousuasasasderéptilemjúbilo,bloqueandoosúltimosraiosdosol.Seubicocomeçouaseabrirededentroveioumodorantigo,repugnante,maisrepugnantedoquequalquercoisaqueGeorgejátinhasentido,umcheiroquenãotinhanadadehumanoounatural,umodorqueeraantigoesimplesmenteaterrorizante.Georgenãotinhaparaondecorrer.Sentiuapenasmedoeaparedenassuascostas.Suabocaseabriu,sememitirumsom.Viusuaslágrimasbateremnochãoàsuafrente.Umafraseseformouporsisóesederramoudesuaboca,caindoparaaterra,tãosilenciosaqueninguémanãosereleouviu,enquantoacoisadesciadogradeadoeseaproximavadele.—Porfavor.OmonstroabriuobicoeseretraiuparaprepararogolpequeGeorgesabiaqueseriafatal.Seseubicolongoeafiadonão formasse jáumagrande risada, seriapossíveldizerqueele riaaindamaisquandochioueflexionousuasgarras.—Porfavor...Agoraeraofim.Acoisadeuobote.BLAM.Omonstroparou.BLAM.Omonstropareceusurpreso.CRASH.AlgopulounafrentedeGeorge.Algocomtachasdeaçonasbotas.Algocomumaarma.Alguém.OPterodáctilo olhou para os dois buracos no seu peito. Sacudiu a cabeça em descrença.Com raiva.Recolheu-seepulou...BLAMBLAMBLAM.Aprimeirabalaoparalisou.Asegundaoderrubou.Eaterceiraodesintegrou.Aterceirabalaofezvirarcacosdepedra.Aterceirabalaotransformouempó.George olhou para cima.Oque viu foi umhomem feito todo de bronze opaco, da sola de suas botasmilitaresaotopodeseucapacetedeguerra.OArtilheirodoMemorialdeGuerraolhouparaeleenquanto

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abriaorevólver,sacudiaascápsulasusadasecarregavaaarmadenovo,tudoemumsimplesmovimentotãofluidoquenãohavianecessidadedeolharparaasmãosenquantofaziaisso.SeumovimentofoitãorápidoqueascápsulasusadasaindatilintavamaospésdeGeorgeeelejátinhacarregadoetravadoorevólver.Georgesentiuqueseupesadelonãotinhaterminadoainda.Afastou-sedoArtilheiro,masnãoosuficiente.OArtilheiroagarrou-oepuxou-odevoltacontraaparede,seposicionandoàsuafrente.Paraprotegê-lo.Sobreosombrosdacapadechuva,Georgeviuastrêssalamandrassearrastandopelochãoesejuntandoemcimadopó,dassobrasdoPterodáctilo.Elas se contorciam cegamente como se tentassem achá-lo, farejá-lo. Logo viraram-se e olharam paraGeorgeeoArtilheiro.Georgepercebeudenovo.Oódioantigomultiplicadoemtrêsparesdeolhos.As salamandras chiaram e se entrelaçaram, começando pelo rabo, voltando a ser como eram quandodeslizaramdaparededoprédio.Ergueram-secomoumaúnica serpente com três cabeças.Armaramobote...eoArtilheiroatirou.BLAMBLAMBLAMBLAMBLAMBLAM.Seis tiros relâmpagos paralisaram, rodopiaram e sacudiram as salamandras. O revólver então clicouvazio,todasasbalasusadas.Umasalamandraseretorceuesaiudebaixodocorpodasoutras.OArtilheirotirouseucapaceteejogou-onosbraçosdeGeorge.Limpouatestaedeuumpassoparaafrente,mexendonoseusacodemuniçãopenduradonocinto.Enquantoasalamandratentavaselivrardasoutras,eleprensouacabeçadelacomsuabota,aomesmotempoemquerecarregouseurevólverpesado,tãorápidocomoantes.Doistirosfizeramomonstrovirarpó.Eledeuumpassoparatráseacaboucomosoutroscorposdamesmamaneira.Quandoterminou,tudooqueseviaeraumavaganuvemdepoeiraparamostrarqueopesadelotinhasidoreal.O Artilheiro carregou novamente a arma antes de se virar e olhar para George. George segurava ocapacetedomesmojeitoquecostumavaagarrarseuursinhodepelúcia.Aestátuaescuraseagachouàsuafrente.Georgeviuqueseusolhoseramcinza,comoolhosdesenhadoscom grafite no seu rosto negro. Os olhos cinza pareciam penetrá-lo. O Artilheiro então pegou seucapaceteecocouopescoço.Alongouanucacomosedesfizesseumnó,numgestoquemaistardeGeorgeachariaestranhamentefamiliar.Agora,porém,elesóolhava.Não que a sua mente não estivesse conseguindo acompanhar os fatos. Na verdade, ela nem tinhacomeçado.OArtilheiropousouocapacetesobreamuradadomemorialeseagachouaoladodele,tirandoalgodobolsodeseuuniforme.Cigarros.Ele—aquilo,oquequerquefosse—riscouofósforonapedrabrancaeproduziuumaflamaâmbarqueeleaproximouàpontadocigarroentreseuslábios.Afumaçacinzasubiu.Edesapareceuparadentrodaestátua.Ereapareceuformandoelosperfeitos.Osdoisficaramolhandoafumaçareluziresemisturaraoarlondrino.

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Georgenãosabiaoquefazer,anãosermurmurar:—Obrigado.OArtilheirovirou-seeolhouparaele.Deuumatragada.Continuouolhando.Georgeconseguiudizermaisumacoisa,masfoiapenas:—Ummm.Olhou para os pés. Pelomenos eles pareciam familiares.Uma voz desconhecida saiu da garganta doArtilheiro.Umavozsepulcral.Comsotaquecockney{1}.—Meagradeçaquandochegaraofim,amigo.Georgeprocurouverseosolhoscinzaaindaolhavamparaele.Porqueelesnãopiscavam,elepercebiaqueapartebrancaviraráagoraumtomclarodecinzaeaspupilasescureciamaindamais.OArtilheirotragoumaisumavezeassoprouemumameiarisada.—Caramba,vocênãotemidéiadoquecomeçou,nãoé?

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OCALORENJAULADONoCORAÇÃODELONDRESalgumacoisaacordou,algumacoisatãoantigaetãoordináriaqueaspessoaspassaramporeladuranteséculoseséculossemnemaomenosdarumaolhadela.Era tão lugar-comum e tão indistinta que se alguém viesse procurar aquilo não teria como não ficardecepcionado com o que acharia.Não que alguém tenha vindo à procura dela hámuito tempo.Nadasobreelaofereciaqualquerindíciodeseupropósitooudeseupoder.Pareciamaisumpedaçorudimentardepedra trabalhadaporumpedreiro:pedraesbranquiçada,de tamanhoe formasimilaresaumantigomarcomiliário.Aúnicacoisaquedavaumaidéiadequeeramaisdoqueonadaquepareciasererasuacondição.Estavaenjaulada.Ficavaaoladodeumprédio,queerapelomenosdoismilanosmaisnovodoqueela,eespiavaparaaruaatravésdeumatreliçagrossadebarrasdeferro.Dada sua antigüidade, aspessoasquenotavam issogeralmentepensavamqueasbarrasde ferro eramparaprotegê-ladostranseuntes.Apenas uns poucos — e esses eram uns poucos muito estranhos — sabiam que era exatamente ocontrário.Agrelhadeferrohaviasetornadoumaarmadilhaparaolixoqueoventotraziadosarredoresdoprédio,emredemoinhosformadospeloarranha-céudoladooposto.Umpacotevaziodebatatinhasfritasficoupresonotopodacoisa,reluzindosuascoresprataemarrom.Umfragmentonopapellia“torresmo”—paraaquelesqueespiassemequisessemsaberquesabortinhaseuconteúdohámuitotempoconsumido.Se a pessoa espiando fosse daquelas que acreditam em coincidências, teria com certeza sorrido aopresenciaroqueaconteceu,dadoqueadescriçãonopapelacabouporsetornartambémumaprofecia.Ouviu-se um zumbido de baixa freqüência, daqueles que fazem geladeiras antigas nas altas horas damadrugada quando pensam que ninguém escuta. E de repente a embalagem de fritas lentamente seencolheu,se reduziue finalmenteexplodiuemchamasnumclarão rápidoe instantâneo,antesdesumirporcompleto.Epodenãotersidonada,ouquemsabefossemosdoissulcossangrentoseestreitosnotopoarredondadodacoisa.Ofatoéque,semnenhumlixoporcima,apedraderepentepareceuvaziaeàespera,comoumapequenamesamortuária.

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AESCOLHAAGORAQUETUDOTINHAPARADO,aspernasdeGeorgecomeçarama tremerdeverdade.Maisumavezelesentiuqueiachorar,eumavezmais—quasenãoconseguindo—decidiuquenãoia.Estavaexausto,otipodeexaustãoquelevaaosonocomoumacontracorrenteruim,otipodeexaustãocontraaqualsesabequeéprecisolutarporqueosonoquevirácomelanãoédejeitonenhumumsonobom.EleolhouaoseuredorparaverseoArtilheiroaindaestavaagachadoaoseulado.Estava.Eseusolhosaindagarimpavamotrânsitoàsuafrente.Ládecimaveioumassoviopenetrante.GeorgeolhouparaoArcodoTriunfodooutroladodagrama.Aestátuadeumamulherpuxadaporumacarruagem com cavalos em riste dominava o topo. O assovio veio de novo, desta vez tão agudo eestridentequeperfurouostímpanosedoeunosouvidos.OArtilheiro apagou a bituca de seu cigarro, enfiou-a no bolso e se levantou nummovimento único edecisivo.—Oqueéisso?OsolhosdoArtilheiroseguiramseuolharatéoscavaloscongeladosnocéu.—ÉaQuadriga.—Não...—disseGeorge.Oassoviovoltouasoareagoranãohaviacomoconfundirsuamensagem.—Isso—elecompletou.—Éumaviso—disseoArtilheiro.—Sobreoquê?OArtilheiroexaminouostelhadosdosprédiosdooutroladodarua.—Issonãoéhoraparaperguntas,filho.Éhoradaescolha.Georgeabriuaboca.OArtilheirocomeçouaandar.—Aescolhaéficarouir.AquelaexaustãodominavaGeorgedetalmaneiraqueelequeriaparardenadarcompletamenteeafundar.Fecharosolhospareciaumacoisatãoboaqueeledeixouqueelestremulassemantesdesacudiracabeçaetentarpensar.—Nãoseioqueestáacontecendo—começouele.—Sim,vocêsabe.Vocêestáfazendoumaescolha.Agora.Irouficar?Viveroumorrer?Desúbito,esemsaberporque,Georgeficoucomraiva.—Issoéridículo...OArtilheirocuspiu.—Claroqueé.Morreréridículo.Edaí?Avidanãoéumapiada?Nãoéporissoqueémelhorvocêdar

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risadaesedivertirenquantoestiverporaqui?Masésuadecisão.Paraqueladovaipular?A tremedeiranaspernasdeGeorgevirouumbate-batecontraapedra.Quandoele falou, suavozsaiumaischoramingonadoqueerasuaintenção.—Realmentenãoseioqueestáacontecendo.Oassovioganhouumstaccatomaisintenso.OArtilheiroagarrouseubraçoeolevantouatéqueseusrostosestivessememparelhados.—Maseusei.Deu um branco namente deGeorge. Ele não conseguiu dizer nada.Não conseguiu sequer pensar emqualquercoisa.OArtilheirodeudeombros.—Certo.Entãovouvoltarparaomeupedestalevouficarolhandooqueacoisaqueestáacaminhovaifazercomvocê,porquesevocêé tãoidiotaapontodenãoquerersesalvar,entãonãovaleapenaeuperdermeutempo.ElepôsGeorgedevoltanochãoesevirou.Georgesegurouseubraçoenãosoltou.—Não.Meajude.Orostonegroolhouparaeleporumbomtempo.Algumacoisamudounasuaexpressão,talvezaformadoqueixo,talvezasrugasquesurgiramaoredordosolhos.—Deusajudaaquelesqueajudamasimesmos.—Oquequerdizer?—Querodizer:segureaminhamãoecorracomoumlouco.Georgedeixousuamãoserencobertaporaquelamãoenormeenegra.Teveapenasummomentoparaperceberqueasensaçãoeradeummetalmaleável,enãofriocomotinhaesperado,antesqueseubraçofossequasearrancadopeloombroquandooArtilheirocorreunadireçãodotúnel.Deslizaramparaotúneliluminadoesuaspassadasecoavampelarampabaixa,indoparaonorteembaixodo trânsito.Nomeio do caminho, havia um cantor dedilhando sua guitarra, entoando commuitomaisvontade uma velha canção de Simon e Garfunkel sobre estar seguro em uma fortaleza profunda epoderosa,massemaprecisãodaversãooriginal.Seus olhos acompanharam George se aproximando. Não deu sinal de notar o Artilheiro, ou de estarouvindo as batidas surdas das tachas demetal de sua bota no concreto. Apenas observouGeorge seaproximando,primeirocomtédio,depoiscomdesprezo.Deixoudecantarummomentosuficienteparacuspir um “obrigado” sarcástico quandoGeorge passou pelamaleta vazia da guitarra sem jogar nadaparaacompanharamíseraporçãodemoedasespalhadasnoseuinteriorescarlate.Georgeaindaolhavapara trásquandooArtilheirooarrastoupelosdegrausparadentrodobosquenoHydePark,escuroecobertodeárvores.—Elenãoviuvocê!O Artilheiro continuou correndo, passando entre os pedestres a caminho de casa naquela penumbraacentuadapelailuminaçãobranco-prateadadasruas,seafastandodotrânsito,penetrandocadavezmaisnobosque.—Nenhumdelespodevervocê!OArtilheiropuxouseubraçobemnomomentoemqueelesedeucontadeumtroncodeárvorequese

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destacavabemàsuafrentenaquelaescuridãomeioalaranjada.O que foi uma pena. Porque se ele tivesse continuado olhando para trás teria percebido que estavaerrado.Um par de olhos os observava. Um par de olhos que se arregalava com algo mais intenso do queincredulidade.Osolhosqueosseguiampertenciamaumacabeçacobertacomlongoscabeloscastanhostãoescurosebrilhantesquechegavamaseassemelharàcordeberinjela.Eramolhosbemespaçados,com cílios curvados que poderiam parecer asiáticos se não pertencessem a um rosto cuja palidezlembravamuitomaisonorte.Noandardecimadeumônibusvermelhoquepassavaàesquerdadapistadedicadaaoscoletivos,umamenina da idade de George se levantou de seu assento e fez seu caminho cambaleante entre ospassageirosdepé,seusolhosfixosemalgoquedesapareciaparadentrodoparqueenquantooônibussedistanciavaealevavacadavezmaisparalonge.Bruscamente, eladeu sinal deparada edesceu aospulos a escada espiral, alheia às reclamaçõesdospassageiros,ignorandoosgritoseasmãosquetocavamseucasacodepeledeovelha,aomesmotempoem que abria caminho até a plataforma traseira do ônibus, os olhos examinando minuciosamente aescuridãoàprocuradealgoquejánãopodiamaisver.Omotoristaadeteve.—Você,menina,espere.Elanãoolhouparatrás.—Precisodescer!Oônibuscontinuouveloz,descendoaRottenRow.—Daquiapoucochegaopróximoponto—disseomotorista,semsoltá-la.Oônibusdiminuiuavelocidadeparadeixarpassarumtáxi.Ameninatorceuacabeçacomoumacobraemordeuomotoristaentreopolegareoindicador.Aoqueelegritouesoltouseubraçocomosusto,elapulou da traseira do ônibus que semovia lentamente, cambaleou, caiu, levantou-se, driblou um outroônibus,quetevedefrearbruscamente,ecorreuparaoparque.Amenina—quesechamavaEdie—nãopareciaseimportarcomomachucadorecentenojoelho,nemcomasbuzinasinsistenteseosgritosquedeixavaparatrás.No entanto, a outra coisa que se destacava naquele rosto pálido sob os cabelos brilhantes cor deberinjelaeraasuadurezadeexpressão,irredutívelalémdesuaidade,umafirmezaquevinhadofatodeterdecididonuncamaisseimportarcomminúcias.Esuaexpressãoeraadeumrostofirmenaperseguiçãodealgumacoisagrande.

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ESTACIONAMENTOO ARTILHEIRO SEGUROU GEORGE no meio do traçado intricado de sombras que dançavam numa luzprateada,sombrasformadaspelosgalhosdeplátanos.Eleolhouaoredor.Georgeseconcentrouemtomarfôlego.Esperouatépodersercapazdeabrirabocaparaperguntar:—Estamosseguros?OArtilheirosimplesmentecontinuouasemovimentar,masdestavezGeorgenotouquenãoeraacorrerialouca.Eramaiscomoumjogodeesconde-esconde,emqueoArtilheiroosmudavarápidodeumaporçãodesombraparaoutra,semtirarumolhodoquequerquefossequeosperseguia.Agoraqueestavamsemovendoumpoucomaisdevagar,amentedeGeorgetinhaespaçoparamaisdoqueoterroreatarefaárduadecontinuarrespirandoapesardaspontadasnascostelas.Ospensamentoscirculavamnasuacabeça,umatrásdooutro,antesqueelepudessesefixarneles,comoassistiràtevêenquantooutrapessoaseguraocontroleremotoecontinuamudandooscanais.PensounoSr.Killingbeck.Pensounasuacasa,noapartamentovazioondesuamãeaindanão teria tido tempodesentir sua falta.Pensou em quando e se ela sentiria falta dele.Outro pensamento relampejou na suamente, a imagematerrorizadoradoPterodáctilosearrastandoatéelepelotrânsitoparado.Pensounoseucelular,enfiadona mochila, trancada no compartimento escuro do vestiário do museu. Viu as salamandras de pedraarmandooboteparalhetiraravida.Foiaíquevomitou.EnquantooArtilheirotentavapuxá-lo,eleseapoiounotroncodelgadodeumplátanoe vomitou.Duas vezes. Seu estômago tentou pela terceira vez,mas não haviamais nada, apenas umasensação efervescente na nuca e o tremor que parou quando oArtilheiro pôs sua grandemão em seuombro.—Melhorou?—perguntouele.Georgenegoucomacabeça.—Vocêatéquefezbem.Nãosujouossapatosnemnada.Segurefirme.De repente ele levantouGeorge nos seus braços e pulou omuro baixo na beirada do parque.Georgeabriuaboca,masasensaçãodeestarcaindonomeiodeumespaçoprofundoodeixoumudo.SentiuuminstantedevertigematéqueasbotasdoArtilheirotocassemnocimento.Georgeolhouaoredoreviuquehaviam pulado uma espécie de murada que escondia um vão de uns cinco metros de altura. O vãoterminavanumarampaquelevavaaumestacionamentosubterrâneoembaixodoparque.OArtilheiroocolocounochãoecaminhoucomelesemfazerbarulho,descendoarampaparaoespaçosubterrâneo.Oestacionamentoestavavaziodepessoas,masrepletodecarros.Nadistânciaseouviuoruídosolitáriodafreadadeumpneuemumoutrocantodolugar,masagoraoArtilheiroeGeorgeconstituíamosúnicosmovimentosentreoscapôsepára-brisasqueseenfileiravamsobluzesfluorescentes.OArtilheiroandouentredois carros, achouumasombraatrásdeumapilastradecimentoe seagachouali.Georgeolhouparaele.—Oqueestamosfazendo?—Esperando.—Esperandooquê?

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—Queacoisaváembora.—Quecoisa?—Nãosei.Querirláforaedarumaolhadinha?Georgenãoqueria.—Alémdisso,vocêestáacabado.Éporissoquevomitoutudo.Aexaustãotemumlimiteevocêacaboudeultrapassá-lo.É comoos cavalos.Agora só precisa descansar umpouquinho...Eu sabia lidar comcavalos.GeorgenotouqueoArtilheirocarregava rédeasdemetalenfiadasnocinto, sobsuacapadechuva.OArtilheiropercebeuqueeleolhava.—Artilhariaacavalo.Puxávamosasarmasatravésdalama,tentandonãomataroscavalosmaisvelhosenquanto fazíamos isso. Se perdêssemos um cavalo, perdíamos a arma. Perder a arma era perder abatalha.Eseperdêssemosmuitasbatalhas,então...Elepareceuvoltarasi.ParaGeorge,eracomoseoArtilheiroestivessevoltandoparaoaqui-e-agoradeumlugarmuitodistante.—Bom.Oagoranãotemnadaavercomisso.Recupereofôlego.OArtilheirotirousuabitucadobolsoeaacendeu.Georgeolhouparaeleedepoisparaosalarmesdefumaçanoteto.OsolhosdoArtilheirosefixaramemGeorgeenquantooselosdefumaçaflutuavam,subindo.—Oquê?—Euachoque...—Achaoquê?—Euachoquevocênãopodefumaraqui.OsolhosdoArtilheirocontinuaramimpassíveis,masalgotremeusobsuapeleescuradebronzeescuro,nocantodaboca.Apesardetudo,Georgesentiuumavontadesubindoatéseurosto.Aúltimacoisaqueelequerianaquelahoraerarir,masorostodoArtilheiroseabriueelesentiuvontadedeacompanhá-lo.E,exatamentecomoaspequenasrachadurasdãoosinaldequeodiquevairomper,quandooArtilheirocomeçouarir,Georgeoseguiu.—Nãopossofumar?Nãopossofumar!OArtilheiroriucomoumsinoressoando.ArisadadeGeorgevinhadepois,maisaguda,maisleve,comecos de histeria.De algumamaneira todo aquele pavor e incompreensão encontrou uma expressão narisadadele.Nãosabiaporqueascoisaseramtãoengraçadas,apenassabiaquerireraocorreto.Teveumalembrançainstantâneadeseupaiarrotandonamesadojantarerespondendoàdesaprovaçãodesuamãecomumprazeroso“Melhorforadoquedentro”.EraissoqueGeorgesentiaagora,essarisadaeraagotafinaldoterror.Nãotinhaidéiadoqueestavadizendocomaquelarisada,massabiaqueeramelhorfora do que dentro. Engarrafá-lo teria rompido algo dentro de si. Rir não fazia sentido nenhum,maspareciacerto.OArtilheiroenxugouosolhos.—Nãopossofumar?Eupossodescerdeummonumentonocoraçãodacidade,atiraremquatroestigmas,arrastarvocêpeloparquenamaiorrapidezsemninguém,nemummendigomever,semninguémpiscarumolho...evocêvemmedizerqueeunãopossodarumtrago?Orabolas!

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Ele parou de rir. George continuou um pouco mais e logo cessou a risada, tão abrupta einexplicavelmentecomotinhacomeçado,quandosentiuqueoArtilheiroesperavaalgodele.—Vocêprecisaprestaratenção,meufilho.Porqueasregrasdascoisasquandovocêacordouhoje,bom,oqueestavaemcimaaindaestáemcimaeoqueestavaembaixoaindaestáembaixo,masenomeio?Asapostassãooutras.Eéaíqueaporcatorceorabo.SeusolhosficaramfixosemGeorge,enquantosopravaumalongacadeiadeelosdefumaçabememcimadoalarme.—Oquequerdizer?—Quero dizer: você quer sobreviver a isto, então vai precisar pensar primeiro e fazer as perguntascertas.E“Oquequerdizer?”nãoéaperguntacerta.Georgecomeçouatremer.Abriuaboca.Pensouumpoucomais.Fechouaboca.OArtilheirodeuumgrunhidodeaprovação.—Issoémuitobom.Engatarocérebroantesdeacelerarcomaboca.Nãoligueparaatremedeira.Éochoque.Vaipassar,ouvocêvaificarmeiodoidinhoporumtempo.—Nãoqueroficarmeiodoidinho.—Podenãoserapiorcoisaquevaiacontecer.Georgebaixouosolhosparaocimentomolhadosobseuspés.—Achoquejáfiqueidoidinhohápoucotempo.Achoquetudoissoédoideira.Achoquealguémbotoualgumadroganaminhacomidaoualgoassim.Achoquetudoissonãoestáacontecendo.OArtilheiroficouolhandoparaele.Georgeimaginouqueeletalveztivesseviradoestátuadenovo.—Olhe—disseeledepoisdeumapausa—,mediga,porfavor,oqueestáacontecendo.Medigaquemévocê.Medigaoquesãoaquelascoisas.Porfavor.OArtilheirobateunopeito.—Eusouumaestátua.Elessãoestátuas,ornamentos,oquefor.Masissoétudooquetemosemcomum.Eusouumcuspido,elessãoestigmas.Estigmasodeiamoscuspidos,cuspidosnãosãomuitochegadosaos estigmas por causa disso. Pode-se dizer que existe uma certa animosidade entre nós desde que oprimeiro homempensou em esculpir alguma coisa e botar umpouco dele naquilo que formou. Somosambos “feitos”, compreende?Ambos criados por artesãos ou atémesmo artistas, não importa, nós oschamamosde“fazedores”.Noentanto,somostãodiferentescomoaáguaeovinho.—Osestigmassãomaus?—Sesãomaus,issonãosei.Sóseiquesãoruins.Querodizer,nãotemnadadehumanoneles.Foramfeitosparaassustar,paraseremfeios,paraolharemparavocêdesoslaiodotetodeumaigrejaelhedararrepios.—Gárgulas.—É.Algoassim.Querodizer,todasasgárgulassãoestigmas,masnemtodososestigmassãogárgulas,se équevocêmeentende.São coisas comoasgárgulas, coisasque foram feitasparanos lembrardoinferno, com a função de afastar o demônio.Não há nada de humano neles.Vazios. E como todas ascoisasvazias,elestêmfome.Nãodecoisasdecomer.Fomedaquiloquefazcomquevocêsejaoquevocêé,eeusejaoqueeusou.

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GeorgepensounoolharenobicoafiadoecheiodedentesdoPterodáctilo,ecompreendeuexatamenteoqueoArtilheiroqueriadizer.—Comadiferença,porém,dequeeusoumenoseudoquevocêévocê,poiseusouumcuspido.—Oquequerdizer?—perguntouGeorge,emboranomesmoinstanteemquefezapergunta,algonoseuíntimo lhe dissesse que já sabia, que já lhe haviam dito isso antes. Pensou que se parasse e tentassepensar,lembrariadaresposta.Masantesquelembrasse,oArtilheirofalou.—Um cuspido é uma estátua que o “fazedor” (escultor, artífice, o que for) fez para representar umapessoahumana.Eporcausadisso,enquantoofazedortrabalha,umapartedaquilosetransfereparanósepreencheaquelevãoquenosestigmasosconsomepordentro.Querodizer,aestátuadoLordKitchenernãoéoLordKitchener,maselaé...bom,elaéoqueoescultorpensavaesabiasobreoLordKitchener.É como se ela tivesse uma centelha do espírito de Lord Kitchener dentro dela. Ela é o espírito e aimagemdeLordKitchener.Ocuspidoeescarrado,porassimdizer.Issofazsentidoparavocê?George precisou pensar antes de responder. Ele sabia sobre escultores. Lembrou das conversas quemencionavam “pôr algo de si mesmo” em certas coisas, e de conversas sobre as coisas “setransformandoemcoisavivanassuasmãos”.Eleapertouamassadeceranobolsoeconfirmoucomacabeça.—Entãoquemvocêrepresenta?—SouoArtilheiro.Ninguémespecial.Apenasumsoldado.DaPrimeiraGuerraMundial.Oúnicooutronomequetenhoéodaquelehomemquemefez.Domesmojeitoquevocêlevaonomedaquelequefezvocê.Qualquerquesejaoseunome...—Chapman.SouGeorgeChapman.—SouJagger.MeufazedorfoiCharlesSargeantJagger.Assim,eusouumJagger.Vocêtemumafamíliagrande?—Não.—Eutenho.TemJaggersespalhadosporLondresinteira.Jaggersedeubemcomaguerra.Aspessoasgostavamdoqueelefazia,dojeitoqueelenosfaziaparecerheróis,semexagero.Elenosfezprimeirocomohomensquesabiamoqueera lamaeoqueeramorrer,esódepoisnosfezparecerheróis.Paraaquelesqueperderamfilhosemaridos,parecíamoscomoshomenscomoqueriamselembrardeles,oshomensquepoderiamtersetornadoantesqueosfilhos-da-mãedosgeneraisosmandassemparaseremabatidospelosalemães.—EntãopossochamarvocêdeJagger?OArtilheiroficouquietoeolhouparacima.—Oqu...OArtilheiroolhouparaeleebotouodedosobreoslábios.—Quietinho.Devagaresemfazerruído,tirouorevólverdocoldre.—OGatoestánotelhado.

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OGATONOTELHADOOESTACIONAMENTOTINHAUMTETO de quase ummetro de espessura, feito de cimento reforçado combarrasdemetal.Sobreocimentohaviamaisdoismetrosdeterra,pesadaepegajosa,comoaargilademodelar.Aterraerareforçadapelasuaprópriateiaderaízesdasárvores,cruzandoumassobreasoutras,pois cada árvore se estendia com suas raízes mais finas através da argila numa explosão lenta emicroscópicaembuscadeáguaealimento.Esteentremeadoporsisótambémpossuíatúneisfeitosporminhocas,queseenfiavamcegamentesobochãodoparque,noseu labutarnormal.Eno topode tudoissohaviaagrama—raízesbrancasnaargila,brotosverdesacimaalcançandooar, tentandorespiraralgumoxigênionomeiodapoluiçãodamarédetrânsitoinfinitoeconstantequeatravessavaaParkLane.Nosdezcentímetrosdegramaquecobriamaterra,ficavaummundinhodeinsetoslabutandosemtréguadamesmaformaqueoshabitanteshumanosdacidadeaoseuredor.Haviaformigas,haviajoaninhas—eporummomentohaviaumbesouro.Edieoviuclaramente, suascostasnegrase reluzentes refletindoa luz laranjaprateadadospostesnasruas enquanto ele semovia lentamentedeummaçode cigarrosvazioparaummontedevômito.Ediesabiaqueapequenapirâmidenagramaeravômitoporquesentiaocheiro.Sentiuocheirodemaneiramuitomaisfortedoqueteriapreferidoporqueseunarizestavarenteaochão,comoorestodeseucorpo,esparramadoembaixodeumarbusto,quasesemrespirar.Sabiaqueobesouroeraumbesouro—eagoranãoeramais—porqueagárgulapulouummetroàsuafrenteeviuasuapatadepedra—olhandodepertoeramaisumagarradoqueumapata—pisarcomumesguichosobreaargila.Edie se esgueirou ainda mais para as sombras do arbusto, tentando se mover tão sorrateira ecautelosamentecomoasraízessobochãoembaixodela.Suamãoesquerdaseguravaumpequenodiscodevidroquereluziaazuladoentreosseusdedos.Tambémestavaquente.Elaenfiouodisconobolsosemtirarosolhosdagarradepedraaummetrodeseunariz.Agoranãoprecisavamaisdodiscodeaviso.Acoisaestavaali.Estavapertodemaisparaseuconforto.Eraumagárguladepedracalcáriacomorostodeumgatorosnandoeoschifresdeumpequenodiabo.Tinhaasas,masnãobraços,possuíapernaslongasepoderosasqueterminavamnaspatascomgarrasquehaviam acabado de esmagar o besouro. Os olhos eram de pedra como o resto do corpo, o par desobrancelhastinhaumardeferocidadeerancor.Umséculoemeiodeexposiçãoaotempohaviadeixadolistrasescurasecinzentasnapedra,enuminvernoduroageadaexpandiraaáguaatéumvãonasuaasadireita, desintegrando uma parte e dando uma aparência assimétrica de uma lesão adquirida numabatalha.Ediesabiaqueeraboa—muitomaisdoqueonatural—emsefazerinvisívelquandosuaintençãoerapermanecer incógnita.Desejou,porém,seraindamelhoraoobservarogato-gárgulase inclinarparaochãoefarejar.Quandoelerespirou,elaouviuumassoviobaixo,comoalguémsoprandonogargalodeuma garrafa. Elemoveu a cabeça de um lado para o outro no chão, tentando farejar uma pista. Ediedecidiuparardesemoverparatrásetentousefazerinvisível.O gato-gárgula se afastou dela e foi até o parapeito sobre o qual George e o Artilheiro haviamdesaparecido.Aosevirarparalonge,enquantosepreparavaparafarejareassoviaraoseguirsuapistaao longodo topodomuro,Ediesepermitiu respirar fundo.Tambémeraumaótimaoportunidadepara

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notar a crista espinhosa de vértebras nas costas dele, como uma fileira de espinhos gigantes tentandoarrebentar através da pele rija de pedra. Ela via os músculos felinos densos contraindo e relaxandoquandoelesemoviaparafrenteeparatrás,comosedançasseemumtranselentoguiadopelasnarinas.FoiquandoEdiepercebeuamulherpuxandoumcarrinhodebebêeumacockerspaniel,andandorápidona escuridão alaranjada, claramente atrasadapara algumacoisa emuito irritada com isso.Acachorracorria à frente da mulher, sacudindo as orelhas de felicidade. De repente ela parou, as orelhas seenrijecerameelarosnou.OprimeiropensamentodeEdieeradequeelatinhavistoogato-gárgulaadoismetrosdedistância.Ogato-gárgulavirou-seeolhouparaacachorra.Amulherestalouosdedosparaacachorranomomentoemquepassavanaquelepontodocaminho.—Brande.Venhacá.Brande.Brandesecongelaraemumrigortrêmulonafrentedogato-gárgula.Osspanielsnãocostumamtermuitasidéias,porissoquandoumaidéiavemàcabeçaelesseapegamaelacomocola.Ecomumfrioterrívelnabarriga,EdiepercebeuqueaidéiaaqueBrandeestavaseapegandonãoeraadeestarvendoogato-gárgula.EraaidéiadeestarvendoEdiesoboarbusto.—Brande!Venha!—gritouamulher,deixandoocarrinhoeseaproximandodacachorraedagárgula.Ogato-gárgula deu um passo para trás e se agachou, abrindo as asas, paralelas ao chão, pronto paradestroçaroqueestivesseàfrente.Edieviuqueapontadecadaasatinhaganchosafiados.Elaumavezassistiraaumatouradanatevêeotoureirohaviafeitoomesmogesto,dandoumpassoparatrás,abrindoacapanassuascostas,escondendoaespada,mostrando-se inocente,masprontoparaatacarquandootourochegasseperto.A mulher passou rente ao gato-gárgula. Edie imaginou que ela devia ter chegado a tocá-lo com seucasaco,mas era óbvio que não o via, damesmamaneira que sua cachorra.Amulher pegou a cockerspanieleprendeuacorreianacoleira.—Vamos,sualevada,nãohánadaaqui!—disseelaenquantopuxavaacachorraparalonge.Acachorracomeçoualatirparatrás,oslatidosaumentandodevolumeconformesuadonaaarrastavaparalonge.Oslatidosterminaramemumgemidoquandoacadelinhalevouumtapanofocinhoefoipresaaocarrinho,cujoocupanteagorachoramingava.Oventocomeçouasoprarmaisforteentreosgalhosdasárvoreseamulherfranziuorostoexasperada.Elatirouasombrinhadabolsapenduradanocarrinhoeaabriucomapenasumamão.—Venha.Vaichover.Precisamoschegaremcasa.Sejaboazinha,Brande.OtapatirouEdiedacabeçadaspanieleelaseguiuadonaatéqueasduassumiramemmeioàescuridão,apósamãepôrumacapadeplásticosobreocarrinho.Ediesepreparoupararespirardealívioquandopercebeualgomuitopior.Ogato-gárgulacontinuounasuaposiçãode ataque; no entanto, sua cabeça se virará lentamente e estavaolhando sobreos ombrosdiretamenteparaondeacachorratinhadirecionadoseuslatidos.ParaEdie.De repente, de forma tão rápida que seus olhos mal acompanharam, ele trocou a posição do corpo,virando para o arbusto. Mantendo as asas de garras afiadas abertas, como uma imagem terrível dasombrinhaqueEdieacabaradeveramulherabrir,eleseagachouaindamaisefarejouvoltadoparaela.Lentamente,apontadeumaasaafastouoarbusto,eentãoEdienãotinhaparaondecorrer.Osolhosde

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pedraolhavamparaela.Edietevetempoderegistrarqueaquelarespiraçãosibilantevinhadocanodecobrecorroídoqueseprojetavaretodabocadomonstro,comoocanodeumaarma.Edieenfiouamãonobolsoetirouodiscodevidro.Oqueantesreluziaazul,agoraincandesciacomoumarchote,comoumarchoteverde-azulado.Elaposicionouovidrocomobraçoesticado,segurando-ocomapenasumindíciodetremor.Foinavoz,porém,queelamostrouseumedo.—Váembora.Elalimpouagarganta.Disfarçouotremordavozetentoudenovo.—Váembora!Vocêtemdeirembora!Umolhodepedrasearqueoucomosequestionasse.Orosnadoferozaumentouaindamaiseoschifresseabaixaramcomoasorelhasdeumcão.Elenãofoiembora.Deuumpassoàfrente,abrindoaindamaisoarbusto,revelando-aparaomundoeparaoquequerqueelepretendiafazercomela.Entãoveioachuva,primeiroumagota,depoisumplimplimdegotas,elogosempararummardeáguacomeçouacairdocéu.Ediefezcaradebravaeencaroudestemidaosolhosdepedraatravésdacortinadeágua.—Você.Não.Me.Assusta.—mentiuEdie.—Nadameassusta.Nãomais.Vocênãopodememachucar.Vaiterdeirembora!Ogato-gárgulaestremeceueolhounosseusolhos.—Vocênãomeassusta...—mentiudenovo.Eogato-gárgulapulou.Paratrás.Paraocéu.Paraomeiodachuva.Paralongedela.Edieficouolhandofixoparaolugarondeelenãoestavamais,atéseusolhosconvenceremseucérebrodequenãohavianadaali,anãoserachuva,agramaeaquelaluminosidadealaranjadaelúgubre.Elaolhouparaodiscodevidronasuamão.Enquantoolhava,aluznodiscomorreueelesetransformouexatamentenoqueeradefato,umcacoantigodevidro,ofundodeumagarrafalavadonasondasenamaré,arredondadoporseixoseareia.Algoquequalquerumpoderiaencontrarnumpasseiopelacosta.Edieenfiouovidronobolsodeseucasacodepeledeovelha.Respiroufundováriasvezesecaminhoupelagramaatéarampadoestacionamento.

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ESTACIONADOGEORGEEOARTILHEIROolharamparaotetodecimento.OArtilheirosorriu.—Foiembora.Georgeencostou-secontraaparedeeficouolhandoagrelhadoradiadordeumaMercedesnasuafrente.—Oqueera?—Umestigma.—Umestigma?OArtilheirodeudeombrosesecoçoucomumprazerhumanoinesperadoparaumaestátua.—Provavelmenteumagárgula.Voava.Amaioriadosestigmasvoadoressãogárgulas.Georgearquivouissosob“NovaInformação”esentiuquehaviaumasobrecarganaqueledepartamento.—Espereaí.AcoisaquemeperseguiudoMuseudeHistóriaNatural.Astrêssalamandrasquedesceramdaparededoprédio.Ascoisasemquevocêatirou.Eramtodosestigmas?—Agorasim.Vocêpegaascoisasrápido,nãoé?Secontinuarassim,quemsabeatésobrevivaestanoite.Georgeiaabrirabocaparafazerumaperguntaparaaqualrealmentenãoqueriaouviraresposta,quandoouviupassadasdealguémseaproximando.OArtilheiroofezficarquietotocandodelevenoseujoelho.Aspassadaspararamnafrentedeles.Elesouviramobarulhodeumachavevirandonumafechadura,osólidoclique-claquedaportadeumaMercedesseabrindoefechandoeozumbidodomotoracordandoatrásdagrelhadoradiadorbemnacaradosdois.—E...—disseGeorge.Os faróis foram ligados. George e o Artilheiro foram iluminados como duas figuras em um desenhoanimado,pegosdesurpresanaluzdosholofotescontraocinzadaparede.—Socorro!—gritouGeorge,esperançoso,paraorostoatrásdovolante.Orostoolhouatravésdeleedepoisparalonge,aovirar-separadarréesairdavagadoestacionamento.—Elenãopodevervocê—disseoArtilheiro.OsfaróisoscortaramquandoaMercedesdesengatouaréecontinuouparaafrente,cantandoospneuseatravessandoasfileirasdecarrosestacionadosàprocuradasaída.—Porqueelenãopodemever?—perguntou,sentindo-secomosenãodevessetergritado“Socorro”,comosedealgumamaneira,dadaasuasituação,devesseserrude.—Bem,nãoéqueelenãopossa.Osolhosdelefuncionam,masénacabeçadelequeelenãoovê.Seucérebronãodeixa.—Porquê?—Porqueeleéumcaranormal,racional,anãoserporestardirigindoumcarroalemão,eumapessoanormal e racional não acredita que alguém possa andar por Londres com estátuas. E com razão. Éimpossível.Assim,suamentenãoacreditanosseusolhos.Éumacoisadeproteção.Seelepudessenos

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ver,entãosaberiaqueestava,sabecomoé...—Doidinho.—Issoaí.—Então,porqueeuvejovocê?OArtilheirosecocouumpouquinhomais,daíselevantouderepente,esticandoopescoço.—Porquealgumacoisavocêfez.Nãoseioquê,masdevetersidoruimparadeixartodosessesestigmasfuriososassim.Imaginoqueprecisamosdescobriroquefoi,masvoulhecontarumacoisa:foialgotãoruimquefezvocêsairdasuaLondreseentrarnaminhaLondres.Eissonãoénadabom.Pravocê.—Oquequerdizercom“sua”Londres?—QuerodizeraLondresemqueosestigmasodeiamoscuspidos,eascoisasquesãoimóveisnasuaLondres, naminhaLondres semoveme até brigam.Pensaque a suaLondres é a únicaque existe?AcidadedeLondresémuitomaisdoqueapenasumacidadeantiga.Elaécomoarochaeaargiladesuafundação. Tem camadas. Você apenas caiu de uma para outra. Agora vamos embora, precisamosperguntaràsesfingescomopoderemosresolver...Eleparou.Osouvidosaguçados.Georgedeuumpassoparamaispertodele,semsedarconta.—Ouviualgumacoisa?—Nada.Querdizer,ouvialgumacoisaparar,mas foiumacoisa tãosilenciosaquenãopercebiatéahoraemqueparou.Ospassoscomeçaramdenovo,destavezmaisaudíveis,seaproximando.OArtilheirorelaxou.—Tudobem.Ésóumapessoa.Relaxe.Nadacomquesepreocupar.—Nadacomquesepreocupar?OArtilheirosacudiuacabeçadecepcionado.—Sevocênãovaimeouvir,nãoháporqueeuficargastandominhasaliva,nãoé?Eujálhedisse.Umapessoanormalnãopodenosver,porqueparaelanós,eu,eusouimpossível,compreendeu?—eapontou.—Assimelanãopodenosver.Olhe.Umameninadedozeanoscomcabeloscordeberinjelaeumcasacodepeledeovelhaseaproximavadavagaondeosdoisestavamparados.OArtilheiroacenouparaelaedepoisolhouparaGeorge.—Viu?Nada.Agoratentevocê.Façaumacareta.Imiteumpeido.Elanãotemcomolhever,prometo.ElecutucouGeorge,que tambémacenou.Orostodameninanãoregistroumudança.Georgemostroualínguaefezumacareta.—Viu?—disseoArtilheiro.—Elanãopodenosver,porqueseucérebronãodeixa.— Posso vê-los perfeitamente— disse Edie.—Estou só esperando vocês pararem de fazer caretasridículasedizeremalgosensato.OArtilheiroolhouparaela.GeorgeolhouparaoArtilheiro.OArtilheiroolhouparaGeorge.—Ah—disseele.—Interessante.Nãoeraparaissoacontecer.Anãoser...Suavozflutuoucomoafumaçadeseucigarro.Eostrêsficaramparados,emsilêncio,porumbomtempo,semdizernada,sóolhandoumparaooutro.GeorgeolhouparaEdie,EdieolhouparaoArtilheiroeoArtilheiroolhoudevoltaparaEdie.Georgesesentiuumpouquinhoforadaqueladisputadeolhares.Por

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issoquebrouosilêncio.—Quemévocê?Edienãorespondeu.—OK.Porqueestáaqui?EdiedesviouoolhardoArtilheiroapenasosuficienteparadaraGeorgeumaolhadadefúriaedesprezo,emproporçõesiguais.—Seguivocês.Éóbvio.—Porquê?—Porquejáviestátuassemoverem.Muitasemuitasvezes.Masnuncavinenhumaoutrapessoaver.Foiisso.ElaentãodesistiudeganharacompetiçãodequemolhariaparaooutropormaistempoevoltouosolhosparaGeorge.Elepercebeuqueseusolhos tinhamamesmacordemarromprofundoqueseuscabelos,aquele marrom que quase chega a ser preto. Tão escuro que não se podia distinguir onde o olhoterminavaeaíriscomeçava.Eraumpoucodesorientador.Porquepeloqueelevia,asírispoderiambemseralfinetesdeódio.—Edaí?—desafiouele.—Daíqueacheiquetalvezvocêfossecomoeu.—Poiselenãoé—disseoArtilheiro,aindaolhandoduroparaela.—Elenãoénadacomovocê.Edie ergueu o queixo. Talvez para poder ver o rosto do Artilheiro. Talvez por simples provocação.Georgeimaginouqueseriamasduascoisas,masopensamentoacimadetudoissonasuacabeçaeraodequeaúnicacoisaaindamaisestranhadoqueseacharconversandocomumaestátuaquerespondiadevoltaeatiravaemcoisaseraveroutrapessoafazeromesmo.Decertaforma,ficardeladoobservandoalgo impossível acontecendo lhe nauseava aindamais do que elemesmo estar fazendo o impossível.Sentiuquesuamãotinhaescavadoamassadeceranoseubolsoenervosamenteaamassava.—Porquenão?—perguntouEdie.—Porquenão—respondeuoArtilheiro,comoseissoencerrasseoargumento,epassouporela indoparaasaída.GeorgeeEdieseolharam.—Eêê—disseele.Masissonãosooumuitoimpressionante.Porissoeletentou“Humm”,quesooutãoinútilquantoooutrosom.Osolhosnegrospiscaramparaeleumavez.Depoisviraram-seeseguiramoArtilheiro.—Ei!—gritouela.—“Porquenão”nãoéresposta.Porqueelenãoécomoeu?OArtilheiroparounarampa,olhandoparaachuvaquecaía.—Estoufalandocomvocê.OArtilheiroseviroucomoumraioeagarrouopulsodela.Elasepreparouparamordê-lo,damesmamaneirarápidacomofizeracomomotoristadoônibus,masparouantesqueseusdentestocassemamãodebronze.Emvezdisso,grunhiuderaivaedeuumchutenele.Adorfoitodanoseupé.Elepegounagoladeseucasacoealevantouatéqueestivessemcaraacara.—Euouvi.—Entãoporqueelenãoécomoeu?Elepodevervocê.Eleécomoeu.Eleé...

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OArtilheiroainterrompeu.—Elenãoécomovocê.Nãotemnadaavercomvocê.Ninguémécomovocê...Elatentousesoltar,maseratãoeficazcomochutá-lo.—Ninguémécomovocê.Ninguémtemsidocomovocêháanos.Nãovejoououçofalardealguémcomovocê há muitos e muitos anos. Há décadas. Ninguém viu. Alguns de nós até pensaram que seu tipoestava...Achuva formavaumapoçano fimda rampano lugarondeele tinhaparado, tentandoachar apalavracerta.Assimqueachou,enrolou-anabocacomoumdocefavoritoantesdedeixá-lasair.—Extinto.—Nãoseidoquevocêestáfalando.Eunãosouextinta.Estouaqui.Souuma...—Vocêéumafagulha.—Oquê?—Umafagulha.Vocêéumafagulha.ElaolhouparaGeorge.Eleencolheuosombros.—Oqueéumafagulha?—Umafagulhaéoquevocêéseestávendotudoisso.Vocêéumafagulha,umavidente,umacentelha;umapessoa tãoagudaebrilhantequeacaba se cortando, tão afiadaquepodecortar entre as camadasdiferentesde“oqueé”ede“oquepoderiaser”eacabacortandotambématé“oquefoi”.Um lampejo que quase chegava ao pânico passou pelos olhos de Edie,mas ela o afastou e ergueu oqueixoparaoArtilheiro.—Nãoseinadadisso.Nãoseioquevocêquerdizer.Eusouapenaseu...—Fagulhaéperigo.Fagulhaéaborrecimento.Fagulhaétantoproblemaqueacabaatraindoaindamaisproblemas.Uma fagulha é a última coisa de que precisamos se queremos chegar aonde estamos indo.Assim,vocêficaaqui,enósvamos.—Nãomedigaoquefazer—disseEdie,comfúria.—Meponhanochão.—Senãooquê?—perguntouoArtilheirocomumsorrisoperigosoefaceiro.Edie secontorceuparaalcançarobolsocomamão, tirandoebrandindoodiscodevidronacaradoArtilheiro.—Senãoeuusoisso—disseela.Eleolhouparaovidroopacoeredondocominteresse.Levantouamãoparatocá-lo.Deuumtoquecomumdedo.Odiscotiniu.—Vaiusaroseupedaçodevidro,éisso?Edieseconcentroufirmementeeconfirmou.—Eoqueelefaz?—Elereluzquandoasgárgulasestãopertoeelasvoamquandoovêem.Époderoso.Eletocounovidrodenovo.Derepenteelacomeçouasesentircomoumabobasegurandoovidroassim.Eleapôsnochão.

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—Vocêassustouummontedegárgulascomisto?—Sim.Não.Uma.Agoramesmo.Aquelaqueestavafarejandovocês.Elaveioatrásdemim,eusegureiovidroparaelaeelavoou.OArtilheiroolhouparaachuvacaindonoretânguloescuroondeestavamdepé.—Eporquevocêomostrou?Sabiaqueeleerapoderoso?—Eleesquentaquandoelasestãoporperto.Seilumina.Elesenteas...—Entãoéumaarma?—Deveser.Agárgulavoou.—Foiporissoquevocêotiroudobolso?—Não.Eutireiporquenãoconseguiapensaremmaisnadaparafazer.Osorrisodeleestavacomeçandoairritá-la.—Bom.Oporquênãoimporta.Ofatoéquefuncionou.—Estavachovendo?—Oquê?—Quandovocê pensouque tinha derrotado a poderosa gárgula, estava chovendo?Tinha começado achover?Ediepensou.Econfirmou.—Nãofoioseuvidro.Seuvidroéapenasumapedradeaviso.Nãoéumaarma.—Maselavoou!—Voouporqueéumagárgula.Éissoquegárgulassão.Apenasumabicaumpoucomaisornamentada.Umabicafeiapraburroemuitomal-humorada.Estaésuafunção,seupropósito.Quandonãochove,elaspodem irparaondequiserem,mas assimqueaprimeiragota caino telhadodoprédio emque ficam,entãoéparaláquedevemvoltar.Vingançaecuspidosnãofazemamenordiferença.Elastêmdecumprirseupropósito,domesmojeitoquetodomundotem.NãopodemnegarseuDestinoMaior.Têmdefazeroqueofazedorpretendeu.Georgetossiu.—Ofazedor?QuerdizerDeus?OArtilheiroriuenegoucomacabeça,espalhandoumarcodepingosaoseuredor.—Dedeuseseunãoseinada.Umfazedoréaquelequenosfaz.Omeucertamentenãotinhanadadedeus,nãooJagger.Elefoiumsoldadotambém,lutounaPrimeiraGuerra,voltoucomacabeçacheiadoqueviuecommãosqueajudavamaspessoasaverumpoucotambém.Ofazedordagárgulafoialgumartesãomedievalcomabocasujaeabarrigacheiadecervejaazeda,équasecerto.“Fazedoresfazemoqueéfeitoeaquelequeéfeitodevefazeroquepretendeuseufazedor.”Éassimqueé.Éassimquesemprefoi.Elevirou-separaEdie.— Seu vidro não a salvou, por isso não tente de novo. A chuva parou tudo, ou você teria viradopicadinho.Nãoéumaarma.Éapenasummeiodeaviso,nemmais,nemmenos.Agoranósvamos.Adeus.

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EleestalouosdedosparaGeorge.—Venha.Podemosnosmovermaisrápidoecommaissegurançaduranteachuva.Etemosumaboapartedacidadeparaatravessarantesdealcançarmosorio.—Porqueestamosindoparaorio?—Táfazendoperguntaerradadenovo.Venhaepronto.GeorgeolhouderelanceparaEdie.Elatinhaficadoparadanachuva,olhandoparaovidronasuamão.Doispassosateriamlevadoparadebaixodoabrigodaabadotelhadonarampa,maselanãopareciaseincomodar.Pareciamaisumamarionete,tristeemolhada,comalgunsdeseuscordõescortados.—Porqueelanãopodevir?—Jádisse.Elaéumafagulha.Edielevantouosolhos.Umrelâmpagoclareouocéueelaseretraiu.Poruminstante,masuminstantemuitocurto,Georgeaviumuitomais jovemebemmenosconfiante.Elaenfiouovidronobolsoe seabraçou,comosederepentepercebessequeestavacomfrio.—Maseuaindanãoseioqueéumafagulha!—disseela,afrustraçãoaparentenavoz.—Asfagulhassãoimprevisíveis.Eoqueagentevaifazerprecisarádetodaacautelaqueeupossoter.Fagulhasdãomásorte.Desculpe,masestaéaverdade.Agoratemosdeir.—OK.Podemir,tudobem.Maseuvouseguir.—Nãofaçaisso—disseoArtilheiro,ecomeçouasubirarampa.ElamandouGeorgeacompanharoArtilheiro.—Podeir.Vá.Vocêtemdeir.Senãonãovoupodercomeçaraseguir,nãoé?Georgesentiuumnónoestômago.QueriaficarpertodoArtilheiro,masalgumacoisaofezsesentirmalpordeixarameninaparatrás.Talvezestivessesentindopenadela,elepensou.Talvezfossepenadesimesmo.Outalvezquisessecompanhianesseseupesadelo.—Olhe—começouele.—Sintomuito...PLAFT.Elalhedeuumtapa.Oardornoseurostoodeixoutãochocadoquantotudooqueeletinhavividoatéaquelemomento.—Oque...Porquevocê...?Edieagarrousuagolaenquantofalava,baixoecomfúria.—Nãosintapenademim.Nãometratecomoseeufossemole.Enãogostedemim.Elesentiuosanguesubirnapartedorostoemqueamãodelaoatingiu.—Eunãogostodevocê.Enãotenteissodenovo.—Ótimo.Entãovamosnosdarmuitobem.Émelhorvocêseapressar.George olhoupara o topoda rampa.OArtilheiro tinha sumido.Ele não esperoupara pensar.Apenascorreupelasubidamolhada,gritando:—Espere!

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EMTERRENOELEVADOEXISTEUMASÉRIEdetelhadosíngremesnoladonortedaruaEustonemLondres,telhadosperfuradoscomtorresderelógios,torreões,agulhasechaminés.Essestelhadosformamocumedeumprédiodefachadatão ornamentada que ninguémque observe aquela sua exuberância gótica nota que também está sendoobservado.Mas acimados sessentamilhõesde tijolosque formama estaçãodeSaintPancras—eohotelqueseligaaela—ficaumadasmaiorescoleçõesdegárgulasdeLondres.Noladonortedoprédio,acimadostrilhosmolhadosquesaemdeLondres,espiamosolhosdepedradeumgato-gárgula,penduradoentreovãodeareogalpãodevidrodetrensabaixo,enquantoaáguajorradocanodecobrequeseprojetaentreseusdentesemumeternorosnadosilencioso.Omesmoaconteciacomtodasasoutrasgárgulasnotelhado,comexceçãodeumacoisa.Daquelasubiaumvapor,comoemumcavalodepoisdeumalongacorrida.Agárgulanãosabiamuito,massabiaumacoisa:havia falhado.AsoutrasgárgulasdoprédiodaSaintPancrastambémsabiamdisso.Dapróximavez,talvezmaisdeumadelasprecisassesairparacaçarembando.Edapróximaveznãopoderiamfalhar.

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CORRENDOSOBRESEIXOSROLADOSTALVEZ PORQUE AINDA CHOVIA, O Artilheiro não corria tanto. Ao contrário, andava rápido e comconvicçãopelaParkLane,mantendoafileiradeedifíciosbemiluminadosdaparteoestedeMayfairàsua esquerda eovãonegro repletode árvoresdoparque à suadireita.Mesmonãocorrendo,Georgeaindaseguiaemtroteparaacompanhá-lo.Eleficoucaladoenquantocaminhavam,passandoporbaixodedoisviadutoseentrandonoGreenPark.Suamente reverberavacomdúvidas,mas talvezporsesentirculpado por deixar amenina para trás, não disse nada. Sabia que, se fizesse qualquer outra perguntaagora, iaacabarpor incluirameninanoassunto.Assim,deixoupara lá.Oquefezfoiespiarpara trásquando achou que o Artilheiro não estava olhando e viu que ela os seguia a uns quinze metros dedistância.Edieobservavaomeninoenquantoo seguia.Elapercebeuque,devezemquando,eleespiava rápidoparatráseviravaparafrenteparanãoserpegoolhando.Eleerasóumpouquinhomaisaltoqueela,sebemqueelaeraaltaparasuaidade.Suaposturaerameiocurvada,comosesedesculpasseporalgumacoisa.Oscabeloseramlongosparaummeninodasuaidade,masnãotinhamgel,nemeramesticadosounada assim. Seu casaco esvoaçava com seus passos,muito grande para ele— comprado para servirenquanto ele crescia— e, como se para compensar, os tornozelos apareciam abaixo das calças queobviamentefalharamemseajustaraoseucrescimentoacelerado.Elalembroudaexpressãodeseurostoquandoelepediudesculpas.Eraumrostohonestoeeleaolharadiretonosolhosquandofalou.Haviagentilezasobatristezaeomedo.Foiporissoquelhedeuumtapa.Elaosseguiuatéapassagemsubterrânea—atéquesedeparoucomumabifurcaçãonotúnel—eentãonãotinhaidéiadequalcaminhoeleshaviamtomado.Escolheuodaesquerda,correndo,decidindoqueseeles tivessem tomado o da direita, ela teria tempo para dar uma corrida de volta e ainda conseguiracompanhá-los.Notúneldoladodireito,oArtilheirocomeçouacorrer.Georgenãoconseguiuseaproximardeleatéqueestivessemfora.—Porqueestamoscorrendo?OArtilheirovirou-se.—Estamosnoslivrandodoexcessodebagagem.Vamos.ElepuxouGeorgeatravésdeumacercavivaecontinuoucorrendo.Abaixodeles,Ediepercebeuquetinhatomadoocaminhoerrado.Deumeia-voltaepegouooutrotúnel,masquandosaiuparaoarnoturno,nemsinaldeles.Elachutouraivosamenteocascalho.Echutoudenovo.Depoiscomeçouacorrer,formandoumarcolargoatravésdasárvores,indonadireçãodoparquedeSaintJamesedoriomaisalém.OArtilheirodissequeestavamindoparaorio.Talvezpudessealcançá-losquandochegasselá.Aosentirocascalhosobseuspésligeiros,pensounapraia.Eporquecorria.EdiesabiaqueoArtilheiro tinha razãosobreumacoisa.Eladavamásorte.Opensamentoveiocomoumaonda,sugando-aparaofundo,paraumaescuridãonaqualelaachavacadavezmaisdifícilrespirar.

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Quantomaiselatentavafazersuamentecorrerparalongedaquelepensamento,maisaumentavaaquelasensação.Sabiaoqueeraisso:pânico.Eseentregaraopânicoeraperigoso,sabiadissotambém,porqueela deixaria de pensar com clareza.E pensar claramente era a sobrevivência dela.Tentar escapar dopâniconãoeranadafácil.Eracomocorrersobreseixos,comotentarsubirumaladeiranumapraiadeseixos,quandocadapassoparacimaresultavaemumdeslizamentodepedrasqueadeixavaumpassoparatrás.Equantomaisrápidotentasse,maiscansadaficava.Edieumaveztinhasecansadodemais,correndonumapraiadeseixos.Alguémaperseguia.Elaprecisoucorrerparalongedaágua,daareia,paracimadeummurodepedras,escutandoospassosdeleatrás.Osseixoscomeçarampequenos,pertodomar,eforamficandomaioresàmedidaqueoterrenoseelevava,aproximando-sedostrilhosnotopo.Seuspésfaziamumbarulhocrocanteenquantoelacorrianaspedrasmenores,virandoumraspadoedepoisumestaloquandoaspedrasmaioressechocavamcontraasoutras,deslocadaspelosseuspésdescalçosqueescalavamtentandochegaraotopo.Elanãoouviunenhumruídoatrásde si,portantoarriscouumaolhada.Porummomentonãoviunada,apenasosseixoseaareiacinzamaisàfrente,eaolongeoventoformandoaespumabrancadasondasquerolavamdoCanaldaMancha.Masentãoviuumreflexodevermelhoquandoelesetornouvisívelentreascercasdapraia,eaíelacorreuaindamaisrápido.Empânico.Enãoviuopneumeioenterradoqueafeztropeçaredeslizaratéopédaladeira.Caiucomumbaquesurdo,batendoorostoemumapederneiraalisadapelomar,masissofoisuasalvação.Caiudecaranumatrincheiraprofunda,talvezdeunsseismetros.Doseuladodatrincheira,aspedrasformavamummuroíngreme até encontraremummurodemadeira que se elevava aindamais alto doque do lado emqueestava.Erafeitodemadeiranova,torasmaciçastrêsvezesmaisgrossasdoqueosdormentesdostrilhoseparafusadasparafazerumadefesadaterracontraomar.Àdistância,elaviuasmáquinasamarelasdeterraplanagemeumgalpãoportátil,masestavamuitolongeedoladoerradodoventoparaquealguémescutassemesmoseelagritasse,ealémdissoparecianãoterninguémporlá.Erasábadodetarde,afinaldecontas,eninguémtrabalhaemumsábadodetardesepuderevitar.Estavasozinha e atrás dela podia ouvir as passadas barulhentas, crocantes, que logo se transformavam emraspados e estalidosdepedras contrapedras.Ela se levantou,deuumpassopara frente—e caiudenovo.Machucouo tornozelo.Ouviuo ruídodistantedeum tremseaproximando.Olhoupara trás.Eleresfolegavaalcançandoapartemaisaltadaladeira,orostotãovermelhoquantoseucasaco,quasetãovermelhocomoosanguequemanchavaolençoqueeleseguravasobreaface.Seusolhoseramquentesefuriosos,maselesorria.Nãoeraumsorrisocomoodeumvilãoemumfilme;seusorrisonãoestavadizendo“Peguei”.Eramaisaterrorizantequeisso,dadooquedisseraantes,oquetentarafazereoqueelatevequefazerparadetê-lo.Eraumsorrisoquedizia“Souseuamigo,somosamigos”.Elaconheciamuitobemaquelesorriso.Delesaíammentirasepromessaseameaçaseoodordopubeocheiroazedoerepugnantedetabaco.Daquelesorrisovinhamossonsecheirosdedor,traiçãoemedo.Eleparou,resfolegouesugouoar.Olhouparaosanguenoseulenço.Olhouemvoltadapraiavaziaporummomentoeparaaferroviaalémdatrincheirafundaedamuralhademadeira.—Acabotendouminfartosevocêcontinuarassim.Sorriuparaela.—Venha.Deixedetolice.Estátudobem.Edieteriamaisrazãoparaacreditarneleseeleaindanãosegurassenumamãoocaniveteaberto.—Venha.Ésóvocêeeu.Nãosejaboba.

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Edieouviuo tremseaproximar.Estavavindomuito rápido.Passaria tãovelozeelaaindaestariaali,sozinhacomeleeocanivete,comnadamaisdoqueoventoeomareapedrapesadasobapalmadesuamão.Elecuspiuepôsolençonobolso.—Sónós.Otremfezacurvaesurgiuderepenteali.Ateladearameentreasestacasdacercatremeuemprotesto.Edieselevantoueacenouparaotrem—seusgritosdesocorroabafadospelobarulho.Otremestavavazio.Oúnicopardeolhoseraodomaquinistanafrente—eleentendeumal,sorriueacenoudevolta,aoqueachouqueeramumameninaalegreeseupainumapraia.Esefoi.Edieficouolhandoasjanelasvaziaspassandorapidamente,comodentesocosdeumaroda,semumsemblantehumanoquequebrasseaquelauniformidaderetangular.Commaisumbaquedearvaziosefechandoatrásdele,otremsefoi,eelavoltouaveropântanoalémdostrilhoseoreflexoamarelodeadeusquandooúltimovagãopassouacaminhodacidadezinhaondeninguémaesperavaparaojantar.Nesse momento ela sentiu três coisas distintas, tudo de uma vez. Sentiu a mão dele agarrando seuscabelos.Sentiupânico.Esentiualisurapesadaeredondadapedranasuamão.Elasabiaquetraziamásorte.Sabiasobreopânico.Eraporissoquesemprefaziatudooquepudesseparaseprevenirdele.Agorasempreenfrentavaseusterroresdefrenteemvezdesevirarecorrersempensar,comohaviafeitoantes.Paroudecorrer.Tinhadeixadodepensar.Estavalembrando.Estavaolhandoparatrás.Precisavaolharpara a frente. Parou na escuridão e tentou acalmar a mente o bastante para pensar. Sua mão direitainconscientemente procurou o disco de vidro no bolso. A mão segurou firme o objeto enquanto elaacalmavaamente,osolhosfechados,concentrando-seemmanterarespiraçãoconstanteeamentelimpa.Quandoabriuosolhos,estavatudoclaro:antesqueelessoubessemqueelapodiavê-los,enquantoelaseaproximarasorrateiranoestacionamentosubterrâneo,elaouviuaconversadeles.OuviuoArtilheirodizerqueprecisavamfalarcomasesfinges.Elanãocaminharaportodasasruasdacidade,masconheciamuitas.Esóconheciaumlugarondehaviaesfinges.Eficavaàsmargensdorio.

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OENIGMADASESFINGESA CHUVA DIMINUÍA quando eles saíam da Strand e desciam para o Embankment às margens do rio.Quandodiminuíramoritmo,Georgepôdefazeraperguntaqueoincomodava.—Oqueacontececomumaestátuaquandovocêatiranela,comovocêfez?Elasvirampóeseespalhamnoar?OArtilheirodeuumaolhadelaeummeiosorrisoparaGeorgeecontinuouandando.—Vocênãomatatodasasestátuasassim.Nãocuspidos,pelomenos.Masumestigmavocêmata,elessedesintegrameoventooualgoassimos levaembora.Querodizer,elesdesaparecemdomundoquesemove.Elessereconstituemnoseulugardeorigemnaviradadodia,porémjamaiscaminharãodenovo.Viramapenasumnacodepedraoumetal.—Oscuspidossãodiferentes?—Comoáguaevinho,meuamigo.Nãonosdesintegramoscomoosestigmas.Écomosetivéssemosmaisanosligarpordentro,apartedoespírito.Pelomenoséassimqueeuvejo.Écomoseosentidodoquenóssomosagissecomoumacolaparanosimpedirdevirarpóedesintegrarcomoumestigma.Podemossermachucadossim,esenosmachucarmosmuitolongedecasa,amesmacoisaacontececonosco.Noentanto,sevoltarmosparanossoplinto,ouparanossolugardeorigem,antesdaviradadodia,meia-noiteparavocês,entãomelhoramos.—Melhoramcomo?—Écomoseacordássemosnooutrodiaprontosecurados.Recarregados,comouma...comouma...—Comoumaescovadedenteselétrica—disseGeorge,entendendo.—Comooquê?—disseoArtilheiro,quaseofendido.—Comoumaescovadedenteselétrica—repetiuGeorge.—Escovadedenteselétrica,que idéia!—exclamoucomdesprezooArtilheiro.—De jeitonenhum.Alguémtemdeestarpiradoparapôreletricidadenaboca.Vocêdeveestarmuitoestressado,amigo.—Não...—Georgecomeçouadizer.—RuaAdam—disseoArtilheiro,apontandoparaumaplacaderua.—Esteéumbompresságio,sevocêacreditanessascoisas.Georgenãosabiaoquedizer.—Nãoseibemnoqueacreditardepoisdehoje.OArtilheiropulouogradeadoparaosjardinsdoVictoriaEmbankmentedepoislevantouGeorge.—Entãoacrediteemboasorte.DevesersinaldeboasorteagenteestarpassandopelaruaAdamparachegaràsesfinges.Adão{2} tendosidooprimeirohomemetudo.Querodizer,vocêagoraestáresolvendocoisadehomem,meujovem,assimumbompresságionãonosfazmalnenhum.Pronto.Ele se agachou atrás dogradeado e apontou comoqueixo.George se acocorou ao ladodele e olhou

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atravésdotrânsitoparaasmargensdoTâmisa.Umaltoobeliscodepedrarasgavaocéunoturnoe,decadalado,viradosparadireçõesopostas,paracimaeparabaixodorio,ficavamdoisenormescorposdeleõescomrostoslisosecabeçasornamentadascomadornosdarealezaegípcia.—ÉaAgulhadeCleópatra—murmurouGeorge.—Éclaroqueé—disseoArtilheiro.—Eudissequeprecisávamosfalarcomasesfinges.Porém,nafrentedelas,nãoaschamede“coisadaCleópatra”seissoformencionadonaconversa.Elassãomuitosensíveis.—Porquesãosensíveis?—PorqueelassãoesfingeseestãonomeiodeLondres,queémuitomaisfriodoqueoEgito...seiláeu!O fatoéquenãogostamdachuva,umadelas realmentenãogostadegente e asduas realmente ficammuitofuriosassevocêchamá-lasdeAgulhadeCleópatra.George lembrou de ter passeado ali com seu pai e suamãe quando a vida era legal e ele ainda erapequeno.—Então.NãoéaAgulhadeCleópatra.ÉumobeliscoparaTutmésouTutmósisouum...OArtilheirobaixouacabeçaeficouolhandoasúltimasgotasdechuvacaindodesuacabeçaepingandonassuasbotas.—Provavelmentevocênãodeveriaterfaladoisso.Querodizer,vocêtemrazão,mas...provavelmentevocênãodeveriaterfalado.—Porquê?—perguntouGeorge.OArtilheiroselevantouebotouacapadechuvasobreosombros,olhandoparaarua.AvozdeEdiesoouatrásdeles.—Porqueelasescutaram.Eagoraestãoolhandoparavocê.OsolhosdoArtilheiroseviraramefitaramEdie,depoisaignoraram.—Asduas.Equeríamosapenasfalarcomamaislegal.Jáéumproblemaconseguirumarespostaclaradelasemcomplicarascoisas.Venha...ElepulouogradeadoelevantouGeorgedenovo.Edieficouempécomasmãosnacintura.—Eeu?OArtilheirodeudeombros.—Nãoémeuproblema.Vocêentrouaqui,vaisabersairtambém.Masagoravoufalarsério.Váembora.Nãovoumachucarvocê.Souumcuspido.Agoraessasesfinges,meiogente,meioanimal?...Bom,elasficam nomeio do caminho: meio estigmas, meio cuspidos. Se você chegar pelo lado errado, podempenderparaumacoisaouparaaoutra.AtravessouaruacomGeorgenosbraços,ignorandooscarroseônibusquepassavamvelozes,evitando-oscomosepormágica,ousortecega.EfaloubaixinhonoouvidodeGeorge:—Éporqueasduassãometadecuspidosemetadeestigmasquevamosfalarcomelas.Sevocêmexeucomosestigmas,elasjásabemoquedeveserfeito,seéqueháalgoparaserfeito.Ao seaproximar,Georgepercebeuqueas esfingeseramdo tamanhodepequenoselefantes, e asduasestavamcomacabeçaviradaparaele.Osrostoseramdemulher,comogêmeasidênticas,masaomesmotemponãoeramamesma.Aesfingedadireitatinhaumsorrisobonzinho,divertido,noslábios.Aesfinge

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daesquerdatinhaomesmosorriso,masalgumacoisanãobatia.Nãoerabonzinho.Eraforçado.Georgeseaproximoudaesfingemaisgentil.OuviuoArtilheirosussurrar.—Boaescolha.Eentãoaesfingefalou.—TutmósisSegundo,paraserexata.—Nãoqueexatidãosejanossoforte—interveioaoutraesfinge.—Preferimosserenigmáticas.Vocêsabeoquequerdizer“enigmático”,menininhointeligente?OArtilheirocutucouGeorge.—Querdizermisterioso—disseGeorge,roucamente.Eramuitodifícilparaelemanterumdiálogocomumacriaturamitológicadotamanhodeumakombi.Nãosabiaparaondeolhar.—Quer dizermuitomais do quemisterioso.Quer dizer obscuro, quer dizer questionável, quer dizerinconstante.George ficoupensandoque elas provavelmente não eramasmelhores coisas para dar conselhos,massabiainstintivamentequeseriaumamáidéiamencionarisso.—Vocêsprovavelmentenãosãoasmelhorescoisasparadarconselhos—disseumavozinhasecaatrásdele.—Queméela?—perguntouaqueGeorgeclassificoudeEsfingeBoa.—SouEdieLaemmel—disseEdieantesqueoArtilheiropudesseresponderporela.—Elaéumafagulha—chiouaoutraesfinge.Aoouvirisso,atémesmoaEsfingeBoanãopareciamaistãoboazinhaassim.Asduasficaramtesaseseretraíram,comogatosaoverumcãoseaproximar.—Por que vocês trouxeramuma fagulha?.—perguntou ela aoArtilheiro, usando a palavra como sefosseumpalavrão.—Achávamosquenãoexistiammaisfagulhas.Achávamosqueodomtinhaficadoextinto.—Elanãoestáconosco.Estáapenasnosseguindo.Nãonosdeixaempaz.—Claroquenãodeixa.Elaéumafagulha.Elassótrazemproblemasparatodomundo.Nãodeveriamtê-latrazido.OArtilheiroseviroueapontouparaEdie.—Váembora.Rápido.Paraooutroladodarua.Agoramesmo.Edieficouondeestava.Seuqueixosesalientoueumfiodecabelocaiunafrentedeseusolhosquandoelabaixouacabeça,semnuncatirarosolhosdoArtilheiro.Georgeviusuasnarinassealargaremeseuslábiosembranqueceremcomapressãoqueumfaziacontraooutro.—Olheaqui...OArtilheiroacenouparaelairembora.—Váembora.—Escuteaqui...Semaviso,oArtilheirodeuumpassoemsuadireção.

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—Váembora...porfavor.—Eunemseioqueéumafagulha.OArtilheiroparou.Suacabeçadeuumtoqueparatrás,comoseeleaindanãotivessepensadonaquelapossibilidade,comoseprecisassedeummomentoparaconsiderá-la.EdieenfiouasmãosnosbolsoseolhouparaGeorge.—Euvou,semedisseremoqueéumafagulha.FoiGeorgeagoraquedeudeombrossempoderajudar.AsesfingeschiaramportrásdoArtilheiro.Eraumchiadocomoodeumgato,masporvirdeumcorpodaqueletamanhotinhaumefeitodeumaválvuladevaporqueseabria.OArtilheirosacudiuacabeça.—Não.Vocêvaiembora.Vamosfazernossaperguntaparaessasdamas.Edepoiseulhedigo.Os lábios de Edie se afinaram ainda mais, e então ela ofereceu uma única palavra entre os dentescerrados.—Certo.Georgeficouobservandoquandoelacaminhoupelocalçamentoeseencostouemummuro,olhandoparao rio como se de repente houvesse perdido o interesse por eles.OArtilheiro pôs amão sobre o seuombro eoviroude frentepara as esfinges.Elaspareciammais tranqüilas—embora ele notassequequandoumafalavaaoutraestavasempreolhandoporcimadoombrodele,mantendoumolhonapequenafiguradameninacontraoTâmisa.OArtilheirooempurrouparamaispertodasestátuas,tãopertoqueeleprecisoudobraracabeçaparatrásparavê-las.—Temosumapergunta.AEsfingeNãoTãoBoacuspiuumarespostasemtiraroolhodeEdie.—Todomundotemumapergunta.Éporissoquenosprocuram.—Omenino,elefezalgumacoisaquedeixouosestigmasaborrecidoseagoraelesoperseguem.Aoutraesfinge,quenãoestavaparecendomaistãoboazinhaassim,olhouparaele.—Edaí?—Edaíqueaperguntaé:comoimpedi-losde...—Matá-lo?—terminouaesfinge.—Éisso,paracomeçar—disseoArtilheiro.—Éestaasuapergunta?OArtilheiroolhouparaGeorge.Georgeassentiu.AesfingequevigiavaEdiede repentevoltouseusolhosenormesparaGeorge.Seumovimento foi tãorápidoqueoadornonacabeçapareceuporuminstantecomoumanajacomopescoçodilatado,tantoqueGeorgenãoconseguiuafastardalembrançaastrêssalamandraspreparandooboteantesqueoArtilheirodescessedomonumentopara salvá-lo.Agora era claropara elequepelomenosumametadedela eraestigma.Aimpressãofoireforçadacomochiadoqueelafezquandoperguntou.—Temcerteza?Temcertezadequeéestaaperguntaparaaqualqueraresposta?Como George não conseguia pensar em nada mais importante do que não ser morto, ele confirmounovamente.

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—Entãopergunte.Elelimpouagarganta.—Comopossoimpedirqueessascoisasmematem?Elasolharamparaeleexpectantes.—Porfavor.Asesfingesseapoiaramumanaoutracomumafamiliaridadesinuosaefelina.—Qualquerumpodenostrazerumaquestãoedevemosrespondê-la,massomenteseaquelequeperguntaprimeiroresponderaumenigmaouaumaquestãoqueperguntamosaele.Assimdevesercomaesfinge.GeorgeolhouparaoArtilheiro.OArtilheiroconfirmoucomacabeça.—Comelasédessejeito.—Maseunãotenhojeitoparaenigmas.AEsfingeNãoTãoBoa sorriu. PelomenosGeorgepensouque era aEsfingeNãoTãoBoa.Desde achegadadeEdie,estavaficandocadavezmaisdifícilsaberquemeraqual.—Entãonãovaitersuaresposta.Podeiremboraelevarasuafagulhaconsigo.—Elanãoéminhafagulha.—Podelevá-laemboradequalquermaneira.George viu alguma coisa no seu olhar, um lampejo de malícia, uma centelha do mesmo tédiodesagradávelqueviranosolhosdoSr.Killingbeck.Issooenraiveceu.Araivaacordounoseuíntimo,comoumachamaemumfogãoa lenhacomasbrasasdo fornoqueimandoanoite inteirasemchamas,esperandoapenasalguémabriraportaedeixarooxigênioentrarosuficienteparareacenderasflamas.Nãoeraumfogaréu,eraapenasumafaísca,masfoiaprimeiravezqueGeorgesentiualgoalémdemedoe confusão desde que o Pterodáctilo tinha se desprendido da fachada, por isso ele alimentou aquelesentimento.Eraumacoisabemconhecidaeconfortante.Eleencarouaesfinge.—Pergunteoseuenigma.Aesfingedesceuacabeçaparaacalçada.Georgeviuqueseusombrosseinclinaramparatrás.Sabiaqueeracomoseelefosseoratoaolharparaogatoenorme.Esabiaquegatosgostamdebrincarcomratos.Antesdeestraçalhá-los.AcabeçadaEsfingecomeçouasemoveremziguezagueenquantofalava.Georgeimaginouseeraumatentativadehipnotizá-lo.

Nascopassouosímbolo,mastambémpossoserdeouro.Noentantosemepartes,éporquemetensdepedra.Possoserdadoaalguém,porémsemmimnãopodesviver.Aquelequemetemserevelacorajoso,Masaquelequevêacara,éporquenãomevê.Soucomoocaroço,souoâmago,Massemerevelas,éporqueéssincero.

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AoutraEsfingeofereceuaquestãosobreoombrodaoutra.—Quemsoueu?Georgeficouparado.Otrânsitocontinuoupassandopelaruaàssuascostas.Ouviaochiadodospneusnoasfaltomolhado.Sabiaqueomundorealestavabemali,ummundoemquemeninoscomoelenãotinhamqueresponderquestõesimpossíveisfeitasporcriaturasaindamaisimpossíveis,comogatosgigantesdebronze.Sabiatambémqueresponderaestaquestãoeraaúnicamaneiradevoltaraomundoseguro.Nãosabiacomosabia,massabia.Eporquesabiadisso,eporquenãoconseguianemcomeçarapensarqualeraarespostaparaoenigma,eledeixouaflamadaraivacrescer.Afrustraçãoacendeusuaraivacomopurooxigênioatingindoumachama,ea flamase tornouuma fogueiraecomeçoua invadirebloqueartudo.ElecerrouopulsoesevirouparaoArtilheiro.—Nãoéjusto!Eunãoseiaresposta!Étolice!Georgesentiuachuvanoseurosto,escorrendopeloseunariz,maslogosedeucontadequenãoestavachovendo.Achuvanoseunarizeramlágrimas,eissoodeixouaindamaisfurioso.Esfregouamãosobreorosto,enxugando.—Nãoéjusto,éapenas...OArtilheiroseagachou.Agarrouseusombros.Olhounosseusolhos.Sacudiu-o.Umavez.Duasvezes.Comforça.—Você está furioso.Às vezes, a fúria funciona e ajuda.Mas esta não é uma dessas vezes. Estámeouvindo?Afúriaoimpededepensar.Eagoraéomomentoemquevocêprecisafazerjustamenteisso.Georgeaspiroupelonariz,expiroupelaboca.Fezissomaisumavez,tentandodiminuiroritmo.Foiumadascoisasqueseupaioensinouafazer.Àsvezesfuncionava.Olhouparaaesfinge.—Dáprarepetir?—Nãotemosaobrigação.Georgesentiuachamaaumentarpordentro.Tentousoltarooxigênio,controladosuarespiraçãomaisumavez.—Estácommedoqueeuacerte,então.Oolhodebronzenãosedesviou.—Seráqueéisso?Georgetentounãopiscar.Aesfingesesacudiueseestirou.

Nascopassouosímbolo,mastambémpossoserdeouro.Noentantosemepartes,éporquemetensdepedra.Possoserdadoaalguém,porémsemmimnãopodesviver.Aquelequemetemserevelacorajoso,Masaquelequevêacara,éporquenãomevê.Soucomoocaroço,souoâmago,Massemerevelas,éporqueéssincero.

Nomomentoemqueaesfingecomeçouarecitar,Georgecerrouosolhos.Concentrou-seapenasnoque

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estavaouvindo.Pensouemcopasdecozinhas,masnãosabiadecopasfeitasdeouro—nadafezsentido.Nenhum sentido. Tudo contraditório. Era como os jogos de palavras cruzadas que seu pai costumavacompletar,dicasdentrodedicas,crípticascomoumcódigoquesóosadultoscompreendiam.Seupaiàsvezes dava as dicas, mas ele quase nunca compreendia as respostas, mesmo depois de terem sidoexplicadas. Havia palavras que tinham significados secretos, outras cujas letras precisavam serseparadasparaformarnovaspalavraseummontedepequenasdicasdeencorajamentoqueosfazedoresdeenigmasdavamparaaquelesquejogavamcomregularidade.Ele lembroude seupai rindo comumadicamuito inteligentequando finalmente conseguia resolvê-la.Podiaouvi-lodizendoqueera fácil seagentese lembrassequeaspalavraspodemsignificarmaisdeumacoisa,dizendoqueagentetemdelerasdicasdenovoporqueelaspodemnãosignificaroquesepensouemprimeirolugar,dizendoqueàsvezeselassãocolocadasaliparaindicarocaminhoerrado.Georgeabriuosolhos.Osorrisodaesfingeerairritantedemais.Fechouosolhosdenovo.Oquepodeserdeourooudepedra?Efoiaíquelheveiocomoumlampejo,eelecomeçouafalarantesqueseupensamentofossecompletado.—Coração.Coração!Vocêéumcoração.Seus olhos se abriram no momento exato para ver o tremor de surpresa entre as duas esfinges. OArtilheiroolhouboquiabertoparaele.—Coração?Georgesabiaqueestavacerto.Tudoseencaixoudireitinhoquandoelefalou,comose,aofalar,sentisseumacorrentedearlimposoprandopelasuamente.—Nascopassouumsímbolo—osímboloquerdizerodesenhodocoraçãonascartasdeumbaralho.Tambémposso serdeouro—comoonaipedobaralho,masalguémpode tero coraçãodeouro.Noentantosemepartes,éporquemetensdepedra.Vocêtemumcoraçãocruel,semsentimento,comopedra,separtirocoraçãodealguém.Possoserdadoaalguém,porémsemmimnãopodesviver.Podemosdarocoração a alguém, dar amor,mas sem um coração não podemos viver. Aquele queme tem se revelacorajoso.Essaparteédifícil,masquemtemocoraçãoparaaluta,éporqueécorajoso.Masaquelequevêacara,éporquenãomevê.Essaéfácil.Quemvêcaranãovêcoração.GeorgesentiaoArtilheiroolhandoparaeleadmirado.Maisdoqueisso,sentiaoalíviooempurrandopara frente, suamente se tornando cada vezmais clara e rápida, quando o resto do enigma quase seresolveusozinho,enquantoaspalavrasseformavamnasuaboca.—Sou comoo caroço, souo âmago,mas seme revelas, é porque és sincero.O coração é comoumcaroço,comonumafruta,numamaçãporexemplo.Eâmago,emboraeunãosaibabemosignificadodapalavra,deveserissomesmo,ocentrodascoisas.Equandoseabreocoração,ouquandoseabreumafruta,aínãohámaissegredo.Porissoseésincero.Éisso.Coração.Arespostaentãoécoração.Agoravocêstêmderesponderàminhapergunta!Ele percebeu então que estava pondoo dedona cara das esfinges, como se estivessemandando.Nãopareciasersensatooueducado,masqueerabom,issoera.—Entãoquersabercomoimpedirosestigmasdemataremvocê?—Sim.Respondiaoseuenigma.Vocêstêmdemedizer!Aesfingesentou-sesobreascoxaseolhouparaairmã.Airmãfalou.—SeuremédiojaznoCoraçãodePedra,eaPedradoCoraçãovaiseroseualívio.Parapôrumfimao

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quecomeçou,vocêdeveprimeiroencontraroCoraçãodePedraedepoisdeve fazerosacrifícioeasreparaçõesparaconsertaroquefoiquebradoaocolocarnaPedradoCoraçãodeLondresaquiloqueénecessárioparaoseureparo.GeorgeolhouparaoArtilheiro.OArtilheiroolhouparaGeorge.—OqueéoCoraçãodePedra?OArtilheirodeudeombros.Osdoisolharamparaasesfinges,quepareciamenigmáticas.—OqueéoCoraçãodePedra?Seumgatopodedardeombros,foiexatamenteissoquefezaesfingemaispróximadeGeorge.— Já respondemos a sua pergunta. Se você não compreende a resposta, devia ter feito uma perguntamelhor.TodoaquelesentimentobomquetinhatomadocontadeGeorgepareceuazedarderepente.—Nãoéjusto!—Nãosomosjustas.Somosesfinges.Agoraváembora.Asegundaesfingepareceuumpoucoenvergonhadaquandoseviroueseencaminhouparaseuplinto.Eraamaisboazinhadasduas.—Vocêsmeenganaram!—Respondemosàsuapergunta.—Mas...—Masvocêsnãoresponderamàminha.Eraaquelavozinhagravedenovo.Asesfingesseviraram.Georgesevirou.ComotambémoArtilheiro.Edieestavaempébematrásdele.—Eletemrazão.Vocêsoenganaram.Agorarespondamàminhapergunta.Asesfingesvoltaramaparecerumgatomisturadocomumcãozinhoterrier.—Nãotemosobrigação.—Têm sim.Vocês são esfinges.Responder perguntas é o que fazem.Sóque sãomuito chatas.Vocêsduas.—Nósduas?QuemfaloufoiaEsfingeNãoTãoBoa.Edieficoufirme.—Somosiguais,entãoéisso?Temcertezadisso?—Sim.Não.Espereaí,issoéumtruque,nãoé?—Será?—sorriuaesfinge.Edieafirmoucomacabeça.Eseaproximoudela.Georgenãotinhacertezadoqueestavaacontecendo,mas teve a nítida impressão de que a esfinge tentava controlar a vontade urgente de se distanciar dameninaqueseaproximava.—Vocêperguntousevocêsduassãoiguais.Achoquevocêquerfazercomqueestasejasuapergunta,assimeu respondoerrado semnemmesmosaberque issoéumde seusenigmasecom issovocênãoprecisaresponderminhapergunta.Achoqueissoéumasujeiraesfingéticaquevocêsestãofazendocoma

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gente.—Vocêtemumamentecheiadedesconfiança,menina.—Obrigada.Ediecaminhouparaumladodaesfinge,depoisparaooutro.Depoisfoiatéaoutraesfingeefezamesmacoisa.Depoissorriu.—Vocêsparecemiguais.Noentantosãodiferentes.Você—eapontouparaamaisboazinhadasduas—,vocêéperfeita.Lisa.Enquantovocê—ecaminhouatéoladodaoutraeapontouparasuascostas—,vocêtemburacos.Algumacoisafezburacosemvocê.Georgeapertouosolhos.Elatinharazão.Haviaburacosirregularesnascostasenapernadafrentedocorpodebronze.Aesfingeolhouparasimesma.—Muitosabida.Muitoperspicaz.Masinfelizmenteestanãoeraaminhapergunta.Ediesacudiuacabeça.—Nósduassabemosqueera.Massevocêquerserdesonesta,entãomefaçaoutra.AntesqueaEsfingeNãoTãoBoarespondesse,aBoafalou.—Comonostornamosdiferentes?Aoutraesfingesevirounaspatasechiouemumafúriaquemaispareciaalarme.—Não!Elaéumafagulha.Elaéumafagulha!Elavai...Asduasesfingesderepenteseencararam,osrabosemriste,emsinaldeirritaçãoumacomaoutra.—Eusei.Masamenina temrazão.Vocêestava trapaceando.Issonãoéserumenigma.Issoémentir.Deixeelaresponder.Vocêestávirandomaisestigmaultimamente,minhairmã...—Vocêaindaficasurpresaqueeutenhameviradocontraoshumanosdepoisdeteremmefeitocomomefizeram,sóparamedanificardepois,comofizeramquando...?—Não,minhairmã.Chega.Deixeameninanosdizer,seelaconseguir...AesfingedanificadaseretraiuquandoEdieseaproximoudela.—Oqueestáacontecendo?—perguntouGeorge.OArtilheiroestavaolhandoEdiepassaramãoaolongodoflancoenormedaesfingedebronze.Suamãoparouemcimadeumburaco.Elesevirouereflexivamentesubiuagola,comoumhomemàesperadoborrifodeumaondarepentina.—Cuidadocomossapatos.GeorgenãotiravaosolhosdeEdie.Suamãohaviadesaparecidoparadentrodaesfinge.—Temumburaco.Aesfingeolhouparaelasemseconvencer.—Umburaconãoéocomo.Umburacoéoquê.Vocêjánosdissequetenhoburacos.Ediefechouosolhos.Umlevetremortomoucontadela.—Oqu...—começouGeorge.Efoientãoqueaconteceu.Edieseenrijeceu.Eracomoseelativessesetransformadonoepicentrodeumadetonaçãosilenciosa.Aondadeexplosãodoquefossequeestavaacontecendocomelaarrepiouseuscabelosemformadeum

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leque e, antes que houvesse tempo para que eles se abaixassemde novo, todas as folhas nas árvoresforamarrancadas e o lixonas ruas foi sopradopara longedela emumarcoque se expandia por 360graus.Georgeabriuaboca.Ediegritou.Suascostassearquearam,seusolhosseapertaramaindafechados,suabocaseescancaroutambém,ostendõesnasuanucaficaramtesoscomoascordasdeumviolinoeumsomquenãoeraapenasum som atravessou o cérebro de George. Ele levou as mãos aos ouvidos para se proteger. Não feznenhumadiferença.Ogritoficoupresonasuacabeçaepareciaficaraindamaisaltocomoseecoasseaoseuredorsemchancedeescapardele.Ediesentiuopassadoatingi-laatravésdesuasmãoscomoumenormechoqueelétrico,comoseometalnaestátuahouvessearmazenadoamemóriadadoredohorrornasprofundezasdesuamatéria,esperandoqueelaotocasseparareceberseupoderabsolutoemumúnicochoqueconcentrado.Seus olhos se abriram. Depois fecharam. Abriram de novo. E de novo, e mais uma vez. E enquantoabriamefechavam,elaviaopassadoemcortesvelozesepenetrantes,porvezesemcenasimóveiscomofotografias,outrasemfragmentosdeluzesomemcâmeralenta.Cadavezqueelafechavaosolhosparaescapar da dor insuportável que o passado causava dentro dela, sentia uma pressão intolerável quecresciana sua cabeça e sabiaqueprecisava abrir osolhosdenovoedeixaropassado continuar suaviagem,senãoelaexplodiria.OqueEdieviuemflasheschocantesdesuavisãofoiisso:OEmbankmenteradiferente.Aavenidaeramaisestreita.Asárvoresmaisbaixas,ealgumasemlugaresdiferentes.Osprédioscomerciaismodernoshaviamdesaparecido.Aspontesnãoeramcomoagora.Aspessoas fitavamo céu, imóveis. Era um dia claro.A cidade não rugia como barulho demilhares deautomóveis invisíveis atravessando suas veias. As pessoas vestiam saias longas e casacos formais,própriosdoiníciodoséculoXX.Umababádeuniformesorriaenquantotentavaatarochapeuzinhodeumbebêfeliz.Umgazeteirogritavaalgumacoisasobrea“ForçaExpedicionáriaBritânica”e“Flandres”,porém parou de gritar e disse um palavrão quando viu a coisa que todo mundo estava olhando seaproximaracimadostelhadosdosprédios.Umacoisalongaemformadefoguetepairavanocéu,lentamentesemovendocomashélicesruminando,entreEdieeosol.Tinhaoefeitodeumsonhonasuaimensidãolenta.Aspessoaspararamdegritareapenasficaramolhando.Nacalmasúbita,EdiepôdeouvirotrotedeumcavaloseaproximandoquandoumacarruagemchegavanaruaAdam—ococheiroabaixouochicoteeabriuabocasurpresocomoquevianocéu.Elaouviuquandoelemurmurou:“Caramba.Umzepelim!”Logo começaram a cair pequenos pontos negros da barriga do zepelim e o tempo se estilhaçou emfragmentosdenovo.Masassimcomooscacosdevidro,osfragmentospareciamcortarfundonamentedeEdie,aumentandodezvezesmaissuador.Viuospontosescurosaumentandodetamanho.Descendo.Tomandoaformadebombas.Viuumamulhergritar.Umhomemsejogounochão,cobrindoocorpodelacomodele.ViuogazeteiropulardamargemdoEmbankmentesejogarnoTâmisa.Viuaprimeirabombaestourarnarua.Viuasfaíscas.Sentiu o impacto rasgar os lábios na sua boca gritante. Sentiu o calor da explosão penetrando seuspulmões.Gritoumaisforte.Viucadaburacosendofeitonascostasdaesfinge.

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ViuochapeuzinhodeumbebêvoareseprendernogradeadodojardimdeAdam.Viuumhomemeumamulheratiradosparaotopodeumaárvore.Viuumcavalopartidoemdois,lentamentegirandosetemetrosnoarcomoumpeão,pedaçosúmidosdeseuserquejamaisdeveriamficaràmostraseespiralandoemumaserpentinavermelhafazendoumarcopavoroso.Eentãotudoparou.Eopresentevoltou.GeorgeeoArtilheiroestavamdobrados,protegendo-se.OgritoderepenteparoudecortaracabeçadeGeorge.Eleestremeceuquandosentiuumaondadenáuseatomandocontadesievomitoupelasegundaveznaquelanoite,umacuspidafinadebílisporcimadeseuspés.OArtilheirotentoudesmancharaexpressãodedorquesecongelaranoseurosto.—Eudisseparavocêtomarcuidadocomossapatos.Georgesentou-senacalçada.Cadajuntadoíaeanáuseatinhasetransformadoemumtemorantigoouemumatristezaprofunda,ouamemóriadeambos.Edieolhavafixamenteparasuamão.Sentou-sedesúbito,umadecisãoqueseucorpotomarasemconsultarsuamente.—Aquilo foi... ruim—Georgeconseguiubalbuciar.OArtilheiroconcordou.Eleparecia tãoabaladoquantosepodeesperardeumhomemfeitodebronzesólido.—Elaéumafagulha.Euavisei.Edieolhavaparaelesdooutroladodacalçada.Atrásdela,asesfingessearrastavamparaseusplintos.Aindasepareciamcomgatosenormes,masagorapareciamgatosdoentes.OArtilheiroesfregouorosto.—Fagulhassãopessoasqueatraemcoisasruins.Asfagulhaspodemfazeratéaspedraschorarem.EdieolhouparaoArtilheiro.Depoisparaasesfinges.—Porquê?Aesfingemaispróximaparoueolhouparaela.—Comovocêpodenãosaberoquevocêé?Todomundosabeoqueé.Edieselevantou.— Achei que vocês fornecessem respostas, e não fizessem perguntas. Uma bomba foi o que fez osburacosemvocêqueestádanificada,certo?Agorarespondaaminhapergunta.—Vocêquersaberporqueasfagulhaspodemfazeratéaspedraschorarem?OArtilheirodeuumpassoàfrente,entreameninaeogatoenormeacocorado.—Não.Edieoempurrouparaumlado.Georgeficouchocadodeverumameninatãopequenatirarumaestátuatãograndedoseucaminho.Defato,eleatéimaginoutervistooArtilheiromeioqueseprotegerdasmãosqueempurravamosseusjoelhos.—Aperguntaéminha.Conquisteiodireitodefazê-la—disseela,comfirmeza.—Mas...—tentouoArtilheiro.—Chegade“mas”.Echegade“espere”ede“váembora”!

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Elaapontouodedonacaradaesfinge.—Agorarespondaàminhapergunta!

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COMOCHORAUMAPEDRAAESFINGE SEACOMODOUNO SEU PLINTO. A que estava atrás dela rosnou como o ruído de um trovãodistante.Suacaudamoveu-selentamenteedepoisparou.Edievoltouacerraropunhoeenfiouambasasmãosnosbolsos.A esfinge que ainda olhava para ela, a mais “boazinha”, parecia ter retornado ao seu estado imóvelnatural.Ediedeuumchutenabase.—Ei,aindaestouaqui!—Nãopormuitotempo!—suspirouaesfinge.—Oquequerdi...—começouEdie.—Secontinuar interrompendo,nãovaientenderaresposta,nãoé?—murmurouaesfinge, levantandoumasobrancelha.Ediecalou-se.Precisoufecharabocaduasvezes,masporfimelapermaneceufechada.— Você está aqui. Posso muito bem ver. Mas para saber o que é uma fagulha, para compreenderverdadeiramente,vocêdeveverascoisasnumaescalamaisduradoura.Enumaescalamaisduradoura,você,ele,todomundonemsequerestáaqui.Comparadocomavidadeumapedraoudeummetal,vocêétão importantequantoumpingoquecaideumachuvadeverão,que logosecaedesaparece.Oqueaspessoasfazempassa,masaspedraspermanecem.Nãoparasempre.Apenasmuitomaistempodoqueaspessoas.Easpedrastêmmemória.—Issonãofazsentido.Aspedrasnãotêmmemória.Aspedrasnãopodempensar...—Vocêquerumadiscussãoouumaresposta?—Queroumadiscussãoquefaçasentido.—Asfagulhasacendemacentelhadaquiloqueaconteceucomumapedra.Georgeimediatamentecompreendeu.—Vocêvêopassado!Os olhos de Edie, quando se viraram para ele, comunicavam queGeorge de algumamaneira a haviatraído.—Eunão!Querodizer,nãoéisso,éque...—Émaisdoqueisso—disseaesfingebaixinho.Georgesentiusuamenterodandoviolentamente,masrodopiavamantendoumcentro,eestecentroeraaconvicçãodequeeleestavacorretosobreEdieedequeeleconheciaseudom.—Masvocê realmentevêopassado.Quandoestá acontecendo,quandovocê fez aquilo,quando tudoficou,sabe,umanáusea,comosealguémesmurrasseseuestômago,quandoseuscabelosseespetaram...Ediesacudiuacabeçafuriosa.—Nãoseique“coisa”éessaquefaço.Nãoachoquesejaeuquefaça.Éalgumacoisaquefazparamim.—MasvocêestavaláeosseuscabelosFICARAMdepé,esticadose...

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—Olheaqui!Eunãoestava“lá”,euestava,euestava...Surpreendentementefoiaesfingequeasalvou.—Ela estavano “então”.Coisas ruins, quandoacontecem,deixamumamarcanos seus arredores.Ascoisas boas também.Mas as pessoas respondemmais forte às ruins.E as fagulhas, quando tocamnaspedrasquetêmumamarca,canalizamaquilo.Opassadoentãoacontecedenovo,atravésdelas.George,nomeiodetudo,seachouatraídopelaidéia.—Issoétão...impressionante!Comoéquevocêsesentequandovocêestá...Edieointerrompeuseca.—Terrível.OArtilheiroolhouporcimadeles.—Éumapena.Edieolhouparaele.—Oqueéumapena?—Usarsuaperguntaparaperguntarsobreisso.Eupoderiaterlheditoisso.Qualquercuspidopoderia.Masvocêtinhasuaperguntapreciosaeausouepronto.A esfinge olhou para eles com aquele olhar de gato que se lambuzou no creme. George começou adetestá-la.—Entãoagentepoderespondermaisumdosseusenigmasparaganharmaisumapergunta.AEsfingeNãoTãoBoaaçoitouacaudaevirou-separaeles.—Nãofuncionaassim.Vocêtemdireitoaumaperguntapordia.EdieolhouemsilêncioenquantoGeorgeponderava.—Evocênãotemumdia.Nãoumdiaparaesperar.Eprovavelmentenãoparaviver.Georgesentiuopânicofazendoumnónasuabarrigadenovo.Avozdaesfingetinhaumtomdetriunfoedesprezodequeelenãogostoudejeitonenhum,aindamaisporqueelapareciatãoseguradesi.Virou-separaoArtilheiro.—Oqueelaquerdizer?Ouviuavozdaoutraesfingeportrásdesi.—Pergunteaofradalhão.Georgedeumeia-volta.—Aquem?Alguma coisa acontecia com a esfinge. Ele percebeu que ela estava se retraindo de volta para aimobilidadedobronze.Eleperguntoucommaisurgência.—Aquem?Porfavor,quefradalhão?Quefradalhão?Os olhos da esfinge perderam a vida e o brilho, e sua voz se distanciava também, como se estivessevindocadavezmaisdelonge.—OFradalhãoNegro.Oqueéprecisosaber,elesaberá...

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E como o eco de ummurmúrio, antes que o barulho do trânsito contínuo na avenida do Embankmentafogasse tudo, George teve certeza que ouviu, numa ponta de voz, o sussurro de desprezo da outraesfinge.—Emuitodaquiloquenãoéprecisosaber,nãovocê,coisafeitadecarne,pingodechuva,tãocurtaasuaexistência,hojeaqui,amanhãjánãomais...GeorgeolhouparaEdie.EdieolhouparaoArtilheiro.OArtilheirodeudeombros.Edienãopareciasatisfeita.—Vocênãosabeoqueéumfradalhão?OArtilheirosacudiuacabeça.—Evocê?Ediesacudiuadela.OsdoisolharamparaGeorge.—Alguémqueusafraldas?—Essaéboa—disseEdie.—Alguémqueusafraldas.Tempelomenosunsdoismilhõesnacidade.Ecomovaiperguntaraeles?OArtilheiroriudelaefezoseucostumeirogestodeesticaropescoço.—Nãoazucrineomenino.VocêéquemdeveriaterperguntadosobreoCoraçãodePedra.— Por quê?— desafiou Edie, olhando para ele com uma intensidade que o fez parar de se esticar,deixando-oinesperadamentedesconfortável.—Porquenósprecisamossaberoqueé,nãoémesmo,mocinha?Porquenósestamosemapurose...Denovoelaointerrompeusemcerimônia.—Oquequerdizercom“nós”?Temum“nós”aquidoqualeunãotomeiconhecimento?Porquetudooquevocêfezdesdeomomentoemqueoencontrei foi tentarsedesfazerdemimemedizerpara ficarlonge.Issonãoéser“nós”.Issoéser“vocês”.Eeunãoachoquedevonadaavocês.—Mas...—Enãomechamedemocinha.OArtilheiroengoliuemseco.Georgenãosabiaseerafrustraçãooualgoqueseaproximavadomedo.Eentãoeleseachouimaginandoporque—oquequerquefosse—Edieprovocavaumareaçãoassimemumsoldadotãogrande.—Masvocêiaperguntar,nãoia?Vocêcomeçouaperguntare...Georgeaproveitou.—Vocêia.Iaperguntar,eletemrazão,vocêcomeçou...Edievirouosolhosparaelesemviraracabeça,eGeorge,pegonaquelaopacidadedeexpressão,sabiaexatamenteoquedeixavaoArtilheirotãoperturbadocomela.Seusolhos,quandotinhamestaexpressão,não erambemhumanos, ou, se eramhumanos, pareciamde uma idade tão antiga que nenhumhumanopoderiatervividoosuficienteparapossuí-los.Eramolhosquevisitaramlugaresepresenciaramcoisashorríveis, retornandomuito diferentes. Ele sabia agora que aquela expressão nos seus olhos não eraopacidade.Eracomoolhossurradosoualvejadospelaexposiçãoaosoleàchuva.—Comeceisimaperguntar,masaímudeideidéia.

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—Eporquê?—perguntouGeorge.OArtilheirosuspiroufrustrado.—Nuncaconfienumafagulha.Edienãovacilou.—Vaisairporaíperguntandoatodosaquelesqueusamfraldasnaesperançadeencontrarapessoacerta,aquelaquepoderálhecontarsobreessatalcoisapreciosaqueéoCoraçãodePedra?—Não— respondeuGeorge, pondo um freio na conversa.—Vou achar umdicionário e procurar osignificadode“fradalhão”.—Issomesmo—disseoArtilheiro,parasurpresadele.—Vocêachaqueumdicionárioéumaboaidéia?—quissaberEdie,incrédula.—Não sei—disseoArtilheiro alegremente.—Masoqueéboméque ele está tendo idéias enãoapenasentrandoempânico,semijandooureclamando.Porqueanãoserquevocêstenhamdeixadodeouviroqueaesfingedisse,sejaláoqueeletenhadefazer,pelojeitotemdeserrápido,eorelógionãopára.Vamos.GeorgecomeçouacorrerparaacompanharoArtilheiro,queatravessavaotrânsitoesedistanciavadorio.—Vocêsabeondepodemosencontrarumdicionário?Talvezemumalivrariaou...—Nãoseiondeencontrarumdicionário,meufilho,mastenhoumaidéiamuitomelhor.—Melhordoqueumdicionário?—Issoaí.Seiondepodemosencontrarumhomemqueescreveuum.Venha.Cuidadocomotáxi.Georgepulouparaacalçadaenquantoumtáxipassouraspando,nãooatropelandoporpouco.Eleolhouparatrás.NãoviuEdie.

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OCAMINHANTEA MULHER FECHOU AINDA MAIS seu casaco vermelho, cobrindo o pescoço com a gola, e caminhouapressadaatravésdachuvafinaemdireçãoàestaçãodometrôdaruaCannon.Aoseuredor,aspessoaspassavam desviando umas das outras na calçada. O trânsito andava devagar, dando chance para quealgunspedestresatécaminhassemnabeiradadarua.Todoseles tinhamapenasumpensamentofixo: irparacasa.Eragentequemoravanossubúrbiosdacidade,a infantariadeLondres,cadaumfazendoseupercursodeterminadonadireçãodecasa,domesmojeitoquefizeramontem,domesmojeitoquefarãoamanhã.Quasetodoscaminhavamnopilotoautomático.Aquelesqueprecisavampegarumtremcaminhavammaisdepressa do que aqueles que precisavam apenas dometrô.As pessoas que precisavam de um ônibusandavamirritadasentreumpontoeoutro,analisandoavelocidadedotrânsito,aomesmotempoque,comumaolhadelaparatrás,procuravamaqueleônibusvermelhoquepudessederepentesematerializarondeantesnãohavianenhum.Osúnicosademonstraralgoparecidocomconsciênciaeramaquelesembuscadeumtáxi.Eramtambémosúnicosaperscrutarosoutrospedestres,casoumdelesseantecipasseeroubasseoprimeirotáxiqueaparecesseàfrente.Amulherdecasacovermelhonãotinhaumtáxiemmente.OqueesperavaeraficarvinteecincominutosnaNorthernLine,quemsabesentada,comoseulivroqueagorasacolejavanobolsodocasaco.Derepente,comoumveadonaflorestaquandosedácontadeumcheirooudeumsominesperado,elaergueuacabeça.Pressentiualgoatrásdesi.Virou-se,semsaberporque,enãoviuninguém.Oumelhor,viumuitagente,masninguémemparticular,ninguémqueolhassedevolta.Havia, porém, alguém que a observava. Na cidade, tem quase sempre alguém o observando, mesmoquando sepensaque está sozinho.Equando sepensaque se está totalmente sozinho, comonumbecoescuro,nomeiodanoite,quandotodomundoqueéhonestoesóbriojáestánacama,evocêsenteaquelearrepionomeiodascostasque lhedizquealguémoobserva,evocêseviraderepente—domesmojeito que fez agora amulher de casaco vermelho—, não vê ninguém e você suspira aliviado, não seiluda: tem sempre alguém ali. Tem aquele que caminha, que é você, e aquele que caminha atrás. Sóporquevocênãoovê,nãoquerdizerqueelenãoestejaali.OCaminhanteatrásdamulherdecasacovermelhotevemuitotempoparaaperfeiçoarsuaartedesefazerinvisível.Tevetambémmuitotempoparaaperfeiçoarsuacaminhada,e,sevocêporacasotivesseodomdevê-lo,denotá-lo,mesmoqueeleestivessefazendodetudoparanãoservisto,chegariaanotarqueeledefatonuncaficavaparado.Porquenuncaparavadeandar.Atémesmoquandodavaaimpressãodeestarparado,elemudavadeumpéparaooutro,andandosemsairdolugar.Asvezeselecaminhavanomesmolugartãolentaedeliberadamentequepareciaumanimalpreparandooterrenomomentosantesdeatacarsuapresa.Sevocêomantivesseregistradonoolhare,oquetalvezsejaomaisimportante,sefossecapazdemanteraidéiadeleregistradanasuamentequandoseusolhosovissem,entãoteriaaoportunidadedeverqueestecaminharperpétuoeracomoumamaldiçãoparaele.Esefoiporaíquepensou,entãoestámaispertodaverdadedoqueimagina.

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Elecaminhavaaltivo,abainhadeumcasacoquehátemposforaverdebatendonosseuscalcanhares.Seurosto eradifícil dever, porque ele usavaumcapuzverde antigoviradopara cima.Mechas longasdecabelosgrisalhosepretosescapavamdelecomabrisadanoite.Ocasacoocultavaparcialmenteaformaamareladeumcervoempulonomeiodeumpulôverencardido,abaixodo logoda JohnDeere.Oarligeiramentehippieeraacentuadopeloqueeleusavapenduradonopescoço—umapedraásperanumacorrentedeprata,usadabemapertadanagarganta,tãoapertadaqueapedraacompanhavaomovimentodeseupomo-de-adão.O Caminhante sentiu o puxão que o tirava de seus meandros normais pela cidade e o atraíainsistentementeparapertodeumprédioordináriodooutroladodarua,comoumímãnegrononíveldarua. Sua língua fez uma aparição rara e molhou seus lábios secos. Foi aquela atração sinistra que oarrastavacomintensidaderenovadaqueofezvacilarenãoimpediramulherdevê-lo.Elaolhouparatrásumasegundavezeengoliuemsecoaosedepararcomaquelehomemaltoesinistroatrásdesi.Oslábiossecossesepararamemalgoquesepoderiadizerqueeraalevelembrançadeumsorriso.Suamãoseergueueatocoudelevenoombro.—Nãoestátudobem—disseele,baixinho,comoseaconfortasse.Osolhosdelasearregalaram.Suavozeracomoofarfalharsecodefolhasquevoamporcimadeumtúmulo.—Nãoestátudobem.Nadaestábem.Enuncaestará.Eporqueelaoouviraeporqueelepermitiraqueelaovisse,elacomeçouagritar.Derrubouabolsaegritou,nãoporcausadele,porqueserimediatamenteesquecidoeraoutradesuashabilidades,masporcausadetodooresto.Enquanto ele atravessava a rua a caminho daquele prédio de escritórios comum, amulher de casacovermelho gritou, seu grito perfurando o ruído interminável do trânsito.As pessoas abriram espaço aoredordela e sedistanciaram,evitandooconfrontocommaisumapessoa loucae solitáriagritandonacidadequeescurecia.OCaminhanteseagachounafrentedogradeadobaixodeferroqueficavanalateraldoprédio.Esticouamãopelagradeenquantosebalançavalevemente,seuspéssemovendosobsuaspernascurvadas,comoseestivessequerendoempurraroprédio.Ficouolhandointensamente,ouvindo.Confirmoucomacabeça.—Entendo.Ficououvindomais.—Seosestigmasfalharemdenovo,eumesmocuidareidetrazê-lo.Nóscuidaremosdetrazê-lo.Suamãofoiretiradadesupetãodedentrodagrade—eradifícildizerseelafoicuspidaparaforaousefoi reflexo causado pelo alívio de tê-la livre de novo— e ele se ergueumovimentando os pés e aomesmotempocomeçandoacaminharparaonorte.Cutucouobojonotopodeseucapuz.Delesaiuumgrandepássaropretoque,sacudindoasasas,seacomodoufirmenoombrocobertocomocasacoverdedetweed.—Vádescobriroqueaconteceueaquelesquefalharam.O pássaro bateu o bico, alçou vôo para o céu, fazendo uma curva entre dois prédios altos, e quaseimediatamentesumiudevista.Devoltaàrua,oCaminhanteesperouincógnitonomeiodospedestresdesinteressadosqueesperavamosemáforoabrir,antesqueelemesmofizesseseucaminhoparaonortedacidade.Enquantoesperavam,umcarrodepolíciacomasireneligadapassoueparoumaisàfrentenarua,nolugarondeamulherde

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casaco vermelho ainda gritava e era auxiliada por outrasmulheres, que não conseguiam acalmá-la oudescobriroqueahaviadeixadoemumestadodeterrortãoprofundo.OsemáforoabriueoCaminhanteesperouatéencontraralguém indonamesmadireçãopara seguir.Elogoseforam,osdois,desaparecendoemmeioaoredemoinhodamultidão.

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UMHOMEMCHAMADODICIONÁRIOOARTILHEIROCAMINHAVARÁPIDOeGeorgecorriaparaacompanhá-lo.OArtilheirotinhaalgoemmente.Limpouagarganta,comosefossefalardeumassuntodifícilcomumadelicadezaquenãofaziapartedeseucomportamentonormal.—Eleécheiodecacoetes.Nãoligue,porqueelenãoliga.Anãoserqueelepercebaquevocênotou.—Eletemcacoetes?—disseGeorge,queestavaseacostumandoanãoentenderoqueosoutrosdiziam.—É.Eleàsvezesbaba.Temespasmos.Issonãoquerdizernada.Elenãotemcomoparar,masvoufalarumacoisa,acabeçadeleestácheiadeidéias.Sabetudosobrepalavras,sobredadoshistóricos,sobreLondres...Etudoomaisquevocêpossaimaginar,eucreio.OArtilheirodeumaisalgunspassos.—No entanto, ele émeiomelindroso com seus cacoetes. E também faz uns barulhos engraçados derepente,comosefosselatirumapalavraestranha,talvezcomoseelefosseumpouco,sabecomoé...Ebateucomodedonoseucapacetedemetal.—Doido?—Georgesugeriu.—Não.Doidonão.Nãoassim.ODicionárionão.Masvocêpodeacharqueeletemumastelhasamenosnotelhado,porassimdizer.Masnãotemnão.Seulatidoépiordoquesuamordida,eseucérebro...bom,pelo que ouvi dizer, ele escreveu um dicionário inteiro sozinho em metade do tempo que levou umpunhadodefrancesespresunçosos.Assim,suamenteédamelhorqualidade.Éclaroqueelenãomorredeamorespelosfranceses,maseraassimmesmonaépocaemqueeleviveu...George freou tão rápidoqueos sapatos fizeramumbarulho interessante, fricçãode borracha contra acalçadamolhada.—Peraí,naépocaemqueeleviveu?Entãoeleestámorto?—Mortonão,seubobo.Eleéumaestátua,nãoé?Ediecaminhavabematrásdele.Georgenãosabiaháquantotempoedeuumpulodesustoaoouvirsuavoztãopertodeseuouvido.—É— respondeu oArtilheiro demá vontade.—Ele é o cuspido de um homem que viveu há unstrezentosetantosanos,numaépocaemquemeninastinhamrespeitoeficavamcaladas,assimvejabemcomosecomportaquandofalarmoscomele,estábem?A expressão no rosto deEdie dizia que não estava tudo bem,mas ela não disse uma palavra quandoatravessaram a rua pequena e chegaram na Strand, seguindo para o leste, acompanhando o fluxo depedestresquefaziamseucaminhoapressadoparaaestaçãodeCharingCross.Estranhamente, embora ninguém notasse o Artilheiro, todos abriam caminho, assim George e Edieandaramdepressaaosegui-lobemdeperto,mesmoqueparaissotivessemquecorrerumpouco,jáqueospassosdoArtilheiroerammuitomaioresdoqueodeambos.—Estranhoqueninguémoveja,nãoé?—disseGeorge,ofegante.

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Edienãodissenada.Depoisdecaminharumtemposemreceberumaresposta,Georgedecidiuquenãoiafalarmaiscomela.QuandopercebeupelaprimeiravezqueelatambémpodiaveroArtilheiro,naqueleestacionamentosubterrâneo,sentiuumapontinhadealíviopelo fatodepelomenosumapessoaamaispartilharoseupesadelo,fazendo-oumpoucomenoshorrível.Agorasabiaquetinhasidoomedofalandomaisalto.EdiepodiateramesmaidadedeGeorge,podiateracapacidadedeverascoisasimpossíveisqueelevia,masnãohaviaumcentímetrodeflexibilidadenela.Eletentouconversarcomelaesuarespostafoiumtapanacara—e,apartirdaí,ascoisasforamdemalapior.Muitopior.Eleaindasentiaogostodabílisnaboca,frutodoepisódiodeelatrazeropassadoaopresentecomasesfinges.Nadadebomsaíradelaeeleseriaumtolodeesperarqualquercoisa.Quantomaisconversa.—Éhorrível—disseela.Apesardoqueacabaraderesolver,Georgenãoseconteveesevirouparaela.Eladeudeombros,osolhosvoltadosparaochão.—Aprimeiravezqueviasestátuassemoverem,penseiquetinhaficadomaluca.Primeiroacheiqueeraalgumtruqueparaosturistas,algumcarafantasiado,cobertodetintapretaoualgoparecido.Acheiqueotruqueerabomdemais.Maslogonoteiqueninguémmaispareciaprestaratenção.Entãoeufiqueicomme...fiqueicomovocê.Desnorteada.Depoisqueeuvivocêcorrendonomeiodoparquecomele,eu...—Vocêcorreuatrásdagente.—Penseiquefariatudoficarmenoshorrível.—Chegamos,venham,cuidadocomoônibus...—disseoArtilheiroOArtilheiro semeteu nomeio do trânsito, indo ao encontro de uma pequena igreja de pedras clarasilhada na junção entre a Strand e a Aldwych, um pouco antes de se tornarem a rua Fleet. Sua torreascendiaaocéuemdegrauselegantes,desafiandoosprédiosmaisaltosemais impressionantesaoseuredor,ladeadaporplátanosquecresciamnumasolidariedademesquinha.Nafrentedaigrejahaviatrêsestátuas.Georgeolhouparacadaumadelas,cheiodeexpectativas.Maispróximos, ficavam dois homens em uniformes da SegundaGuerraMundial, com chapéus triangulares.Mais para frente, as costas de um homem com um robe longo, em cima de um plinto elaborado, queolhavanadireçãodaStrandcomoseesperassequealgumacoisadesagradávelfosseapareceraqualquermomento.GeorgeolhouparaoArtilheiro.—EleéoDicionário?—Porquevocêachaqueéele?—Porqueeletemcaradeprofessor.Eumrobe.Parecealguémeminente.OArtilheironegoucomacabeça.—Nãoéeminente.Éapenasumpolítico.Vamos.Georgeolhouparaasduasestátuasdechapéutriangularquandoseaproximaram.—É...OArtilheiroapontoualémdasestátuas.—Elesnão.Eleficadooutrolado.George se sentiu estranho ao passar pelas estátuas, como se fossem se mover a qualquer momento.

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Apesardosuniformes,osdoispareciamumpoucoseveros,comodiretoresdeescola.Edieolhouparaosdoisdemoradamente.EacenouparaGeorge.—Seioquequerdizer.—Maseunãodissenada.—Elesparecemiguais.Massãodiferentes.Dáprasentir.—Nãosintonada.Estavasópensandoqueémuitoesquisitonãosaberquandoouseelesvãosairporaíandandoefalando.—Oh,penseiquevocêtinhapressentido.Eleolhouparaela.Elapareciadecepcionada.—Pressentidooquê?—Nãosei—elaapontoucomacabeçaparaoshomensdeuniforme.—Masalitemmuitamorte.GeorgepercebeuumacoisasobreEdie.Nadadoqueeladiziafaziaaspessoassesentiremmelhor.ElesearrepioueseguiuoArtilheiro,quetinhaviradoaesquinadaigreja.—Existemuitamorteemtodolugar—resmungouoArtilheiro.—IssoaquiéLondres.Muitavida,muitamorte,muitodetudo.Aquiestáele.—Elequem?—perguntouumanovavoz.Georgeolhouparacima.Aestátuadeumhomemvestidocomroupasdo séculoXVIIIolhouparaele.Tinhaumpássaropousadonotopodesuaperuca,quenavidarealteriasidotratadacomtalco,masqueagoraestavacobertadecocôdepombos.Entreasmechasencaracoladasestavaumrostoassimétricoecarnudo,umabocaquesemoviasilenciosa,comoseelemastigassesuapróprialíngua.OArtilheiroajeitouocapacetenacabeçaecumprimentouaestátua.—Dicionário,sevocêpudernosdarummomentodeseutempo,queremosumapalavrinha.ODicionário limpou a garganta ruidosamente e falou. Sua voz era profunda e grossa, com as vogaismonótonas e as consoantes abruptasda regiãodeMidlands.Georgenãopôdedeixardenotar que eletinha um sotaque mais próximo do de um camponês do que de um homem que conhecia tudo sobrepalavraseLondres.—O tempoquepossuonãoémeupropriamentedito, éumempréstimodaProvidênciadesconhecida,portantonãoopossuoparadar.Noentanto—oDicionárioolhouparaumlivrogrossoqueseguravacomamãoesquerda,enquantoamãodireitamanuseavaasobrecasacaeoscalçõescomoseelativessevidaprópria—,aspalavrasquetenhoparadarestãonestelivro,colocadasnelecommeuprópriosuor,porissocomelaspossofazeroquebementender.Eelasestão,comosempre,aoseudispor.GeorgeespioupelocantodoolhoparaverareaçãodoArtilheiro.—Eledissesim.Ediefaloubaixinho:—Bom,eleusaémuitopalavreadoparadizerumsimplessim.OArtilheiroafulminoucomoolhar.ODicionáriosesacudiuporummomento,comoumhomemtentandosorrateiramentetirarumcubodegeloquealguémpôsnascostasdesuacamisa.—Bem,nãoésemprequevemoscriançasquenosvêemcomosomos,Artilheiro.Presumoentãoqueaqui

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tenhaumcaso,estoucorreto?ODicionáriopuxouameiaeseagachouemumjoelhoparaolharparaeles.—Vocêestánocaminhocerto,Dicionário.Omeninoaquiestácomumprobleminha...—Ah,o“menino”deveterumnome,semdúvida?OArtilheiropôsGeorgenafrentedele.GeorgeolhouparaaassimetriadorostodoDicionárioedecidiuqueaqueleeraumsemblanteseveroatéseolhadomaisdeperto,quandoseviaumquêdebondade.Eraumrostoquenãoestavaacostumadoasorrir,emboraquisessemuito.—ElesechamaGeorge.George,esteéoDicionárioJohnson.Dicionário,George.ODicionárioteveumespasmoinesperado,comoseestivessetentandoretirarasobrecasacaemumúnicoe rápidomovimento. Seu pescoço se contorceu duas vezes num reflexo de gaguejo e ele latiu algumacoisaquepoderiatersidoumapalavra,ouapenasumruído.—Rá,prazeremconhecê-lo,meusenhor.OArtilheirocutucouGeorgenascostelas.—Oh.Prazeremconhecê-lo.ODicionárioolhouparaGeorge,oqueofezsentir-sedesconfortável.—Observoqueosenhorestáincomodado,incomodadoporforteemoção.—Sim—disseGeorge.—Estouconfuso.—Confuso...ouassustado,talvez?—Talvez—murmurouGeorge,escondendoosolhosdeEdie.—Quandoeuera jovememedroso,umamulhersábiamedeuumconselhoquesempreguardeiequeagora passo para você: do mesmo jeito que a esperança aumenta a felicidade, o medo agrava acalamidade.—Ah—disseGeorge,aindatentandodesembaraçaraspalavrasparaqueelasfizessemsentido.—Vocêfazascoisaspioraremaosepreocuparcomelas—explicouEdie.Elesevirouparaela.—Elasnãopodemserpioresdoquecoisastentandomematar,nãoé?—Claroquesim.Elaspodempiorarmuitomais.Antes que ele pudesse indagar o que ela queria dizer, ou mesmo se questionar se realmente queriaperguntarcasoelalhedissessemesmo,oDicionáriolimpouagarganta.—Seráquevocêspoderiammedaroprazerdeesclareceroseventosqueosfizeramchegaratéomeusingelo plinto? Sinto uma falta enorme de conversa, vocês entendem, o que é uma coisa exasperante,presocomoestouaquinestarochasolitária,enquantoavidadabelacidadesepassaaomeuredor.Nãohágraça,nenhumavariaçãoparamedesviardoespetáculodeprimentequeéacompanharoshomensdejurisprudênciaentrandoesaindodaquelesteatroshipócritasqueficamdaquelelado.Eapontoucomolivroparaacarreiradepináculosearcosempedrasbrancasqueformavamoedifício.—EsteéoTribunaldeJustiça—disseGeorge.— Decerto— concordou o Dicionário.— E toda esta fineza de arquitetura para abrigar tão banal

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propósitoque éodedistinguir o certodo errado.Éminha conclusãoqueo ladode fora, com toda aexuberâncialevedasagulhasetorreõesqueapontamparaocéu,servesomenteparadistrairaatençãodofatodeque ládentro,nascâmarasescurasda lei, tudoapontaparabaixo,paradentrodosbolsosdosadvogados.Écomoamaquiagemnorostodeumasirigaita,apenasdistração.Porque...OArtilheirointerrompeu.—Omeninotemumproblema,Dicionário.Perdoe-meporinterromperassim,masoproblemaésério.Acabamosdeconsultarasesfinges...—Asesfinges?Rá, entãovocêsdevem ter ficadosmenos sábios emuitomais confusos, semdúvida.Somenteumnésciopoderiaprocurarumaesfingeparaobterrespostas...—Néscio?—GeorgeolhouparaEdie,quedeudeombros.OsdedosdeDicionáriofolhearamaspáginasdeseulivro.—Uminepto.—Umburro—explicouEdie,paraajudar.OArtilheirocutucouGeorgedenovo.Georgepigarreou.—Aesfingenosdeuumarespostapelametadeenosdisseparaprocuraro“FradalhãoNegro”.Sóqueeunãoseioqueéumfradalhão.Os dedos deDicionário folhearam as páginas de seu livro, demorando-se quando se aproximaramdoverbetequeprocurava.Pousouodedoemcimadelesatisfeito.—Fradalhão:ummonge.—Entãoprocuroummongenegro?—Ummongeouumabade,umfrade...—Umfradenegro.Oarficoudensoentreeles.Ascriançasolharamparaasduasestátuas,quetrocavamolharescomaquelejeitoqueaspessoasnormalmentefazemquandoestãoocupadasemnãodizernada.—UmfradenegroqueconhecetudosobreLondres.ODicionárioseendireitou.Olhouparaoleste,paraaruaFleet.—Umfradepreto,então.OArtilheiroconcordoudevagarcomacabeça,sorrindo.—OFradePreto.Eudeviaterimaginado.—OquetemdeerradocomesseFradePreto?—perguntouGeorge,tentandoolharparaasduasestátuasaomesmotempo.—Nada—responderamosdoisdeformaatérápidademais,enquantoevitaramolharumparaooutro.—Mesmoassim—pigarreouoDicionário.—Elenãoéalguémparaseperturbarsemmotivo.Talvezeupossa ajudar.Pode ser puravaidade,mas eumeorgulhode ter umconhecimentovasto e profundodestametrópole.—Omeninoaborreceuosestigmas.Nãosabeporque,masofatoéqueagoraoperseguem.Foiporissoquefomosprocurarasesfinges,sendoelasmetadecuspidosemetadeestigmas.

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—Equeiluminaçãocrepuscularelasforamcapazesdedarparaodilema?—Oquequerdizercrepuscular?—cortouEdie.— Vaga— disse o Dicionário, com um tremor de irritação nos ombros. George notou que ele nãogostavadeserinterrompidoenquantofalava.—Entãoporquenãodizervaga?Todasessaspalavrasgrandessãocomofalaremcódigo.AntesqueoDicionáriopudesseresponder,Georgeseantecipou.Elequeriarespostas.OquenãoqueriaeraqueEdiecomeçassemaisumadiscussão.—AsesfingesdisseramqueeuprecisoencontraroCoraçãodePedra.AchoquedisseramqueoMongePreto...—Frade—corrigiuoArtilheiro.—OFradePretopoderiamedizeroqueéisso.—Éclaroquenospoupariamuitotempoe...sabecomoé,Dicionário,sevocêfossecapazdenosdizeroqueéoCoraçãodePedra—disseoArtilheiro,esperançoso—,entãonão teríamosque incomodaroFradedejeitonenhum.Eissoseria...Pareciaquefaltavam-lheaspalavras.—Maisconveniente?—sugeriuaoutraestátua.—Issomesmo.—EntãoprecisamosdesvendarosignificadodoCoraçãodePedra—disseoDicionáriocomumsúbitorodopio, sentando-se, tanto que suas pernas commeias ficaram se balançando na beira do plinto.Elefolheouolivro,masnãoconseguiuacharnada.Apertou-onopeitoesebalançouparafrenteeparatráscomosolhoscerrados,pensativo.—CoraçãodePedra?Umapedraemformadecoração, talvez.Ouocoraçãodeumapedra.Masissopoderiaserqualquerpedra,eprocurarumapedraqualquernestacidadevastaécomo tentaracharumgrão de trigo em um trigal. Não. O Coração de Pedra talvez... a estátua de um coração, um coraçãotalhadonumapedra?Abriuumolho.Ninguémreagiu.Voltouacerrá-loeasebalançar.—OuPedranoCoração, talvezcomoemumadoençaqueafetatalórgão,ouqueprecisaserretirado,comoempedranavesículaoupedranorim?GeorgetocounoArtilheiroedissebaixinho:—Nãoseidoqueeleestáfalando.OArtilheirotocoudelevecomumdedonoslábioseolhouparacima,paraafiguraquesebalançava.AvozdeEdiequebrouosilêncio.—Nemelemesmosabe.Elenãosabeoqueé.Obalançarparouabruptamente.ODicionárioabriuooutroolhoeolhouparaela.—Como,como,porconsideração,oqueeutinhaentendidocomocompanheiraeparaninfa,nãoémaisqueum—seusdedosfolhearamaspáginasdolivrocomumarapidezimpressionante—umgravetinhosemeducação.—Gravetinho?Elemechamoudegravetinho!—resmungouEdie.

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—Eusei—disseoArtilheiro,irritado.—FoioqueeleachounaletraG.SetivesseolhadonaletraC,teriaencontradochata.NoP,teriaachadopestinha...Edieergueuoqueixocomardesuspeitaparaaestátuaetocounoseusapatodepresilhas.—Umgravetinhoécomoumafagulha?ODicionárioestremeceueafastouseupédoalcancedela.—Umafagulha?Não,dejeitonenhum.Fagulhanãoconstanomeudicionário,porserumapalavraímpia,umamera superstição.Umgravetinho é umapalavra comum, usada amplamente, que qualquer criançaconhece,atémesmoaquelasdeinclinaçãofeminina,equerdizerqualquerpedaçodelenhamiúda,coisacurtaquenãosecurva.Georgeolhouparaela.Seulábio,apesardeseusesforços,tremeu.—Oquê?—perguntouela,desafiante.—Vocêdeveserumpoucocomoumgravetinho.—Vocêvaiacabarlevandonacarasecomeçaramedarapelidostambém.EdieempurrouGeorgecomforça.Eleprecisouagarrarocasacodelaparanãocairparatrás.Ouviuumrasgãoeobaquedealgumacoisacaindonacalçadadepedra.Elasevirouparaele,dandoumsocofirmenoseuombroqueofezsoltá-la.ODicionárioficouescandalizado.—Agora,crianças,nãohánecessidadedesefoiçaràsportasdamansãodeDeus.—Sefoiçar?—perguntouGeorge,atrapalhando-senovamente.—Lutar.Brigar.Partirparabriga—disseoArtilheiro,frustrado.—Comfoices,paraserexato,comfoices—pigarreouoDicionário.—Nãofoibriga.Elameempurrou.Olhe,medesculpe,mas...Eleparoudefalar.Edieestavaagachadaprocurandooquetinhacaídodeseubolsorasgadoeroladonacalçada.Eraodiscodevidro.Seusolhosestavamfixosnele.—Elesestãoaqui.Ovidroqueserviadeavisoreluziacomumaluzazulesverdeada,comumbrilhocomoelajamaisvira.—Estigmas.Aqui.Agora.Elesolharamparaocéu.Anoiteciaeeleaindaestavamanchadodelaranja,comaluminosidadenaturalmisturadaàclaridadedacidade.Edie,porém,nãoolhou.Pegouovidro,enfiounooutrobolsodocasacoefechouozíper.Por um horrível momento, George sentiu a barriga se contorcendo de novo, quando uma coisa aladaapareceunocéueficoubatendoasasasacimadeles.Porém,elerelaxouquandopercebeuqueeraapenasumpássaropretogrande,enãoumagárgula.—Éapenasumpássaro—disseele,aliviado.Opássarosobrevoou,comosevoasseemcâmeralenta.ODicionáriousouolivroparatentarafastá-lo.—Umagouro—disseele,meiodistraído,comosefalasseconsigomesmo.—Umagouro,semdúvidanenhuma.—Agouro?—indagouoArtilheiro,semtirarosolhosdopássaroestranhamentelento.

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ODicionáriosacudiuolivroparaoArtilheiro,comosetentandoextrairosignificadodapalavraparaqueelevisse.—Agouro:prediçãobaseadanovôodeaves.Eeleparecemesmoumpássarodemauagouro.Ele tremeu e se contorceu, e George acabou tremendo também, como se aquele movimento fossecontagioso.—Oquevamosfazeragora?Edieopuxoupelobraço.—Correr.Elapraticamenteoarrastouparaotrânsito.Depoisdedoispassosmeioincertos,elecomeçouacorrermaisrápidodoqueela.OArtilheiroparoudeolharopássaroe sevirouparaverosdoiscorrendo.Um instantedehorror semostrouemseurosto,eelecomeçouacorrerenquantogritava:—Não!Poraínão!GeorgeeEdie tiveramquepararabruptamenteporqueumônibusvirouaesquinabemna frentedeles,bloqueandoocaminhoparaaruaFleet.GeorgeouviuoArtilheirogritaresevirou.Viuporuminstanteaimagemdaquelehomemenormecorrendo,apontandoegritandoalgumacoisa,masentãoumoutroônibusvirouaruaatrásdeGeorgeeporummomentoeleeEdieficaramnomeiodocânionestreitoentreosdoisônibusquesecruzavamnarua.Era como estar no olho de um furacão, um pouco de calma entre as duas muralhas vermelhas quepassavamvelozesemdireçõesopostas.OônibusàfrentedelespassounumanuvemdefumaçapretadedieseleEdieoempurroudeleveparaafrente, três passos pelo menos, até que se depararam com a coisa sobre a qual o Artilheiro estavaavisando,enquantoaindadavaavoltaportrásdooutroônibus.Acoisacomolhosdefúria,comescamaseasasquesoavamcomotrovão.Acoisaqueosobservavadotopodeseupoleiroaltodepedra,plantadobemnomeiodarua.EdiefreoueGeorgeparou,aindaolhandoparatrásafimdeentenderoqueoArtilheirotentavadizer,nãopercebendoqueeraexatamenteaquiloqueacabavamdeencontrar.—Oquefoi?—Achoqueéumdragão.Eelesevirou,devagar.Eera.Exatamenteisso.Umdragão.Elesnãotinhampraondecorrer.

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ODRAGÃODOTEMPLEBARDRAGÕESEXISTEMDETODASASFORMASetamanhos,dosmonstruososcomoumpesadelo,comasasquese abrem com o ruído de um trovão e tapam o céu, aos pequeninos de pelúcia que são penduradosinocentemente em pára-brisas de carros num balanço irritante. A primeira coisa que George e EdieperceberamfoiqueoDragãoquevigiaaruaFleetnãoédaquelesdepelúciaqueagentequeracariciar.Tinhaumcorpoque erao cruzamentodeum leão comumcãomusculoso coberto comescamas comolorigasnumaarmaduraantiga.AcaudafinaeespinhosaestaloucomoumchicoteeasasasseabriramestrondosasenquantooDragãoseergueuemsuaspernas traseiras.Agarra fronteira—eramgarrasdaquelasquepoderiam rasgá-lo empedacinhoscomunhascurvadaseafiadascomopunhais—pegouoescudolargoemqueseapoiavaebateucomeleduasvezesnasescamasdopeito,fazendoumruídodeavisoquefezvibrarochãosobospésdeGeorge.Era a cabeça, porém, que assustava mais. Ela se esticava de um pescoço longo e reptiliano que seestendiadocorpoleoninocomumacristadeespigõeseriçados.Asorelhasseassemelhavamàsdeumcavaloeabocaameaçadoramostravacaninoscurvados.OsolhosquesefixaramemGeorgeeEdieseprojetavam embaixo de sobrancelhas monstruosas, e emanavam um calor e uma intensidade queparalisaramGeorgenocantoemqueestava.Eleseramcomoocoraçãodeumafogueira.Eramdacordebrasaardente,umvermelhoprofundo.EnquantoGeorgeobservavafascinado,overmelhosetransformouemumbrancodecalorintenso,efiosdefumaçanegraescaparamdosolhos,encaracolando-sesobreassobrancelhaspontudas,esvanecendonocéunoturno.Edieopuxoudeleve.—Nãoconsigomemover.—Nemeu.A cabeça do Dragão encolheu, fazendo seu corpo formar um “S”. A crista estreita se expandiu e asescamasnoseupescoçoseeriçaramcomoquequerqueestivesseseinchandodentrodele.Georgeumavezviraumfilmecomumlagartoencrespadoesticandoseupescoçoemfúria.Esteaquipareciaaversãomaisadultaetípicadofimdomundo.DerepenteoArtilheirosurgiunafrente,seposicionandoentreeleseoDragão.—Nãoolhemnosolhosdele!Eleenfeitiça!Nãoolhemnos...VUUMF.ODragãoadiantouacabeça,abocaaberta,a línguacompontadeflechaseesticandoparaforacomoumaespadaeexpelindoofogo.NãohaviaabsolutamentenenhumapossibilidadedequeGeorge,Edie,ouqualquerum,nãoolhassem.Achamaatingiuaruaemumaespiralgiratóriadefogo,comcordõesdelabaredasvermelhas,laranjas,roxaseamarelasseentrelaçandoantesdeaçoitarochãocomamesmapressãodaáguaquejorradeumamangueiradebombeiro.Aschamasseespalharampelarua,fazendoseucaminhoatéelescomoumaondaqueseavoluma.

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Aindapresosaochão,GeorgeeEdienãoconseguiamfazernadaalémdeprotegerorostodomurodecalorqueseadiantavaàondadefogo.OArtilheiro rodopioue seajoelhouna frentedeles,abrindoacapadechuva, tentandoprotegê-losdaincineração iminente pelas labaredas que se aproximavam. Não havia capa suficiente para bloquearcompletamenteavista,ealémdomaisGeorgenãoconseguiatirarosolhosdaconflagraçãoinevitável.—Abaixem-se!—gritouoArtilheiro.Georgenãopodiasemover.Nemmesmofecharosolhos.Sabiaqueestavaaumpassodaincineração,masnãopiscou.Sentiuocalorchegandoàsretinasesecando-asemuminstante.Piscounumreflexoparaumedecer os olhos e, quando abriu-os de novo, viu que as chamas pararam abruptamente, como setivessemsedeparadocomumaparedeinvisíveladezmetrosnafrentedeles.OArtilheiroolhouparaorosto,eparaareaçãodele,depoisvirou-seeolhouparatrás.Aschamassechocavamcontraabarreirainvisívelcomoáguabatendonumaparededevidro.—Caramba!O fogocresceuatrásdamuralha, subindocadavezmaisalto,moldando-se, comosepreenchesseumaforma.Enomeiodetudoisso,elesperceberamqueLondrescontinuavavivendoseudia-a-dia.Oscarrospassavampelamuralha de chamas sem reação.Umciclista deu a volta por um táxi, seu apito soandoraivoso, safando-sedo táxiporum triz,maspedalouexatamentepelomeiodaqueleportão infernaldechamassemumtoquedehesitação.Oquequerqueestivesseacontecendo,estavaacontecendoapenasparaGeorge,EdieeoArtilheiro,enãoparaorestodeLondres,nãoparaaLondresnormaldetododia.NaLondresnormaldetododia,seushabitantes simplesmente continuaram indo para casa ou indo passear, sem fazer contato visual comninguém,casoalgumacoisaestranhapudesseacontecer.Eumacoisamuitomais estranhadoquea coisamais estranhaquepudesse acontecernodia-a-diadeLondres estava acontecendo exatamente naquelemomento. As chamas formavam um portão que ia depontaapontadaruaFleet.Oumelhor,elassetransformavamnumaesculturadechamas,umaréplicadeportõescomtorres.Haviaoportãoprincipalnomeio,largo,comdoisarcosdecadalado,dotamanhodeumhomem.Acimadoportãoprincipalseerguiaumarcoclássicocomblocosdepedradelineadosporlabaredas de cores diferentes. No topo do arco ficavam as salas de vigia, com janelas elegantes,ladeadaspor alcovas, e, emcimadelas, um raso telhadoarqueado.Mesmoaterrorizadoeobviamenteachandoqueenlouquecera,Georgenãodeixoudenotarqueerabelo.Umônibussanfonadoatravessouoladodatorredeentrada,omotoristamastigandoumchicletecomumaexpressãoazedanacara,osolhosomissosfixosnatraseiradocarroàfrente.—Oqueéisso?—perguntouEdie,osolhosencantadospelamuralha.—OTempleBar—murmurouoArtilheiro.—OqueéoTempleBar?—UmdosportõesantigosdocentrodeLondres.Foidemolidohácem,não,maisdecemanos.PuseramaqueleDragãoemseulugar.Comomesmopropósito,estouvendoagora...Ouviramumestrondoatrásdamuralhacomportões.As labaredassemisturaramepularam,depois seformaramdenovo.Davaatéparaverostachõesnospainéisdosportõesmaciços.—Quepropósito?—perguntouGeorgecomavozseca.

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—VigiarasentradasdocentrodeLondres.Nãodeixarosindesejáveisentrarem.Osportões largosembaixodoarcocentral sesacudiram.Algumacoisaseagarrouao topopontiagudodosportõeseospuxoufuriosamente.EramasgarrasdoDragão.—Vamos!—gritouoArtilheiro,amãoprocurandooseucoldre.EentãotodaabelezaeamágicadoedifíciodechamasseevaporoueoterrorvoltouquandoosportõesseabrirameoDragãoatravessouoarco.Ofogoquecresciadentrodaferaatransformaradeummonstrodemetalfoscoemumdragãodeintensobrilhoabrasador.Suacabeçaviravadeumladoparaooutrohipnoticamenteprocurandoalguéme,quandosedeparoucomGeorge, parou. A garganta se inflava com a pressão do fogo que eriçava as escamas, formando umbabadoterrívelqueenfeitavaosolhosardentesefatais.O corpo inteiro deGeorge queria fugir,mas suamente havia parado de enviar os sinais corretos. OArtilheirooagarrouepuxou,masnadamudou.Georgeparecia ter se transformadoempedra, imóvel,mesmocontraosmúsculosenormesdebronzedoArtilheiro.—Caramba!—exclamouoArtilheironovamente,destavezaindamaisperplexo.ODragãoemproouacabeça.Abocafoiabrindo.Osdentesfaiscavamcomodiamantesazuis.—Ah,nãovai,não—grunhiuoArtilheiropreparandoopesadorevólveremumúnicoedeterminadomovimento.ODragãonemolhouparaele.BLAM.Orevólverdeuumamarrada.SHUUU.AbalaatingiuoDragãoardentenolugaremquedeveriaserseucoraçãoederreteunoimpacto,formandoumamanchaescurasobreapeledacriatura.—Ah—disseoArtilheiro.BLAM.BLAM.BLAM.SHUUU.SHUUU.SHUUU.MaistrêsbalasseespatifaramnopeitodoDragãocomomesmoefeitodeumaboladetintaemumtanquedeágua.ODragãoolhouparaochumboderretidochiandonoseupeito,aparentementesedandocontapelaprimeiravezdapresençadoArtilheiro,ecuspiufogo.OArtilheirorodopiouetentoupegarGeorgeeEdieantesquealançadefogoosatingisse.SeusdedostocaramemGeorgemasconseguiram levantarEdienomesmo instanteemquea labaredaoatingiunoombroeolançourolandopelarua,eleformandoumaboladeproteçãocomEdienomeio.George não conseguia calcular o poder de um jato de chamas que mandava um homem de bronzerodopiandopelaruacomoumcopinhoamassadodepapellevadoparaoesgotoporumjatod’água.Eeletambémnãoqueriacalcularcomoseriaisso,porquenaquelahoraoDragãoseinflouecuspiudenovo,destavezumfogodeumacordiferente—umtomvioláceobrilhantecomoodaametista—,eeletevetempoderefletirsobreanuançaprecisadacorporqueaflamanãoavançou,ficouparadacomoummurodechamaquedividiaarua,deumladoelee,dooutro,EdieeoArtilheiro.

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Um caminhão ultrapassou uma ciclista e passou pelo meio da barreira de chamas, que se fechounovamentedepoisdedeixá-lopassar.OmotoristavirouacabeçaesorriunadireçãodeGeorge.—Ei,ei!—gritoueleemostroualíngua,fazendoumgestorude.—Idiota!—gritouumagarotadooutroladodeGeorge,fazendocomqueeletirasseosolhosdoDragãoporuminstante,osuficienteparaverumagarotaloirabonitaabaixandoasaiadovestidoqueselevantoucomovento,enquantolutavaparacontinuarequilibradanabicicletanomeiodotrânsitoque,horríveleinexplicavelmente,continuavaseuritmo,ignorandoporcompletooDragãonomeiodetudo.Mas oDragão não estava ignorandoGeorge.Olhava direto para ele, intensamente.George ainda nãoconseguiamover as pernas.Tinhaqueproteger os olhospara olhar para oDragão,mas, quando faziaisso,tinhacertezaqueelepareciadiferente.Aindaraivoso,porqueéassimquesãoosdragões,maseraoutracoisatambém.Obrilhoardentequeemanavadacriaturadificultavaaconfirmação,maseracomose ele estivesse levantando uma sobrancelha. Não sabia que sentido tinha isso. Quem sabe estavacalculandodequemaneiraofritaria,decidiuGeorgeamargamente—eentãoelesentiudenovoaquelaparte indesejávelde simesmo,ogostoamargodebílisna suaboca,o tremoratrásdosolhos,um fioescuroque se enroscavano seu íntimo, a coisaque elenãoqueriapensar, a coisaque elegeralmenteesqueciaquetinhapordentro,acoisaqueelenãoqueriaentender.Acoisaqueoinundavadepuraraiva.—Oquê?—gritouele.AsobrancelhadoDragãoestavarealmentearqueada.—Oqueestáesperando?Instruçõesdecomoassar?Malpassadooubempassado?Entãoquesejabempassadoparaacabarlogodeumavez.EoDragãoempinouacrista,olhouparaeleecuspiufogo.Cuspiunassuasprópriaspatasdianteiras,eofogorolouevirouumabola.Durarntetodootempo,oDragãonãotiravaosolhosdeGeorge.Elerespirounovamente.Talvezaferanãofosseassá-lo.Talvez,pormaisinacreditávelquefosse,talveztudoaindaiaacabarbem.ODragãobrancolevantouagarraeatirouaboladefogodiretamenteparaGeorge.Otempopareciaterficadolento,talvezporqueGeorgesabiaqueahoratinhachegadoparaeleeporissoapreciavamais cadamicrossegundo, parecendo assim que tudo eramais lento.Viu o raio de chamasgirandonasuadireção,formandoumlongoarco,esabiaentãopelasensaçãodeimobilidadedeseuspésnochãoque jamaispoderiasesafardaquilo.Porumarazãoquenão tinhanadaavercomsensatezouracionalidade, e tudo a ver com uma vida inteira sendo escolhido por último no jogo de futebol eacabandosemprecomogoleiro,elecerrouasmãose,empurrandoseusombrosparaafrente,atacouabola com toda a sua força. Tocou-a de lado, sentindo o chiado de queimadura ao fazer contato, ummomentodecalorintenso,eabolafoigirandoparalongeportrásdele.ODragão rugiue levantouumagarraparaabola,quegiroumaisvelozecontinuounumacurva,maisestreita desta vez, dando uma volta ao redor de George, saindo do outro lado dele numa órbita quedesafiavaaleidagravidade.Começouentãoacircularemtornodele,cadavezmais rápido, labaredasderramando-sedopontoemqueGeorgeatocou.Ondederramava,achamaficavanoar,eassimGeorgeseachounomeiodeumconeinvertidoecrescentedelabaredas.Logoelenãoconseguiuvernadado restodeLondres alémdas chamas, e se sentiu sozinho,presonomeiodeumtornadoabrasadorqueaçoitavasuasroupasecrestavaseuscabelos,soandocomoumtrem

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expresso cheio de gente gritando e circulando sem cessar ao seu redor. Ele tapou os ouvidos com asmãos,fechouosolhoseacrescentouseuprópriogritoaocrescendoalucinante.Decabeçaparabaixodooutroladodarua,alémdamuralhadechamasviolentas,Edieabriuosolhos.Estava apertada nomeio do corpo curvado do Artilheiro, como uma vítima de acidente de carro. OcapacetedoArtilheirotinhacaídoebalançavadeponta-cabeçanacalçadaàfrentedela,comoumatigelapreta.Elasemexeuumpoucoeviuorostodelecontorcidonocimento.Lutouparaselivrar.Elevirouacabeça,olhouparaelaeEdieparoudelutar.—Viuoqueelefez?Omenino?Oencantonasuavozsemisturavaàdorqueeraaparentenoseurosto.Elasacudiuacabeça.—Pareciaqueeraofimdele.Aferajogouaboladefogocomonomedeleescritonelaeele—aquielefezcareta—,elefezalgumacoisa.Nãoseioquê,masconseguiusesafar.—Vocêestábem?—Sim.Ele não soava convincente. E sua aparência era ainda menos convincente quando ele dolorosamentelevantouacabeçadochãoesecontorceuparalibertá-la.Nomomentoemqueelaroloulivrenacalçada,viuoquehaviamudado.AtorredechamasqueeramosportõesdoTempleBarestavadesaparecendoempedaços,comoumavelaseapagando.TodoofogoseconcentravanovórticequegiravaaoredordeumapequenapessoaqueelasabiaserGeorge.Eparadoemfrenteaoconedeflamas,asgarraserguidasparaocéu,estavaoDragãobrancocontrolandoemoldandoofogo,comseuescudopenduradonoombro,comumacruzdacordesangueofuscantepiscandocomoavisoparaeles.ElasevirouparaoArtilheiro,queseesforçavaparaficardejoelhos.Umafiladeharekrishnaspassavaentreosdois,cantandoetocandopandeiros,impassíveisaoconedefogo,aoArtilheiroouaEdie.ElaapontouparaGeorge.—Vocêpodesalvá-lo?—Posso.Eleaindanãosoavamuitoconvincente.Oombropendiaparaumladoenãosemovia,aindasoltandofumaça no lugar onde oDragão o atingira. Ele se contraiu enquanto tentava levantar a capa de chuvasobreumombroetirararédeadecorrentequeestavapenduradanooutrolado.—Vocêestámachucado!—disseela,comumtomdequemfoitraída,comosenãoquisesseacreditarquefossepossível.—Sim—resmungouele,dessavezsoandomuitoconvincente.—Meajudeatiraressascorrentesdomeuombro...Elanotouqueelesótinhaumamãoquefuncionavabem.Sempensar,elasubiunoseujoelhoeenfiouamãoporbaixodacapadechuva,surpresadesentiratexturamaleáveldometal.Elapuxouacorrente.—Oquevai...?—Nãofale.Vocêfalademais.Ouça.Elasepreparouparareplicar,quandoviuseurosto.Estavamachucado,maselenãoestavaolhandoparaelacomraiva.Porummomentoelepareciaatébondoso.

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—EleprecisachegaratéoFradePreto.OFradePretoficaemumpubnofimdaponteBlackfriars.Elacontinuouolhandoparaoconedeflamasdooutroladodarua.—Vocêvailevá-lo...—Não.Nãovou.Nãoseiseissovaifuncionar,emesmoquefuncione,nãovoutercondiçõesdefazê-loevocêterá.Osdragõesserãoumproblema.—Temmaisdeum?—TemumvigiandocadaruaquelevaaocentrodeLondres.Eoproblema,oumelhor,umdosproblemascomoFradePretoéqueeleficanocentro.Assimvocêsnãopodemirpelasruas...—Podemospegarometrô...Eleagarrouobraçodela.—Não.Eunãoseioqueouquemeleé,masseforoqueequemeuachoqueé,entãooúnicolugarmaisperigosoparaeledoqueacimada terraéembaixodela.Nunca,nuncaváparaosubterrâneo,estámeentendendo?Eufizissoumaveznaqueleestacionamentoeescapamosporpurasorteeignorânciacega,masnãofaçaissodenovo!Edieconcordou.—Entãosenãopodemosirpelasruas...Ele pegou a corrente das mãos dela e enrolou-a no pulso bom, os olhos fixos no fogo e no Dragãoenquantofalava.—Antesdehaverruas,haviaumaoutraestrada.Umaestradadeágua.Éestaquevocêsvãopegar.Nãohámuitoquesepossafazerumavezqueumestigmalhemarca,masaquelequeéruimemaldososempreodeiaduascoisas:ferrofrioeáguacorrente.Assimseucaminhonãoseráporterra.Emaisumacoisa...Edieapontou.Dooutroladodarua,oDragãotinhaabaixadoosbraços.Eleestendeuumagarraecortousuavemente uma abertura no cone de chamas.Os dois chegaram a ver de relance a figura deGeorgeparadonomeiodofogo,maslogooDragãoentrounovórticeefechouaaberturaatrásdele.Georgesentiuumsoprodearfriodentrodoconeeabriuosolhos.Eéclaroque,nahoraemqueabriu,desejouquenãootivessefeito,porqueoDragãoestavaali,bememcimadele.Eleteriagritado,masnãotinhamaisvoz,porissofechouabocaecerrouosdentes,fazendocomqueagritariaacabassenaquelemomentoemqueeleseviusozinhonaquelaespiraldechamascomoDragão.Georgeolhouparacimaeviuacabeçabrancanomeiododiscoescurodanoitenotopodocone.Eatrásda cabeça, notou umponto de luz piscando, um jato atravessandoos céus deLondres, cheio de gentedentro,ouvindopacientementeosavisosdeapertarocinto, recebendoabandejadecomidadeavião.EssepensamentofezGeorgesacudiracabeça.ODragãoimitouogestocomaprópriacabeça.George sacudiu a cabeça de novo para ver se era isso que estava acontecendo. ODragão o copiou.George percebeu que estava rindo, pelo menos metade riso, metade choro. E enquanto soluçava efungava,oDragãofaziaomesmo,imitandosemruídoseusmovimentos.George olhou para cima, para o avião que piscava alegre no céu, que em segundos desapareceria docírculo visível de normalidade acima dele, e tentou de tudo para acordar daquele pesadelo. Nãoconseguindo,sentiuaraivaseapossardele.

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—Vocênãoéreal!—gritoueleparaoDragão,queoobservavaatentamente.Eapontouparaocéu.—Aquiloláéreal,éumaviãoeérealeciênciaéreal,motoresajato,comidadeavião,papelesalemsachês,cintosdesegurança,filmesruinscomaspartesboasbloqueadasebalasdementanaaterrissagemeosouvidossurdos,tudoissoérealevocêNÃOÉ!OsolhosdoDragãomudaramquandoelerugiualgumacoisaquepoderiaserumguinchosempalavras,masquesoavaumpoucocomoumagargantademetaltentandogritar.—RRREAL...OruídoreverberouemtornodeGeorgeeofezseretrairquandoolhoudentrodabocadacriatura,nomeiodagarganta,atrásdalínguacomaflechanaponta,eviuumaflama,pequeninacomoumachama-piloto,prontaparaacenderepropagaroincêndioselvagemqueborbulhavanobojodefogodoDragão.—NÃOÉREAL!—gritouGeorge,ecuspiu.Cuspireraaúnicacoisaqueelepodiafazeremdesafioaoinevitável.OcuspechiouenuminstanteseevaporounopeitodoDragão.Eleentãopôsamãonafrentedorostoparaseprotegerdocalor.ODragãoderepenteesticouumagarracomoalâminadeumcaniveteecortouemziguezagueapalmadesuamão,tãorápidoqueelenãopôdeevitar.George jamais sentira uma dor assim. Embora já as tivesse imaginado. Era uma dor de osso sequebrando, mão se desintegrando, aquela dor que ele esperou sentir, masmilagrosamente não sentiu,quandoesmurrouopequenoDragãonoMuseudeHistóriaNatural,equeagorasentia,tãoderepente,sóquemilvezesmaisintensadoqueimaginara.Seucorposecontorceudedor,totalmenteforadecontrole,esecurvousobreamãomachucada.Suabocaseescancaroueos tendõesnoseupescoçoseesticaram,porémnãosoltounenhumsom.Eraumador quedesafiava o grito.Era umador tão grandeque ela se distancioudele, como se estivesseacontecendo com outra pessoa, e quando a escuridão começou a se formar num canto de seu olho,recebeu-acomoaumamigo,emborasoubessequenãodeveria.Eagoranolugardesentirraivaemedo,sentiuumatristezatãograndecomonuncahaviasentidonavida,eseucoraçãoquaseparoucomopesoinsuportáveldetodaaquelatristeza.GeorgesentiuoDragãopulandoporcimadele,eaúltimacoisaqueviuantesqueseucérebrocomeçasseaseconcentrarnaautopreservação,iniciandoporeliminarsuavisão,foiumaescuridãoqueatravessouamuralhadefogoqueelepercebeudocantoperiféricodocentrodesuavisão;eoúltimopedacinhodeGeorgequeeraGeorgemesmo,enãoapenasadorea tristeza,pensouque tinha reconhecidoa formadaquelaescuridãoedesejoupoderselembrarporqueaquilousavaumcapacetedemetal.OArtilheiroatravessouomurodechamase seviude frenteparaascostasdoDragão.Antesqueelepudessesevirareojogarparalonge,eleusouosespinhoscomodegraus,suasbotasdetachasfazendofaíscasenquantoelesubianoDragãoquetinhaodobrodesuaaltura.Omonstrosesacudiuerugiu.O menino na frente dele tinha se prostrado inconsciente no chão. O Artilheiro levantou a mão queseguravaarédeademetaleacirculounofocinhodoDragão,nomomentoemqueobichoseinflavaparaobliteraroArtilheironumatorrentedelabaredas.—Ah,masnãovainão!Cerrandoosdentescomador,eleagarrouacorrentecomforçaepuxoufirme,imobilizandoofocinhodoDragão.Quandopercebeuoqueestava sepassando,oDragão tentoupegar a corrente comumagarra

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pararasgá-la,masoArtilheiroaapertoucommaisforça,prendendotambémagarraembaixodoqueixodele,fechandosuabocaenquantopressionavaaindamaisacorrente.ODragãoseinclinoubatendoasasascomosoldadonassuascostas,nasuavezdelutarparaselivrar.SuasasassedebatiamtentandoalcançaroArtilheiro,queomontavacomoumcaubóitentandodomarumcavaloselvagem.Ele segurou seus ombros com os joelhos, pressionando-os com força para baixo, enquanto puxava arédeadecorrente.Asescamasafiadassobsuaspernascomeçaramaseeriçarcomapressãodobojodefogoquecrescia,comoumacaldeiraprontaaexplodir.OcorpointeirodoDragãocomeçouaseeriçarcomoumporco-espinho,asescamasselevantandoportodaapele,eelesesacudiacomcadavezmaisviolência.OArtilheirose inclinoupara trás,asmãos firmesnacorrente,puxandooDragão,comoumhomempuxandooaramedeumarco.Eessefoioseuerro.Eleseinclinoumuitoparatrás,dandooportunidadeparaqueacaudadoDragãoseenrolasseemseupescoçoeopuxasse,chicoteando-oportodolado,tentandodestruí-lo.EleviuumapequenafigurapassarentreaspernasdoDragãoesedebruçarsobreGeorge.Contudo, logo o Dragão recuou e ele não conseguiu mais ver. A estratégia do Dragão de puxar oArtilheiro para trás acabou por ser uma má decisão, porque enquanto tentava puxar o Artilheiro,colocava sua própria força namordaça do focinho, e oDragão desesperadamente precisava aliviar apressãodeseubojoinchadodefogo.Os dois rolarampara o chão se debatendo.OArtilheiro perdeu umpouco a firmeza no laço. FaíscaspularamentreosdentescerradosdoDragão.Umdoselosdacorrentederreteudeumlado.Ondeanteseraum“O”agoraformavaum“C”,eovãosealargavaconformeoDragãosedebatiaconvulsivamentenumatentativadeabrirsuasmandíbulasenquantomiravaascrianças.O Artilheiro viu uma tampa de bueiro no chão. Enfiou dois dedos no orifício do meio da tampa earrancou-adoasfalto.—Seuesperto,issovocênãovaifazer,não!Comumpuxão,eleafastouacabeçadoDragãodascriançasea forçouparadentrodobueiroaberto,metalarranhandometalenquantoosdoissepegavam.Derepenteouviu-seumpimdistintonomomentoem que o elo se partiu, transformando-se de um “C” para um “I”, e todo o fogo acumulado explodiudescontroladodedentrodoDragão,formandoumjatodemagmapuro,diretoparadentrodoesgotosobarua.OArtilheirosentiuaforçaderetrocessodaexplosãonobueiro,ressecandoseurosto.Embaixo da rua, o jato de flamas preencheu o esgoto e se espalhou ao longo do túnel principal,derramando-separaos lados,paracimaeparabaixonoscanosenosescoadouros.Viajoucomoumaonda de pressão na frente de uma explosão, inflando-se e encontrando novas maneiras de estourar,expandindo-separanovosespaçosevãos.Nasuperfície,aindalutandoparamanteracabeçadoDragãodentrodobueiro,oArtilheiroacompanhavadoníveldaruaoprogressodoincêndio.Aschamaspululavamdosescoadourosdosdoisladosdarua,e,aunscemmetrosdeondeseencontravam,umoutrobueiroexplodiufazendosubira tampaparaocéunumgêiserdelabaredasincontroláveis.As rodas dianteiras de um caminhão passaram pelo buraco aberto do bueiro, fazendo o motoristaderrubardaembalagemasbatatinhasquecomia.Depoisouviu-seumfortebarulhoquandoa tampado

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bueiroaterrissounatraseiradeseucaminhão.OArtilheiroolhouparatrásàprocuradeGeorgeeEdie.Elesnãoestavammaisali.

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PORSISÓGEORGE JÁESTAVAANDANDO quandocomeçoua recuperar a consciência.Edieoarrastava, seuombropor baixo do braço dele, descendo com dificuldade um beco que os levava para longe de toda aclaridade.George sabia que elá falava com ele,mas o eco dos gritos ainda preenchia seus ouvidos,acompanhadopelobatuque surdoque ele reconhecia comoasbatidasde seu coração.Sentiu suamãomachucadalatejando,acompanhandoomovimentodeseusangue,pulsandocomumadorquechegavaaosossos,apenasumadorsurdaqueferviaecongelavaaomesmotempo,muito intensapara terpontadas.Tentouolharparasuamão,ligadaaobraçoqueEdiesegurava.ElasacudiuacabeçaedissealgumacoisaqueGeorgenãoconseguiuouvir.Opânicosetornoupalpáveldenovoeatingiusuabarrigacomforçabruta.Talvezsuamãoestivessemuitoruimparasercurada.Talvez?Certamente.ODragãoatinhalaceradocomsuagarra-punhalardente.Suamãosópodiatersidodecepada,eraporissoqueEdietentavaimpedi-lodeolhar.Georgepuxouobraço,virandoacabeça,tentouver,tentouparar,maselacontinuouandandoeosdoiscaíramnumemaranhadodejoelhos,pernasecotovelosnoasfaltomolhado.Aosentiradordoimpactosubindoporsuaperna,oecodosgritosparouderepente,obarulhodacidadevoltoueelepôdeouvirdenovo.—...dissequevocêeraumidiota...AI!—gritouEdie,quandocaiu.—Porquê?George sentiu o chão lodoso e sabia que era, tinha de ser, seu próprio sangue. Não se tem a mãodecepadasemderramarsangue,elepensou.Tinhajogadomuitosjogosnocomputadoresabiabemdisso.Anáuseasubiupeloseuestômagoquandoolhouparasuamãoboa.Não era sangue. Era apenas o lodo da cidade, da rua escura, encardida, escorregadia da chuva. EleliberouseubraçomachucadodebaixodeEdiee,aofazerisso,pensouquesuaesperançaerafalsa—porque essa ausência de sangue obviamente indicava que a garra doDragão estava em chamas e, aodeceparsuamão,selaranahoraaferida.Arrastou-separaseencostarnumaparedeeseforçouaolharnadireçãodadorintensanapontadeseubraço.Ochoqueoatingiueelecomeçoua tremer.Cerrouasmãosparaacalmara tremedeira.Asmãos,sim,porqueeraoqueeletinha—duasmãosilesas.Suamãoaindaestavaali.Eleabriuefechouamão,semacreditar.Quantomaismovia,maisamãodoía.Maselenãoparavademovê-la,porquepodia;porquecontratodasasexpectativas,amãoaindaestavaligadaaoseubraçoenãohaviasangue,nempelesolta.Porumbrevemomento,elenãoseimportoucomoqueofuturotrouxesse,porqueoquequerquefosse,ele,George,

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poderiasegurá-locomasduasmãos.Quaseriu,eacabourindosim,elogonãoconseguiupararderir,eorisocomeçouadoertambém.—Qualéagraça?Temosquecontinuar.Edieselevantoudooutroladodobeco,limpandoolododeseusjoelhos.Georgemostrouasmãosparaela,comosefosseofimdeumapiadamuitoengraçada.Eparouderir.Edie olhou para a mão e atravessou a rua como se estivesse hipnotizada pelo que via. E ele olhoutambém,maisperto,porquenaeuforiadeterdescobertosuasduasmãosilesas—abrindoefechando,olhandoparaaspalmas—,tinhaesquecidodapartedamãocortadapelagarraafiadadoDragão.Nascostasdesuamãohaviaumamarcaroxaevermelha,umacicatrizlatejante,marcadaafogonasuapele,cortadaeseladaemziguezague:

Ediesacudiuacabeça.—Issonãoénadabom.Eleescondeuamãonobolso.Pareciaacoisacertaafazer.Amãotocounopedaçodemassaecomeçouatrabalhá-lacomopolegareoindicador.—ODragãomecortou.OrostodeEdienãomostrouemoção.Ficouimpávida,comosedragõescortandopessoasfossemacoisamaisnormaldomundo.Assimquedisseessaspalavras,Georgecomeçouarirdenovo.Repetiuafrase,sóparaouviroquantoaquiloeraloucura.—ODragãomecortou!Elaobservouquandoelelevantou,enxugouaslágrimasdosolhosesaiuandandoemdireçãoaorio.—Aondevocêvai?Georgeparounabeiradacalçada,olhandoparaaplacaazulevermelhadometrôquereluziacontraonegroresplandecenteevastodorioTâmisa,alémdotrânsitodoEmbankment.—Vouparacasa.Elaparounafrentedele.—Vocênãopode.—Vamosver.—Nãopodeirparacasa.Nãopodeseafastardisso.

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—Posso.Procurouumvãonotrânsito.—-Nãopodemosfingirqueissotudonãoestáacontecendo,vocêprecisaacharoFradePreto...—VocêváprocuraroFradePreto.Euvouparacasa.Ediebateuospésnochão,frustrada.Georgenãoimaginavaqueaspessoasrealmentefaziamisso,maselafez.Efezdenovo.Pelaexpressãonacaradela,nãoestavafuncionando.Elapareciaqueiaexplodir.—Olheaqui,seuidiota,nós...—Espereaí,foivocêquemdissequenãohavia“nós”!Estouconcordando,vocêtemrazão,certo?Eunãoqueromaissaberdisso...EleacenouparaumtáxiquesaíadafrentedaestaçãodeTempledooutroladodarua.Omotoristaoviu,acenou,fezogestodeumacurvaeesperouumespaçonotrânsito.AlgumacoisabateuasasentreGeorgeealuzdoposte.Eleseretraiu,masquandoolhou,viuapenasumpássaropretoegrande,nãoumDragãoounadafeitodemetaloupedra,entãorelaxou.Ediepareciadesesperada.Elesentiuculpa,nãosabiaporque,e,sesoubesse,nãoqueriaadmitir.Sentiuocérebroprontoaderreter,eadornamãopiorava.—Estouparandoporaqui.Estouindoparacasa.Evoucairnacamaesóacordaramanhãetudoisso...tudoissoterá...acabado.—Eeu?—Eunãosei.Vocêdeveirparacasatambém.Todomundodeveirparacasaparaissoparar.—Nãovaiparar.—Nãosabemosdisso.Edie ergueu o queixo.A luz do poste reluzia em seus olhos.Aos seus pés, o pássaro preto pousou ecomeçouabicarumhambúrguerembrulhadoempapelalumínio.Elarespiroufundo.—Eusei.Enuncapára.—Vocênãosabe.Nãopodesabercomcerteza.Vocêéapenas...apenasumacriança.Otáxideumeia-voltaeparouaoladodeles.Elapôsumadasmãosnoseuombro.—Evocê tambémé.Nãopode irparacasa,George.Sintomuito,masnãopodemesmo.OArtilheirodisse...O pássaro se aproximou.George passou por ela e se inclinou para a janela domotorista.O pássaroabandonouohambúrguer.Georgetirouamãodeladeseuombroefalouparaotaxista.—PraçaSaintGeorge,número37,porfavor.—Certo.Entre.Edieesticouobraçoparaalcançá-lo,masopássaropretoescolheuestemomentoparavoarnoarentreosdoisnumarevoadadepenaspretas.Ediedeuumpassopara trásenesse instanteGeorgeentrounotáxi.Elaesticouamãoimplorandonomeiodoarentreeles.—Olhe.Nãofaçaisso.Éperigoso...—Sintomuito.

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Elefechouaporta.Ajanelaficouaberta.EabocadeEdie também.Elanãoacreditavanoqueestavaacontecendo.Tentouacharalgumacoisaparadizerqueajudasseatirarasensaçãoruimquesentiacomoqueeleestavaparafazer.—Boasorte.—Boasorte?Ela ficou parada como se tivesse sido atingida. George olhou para ela e tentou dizer alguma coisamelhor,masotáxifoiembora,eelenãoachouaspalavras,assimapenasdeudeombroselevantouamãonummeioaceno,comseusolhosfixosumnooutroatéqueotáxivirouparaoEmbankmenteGeorgeaperdeudevista.Eledeuumsuspirodealívio.Depoisoutro.Depoissecurvousobreamãodolorida,amãoqueestavaenfiadanofundodeseubolso.Afundounoassentocomosolhoscerrados.Lógicoque,seeletivesseolhado,teriavistoopássaropretovoandolentamenteatrásdotáxiatéqueaformamaciçadapontedeWaterloosurgiueeledeumeia-voltaparaonorte,voandosobreospilaresclássicosdapontadoprédiolongoaoladodaponte,nadireçãodaestaçãodeSaintPancras.Edieenxugouosolhos.Pôsamãonobolso.Ovidroaindaestavalá,eapenasrefletiaasluzesdacidade.Nenhumaflamadeaviso.Elaprocuroueachouummontinhodemoedasquetilintavamnofundodobolso.Contouasmoedasmaispesadasnumamão,pondoasoutrasdevoltaetirandoumsapato.Dentro,achouumanota.Tirou-acuidadosamente.Suamãosefechouaoredordopapeledasmoedas,enquantoopéseencaixavadevoltanosapato.Voltou-seefezocaminhoparaaestaçãodeTemple.

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OCAMINHANTENOCÍRCULOAoLADODOTELHADO ÍNGREME egóticoda estaçãodeSaintPancras ede seus tijolosostensivamentedecorativos,haviaoutroprédiotambémdetijolosvermelhos.Acordostijoloseseutamanhoétudooquetêmemcomum.EnquantoSaintPancrasextasiaosolhoscomacurvaturadesuafachada,levando-osencantados à extensão exuberante de seus picos e torreões, o outro prédio espanta os olhos com suascurvassemjanelasde tijolosquese inclinamparaformarumacorcundadefensora,comoseesperassealgumacoisahorrorosadaruaemfrente.EntreeleeomovimentodaavenidaEustonficaumapraçadepedraetijolo,queparecemenoscomumespaço para o lazer do que um campo de batalha sem feições, parte da enorme fortaleza de tijolosacocoradaemcadalado.Sóqueelanãoestácompletamentedestituídadefeições.Nomeioficaaestátuamaciçadeumhomemdetestalargaagachadoentreumpardedivisórias,comoseestivessemedindoomundo—oupelomenosospoucosmetrosnafrentedeseuspés.Naverdade,nãoéumafortaleza.Éumabiblioteca.ABibliotecaBritânica.Dáparasaberporqueháumportãoaltoeumaplacademetalemqueonomedoprédiorepete-seemumacascatacongeladadeletrasgrossas.Eháumcírculorebaixado.Ocírculo rebaixadopossuibancosdepedraemvoltade suacircunferência.Noaneldecimaexistempedras arredondadas. Olhando atentamente, percebe-se que nela foram talhadas figuras grosseiras desereshumanosqueparecemquereremergirdelas.Opássaropretodesceuenãodeusequerumapiscadaparaasfigurasouparaaspedras.Noentanto,vooupordentrodoportão,porque,éclaro,estenãoeraqualquerpássaropreto.Era,paraserexato,umcorvo,eescolheuvoarpordentrodoarcoporquetinha,entreoutrascoisasqueumsimplescorvonãopossui,umsensodeestilo.Elependeuparaadireitaesobrevoouoanelrebaixado.OCaminhanteandavaparafrenteeparatrásnobancocurvado,umcigarro finoardendonumcantodaboca,umolho semicerradopara seprotegerdafumaça.OCorvofezumacurvaepousounoseuombro.OCaminhantenãopareceusurpresoqueumpássaropretoenormeestivessepousandopertodeseuouvido.OCorvoseaproximoumais.Seubicosemovia.OCaminhanteouviu.—ApraçaSaintGeorge,éisso?Namargemdorio.Levantou-sedecidido.OCorvodecolouepairounoaràfrentedeseurosto,batendoasasnumalentidãonormalmenteinconcebívelparaumpássaro,desafiandotodasasleisdegravidade,semcontarasregrascomunsdanatureza.

OCaminhanteapontouparaoviveirodegárgulasnoprédiodaSaintPancras.—Digaparaelenãofalhardestavez,chovaounãochova.Oupelaprimeirapedraepelocinzelqueaquebrou,serácomigoqueeleterádesever.

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Láemcima,ogato-gárgulacomaasadescascadaeocanoenferrujadoficouolhandooCorvoseaproximar, e tremeu com antecipação. Abriu as asas e, quando olhou ao redor, notou que asoutrasgárgulasevitavamatodocustoolharparaele.Lá embaixo, na frente do prédio sem janelas, o único vestígio do Caminhante era a pontaamassadadeumcigarroqueaindaqueimavanochãodetijolosdocírculodepedra.Dooutro ladodaavenidaEuston,umhomemcaminhandopara a rua Juddcom fonesdeouvidoteve a sensação súbita e desagradável de que era melhor tirá-los para conferir se não haviaalguémcaminhandoatrásdele.Masquandovirou-serápido,nãoviuninguém.

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INDOPARACASAGeorge pagou o táxi. Recebeu muito pouco de troco da nota de dez libras que entregou aomotoristaepercebeuquenãosobroumuitoparaolanchedorestodasemana.Tambémpercebeuque não se importava nem um pouco com isso. Estava em casa. Estremeceu quando levantou amãomachucadaparapegarotroco.—Vocêestábem,moço?—perguntouotaxista.—Éapenasisso—disseGeorge,mostrandoamão.O taxista deude ombros.Georgepercebeu comhorror queo homemnãopodia ver amarca nasuamão.—Pareceemordem.Foiumaluxação?George confirmou. Claro que o homem não podia ver a cicatriz. Não havia cicatriz, não nomundoreal.Elaexistiadealgumamaneiraqueelenãoconseguiaexplicar,sónasuaimaginação.Eleapenasdesejavaqueadornãoestivessetodanaquelamão.—Foiisso.Umaluxação.—PasseapomadaTigerBalm—aconselhouo taxista.—Digaa suamãeparapassaraTigerBalm.Funcionasempre.Boanoite.George deu um passo para trás, o táxi foi embora e ele olhou para o moderno prédio deapartamentosenfiadonomeiodeumafileiradeprédiosantigos,comoumaovelhanegranomeiodas brancas. Digitou uma série de números na tela da porta, passou pelo grande hall cinza eentrou no elevador. Apertou o último botão. Quando a porta se fechou, sentiu alguma coisadentro dele relaxar, e era uma sensação estranha. Essa estranheza era porque ele se sentiaseguro.Procurou no bolso da calça e achou sua chave. No chaveiro tinha um avião de bronze, umSpitfire,feitoporseupaiparaele.Osdoisadoravamfazerosmodelosdeplástico,masGeorgevivia quebrando os aviões quando brincava com eles. Seu pai então fez este “inquebrável” noseuaniversáriodedezanos.Decidiuparardepensarnopaietirouosolhosdoavião.Segurou-opor um lado e impacientemente bateu com a ponta de sua asa elegante na parede demetal doelevador.O elevador anunciou o último andar dizendo “Cobertura”, emum tomque paraGeorge sempreparecia ser um pouco afetado. A porta se abriu e George caminhou pelo corredor estreito edestrancouaportadeseuapartamento.—Mãe,cheguei—disseelequandoentrou.Todas as luzes estavam apagadas, a não ser a luz no quarto de sua mãe. Ele se aproximou eespiou para dentro. Uma cama branca, em cima de um tapete branco. Persianas brancas quebloqueavamanoite.Umarmáriobrancoentreparedesbrancasestavameioaberto.Anãoserporisso,nãohaviamaisnadaqueperturbasseacalmaausênciadecor,comexceçãodeumafotodesuamãenamesadecabeceirabranca—umafotodelaeleganteempretoe,éclaro,branco.Georgefoiatéoarmárioeolhouparadentro.Viuovãoemquegeralmenteficavaumamalade

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rodinhas. Então sua mãe não estava em casa.Apagou a lâmpada e foi até a cozinha, sabendoexatamenteoqueachariacoladoaomicroondas, tantoquenemsepreocupouemacendera luz.Pegouobilheteeabriuageladeira.Naluzazulada,eleleuaspalavrasjátãoconhecidas:

DESCULPEG,APARECEUUM TESTEPARAUMPAPEL!KAYVAIFICARDEOLHO.LIGUE SEUCELULAREEUEXPLICOTUDO!TEAMO,M.

Testesapareciamotempotodoparasuamãe.Kayeraumaamigaquemoravanoapartamentodebaixo, uma atriz também. De fato, Kay foi a razão por que sua mãe se mudara para aqueleapartamento depois que se separara de seu pai.Kay era uma amiga antiga, e supostamente boaem“ficardeolho”,queeracomosuamãechamavaserbabá.Kaynãoestava tãoafimdeficarde olho, mas sua mãe tinha o dom de enxergar apenas o que desejava, e não o que os outrosrealmentefaziam,eassimKayseachavanaobrigaçãode“ficardeolho”emGeorgemuitomaisdoquequalquerumdosdoisrealmentegostaria.AvantagemeraqueeladeixavaGeorgesozinhoe ele não a incomodava muito. Na verdade, ele ficava no apartamento de sua mãe e,humilhantemente,ligavamummonitordebebêentreesteeoapartamentodeKayembaixo.“Estamostãopertoqueécomosevocêestivessenoandardecimadaminhacasa”,Kaysempredizia. George sabia que era mais fácil e que ele também não precisava ficar no quarto dehóspedesqueelausavaparafazer ioga,enãoparareceberhóspedes.Pelomenoselaacordavaantesdeleesubiaparatercertezadequeeletomariaocafédamanhãantesdeirparaaescola,issoeletinhaqueadmitir.Elenãoeraoquesuamãechamavadeumacriançadeporteiraaberta.Porém,comoemoutrasvezes,issosóofaziaquererdevoltaostemposemqueeletinhaoutrascoisas.Comoumpai,umjardim,umcoelhoenenhumanecessidadedeterumababátodavezqueacarreiradesuamãebatesseàporta.Elepegouo telefone.Depoisdochoquedessedia, entrarna rotinadoqueera familiarpareciabom.Mais do que bom.Acalmava. Ele ligaria paraKay, diria que estava em casa, que estavatudo bem; ela perguntaria se ele queria descer para jantar; ele diria não, obrigado. E entãopoderiaficarsozinhoatéodiaseguinte,quandoosolnasceriaeumnovodiacomeçariaeavidavoltariaaoquesemprefoi.—Oi,Kay.—Oi,G.Ouviquandovocêchegou.Tudobem?Ele sentiu uma vontade urgente de lhe contar tudo; contar sobre a dor na sua mão, sobre opesadeloqueacabaradeviver...—Tudobem.Saiu sem querer. Não tinha problema, ela perguntaria se ele gostaria de descer e ele contariatudo...—Quebom,meubem.Olhe,batanopisoseprecisardealgumacoisa.Tenhoconvidadosparaojantar,masvamostentarnãolheincomodarcomnossafestachata,estábem?—Está—mentiuele.—Fizumatortadefrutas.Vouguardarumpedaçoparavocêcomernocafédamanhã.Suamãedeixoucomidaparavocê?—Deixou.

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—Durmabem,nãoassistatevêdemais,desçasetivercommedo,OK?Vocêsemprepodedormirnoquartodeioga,ébemconfortável.Nãoera.Mastudoissoerapartedoritual.—Estátudobem,obrigado.—Boanoite,super-herói.—Boanoite.Ele notou a secretária piscando commensagens quando desligou.Apertou o botão para ouvir,caso fosse suamãe. Era o Sr. Killingbeck, explicando que George tinha desaparecido de umaexcursãodaescolaeque suamãedeveria ligarparaelenestanoite, casoelenãoestivesseemcasa.Ouamanhã,casoestivesse,paradiscutiraseriedadeda...Georgeapagouamensagem.Voltouàgeladeira eolhouparadentroporum tempinho.Tiroude láo cremede amendoime ageléia e pegou uma fatia de pão de uma cesta branca que estava sobre uma bancada branca,fazendo um sanduíche com o pão de centeio. Pegou leite e misturou com cacau. Pegou osanduícheeochocolateecaminhoupelocarpetebranco,passandopelo rostodebronzedesuamãe, colocado como peça central noLIVING, pela janela escura e pela sacada, entrando no seuquarto.Georgeacendeualuzeparounaporta.Seuquartoeraumaconfusãodecores.Umaconfusãodetudo.Pareciaqueumassaltantetinhaacabadoderevistaroquartoàspressas.Nãotinha,éclaro,maseraassimqueeledeixavaoquarto,quaseotempotodo.Asparedestinhamprateleirascomseus brinquedos e modelos— os feitos por ele, aqueles feitos por seu pai e os que os doisfizeram juntos: eram soldadinhos, duendes, monstros do Senhor dosAnéis, cavaleiros, heróisespaciais,exércitosdeesqueletos,aviõesSpitfire,TigerMoths,Totoros—,enasprateleirasdecima estavam as coisas de adulto que seu pai tinha feito, as coisas de seu estúdio, peçasfundidas, moldes de argila e os animais imaginários que ele costumava fazer para Georgequando ele era bem pequeno. Havia até pequenas imagens da cabeça de George em idadesdiferentes, feitasàspressas, “esboçosdebarro”,comoseupaioschamava.Estavam todosali,ondedeveriamestar,noseuquarto,nasprateleirasdecima,ondeestariamsãosesalvos,agoraqueoestúdiodeseupainãoexistiamais.Voltouparaoquartodesuamãe,mastigandoosanduíche.Pegouotelefonesemfiodamesa-de-cabeceiraeseenfioudentrodoarmário,sentando-senovãoemqueficavaamala.Elefaziaissohámuito tempo. Deve ter percebido que era domesmo tamanho do espaço onde cabia amalanumadasausênciasiniciaisdesuamãe.Gostavadesentirocheirodasroupasdelaacimadele,porqueofaziase lembrardela.Agoraelesósentiaocheirodetintureiro.Eleaindagostavadasegurança que sentia naquele cantinho protegido, embora soubesse que ficariaREALMENTEconstrangidosesuamãeopegassefazendoumpiqueniquenochãodeseuguarda-roupa.Umavezela disse: “Creme de amendoim e Prada não combinam.” Ficou olhando para o quarto brancoenquanto comia o sanduíche. Sentiu-semais calmo,mas amão ainda doía.Decidiu tomar umadasaspirinasdesuamãequandoacabassedecomer.Discou o número dela. O telefone tocou e tocou e, quando achou que ia ter de deixar umamensagem,ouviuavozdesuamãe.—MIGUEL?!—gritousuamãenocelular.Dava para ele ouvir o barulho de uma festa ou um bar, os copos tinindo, risadas,música alta.

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NãotinhaidéiadequemeraesseMiguel.Asvozesnofundonãofalavamasualíngua.—Mãe,soueu.Ouviuasmarchasengatandonacabeçadela.—G!Meuamor.Penseiquevocê fosseoMiguel.EstouemMadri.Éumsuspense.Exatamentecomovocêgosta!Elesupôsqueelaestavafalandodotesteparaofilme,enãodeMadri.Parafalaraverdade,elenemgostavadefilmesdesuspensetantoassim.—G?Vocêestábem?Tenteiligar.Vocêouviuminhasmensagens,meuamor?O celular foi abafado,mas não o suficiente para que ele não pudesse escutá-la. “Pare. Émeufilho.”Esuarisadinharouca.Eladesabafouoaparelhoecontinuou:—Entãoestátudobemcomvocê,comKayetudomais?Ecomofoioseudia?Elesentiutudoseinchandopordentro,todaaloucuraeoterror,queriacontartudoaela,queriapedirparaelalhedizeroquefazeragora,queriaqueelaouvisseelhedissessequefoitudoumpesadelo. Queria tudo isso com uma dor de tristeza tão doce que lhe engasgava numa ondaabrupta.—Estátudobem,meubem?—Não—disseelerápido.—Nãoouvi,meuamor.Estoucomalgumaspessoas.Vocêestábem?Georgemorriadevontadedelhecontartudoefazercomqueelalheexplicasseparaquefizessesentido,paraquetudomelhorasse,paraqueparassededoer.Morriadevontadequeelapudesseouvi-lo.—Tudobem.—Ótimo.Teamo.—Também.Desligouedeuumamordidanoseusanduíche.Nãoimportavaoqueelequeria.Elanãopoderiafazernenhumadessascoisas.Estaeraumadasmuitasrazõesporqueeledecidiusersozinho,emvez de contar com as pessoas e no fim se decepcionar com elas. Pensar nisso o deixoudesanimado,massabiamaisumavezquefaziaacoisacerta.Fechouosolhos.Osanduícherolouparaochão.Depoisdeummomentoocopo tambémcaiuefezumpequenomapamarromdeMadagascarnocarpete.Georgenãopercebeunadadisso.Suamentesedesligouparaqueseucérebrocomeçassealigarcoisacomcoisa.

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UMLOBONANOITEOCAMINHANTE,ESTRANHAMENTE,nãocaminhava.Estavaparadonaplataformaabertadeumônibusvermelho londrino, segurando a barra de ferro. Seus cabelos esvoaçavam para fora do capuz,açoitados pelo vento.OCorvo batia as asas constantemente atrás dele, na altura da cabeça, aalgunsmetros,paraquenãochamasseaatençãoparasi.Ocobradorpediuoseubilheteedepoisagradeceu,emboranãotivessevistobilhetealgum.Ocobradorcomeçouasubirosdegrausparaoandardecimadoônibus,atestafranzidacomosetivesseesquecidodedizeralgumacoisa.Virou-se.—Senhor,porfavor,entre.Éperigoso.OCaminhantenãoolhouparaele.—Nãovoumachucarvocê.Ocobradorrespondeucomacabeça,comoseaquilofizessetodoosentidodomundo.—Tudobem.E então desapareceu para cima da escada, incerto da razão por que se sentia tão estranho, tãoaliviado.ÉclaroqueseuspensamentosjáestavamlongedoCaminhante.É que o Caminhante era capaz de ser esquecido tão facilmente como era capaz de se fazerinvisível. Era por isso que caminhava por tanto tempo sem que as pessoas notassem que eleestava sempre ali, sempre caminhando, sempre igual, desde quando ainda eram crianças e oviam.Ouquandoosavósdeseusavóseramcriançaseotinhamvistotambém.OCorvosecansoudebaterasasepousounoseuombro,enfiandoacabeçaparadentrodopeitopara se proteger do vento. Afinal de contas, ele supôs, não havia necessidade de se cansartentando se manter indistinguível quando o Caminhante poderia fazer isso pelos dois. OCaminhanteficouolhandoonomedaruaquandooônibusdobrouumaesquina.—RuaLúpus.DolatimLÚPUS:umlobo,semdúvida.Estamosquasechegando.JáqueoCorvonãoreagiu,eradifícildeverseeleestavainteressado.Ofatoéquenãoestava.Ainda mais velho do que o Caminhante, pela perspectiva dele o latim era apenas mais umadessas línguas intrometidas, hoje aqui, amanhã não mais, daquelas que virammoda, mas logocaememdesuso.

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OINTRUSOACAMPAINHAACORDOUGEORGE,primeiroporquesooubemalto,segundoporquenãoparava.Elelevantou,pisounomapamarromdeMadagascareapertouobotãodointerfone.Sendodaquelesapartamentoscominterfoneecircuitofechado,a imagemmaldefinidaempretoebrancoapareceunatelaaoladodopaineldecontrole.OrostodeEdiepreencheuatela,osolhosfixosnacâmera,abocanumesboçodeterminado.—Ei,paredetocar!Elatirouodedodobotão.—Comovocême...—Fiquequieto—elachiou.Seusolhosviraramdaesquerdaparaadireita, saindoeentrandonatela.Seurostoseaproximoudenovoeelasussurrou.—Vocêtemumaentradadefundos?Georgesentiuummal-estar.Suamãodoía.Acabeçatambémnãoiademorarmuitoparacomeçaradoer.—Espereaí,comovocêmeachou?—Vocêdeuoendereçoparaotaxista,euouvi.Agora...Eleaindatentavaencontrarumamaneiradeexplicarqueelanãopoderiasaberexatamenteondeele se encontrava, para poder assim acreditar que ela não estava ali e para poder voltar adormir.—Mascomovocêsabiaqualeraomeuapartamento?Elaolhouaoredor,frustrada.Enfiouamãonobolsodocasacoeremexeuprocurandoalgo.—Fácil.Tinhadeseroapartamentodecobertura.Oquetemumagárgulanavaranda.Georgeriucomdesdém.—Nãotemosnenhumagárgula.Elabotouodiscodevidrodomaremfrentedacâmera.Estavatãobrilhantequedeixavalinhasdereflexonatelaenquantoelaomovimentavadeumladoparaooutro.—Estávendo?Agoravocêtem.Eestáandandoparacimaeparabaixo,farejando.George ouviu um ruído do lado de fora da cozinha.Um ruído que vinha da varanda. Eramaiscomo um arranhado, mas também ouviu fungados e assovios. E lá vinha o frio na barriga denovo.—Espereaí.Eleseesgueirouparaaportaeespiouparaasala.Alémdobustodebronzedesuamãe,alémdaporta de correr da varanda, alguma coisa se moveu. E quando se moveu, a luz automática davaranda acendeu, e não era por causa de umgato ou um assaltante. Era a gárgula com cara degato, com a asa quebrada e o cano enferrujado que assoviava. Seus olhos de pedra negraespiavam para dentro da sala, suas garras arranhando o vidro, em busca de alguma coisa.

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Estavamseaproximandodamaçaneta.Georgecorreuparaointerfone.—Euvi.Edieolhoueaprovou.Enfiouovidronobolso.—Entãojáqueeleestánafrentedoprédio,euqueriasaberseháumaportadefundos.Oh!Eleviuqueelaestavaolhandoparaovidro.—Quefoi?—Ovidromudoudecor—elaolhouparaarua,paraambososlados.—Achoqueestávindomaisum.O Corvo virou a esquina da praça Saint George e, instantes depois, surgiu o Caminhante. Opássaro voou mais alto, até chegar quase à altura da laje do prédio. Pousou no gradeado davaranda do apartamento deGeorge.A gárgula ainda estava ocupada com amaçaneta, tentandoabriraporta.Elasentiuapresençadopássaroesevirou.Opássaroolhouparaelasempiscarumolhonegro,deuumpassoparatrásdogradeadoesumiunovácuodanoite.OCaminhantechegounaentradadoprédiodeGeorgeesubiuosdegrausnoexatomomentoemque oCorvo pousou no seu ombro. Este era umdos toques de estilo do qual oCorvo tanto seorgulhava.OCaminhanteoignorou,seinclinouparaopainelepareceuespiarcurioso.Edienãoestavamaislá.Umcasaldejovensseaproximoueficouumdegrauatrásdele.Ohomemcarregavaumagarrafadevinhoembrulhada.Amulherapertouobotãoedisse:—Kay?Desculpenossoatraso!A porta abriu com um zunido e os três caminharam para dentro, embora se se perguntasse aocasal,elesteriamjuradodepéjuntoquesóforamosdois.Entraramnoelevadoreapertaramobotãodopenúltimoandar.Oúnicoindíciodequeemalgumlugar nas profundezas de suas subconsciências eles pudessem estar cientes de partilharemdaquele cubículo comumhomem alto e encapuzado, vestindo uma capa verde comumpássaropousado no seu ombro, era que os dois de repente pararam de conversar. Pareciam menosanimadosdoquealgunsmomentosantes.Oelevadoranunciouoandareelessaíram.OCaminhanteosobservou.Quandoaportaestavasefechando,elemurmurou:—Vocêesqueceuovinho.Ojovemfezumacaretaparaagarota.—Esqueciovinho!Elaolhouparasuasmãosvazias.—Seuidiota.No elevador, subindo, o Caminhante olhou para o embrulho da garrafa de vinho na suamão eenfiounobolsodocasaco,nomomentoemqueoelevadoranunciouacobertura.A porta se abriu e ele saiu para o corredor. A porta do apartamento de George estavaescancarada.OCaminhanteparou.Deudeombros.OCorvovoouparadentro.A maioria dos pássaros entra em pânico quando voa em um lugar fechado. O Corvo não. Elevoavapeloapartamentocomumbaterdeasaslento,desafiandoagravidade,observandotudo:a

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brancura das paredes, a bagunça no quarto de George e a ausência de qualquer coisa que seassemelhasseaoverdadeiroGeorgeemqualquerdoscômodos.Ele pairou sobre a cabeça de bronze damãe domenino, que ele fez questão demanchar comcamadasfinasdecocô,eespiouparaavarandaemqueestavaagárgula.Sacudiuacabeça.A gárgula assoviou através de seu cano enferrujado e foi embora, as asas se abrindo com umestalo, subindo no céu escuro. O Corvo voou para onde o Caminhante estava andando pelocorredor.—Foiembora?OCorvosimplesmentepousounoseuombro.OCaminhanteentrounoapartamentodeGeorgeefechouaporta.George saiu do estacionamento subterrâneopara os fundos do seu prédio, e lá encontrouEdie,quemostrouodiscodevidroquereluzia.—Vamoscorrer.—Tábom.Comoissoeratudooqueprecisavamdizer,foiexatamenteissoquefizeram.Correrampelaruaestreita, atravessaram a avenida e pegaram uma rua menos larga e vazia, que acabavaabruptamente numa avenida movimentada de quatro pistas ao longo do rio. Então continuaramcorrendopelacalçadalarga.Ediefezcareta.—Estoucomcâimbra.—Eutambém.Porém nenhum dos dois parou de correr.Nenhum dos dois prestava atenção aos prédios ou àspessoasporquempassavam.Tudooqueosconsumiaagoraerapôrdistânciaentreeleseaquiloquedeixaramparatrás.Ediesabiamuitobemoqueeracorrerassim.Tudooqueimportavaeraque não parassem, era que houvesse sempre um espaço à frente para onde correr, era que nãodessememumbecosemsaída,quenãofossemapanhados.Correram até a praça do Parlamento e atravessaram a avenida para escapar das barreiras quecorriamaonívelda rua, sobaparedegóticaornamentadaàdireita.Nomeiodapraça,Georgeparouesedobrouaomeio,tentandorecuperarofôlego.Edieopuxou.—Vamos!Elesacudiuacabeça,semfôlegoparafalar.—Nãoéseguroaqui.Olhe!Elaagarrouseuscabelosepuxousuacabeçaparacima,apontandoparaapraça.Haviaestátuasportodocanto.Emcima,ocírculobrancodoBigBenpairavanocéucomoumasegundalua.—Muitascoisasaoredor.—Estigmas—disseele,resfolegando.—Muitodetudo.Vamos.Precisamosnosmanterpertodorio.Eleaseguiupelarua,cadamúsculodesuaspernasimplorandoparaqueeleparasse.Umamassadetrânsitopassavaporeles,espremendo-seporcausadasbarreiras,impedindoocaminhodeles

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paraoEmbankmentalémdasCasasdoParlamento.Edie começou a subir a barreira. Desta vez foi George quem a puxou. Ele apontou para apassagemsubterrâneailuminadaàesquerdadeles.—Poraqui!Elasacudiuacabeçaepulouabarreira.—Não.Nuncaporbaixodaterra.—Oquê?—Nuncaporbaixodaterra.OArtilheiroavisou.Émuitomaisperigoso.—Ah,peraí—elecomeçou.—Peraí,você—interrompeuela.Eleaseguiuparaooutroladodabarreiraeesperouporumvãonotrânsito.—Praondeestamosindo?Elanãooouviu,ouseouviudecidiunãoresponder.—Edie,praondevamos?Elaolhouparaelerapidamente,depoisvoltousuaatençãoparaoscarros.—Agoraé“nós”,então?Ele se lembrou domomento em que foi embora de táxi, deixando-a para trás.Na hora não foibom,eagorapareciaaindapior.—Achoquesim.—Assimderepente,semmaisnemmenos?—elacuspiuaspalavras.—Porquevocêveioemeachoudenovo.—Acheivocê?Eledeudeombros.Abriuaboca,mas,antesquepudessedizeralgumacoisa,elaviuumespaçoentre os carros e correu para o outro lado da rua. Ele a seguiu pelo ziguezague que ela faziaentrefaróisebuzinas.UmPorschepiscouosfaróisparaeleebuzinouumaviso,recusando-seadiminuir a velocidade para que os dois alcançassem a segurança doEmbankment. Edie passoubemnafrentedocarroeGeorgeprecisouesbarrar.Notoupelocantodoolhoaslistrasderiscade giz do terno e ouviu os impropérios do motorista, mas logo ele passou e George pôdeatravessarapista.Ele não via Edie, apenas os bancos, a muralha do Embankment e as luzes da outra margemrefletidasnorio.—Acheivocê?—Elaestavaatrásdele.Elerespiroualiviado.—Mesalvou.—Salvei?Seusolhosnãopiscaram.Eleosencaroutambém,sempiscar.—É.Salvou.Elaesperou.Depoisencolheuosombros.—Entãoimaginoqueissosejaummuitoobrigado,nãoé?

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Ele não fazia idéia do que o irritava tanto nela,mas sentia isso cada vez que olhava em seusolhos e quase toda vez que ela falava.A verdade, porém, é que ela o avisou que a gárgula ohaviaencontrado,semmotivos,pelomenosqueelesoubesse,paraterfeitoisso.Talvezeraissoqueeleachavatãoirritante.Deudeombrostambém.—Achoquesim.Elatirouosolhosdele.—Temosdecontinuar.Elenãosemoveu.—Paraonde?Eladeuummuxoxo.—OFradePreto.Ouvocêjáesqueceu?Elesacudiuacabeça.Adoremsuamãoestavavoltando.—Comovamoschegaratéele?Ele,acoisaouoquequerqueseja?—Vamos.Ele correu ombro a ombro com ela. Agora eles iam mais devagar, mas não muito, apenas osuficienteparapoderemfalarenquantocorriam.Elaapontoucomoqueixo.—OFradePretoficanumextremodaponteBlackfriars.Precisamosapenasseguirpelamargemdorioatéalcançaraponte.—Isso...—elenãoconseguiapensarnapalavracertaparaasituação.Escolheuentãoumaquedenotasseesperança.—Issoébom.—Nãoénão.OFradePretoficanocentrodeLondres,etodasasruasquelevamaocentrosãovigiadaspordragõescomoaquelecomquenosdeparamos.Seu estômago se contraiu quando a lembrança horrível dos olhos doDragão fixos nele passoupelasuamenteesuamãodeuumapontada,revivendoadordagarraziguezagueandoocorte.—Entãoissoéruim.—SeriaseoArtilheironãotivessemeditocomopodemosenganá-los.Elefezaperguntaquepairavanoarcomoumpontodeinterrogaçãoentreeles.—OndeestáoArtilheiro?—Agoraéquevocêpergunta—disseela,amargamente.—Edie.Ondeestáele?Qualéoseuproblema?Elaparouderepente, tãodesúbitoqueeleesbarrounassuascostas.Elaseviroueseusolhos,eleficouchocadodever,estavammolhados.— Ele salvou você. Pulou em cima do Dragão, mesmo machucado, e o salvou. Talvez tenhasalvadonósdois.EelemedisseoquefazerecomochegaratéoFradePreto,evocêsabeporquê?Porque tinha certezaqueoDragãoomataria.Maspulouemcimadele assimmesmoparasalvar você. E você simplesmente virou as costas e fugiu. E só agora se lembra de perguntarsobreele.Queralgomaisegoístaqueisso?Elenãoacreditounela.Sentiuumsoconoestômago.OArtilheironãopodiaestarmorto.—Elenãopodeestarmorto.

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—Comosabedisso?Vocêestavamuitoocupadoprocurandoumtáxiparasaber.—Não—disse ele,mais rápido agora, lembrando-se.—Se ele voltar ao seu plinto antes dameia-noite,ele...elevairecarregar.Elevaimelhorar.Vaificartudobem.Éassimquefunciona.Seeleestivernoplintonaviradadodia...—George—suavozmatouatênuecentelhadeesperançacomoumbaldedeáguagelada—,eleestava tendo grande dificuldade em andar mesmo antes de pular em cima do Dragão. E nãoachavaqueiaficartudobem.Achoqueelesabiaoqueestavafazendo.Maisdoquevocê,certo?Estavasesacrificandoparanossalvar.—Maseunão...—Não.Nãoqueroouviroseu“maseunão”.ConservesuaenergiaetentedescobriroqueéqueVOCÊvaiterdesacrificarparaquando,seéquevamos,acharotalCoraçãodePedra.—Oquê?EleaindaestavatentandonãosesentirtãomalporcausadoArtilheiro.—Oqueaesfingedisse:“SeuremédiojaznoCoraçãodePedra,eaPedradoCoraçãovaiseroseu alívio. Você tem de achar o Coração de Pedra e então sacrificar e reparar aquilo que foiquebrado ao colocar na Pedra do Coração de Londres aquilo que for necessário para o seureparo.”—elarecitou.—Ouvocêesqueceu?—Não.—Bom.Porqueseriaumapenavocêchegaratéatalpedraeeletersesacrificadoparaajudá-loesemquevocêtenhaidéianenhumadoquedevefazer,nãoémesmo?—Espereaí—interrompeuele.—Seeusoutãoingratoassim,porquevocêvoltou?—Porque elemedisse para tomar conta de você.Naverdade ele disse queprecisamos tomarcontaumdooutro,masvocêajudatantoquantoumgolfinhonumabicicleta...Elasevirouecontinuoucorrendo,eeleficoumuitoocupadotentandoacompanhá-laparapensarnuma resposta.Além domais, a energia que ainda lhe restava para pensar estava sendo usadaparapensarnoArtilheiro.Apiorpartede ficarpensandonoArtilheiroenoqueele tinha feitoera, éclaro,perceberqueelenãotinhafeitoaúnicacoisaqueGeorgesabiaqueaspessoasfaziamcomasoutras.ElenãodecepcionouGeorge.Aocontrário,eraGeorgequemo tinhadecepcionado.A tristezaeaculpaeram uma combinação horrível, e quanto mais ele absorvia as duas, tanto mais ele ficavatristonho e vulnerável, ali sozinho numa rua escura com a água negra o puxando para o ladoenquantoeletentavasemanterpertodeEdie.

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OARTILHEIROSOZINHOO ARTILHEIRO SENTOU COM AS COSTAS contra a parede da igreja. Estava exausto. A rédea decorrente jazia na calçada ao seu lado, ainda soltando fumaça. Ele estava olhando para a ruaFleet. O Dragão, não mais branco de calor, estava subindo para o seu plinto. Era óbvio queestava muito exausto para voar. Enquanto subia, apesar do corpo leonino, parecia ainda maiscomumlagarto.—Bom, isso foiumacoisa foradocotidiano, issopossogarantiravocê,Artilheiro—falouoDicionáriosemolharparaele.ComooArtilheiro,eletambémnuncaiatirarosolhosdoDragãosubindoparaoseuplinto.—Oquedisse?—tossiuoArtilheiro.—Issoeunãovejotododia—repetiuoDicionário,depoisdeumabrevepausa.—Vocêachaqueeleestáacabado,oDragão?—Certamentequenão.Nãoédesuanaturezaestaracabado.Suanaturezaévigiar.Ecomotodovigia, ele não se demora longe de seu posto, para não deixar a passagem livre para outroinvasor,aoperseguiroprimeiro.—Émesmo?—Foiassimqueelefoifeito.—Oqueofazedorquis,aquelequefoifeitodeveobedecer.—Éoqueeuouvitambém.Éoquesintoemcadaosso.—Vocêtemossosagora,é?ODicionáriofezumapausa.Virouacabeçaabruptamenteelatiualgosemsentido.—Tchá.EuSINTO quetenhoossos.Ossosdoloridos.—Seibemoquequerdizer.OArtilheirosepôsdepécomdificuldade.Enfiouasrédeasdecorrentenocinto.A cabeça do Dragão se ergueu ao ouvir o som de metal tinindo contra metal, e uma sombraescarlatepassounosseusolhosquandoespiouparaocentrodaruaondeosdoisestavam.—Eleouviu—oDicionárioobservoubaixinho.—Entãovaisaberquemvemdapróximavez—resmungouoArtilheiro.—Aondelevaoseucaminho?—Olongocaminho?Nãotenhooquedizersobre isso.Estanoite?—Eleseesticou.Deudoispassos cambaleantes.—Esta noite, comoo lagarto ali, preciso chegar àminha pedra antes daviradadodia,senão...ODicionárioolhouparaorelógioqueprotuberavadafachadadotribunal.—Menosdetrêshorasatéameia-noite.O Artilheiro tirou os olhos do Dragão. Olhou para a figura de peruca que dava constantes

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tremidos.—Émelhorme pôr a caminho, então. São apenas uns três quilômetros,mas sinto que vai serumalongaestradadepoisdasurraqueelemedeu.—Eascrianças?OArtilheirovoltouasentardesúbito,exausto.Ocupou-seemataracorrenteaocinto,comosefosse para isso que se sentara. Na verdade, ele mal conseguia ficar de pé. O fato é que nãoqueria falar sobre isso.ODicionário olhou para ele, sem ummovimento, para variar, sem umtremorsequer.Umpássarocinzapousounasuacabeçaeesguichouumamassabrancanascostasdeseucasaco.Quandoelefaloudenovo,suavozsoouinsípidaeduracomoosomdeumaportadeigrejasefechando.—EasCRIANÇAS,Artilheiro?—Oquedeveser,será.Eeu tenhoquerecuperarminhaenergia,estarnomeuplintonaviradadodia.OArtilheirofinalmenteolhounosolhosdele.—Ascriançasestãosozinhas.—Nãosevocêenviarumpombo.AcabeçadoArtilheiroseergueu.Eleasacudiuparaclareá-la.Nãoestavapensandocoisacomcoisa.Deveriaterpensadonisso.—Então?— perguntou o Dicionário.—Não é esse o seumeio?Não é esse ométodo que airmandademilitardecuspidosusaparasecomunicarentresi?— Funcionou nas trincheiras. Funciona em Londres. — murmurou o Artilheiro. — Você temrazão.Maseuprecisodeuma...ODicionário ergueu amão.O pássaro cinza desceu de sua peruca e pousou namão dele. EledesceudoplintoefoiatéoArtilheiro.OArtilheirobalançouacabeçae tirouumtocode lápisdeumbolsoeumrolinhodepapeldooutro.Oesforçoodeixouexausto.—Querqueeufaça?—ofereceuoDicionário,etrocouopássaroporlápisepapel.OArtilheiro se encostou na pedra fria, os olhos cerrados, segurando com cuidado o pássaroenquantooDicionárioescrevia.Pegouominúsculoroloeoprendeunapernadoanimal.Depois,soprounoseuouvido.—Todosos Jaggers.Todosos soldados.Fiquedeolhonasgárgulas.Você éummensageiro, enãopetiscoparaestigmas.Elecuidadosamentelevantouasmãoseasasascinzabateram,eopássarovoousuavementeparaocéu.OArtilheiroficouobservandoatéqueeledesapareceunaescuridãodanoite.—Obrigado,Dicionário.ODicionáriosimplesmentedevolveuolápiseopapelepigarreou.OArtilheiroficoudepé.—Agoramevou.ODicionárioficouolhandoelemancarpelarua.OArtilheirosevirou.—Seeunão...ODicionáriodeuumacenodecabeça.

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—NãoserãoapenasJaggersesoldadoscuspidosquevãoficardeolhonascrianças,Artilheiro.Palavradehonra.Osdoisseolharamporummomento,depoisoArtilheiroacenoucomacabeça.—Umapalavrasua.Issosiméumacoisaquevaleapenater.ODicionárioinclinouacabeçanumgestodecortesia.—Muitagentilezasua.Adeus,meuamigo.

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PENTEANDOOLAMARÃOEOCARNAVALNOGELO{3}

NÃOHAVIAMUITAGENTENOEmbankment no trecho emqueEdie eGeorge se encontravam.Ediediminuiu o passo para uma caminhada rápida, em vez de correr. À frente dela, George viu asilhuetadealgofamiliarcontraasluzesàbeiradorio.—Quedroga!Agoraestamosdandovoltasnomesmolugar.—Somenteporquevocêfugiu.Ele não tinha uma resposta boa para isso. Os dois estavam se aproximando da Agulha deCleópatra,ambosobservandoasesfinges.Nadaaconteceu.Georgelimpouagarganta.—Vocêachaquedevemos...—Oquê?Pararedizerumalô?Vocênãotemtempoparaisso.Elembre-se:oArtilheirodissequeelassãometadeestigmas.Issoparamimjáédemais.Noentanto,Georgenotouqueelapassouamãode levepelo flancodasesfingesaopassarporelas.—Porquefezaquilo?—perguntouele,quandodeixaramasesfingesparatrás.—Paramostraraelasquenãotenhomedo—respondeuela,comoseissofizessetodoosentidodomundo.Derepente,elavirouàdireitaesesentouemumdosbancosde ferroornamentadosque davam para o rio. Os pés do banco foram talhados para se assemelhar às pernas de umcamelo,provavelmenteparacontinuaro temaegípcioao longodo rio,onde ficavaaAgulhadeCleópatra.—Oqueestáfazendoagora?—perguntouGeorge,olhandoelatirarasbotas.—Ummerenguedebanana—disseela,irritada.—Oquelheparece?—Parecequevocêestátirandoasbotas.—Bingo.Eomeninoganhouumtroféudegênio!—Nãoseiporqueestáfazendoisso.—Eusei.AgoraoMestremandou:tireseussapatos.—Porquê?—Porque é assim que funciona. Se eu digo “oMestremandou”, você faz exatamente o que oMestrediz,eassimagentenãodiscuteevocênãoperdeumtempoquenãopossuiparaperder.Eleabriuaboca.—OMestremandou:seapresse.AntesqueoDragãonosdescubra.George se virou na direção que ela apontava com o queixo. A uma grande distância, noEmbankment— embora não tão distante para fazê-lo relaxar—, havia outro dragão segurandoumescudocomumdesenhodeumacruzvermelha.EstedragãoeraprateadoemaistroncudodoqueaquelequevigiaoTempleBar,maseraum troncudodaquelesdemúsculoscompactos, eorosnadocongeladonasuacaramostravadentesqueGeorgenãoqueriavermaisdeperto.

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Elesentounobanco.Tirouossapatos.Edietiravasuasmeiaslongastambém.—OMestremandou:ascalçastambém.—Oquê?Ele ouviu um chiado e um estalo na altura de seus joelhos, e o banco se envergou quando ocamelo tentoumordê-lo. George se levantou e se afastou da criatura sibilante. Edie continuousentada,segurando-sefirmenobanco.—Obancotentoumemorder!Ele se encostou no poste à beira da muralha do rio.Alguma coisa se contorceu, mexendo-seembaixodesuamão.Tirouamãodopostebemnahoraemqueumpeixedeferroqueformavaabasedopostesepreparavaparamordê-lo.Pulouentãoparaoterritórioneutroentreobancoeamuralhadorio.—Oqueestáacontecendo?—Sãoestigmaspequenos,nãosão?Vamosemboradaquiantesqueeleschamemaatençãodeumdosmaiores.Precisamos passar despercebidos por aquele dragão para chegarmos até o Frade Preto, eprecisamos chegar lá antes da virada do dia.Que quer dizermeia-noite, imagino. Foi o que oArtilheirofalou.Ele olhou para o Dragão de novo e lhe pareceu que o bicho estava bem mais perto do quequandoolhouantes,emboraelenãotivessesemovido.—Comovamospassarporele?—OMestremandou:mesiga.Elafoiatéumportãonamuralhadorioepulou.Emdoispassoselatinhadesaparecidodevista.Georgeapanhouossapatoseaseguiuomaisligeiroquepôde.Edie tinha chegado ao último degrau de uma escada, relutantemente pondo um pé na escuridãoviscosa.—Vocêestábrincando!—Não—disseela semparar, jácomos joelhosnaágua.—Estoumolhadaecommuito frio.Queroacabarcomissoomaisrápidopossível.—Vamosnadar?Eladeuumnócomosdoiscadarçosdesuasbotaseaspendurounopescoço.—Vocênade,sequiser,maseuvousócaminharnaágua.Amaréestávazando,euacho.—Elacontinuou ao longodomuronojentodo rio, usandoumamãopara se equilibrar.—Esperoquenãohajavidroquebrado.Georgeentrounaágua.Ospésafundaramnalama.Estavageladaepegajosa,compedrasetocosemmeioaolodo.Elelevantouosolhoseviuquenãohavianadaalémdeáguaentreeleeosulde Londres. Sentiu a presença de algo selvagem e perigoso ali nas profundezas, embaixo dasondulaçõesnomeiodorio.Era,eelenãosabiaexplicaromotivo,comocaminharatéapontadeumdespenhadeiro, só que em vez do ar que o impelia para o vácuo, havia uma contracorrenteque puxava seus pés. Sua mão, como Edie fazia, grudava-se no muro, e não era apenas paramanteroequilíbrio.Umpensamentolheocorreu.

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—Comovocêsabequeestávazando?—Vazandooquê?—Amaré.Comovocêsabequenãoestásubindo?—Nãosei.—Ah.Continuaram, passando por baixo de uma prancha de embarque que levava a umvelho navio avapor atracado permanentemente às margens do rio. Enquanto passavam pelo cânion formadoentreocascoenferrujadodobarcoeamuralhadorio,ouvirammúsicaerisosnoconvésacima.Apontadeumcigarro aceso fezumarcona escuridão, caiu entreosdois e se apagou comumlevechiado.—OMestremandou:sejaotimista.—OMestresabequantofaltaparaagentesairdaqui?—Maisumaponte.Continuaram.Ele lembroudeuma tardedeverão,quandocaminhouao longodopasseiodo riocomseuspais.Lembroudeterolhadoparabaixoetervistoaspessoaspasseandonosbancosdelamaexpostospelamarébaixa,gentecompásebaldes.Genteprocurandocoisasnalama.—Temgentequevemaquiquandoamaréestábaixaeficaprocurandocoisas—disseele.Edieresmungou.—É comoprocurar por conchas na praia, só que não tem areia. Só lama.Chama-se pentear olamarão.Elanemsedeuao trabalhode resmungardessavez.Apenascontinuouandandonaágua.Ele seirritoueficouimaginandoseelaestavatãogeladaetãoincomodadaquantoele.Nestemomento,elacaiuesumiu.Georgenão teve tempoparapensar.Apenaspuloupara frente emergulhouno lugar emqueelatinhaafundado.Suasmãosnãoacharamnadaalémdeágua.Suasmãos desesperadamente procuravamna água por algo que não estavamais ali. Edie tinhasido arrancada da face da terra tão abruptamente como alguém ligando e desligando uminterruptor.—Edie!AsmãosdeGeorgetocaramemalgoeelepuxouparaforadaágua,maseraapenasumsacodelixo,cheiodecascasdefrutaseembrulhos.Elejogounaáguadenovoecontinuouprocurando.Acontracorrentequeeramaisfortenapartedomeiodorioopuxavacadavezmaisparadentro.—Medêeladevolta!—gritouele,enquantoseusbraçosmergulhavamnaáguagélida,quesemovimentava em redemoinhos cada vez mais rápidos. Ele não tinha idéia, mais tarde quandopensounoacontecido,porquegritavaisso,somentesabiacomabsolutacertezaquetinhaalgumacoisa ali dentro, algo além da profundeza onde ele estava. Sua mão batia na água com força,comoseparaacordá-ladeseusonosúbito.—EDIE!Seuspéstocaramemalgumacoisaeelepôsamãoparaalcançá-la.EraEdie.Eleapuxouparacimaeosdoissearrastaramparapertodamuralhado rio, tossindoporumtempo.Elaparecia

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menor.Oscabeloscoladosaorosto,cobertoscomolododorio.—Vocêestábem?Elacuspiuaáguadevoltaparaorioeconfirmou,aindatossindomuitoparapoderfalar.—Umburaco—foitudooqueelapôdedizer,enquantolimpavaagosmadeseusolhos.—Vocêestábem—Georgesorriuparaela,encorajando-a.Edieolhouparaolugarondehaviacaído.—Fuisugada.Eleparoudesorrir.—Nãofoi.—George,fuisugadasim.Algumacoisamesugou.Georgepensou.Etirouocinto.—Agorajáétarde,George.Eudisseparavocêtirarascalças.Agoraestáensopado...—OMestremandou:caleabocaesegureaqui...Elepegouocinto,passou-oporumadasalçasnocósdacalçaelevantouaoutrapontaparaela.Comavozautoritária,disse:—Dessamaneira,sevocêafundardenovo,eupossolheencontrarmaisrápido.Depoisdeumapausalonga,elapegouapontadocintoepassouaoredordeseupulso.—Ouvamososdoissersugadosjuntos.—EupenseiqueoMestretinhaordenado:sejaotimista—disseGeorge,passandoàfrentedela.—Vounafrente.Vouprimeiro.— O Mestre diz: dizer “o Mestre mandou” foi uma idéia boba — disse ela, quase como seestivessepedindodesculpas.—Nãocomoocinto.Ocintoéumaidéiaboa.Sem precisar dizer mais nada, os dois continuaram acompanhando a muralha ao longo dasmargensdorio.Passaram por baixo de uma plataforma flutuante em ziguezague, com um píer que dava estalosquandoaáguabatiadoladodorio.Naavenidaacima,umcarrodepolíciapassoucomasireneapitando, a luz azul piscante refletindo na água e iluminando de relance os galhos das árvoresacimadeles.Edie tropeçou, mas logo se recuperou. Ele começou a perguntar se estava tudo bem, mas elainterrompeusuaperguntacomsuaprópriapergunta,paramudardeassunto.—Entãovocêérico?Elelevouummomentopararegistraroqueelaquisdizer.—Oquê?—Vocêérico.Viaruaemquemora.Oprédio.Tudomoderno,comonasrevistas.—Nãosomosricos.Minhamãealuga.—Temdeserricoparaalugar.—Nãosomosricos.Elaéatriz.—Atrizessãoricas.

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Georgepensounasuamãeenoseupaienasdiscussõesferozes,nasbrigasporcausadepapéisque chegavam pelo correio em envelopes marrons ou, às vezes, envelopes brancos duros queprecisavamserassinadosparaseremrecebidos.—Nãootempotodo.Ediecontinuouandando.Nãopareciaimpressionada.—Quantosquartosvocêstêm?—Dois.Eumterceiroqueécomoumestúdio.—Vocêeseuspaismoramjuntos?Quantosirmãsouirmãosvocêtem?—Sóeueminhamãe.—Sóvocêsdoisequase trêsquartos?Vocêé rico,sim.Eapostoqueseupai tambémtemumacasa,certo?—Meupaimorreu.Edieparou.—Oh.Continuaram.Aáguaestavabaixandodenovo,comosehouvesseumbancodelamasubindoparaa superfície sob seus pés. Ambos começaram a tremer de frio. George fechou a boca paracontrolarotiritardosdentes.—Evocê?—perguntouGeorgeatravésdosdentes cerrados, ansiosoparamudardeassuntoenãofalarmaissobresimesmo.—Eutambém.—Vocêérica?—Não.Tambémtenhoumpaiquemorreu.—Oh.Continuaramaandarnaágua.EramuitosolitárioparaosdoiscaminharemaolongodamuralhadoEmbankment,abaixodoburburinhodacidade,afundandonolodogelado.—Entãovocêmoracomsuamãe?—Não—respondeueladepoisdeumapausa.—Elanãoestáporaqui.—Entãoondevocê...—Durmoemalbergues.Paraquem fogeenão temondemorar.Enão temnadade legalnisso,estábem?—Tudobem.—Efujodelestambém—disseela,desafiante.—Estougelada.Continuaramcaladosporumtempo.—Quandotenhofome,pensoemcomida—disseela.—Pensoemquandocomitantoquequaseexplodi,quandonãoconseguicomerumbocadoamais.—Achoqueissodeixavocêcommaisfomeainda—disseGeorge,tremendodefrio.—Não.Funcionamesmo.Tente.—Masnãoestoucomfome—disseGeorge.

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—Comfome,não,seubobo.Quandofoiquesesentiuomaisquentinho?—Ah—disseGeorge.Uma flotilha de peixes e embalagens vazias de batatas fritas, boiando na correnteza, seemaranharamnaspernasdele.—Euestavanumceleiro.Emcimadeummontedefeno.Commeupai.—Seupaitemumsítio?Tinha,querodizer,desculpe.—Não—disseGeorge,selembrando.—Eleestavafazendoumtouro.—Fazendooquêcomumtouro?—perguntouela,incrédula.— Ele era artista plástico.Alguém queria um touro. Então ele foi até um sítio onde tinha umtouro.Elepôsotouronoestábuloefomosparaládesenhá-lo.Poruminstante,eleatésentiunalembrançaocheirodofenoquenteedocigarrodeseupai.Maslogoalembrançaseesvaneceu.—Não era para eu ter ido, masminhamãe ia fazer um teste para um papel. Ela está semprefazendotestes.Porissoeletevedemelevarcomele.Foiincrível.Euerapequeno,erainvernoe dava para ver o vapor subindodas narinas do touro quando ele respirava.Até tinha um anelentreasnarinas.Querodizer,eleeraumtourodeverdade.—Nãomeparecemuitoquente—murmurouEdie.—Masera sim.Foimuito legal.Meupaimeembrulhounumcobertorque ele tinhanocarro efez uma cama de feno paramim, com um buraco nomeio do feno, e eu fiquei lá ao seu lado.Tínhamos uma garrafa térmica com chá e outra com sopa de tomate, de cor laranja viva, queacaba manchando os lábios. Ele desenhava o tempo todo, e eu também. Só que eu fiquei tãoquentinhonaquelacamade fenoquecaíno sono.Querodizer, estavaquentinhocomo torradaeaquelecheirinhotãobom.Equandoacordei,jáestavaescurecendo.Eletinhaterminadoeestavadeitadoaomeulado...George se lembrou de tudo. O brilho da lâmpada no telhado, fazendo o feno ficar dourado. Otouropretoenorme,dotamanhodeumcarropequeno,mastigandocalmamente.Eoruídodeseupai fumando. Ele sempre fumava quando trabalhava, mas somente se fosse do lado de fora.QuandoGeorgetinhaidadesuficienteparasaberquefumareraumacoisamuitoruim,seagentegostasse dos pulmões e de viver, ele fez uma promessa. Pararia pelametade de fumar. Nuncadentro de casa. Sempre enquanto trabalhasse. E nunca em umPUB. E é assim que George selembradele:osomdeseupaiseconcentrando,umolhoapertadocontraafumaçasubindopeloseurosto,asmãosfirmes,sempredesenhandooumoldandoalgumacoisa.Eoruídohabitual,umestalinho e um sugado, que ele fazia como cigarro coladonumcanto dos lábios: o somde umhomemfumandosemusarasmãos.Mesmofumarsendoumacoisatãoruim,Georgeaindaachavaalembrançadoruídoumacoisaqueacalmava.Etambémnemfoiocigarroqueacaboupormatá-lo.—Esta é a lembrançamaisquenteque tenho—disse ele, para expulsar apróxima lembrança,que começava a bater as asas da escuridão, querendo sair para fora do lugar para onde ele abaniacomfreqüência.—Uma vez eu fui a um sítio— disse Edie.—Numa excursão da escola.Um bodemijou emmim.Ele sorriu.De repente sentiu algo cortante embaixo do pé e pulou para o lado para evitar um

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corte.Perdeuoequilíbrioepuxouambosparalongedomuro.Alamaficoumaisralaeelecaiucomumjoelhonaágua.—Desculpe—disseele.Edie tropeçou atrás dele, caindo de quatro, soltando o cinto num esforço para ficar de pé, oqueixoacimadaágua.—Nãoestou...E sua mão segurou algo sólido na lama, alguma coisa que tinha a textura de madeira velhaescorregadia, comoum toco antigo, ouumacolunade apoiodeumaponte.Sentiuumaondadeenergiacolandosuamãoàmadeira,nãoconseguiutirá-laeentão...—Oh,não—exclamouGeorge,vendoseusolhossearregalaremeseuqueixoquaseseafundarnaágua.A água ao redor dela se espalhoupara longe, enquanto a ondade choquedopassado aflorava,comelanoepicentro, seuscabelosmolhadosseabrindoemum leque, fios tesospingandoeosolhosemconvulsão,enquantooespaçodedoisséculosentreondeestavamagoraeoqueelaviaaatingiucomoumtrememaltavelocidade.Estava escuro,mas eramais claro.Havia poucas luzes do outro lado do rio,mas haviamuitomais no meio dele, e eram luzes mais suaves. Não havia reflexos de lâmpadas nas ondaspequenas do Tâmisa porque não havia eletricidade e, mais importante, porque não eram bemondaspequenas,apenasondulaçõesbrancasdegelo—enãosemoviam.Orioestavacongelado.Ecobertodeneve.As luzes eramde lanternas, archotes ebraseiros, e, refletidasnesta luminosidadenaneve enogelo,haviapessoas.Homenscomcartolasecachecóisenroladosnopescoço.Mulherescomtoucasevestidoslongoselargosquesearrastavamnogeloenquantoelascaminhavamcomcuidado,asmãosescondidasemregaloscomabasdepele.Todososolhosestavamvoltadosparaosarchoteseasfogueiras.Permeavaumaatmosferadealegriaentreeles.Todomundoparecia felize tudooqueseouviaeram as crianças rindo, correndo e deslizando, os longos cachecóis esvoaçando na brisa danoite.Umacriançaselançouemumescorrega,seuchapéusearrancandodesuacabeça,seguradoporfitas ao redor de seu pescoço, as bochechas rosadas e o nariz vermelho emoldurando a bocaaindamais vermelha, aberta emum“Oh”de excitação.Ela parou segurando-se emuma colunade madeira enfiada de pé no gelo e ficou parada, rindo, esperando que seus amiguinhos seaproximassem.Notopodacolunahaviaumabandeira,comletrasmalfeitasemazuleverde:“carnavalnogelo”e,embaixo,emletrasmenores,umconvite:“venhaum,venhamtodos!”A imagemera como a de um sonho, e a qualidade irreal se acentuava aindamais coma névoaque parecia subir do gelo e envolver tudo, suavizando os contornos das pessoas e coisas,criandohalosaoredordafileiradearchotesnomeiodorio,iluminandoaruaqueseformavadocentrodorioatéofimdaponte.Eraumaruadebarracase lonassobreestacasde todasas formase tamanhos.Pelos fundos,asestruturas davam a aparência de um navio naufragado, mas pela frente havia fachos, placas

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pintadas, lanternas coloridas e uma abundância de atividades festivas. Sob as bandeirolas efaixas de tecido de todas as cores, os comerciantes e donos de bares e tavernas haviam setransportado para o rio congelado, e onde quer que Edie olhasse, havia alguém vendendo,gritando ofertas ou servindo bebidas quentes que formavam fios serpentinados de vapor erealçavamaindamaisaquelanévoasobrenatural.Ouviam-se risadas, gritos alegres e o somde diferentes tipos demúsica que brigavamentre siparaver qual sedestacaria.Edieouviao lamentodistantedeumagaita-de-foles, obatuquedetamboresdecordae,maisperto,osrabequistaseosomdeumrealejo.ElaouviuumPLOPàesquerdae,quandoolhou,viutrêshomenscompicaretasquebrandoogelode um canal cavado entre o rio e a encosta. Os homens eram fortes e barbudos, de rostosqueimadosebotas à alturados joelhos, comabasviradas.Os trêsusavamplaquetasdebronzependuradas no pescoço, que se balançavam com o movimento das picaretas no gelo. Mais àfrente, um grupo de homens semelhantes a estes havia colocado uma prancha atravessando ocanaleestavaocupadoemcobrardaspessoasbemvestidaspelatravessia,parasejuntaremaoprazerdoalegrecarnavalnogelo.Edie viu umhomempapudoquestionar a cobrança, como se achasse que pagar para atravessarummetrodeáguaerauminsultodosmaisreleseimpertinentes.Oshomensentãomostraramsuasplaquetasesorriramcomseusdentesencardidosàmostra.Elaouviaapenas fragmentosdoquediziam,masoquediziamsoavacheiodeorgulho.—Somososvigiasdaágua,seosenhornospermite,umcostumeantigoeumatradiçãodorio.Apassagemseguraeeficientesobreacorrentezaperigosa,meusenhor.Ohomempapudo iacontinuarseuprotestoquandoumameninacomummantoverdecomeçouapularaoseulado,apontandoparaogeloàfrente.Edie seguiu a linha de seu dedo e viu que todo mundo estava se movendo naquela direção,atraído pelo ímã do espetáculo que passava pelo centro da avenida temporária de tendas nogelo.Primeiro veio o tambor.Depois homens carregando archotes que esfumaçavam.Depois vieramas gaitas-de-foles, com seus foleiros vestidos em roupas típicas da Escócia, as bochechas seinchandoenquantotocavam,oslongosSPORRANS{4}decrinadecavaloerguendo-senoritmolentode seus passos,marchando à frente de um outro par de homens com archotes. E lá estava ele,seuspésenormesmarchandonomesmoritmolentodosSPORRANSàfrentedele.Umelefante.Umelefantebranco.Edieestavaacostumadacomohorroreadornassuascenasdetempospassados,masemrarasocasiõesopassadonãotraziaconsigopontadasdoloridasqueatravessavamseuser.Àsvezes—muitoraramente,masacontecia—atéchegavaaseralgumacoisaqueelagostavadever,semadeixartotalmenteaterrorizada.Masatéagorajamaisforacomodestavez.Ela exalou. Um nó lá dentro do peito se soltou e ela respirou o ar que parecia mais limpo equase refrescante, apesar, ou talvez, por causado aromaadocicadoe enfumaçadode castanhasassadasquevinhacomaimagem.—Élindo.

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Elaouviuaspalavrasantesdereconhecerqueavozeradelamesma.Oelefantenogeloerarealmentelindo.Ecaminhavacompassosdeliberados,balançando-seemfrente à multidão boquiaberta e às fitas decorativas com uma dignidade de outro mundo. NassuascostascarregavaumHOUDAH,queeraumassentocomoumaespéciedecastelodelonaquesacudiadeumladoparaooutroenquantoelesemovia.Quatrotochasforamafixadasaosquatrocantosdopequenopavilhão,edentrosentava-seumalindamulhercomummantodepelebrancoeumturbantecobertosdepedraspreciosas.Elaacenavaparatodos.Ummeninopequenode rostonegrovestido comumcasacodepele sentava-se entre asorelhasdoelefante,acenandoparaamultidãoemostrandoseusdentesbranquinhos.O elefante não era todo branco. Tinha desenhos.À luz dos fachos, Edie viu que alguém haviapintado guirlandas de flores nos seus flancos, no seu focinho e atémesmo listras coloridas nasua tromba. Enquanto ele passava pelamultidão, cada olho estava fixo nele e a névoa baixa egélidaapenasressaltavaabelezadequimeradoespetáculo.Edieficouencantada.Mas então ela pensou, e mais tarde quase teve certeza, que ouviu alguém chamar seu nome.Olhoupara cimaeviu alguém, alguémmaisbaixodoqueumhomem, correndona suadireção,paralongedamultidão,oúnicorostoemmeioaumaprofusãodecostas.Elepareciaestargritandoalgumacoisa,asmãoscurvadassobreaboca, formandoumpequenomegafone; elanãoconseguiaouvir,mas logopôde, e era apenasumpedidourgente: “Nãoolheparaoelefante!”Então,obeloespetáculo foiabruptamentecortadoeavisãodopassadoparoudeserumsonhofantásticoeaatingiucomcenascortantesenocivas.Apessoacorrendotropeçouecaiuantesquepudesserevelarseurostoescondidonanévoa.Edieouviuumgritoàsuadireita.Virouacabeçanummovimentobrusco.Era uma outra pessoa, agora umamenina de gorro correndo na sua direção, acenando com osbraços,gritandoe sacudindoalgumacoisabrilhantenasmãos.Eatrásda luminosidadenamãodela,Edieviuderelancealgograndeetroncudo,comaformadeumhomemquesaíadanévoa.Afatiadotempofoicortadadenovo.Agoramaisperto,ohomemenormelutavacomalguémqueesperneavacomoumgatoselvagem.Finalmenteconseguindosedesvencilhar,eraameninadenovocorrendocomoloucadiretoparaEdie.Ohomemseinclinou,retirandoalgodeseumantodeduascapas.Umalongafacalustrosa.Aschamasdoarchotereluziamnalâminaenquantoelecorriaatrásdamenina.O tempo cortou de novo e a menina correu até Edie, tropeçando cegamente, agora bem maisperto.Ogorroviraráparafrentedurantealutaeagoracobriaseurosto.Edieaviu.Viuocanaldeummetrodeáguagélidanafrentedela.Viuqueameninanãopodiavercomogorro-vendalheatrapalhandoavisão.

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Edietentougritarumaviso,massuabocaestavaescancaradacomosgritosdadorinexplicáveldopassadocortandooseuser.Então o tempo pulou de novo e amenina estava na água e embaixo dela. Seu rosto coberto defios de cabelos semelhantes a algas cortou a superfície, e o único olho que podia ver quaseparecia ver Edie. Ela gritava algo e tudo o queEdie conseguiu decifrar foi: “Ele não é o quepareceser!Diga...”Umamãosalvadoraapareceueagarrouseuscabelos.Sóquenãoeraumamãosalvadora,poisaestavaempurrandoparadentrodaáguaetudooqueseviaerambolhaseáguaespirrando,águaescura, e num instante ameninavoltou à superfície e abriu a bocapara tomar ar, eEdie ouviuseugritocomoseelaestivessegritandodiretamentedentrodocoraçãodeEdie,sempassarporseus ouvidos. As palavras tinham uma urgência e um pânico de quem pronunciava algo pelaúltimavez:“...portõesnosespelhos.”A mão do homem apareceu de novo agarrando o gorro e afundando o rosto na água por umaúltima vez, os cabelos se espalhando, e Edie viu o rosto distorcido de repente ficar branco elimpodentrodaágua,osolhosabertosemterror,abocaaindaabertagritando,agorarespirandoágua. Ela não sabia por que, mas sentiu que conhecia aquele rosto. Então a boca parou de semover e os olhos ficaram estáticos. Algo escuro passou entre Edie e “o outro tempo”, e elaestavatentandorespirarno“agora”,enquantoocarnavalnogelo,oelefanteeameninaafogadatinhamdesaparecido.Enafrentedelaestavaorio líquidoeas luzeselétricasquedeixavamoscontornosseverosemtudo,atémesmonaescuridão.Georgeestavaaoseulado,perturbadoeaflito.—Oqueaconteceu?Etudooqueelaconseguiudizer,comocoraçãorepletodeumanovaeinexplicáveltristezafoi:—Euoperdi.—Oquê?Perdeuoquê?Ela se levantou da água e ficou parada um momento, olhando para o meio do rio como sepudesseconjuraropassadodevoltamaisumavez.Depoissacudiuacabeçaelimpouorosto.—Eunãosei.Ecomeçouacaminharnadireçãodapontequeseinclinavaporcimadaáguaàfrentedeles.—Euestavaolhandoparaoelefante.

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CONTORNOSÁSPEROSOCAMINHANTEANDOUPELOapartamentodeGeorge,olhandopara todososbrinquedos emodelosde animais de barro. Tirou o capuz enquanto semovimentava e fez uma careta como se o queestivessevendodealgumaformaoofendesse.Sua boca era daquelas que têm uma expressão carrancuda permanente, os lados esticadosexpondoosdenteseagengiva,comoseopróprioarquerespiravativesseumgostoruim.Seusolhos tinhamacorvioleta-escuroeeramafundadosnacara.Tinhaumabarbacurtaaoredordaboca, embora suas faces fossem lisas.A barba se ligava a um tufo de bode na ponta de seuqueixo.Havia uma pérola solitária pendurada numa argola de ouro enfiada numa orelha, e eleusavaumchapéupretosemabasnotopodacabeça.Ele parecia ummágicoquevirouumpirata.Não era, porém, ummágicobondosoouumpiratabonzinho.De repente ele levantou a mão, pegou um pequeno molde de barro de George quando bebê eenfiou no bolso.Tirou então uma adaga comum cabo adornado de pedras preciosas da bainhapenduradanascostasdeseucintoembaixodacapaeabriuumagaveta.Pegouumacamiseta,cheirouejogouparaumlado.Atravessouoquartoeachouumacestaderoupa.Tirouumacamisetasuja.Cheirou-aesorriu.Comaadaga,rasgouumretalhoedesteretalhocortounovamentetrêsretalhos.Enfiouosretalhosnobolsoesaiudoquarto.Quandochegounasala,parouemfrenteaobustodamãedeGeorge.Acabeçaestavajogadaparatrás, rindo, os cabelos fixos num eterno esvoaçado de prazer. As mãos dele acariciaram osombros nus e a curva exposta do pescoço dela e desceram até amargemda escultura, onde ascurvas sensuais e lisas de repente terminavam em cantos afiados e ásperos, como se alguémtivesse usado uma serra e raivosamente removido alguma coisa da escultura que—quando seolhava commais atenção— pendia um pouco para o lado. Seus dedos se deliciaram com oscontornosásperosmaisumavez,e,abruptamente,elesevirouesaiu,deixandoasalavaziaparaanoite.

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GEORGENOCOMANDOUMAESCADADEFERROTINHASIDOafixadaàmuralhadeproteçãodorio.Elalevavaadegrausdepedrasoleosasqueporfimterminavamnaruailuminadaacima.Georgesubiuotantoquepôde,atéchegaraumafolhademetalcomcadeado,colocadanosdoisúltimosmetrosdaescadaparaproibirqueaspessoasdescessemparaorio.Eleaproximouseuspésdocorpoeusouacurvadometaleseusdoisbraçosparasesegurar,enquantonegociavaosúltimosdegrausdaescada,seuspésfirmesnolugarporcontadafricçãoedasuaforçadevontade.Elerespiroufundoeenfiouacabeçaporcimadoparapeito.Seusbraçosardiamcomoesforçodeagüentarseuprópriopeso,maselesópisariaemterrasecasetivessecertezadequehaviamandado o suficiente para estarem seguros. Olhou à esquerda e, com alívio, não viu sinal doDragão.Estavambemlongedele.Olhouàdireitaenãoviunadaameaçador,alémdapassagemquedesapareciaembaixodaponte,quasequeemcimadele.Virou-seelevantouopolegaremsinaldeok.Edienãoestavaolhandoparaele.Estavaocupadaolhandoparaorio.—Ei!Ela olhou para cima, os olhos pareciam levar um tempo enorme para voltar de um lugarmuitodistanteparaopresente.Elefezosinaldenovo.—Tudobem.EstamosnocentrodeLondres.Nenhumdragãoàvista.Georgesubiunoparapeitoepulouparaopasseiodorio.Embaixodele,Ediecomeçouasubir.—Ofatodenãohaverdragõesnãoquerdizerquesejaseguro.Suavozsériasoavaaindamaisseveradoqueonormal.Eleseperguntousenãoseriaofrio.Eao pensar nisso, lembrou-se do que estivera ignorando este tempo todo: estava ensopado,enlameadoecommuito,muitofrio.Agoraquechegaraaumlugarrelativamenteseco,seucorpoodeixousentiraforçabrutadaexposiçãoaoselementos.Ocorpofuncionaempilotoautomáticoquandoseestácorrendodemedoeforneceadrenalinaparaosistemaparaajudá-loalutare—nocasodeGeorgeeEdie—afugir. Infelizmente,sóháumacertaquantidadedeadrenalinaaosistema,echegaummomentoemqueelaacaba.Georgesentiuqueasuaestavaescorrendopelassolasde seuspés,o fazendoagora sentir cadadetalhede seudesconforto, tudodeumasóvez.Atéapedraembaixodeseuspéspareciacongeladacomoumaplacadegelo.Porém, uma coisa era boa.Uma coisa tinhamudado. Talvez fosse o choque que Edie lhe deraquandodissequeoArtilheirojáera,outalvezfosseporeleaterarrancadodaáguaquandoelaafundou,eeleachouquetinhaficadosozinhodenovo:masnomomentoemquedecidiutomaraliderança, sentia-se um pouco menos fora de controle. Não esperava que Edie aceitasse sualiderança para alguma coisa, mas por enquanto ele liderava e se sentia muito bem com isso.Sentiamenospânico,porquetinhamaisalguémcomquemsepreocuparalémdele.Eraestranho.Ele tirouos sapatosdobolsoe tentouenfiarospésneles.Molhados,ospés resistiamao forrodecouroepareciamtercrescidodetamanho,eassimeleacaboudesistindo—bemnahoraemque Edie deslizou pelo parapeito e se juntou a ele, pingando na calçada. Os dois tremiamincontrolavelmente,agoraqueaadrenalinahaviaesgotadoseussistemas.

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Edie tinhaumaaparência terrível,comoseaáguaea lama tivessemconsumidosua resistênciausual.Elatremiacomoumachamaseapagando.Seuslábiosestavamcerradoseazulados.George sabia que ela sentia muito mais frio do que ele, como sabia também que precisavacontinuarliderando.—Vamos.Vamoscorrer.Elaergueuosolhos,aluminosidadecomumnelesembaçadacomatristezaeofrio.Paravariar,elanãodisseumapalavra,nãodiscutiu,nemreclamou.Eleapontouodedoparaaponte.—EstaéaponteBlackfriars?Elafezquesimcomacabeça.—EntãovamoscorreratéelaeacharotaldoFradePreto.—Nãoquerocorrer.Elaseacocoroueseabraçou,tentandoconjuraraúltimachamadecalordeseuíntimo.Suamãopegouodiscodevidroeelaolhouparaele,certificando-se.Estavaapagadoeseguro,molhadopelaáguadorio.Aovê-lomolhado,elaselembroudomar,dapraiaemqueencontrouovidroeo guardou. Sabia que mesmo aquele momento fora um agouro: tinha notado o vidro entre osseixosmolhadoseagacharaparaapanhá-losempensarmuito,masquandosentiuopesodovidrona mão, percebeu que havia algo especial nele e não quis que o pai o visse, o tocasse ou otomassedela.ElenãotinhapercebidoquandoEdieseagachouparaapanhá-loporqueestavaagindoestranho,olhando para o mar, tentando acender um cigarro naquele momento. Estava agindo estranhoporque a tinha levado para a praia para contar que sua mãe não voltaria mais e que seriamapenasosdoisporenquanto,“atéascoisasseajeitarem”.NotremquelevouEdieparaLondres,elasesentouaoladodeduasfamíliasfelizesretornandodeumdianapraia,eumadasmãescomsotaquemuitorefinadodisseparaaoutraqueoqueelasempregostavanapraia era da ausência de crianças infelizes.Aoutramãe riu e disseque eraverdade,anãoserquefossehoradevoltaremparacasa.Ediequisgritar.Aspiorescoisasqueaconteceram para ela se passaram à beira do mar ou — se não aconteceram — então ficousabendodelasnumapraia,emfrenteaummarmuitoinsensívelcujasondassequebravamemumritmo infinito com sua superfície esverdeada, agitada pelo vento, duras e imperdoáveis comopedralíquida.FoiporissoqueelapegouotremparaLondresquandoprecisoufugir.Todososoutrostrensiampara lugares que ela sabia que ficavamà beira domar.Não tinha vindo aLondres pelo brilhodasluzesouporqueeraacapital.TinhavindoporqueLondresficavalongedolitoral.Georgesacudiuoombrodela,arrancando-adesuasrecordações.—Edie,vamos.Temosdecontinuarandando.—Medêumminuto—disseela,tremendo.—Estougelada.George ficoupulando sem sair do lugar.Seupai o havia levadoumavezpara acampar e fazertrilhasnonortedopaís,numNatalcobertodeneve.Eensinouparaelecomosemovimentarparaficar aquecido, como ver se o frio estava causando ferimentos nas pontas dos dedos, como seabraçardentrodeumabarracaparasemanteraquecidoduranteanoite.Elesesentiunomeiodeuma aventura de verdade, dormindonumabarraca nomeio da neve sembarulho nenhum, a não

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serodoventoqueaçoitavaalonaeodoroncodeseupaiaoseulado.Lembrava-sedaviagemcomo uma aventura, mas também como uma coisa segura.A lembrança do calor do abraço deursogigantedeseupaiadormecidofezseusolhosarderem,fezeleperceberoquantoestavacomfrioesozinhoesemsegurançanenhumanaquelemomento.GeorgedeuumtapinhaemEdie.—Edie.Estoufalandosério.Precisamosnosmover.Vamosacabarcompneumoniadessejeito.Elasefechouaindamaisparadentrodesimesma.Georgeprecisavafazê-lasemovere,olhandoparasuamãofechada,viuexatamentecomofariaisso.—Edie.Vocêpodeficaraqui.Agorasequiserissoaquidevolta,vaiterdecorrer.Dizendoisso,arrancouovidrodomardamãodelaesaiuemdisparada.Amãodelasefechounonadaeelaergueuacabeça.Derepenteestavadepé,correndo,mesmoantesdeperceberquehaviatomadoadecisãodesemover.—Espere!George voltou os olhos para ver se ela o estava seguindo e continuou correndo.A calçada damargemdoriocontinuouporbaixodaponte.Ascolunasornamentadasquedecoravamospilaresdepedradaponteeramiluminadas.Eleestavacomtantofrioqueatésentiuocalorqueemanavadas luzes em um lado de seu rosto enquanto corria por baixo do arco de metal pintado devermelho.Edienotouqueelecorriaparaaentradadealgumacoisa.—George!Elejásesentiaumpouquinhomelhorporqueestavacorrendoeseaquecendo.Erabomqueelaoseguisse.Elelevantouovidrosobreacabeçaparaelanãodesistir.—Venha!Venhapegar!Elaolhavaenquantoelecorriaparadentrodagarganta,embaixodascostelasdemetaldaponte.PrimeiroEdiepensouqueeraumreflexo,maslogoviucomhorroroquerealmenteera:ovidrodomar brilhou, depois resplandeceu. Sua luz cortava intermitente as barras de ferro verticaisqueseenfileiravamnocaminhodoladocontrárioaorio,enviandolistrasluminosasesombriasparadentrodoespaçoenjauladoàfrente.Masnãofoiissoqueafezgritarparaavisá-lo.Nãoapenasisso.ÀfrentedeGeorge,duassilhuetasseaproximavamvelozmente,masaspernasnãopareciamsemover.Eramcomoestátuasquedeslizavamestranhamentena suadireção, carregandonasmãosarmas—lançastalvez,oufoices.Um deles trazia sua arma à altura do tornozelo e o outro a carregava sobre o ombro,informalmente,masprontoaatacar.Pareciamcobertoscomarmadurasealuzrefletianasgrevasemsuascanelas.Edie gritou porGeorge nomomento em que um deles se pôs emmovimento, deslizando de umladoparaooutro,fazendo-seaindamaisvelozenquantosecolocavaemumcaminhodecolisãocomomenino.GeorgeouviuoavisodeEdiequasenomomentoemqueoprimeirodelescomeçouapassarsuaarmapelasbarrasdeferro,fazendoumbarulhoaltoeintermitentedemadeirabatendoenquantodeslizavaemdireçãoaGeorge.

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Nãoeraummonstro,nemestigma,nemestátua.Nemestavainteressadoemoutracoisaanãoserfazerbarulhocomseutacodehóqueiparachamaraatençãodeseuamigo,quetirouseutacodoombroecomeçouafazeramesmacoisacomseuspatins,emitindoomesmobarulhonasbarrasdeferroquandopassouporGeorge.Quandoeles saíramdebaixodaponte, rindoepatinando,Edieviuoque eles realmente eram:jogadoresdehóqueisobrepatinsindoparacasa.ElarespiroualiviadaporummomentoeemseguidacorreuodobroparaalcançarGeorge.—Ei!Eleacenoucomovidro,aindasemolharparaEdie,evirouparaaesquerda,nadireçãodabocadotúnel.Ovidroaindabrilhavaoseuavisodespercebido.—Não!embaixodaterranão!—gritouEdie.MasGeorgenãoouviu.Àsuafrente,o túneldesciaparadebaixoda terra, fazendoumacurvaatravésdaantigaencostadorioedacamadadeterrausadanoaterroparaconstruirarotatórianofimdaponte.Quandoentrounotúnel,elesentiuocalorsubireficoucontentequeotúneltivessecapturadoocalordodiadentrodele.

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NOSUBTERRÂNEOERAUMTÚNELLONGO, anônimo, quadrado, como qualquer passagem subterrânea emuma cidadecomum.Asparedeseramcobertasdepainéiscomnervurasverticaiseochãoeraquadriculadocompisoamareloepreto.Eraumespaçoquelevavadaquiparaali,umespaçoquenãosenotaporquenãoéfeitoparasernotado.Vocêpassaeesqueceumadúziadeespaçoscomoestenoseudia-a-dia.Na suamente,vocêestá sempreemALGUMLUGAR,masnuncaemum limbocomoestelugar.Esehouverqualquertipodecontatohumanonesteespaço,geralmenteénãomaisdoqueoolhar deprimido de um músico ambulante, ou o cheiro da mijada de um oportunista contra aparede,nodesesperodenãoacharoutrolugareporninguémestarolhando.Ouaindaaidéiadeque as passadas atrás de você possam ser as de um assaltante, porque um espaço raramenteocupadoetotalmentedespercebido,foradavistaesobapeledacidade,éolugaridealparaumassalto.George não pensava em assalto quando olhou para trás. Estava apenas se certificando de queEdieaindaoseguia.Eporestarolhandopara trás,nãoviuamãoqueoagarrou,embora tenhaouvidoumestaloeobarulhodealgorachandouminstanteantesdeseragarrado.Enquantoamãooagarravafirmepelobraço,Georgeinstantaneamentepensouemumassaltante.Noseusubconsciente,comonodequalquerum,George jásabiaqueumdiaestariasozinhoemum lugar como este e que umassaltante apareceria. Porém, na hora emque se virou, ponderoupor um instante em que canto o assaltante estaria se escondendo, porque o túnel estavacompletamentevazioummomentoantes.Amãoquecontorciaeapertavaoseubraçonãoeradenenhumassaltante.Elavinhadaparede.Ou melhor, ela se protuberava de uma rachadura que ela mesma fez na parede depois de umestalido e de um craque. E com o craque veio um sopro quente que aumentou o calor napassagemsubterrânea,comosealguémtivesseabertoumforno.Eleteveuminstantedecalmaeclarezaantesdopânicoodominar,e,naquelemomentoestático,viuamão,obraçoeseusdetalhescomumdesprendimentoquasecientífico.Aquelenão eraumbraçohumanoporque amão tinhamuitomaisdedos enenhumaarticulação.Osdedosseenrolavamaoredordeseubraçocomoumgrupodeserpentescompetindo,pulsandoesecontraindo,crescendoeseengrossandonafrentedeseusolhos.Nãoeraumbraçohumanoporquenãoestavacobertodepele.Não tinhanadaporcimaeoquenãoestavacobertonãoeranemcarne,nemosso.Eraaprópriaterradacidade,a terravivaealamaquesempreficaaapenasalgunscentímetrossobacamadadasuperfíciedepedraeasfalto.Enquanto ele olhava num estado de choque e fascinação, os fragmentos de pedrinhas, algunsmaiores que os outros, se expeliam do barro, desciam ao longo do antebraço como trilhasminúsculasesejuntavamformandotendões.Porúltimo,aquelenãoeraumbraçohumanoporquejátinhaummetroemeiodecomprimento.O pânico finalmente chegou e George derrubou o disco de vidro do mar, contorcendo-se e

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empurrando, tentandose libertar.Ocalorse intensificouepareciaengrossaroaraoseu redor,dificultandosuarespiração.—Edie!—berrouele,tentandoolharparatrásechutarobraçoaomesmotempo.Um barulho ritmado e crescente como umCHUNCA-CHUNCA o fez virar a cabeça de volta e odeixou estático pela segunda vez. Alguma coisa se aproximava dele por baixo do piso, algocomoumtubarão,formandoumaondaameaçadorasobopisoamareloepreto.Emboraaindaestivessepresopelobraço,eleconseguiudarumpuloebotaraspernasparaumlado da passagem, desesperado paramanter seus pés livres do perigo.O suor escorria de seucorpo e ele viu que suas roupas ensopadas começavam a soltar vapor naquele calor sufocantequepareciaenjaulá-lo.—Edie!Ele estava fincado horizontalmente no meio do túnel, com os pés lutando para se firmar naparede.Oatacantesubterrâneosimplesmentemudoudetática.Aondadepedramudoudecursoevirou-se para a beira da parede, começando a subir e fazendo com que a parede em si começasse ainchar,continuandoaprópriaonda.Derepente,quebrouasuperfíciecomumruídoderasgãoeumúnicodedoapontadosurgiuecomeçouase transformaremumnódegalhosde trepadeiras,semelhante à gigante réplica de barro de umouriço, na ponta de outro braço semovimentandopara agarrar os tornozelos deGeorge.Numaúltima explosão de energia que brotou do pânico,ele se contorceu horrorizado, tentando corrermais para o alto da parede para chegar ao teto.Masosgalhoschegaramanteseseguraramsuapernadireitacomumachicotada,comumaforçaquedoíaaindamaisdoqueobraço-monstroagarrandoseubraço.Ediechegouàentradado túneleparouassustadacomoqueviaà sua frente.Oumelhor,nãoéque visse bem, era mais como uma impressão. Havia dois Georges, pelo menos era o queparecia: um parado nomeio do túnel, imóvel; e outro sendo segurado no ar, perpendicular aoGeorge parado — ou um George-de-mentirinha, porque era uma imagem translúcida, quaseinvisível, como um vapor com uma imagem projetada nele. Ela não via exatamente quem ou oquê estava segurando o quase-George, mas pelo jeito que ele se movia, este George estavalutando,elutandomuito,paraselibertar.Entãoelaviuo tetorachar,comoseo teto-fantasmaestivessesemovendo,eaío teto-fantasmase partiu e ela achou que ouviu muito, mas muito distante mesmo, alguém sussurrando o seunome.—Edie!George viu a massa sólida marrom do teto se partir na sua frente e gritou como nunca haviagritado na sua curta vida— uma vida que parecia que não ia durarmuito além dos próximossegundos.Uma coluna de argila se desprendeu da rachadura no teto e ficou pendurada na frente dele.Enquanto ele observava aterrorizado, ela começou a rodopiar lentamente, como se estivessesendomoldadaporumexércitodemãosinvisíveis.Opédacolunaseexpandiu,enquantootopose afinou, transformando-se emum cabo da grossura de umposte telegráfico.Quando a colunachegou a um formato de cone, o cabo se flexionou, se curvou e inclinou a base do cone nadireçãodeGeorge.George parou de gritar. Parou de fazer qualquer coisa. O único movimento que fez foi uma

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piscadadereflexoenquantoseucérebrolidavacomosuorardentequepingavanosseusolhos.Eficouapenasolhando.Abasedoconeeraumaboca,enelahaviadentes:dentesquesemoviam,trituravamebatiam-seunsnos outros; não eramdentes deverdade, erampedaços afiadosdepedra e vidroquebrado,latas de refrigerante enferrujadas e afiadas e cacos de porcelana. Eles se mexiam nummovimentoconstante,girandonoqueixodeterradocone,tirandolascasefriccionando-seentresi.George estavaolhandodireto no coraçãode um redemoinho lento de lama, e o quevia era ummoedordecarne.A mão e os tentáculos que seguravam seu braço e sua perna o puxavam e o torciam, e a dorpassava pelo seu corpo enquanto ele se esticava. Ele estava sendo torcido como um pano deprato, e então percebeu com clareza que estava sendo segurado na frente da boca para serdegustadocomoumaespigademilho.Apernaeraoquemaisdoía,econformeelaera torcida,ele sentiu que ia ser arrancada de seu quadril.A dor se tornava insuportável e ele sabia queperderiaossentidosaqualquermomento.Nomesmoinstante,sedeucontadequeseperdesseossentidosvirariacarnemoídanomoedor.Porissoprocurou,eencontrou,nofundodeseuíntimo,umanegrurapegajosaparaondeelebaniuador,afimdeenfrentá-lanumaoutraocasião.Entãoeleusou todoo restode forçaqueaindapossuíaparaatacarobraço ligadoaos tentáculosqueseguravamsuaperna.Novamente pensandoduas coisas aomesmo tempo, ele sabia que era umgesto fútil,mas sabiatambémqueàsvezes tudooquerestaéaesperançafútil.Quandosuamãoacertouobraço,elesentiuatravessaraterramolhadaepegajosa,aspedrinhasafiadaseasraízesmortas,livrandooar puro e os seus pés, colocando a gravidade de volta em seu curso e permitindo que eledescessedahorizontalparaaposiçãovertical.Georgesentiuosoprodoarquandoabocadeuoboteexatamentenolugarondeeletinhaestadoeouviuo triturardosdentes.Sentiuentãoadoremdoseduplanoseubraço,queagoraarcavacom todo o seu peso e que continuava preso à outra mão de terra. Seus pés dançavam a dezcentímetrosdochão,procurandodesesperadamentealgoemque se firmar, e,quandooconededentesseafastou,comoumaserpenteseretraindoparadarobote,Georgeatacou.Sentiunovamenteamesmatexturadebarro,depedrasedelixo,edepoissentiuoar.Destavezviuoque suamão realmente fez:ocone simplesmenteparoudeexistir e sedesintegrouparaochão num vômito de terra e pedrinhas, tão ameaçador quanto uma pá de terra esparramada nochãoladrilhadoaosseuspés.George agarrou os dedos que apertavam como uma jibóia o seu braço e descobriu que elestambémsedissolveramemummontedeterraquandoeleostocoucomsuamão.Eratãosimplescomoabanarumasujeirinhanamangadacamisa.Elepisounochãoeprocurouseequilibrar.Edie viu o quase-George que flutuava na horizontal brigar, se debater e depois cairdesequilibrado. Então os dois Georges se transformaram em um, e a cena ficou nítida. Ummeninosemimagensfantasmas.EEdiecorreuatéele.—George.Saiadaqui,depressa!Elanãotinhaidéiadoqueacabaradepresenciar,massabiaquenãoeracoisaboa,esabiaquetinhaavercomeleestarnosubsolo.Elaprecisavatirá-losdalioquantoantes.

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EdieagarrouobraçomolhadodeGeorgeeopuxou.Eledeuumpassoparafrente,depoisparou.—E-espereaí.George se agachou e pegou alguma coisa no chão, e os dois começaram a correr, subindo osdegrausparaoarlivredanoiteláfora.Eleentãorespiroucomoumhomembebendoáguadepoisdeumdiadurodetrabalhonumafornalha.Obviamente o ar frio e o choque o fizeram tremer de novo, e seus dentes tiritavam. Ele olhouparaEdie.—Oquefoi?—perguntouela.Eleentregouacoisaquetinhaderrubadonapassagem.Elapegoueolhouparaovidro.Sehavialuminosidadenele,eramuitoleve,tãolevequepoderiaatésersuaimaginação,elapensou.—Desculpeportertomadoovidro.Sóqueriaquevocêcorresseatrásdemim.Nãosabiaoquemaispoderiafazerparaquevocêsemovesse...Elapôsovidrodomarnobolsoefechouozípercomumarde“assuntoencerrado”.—Bom,nãofaçaissodenovo.Nuncamais.—Nãovoufazer.Edietremeueesfregouseusbraçosmolhados.Seusdentescomeçaramatiritardenovo.—Eseépararoubá-lo,pelomenosolheparaele,seuidiota.Éparaissoqueserve.Vocêcorreudiretoparaosbraçosdaquiloquevocêenfrentou.Ele sentiu a dor no braço e no tornozelo e se lembrouda terra se rasgando comos tendões depedregulhoseabocacheiadelixoafiado.Decidiudeixarparapensarnaquilomaistarde.Agoraelequeriacontinuarandando.—Tábom.—Poderiaterlhepoupadoessetumultotodo.Ele fez que sim com a cabeça, contente de estar fora do túnel, acima da terra e respirandonormalmente.Limpou a garganta.Talvez pudesse conversar com ela sobre aquilo, se é que elaviu,eéclaroqueelaDEVEtervisto.Talvezelapudesseacharumaexplicaçãoparaaquilotudo.—Vocêsabeoquefoiaquilo?—Alémdeserumacoisaterríveleassustadora?—É.Elanegoucomacabeça.—Nãotenhoamínimaidéia.Apenasmaisumpesadelo.—Masvocêviu,nãoviu?EraimportanteparaGeorge,derepente,saberqueelatinhavistotudo.—EuviALGUMACOISA.Comocamadasou...nãoseibem.Pedaçosdecoisas.Vocêestavaparado,masentãohaviaumoutrovocêflutuandoelutandoedepois...ah,écomplicado.Eleconcordoucomacabeça.—TalvezoFradePretopossaexplicar.Elanegoucomacabeça.

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— Pergunte a ele apenas sobre o negócio com a Pedra de Londres, como oArtilheiro pediu.Simplifiqueascoisas.—Porquê?Eladeudeombrosecomeçouaandarnacalçada,indoparalongedorio,esfregando-separaseaquecer,tentandofazerseusdentespararemdebater.—Não sei.Todavezque falamoscomumdesses cuspidos, eles jános confundemo suficientesemprecisarmosdarrazõesparaseremaindamaisvagos.APedradeLondreséachave,entãoémelhornãodaraeleaoportunidadedecomplicararespostaquenosdará.

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OFRADALHÃONEGROGEORGESEGUIUEDIEatéumPUBdequatroandares,umprédioestreitoetriangular,comseuângulomaisagudoesticando-separaorio,comoaproadeumbarcoemterraseca.Noprimeiroandar,acima domosaico verde e dourado formando os números 174, uma estátua negra de ummongegordo estava posicionada como uma figura de proa, suamão descansando na parte de cima deumabarrigaprotuberante,apoiadaporumcintolongocomborlasnaspontas.Asduascriançaspararamembaixodele.OPUBestavafechado.OlhandoparaoFrade,tudooqueviam de seu rosto eram as duas bochechas largas, as dobras do queixo e um nariz pontiagudo.Elepareciaterumaaparênciaalegre,maseraapenasimpressão,jáquenãoconseguiamverseusolhos.Acimade sua cabeçahaviaum relógio amareloque tomavaa formadeumhalo.Georgeolhouincréduloparaorelógio.—Nãopodemsercincoparaassete!Devesermuitomaistardequeisso.— Aqui são sempre cinco para as sete, meu filho. Cinco para as sete é a hora sociável,promissora; o fim do dia de labuta, a noite oferecendo como em um banquete o prazer dediversõesvariadas;éahoraparaseaquecer,parafazeramizades,paraconversar.Avozsoavadasalturas,umavozmelodiosa,ricaedoce,emqueseouviaumrisocontroladoeaalegriatinindocomoumtoquedesino.—Éparaconversarqueestamosaqui—disseEdie,dandoumpassoatrásparavermelhor.O Frade Preto abaixou a cabeça para olhar para ela, seu rosto rechonchudo oscilando entresurpresaeriso.—Vocêmeouviu?— E para dizer a verdade, a parte sobre se aquecer também é uma boa idéia— acrescentouGeorge,correndosemsairdolugareseesfregandoparatentarseaquecer.—VocêsDOISmeouviram?—perguntouoFrade,olhandodeumparaooutro.—Enósdoisestamoscomfrio—disseEdie.—Emolhados—acrescentouGeorge.—Comfrioemolhados.—Quemdiria!—disseoFrade.—Cuidadoaíembaixo.Eledeuumpassoparafrenteepulouparaochão,suabatinaformandoumpára-quedasnegroaoseuredor.Atingiuacalçadacomumbaquequecondiziacomseupesoconsiderável.Estirouaspernas,ajeitoua roupaeavaliouosdois.Deperto,elespodiamverqueseusolhoscertamentepossuíamrugasprofundasderiso,oquelhedavaoardeummongealegreeamigo,umalívio,jáqueseutamanhotinhatudoparaserameaçadoremoutrascircunstâncias.—Você disse conversar?Conversar sobre o quê?E por que razão?E para qual objetivo, semdúvida,também?GeorgeeEdieolharamumparaooutrocomumarquesetraduziacomo“Oquê?!”emqualquerlíngua.—Desculpe?

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—Desculpa aceita. Não pensemais nisso. Já está esquecido— disse o Frade, sorrindo paraeles.George começou a se perguntar se omongenão era umpouco tanta.Edie só achouque ele erairritante.—OArtilheironosdissequevocêpoderianosajudar.Eestamosprecisandodesuaajuda.—OArtilheiro,vocêdisse?—Porfavor—disseGeorge.—EuconheçomuitosArtilheiros.—Nósconhecemosapenasum.Eleéumcuspido,comoosenhor.Houve uma longa pausa, enquanto o Frade os examinava. Por fim, ele deu uma risadinha emostrouaportadoPUB.— Por gentileza. Qualquer amigo doArtilheiro, qualquer que seja ele, é amigo meu também.Vocês não chegaram numa hora adequada; o bar foi fechado para a reforma dos sanitários nosubsolo,quedevoadmitirque já estavamumpouconocivosdevidoaosanosdeusoconstante.Porgentileza,vãoentrando.Hospitalidadeéonossolema,nãoimportaaquehoras.Georgetentouabriraporta,maselanãosemoveu.Edietomouadianteiraetentouabrir,tambémemvão.ElaseviroucomumolharacusativoparaoFrade.—Estátrancada.—Bem,bem,oamorviverindodechaveiros—eledisse,entrerisos.—Oquê?Elepassouàfrente.—Paraaquelesdecoraçãopuro,nenhumaportajamaissefecha.OFraderemexeunamaçanetaporummomentoeaportaseabriu.—Comopodemconstatar.— Você usou uma chave — observou Edie baixinho. Ele deu um suspiro melodramático, osombrosseabaixandocombomhumor,comoumfeiticeirodecepcionado.—Abençoadossejamseuspequenosolhosaguçados,vamos terdeficardeolhoemvocê,podetercerteza.Ele ficou parado de lado e os dois entraram noPUB. Era um espaço estreito, com ângulosinconvenientes. No escuro podiam-se deduzir contornos estranhos e reflexos que surgiam edesapareciamcomopassardosfaróisdoscarrosláfora.Asgarrafasatrásdobareosutensíliosdecobrereluziamcomosreflexosfragmentadosdasluzesdospostesnarua.Haviaescadaseoutrosobjetosdeconstruçãoespalhadospelochão,eumpanoprotetorcobriaasuperfíciedobar,comoumamortalhadescartada.Aportafechou-seatrásdeles.OFradePretopassouparaafrentecomumaagilidadeinesperadaparaumhomemtãograndeepesado.—Venham,venham,cuidadocomabagunçadosoperários;venhamparaestasalaaqui,aalcova,e teremoscalor e iluminação.Eentãovamosver emquepossoajudarvocês,porqueparamimestáclaroque,anãoserquetomemosprovidências,vocêsacabarãoficandocomcoriza.Eleosempurrouatravésdo ladoesquerdode trêsarcosbaixoseos fezsentaremumbancono

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fundodoespaçoabobadado,osdeixandoalierapidamentedescendoosdegrausdeumaescadaatrásdobar.EdieolhouparaGeorge.—Coriza!—Poisé.—Georgedeudeombros.Eleestavamorrendodefriodenovo.Suasroupasgrudavamnapelecomoatadurasmolhadas.—Seráquepodemosconfiarmesmoemalgoquedizcoriza?Ele ouvia os dentes dela tiritando no escuro.Antes que pudesse dizer alguma coisa, ouviu umbarulho e o Frade reapareceu, carregando alguma coisa pesada que retinia cada vez que elesubiaumdegrau.O Frade obscureceu as luzes da rua quando passou pelo arco.Agachou-se para pôr no chão àfrentedelesumbujãopequenodegáseumaquecedornaformadeumtorpedo.—Osoperáriosestãotentandosecaroporão.Tenhocertezadequeelesconsiderariamumafaltadecaridadecristãprivarvocêsdestecaloremsuahoradenecessidade.Levantouobraçoeumatrouxaderoupacaiunochão.—Roupassecas.Toalhas.Aspessoasesquecemcoisas—disseele.—Operigodaindulgênciaextremaemuma tavernacomoesta équevocêchegaemcasacomumadordecabeçaamais eumcasacoamenos,nãoacham?Eleriudeseuprópriohumor.—A tragédiadiáriadohomemgregário, semdúvida!Peguemoqueprecisarem,por favor.Voulhesdarprivacidadeenquantosetrocam.Talvezalgumalimentoseja...—Sim—disseEdie, tãorápidoqueGeorgepensouqueela talveznãotivessecomidonadaháumbomtempo.Elaseajoelhousobreasroupasepegouumpunhadodetoalhas.—Essastoalhassãodebar.Sãominúsculas.— Ainda bem que temos uma porção delas — disse George. Ele se ajoelhou em frente aoaquecedoreolhou.Virouobotãonotopodobujãodegás.Ouviuofarfalharderoupasatrásdesiecomeçouasevirar.—Ei,estoumetrocando—disseEdie,aindacomavoztrêmuladefrio.—Tudobem.Nãoestouolhando—disseele tentandoajustaroaquecedorna luz fracada rua.—Estoutentandoligaroaparelhoparanosesquentar.—Sabecomoelefunciona?Eleviuofio.Haviaumatomadanaparedepertodeseujoelho.Eleenfiouopluguenatomada.Oventiladorcomeçouagirardentrodotorpedo.—Meupaitinhaumdessesnoestúdio.Sóusavanoinverno.Espereaí.Elegirouobotãoquepareciaumatorneira.Nadaaconteceu.Ediedeuummuxoxodedesprezo.—Vocêdissequesabiacomoligar.Ele contou até dez e pressionou o botão. Escutou o clique e um barulho como uma faísca seacendendo, e então um imensovruumm fez o aquecedor começar a trabalhar. Um círculo dechamas dentro da caixa de metal foi empurrado pelo ar do ventilador e as barras de ferrocomeçaram a ficar da cor de brasa. George pôs a mão na frente do aparelho e sentiu o calor

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subindorápido.Aschamasforamdeazuisparavermelhasedepoisquasebrancas,elogoocaloreramuitointensoparaqueelepudesseficarcomamãonafrente.—Quebom—disseEdie,quaseimpressionada.—Muitobem.As chamas do aquecedor também iluminavam a alcova. Era um espaço abobadado como umbarril, de uns dois metros de largura por cinco de comprimento, e cada centímetro estavacobertodemármoremarromcomveiasnegras.Haviacolunasepilastras,espelhoseencaixesdealabastro para lâmpadas e pequenas estátuas em todo canto.Acima deles, a curva da abóbadarefletia a luz em milhares de peças de mosaico dourado, contornadas com linhas finasenxadrezadas empreto e branco.No centro do teto, havia uma rosa-dos-ventos, e, ao redor daparede, uma cornija com letras elaboradas, formando várias frases que não tinham conexõesumascomasoutras.Georgeolhavaparaumaquedizia“apressaédevagar”.Virou-see leuumaoutraquesugeria:“requinteébobagem”.—Ei—disseEdie,vestindoumlongopulôvermasculino,muitomaiorqueseutamanho.—Desculpe—disseele,olhandoparalonge.—Esselugarémuitoesquisito,nãoé?—Esquisitoéapalavracerta.—Écomoestardentrodeumaigrejaoucoisaassim.Elapassouporeleecolocouasaiaeasmeiasnumacadeiranafrentedoaquecedor.—Vocênãoquertirararoupamolhada?Eledeuumpassoparatrás.Elaficounafrentedoaquecedor,olhandoparaadecoraçãoaoredordeles, esfregando os cabelos com uma toalhinha de botequim. Ele percebeu que ela aindaseguravafirmeovidrodemar.Georgetirouocasacoeacamisaeesfregouopeitocomastoalhasdebar.Sentiu-sebemeadorem seu braço, na mão e no tornozelo era quase suportável agora. Começou a ficar aquecido.Remexeunapilhade roupas, encontrouumcardigãde lã e se enfiounele, semnadaporbaixo.Estava contente de estar seco e não se importou com a aspereza. Era real e confortável. Eledesabotoouocinto.“Nãofaçapropaganda—façafofoca”,diziao trechoqueEdie leunacornijamaisafastada.“Nãoseioquequerdizer.Nãofazsentido.Masvoudizerumacoisa,esteaquecedorésensacional.”

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UMTOQUEDEPULSONO MEMORIAL DE ARTILHARIA Real há outras estátuas. O Bombardeiro fica parado ao lado docanhão,doiscoldrespenduradosemcadaladodesuaspernas.NaextremidadedocanhãoestáoOficial,aspernasafastadas,umcasaconosbraçosdobradosnaalturadopeito.UmamotocicletacomescapamentobarulhentodobraacurvaquasevaziadoHydeParkCorner,aproveitando a ausência de trânsito para desenvolver uma velocidade geralmente não utilizadana cidade.Omotoqueiro passoumuito veloz para observar o levemovimento,mesmo se fosseummovimentoqueelepudessedetectaremcircunstânciasnormais.O Oficial virou o pulso e abriu a tampa de um relógio. Olhou as horas, fechou a tampanovamenteeresumiusuaposição,olhandoparaosfundosdoJardimdoPaláciodeBuckingham,ondea rainhaprovavelmentemantémsuaestufa.Emboraeleestivesseemposiçãodedescanso,seu rosto tinha a mesma expressão que teria se ele estivesse no meio de um treinamento detropas.Eraumrostofeitoparaaresistência.Oúnicoindícioqueacusavaosseuspensamentoseraumlevetique,comosechupasseosdentes,fazendoumbarulhoirritante.

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AMARCADOFAZEDORGEORGE SECOU AS PERNAS com a toalha e se enfiou em um par de calças de pedreiro sujas decimento.Eramparaalguémpelomenosdezanosmaisvelhoqueele,masmesmoassimenfiouocintopelocóseprendeuafivela.—Sinto-mequasehumano—sorriuele,enquantoenrolavaaspernasdacalça.—Seioquequerdizer,meucarojovem.A voz sonora ecoou na alcova antes de o Frade se abaixar sob o arco, carregando sacos debatatinha frita, pães e uma garrafa com um líquido verde. Pôs tudo em cima de uma mesa nafrentedeles.—Aqueçam-seecomam.Quandopararemdetremercomovarasverdes,vamosconversar.Masprimeiro,bebamisto.Ele tirou a rolha da garrafa e pôs duas doses do líquido denso amarelo esverdeado em doiscopos.—Oqueé?—perguntouEdiecomavozcheiadesuspeitas.—Foifeitopormonges—sorriuoFrade.—Ervas,floreseumapitadadeenergéticoforteparalevantarosânimos.Vaiesquentá-lospordentro.Pelagoela,vamos!George pegouo copo e tomouo líquido gosmento de umgole só. Fogo,mais do que calor, foiqueimandosuagarganta,eeleseengasgoucomaintensidade.Eraumfogodoceepungente,comgostodemel,umxaropedeervasqueeledesconhecia.Quandoparoudetossir,sentiuofogoseabrandandodentrodeleealgumacoisacomeçouadegelarnoseuíntimo.—Nãoéruim—disseeleparaEdie,queestavaolhandoparaverseeleiaterumataqueecairenvenenado.—Estábom—disseela,engolindooseutambém,deumavez.Edienãoseengasgououcuspiu,masseurostofezumacaretatãograndequedeuparaeleverosseusdentesdetrás.—Eca!—disseela,esesacudiu.—Émuito ruim.Evocêestáachandomuitoengraçado,nãoé?—Eunãoacheitãoruimassim—disseele.—Temgostodeáguasuja.Eca!Ela pegou um pão, abriu no meio e rasgou uma embalagem de batatas fritas com sabor decamarão.Enfiouasbatatinhasfritasnomeiodopãoemordeu.Comabocacheia,elafezcaradesorriso.— É para tirar o goshto goshmento — disse ela entre uma e outra mordida no sanduíche debatatinhasfritas.—Eshperimente.AgoraeraGeorgequefaziacareta.—Não,muitoobrigado.Eladeudeombros,comeuopãocomduasmordidasecomeçouaprepararoutrosanduíche.

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OFrade se ajeitou emumbanco com almofadas que corria emum lado da parede na alcova echamouascriançascomumsorriso.—Agoravenhamaquiemecontemoqueéoquê,meuspequenosamigos.Contemoqueandaramaprontandoparaseencontraremnessaembrulhada.—Nãoéembrulhada—retorquiuEdie.Omongeriucomindulgência.—E certamente não é nada engraçado— continuou ela, antes de enfiar os dentes na sua novacriaçãocomumamordidadesafiadora.—Elatemrazão—disseGeorge.—Tudoéengraçadodealgumângulo,eulhesasseguro.Dependedequeladovocêestá.GeorgecompreendeudeondevinhaafrustraçãodeEdie.Eleacabaradepassarporumpesadeloetudoqueestecuspidofaziaerarirdeles.—Doladoemqueestamos,acoisaémuitoséria.O Frade olhou para ele sério. Depois passou a mão sobre o rosto, da testa ao queixo, e, aodescobri-lo, suas feições mudaram, as linhas de riso desapareceram e foram substituídas porumaexpressãosombriaeséria.—Poisbem,poisbem.O monge se inclinou e olhou ao redor da sala. Olhou para os querubins-diabinhos no teto,pendurados em cada canto, mas George não notou qualquer movimento. O monge deu umaesticadaemumombro.—Eporqueeudevoajudarvocês?—Porquevocêestádoladodobem.—Estou?Nãosabiadisso.PoisnãoéqueJudastambémestavaeagoraéqueimadonafogueiratodoSábadodeAleluiaporumúnicodeslizedecaráter?Seépara falaremdeslizedecaráter,então isso eu não sei, porqueminha vida inteira foi dedicada a evitar que eu chegue a um fimincendiado,porassimdizer.Agoraquantoaessahistóriadefazerobem...OFrade certamente se deleitava na sonoridade de suas próprias palavras, pensouGeorge comum toque de irritação. George tinha a distinta sensação de que as pessoas — ou melhor, ascoisas — ficavam falando o tempo todo e ninguém lhe dava uma resposta direta, apenas oempurravam de uma experiência horrível para outra pior ainda. Sua voz soou inesperadamenteseca.—Sabebemoquequerodizer.Edie percebeu o tom e olhou para ele surpresa. O Frade empinou a cabeça para equilibrar assobrancelhaslevantadas.—Demaneiranenhuma,SantoDeus.Seiapenasoquevocêestádizendo.Quemlhedissequeeuestoudoladodobem?—Vocêéummonge—interrompeuEdie.—Emongesajudam,éisso?—É.Mongesestãodoladodobem.—Entãodeixeeucontaroquesou.Eleabriuosbraçosnumgestodequemnãotemnadaparaesconder.Asmangasdesuabatinase

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dobraram, revelando braços fortes e musculosos que não pareciam tão gordos como Georgehaviaimaginado.—Souoquepareço,nãomais,nãomenos.Souummongegordoeumalegredonodetaverna.Ocidadãomais honesto que existe e o vigia vigiando a encruzilhada da estrada. Sou tambémumhomemque gosta de conversar com aqueles que gostam de falar.Ofereço alegria e felicidade,aquecimento, animação e a absolvição de pecados passados, presentes e, até mesmo, por umpreço, os futuros. Por fim, posso prover as necessidades e aliviar a jornada por este vale delágrimas. Sou um companheiro para aquele que precisa e um provedor deQUIETUS. Se vocêscompreendemaondequerochegar...Ediesemexeucomirritação,puxandoopulôversobreosjoelhos.—Oqueestouvendoeoqueestououvindoéquealgunscuspidostêmumhábitomuitoirritantedeusarpalavrasquenósnãocompreendemos.ElaolhouparaGeorge.Georgeconfirmou.—OqueéQUIETUS?— UmQUIETUS,meucaromenino,éuma libertação,umaexoneraçãodaspreocupaçõesdavida,umpagamentoporcompleto,comoemumapromissóriaouumdébito...—Olhe— interrompeu Edie.—Escute aqui.Quasemorremos para chegar aqui.Agora não éhoraparaliçõesdegramática.O Frade apenas olhou sorrindo para ela e esperou. Quando nada aconteceu, ele ergueu umasobrancelhaeesperouumpoucomais.— Ela diz a verdade. Ela foi sugada pela lama do Tâmisa e eu... eu fui agarrado por algumacoisanapassagemsubterrânealáfora...Aoutrasobrancelhaseergueuparaacompanharsuagêmea.Osorrisosealargou.Georgedecidiuqueessenegóciodeaspessoasficaremfalandomaisdoqueelequeriaodeixavaenfurecido.Equandochegavaahoradedizeralgumacoisa importante,elassimplesmenteparavamdefalarecomeçavamasorrir,comoseosorrisodissesse“vocêsestãoexagerando”.Issoéqueeraaindamaisirritante.—Aconteceusim!Napassagemsubterrânea.Asparedesmeagarraram.OsolhosdoFradesearregalarameseusorrisovirouum“oh”dechoquefingido.—Asparedes?—Issomesmo.Asparedes.George percebeu que estava erguendo o queixo, como Edie fazia. Omonge se inclinou para afrenteeergueuumasobrancelhadenovo.—Umtrabalhododiaboumaparedeagarraralguém,vocênãoconcorda?Eleriu,indulgente,oqueixosacudindodeprazer.AvozdeEdieointerrompeu,baixaeseca.—Nãotevegraçanenhuma.Eleriuumpoucomais,massecontroloudepoisdegrandeevisívelesforço.— Não. Imagino que não.As paredes agarrando você, é o que diz. Então imagino que delastenhambrotadomãose...oquê?Elasbeliscarameagarraramvocê?Elecomeçouarirdenovo,comamãoparacimasedesculpando.

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Georgenãogostounadadarisadadomongegordo.—Algosemelhante.Sóquefoimaisagarrandodoquebeliscando.OFradeparouderireolhouparaele.—Brotarammãosdasparedes?—Etentáculos.Eumacoisaquepareciaumabocanumaestaca.Comoumacometagigantecomdentes.A sala ficou totalmente silenciosade repente, comoseoutras coisas alémdoFradeestivessemseesforçandoparaouviroqueeradito.OFradenãoestavamaissorrindo.Oúnicoruídoeraochiadodoaquecedoragás.—Eissoaconteceu?Realmenteaconteceu?Comvocêsdois?—Sócomele—respondeuEdie.—Maselaviu—acrescentouGeorgerapidamente.O Frade olhou para cima, na direção das figuras e dos ornamentos talhados no teto doPUB.Nenhumdelesmostrouvestígionenhumdeanimação,masGeorgeteveaforte impressãodequealgumacoisaestavasendoditaqueelenãoconseguiaouvirouentender.O Frade Preto esfregou a cabeça e os olhos com ambas as mãos, como se estivesse tentandoacordar.Sacudiu-seesorriuparaGeorge.—Doqueeramfeitasessas“mãos”,asmãosqueoagarraram,sevocêmepermiteperguntar?O sorriso pareceu ficar grudado na cara do frade,mas um pouco da expressão jovial pareceusumirdeseusolhos.—Terra?—Lama.Barro.Cascalho.—Eelasoagarraram?Elasotocaram?George afirmou com a cabeça emostrou o tornozelo e o braço esquerdo. O vermelhão estavavirandoroxoeamarelo.AtéEdieseimpressionou.—Nossa!Algumacoisarealmenteoagarroupelobraçoepelopé.—Eulhedisse.Vocêdissequeviu.—DissequeviALGUMACOISA.Maseracomoumacoisafantasmagórica.Eracomoumasegundaimagemporcimadoqueeuestavavendo.Era...Faltarampalavrasparacontarsobreoqueelaquasetinhavisto,porissosecalou.OFradePretoseinclinouparapertodeGeorgeebotousuacararisonhabemnafrentedele.—Sevocêfoiagarrado,eeupossoclaramenteverquevocêfoimaltratadoporalguém...—Algumacoisa.Algumascoisas—insistiuGeorge.—Certo,certo,meucaro,certamentequesim.Bem,vamosdizer,seessaterraoagarrou,como,eugostariadesaber,vocêconseguiuescapardesuasgarras?—Eudeiumsoco.Aexpressãoalegrevoltouaoseusolhos.— Você deu um soco e elas pararam assim,SEMMAIS NEMMENOS? Você vai me perdoar, masparece improvável, se os elementos se elevaram a tal patamar que acharam forma e se

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transformaramcom tanta agressividade, que um simples, por favormeperdoe de novo,meninopoderiacomumsocoselivrardeles.Não,eucreioqueissoéumconto,umaficçãoquealguémlhecontouevocê...—Nãoéficção!Nãoé!Elasmeagarraramemeesticaramdeumladoparaooutroeeudeiumsocoassimeoutroassimeelas sedesintegraramassim,virando, sabecomoé, lamae terranochãoe...Oquê?O monge estava olhando George demonstrar as suas ações naquela aventura desesperadora, equandoele abriu amãoparademonstraros socosqueo salvaram,omongepegoude súbitonamãodeGeorge.Elepuxou-afirme,masdelicadamente,osolhosfixosnamarcaqueoDragãofizerasobreapele.—Ondefoiqueconseguiuisso?—Conseguiuoquê?OmongevirouamãodeGeorgegentilmenteparaqueasduascriançasvissemacicatriz.—Isto.Amarcadofazedor.Mesmosentadona frentedeumaestátua falanteeandante,George sentiuopesodoabsurdodesuarespostaquandoouviusuaprópriavoz.—Foiumdragão.Umdragãomecortou.NoTempleBar.OFradeencostou-senobanco,aindasegurandoamãodeGeorge,esacudiuacabeça.—Issonãoéumamarcadedragão,eseumdragãootivessecortado,meucarorapaz,vocêteriasidoestraçalhadoeteriaficadoestraçalhadoatéserqueimadoenãoternemmaisumtiquinhodevocê.—Masfoi!—Georgeexplodiucomafrustração.—Nãofoi!— retorquiu omonge, levantando a voz.— Isto é amarca de fazedor. E você, umpimpolhocomovocê,nãotemqualquerdireitodecarregarumamarcaassim.Georgeolhouparaasuamão.—Eunãoseioqueéumamarcadefazedor!—Eeunãoseioqueéumpimpolho—disseEdie.Eantesqueomongepudesseresponder,elacontinuou.—Masseoquequerdizeréqueeleéummentiroso,entãoestáenganado.Ele foi simcortadoporumdragão,ealgumacoisa—seusolhosvacilaramporuminstante,depois logomostraramfirmeza quando encontraram os de George —,ALGUMA COISA ruim aconteceu na passagemsubterrânealáfora.Foiisso.Omongeolhoudeumparaooutro,depoisse levantouderepente.Derepentesério,derepentecomumcertoaraterrorizadoremtodaaquelademonstraçãodealegria.—Fiquem aqui.Não saiam doPUB,não saiamdesta sala, não toquememnada, não conversemcomnada.Euvoltologo.Ecomummovimentobruscodesuacapaebatina,elese levantou,deixouaalcovaesaiupelaportapesada.Aúltimacoisaqueosdoisouviramfoiachavenafechaduraesuasombrarefletidanosvidrosembaçadosdasjanelaspelasluzesamareladasdospostesdarua.Georgeolhouparaasuamão.

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—Éapenasumacicatriz.Edieseaproximoueexaminou.—Mastemumacertaforma,nãotem?—Claroquetemumaforma!— Não. Quero dizer uma forma queQUER DIZER alguma coisa. Como escrita chinesa, ou umsímbolo,oualgumacoisa...Elecerrouopulsoeenfiouamãonobolso.—Bom,sejaoquefor,estádoendopracaramba!ElaolhouparaaportadoPUB.—Vocêconfianele?—Porquenão?—Não sei.Nunca confio emgente que vive sorrindo.George olhou ao redor.O lugar pareciacheio de rostos e estátuas, todos olhando para eles.Na verdade o lugar estava ficando quentedemaisporcausadoaquecedor.Eerameioclaustrofóbiconaquelasalaabobadada.Omármoremarromepretopareciaestarsuandoenãodavaumaimpressãoboa.—Então...?—repetiuela.—Vocêconfianele?Elefezumgestocomacabeçamostrandoasala.—Nãoachoquesejaumbommomento.Asparedestêmouvidos...—É.Etêmolhosebocasemãosepatasegarrase,olá...Elaparouembaixodoencaixede luzdealabastroquesaíadaparede.Àprimeiravistapareciaumasériedecaracóisdecorativosquesaíamdeumalamparinaestranhafeitademetalimitandoumacamponesarechonchuda.Amoça,porsuavez,carregavaduaslâmpadasemumacangasobreosombros.—Quefoi?—perguntouGeorge,tentandodescobrirparaondeelaestavaolhando.Osdedosdelaapalparamasletrasemrelevoembaixodosuportedealabastro.Formavam“meio-dia”.Suamãoparoueelaapontou.—Estávendo?Ele olhou com mais cuidado. A pequena escultura não era apenas decoração. Era um fauno:metadehomem,metadebode;maseraumfaunocomasaseestavadecabeçaparabaixo,osolhosfechados,osbraçoscruzadosnopeito,dormindocomoummorcego.—Éumdiabo—disseEdie.—Éumfauno.Meiobode,meiohomem.Émitológico—disseGeorge.—Nãotemmuitoavercommonges.Faunos,camponesas,aquelesquerubinsalinoscantos...oqueissotemavercomserumfrade?—Nãosei.MasoArtilheironãonosteriamandadovirseelefosseruim.—Seelefosseumestigma.—Elenãoéumestigma.—Entãotalvezhajacuspidosruinstambém?Elesconsideraramestapossibilidade.

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—QueriatantoqueoArtilheiroestivesseaqui.

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MORTONAÁGUAOARTILHEIRO JAZIA com a cara na lama e não se movia mais. Ele tinha caminhado pela Strand,cadapassodoendomais queo anterior.Quando alcançou a praçaTrafalgar e virou à esquerdasobospilaresaltosdoArcodoAlmirantado,elesabiaqueestavaemapurosmuitomaioresdoqueimaginara.Carregavao ardor do fogodoDragãodoTempleBar comoumvenenoque aumentava.Era umardor que chupava toda a sua energia. Nunca antes havia sentido que era feito de bronze. Elefora feito à semelhança de um homem de uniforme e, se alguém perguntasse, teria dito que sesentia como qualquer homem. No entanto, ninguém faz esse tipo de pergunta às estátuas, nemmesmooutrasestátuas.Dentrodele,nolugaremqueardiaofogovenenoso,elesesentiamaissolto,maislíquido.Ondeantessesentiasólido,agoraerafluido,esuaparteexterna,alémdoalcancedocalor,dava-lheaimpressão de estar arrastando consigo uma sucata que se partiria ou estouraria a qualquermomento.Ele odiava aquele sentimento.Era a lembrança e a dor de seu nascimento, do tempoemquealgumacoisaqueaindanãoeraele,masapenasapossibilidadedeserele,foiderramadaquente e líquida para chegar a sua forma presente. Na lembrança de seu nascimento havia arealização de como ele sentiria a sua morte, e no meio daquela lembrança estava o venenocorrosivodofogodoDragão.A dor que ele lembrava não era uma dor de bronze derretido derramado num molde com ascaracterísticasdoArtilheironumafundição.Eraadordoesfriamentodaquela forma,doatodetornar-se sólido.Era adorde todas aspossibilidadesperdidasdometal, doquepoderiavir aser, da morte de tudo que não poderia ser para se tornar oArtilheiro. E porque o número decoisas que poderiam ser formadas era infinito, assim também era a dor dessas possibilidadesdesaparecendo.ElesearrastoupeloMalle,quandopassoupeloparquedeSaintJames,viuopequenolago,lisoe prateado entre as árvores. Pensou que se chegasse até lá, poderia esfriar o ardor na água,recuperandoumpoucodeenergiaparapoderatravessaroGreenParkealcançarseuplintoantesda meia-noite. Mas, quando teve este pensamento, o veneno-fogo o machucava tanto que elerealmente teria ficado contente de apenas deitar na água escura e refrescante, esperar ameia-noitechegareenfrentarasconseqüênciasdenãoestarnoseuplintonaviradadodia.Adoreodanoeramtãograndesqueaidéiadeabandonocompleto,denuncamaissemoverouveralgumacoisa,nãopareciatãoruimassim.Eledesejouqueomeninoestivessebem.EletinhacertezaqueoFradenãoeratãoescurocomoo pintavam.Não que houvessemuita escolha. E a estranhamenina, a fagulha. Toda aquela dordentrodela.Todaaqueladorqueelaespalhavaparaaquelesaoseuredor.Mesmoassim,elaeraaúnicaemquemelepodiaconfiar.Omeninoprovavelmentemereciacoisamelhor.OArtilheiro entrou no lago, assustando uma família de patos que disparou nadando esbaforidapelaágua.Caiude joelho,depoissentou-separa trásedeitouseucorpona lamafriaumpoucoabaixodaáguarasa.

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Nãoajudou.Ele esperou que a água chiasse e soltasse vapor ao contato do seu corpo, por causa de todo ocalorquesentiapordentro.Masaáguanãoferveu,nemchiou,nemsoltouvaporesquentesquesubiriampelosgalhosdosplátanos.Nãoajudouemnada.Agora ele tinha usado toda a sua energia para chegar até o lago e não tinha sobrado nada quepudesselevá-loparacasaatempo.Talvezparasempre.—Idiota—foiaúltimacoisaquedisse.E com um último esforçomonumental ele rolou, ficando de peito na água, e tentou se arrastarpara fora da lama, sabendo que não conseguiria, sabendo que tentaria de qualquer maneira.Tinha quase alcançado ummetro quando suas pernas e braços desistiram, fazendo comque elecaísse de cara no lodo àsmargens do lago. Sua cabeça virou para o lado e seu capacete caiu,deixandoumabochechaafundadanalamaenaágua.Eledeixoudesemover.

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APEQUENATRAGÉDIAEDIESENTOU-SENAFRENTEdoaquecedoreenfiouasmeias.Georgeolhouparaela.—Jáestãosecas?Satisfeita,elaapalpouasmeias.—Maissecaseestariamqueimadas.Fiquedeolhoparaqueseujeansnãoqueime.Ele pegou o jeans. Estava bem seco. Foi até um canto escuro doPUB e vestiu as calças. Ediedesapareceuatrásdobare,pelobarulho,Georgesabiaqueelaestavapegandomaisbatatinhas.—Oqueestáfazendo?—perguntouele.—Roubandocomida.Vocêquer?—Não.Ela continuou farfalhando as embalagens. Depois começou um clique-clique. Edie levantou acabeçaemdireçãoaobareolhouparaGeorgeatravésdaescuridão.—Quefoi?—Nãofaleinada.—Falou.Euouvivocê,eu...Levantouacabeça,apurandoosouvidos.AgoraeraavezdeGeorgeperguntar.—Quefoi?Ediesacudiuacabeçaeenfiouumagarrafadesuconocasaco.—Nada.—Vocêouviualgumacoisa?—Penseiquetivesseouvido.Maséestelugar.Espelhosecantosescuros.Parecequetemmaisgenteaquidoquevocêimagina.—TEMmais gente aqui do que você imagina— disse uma voz que eles nunca tinham ouvidoantes.Eraumavozcomumsotaque londrinopesado, travessa, comoumacriançavelha, commaisdoque um simples toque de arrogância.Os dois olharampara as colunas da alcova e perceberamumamáscarapenduradadecabeçaparabaixonaarcada,umrisomarotonorosto.Eaíumamãotirouamáscaraeelesviramqueeraumdosquerubins-diabinhosqueestavasentadonotopodeumacornija.Seurosto tinhaumarde travessuraeseuscabeloscaíamparaos ladosemcachosdesalinhados.—Mesmo—disseGeorgedevagar.Tevea impressãodequeogarotinhopoderiadesaparecer aqualquermomento,umpensamentoque se confirmou na maneira com que ele não tirava os olhos da porta, como se vigiando omomentoemqueoFradereaparecesse.—Ésim.Ehámais“aquis”aquitambém,sevocêsoubercomovê-los—disseomenino.

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Edieabriuaboca,masGeorgefezumacenoparaelaficarquieta,einexplicavelmenteelaficou.—Comosechama?—perguntouGeorge.—Eu?EumechamoTragédia.OuPequenaTragédia.OuSeuDiabinhoDanado.Georgeapontouparaamáscaracomosorrisomarotoqueeletrazia.—VocênãodeveriaserComédia?—Claro que não.É por isso queme deram essamáscara boba, para esconder omeu rosto.AComédianãoprecisademáscara,podeacreditar.—Porquê?—perguntouEdie.—Porqueoquê?—Porqueacreditaremvocê?Gentequeusamáscaratemsemprealgoaesconder.PequenaTragédiafezumardeofendidoeferido.—Edie—avisouGeorgebaixinho.—Masagoranãoestouusandoela,nãoestávendo?—disseo travesso,balançandoamáscaranoar.—Nãoestá—admitiuEdie,depoisqueGeorgeolhousérioparaela.OrostodePequenaTragédiaseabriunumsorriso.— Então pronto.Além disso, todo mundo usa uma máscara qualquer, não é mesmo? Ninguémnuncaérealmenteoqueparece.—Não?—perguntouEdie.—Não.Não é.Puxavida, fiquependuradono teto de umPUBsem sair por cemanosquevocêacaba vendo coisas. Ouvindo coisas. E depois de um tempo, você começa a ligar coisa comcoisa.—Que coisa com coisa?— perguntouGeorge cuidadosamente. Ele percebeu que o peraltinhaqueriadizeralgumacoisaparaeles,masquerialevarseutempo,saborearaexpectativa.—Bom.Étudoumapiada.Nãoé?—É?—Éissoqueelediz.OvelhoFrade.Eledizquetudoéumagrandepiadaequeotruqueévocêrirporúltimo,rirprimeiroerirentreaprimeiraeaúltimarisadaomaisquepuder—seurostoficousérioederepentesemostroupreocupadoenquantoelecontinuouafalar.—Agora,minhaperguntaé:quemsãovocês?—Quemsoueu?—É.QuemSOUvocêsDOIS?Porque,comoeudisse,eujávimuitascoisas,masnuncaviovelhoFradedeixardesorriroudeixardemostrarqueestásorrindo,comoelefezquandovocêcontouoquevocêsandaramfazendoecomochegaramaqui.Entãooqueeuandopensandoé:quemsãovocês?George deu de ombros. Seus dedos cocaram e procuraram alguma coisa que não estava aoalcancedamão.Elepegouo casacodas costasdeumacadeira eovestiu.Achouobolinhodemassanobolsoeomoldoucomseupolegar.— Sou uma pessoa comum. Quero dizer, hoje, posso ver cuspidos como você. Quero dizer,

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esperoquevocêsejaumcuspido...— O que certamente não sou é um estigma, se me permite dizer, penso que não! — disse omeninocomultraje.—Desculpe, não quis ofender.Tambémvejo estigmas e estou nesse pesadelo.Mas namaioriadotemposouumapessoacomum.—Não é o fato de nos ver como somoso que o faz diferente. Já vimos antes pessoas que nosvêem...—Oqueacontececomelas?—interrompeuEdie.—Nãosei.Elasnãoficamporaquipormuitotempo.Achoqueacabamapreendidas.—“Apreendidas”peloquê?—Nãosei.Masalgumacoisaasleva,porquenãovoltammais.—Quebom—disseEdiesombriamente.—Obrigada.— Não estou dizendo que elas são fulminadas, não é bem assim. Não necessariamente. Hámuitas outrasmaneiras de se ir do que apenas bater as botas, há outrosLUGARES.Estou apenasdizendoquedeveserparaláqueelasvão.—Paraoutroslugares?—perguntouGeorge.PequenaTragédianãoestavafazendosentidoparaele, mas ainda tinha a impressão de que o menino com jeito travesso estava explodindo devontadededizeralgumacoisa.Outalvez,pensou,elenãoestavaexplodindodevontadededizerqualquercoisaparaeles,estavaapenas inchadocomagrandepiadadesaberalgumacoisaquenão iademaneiranenhumacontar.Apesardeseunarizarrebitadoeseusolhospiscantes,haviaalgumacoisanelequenãoeratotalmenteboa.—Queoutroslugares?—perguntouEdie.Elefezumapausadeefeitoeseusorrisofoidaarrogânciaparamaispróximodoescárnio.Eledisseaspalavrasdevagaredeliberadamente.—Outros“aquis”.—Queoutros“aquis”?Omenino deu um sorriso conspirativo e estendeu o braço na direção dela, chamando com umdedo.—Eucontosevocêmetocar—disseomenino.—Oquê?—disseGeorge.—Elaéumafagulha,nãoé?Entãoseelametocar,vaificarsabendo.—Sabendooquê?—perguntouGeorge.—Sabendo se alguma coisa ruimaconteceu comigo.E se ela pudermedizer isso, então contosobreosoutroslugares.Possoatémostrarparaelacomochegaraeles.EdieeGeorgeseentreolharam.Elalimpouagarganta.—Achaquealgumacoisaaconteceucomvocê?PequenaTragédiapôsamáscarasobreorosto.Depoistirou.Pôsdenovoetiroudenovo.—Estávendo?Sãodoisdemim.—Umdeleséamáscara.

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—Seiqueéumamáscara—disseele,comoseexplicassealgumacoisamuitoóbviaparaduaspessoasumpoucoburrinhas.—Estousómostrandocomoéqueeumesinto.Duaspessoas,doistipos de gente, e nãome sinto direito. É como se eu tivesse sido feito errado.Assim, se vocêpuderme fagulhar, entãovaipoderver se fui feito certo.Ou se algumacoisa aconteceuqueeunãoestousabendo.ElesorriuparaEdie,eGeorgeviuqueeraumsorrisodebraveza,paraqueelenãocomeçasseachorar.Ediecaminhouatéele.—Nãogostodefagulhar—disseela.—Memachuca.PequenaTragédiaestirouumbraçofinoemoveuosdedos.—Nãofaçaisso—disseGeorgeabruptamente.Edieparounomeiodaarcadaeolhouparaele.—Oquê?— Todas as outras estátuas, as esfinges, oArtilheiro, todos eles têm medo de você. Ou pelomenosnãogostamrealmentedeficarmuitopertoquandovocêcomeçacomassuasfagulhas.—Edaí?—perguntouela,osolhosdesafiadoresdeantesmaisumavezreavivados.—Edaíqueachomuitoestranhoeleestarquerendocomtantavontade.Podeserumaarmadilha.—Uma armadilha?Você está brincando—disse omenino, comdesprezo.—Umpouco tardeparasepreocuparcomisso,nãoémesmo?GeorgeolhouparaEdie.Edieolhouparaaporta.Osdois se lembraramdocliquedachavenafechaduraquandooFradePretosaiu.—VocêestádizendoquenãodevemosconfiarnoFradePreto?—ConfiarnovelhoFrade?Claroquepodemconfiarnele!Podemconfiarneleparaquasetudo.Sónãoconfiemqueelesejaoqueelepareceser...Edietremeuderepentequandolembroudameninaafogadagritando“Elenãoéoqueparece!”—George...CLIQUE.Achavenafechadura.PequenaTragédiapôsosdedosnoslábiosefaloubemrápido.—Eununcadissenadaenuncaestiveaqui.

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EMTERRADENINGUÉMOROSTODOARTILHEIROestavadelado,umolhonaágua,outroolhandosempiscarparaanoiteepara a camada fina de névoa elevando-se da grama do parque. Não havia dúvidas de suapermanente imobilidade, mas ele ainda pensava, só isso e mais nada. E porque ele aindapensava com suas últimas energias, os pensamentos não eram lembranças de seu tempo comoestátua ou de tudo aquilo que, como cuspido, ele havia visto e vivenciado em Londres. Eramseus primeiros pensamentos, os pensamentos-cuspidos, a idéia do que ele era para ser que oescultorcolocavaemsuaobraenquantoiatrabalhandonela.Eporqueoescultornãoeraapenasumcriadorde estátuas,mas tambémumsoldado, ospensamentosqueoArtilheiro estava tendovinhamparaelecomolembrançasdeumavidavivida,umavidadeguerra.Ele não pensavamais que estava no parque de Saint James. Ele não ouviamais o barulho dotrânsito à distância. O que ouvia eram estrondos de armas numa seqüência estonteante, muitolonge. Mais perto, o clique surdo de fuzis atirando em resposta ao rá-tá-tá mecânico dasmetralhadoras. Ouvia os homens gritando as ordens, ouvia os homens gritando por suasmães.Ouvia passadas rápidas, ouvia o baque-e-craque de uma granada e poucas pessoas gritandodepoisdisso.Fezumesforçoparafocalizaralamaamassadanafrentedeseusolhos.Sabiaondeestava.EstounaTerradeNinguém,pensouele.Enenhumhomem,masnenhummesmo,vaivirmebuscaraqui.Enenhumhomemapareceu.Silhuetas semovimentaram na névoa acima da lama. Uma figura alta de capa de chuva com abarrabatendonaspernaseumcapaceteexatamenteigualaoseusurgiudanévoanasuadireção.Viuasbotasdohomemafundarememoveremalamanafrentedeseunariz.Sentiuopesodeumamão no seu ombro. Ouviu um barulho de preocupação como se alguém estivesse chupando osdentesemexasperação.Porfim,sentiu-seserlevantadonoar,bemnoalto,levantadoparaocéu,esabiaqueagorasimofim tinhachegado.Oolhoquenãoestava tapadode lamacontinuouaberto,masnãoviamaisnada.

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OCAMINHOMARCADOUM INSTANTEDEPOISquePequenaTragédiadesapareceu,aportaseabriueoFradePretoentrou,fechandoaportacomumestrondo.OlhouparaGeorgeeEdie.—Vocêsestãocomcaradeque...fizeramalgumacoisa.George sentiu o rosto corando. Sempre foi assim. Na escola, sempre que algum crime eradenunciado, ele corava, e tinha certeza de que seu rostomostrava a culpa,mesmo que ele nãotivesse nada a ver com o feito. Ele sabia que o Frade podia ver que os dois estavam falandosobreele.Edie,poroutrolado,mostrava-setãoinocentecomopodia,emolduradapeloarco,paradaentredois espelhos na parte de dentro de cada coluna. Quando o Frade Preto olhou de volta paraGeorge, ela, de soslaio, tirou o vidro do bolso, espiou para o frade, para o vidro, e viu, comalívioinesperado,queeleNÃO brilhavacomumaviso.Viu,porém,queelebrilhavaemoutrolugar.Noespelho.Nasuamãoeleestavaapagado,masnoreflexodoespelhoreluziaazulado.Deumcantodeolho,viuoutroreflexoevirou-separaverqueelebrilhavaesverdeadonoespelhodacolunadooutrolado. Ela olhou para suamão e ele ainda estava apagado. Deu uma espiada de novo nos doisespelhose,quandodeuumpassopara trás,viuqueosdois espelhos se refletiamnuma infinitasucessão,umtúneldeespelhosidênticos;emcadaumdeles,ofragmentodesuamãosegurandoovidrodomar.Logoviu—ou imaginouver—umacoisaamais,bemno fimdeumdos túneis,algumacoisaquequebrouasucessãoregulareinfinitadeespelhos.Eraalgumacoisacomoumatigelanegra; talvezumpoucomaisfamiliardoque isso,masdeviasermesmoumatigela,porquehaviaumafacaaolado...Masantesqueelapudesseseconcentrarnoqueestavavendo,oquepoderiaseraquilo,eemquelugarjátinhavistoaqueleobjeto,avozdoFradequebrouosilêncio.—Vocêstêmalgoparaconfessar?Ediedeudeombroseembolsouovidrodomar,eoquefezobolsofarfalhar.Georgepensounasembalagens de batatinhas fritas no bolso dela. Como se lesse seus pensamentos, ela tirou umpacotedobolsoeoesvazioudentrodeumpãonamesaaoseulado.—Pegueiumasbatatinhas.—Vocês não estão com cara de culpados por causa de umas batatinhas.Vamos, vamos.Queroouviraconfissãoparaquesejamabsolvidos.Osorrisotinhadesaparecidodesuavoz.Eleseaproximou,esperando.EdieolhouparaGeorge.George olhou para a face escura do monge, tentando ver se era uma anedota nova. Os olhosestavampretoseimóveiscomocarvão.— O que é “absolvidos”?— perguntou ele, na esperança de que a pergunta lhe desse temposuficienteparaqueseucoraçãodesacelerasse.

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—Serabsolvidoéobteroperdãoaoconfessarefazerapenitência.Georgepensouqueumcarvãonãoolharia tãoduramentenosolhosdeoutraspessoas, como setentasse descobrir que segredos estariam escondidos neles. Edie falou com a boca cheia desanduíchedebatatinhas.—Nãoviemosaquiparaserabsorvidosdenada.Algumacoisaparecidacombomhumorpassoupelacaradocarvão.—Absolvidos.—Queseja.Nãoviemosaquiparaisso.Viemosparapedirajuda.Parapedirinformação.— Sim— disse o monge.— Dei uma caminhada lá fora. Vocês vieram pelo rio, o que já éestranho, e perturbaram alguma coisa no subterrâneo, embaixo da rua.Apalpei as paredes dapassagem subterrânea. Vocês perturbaram a terra de umamaneira que não acontecia há muito,muito tempo,mais tempodoque eu estou ali empéna frente deste prédio, por exemplo.Você,meumenino,despertouumafomedecoisasnãofeitas.Agorasentem-se.Ele puxou um banco e sentou-se, as pernas abertas, as mãos nos joelhos.Apontou para outrobanco na sua frente. Seus movimentos demonstravam uma autoridade que as crianças acharamdifícil de desafiar. George se sentou e continuou rolando com os dedos a bolinha de massadentro de seu bolso. Edie relaxou no outro canto do banco e abraçou as pernas enquantomastigavaopão.— Para iniciar a confissão, talvez seja melhor vocês me contarem como chegaram até aqui ecomoexatamenteoseuamigoArtilheiroachaquepossoajudá-los.Georgeformouduasorelhasnabolinhaecomeçouatrabalharumnariz.—Nãoseinemcomocomeçar,paradizeraverdade...—Achomelhorvocêcomeçarpelocomeço.—Eu sei. Comece pelo começo.Vá até o fim. E aí pare— disseGeorge. Era isso que o Sr.Killingbeck dizia quandopedia para ele escrever uma redação.—Onegócio é que eu não seibemoquefoiocomeço...—Eestápreocupadocomofim.—Aterrorizado—admitiuGeorge.—Aterrorizadoéumareaçãocompreensível.Oterror,porém,nãoémuitoútil,meucarojovem.O terror o faz parar de pensar, e parar de pensar é uma boamaneira de deixar que as coisasruins peguem você. Não, não. Acho bom você parar de ficar aterrorizado. Você pode ficaraterrorizadomais tarde, se tudo acabar bem. Então pode ficar aterrorizado o tanto que quisercomoconhecimentodequeestáseguroedequetudoacabou.Seficaraterrorizadoagoraepararde pensar, então as coisas que o queriam aterrorizado terão ganho. Vocês compreendem o queestoudizendo?—Não—disseEdie,amuada.—Sim—disseGeorge.—Ficofelizqueambosconcordem—disseoFrade.—Nósnãoconcordamos—retrucouEdie.—Sim, vocês concordam.Você é apenas alguémque tem o costume de dizer só aquilo que aspessoasnãoqueremouvir.Euseiquevocêsabequeoqueestoudizendoéverdade.Sevocênão

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fossedepensar rápido,não teriachegadoaqui.Esevocênão tivesseumamente forte,equerodizerumamenterealmenteforte,vocêjáteriaenlouquecido,nãoéverdade?—Não—disseEdie,aindacomteimosia.— Exatamente— disse o Frade, com cara de quem estava satisfeito. Virou-se para George esorriu.—Eucomeçariacontandocomofoioprimeiromomentoemqueascoisasquevocênuncaimaginou que pudessem semover começaram a semover. Ou você sempre foi capaz de ver aLondresdoscuspidoseestigmas?—Atéhojenão—disseGeorge.—Puroazar.—Vamosfalardeazarmaistarde—disseomonge.—Entãocomececomhoje.Georgesecontorceunobancoparaseacomodarmelhor.Quandosecontorceu,sentiuapontadacabeçadoDragãoespetaroseulado,ofragmentoqueeletinhaarrancadodafachadadoMuseudeHistóriaNatural.Ele começou a contar.Começou contando como estava olhandona barrigadabaleiaecomofoiacusadodefazerumacoisaquenãofez,ocastigoqueofezficarnomeiodo saguão embaixo do dinossauro e como resolveu sair, como se sentiu... e aqui as palavrasfluíam,comoumaenxurradaquenãoconseguiaestancar.Elenãoconseguiu,enãoseimportouemconseguir,estancaraslágrimasquerolavampelassuasfaces enquanto contava, afinal eram apenas lágrimas, e ele não estava chorando ou fungandoenquantocontavaahistóriadoseudia,dosacrifíciodoArtilheiro,doDragãodoTempleBarede Edie. Depois de um tempo, as lágrimas secaram. George nem percebeu quando Edie lhepassouummontedeguardanaposdepapelparaelesecarosolhos.Enquantoelefalava,EdienotouqueavozdeGeorgeparoudesermedrosa,assustadaeaturdidacoma situação aterradora emque ele havia se deparado, e se tornouumpoucomais profunda,umpoucomaistriste,atémesmoumpoucomaisirada.Ela sentiu como se avozdele estivesse espelhandoasmudançasporque elehaviapassadonodecorrerdesuajornadaatéali.E por não estar falando, ela pôde observar bem o Frade Preto. Ele estava sentado tão imóvelcomo a estátua que era, o rosto paralisado num sorriso encorajador. Porque ela era ótimaobservadora, porque Pequena Tragédia havia dito sobre ele não ser o que parecia, masespecialmente por causa do grito de aviso da menina se afogando, ela viu coisas que outrostalvezpudessemnãoterpercebido.Ela viu os olhos delemudarem àmedida queGeorge contava sua história.Viu quando ele deuumaolhadelaquaseimperceptívelparaelanomomentoemqueGeorgechegounapartesobreasesfinges.Viuasmãosdele se apertaremumpoucomaisquandoGeorgedescreveuabatalhanoTemple Bar. Seus olhos mudaram de George para Edie quando ele contou sobre a fuga doapartamento de suamãe.E ela o viu se encostar para trás e relaxar o corpo,mas não o rosto,quandoGeorgecontousobreocaminhopelorioatéchegaremaoPUB.—Efoiquandoencontramosvocê—Georgepôsumfimaoseurelato.—Possobeberalgumacoisa?Estoumorrendodesede.OFrade ficouolhandopara ele por umbom tempo, e então se levantou abruptamente, como setivessechegadoaumadecisão,eseinclinousobreobar.SuasmãosvoltaramcomduasgarrafasdeCoca-Cola.—Vocêssabemqueissonãoébomparavocês?

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Eleusouseusdentescomoabridor,umavez,duasvezes,tãorápidoqueEdieeGeorgepensaramsimultaneamentequeeraumgestomuitoincomumparaummonge.Elepassouasgarrafasparaosdois.—Nãotentemfazerisso—recomendouele.—Precisamdedentesdemetalparafazê-lo.OFradesentou-sedenovoenquantoosdoisbebiamecolocouasduastampasnamesaemfrente.Brincoucomastampassobreasuperfíciedemadeiraescura,depoisparou.—Entãovocêestásozinho—começouele.—Somosdois—disseGeorge.—Decerto— respondeu ele, empurrando as duas tampas para perto uma da outra para que setocassem.—Vocês dois estão sozinhos.E oArtilheiromandouvocês virem aqui.Mas ele nãoveio.—Eleestámachucado.EprecisoulutarcontraoDragãoparasalvarGeorge—explicouEdie.—ODragão eGeorge.George e oDragão— falou para simesmo omonge.—Parece quaseperfeito,certamentequeparece.Eleestavavoltandoaoseujeitoalegre.Osolhosseretraindoentreaspregasdesuasbochechasderiso,queosdeixavammaisdifíceisdever.—Mostreamãodenovo,George,porgentileza.Georgemostrouamãocomacicatrizvermelhaemziguezaguesecurvandoparaocentro.—Dói?—Agorasólateja.Nocomeçofoipior.—Fundamental.Fundamental.—Omonge soltou amão.—E foi esta amãoquevocêusou, amãoquequebrouoornamentodafachadadomuseu?—Foi.—Eopedaçoquebradodoornamento,oquefoifeitodele?—Quebrou.—Edepois?—EaíoPterodáctilosedesprendeudaparedeetudocomeçou.— Como já contou, como já contou. Mas e o ornamento? — Sua língua lambia os lábiosenquantoseinclinavaparafrente.—Ondeestáele?Georgeolhouparaorostoexpectante,quaseesfomeado.Sentiuoornamentoespetandosuapeleatravésdoforrofinodeseucasaco.—Porquê?—Porquê?—repetiuomonge,seucorpopesadoseinclinandoparaGeorgecomoumanuvemdetempestadeprontaparadesabar.—Porquê?Porqueestáperguntandoporquê?Edieseendireitounobanco.EaospoucosseaproximoudeGeorge.—Porquenãosabemossedevemosconfiaremvocê.Aspalavraspairaramnoar,tãoimóveiscomoastampinhasnamesaentreeles.— Então é isso— disse a nuvem de tempestade, recostando-se no banco. Expirou como umacaldeiraajustandoapressão.Osolhosgiraramparacimaeparaaesquerda,emborasuacabeça

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não semovesseumcentímetro.— ImaginoquePequenaTragédia tenha semetido aqui.Ou sualíngua.Nãoéverdade,seudiabinhodanado?Houveumapausa.Emseguidaumapequenavozflutuoupelaalcova.—Desculpe,vocêestáfalandocomigo?—Estou,seudiabinhodanado.Vocêandouconversandocomascrianças?Houveoutrapausaedepoisobarulhodealguémsemexendodesconfortavelmentenacornija.—Err.Não?—Não?—repetiuomongecomavozalterada.—Bom,nãoum“não”assim.Talvez...podebemserumnãocomo“talvez”,seosenhorentendecomoé.Elesmeperguntaramcoisas,meaborrecendo,quandoosenhorsaiu...—Nãofoiassim—disseEdie.—Estámentindo!—Ah,não,nãoestou!—gritouavozinha.—Nãopodeconfiarnela,elaéumafagulha,é issoque ela é. Pelamão queme fez, eu juro que não se deve confiar numa fagulha. Elas vivem semetendo,atrapalhandoofluxonatural...osenhorbemsabecomosão.—Estámentindo—disseGeorge.—Ooooh!—veiooutrogritinho.—Quebesteira!Eleéum...bem,eunãoseidireitooqueeleé,masébemsabidinho,osenhornãoacha?Nãoéoquesevêtododia,seosenhormeentende.Entãoeunão...—Cale-se, seudiabinho!— gritou omonge, e eles ouviram os copos tremerem nas prateleirasatrásdobarcomoemumterremoto.—Eleestámentindo—repetiuGeorge.—Maséclaroqueestá—disseomongenumavozqueeradesúbitocalmaedoce.—Vocêjáouviu falardopaidasmentiras?Bom,comoerade seesperar, eledeixouuma imensaprole, eaquele diabinho ali, a Tragédia metida a besta, é um de seus descendentes. Ele pode falar averdade em mais de três frases do mesmo jeito que eu posso derrubar a grande cúpula dacatedraldeSãoPauloeusá-lacomoumatigeladesopa.Um“Ooooh”agudodeafrontaecoounaalcovaedepoismaisnadaseouviu.OFradesacudiuacabeçaepediuparaosdoischegaremmaisperto.—Emquemconfiar é escolhadevocês,meuscaros.Nãoexistecoerçãooucompulsãonomeuestabelecimento. Ele é, como já afirmei, um lugar de hospitalidade. O que lhes disseram asesfinges?A conversa com as esfinges parecia já ter acontecido hámuito tempo para George. Era quasecomonumaoutravida,numaidademaiscalmaegentil.— Elas disseram que se eu quisesse saber como fazer para que os estigmas não me matem edeixemdemeperseguir,euprecisavaencontraroCoraçãodePedraesacrificaralgumacoisa.—“Seuremédio jaznoCoraçãodePedra,eaPedradoCoraçãovaiseroseualívio.Parapôrumfimaoquecomeçou,vocêdeveprimeiroencontraroCoraçãodePedraedepoisdevefazerosacrifícioeasreparaçõesparaconsertaroquefoiquebradoaocolocarnaPedradoCoraçãodeLondres aquilo que é necessário para o seu reparo”— recitou Edie. O Frade olhou para elaimpressionado.Elasemostrouinesperadamenteconstrangida.—Tenhoboamemóriaparaessascoisas.MaselasnãocontaramondeficaesseCoraçãodePedra.

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—Elaspoderiamterditosevocênãotivesseusadonossasegundaperguntaparaperguntarsobrefagulhas—resmungouGeorge.—EraaMINHApergunta—retrucouela.—É,masoArtilheiropoderiaterexplicadoissoedepois....Elenãosabiacomocontinuar.OFradeolhouparaosdois.— Chega. Chega. Vocês realmente não têm idéia em quem confiar. Preferem brigar a usar acabeça...—Não—disseGeorge.—Realmentequeroapenaspararissotudoevoltarparacasa.—Entãoparedediscutireescute.—Eleseinclinouepareceuquetodasassombrasdasalaseinclinaramcomele.—Vocêtemmenostempodoquepensaeestáemmuitomaisperigodoqueimagina.Entãoescute.Ocaminhoédifícil,masestámarcado.Vocêtemumdiaparasequeixareumdiaparareparar.Depoisdisso—elepegouastampinhaseasesmagoucomamão.Pôsoquerestoudastampinhasdevoltanamesaeelasficaramsebalançandoameaçadoramente,esuavozquebrou o silêncio como um trovão ecoando pela sala —, depois disso, as pedras que vocêofendeuseerguerãoparamoê-loeesmagá-lo,suavidaesuaalmaserãopeneiradaspelosquatroventosdochãodebulhadoreumfogodevastadorvirá...Eleolhouparaos rostoshorrorizadosdascriançase respiroufundo.Quandofaloudenovoeraquasecomosesedesculpasse.—Resumindo,nãoseránadabom.—O que quer dizer um dia para se queixar e um dia para reparar? São dois dias, então?—perguntouGeorge.—Não.Quer dizer que você terá um dia tanto para sentir pena pelo que fez como para tentarcorrigiroquefezdeerrado.Estas24horasterãocomeçadonomomentoemquevocêquebrouapedra.Creioquevocênãosabeaquehorafoi,ousabe?—Maisoumenosàs15h40datarde—disseGeorge,lembrando-sedeterolhadonoseurelógioecalculadoquantotempoeleteriaantesdesuaclasseterminaravisitaaomuseu,umpouquinhoantesdeeleterdadoosocoequebradooornamentoqueespetavasuascostas.— Então você precisa chegar ao Coração de Pedra dentro de um dia depois de sua ofensa, eagorajásãoquaseasDozedeBaixo.Oamanhãestápróximo.—OquesãoasDozedeBaixo?—perguntouGeorge.— Meia-noite. A virada do dia. A hora da morte e da ignorância, mas também a hora dorenascimento,porqueoquepoderiarenascersenãotivermorridoantes?Vocêtematéamanhãàs15h40antesde...—Serpeneiradoeespalhadoaosquatroventos?—interrompeuGeorgetristemente.—Eporaíemdiante.—Eeunãodevonemperguntaroqueéserpeneirado,nãoé?—perguntouEdie.—Nãoprecisaporque saberoqueénãovai ajudá-loemnada—respondeuomonge.—Masnãosejapessimista.Comojálhedisse,háumcaminho,umcaminhomarcado.—Eseeucorrigir,entãoestáacabado?Estareisalvo?OgrandeFradesacudiuacabeça,seusolhossolenementefechados,seusdedosentrelaçadosnotopodabarrigasaliente.

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—SomenteaofazeroseusacrifícioéqueteráacertezadeseuQUIETUSFinal.Seformaistarde,entãoestarágarantidoapenasoCaminhoTortuoso.—EseelenãoencontraroCoraçãodePedra?—perguntouEdie.— Se ele não chegar até o Coração de Pedra, os estigmas vão pegá-lo e fazer com que oCaminhoTortuoso pareça, por comparação,misericordioso.E ele não pode chegar lá demãosvazias.Develevaroquefoiquebrado.—OornamentodoDragão—disseGeorge.—Sevocêopossuir—disseomonge.—Senãoestiver comele, então émelhorvoltarparabuscá-lo.Vocêestácomele?Omonge se inclinou.George, por alguma razão que não sabia explicar,mas que sentia no seuíntimo,negoucomacabeça.—Eupegueisim.—Issoébom.—Masesquecinoapartamentodeminhamãe.—Masvocêémesmotonto!Omongeseretraiu.—Mas então é fácil.Você diga para ele onde fica oCoração de Pedra e nós vamos buscar acoisaqueelequebrouelevamosparaláepronto,tudocerto,numaboa!—antecipou-seEdie.— Não é dessa maneira. Existem, numa cidade como esta, muitas coisas que podem ser oCoraçãodePedra.Édiferenteparacadaum.Eparacadaumajornadaatéeleéumcaminhoquejamaisserácaminhadoduasvezes.—EntãoOQUEÉoCoraçãodePedra?— Pela maneira que as esfinges colocaram, pode ser qualquer coisa, ou até mesmo qualquerlugar.As esfinges formam enigmas mesmo quando dão respostas. E o que poderia ser melhorpara elas do que uma resposta comdois sentidos, a não ser uma com três sentidos?Oque é oCoraçãodePedra?Quempoderádizer?Edieestavaperdendoapaciência.Eracomoseasparedesestivessemseestreitando.—Issoéconversaparaboidormir.ComoéqueelechegaaoCoraçãodePedra?—Edie—Georgeinterrompeu.OFradePreto fechouosolhosevirouacabeçaparao teto.Faloucomoseestivesse recitandodamemória.— O Caminho é sempre marcado e estas são as marcas do seu caminho. Ele precisa subir aEscada em Espiral.A Escada em Espiral o levará àMemória do Fogo. No lugar em que estáenjauladaaMemóriadoFogo,elepegaráachamaeestachama lhemostraráocaminhoparaoCoraçãodePedra.Eleabriuosolhoseosfitousatisfeito.GeorgeeEdieseentreolharam.—IssoémaisumENIGMA!—cuspiuEdie,incrédula.—Éummapadepalavras—disseomonge.— Por que você não pode nos dizer de uma vez?— perguntou George, sentindo o medo e afrustraçãoferverememseupeitodenovo.

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—Porque eunão sei o final,meu caro jovem.Eu conheço apenaso caminho.Eo fato é queocaminhoédifícil.Noentanto,sevocêtivesseofragmento,quemsabeeupoderiaajudarmelhor?Foi uma faísca de ganância nos olhos domonge que fezGeorge não enfiar amão no bolso docasacoebotarofragmentoemformadeumacabeçadedragãonamesaentreeles.Nãoeraumacoisaqueelepodiadiscutirouexplicar.Eraapenasoquesentia.—Vamosterdenosmolhardenovo—disseeleparaEdie.—Oquê?!—exclamouela,chocada.—Vamosterdevoltar.

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OHOMEMDEMUITASPARTESOFRADEPAROUNA PORTA doPUBenquantoEdie eGeorge passavampor baixo de seu braço emdireçãoàcalçada.—Sevocêvoltarcomofragmentoquebrado,eupossoverseapressooseuQUIETUS—disseelealegremente.—Sim,crianças,tragamofragmentoparamimeeuvejooquepossofazer.—Obrigado—disseGeorge.—Voltaremossim.—Eprestematençãoparaficarporcimadaterraatéchegaremaqui.Porqueatélá,vocêsestãoàmercêdafomedeles.—Quefome?—quissaberGeorge.—Afomedequem?—quissaberEdie.—Afomedascoisasnão-feitas—disseomonge,comoseissoexplicassetudo.Mesmoquerendoirembora,Georgevoltou.— Isso é o mesmo que vocême disse que aconteceu comigo na passagem subterrânea. O quequerdizer?—Olheparaamarcanasuamão,menino.Seelaestivercertaevocêforumfazedor,ousevocêvierasetornarumfazedor,entãovocêquebrouumpactoantigoaousarsuasmãosparadestruir.—EleviuaexpressãodeincompreensãonorostodeGeorgeecomeçoudenovo.—Vocêusousuas mãos talentosas, mãos que foram feitas para fazer coisas, para quebrar uma coisa nummomentodefúria.Todasascoisasqueforamfeitas,estátuas,cuspidoseestigmas,sentemoseupodereaafrontaquecausou.Mesmoascoisasaindanãofeitasvão tentaralcançá-lo,ansiandopelaformaquevocêpodelhesdar.—Ochãoestavatentandomealcançar?—O barro sentiu a suamarca e o dom que você possui. Tudo quer ter forma em um universodestinadoasedesintegrar.—Comosaberquesouumfazedor?— Como saber que você não o é? Você diz que sua mão quebrou o ornamento do Dragão nomuseu e diz que asmesmasmãos atravessaram a terra e o barro que o atacaram na passagemsubterrânea.Talvezvocêsejamesmoofazedorqueamarcadizqueé.Outalvezvocêsejaoutracoisa.Ofatoéquesuasmãosparecemterumpoder,vocênãoconcorda?AntesqueGeorgepudesseregistraropoucoqueentendeudaquelaconversa,oFradeseretraiueacenouumadeus.—Boaviagem,meusamiguinhos.Ebomretorno.—Obrigado—disseGeorge,cutucandoEdie.—Ah,é,obrigadapelasbatatinhas,peloaquecedoreportudo—disseela.E comapenas um leve toquede relutância, deixou-se levar pelamãodeGeorge a atravessar arua sob a sombra de um impressionante prédio brancoART DÉCO, em cuja fachada estátuas de

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mulhereseanimaispareciamobservaromovimento.QuandoGeorgeolhoudenovoeacenou,viuoFradeacenardevoltaeentrarnoPUB.—Agoracorra!—falouentredentesparaEdiequandoviraramaesquinaparaoEmbankment.—Vocêvaicorrerdiretoparaasgarrasdeumoutrodragãosenós...—começouela.—Não,nãovou—disseele,puxandoamãodeEdiecomfirmezaevirandonuma ruaestreitaquepareciaumcânionentreprédiosaltoseanônimosdecadalado.—Oquê...?—começoueladenovo.—Depois—murmurouGeorge,ecorreumaisrápido.—Estábom—resmungouela.—EntãoquerdizerqueNÃOvamosnosmolhardenovo.Os dois correram pela rua e viraram a esquina. George percebeu que Edie corria tão rápidoquanto ele. Passarampor uma rua escura e, no fimdela, ele viu de relance um campanário emdegraussubindoaocéucomoumbolodenoiva iluminado.Continuaramcorrendo,atravessandoduas ruas e passandopor baixo de umarco.Quandopassarampara o espaço do outro lado doarco,Georgediminuiuaspassadas.—Então,oqueestáacontecendo?—perguntouEdie,entrearfadas.—Nãovamosvoltarparaminhacasa—respondeuGeorge,olhandoaoredorparadeduzirondeestavam, ainda caminhando para frente, ansioso por aumentar a distância entre eles e o FradePreto.—Masvocêprecisairbuscaroornam...Oh!Eletirouapequenacabeçadedragãodobolsoemostrouparaelaenquantocaminhavam.—Entendi.Vocêmentiuparaomonge.Ediesoavaquaseimpressionada.Georgeconfirmoucomacabeça.—Vocêconfiounele?—perguntou.Elanegou.—Não.Masissonãoquerdizernada.Eunãoconfioemninguém.—Omongemostrouumentusiasmoexageradoquandoperguntouseeutinhaofragmentocomigo.Querodizer,seestefragmentoéachaveparaeumelivrardestepesadelo,nãovouentregá-loaninguém.Eumesmovoulevá-loparaoCoraçãodePedra.Georgeolhouaoredorenquantofalava.Eles estavam num desses oásis calmos e por vezes atémágicos que se escondem por trás dasavenidas movimentadas de Londres. Tinha até iluminação a gás.A luz tinha uma textura maisleveefantasmagóricadoqueasluzesartificiaisaqueeleestavaacostumado.Senãofossepelailuminação azulada das telas de computadores solitários nas janelas elegantes dos sombriosprédiosde tijolosao redordeles, seriapossível imaginarque,aoatravessaremoarco,osdoishaviampassadoparaumséculoanterioraoqueviviam.George passou por um portão aberto e se viu numa larga praça com uma caixa de correios doladooposto.Parouquandoummovimentochamousuaatenção.—Quefoi?—perguntouEdienumcochicho,esbarrandonascostasdeGeorgecomsuaparadaabrupta.Um homem imponente com um manto aberto caminhava rapidamente no espaço entre eles e acaixadecorreios.Carregavaumapilhadedocumentosembaixodobraçoeumaperuca longae

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cinza cheia de cachos na cabeça. Seu rosto mostrava irritação e determinação, e se mostrouainda mais furioso quando um punhado de documentos deslizou e se espalhou pelo chão. Eleolhou ao redor, como se procurasse um lacaio para apanhá-los, e depois se agachou com osemblanteaindamaisseveroparaapanharospapéis.—Éumjuiz—murmurouEdie.George decidiu dar meia-volta antes de serem notados. Havia algo amedrontador naquelacarrancaenacabeçadeperuca.—Oquefoi?—disseele,aosevirarepassarpeloprédioaltoàesquerdadeles.—Eleéumjuiz.Jáestiveaquiduranteodia.Éaquiqueficamosjuízeseadvogados.Aluzdodia,vocêvêumpunhadodeles andandopara lá epara cá, empetecadoscomperucas ridículas,robesetudomais.“Empetecados” era uma coisa que seu pai falava. Edie nunca tinha usado aquele termo antes.Nãosabiaporquetinhafaladoassim.Eraexatamentecomoseupaifalavadasmulheresquandose vestiam para sair. Não importava o quanto tentasse não pensar nele, pequenas coisas aindavinhamàtonaquandoelamenosesperava.Eracomocaminharnapraiacomamarébaixa.Tododiaeraumamarédiferenteenuncasesabiaoqueseriadesterrado.Georgevirouàdireita,passouporoutroarcoedecidiunãosepreocuparemsaberporqueumjuizteriaaparecidonomeiodanoite,“empetecado”ounão.Parouaoladodeumrelógiodesoletomoufôlego.Haviaumainscriçãoquedizia:“Sombrassomosecomosombraspartimos.”Elese arrepiou e continuou, passando por um corredor de arcos e saindo para um espaço complátanosquerodeavaumaigrejadeaspectosoturno.Ele parou e se encostou no gradeado que rodeava a igreja, que era redonda e fortalecida,parecendomaisumbastiãocomtorredoqueumacasadeDeus.Edie se sentou em umdegrau e ficou olhando as sombras. Então percebeu queGeorge tambémparecianervoso.—Vocêachaqueesselugaréseguro?—Nãosei.Éumaigreja.—Aplacadizqueéumtemplo—disseela.—“TempleChurch”—disseele,lendoaplaca.—IgrejaTemplo.Éamesmacoisa.—Paramimparecemaisumcastelo—disseela,olhandoatravésdosplátanosparaasparedescurvadas,terminadascomameias.—Nãosintoquesejaumbomlugar,George.—Eusei—disseele,searrepiando.—Nãoachoquesejaprecisoserumafagulhaparasentirisso.Pareceassombrada.Ediepensou consigo se erahorade falar comele sobre fantasmas.De comoeles andavamporali, ao redordeles, e quenão eranada comque sepreocupar.De comoela levoumuito tempoparadescobrirqueelessimplesmenteficavamalicomoecosqueseesqueceramdedesaparecer.Elesnãopodiamenemfariammalnenhumaumapessoaviva.Nãoerampessoas.Nãopareciamtermenteprópria.Pareciamapenasestar repetindoemcírculosalgoque foramequenãoerammais. Eram insubstanciais, como a lembrança de um cheiro quase imperceptível. Não eramabsolutamente nada comparados à realidade do passado que a atropelava toda vez que elaentravaemtranse.Ediequaseseacostumaraanãonotá-los.

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Ela não perderia tempo em contar para ele que o juiz que eles viram derrubando os papéisenquanto caminhava entre os postes de lanternas de gás era um deles. Não havia necessidade,como também não havia necessidade em chamar a atenção de George para a embalagem dehambúrguer jogada no chão aos pés dele ou para o pombo irrelevante que pousara na árvoreacima deles. Para ela, tudo isso apenas fazia parte da paisagem da rua por onde elescaminhavam.—Entãonãovamosficaraquiparados—disseela,levantando-se.—Paraondedevemosir?—Algum lugar emquepossamospassar anoite seguros.Algum lugar emquepossamospensardespreocupadossobreoqueoFradePretoquisdizercomaEscadaemEspiral.Ediesesentoudenovo.—Vocêquerdizerquenãosabeparaondedevemosir?—EuquisdizerqueestamosencurraladosdentrodocentrodeLondresporcausadosdragões.Porém amanhã de manhã podemos procurar uma biblioteca e pesquisar sobre a Escada emEspiral.Oucomprarumguiaturístico.—Eunãotenhodinheiroparacomprarumguia.Gastei tudopagandoumtáxipara iràsuacasaavisá-lo.—Elatirouumpunhadodemoedasdeseubolso.—Sótenhoumalibra.Georgeprocuroumoedasnobolso também, tirandoalgumasque estavamgrudadasnamassademoldar.—Oitentaecincocentavos.—Mostrouasmoedasparaela.—Aqui.Étudooquetenhoagora.Masquandotudoissoacabar...Nãocontinuou.Suacarteiraestavadentrodamochila,juntocomocelular,trancadanoMuseudeHistóriaNatural.Omundodeexcursõesdeescola,armáriosecaixasautomáticospareciamuitodistante.Sentiuumapontadade saudadedomundomais simplesqueparecia separadoporumafina camadadaquelemundo emque se encontrava agora. Foi amesmapontada de saudade queteve ao ver o avião quando estava preso dentro do cone de fogo com o Dragão. Teria dadoqualquer coisa, absolutamente qualquer coisa, para voltar aomundo corriqueiro do seu dia-a-dia.Mastudooquetinhaagoraeramumasmíserasmoedas.Estendeuamãocomasmoedasparaela.—Quando isso tudo terminar posso lhe darmuitomais. Tudo o que eu estiver lhe devendo emais.—Eunãodisseissoporquequerooseudinheiro!—exclamouEdie,olhandoparaopunhadodemoedas reluzindo à luz do poste da rua.Ela percebeu que não estava com raiva por causa dasmoedas.Estavacom raivaporqueGeorge tinhaumcaminhode fuga.Quandoeledizia “quandotudoissoacabar”,eraóbvioparaeleque“isso”eraumestadotemporáriodevida,doqualeleteriaaoportunidadede sair.EaverdadeparaEdieeraque,ela sabiaagora,o“isso”paraelaerapermanente.Eelaaindaestaria“nisso”quandoGeorgeselivrasse.Aosedarcontadisso,elaseperguntouporqueaindaestavacomele.Sempreestiverasozinhaeamedrontada antes de vê-lo atravessar correndo o Hyde Park com o Artilheiro. E sempresobrevivera. E sobreviveria depois que ele partisse. Mas voltaria a ficar sozinha de novo.Talvezporissosentiatantaraiva.Ela se lembrouda ondade esperança que a impelira para fora do ônibus e que a fizera correratrás deles na expectativa de queGeorge fosse como ela, alguém que daria sentido às coisas.Masagorasabiaqueeleeradiferente,queo“isso”deleeraumacoisadequeelepoderia—se

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tivesse sorte—escapar.Era apenas uma camada de ummundo emque ele caíra e do qual, seencontrasseaEscadaemEspiral,poderiasairileso.Seu“isso”erapermanenteeseladoporqueseuserpertenciaaele,inescapáveleprofundamente.Oseu“isso”eraoqueelaeraecomoelavia o mundo, e não alguma coisa em que tropeçara. Era como a vida que teve na cidadedilapidadaàbeira-mar,localquefoisuacasaporumtempo:acostumara-seaobservarosrostossorridentes das pessoas que vinham a passeio durante o dia, descarregando seus carrosnovíssimosparabrincaresentar-senapraiaolhandoparaomaredandoascostasaoviveirodecasas esquálidas e lojas degradantes na calçada larga da praia. E sempre levavam consigo aalegriaeaexcitaçãoquandoosolsepunhaeelesiamembora.Georgeeraisso.Eleeraumturista.Edietinhadeficaraliotempotodo.Elaselevantou,pegouasmoedaseenfiounobolso,fechandoozíperparanãoperdê-las.—Masnãoéosuficienteparacomprarumlivro.Vamosterderoubá-lo.Georgesedesencostoudogradeadoecomeçouaandarrápido.—Vamos.Estelugarmedáarrepios.Eles refizeram o caminho através do corredor de arcos e viraram à esquerda, atravessando apraça,saindopeloportãoeseguindoparaonorte,distanciando-sedorio.A TempleChurch ficou silenciosa e solitária agora que eles tinham ido embora, guardando osseussegredosparasi.AúnicacoisaquesemoveufoiopomboirrelevantenasárvoresacimadolugarondeGeorgeeEdieestiveram.Opombo irrelevante—quede irrelevantenão tinhanadaequemuitomenoseraumpombo—abriuosolhos,esticouasasasevoouacimadostelhados,paraonortetambém,comoeles.Elesabia,noseunegrocoração,que,detodasasdireçõesemquepodiavoar,onorteeraaquelhedavaomaiorprazer.Elenãosabiaporquê.Ofatoeraquevoardevagarparaonortepareciaocaminhomaisagourentoqueumcorvopodiatomar.Eraumpequenodetalhe,masquandoseétãoantigocomoele,acumularpontospeloestiloeraumadascoisasqueespantavamotédio,jáqueahistóriatinhaamaniadeserepetir.No chão, embaixo das batidas lentas das asas do Corvo, George e Edie perceberam que nãohavia mais vielas para andar e de repente se achavam uma vez mais na rua Fleet. Os ônibusnoturnospassavamvelozes,apostandocorridascomostáxiseoscarroscomuns.Georgeolhouparaasluzes,ascoreseasvitrinesiluminadasesentiutontura.Começouaandarparaaesquerda,masEdieointerceptou.—EstácompressadecomeçarumanovabatalhacomoDragão?Elequasenãoouviubem,masmesmoassimficouirritado.—Estoucompressapara tudo,ouvocênãoouviuoqueoFradePretodisse?Tenhomenosdequinzehorasparadarumjeitonissoantesqueeuseja“peneirado”.—Sequerserpeneirado,entãocontinuenessecaminho.OTempleBarficalogoali.Georgeparou.ViuoTribunaldeJustiçaeteveaimpressãodeperceberoscontornosafiadosdoDragãona sua sombraprojetadanaparededa igreja.Atravessoua ruaeentrounumaoutraquecontinuavaparaonorte.—RuaFetter{5}—leuEdienaplaca.

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—Grilhõessãocorrentes.Comoalgemas,masparaaspernas—disseGeorge.—Eu sei— retrucou ela.—Esse povonão escolhia nomes alegres, não é?Quero dizer, paranomear as ruas. Uma vez até me deparei com um largo do Coração Sangrando. Tinha umaatmosferahorrível.Nãotoqueiemnadaepasseiporlárapidinho.Acimadeles, pousandonumacalha, oCorvo esperavaque eles se aproximassem,pensando emcoraçõessangrandoepercebendoquetinhafome.Esperouqueosdoispassassemporbaixodeleevoouporcimadotelhadodoprédionumatrajetórianoroeste.EstavapensandonoCaminhante,mas nessemomento olhou para baixo enquanto cruzava a divisa do centro de Londres e outraidéialheocorreu.Ele deu a volta e foi caindo como uma pedra, na direção de um prédiomoderno com fachadabaratadeumapedra rosadaebrilhante, e aterrissounapartenorteda rua.Davaparaperceberqueoarquitetogostavadefazerângulos,porqueoprédionãotinhanadaaacrescentaraosdoisprédios adjacentes.Eonadaque acrescentava eraumacoleçãode linhas epontas semsentidoquenemdecorativaschegavamaser.Na frente, porém, no térreo, havia um recanto:metade como um abrigo para um vigia,metadecomoumboxedebanheiromaliluminadoecomsuperfíciesdegranitobrilhante.Olugarestavaocupado, e foipara láqueoCorvo sedirigiu,parando sobreoombrodemetaldeumaestátuaquepareciaquasehumana,empartes.Oumelhor,oombrodeumaestátuaqueerafeitadepartes.Equasetodasestasparteseramhumanas.OCorvobateuobiconoouvidodacabeçaqueeraquasehumanaempartes.DevoltaaocâniondaruaFetter,Georgeestavatentandoexplicarseuplano.— Estou procurando um parque ou algo parecido.Algum lugar em que possamos dormir semninguémnosincomodar.Ediedeuummuxoxo.—Parques sãogelados.A realidadenão temnadaaver comos livrosemquadrinhos,George.Elesmostram gente se abraçando embaixo das árvores com os pássaros bonzinhos jogando asfolhas por cima paramantê-los quentinhos embaixo de um cobertor de adubo. Parques não sãolugaresbonsdedormir.—Oquevocêsugereentão?—Umrespiradouro.Algumlugarnumcantodeprédioemquehajaumasaídadearquente.Entãopodemos sentar numa caixa de papelão rasgada, pegar jornais, enfiar embaixo da roupa e pôrumaoutracaixaporcima.Chegaramaumcruzamentocomumaoutraavenidalarga.—HighHolborn— disse ela, olhando para a placa pregada na parede de um prédio.—Nãovejoparquenenhum.— Tudo bem — disse George. De repente ele se sentiu muito cansado. Cansado daquilo.Cansadodopesadelo.Cansadodeestarcommedo.Cansadodeestarconfuso.CansadodeEdiefazermuxoxootempotodo.—Tudobem,encontreumrespiradouroquentinhoparanós.Elesóqueriamesmodormir.—Estábem—disseela,ecomeçouaandarvirandoàdireita.

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—Porqueparacá?—Porqueémelhorficarmoslongedadivisadocentro,nãoé?Paraevitarproblemas.Continuaramcaminhando.Nãodisserammaisnadaporqueosdois já estavam tãocansadosquecomeçavam a se sentir desconexos e distantes, até mesmo do medo e da idéia dos estigmas.Apenas a irritação um com o outro pareciamantê-los a caminho.Assim, os dois, demaneirasdiferentes,alimentaramsuasirritaçõessomenteparaquenãodesistissemeparassem.Passaramporbaixodebeiraissalientesdeumprédioantigofeitoempartedemadeira.Eraumprédio tão diferente que George parou para olhar. Tinha quatro andares de madeira escura,reboco branco e caixilhos de chumbo. Tinha um telhado íngreme e uma chaminé de tijolos.PareciaumdaquelesprédiosdecartõesdeNatal.Ehaviatambémumapassagememarcoqueseabriaparaumpátionomeiodoprédio.—Podemos ir para lá.Olhe!—exclamou ele apontando para omeio da rua.UmFuzileiro decapacete de lata estava de pé no meio de ummonumento de guerra, um pé descansando numapedra, amochila nas costas, um fuzil horizontal namão enquantoolhava atento para o oeste, adireçãoopostaaosdois.—Teríamosatémesmoumvigianaporta.—ElenãoéoArtilheiro—disseEdie,desúbito,masdesejandoquefosse.—Sim,maseleéumcuspido.Venha.Vamosver.Vaiserseguro.E teria sido seguro. Porém, enquanto eles estavam ocupados se afastando da divisa do centroparanãoencontrarproblemas,oproblema,graçasaoCorvo,estavacaminhandoparaencontrarcomeles.Se George não tivesse recuado para o meio da rua, para admirar a fachada do prédio demadeira, eles até que poderiam ter escapado, porque o Corvo os tinha perdido de vista e nãoteria como avisar ao Homem Grade. O passo que George deu foi o movimento que os olhosaguçadosdoCorvointerceptaram.Eaíascoisastomaramseucurso.O Corvo deu uma revoada e bateu o bico no ouvido do Homem Grade. O Homem Gradeatravessou a rua batendo e se arrastando pelo caminho, e este barulho demetal se arrastandopelochãodecimentofoiosegundoruídoquealertouEdieeGeorgeparaofatodequealgoruimestavaparaacontecer.O primeiro ruído foi o que os assustou. Foi oCLAQ SHUF CLAQ que ele fez. E quando estavachegandomaisperto,primeiroEdie,depoisGeorge,viraramacabeçaeoviram.OHomemGradetinhaaestruturadeumhomemtroncudoemusculoso,comumacabeçadetestasalienteecabelosparatrás.Noentanto,elenãoandavacomoumhomem.Andavacomoumrobôde brinquedo que não tira os pés do chão, deslizando um de cada vez. Era isso que fazia obarulhoarrastado.Naqueleinstante,osdoisdeixaramdeveroquetinhadehumanonacriaturaecomeçaram a perceber as partes que não eram.George viu que ele era feito de partes de umafigura humana, como se alguém tivesse cortado a estátua de uma pessoa em pedaços e depoiscoladodevolta,deixandovãosentreosmembros,epor issoaestátuapareciausarsuaprópriapele como uma armadura separada do resto. O rosto tinha um corte no meio, um largo canalatravessandoonarizeaboca,edoiscorteshorizontais—umporcimadolábiosuperioreoutroacimadassobrancelhas—,dividindoorostoemseispartes.Cadapartesemoviaumpouquinhofora de sincronia em relação às outras partes, e suas expressões pareciam acontecer em fasesdiferentes.As partes do corpo, algumasmaismecânicas do que humanas, semoviam com esta

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mesmaqualidadederitmodesconexo.Canosdemetalseesticavamdaspartesdocorpocomosesegurassemtudojunto,semelhanteaumespetocompedaçosdecarne.O ruído deCLAQCLAQvinhadasduasgradesdemetalqueele seguravacomasmãos.Tinhamotamanhoeaformadeduasraquetesdetênis.OquefaziaoCLAQCLAQeraabolademetalqueelejogavadeumaraqueteparaoutraenquantocaminhava.Parada mais próxima do prédio, Edie olhou para George. George não olhou para ela. Faloubaixinho,tentandonãochamaraatençãodoHomemGradeparaapresençadelanassombras.—Corra.Fujadaqui.Elessóqueremamim.OCLAQSHUFCLAQseacelerou.—OK—cochichouEdie.—Ésócorrer.E ela desapareceu de novo na sombra do arco, sem correr, para que o ruído de seus pés nãochamasseaatenção.GeorgedeuumaolhadelaparaoFuzileironotopodeseuplinto.—Vocênãopoderia...?OFuzileironãosemexeu.Georgedecidiuqueaquelenãoeraomomentodetentarpersuadirumaestátuaasemoverseelanãoestavamostrandoqualquersinaldequefossecapaz.Assim,deuumgiro com os calcanhares e explodiu numa corrida para o leste. Começou a pensar que já tinhacorridotantonaquelascalçadascruéisqueseuspésjáestavammachucadosedoloridos.Depoisdedezpassos,acabouesquecendodadoresócorreu.OHomemGradeaumentouavelocidade,maselenão tinhasidoconstruídoparacorrer.OCLAQSHUF CLAQ aumentou de ritmo e depois parou abruptamente. George percebeu, mas continuoucorrendo.Atrás dele, o Homem Grade jogou a bola no ar e levantou a grade da mão direita como umjogador de tênis se preparando para um saque. Quando a grade-raquete acertou a bola, umachuva de faíscas de metal batendo emmetal se espalhou e oCLANG foi tão alto que desta vezGeorgesevirouparaver,eaindabemqueofez,porqueissoprovavelmentesalvousuaperna.Ele viu a bola vindo na direção de seu tornozelo e levantou o pé num reflexo.Não levantou osuficiente,porqueabolaraspouasoladeseusapatoe,naquelavelocidade,aforçadoarranhãofoi suficiente para arrancar parte do solado de borracha de seu sapato e fazê-lo cair. Georgeconseguiu suavizar a queda com amão no chão,mas ainda assim bateu na calçada de cimentodurocomforçasuficienteparalhetirarofôlegoporuminstante,esuafacedireitabateunochãocomtantaforçaqueadorfezseusdentestrincarem.Oimpactoeapontadadedoreliminaramaomesmotempoomedoeoardeseuspulmões,enoseulugarveioaquelesentimentonegroepegajoso,tãofortequeelesentiuseugostonalíngua.Atrásdele,abolacontinuousuatrajetóriaedepoiscomeçouavirarnumacurvalenta.George se levantou comdificuldade e olhou para oHomemGrade no fimda rua.Agora ele játinha se acostumado com o fato de que o trânsito modesto da madrugada não notavaabsolutamentenadadoquesepassavanasuaLondres.Limpouabocaeficouolhandoparaaestátuaaunssessentametrosnacalçadacobertadelixo.OHomemGradeolhoudevoltaparaele,cadaolhopiscandoemritmodiferente.Porummomento,pareceu como um duelo de caubóis em um filme de faroeste, daqueles que seu pai tentouinutilmente fazê-logostar tanto comoele.George cuspiuno chão, esperandover sangue.Nada.

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Sóogostoamargo.— Vamos ver se você dá sorte da próxima vez—murmurou, tentando decidir para que ladocorrer.FicoualiviadodeverqueoHomemGradenãotinhaoutrabolaparaatirarnele.Algumacoisaofezficarparado,esperandoparaveroqueoestigmafaria.O que ele não tinha notado é que a bola havia terminado sua curva e voltava como umbumeranguerefazendosuatrajetória.OHomemGrade levantouumbraçoe sorriu,umsorriso forade focoque seespalhoupelo seurostoempartesdesconexas.Eracomoseeleestivesseacenando,oufazendoumasaudação.ParaGeorge,ogestotinhaumtomdezombaria.Elelevantouobraçoparaimitá-loemexeuosdedosemumacenodeadeus.—Éissoaí.Atémais...Pornão terolhosnanuca,Georgenão tinhacomosaberqueoHomemGrade levantaraobraçonoar,comoumjogadordebeisebolcomsualuva,parapegarabolaquevoltavaemsuadireçãocasoelanãoacertasseoalvo,queeraacabeçadeGeorge,éclaro.Pornãoterolhosnanuca,aúltimacoisaquepassariapelasuamenteeraquehaviadoisquilosdemetalgirandonumabola.Pornãoterolhosnanuca,eporqueELApodiaveroqueestavavindoportrásdele,Ediedeuumpassoparafrente,revelando-sedesuarelativasegurançanasombradoarco,egritoucomoumalouca.—George!Atrásdevocê!Abaixe!Ele se abaixou semusar seu cérebro, apenas a adrenalina tomando a decisão por ele. Sentiu ozunidonoarquandoabolapassoupertodeseuouvidoesquerdoeviuoHomemGradesesacudirdecepcionadoquandoabolasechocouemumCLANGnagradequeeletinhalevantadonoar,comoaluvadeumjogador.George se endireitou e correu em ziguezague, tentando ser um alvo ambulante, procurando umbeco para se esconder, suas omoplatas cocando em antecipação da próxima rebatida. Nadaaconteceu e ele virou rápido emumvão entre dois prédios, batendona paredede umdeles aocalcularmalsuacurva.Sorriualiviado.Issoinstantesantesdeouvir:—NÃO!AvozdeEdie.—GEEOOORGE!Eleaouviragritarantes,masjamaiscomtantopavornavoz,pavormisturadocomdor.Ogritoodeixouparalisado.OHomemGrade tinhaagarradoEdie.No instanteemqueelaapareceuparaavisarGeorge,umsegmento da cabeça do HomemGrade girou para o lado, com o olho direito na direção dela,enquantoseuladoesquerdodorostocontinuouolhandoparaoladodaruaondeestavaGeorge.Ele a viu e depois foi atrás dela. Edie correu para as sombras embaixo do arco e se viu numbeco sem saída. Quando se virou, ele estava bloqueando sua passagem. O Homem Grade searrastouparaafrente,batendolevementeasgradesumanaoutranumaimitaçãogrotescadeumhomembatendopalmas.

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Edienãotinhaparaondefugir,e,quandotentoupassarporbaixodeseubraço,umadasvarasdemetalquepareciamatarsuaspartesseesticouparaforaeapegoupelagargantacomoumalinhadevaral.Elaperdeuoequilíbrioecaiuparatrás.Tudoficoubranco,depoisescuro,quandosuacabeçabateunochão.Eladeveterdesmaiadoporapenasuminstante,masquandoabriuosolhosdenovojáestavadepéesemovendo.Aotentarusarseuspés,percebeuqueeleschutavamoar,ea razãoporquesuacabeçadoía tantoeraqueeleacarregavapelacabeça,segurando-aentreasgrades—nãocomforçasuficienteparaesmagá-la,mascomfirmezaparamantê-lanoar.Asmãos dela seguraramas grades emum reflexodo seu instinto de sobrevivência, seus pequenosdedos se entrelaçando no metal para aliviar um pouco da pressão do peso de seu corpo nacabeçaenopescoço.Eleacarregavacomoumabonecadepanoeseucorposebalançavadeumlado para o outro acompanhando o movimento do seu caminhar. Edie chutava com seuscalcanhares.Quandoelealcançouarua,apertouaindamaisesuacabeçarealmentepareceuqueeraespremidanumaprensa.Foiporissoqueelagritou,emboranãosedessecontadisso.George ainda estava paralisado no beco estreito. Seu coração batia num ritmo como se fossepulardoseupeitoecontinuarcorrendosozinho.Eleolhouparaobeco.Erasemsaída.Olhouaoredorprocurandoumacalhaemquepudessesubirecontinuarcorrendo.Imediatamentedetestouasimesmopelopensamento.Ediegritoudenovo.Maisperto.Elesedetestouaindamaisporterpensadoemabandoná-la.Porissovoltouparaarua.OHomemGradeestavacaminhandonasuadireção.Ediebalançavacomoobadalodeumsino,penduradaentreasgrades.Georgenãotinhaidéiadoquefazer.—Ponhaelanochão!—elegritou.OHomemGrade continuou andando.Na hora emque o viu,Edie fechou a boca bem apertado.Nãoiagritarnafrentedele.Apenasaslágrimastraiçoeirasqueinsistiamemcairdeseusolhosadenunciavamagora.—Olheaqui—disseGeorge.—Ponhaelanochão.Nãoéelaquevocêquer!As sobrancelhas doHomemGrade se arquearam: primeiro uma, depois a outra. Seu sorriso separtiuemduasmetadeseemnenhumadasduaserabonito.Sacudiuacabeçadeumladoparaooutro,comummovimentodedançarobóticamalensaiada.Abriuabocaparadizeralgumacoisae os sons de sua voz eram barulhos indecifráveis, vindos de uma boca dividida em porçõesdiferentes.AvozprofundaedesconexanãosoavacomoqualquerlínguaqueGeorgejáouvira.Oque saía de seus lábios era como os sons de um italiano commuita raiva tentando gritarmaisaltodoqueumescocêsbêbadocomabocacheiadedobradiças.—NONVOGLIOLASSIEWANYOUSTRONZOWEEBASTURT.—Vocêestámachucandoela.PORFAVOR!—gritouGeorge.A cabeça domonstro balançou, os dentes se arreganhando, os olhos rolando de prazer. E issoGeorgenãoagüentou,mastambémnãopodiafugirporqueEdienãoestavamaisgritandoporeleou por qualquer coisa. Estava sim pondo toda a sua energia em se pendurar nas grades e nãodeixar o Homem Grade torcer seu pescoço por engano. Talvez até pudesse ter corrido se osolhosdelanãotivessemsefixadonosseuscomoosfaróisdeumtrator.

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Assim,elecorreuechutouoHomemGrade,elogoqueficouaoalcancedele,oestigmadeuumarebatidaqueomandouvoandopelacalçada.Edie tentousedesvencilharparaescapar,masoHomemGradeaagarrou.George sepôsdepénovamente.—Deixe.Ela.Empaz!Porfavor!O Homem Grade deu uma risada e levantou Edie acima de sua cabeça, e tanto Edie quantoGeorge sabiam que sua intenção era torcer o pescoço dela ou atirá-la contra a calçada. Damesmaforma,sabiamquenãohavianadaqueelepudessefazer.—Corra,George!Corra!—gritouela,aspalavrassaindoroucasdesuagarganta.—Não!—gritouGeorgedevolta.E duas coisas aconteceram aomesmo tempo.Um pássaro preto saiu das sombras e olhou paraGeorge,depoisparaoHomemGrade.DepoispousounoombrodoHomemGradeebateuobico,fazendocomqueoHomemGraderissecruelmenteesecontorcesse.EntãoGeorge ouviu um som que já era conhecido.O baque de botas com solado de tachas nocimento.Eraosomdebotasdoexércitopisandonochão.Porummomentoapenas,ocoraçãodasduascriançasbateumais forteao imaginarque fosseoArtilheiro são e salvo. Ouviram, porém, uma voz desconhecida, fina e ácida com sotaqueCOCKNEYcortaroarcomoumalâminaafiada.—Ponhaameninanochão,suapilhadeescóriadeumamáfundiçãodirigidaporalemães.OFuzileirodemetalparouatrásdoHomemGrade,ofuzilapontadocomabaionetalongaprontapara entrar nas costas dele. Ele era um pouco mais leve do que o Artilheiro, mas o queixoexpressavaamesmaatitudedeteimosiaeresistência.— CHEYIRPROBBIEIGNOTOPILEATOLIERYIRSEL! — cuspiu o Homem Grade de sua boca de peçasdesconexas. E não se moveu um centímetro, embora o pássaro tivesse voado para um lado eagoraobservassedeumpontomaisseguro.—Oueuvouestripá-locomoaumpeixe.Opássarobateuobico.OHomemGradecomeçouasemover,masoFuzileirofoimaisrápidoemaisdecisivo.Comumexplosivo“AH!”,eledeuumpuloparafrenteeenfiouabaionetanovãodacolunadoHomemGrade, entreos segmentosde suascostas.Faíscas seacenderamnapontadabaionetaenquantoeleaenfiavaatéocabo,comofaíscassesoltandodeummoedor.OHomemGradesecontraiu.SoltouEdie.Nomomentoemqueelatocouochão,Georgecorreueapuxouparaaparede,sentindoobraçodelatremendodechoquenasuamão.Os dois ficaram olhando as duas estátuas ligadas pela baioneta enfiada nas costas do HomemGrade.OFuzileiroseguravaabaionetafirmemente,mas,pelaexpressãodeesforçonoseurosto,epelotremordeseubraço,semcontarostendõesretesadosnoseupescoço,davaparaverqueeleestavalutandocontraosesforçosdoHomemGradedeviraralâmina.—Pare.Volteparao seuplinto.Ouacabocomvocê. Jáestáquasenahoradaviradadodiaemesmoumestigmacomovocênãoétãoidiotaassim...—resmungouoFuzileiro.O Homem Grade rosnou. E depois fez uma coisa horrível consigo mesmo. Com uma série deruídoscortantes,elecomeçouasevirarnabaioneta,poucoapouco,comoumCuboMágicoemforma humana. Primeiro uma parte da cabeça girou e fixou um olho no Fuzileiro, depois uma

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partedoombrogirouparatrás.Daífoiotopodacabeça,eentãoascanelaseassimpordiante.Ecomumacontorçãofinal,asduaspartesdopeitogiraramemdireçõesopostasdecadaladodabaionetaempalada,eoHomemGradeficoudefrenteparaoFuzileiro.—Caramba!—disse o Fuzileiro, com ar de quemnão se impressionou.—Mas tu é feio quedói.OHomemGradeergueuasgradesgrossasemformadeelipseemcadamãoeelascomeçaramagirar, cada vez mais rápido, como um par de moedores em ângulo. Depois aproximou-as doFuzileiro.Opássarobateuseubico,incentivando.—Entãoéassim.Aescolhafoisua—disseoFuzileiroseretraindoumpouco.BLAMBLAMBLAM.EleatirounocorpodoHomemGrade.Ocoicedaarmafezabaionetasesoltareeledeuumpassoparatrás.OHomemGradenãosetransformouempócomooPterodáctilo.Elecaiuparatrásecomeçouasedesintegrar.AcabeçarosnouparaoFuzileiro.BLAM.Acabeçaparoudesemovere todasaspartescaíramnumapilhadelatãoemespirais,comoosrestos demetal que saemde um tornomecânico.Elas se contorciam emumnó comominhocasbrilhantes.Enrolavam-seesedesenrolavamcadavezmaisapertadoaténãohavermaisnadanacalçadaalémdocheirodemetalqueimadoeaformadeumhomemchamuscadanapedra.OFuzileirodescansouocabodaarmanacalçadaeolhouparaochamusco, respirando ligeiro.EdieeGeorgetambémolharam.Opássarotambém.Portermuitomaisexperiêncianessascoisasdo que os outros, ele pensou rápido e decidiu que era hora de ir embora. Abriu as asassilenciosamenteedeuumsaltoparaoar.OsolhosdoFuzileiroperceberamomovimento.Suamãosemoveucomoumrelâmpago.UmCLIQUEe ele desencaixou a baioneta.UmZUM, seguido por umTOC e umSQUAQsimultâneos,quandoeleatirouafacadotamanhodeumaespadacomforçaevelocidadepelochão.O Corvo ficou preso na parede do prédio, com a lâmina atravessada na sua asa. Não sentiunenhumador,apenasirritação.— Não, não vai mesmo — disse o Fuzileiro, enquanto rapidamente recarregava as balas nopentedeseufuzilatravésdaculatraabertaetrancavaoferrolhocomamuniçãopronta.— SQUAQ? — disse o Corvo, tentando parecer amigo, bonzinho e fofinho, o que se torna umgrandeproblemaseanaturezaresolveulhedarpenasoleosasepintá-lasdeumpretobásicodevilãodahistória.—Podeesquecer—disseoFuzileiroe...BLAM.DespedaçouoCorvonumachuvadepenasquepoderiam ser a matéria-prima de um bom espanador se o seu gosto pendesse para o góticofunesto.OFuzileiropegouabaionetaejogouofuzilporcimadoombro.Olhouaoredor,certificando-sedequeocaminhoestavalivreantesdeolharparaGeorgeeEdie.—Obrigado—disseGeorge.—Agradeça aoArtilheiro e ao velhoDicionário— disse o Fuzileiro. Sua voz não soava tãoácidaagoraquefalavamaisbaixo,eseutomtinhaumlevechiadodeseveridade.

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—OArtilheiroestábem?Vocêoviu?—perguntouGeorge,animando-se.MasoFuzileironegoucomacabeçacomumaconvicçãoquefezsuaanimaçãoevaporarporinteironuminstante.—Não.Peloqueele escreveu, imaginoquenãohámuitapossibilidadedequalquerumdenósvê-lonovamente.Nãocomoumcuspidoqueanda.Achoqueele jáera.Elemandouumbilhete.Através de um pombo. Para todos nós.Dizendo que ele estava liquidado. E pedindo para queficássemosdeolhoemvocês.—Oh—disseGeorge,comumnónagarganta.—Foi—confirmouoFuzileiro,efezumapausa.—Eleeraumcompanheirodaqueles,nãoera?Antes que George pudesse responder, ou talvez porque ele notara que George ainda estavaabaladodemaisparaisso,oFuzileirovoltousuaatençãoparaEdie.—Elaestábem?—perguntouele.George viu que Edie ainda tremia. Seu rosto, que sempre fora pálido, agora parecia quasetranslúcido.Os olhos dela estava escancarados,mas as pupilas escuras haviam se encolhido eestavamdotamanhodeumponto.—Edie?Elaouviuavozdelecomoseestivessebemdistante.Eramuitodifícilvirarsuacabeçaequaseimpossívelseconcentraremolharparaele.—Vocêestábem?Edie apalpou as próprias orelhas. Ficou quase surpresa de que ainda estivessem presentes egrudadasnasuacabeça.Seupescoçodoíademaiseelaomassageou.—Apostoquesuacabeçaestádoendoportersidoespremidaporaquelatostadeira.—Estoulegal.Mas ela não estava. E sabia bem disso. Ele também. Mas aquele não era o momento paracomeçar a discutir só para que ela teimasse e piorasse as coisas. George também não tinhaenergiaparaumadiscussão.Eaenergiaqueelaaindatinhapareciaestarsendotodausadaparamantê-ladepé.Eledecidiuficardeolhonela.Ediepoderiadesmaiaraqualquermomento.OFuzileiroapenasbalançouacabeça.—Boamenina.Muito bem.Agora vocês precisam sair da rua rapidinho.Têm alguma idéia deumlugarparaondeir?Osdoisnegaramcomacabeça.OFuzileiroolhouparaoseurelógio.Franziuatesta.—OK. Sigam-me. Bem depressa. Sei de um lugar onde vocês podem achar refúgio.Não sei oque vocês fizeram, só sei que irritar aquele pássaro não foi uma boa idéia.Melhor a gente iremboradaqui.Georgeolhouparaaspenasqueesvoaçavamnocéunoturno.—Masvocênãoomandouparaoinfernoemmigalhas?—perguntouele.—O inferno estámuitomais perto do que você pensa— resmungou o soldado.—Por isso émelhorcomeçaraandar.Pôsofuzilnoombrousandoacorreia.—Vocêsnãovãoquererestarporaquiquandoelevoltar.

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APORTAIMPOSSÍVELAIGREJADESAINTDUNSTAN’S-IN-THE-WESTficaaonortedaruaFleet.Elaé,eeraissoqueestavafazendo George virar-se e olhar nervosamente para o Temple Bar, a igreja mais ao oeste docentrodeLondres,muitopróximadadivisa.Éumaigrejanotávelporváriasrazões,eumadelaséasuaporta,paraaqualoFuzileiroagoraapontava.Eraumaportaperfeitamentenormal,compainéisemestilogeorgiano,emumelegantemarcodepedra.Oquea fazianotáveleraqueelaficava no meio de uma parede lisa, do lado da igreja embaixo de seu próprio pórtico comfrontãotriangular,semprobabilidadedeseralcançada.Era vigiada por dois homens fortes e barbudos, de pé de cada lado, nus da cintura para cima,cobertos apenas com peles de animais enroladas nos quadris. Eles seguravam um bastão numadas mãos, e a outra ficava virada para cima ao lado do quadril. Por nenhuma razão emparticular, ou talvez fossem suas barbas, George se lembrou de seu professor de geografia naescola, embora suspeitasse que eles deveriam representarHércules.No entanto, não sabia porque havia dois deles, nem tinha energia sobrando para especular.Acima da porta havia doissinos pendurados, e George deduziu que eles batiam nos sinos quando o relógio mandava. Orelógiosesalientavaemângulosretossobreaparedelisaembaixodopórtico.—Vocêsficarãosegurosalidentro,comaquelesdoisvigiandoaporta—disseoFuzileiro.—Masnãopodemossubiratéela—Georgepronunciouoóbvio.—Éimpossível.—Claroqueé.ÉaPortaImpossível.Porissoésegura—disseoFuzileiro.JuntouasmãosemconchasobreabocaegritouparaosdoisHércules.—Ei,vocês!O que segurava o bastão com a mão direita fez um movimento, como se acordasse de umdevaneio.Esticouopescoçoeseinclinouparabaixo.Umaenxurradadepalavrascomummontedeconsoantesemuitopoucasvogaissooupelomeiodasuabarba.—Oque ele está dizendo?—perguntouGeorge.Edie ainda não estava realmente ali, emborasuatremedeirativesseparado.—Nãofaçoidéia—disseoFuzileiro.—Étudogregoparamim...Ele sorriu para os Hércules. Apontou para George e Edie, levantou o polegar, bateu no seurelógioevirou-separairembora.—Cincominutosparaaviradadodia.Precisovoltarparaomeuplinto.Fiquembonzinhos,massenãoconseguirem,entãoboasorte!Edizendoisso,desapareceu,asbotascomtachosecoandonarua,indonadireçãodeHolborn.Edie o acompanhou comosolhos.Sentiu suas forçasminguando.Quasenão conseguia ficar depé.Sentiu-sedormente.Eagora,maisumavez,sentiuoabandonoaovê-losumirnaesquina.—Edie—disseGeorge.—Edie!Vocênãovaiquererperderisso.Ela se virou, e através de sua dormência veio o reconhecimento de um rangido.Quando olhoupara cima, para a parede lisa, percebeu que as sombras estavam todas no lugar errado. Elasestavam erradas porque da última vez que olhara não havia qualquer sombra na parede lisa,

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impossíveldesubir,àfrentedeles,eagorahaviaumasombraemziguezaguequecrescia.Através da dormência que a envolvia, Edie percebeu que as sombras eram criadas por pedrasquesesalientavamdaparede,formandoumasériededegraus.Os dois olharam simultaneamente para o topo dos degraus quando ouviram um estalo.Um dosHércules tinha estalado os dedos e os chamava, enquanto o outro vigiava o céu escuro, comobastãoapostos.—Eledissequeéseguro—disseGeorge,semsoarinteiramenteconvencido.Ediefezumúltimoesforçoeabriuozíperdeseucasaco, revelandoovidrodomar.Estavaalisembrilho,semaviso,seguro.ElapassouporGeorgeeseadiantoupelosdegraus.Eleesperouuminstanteeaseguiu.UmdosHérculesaajudounoúltimodegraunafrentedaPortaImpossíveledeuumempurrãopara a porta se abrir, sempronunciar umapalavra.Sorriupara encorajar amenina.Elaverificouseubolsoedeuumpassoparadentrodopórtico,passandopelobatente.GeorgesubiunoúltimodegrausemajudaesorriuparaoHérculesqueseguravaaporta.—Hum.Obrigado—disseele.OHérculesdeuumsorrisodeconstrangimentoearrumouseusaiotedepeledeanimal.Pareceuquedissealgumacoisa,masGeorgenãotinhacerteza.Eleretornouummeiosorrisoe,hesitante,seguiuEdie.Uma vez lá dentro, os dois se viraram e olharam para a porta em tempo de ver o Hérculestrancando-adevagar, comosenãoquisesseassustá-los.Ele fezumgestoparaquedormissemepronuncioumaisummontãodeconsoantes,fazendomímicasdecalmacomamão.—Eledizqueaquiestamosseguros.Euacho—disseGeorge.Com um último gesto e um sorriso, a porta foi fechada com um baque final. O ar na sala foisugadoumpouco,comoseoambientetivessesidolacrado.—Esperoquevocêtenharazão—disseEdie.Osdoisolharamaoredor.Haviailuminaçãovindadeumalâmpadafracacobertadeteiasfixadanaparedeacimadaporta,suficienteapenasparaformarsombrasquerealçavamoquenãopodiaservisto.Eraumasalaestranha.Omecanismodorelógio,queimpulsionavaosHérculesdooutroladodaporta a bater nos sinos, preenchia o centro do espaço. Havia vigas, contrapesos, pêndulos edentesdeengrenagens.Todaamaquinariajogavasombrasangulosasparaosladosdasala,ondehavia caixas, cestos e apoios para hinários de espinhas quebradas apodrecendo contra asparedes.Asalademaquinariaobviamentetambémerausadacomodepósito.Edie passou por baixo de uma roda de engrenagem gigante e abriu um cesto. Estava cheio delamparinas.Abriuoseguinte.Estavacheiodebatinasesobrepelizesdecoroinhas.Tiroualgunsdocestoe simplesmente se ajeitoudentrodele, cobrindo-secomalgumasdasbatinas, e ali fezsuapequenacama.—Edie—perguntouGeorge.—Oqueestáfazendo?—Dormindo—murmurouela.—Precisodormir.Suamãoprocurouovidrodomarnobolsoeeladeuumaúltimaolhada.—Tudoseguro.Podedormiragora.George tentou se lembrar o que era que se devia fazer com alguém em choque. Ou seria

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concussão?Talvez ela tivesse uma concussão.Arrependeu-se de não ter prestadomais atençãoàsaulasdeprimeirossocorrosnaescola.Porquedormirtalvezfosseapiorcoisaparaelafazer.—Edie,nãoseisevocêdeveria...Elaabriuumolho.—Cale-se.—Não,não.Euquerodizervocêpodeestaremchoqueeeu...—George.Caleaboca...Eelecalou.Oúnicosomqueouviufoio tique-taquepesadodomecanismodorelógionomeiodasala.Ediesentou-se.—...temmaisalguémaqui.Georgesentiuagotafriadomedodescendoporsuasvértebras.Olhouaoredordasala,atravésdas formas esquisitas da maquinaria, para as sombras, e se concentrou nelas. Havia muitassombrasnasalaparaqueelepudessesesentiràvontade.—Comovocêsabe?—perguntoubaixinho.—Ouvi.Georgeespioupelasaladenovo.Nenhumadassombras tinha formahumana,emboraamaioriadelasfossedetamanhosuficienteparaesconderváriaspessoas.Decidiupegarumalamparinadedentrodacesta.—Fiqueaqui.Seguroualamparinapelaalça,prontoparausá-lacomoumbastão.—Temalguémaqui?Nenhumaresposta.—George—disseEdie.—Tudo bem—mentiu ele, enquanto se preparava para fazer uma revista nos cantos da sala.Caminhou pelos quatro cantos no sentido dos ponteiros do relógio.Depois revistou o teto e otopodamaquinaria.Usouuma trave demetal como apoio e subiu para dar umaolhada.Achouapenaspoeiraecocôdepombo.—Nãotemninguémaqui—disseele,aliviado.—Edie?Nãoouviuresposta.Pulouparaochãoecorreuatéocesto.Edie tinha adormecido. O vidro do mar ainda estava apertado em sua mão fechada, querepousava embaixo de uma face. Ele pensou se não deveria acordá-la, mas decidiu que adeixariadormir,porqueprovavelmentenãoeraumacoisaruim.Alémdomais,eletambémtalvezprecisassedeumcochilo.George se sentou no chão com as costas apoiadas no cesto, abraçando seu casaco e desejandoque não estivesse tão frio.Ainda sentia a umidade do Tâmisa. Tentou lembrar-se daquele diaquente no celeiro, na sua cama de feno com seu pai desenhando o touro,mas a lembrança nãopareciatrazerocalordessavez,esimumafriezaaindamaisprofunda.Suacabeçapendeuparafrenteduasvezesedepoisseinclinoudevez.Por algum tempo tudo o que se ouvia era o tique-taque do mecanismo do relógio, o trânsitodistanteláforaearespiraçãocompassadadeduascriançasdormindo.

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Havia,porém,algomais,umaespéciedecontrapontoaoritmodorelógio,quaseimperceptível,tãobaixinhoquepraticamentenãosepercebia.Georgeabriuosolhos.Nãomoveuumdedo.—Edie—murmurou.Tentoucutucarocestosemsemovermuito.—Edie!Não houve resposta, nemmovimento no cesto atrás dele. Edie continuou dormindo, o vidro domaraindaperfeitamenteprotegidonamãofechadasobsuaface,sembrilhoeseguro.—Umclique.Estououvindoalgo.— ALGUÉM — disse uma voz de um canto coberto de sombras ao lado de George. O cantosombreado que ele tinha revistado cuidadosamente e achado vazio.—ALGUÉM, ou melhor,EU.Por favor,medesculpe.Sem intençãodeassustar.Apresentar-me, talvez?Nãodesejomalparavocê.Asombrasemoveucomsacolejoslentosefoiserevelandonumaformahumana,umhomem.Eleestirou a mão, aberta com a palma para frente, como se estivesse espantando até mesmo umpensamentodequeelePUDESSEindicarmáintenção.Aoutramãoficouestiradaaoseuladoesemovimentava constantemente, passando contas em um longo laço de cordão entre os dedos e opolegar,comoseelecontassealgumacoisa.Ele retinia quando semovia e, quando surgiuna luz tênue,Georgeviuqueo tinido era porqueeleestavacobertoderelógios,chavesdedarcorda,ferramentasderelojoeiroepequenas latascomóleo,tudopenduradoporcordõesantigospresosaseucasaco.PareciamaisumaárvoredeNatal humana. O casaco era na verdade uma casaca à moda antiga, com remendos e tãodesbotadaquenãosepodiadistinguirseeraverdeoupreta,ouondeterminavamosremendosecomeçava a casaca original. A costura dos remendos tinha pontos regulares e aprimorados,claramenteotrabalhodeumperfeccionista.Seu rosto, ao ser revelado aos poucos pela luz escassa da única lâmpada, parecia maisdesgastadodoquevelho,edefatoeramuitomaisjovemdoqueaparentavaserquandoseolhavacommais proximidade e atenção. Era então um antigo rosto jovem, um rosto quemantivera ostraçosjovenspormuitosemuitosanos.Seuscabelos,amarradosemumrabichopresocomumafita roxa puída, não eramde fato grisalhos comopareciam ser,mas apenas, como suas roupas,cobertos por umapoeira fina. Sua testa era alta e o nariz delgado, ambos protuberandode seurostocomoemdesafio.Descansandono topode seunariz pontudohavia umpar de óculos de joalheiro, com lentes deaumentopresasnumaarmaçãoprontaaseencaixarsobreaslentesnormais,queeramprofundaeestranhamenteazuis.Issolheproporcionavaumaaparênciaperturbadoradeumhomemcegoquepoderiaverseassimescolhesse.Ao redor do pescoço ele usava um cachecol cinza de lã enrolado várias vezes, com as pontasenfiadas dentro da casaca de botões duplos, ligados por três correntes de relógio. Suas calçascombinavam com a cor preta ou verde da casaca,mas retinham a sugestão de riscas, além devestígiosdemuitosemuitosreparosprecisos.— Tinha um nome. Muito tempo atrás. Não mais conhecido agora. Conhecido agora como oContador.Prazeremconhecer.Desculpeotranstorno.ETCETERA.Ele então deu um clique, batendo o salto de uma bota contra o outro, inclinou a cabeça emreverênciaeestirouamãoquenãoseguravaascontas,seapresentando.—Vocênãoestavaaíquandoeurevisteiocantoumminutoatrás—disseGeorge,desconfiado,

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sem tomar amãooferecida, e espiou rápidoparao cesto.Edie aindadormia eovidrodomarnãoavisavasobreperigoalgum.—Foi.Minuto atrás você dormindo.Revistoumeu canto horas atrás. Sem erro.Certeza disso.Tempoémeunegócio,comovê.Elefalavaemfrasescurtas, frasesdesprovidasdepronomesouverbosquenãoeramrealmentesentenças completas, apenas recortesde informação.Suamãoesquerdanuncaparavade contaras contas do cordão. George se acostumou com o ritmo da contagem das contas como umaespéciedepontuaçãoentreas sentenças.Asmicrofraseserampronunciadasde formaexpressa,paraquenãoseperdesseumsegundo.Georgetentoubanirasonolênciaereavivaramente.OlhouparaoContador.—OK.Horasatrás,então.Vocênãoestavaali.OContadortossiucomoapedirdesculpas.—Sim.Estava.Truqueespantoso.Escondido.Melhor,fizvocênãomever.Denovo,perdões,ETCETERA.Suamãolivrefaziamovimentosquecirculavameseencaracolavamcomosetentandotraçarumamolagigantedeumrelógio,ou talvezconjurara impressãodeumfardodeETCETERASdo arnasuafrente.Depoisaposicionounovamenteparasertomada.Comsuamentefirmenovidrodomaraindaopaco,George,hesitante,tomouamãooferecida.Oapertodemãofoifirme.—EusouGeorge.—George.Nomebom.Rapazrobusto,semdúvida.Vivocêtomandocontamenina.Coisacertaafazer.Obviamenteabalada.— Ela tomou um susto— disse George, de repente tomando as dores de Edie, ressentindo asugestãodequeelahaviadesmaiadodefraqueza.—Elaéforte.—Claro,comcerteza.Umafagulha,vejo.Nuncahouveumafagulhafraca.Durascomoaspedrasquelêem.Nãoquisofender.—Err.Tudobem.DerepenteelesesentouàfrentedeGeorge,dobrandoecruzandoaspernascomoumamáquinabemazeitada.Baixouavoz.—Melhornãoacordarmenina.Emchoquejá.Quandomevir?Camaradaforadocomum?Agotad’águatalvez?ETCETERA.Entende,sim?—Sim—disseGeorge.—Bomrapaz.Querchocolate,certeza?Criançassemprequerem.Elesorriuconvidativo.Georgesacudiuacabeçaedisfarçouumcalafrio.Oventofriovinhadasfrestasdaporta,quepodiaserImpossível,masnãoeracalafetada.—Hum,não.Chocolatenão.OContadormostrou-sedecepcionado.OlhouGeorgedeperto.Mesmoassimaindanãoperto osuficiente,porqueacaboubaixandoas lentesde aumentoa fimdeesmiuçar a inspeção.Depoisencostou-se e começou a desenrolar seu cachecol. Era um cachecol muito longo, e ao serdesenrolado ficou claro que também era um cachecol muito largo. Quando ele tirava a última

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volta do pescoço sobre a cabeça, o cachecol enganchou nos óculos e os arrancou do rosto,derrubando-osnochão.OContadorabaixouacabeçaporreflexo,aomesmotempoolhandodesoslaioeseesquivando.Apalpouochãobuscandoosóculos,umolhocerrado,ooutroprocurando.—Oquehádeerradocomseuolho?—perguntouGeorge.—Nada— respondeuoContador, fazendooolho aberto sorrir.E eraverdade.Semosóculossinistros, George ficou surpreso de ver que o olho tinha uma cor verde-clara simpática compontinhoscastanhos.Eraumolhotransparente,generoso,emborasuapalidezlhedesseumardedesbotado ou, damesmamaneira que suas feições, surrado pelo tempo.Ao ver o rosto com oolho não escondido pelas lentes escuras, ele decidiu que aquele não era um rosto carrancudo,erasimumrostoquepoderiaatéproduzirumrisodevezemquando.—Ooutroolho—disseGeorge.—Ah,ooutroassustador.Perturbarvocê.Melhorescondê-loatrásdisso.E enfiou a armação atrás das orelhas e escondeu seus olhos sob as lentes azuis novamente.Georgenotoupelamaneiracomoasrugasemseurostoserelaxaramqueelehaviaabertooolho“assustador”atrásdaslentesimpenetráveis.—Aqui. Deixe cachorro ver coelho. Meio-coelho, quer dizer — disse sorrindo o Contador,ajeitando as lentes sobre o olho normal. Tirou as lentes azuis de cima das normais. O efeitomudoudeumhomemsinistrousandoóculosescurosànoiteparaumapessoamaisnormalusandouma venda escura sobre um olho. Seu rosto mudou suas proporções de acordo e ficou quasealegre.ElepiscouparaGeorgeelhepassouocachecol.—Tome.Porfavor.Espantarfrioincomum.Comoumfavor,ETCETERA.Entãoenfiouamãonobolsoeremexeuprocurandoalgo.—Semproblemacomochocolate.Certezatenhoalgoaqui...E tirou metade de uma barra de chocolate meticulosamente reembrulhada em seu invólucrodourado.Estirou-aparaGeorgecomumgestodeincentivo.—Meuprazer.Bomparavocê.Reanimatalvez.Otantoquequiser.George deuumamordida no chocolate e imediatamente sentiu que estava faminto.Tentou fazercom que o gosto durasse, sentindo prazer na sensação agridoce em sua língua, deixando-oderreterumpouquinhoantesdemastigá-lo.—Semquerersergrosseiro,masoquevocêé?Umcuspido?—Cuspido?Não.Nemestigma,fiquetranqüilo.FicouobservandoGeorgecomercomumolhobondoso.Pareciaestarprocurandopalavrascurtasparaexplicaracoisacomplexaqueeleera.—Soumarcado.UmdosInfaustos.Porassimdizer.Ele sorriu como se soubessequeprovavelmente estaria confundindoGeorge aindamais.Oquedefatoestava.—OsInfaustos?—perguntouGeorge,comabocacheiadechocolate.—Osmalditos.Homensesquecidos.Excomungados.—Nãoseioque“excomungado”querdizer—disseGeorge,sedesculpando.

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— Ah, palavra antiga. Desculpe. Excomungados são os que carregam uma maldição.Amaldiçoados a vagar na terra além do tempo natural dos anos. Não faz sentido aos seusouvidos,semdúvida.Detritosdecrençasantigas.Fragmentosdemuitasreligiõesesquecidas.ETCETERA.—Vocêfoiamaldiçoado?Avagarpelaterraparasempre?—SouoContador.Minhamaldição?Ficardeolhonotempo.Evice-versa,comovocêvê.Nãoseassuste,peço...Ele levantoua lenteazuldoolhoassustador.Georgenão tevecomonãorecuar.Oolhonãoeraumolho,eraumrelógio.Tinhadoisponteirosregularesparaashoraseosminutos,masoefeitoabsurdo eperturbador sedavaporque elepulsava entreobranco evermelho, acompanhandooritmodoponteirodossegundos.OContadorescondeunovamenteoseuolho-relógioatrásdalenteazul.—Umolhonotempoeumtemponoolho.Minhamarca.Ele sorriu se desculpando. George olhou de relance para Edie. Ela continuava dormindo. Elelimpouagarganta.—Vocêpoderiamedizeroqueestáacontecendocomigo?—Termosgerais?Certamente.EncontrouumaLondresdoavesso.—Londresdoavesso?— Lugar com cuspidos, estigmas,ETCETERA. Invisível aos habitantes da sua Londres.Mas suaLondresapenasumaLondres.Umademuitas.EoquevocêvêcomoLondres?MeramenteapenasoutroavessodeLondres.Maiscoisasnocéuenaterra,Horácio.Poissim.Emaiscéuseterras.Maisinfernostambém.Algunsdeslizam.Unscaminham.Outroscaem.Entreosmundos,éisso.George lembrou de Pequena Tragédia dizendo que havia mais “aquis” aqui do que elesimaginavam.Suacabeçacomeçouarodar.—Issoécomo...magia,oualgumacoisaassim?O Contador se mostrou levemente chocado com a idéia. Negou com a cabeça e os objetospenduradosneletilintaramcomoparaenfatizar.—Magianão.Magiatolice.Tudofeitocomespelhos.—Maseupossocaminharentreosmundos?Querodizer,éissoqueestáacontecendocomigo?—Não. Você caiu numa Londres do avesso. Não caminhou. Foi empurrado.Alguma coisa emvocê.Dáparacheirar.Jácheiroupára-raiosdepoisderelâmpago?Mesmocheiro.Metalquenteeeletricidadeestática.Podeserdom,podesermaldição.Provavelmenteosdois.—Souamaldiçoado?VocêquerdizerquesouumdosInfaustos?—Amaldiçoadotalvezmuitoforte.Desculpe.Masmarcado,certamente.Georgesentiuumapontadanamãoeaescondeunobolso.—Porqueeuseriaamaldiçoado?OContadordeudeombros.—Fezcoisasruins?—Não.Não.Nãotãoruinsparamerecerumamaldição,querodizer.

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—Algoruim?Geralmentepessoassabemporqueamaldiçoadas.Comecepelapior.Esigadaí.—Nãotemumacoisapior—disseGeorgecategórico.—Nãodessamaneira.Nãofiznada...Calou-se.Aquela sensação negra subindo pela garganta.OContador olhou para ele com o seuolhobondosoebalançouacabeça.—Melhorfalardoqueguardar.Ounão.Nãodesejointrometer.Umsegredoéumsegredo...Maspodeajudar.—Eudissealgo.Algoruim.—Improvávelamaldiçoadoporpalavrão.Emborafosseadequado.Rá.—Nãofoipalavrão.Georgesesentiuderepentesempoderfalarourespirar.Oqueoimpediaeraumaimensabolhadearqueficouemperradanoseupeitoequeeramuitograndeparaescapar.— Não me diga. Coisa sua. Impertinente. Somente tempo meu negócio. Falo com outrosraramente,esqueçomimmesmo.Imponhomuito.Milperdões.ETCETERA.Ofereceu a George o último pedaço de chocolate. George queria mas negou. O Contadorembrulhou-odevoltaeentregouaele.—Paramenina.Fagulha.Fomequandoacordar,semdúvida.George pegou o pedaço e pôs no bolso do casaco. De algum modo, depois de tudo que elepassou,aquelacortesiaeraumpoucodifícildecompreender.O Contador sorriu e olhou para longe, dando a George espaço e quietude. Era um silênciosurpreendentementeamistoso.

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OFRIODOINFERNOSEVOCÊCAMINHARDENTRODEUMRIACHOpedregosodemontanha,eseacharnumaparteemqueosseixos foramencurraladosporumacerta combinaçãodo fluxoda água corrente edo relevonoleito do riacho, você pode ver às vezes um buraco perfeitamente redondo feito por um dosseixos—umseixopresonoredemoinhodaágua—parasempregirandonofundodoburaco.Oseixo, embora preso em um só lugar, faz um buraco na pedra porque nunca pára de semovimentar.O Caminhante, um homem condenado ao fluxo de eventos em sua própria vida, também nuncapáradesemovimentaresóencontraumcertoalívioparaasuamaldiçãoemespaçoscircularesrestritos emque arrasta os pés enquanto cochila, naquele estadoque é omais próximoqueumhomemamaldiçoadoacaminharparasemprealcançaemvezdeumsonopropriamentedito.SuapredileçãoerapelocírculorebaixadodepedradapraçadaBiblioteca,ao ladodaestaçãoSaintPancras, e era seuhábito ficar rodandoemseucírculo limitadoporhorasnaquietudedanoite.Sóquedestaveznãohaviaquietude.Suasvoltas ao redordoespaçoeramacompanhadasporumbarulhoque soavacomoo rangidodemetalcontrapedra,conformepassavaalâminadesualongafacaaolongodobancocurvadoque o rodeava.Elemantinha os olhos fechados, porém a cada volta completada no círculo eleparava,virava-seeretomavaseuspassospelomesmocaminho,fazendocomquealâminafosseafiadaemambososladosigualmente.Orgulhava-sedofiodafaca.Haviadesfrutadodeumlongotempoparaaperfeiçoarestemétododeamolar.Eeraumtrabalhoqueelefaziaquasedormindo.Nesse momento, ele ouviu umCRAMP e umCRI e algo atingiu o chão em ângulo fechado,deslizando até o círculo à sua frente. Por ter se acostumado com o barulho da cidade, elecontinuou com os olhos fechados e acabou tropeçando nomontinho de gelo que havia surgido.Seujoelhotocouochãoeeleabriuosolhos,aturdido.OCaminhante fezumacaretadedore raivae seergueuparavoltaracaminhar.Deuumavoltaaoredordomontinhoeochutoucomobicodabota,levantandoumanuvemdecristaisdegelo.Omontinhogirouemseupróprioeixoededentroveioumleveetremido“CRA?”.OCaminhanterodeouacoisamaisduasvezesedepoisbateudelevenela,agoracomosaltodabota.Ocasulodegelo sequebroueumCorvocomaparênciamuito tristonha saiudele,obicobatendodefrio.OCaminhanteenfiouaadagadevoltanabainha.—Emqueinfernovocêsemeteu?—perguntouele,comumsorrisocortantequenãodurounada.OCorvo sacudiu o resto de neve entre suas penas e voou para o ombro dele, se acomodandoperto de seu pescoço, encontrando o ninho perfeito no capuz volumoso de seu pulôver. Nãoprecisou responder àperguntaporque: a) eraumapergunta retórica; eb) eraumgracejoqueoCaminhantejamaissecansavadeusarnumasituaçãocomoaquela.

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Ele tomou sua posição dentro do capuz, fechou os olhos e tentou parar a tremedeira. NãoprecisavadoCaminhantepeloseusensodehumor.Necessitava-opeloseucalor.

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CONTANDOAOTEMPOGEORGE E O CONTADOR ficaram sentados sob a luz tênue observando Edie dormir. E por fim,talvez por ser aquele um silêncio amistoso, George começou a preenchê-lo com palavrasinesperadas.—Faleiumacoisaruimparaomeupai.—Ah—disseoContador.—Maioriadosfilhos.Cedooutarde.—Uma coisaREALMENTEruim.Euestava furiosoedissecoisasqueeram ruinsementirosas sópara machucá-lo. E o machuquei. Ele disse que eu não queria dizer aquilo. E eu disse quequeria.Ecuspinele.Querdizer,euerapequeno,tinhaunsdezanos...eelefoiemboranocarro.Eestasforam...Ele parou porque de repente pareceu de extrema importância examinar a parede com a tintadescascandoà suadireita.Oúnico somque seouvia era a respiraçãodeEdie, alémdo cliquedascontasdoContadormarcandoossegundos.—Éque ele saiu com lágrimasnosolhos e eunãopedi desculpas oudisse adeus...Nãodissenada.Ele limpou o cuspe do rosto e disse que eu não queria dizer aquilo e que estava apenastentandomachucá-lo porque eu estava sofrendo. E eu jurei que era o que eu quis dizer e quesempreseriaeelemeolhoudeumjeitoestranhocomoeununcaviantes.Acheiqueeleia...masemvezdisso,elefoiembora.Eleparouparaexaminarmelhoraparedeelimparonariz.—Nãoseiporqueestoulhecontandoisso.OContadorsorriu.—Porquevocêpode.Todomundopodecontaraotempo.—Como?—Brincadeira.Jogodepalavras.Amenizaaatmosfera.Mauhábito.Milperdões.—Oh—disseGeorge.—Podecontartudoaotempo.Nadamudará.Otempocontinuapassandosemcessar.— Sei — disse George. E aí contou ao Contador como seu pai saiu dirigindo e nunca maisvoltou porque alguém tambémnão estava prestando atenção e bateu contra o carro dele no diaseguinte e ele morreu na hora e não havia então mais nada a dizer a não ser um pedido dedesculpasqueeraapenassemsentidoevaziocomoumcaixão,porqueagoranãohavianinguémparaouvir.Eporqueeleconseguiuultrapassarapiorcoisa,orestodaspalavrassaíramfáceisefluidas.E elas vinham tão rápidas que ele suspeitava que estivesse balbuciando coisas sem coerêncianuma grande ansiedade, porém cada vez que olhava para o olho do Contador para ver suareação, o olho apenas sorria amigável e compreensivo. George contou tudo sobre o queaconteceu desde o Museu de História Natural, as palavras das esfinges, a necessidade deencontraroCoraçãodePedraeosacrifícioquedeveriaserfeito.ContousobreoFradePretoe

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seumapadepalavrasque indicavacomoencontrarocoraçãodapedra.ContousobreaEscadaem Espiral que levava à Memória do Fogo, onde a memória estava encarcerada, e como eledeveriapegarofogoparaqueelemostrasseocaminhoparaoCoraçãodePedra.Derepente,Georgesesentiutotalmenteexaustoesempalavras.Fechouentãoosolhosedesejouestaremcasa,nasuacama,ondetudopareciareal.OtoquedamãodoContadornoseuombroofezacordarcomumsobressalto.Elenãotinhapercebidoquehaviacochilado.—Quantotempodormi?—Muitotempoetalveznãotemposuficiente.Nãofazmal.Tempoparapensar.—Nãoestavapensando.Estavadormindo.George começou a entrar em pânico ao perceber que estava perdendo tempo quando deveriaestarmatutandosobreasolução.—Nãofazmal.Dormirbom.Pensarsefazporsisó.AgorasobreoFradePreto.Suasdúvidas?Nenhuma razão para desconfiança em si. Nenhuma no meu ver, pelo menos. Agora certo nãoconfiar em ninguém. Sua situação? Cautela essencial. Leve tudo com pouco de desconfiança.Mimmesmotambém.Poucodedesconfiançacomigo.Masseinteressar,tenhoidéias.Georgeseendireitou.—Claroquemeinteressa!Paramimétudoumabsurdo.— Memória do fogo? Coração de Pedra? Escada em Espiral? Muitas coisas em Londres.Agulhasempalheiro.—Eusei.—Muitascoisas.MassomenteumFogo.SomenteumGrandeFogo.OolhofitouGeorge,incentivando-o.GeorgelembroudeLondresedeincêndios;depoispensounaBlitz,foimaislongeelembroudasliçõesdehistória,edescobriu.—OIncêndiodeLondres?—Semdúvida.Evidênciacorroborativa?MemóriadoFogo?MemorialaoFogo?George forçou sua própria memória, atiçando as brasas mornas de lições passadas.A classehavia preparado um mapa sobre o Grande Incêndio. Homens de peruca derrubando casas demadeira queimadas e a peste bubônica que havia acontecido antes do Incêndio.Depois, ele selembroudeterrecortadoumasilhuetaempapelãodeumacoluna...—OMonumento!—disseele.— Exatamente.MonumentoMemorial do Incêndio. E dentro doMonumento? Escada, circular.Espiralada,pode-sedizer.Levaaotopo.Enotopo?Urna.UrnadoFogo.—Issoésimplesmentebrilhante—disseGeorge,comumsorriso.Começouaselevantar.OContadorgentilmenteopuxoudevoltaaoseulugar.—Isso—disseele—nãoficaabertoaopúbliconomeiodanoite.Durma.Horaruimparaestarnasruas.Altashorasdanoite.VagamosServosdaPedra.—ServosdaPedra?—Excomungadosdodestino,comomimmesmoaqui.Excomungadopelopactofeitocomapedra

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sangrenta.Mimmesmo livredeservidãoparaninguémalémdemeuprópriodestino.Guardarotempo como castigo.Não escravo como os Servos da Pedra.Cuidado com eles. Estão de olhoemvocê.Agoradurma.Demanhãpodesairpelaoutraporta.Pelaigreja.Vaiestaraberta.Usadapelosrussosortodoxos.Acordamcedo.Melhorquedespertador.Elebateunascontascomumsorrisoeinclinouacabeçasobreelas.OjeitocomoeleinclinavaacabeçalembrouGeorgedoArtilheiro.EalembrançadoArtilheirolevouaoutraperguntanasuamente.—Desculpe,tenhomaisumaquestão.Quandotudocomeçou,quandooArtilheiromesalvou,eledisseumacoisa.—Semdúvida.Fatoimpressionante.Dignodecomentário.—Eledissequeeunãofaziaidéiadaquiloaquehaviadadoinício.—Homemdeperspicácia.—Não—disseGeorge.—Querodizer,sim,maselenãosabianadasobreisso,sobreaPedradoCoração, oCoração de Pedra ou o que quer que seja. Estava falando sobre outra coisa, euacho.Algumacoisasobreoscuspidoseosestigmas...OContadorbalançouacabeçapreocupado.— Cuspidos, estigmas. Hostilidade. Paz frágil sempre. Equilíbrio da desconfiança.Artilheiromataquatroestigmas.Equilíbrioacaba.Coisasforadoequilíbrio.Desafiolançado.—Oquequerdizer?—Não sei. Não totalmente.Mas já aconteceu antes.Guerra entre cuspidos e estigmas sempreuma possibilidade. Sempre nas sombras. Por isso algumas estátuas caminham e outras não.Asquenãocaminhamsão...—Estátuasmortas?—Exatamente.Vítimasdeguerraspassadas.Estigmas,vejabem,vazios,destituídosdeespírito.Sentem falta, precisam preencher o vácuo. Apetites, inveja, monstros interioresET CETERA.Odeiam estátuas com espíritos.Odeiam significado.Querem isso também, sempre odiando nãopoderpossuir.Masnãosepreocupe.Seguerradecuspidoscomeçar,nãohácomodeter.—Masvocêestádizendoqueeupossoestarcomeçandoumaguerra?—Apenasum“posso”.Nuncadevedormir sepreocupandocomum“posso”.Especialmente seestiver forado seualcance.Concentrarnoquepode fazer.Compreende?Agoradurma.Ficodeolho.Não havia qualquer possibilidade deGeorge dormir agora, com suamente inundada com todaessa nova informação. Ele virou de um lado, virou de outro, e, enquanto tentava entender, oscírculos nos seus pensamentos ficavam se repetindo e voltavam aos seus receios e lembrançascomtantafreqüência,edeformatãoinescapável,queacabousetornandoregularetranqüilo...eissofoioqueolevouaadormecer.

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AESTÁTUAMORTAOHOMEMGRADEOLHAVAFIXAMENTEparaooutroladodarua.Umamãolongaeossudaacenounafrente de seus olhos. Ele não se moveu. A mão se espalmou no vão que era o seu peito epressionou contra o bronze opaco, como se à procura de uma batida de coração ou algo queindicasse uma centelha vital.Amão desistiu e cerrou-se em um punho insolente, dando toquescomodedonatestademetal.OCorvopousouno topodacabeçadoHomemGrade.Fezuma linha finadecocôquedeslizousobreorostoimóvel,deixandoumariscabrancaverticalsobreoinerteolhoesquerdo.—Exatamente.Nãoháninguémmaisaqui,apenasummontedemetal—disseoCaminhante.—Ao contrário do senhor. Um pássaro de penas inigualáveis, por assim dizer. Não levou muitotempoparavocêserecuperar,nãoémesmo?HaviaváriascoisasqueoCorvoconsideravainadequadasnoCaminhante.Nuncaficarparadoofazia um poleiro para lá de ideal, por exemplo. Sem falar no hábito de fazer comentáriosirônicossobresuahabilidadederenascer.Aspessoasnãofaziampiadassobrefênices,pensouoCorvo. Ele guardou o comentário para uso futuro em uma briga de ressentimento e deu umasacudidela nas penas. Elas não davammais a sensação de novas. Na verdade, sentia como sefossemmaisvelhasdoqueaterraquecobreochão.— Então — disse o Caminhante, tendo a indelicadeza de se mostrar apressado e impacienteenquanto falava com um pássaro cujos longos devaneios eram calculados em anos-luz. —Precisamosdealgoparafarejá-lo.Algocomapetiteporcrianças.Estavacomeçandoachoverforte.Ele levantouagoladocasaco,automaticamenteesfregandoapedrapenduradaao redordopescoço, tirouo retalhodacamisetade seubolsoepôsna frentedoCorvo.—ChegouahoradoMinotauro.

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UMDIAPARAREPARARGEORGEACORDOUDESUPETÃO.Edieestavaparadanasuafrente.Pareciamelhor.Eestavamesmo,porqueocutucavacomgosto.—Ei,vocêestavaroncando!Eleolhouaoredordasala.Levantou-seerevistoucadacanto.—Elefoiembora—disseele,decepcionado.—Quemfoiembora?—perguntouela,olhandodesconfiada.GeorgeentãocontouaelasobreoContadoreoqueeledisse.NãomencionounadasobreoqueeleprópriocontaraaoContador,porquenão tinhanadaavercomela,e,alémdisso,por já tercontadoaalguém,eleachavaqueeraoqueimportava.— Como ele era, esse Contador?— perguntou ela. George o descreveu, começando pela suaaparênciaepeloseuolhoderelógio,terminandocomseuavisosobreosServosdaPedra.—Eelesnãosãoestigmas?Nemcuspidos?— Não — respondeu ele, consciente do fato de que Edie o levaria às fronteiras de seuconhecimento.—Entãooquesão?—Excomungados.—Peloquedisseéoqueparecem.— Quer dizer amaldiçoados. Foram amaldiçoados a caminhar pela terra até desfazer o quefizeramequelhescausouoinfortúnioemprimeirolugar.EosServosdaPedratêm...—ContasaacertarcomaPedra.—É—disseele,sentindo-seafundandocadavezmaisnaáguaaoredordeseuspés.—E você tem contas a acertar com a Pedra?— perguntou Edie com cuidado, esfregando seuvidro do mar inconscientemente entre seus dedos. Estava se lembrando do aviso da meninaafogada,quegritou“Elenãoéoqueparece”.Sentiuumchoquegeladodedúvida.PensouqueoavisoerasobreoFradePreto.MaseseameninaestavaavisandosobreGeorge?— Sim. Porém não como eles — disse George, os pés tentando em vão se libertardesesperadamentedaságuasprofundasdesuaignorância.—“Porémnãocomoeles”—elarepetiu.—Entãomedigacomoéquevocêsabedisso?—O Contador me disse que eles são pessoas que fizeram um pacto com a Pedra. Eu não fizpactonenhum.Eu,bem,euaviolei.—Eviolá-laédiferente?—Aparentementeé.Ediesentiuasaladiminuiraoseuredor.Queriarespirararpuro,longedapoeiraedaescuridão,longe daquela sensação agora ligeiramente incômoda de estar presa em um lugar fechado comGeorge.

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—Comovamos sair daqui?Quero dizer, vai ser umpoucomais difícil descer daqui emplenaluzdodia...George de repente se conscientizou do barulho da cidade do outro lado da porta. O ruído dotrânsitojáeraalucinanteeelepercebeucomumchoquequehaviadormidodenovo,edessavezbemmaisdoqueantes.— Podemos sair pela igreja— disse ele, se apressando na direção da porta que o Contadormostrou.—Poraqui.Ele girou amaçaneta. Edie o acompanhou cautelosamente. Do fundo da escada estreita veio osomdecânticosnumalínguaquenãoeraoinglês.—Oqueéisso?—sussurrouela.—Russo—explicouele.—Aigrejaéusadaagorapelosrussosortodoxos,segundooContador.—Oquesão“ortodoxos”?—perguntouEdie,seguindo-opelaescada.—Nãosei—disseGeorge,seescondendoatrásdeumacolunanomeiodaigreja.—Infelizes,pelojeitoquecantam.Apartedafrentedaigrejaestavacheiadepessoas,amaioriavelhinhos,comunspoucosjovens,todosviradosparaoaltar.Estavamtodosdepé,eoquecantavamnãoerabemumhino,eramaiscomogemidos rítmicos dedor e apologia, lideradospor umpadre anciãode barba, quevestiaumlongorobenegro.SeusolhoseramosúnicosquepoderiamverGeorgeeEdiepassaremportrás da coluna na direção da porta da rua. Nomomento em que ele percebeu alguma coisa, aportajásefechavaatrásdeles.Pararamnosdegrauseolharamparaacidadequecontinuavaasemovimentaràfrentedeles.Ovazio relativo das ruas noturnas deu lugar a uma multidão de pedestres, e onde os ônibusnoturnosvaziosapostavamcorridascomostáxisemruassemgente,táxischeiosagoramoviam-secentímetroporcentímetronumengarrafamentopioradopelachuvaincessante.— Maravilha! — resmungou Edie irritada, olhando para a cortina de água que caía do céucinzentoeapertandoocasacocontrasi.—Issoémesmomaravilhoso.—Não,Edie—disseGeorge.—ÉmaravilhosoSIM.Lembra-sedoqueoArtilheirodisse?Asgárgulas não voam na chuva! Isso significa que não precisamos nos preocupar com eles nosavistandodecima.AchuvaÉmaravilhosa.Vamos.—Vamosaonde?—perguntouela,não semovendodocanto secona frentedaporta.—Estoucomfome.—ParaoMonumento—explicouele,excitado.—É.Masnãosabemosquemonumentoé—disseela,pensandoquemesmoseelesoubesse,nãoera um monumento o queELA precisava, e tentando decidir se seumedo recente de George sedissipariaporsisócasonãofosseoquepareciaser.—OMonumento—explicouele.—OContadormeajudouadecifrar.EentãocontouaelacomoaspistasforamescondidasnoqueoFradePretodissera.—NãoseisedevemosconfiarnoFrade—disseela.—Eutambémnão—admitiuGeorge.—MasoContadordissequepareciafazersentido.EelenãoviurazãoparaqueoFradenãonosajudasse.—EporquevocêconfianoContador?

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Porque ele tinha olhos bondosos, pensou George. Porque ele compreendeu quando eu conteisobremeupai.—Porque elemedisseparanão confiarnele.Disseparanão confiar emninguém,nemmesmonele,anãoserquefosseumcuspidosemumapontinhadeestigma.Ediesacudiuacabeça,comoseissofosseacoisamaisidiotaqueelaouviunaqueledia.—Podetersidoumblefeduplo,ounão?—Não—disseGeorgecomfirmeza.—Aqui.Elepegouopedaçodechocolatedeseubolsoeentregouaela.—Eledeixouissoparavocê.Dissequevocêestariafamintaquandoacordasse.Eleéeste tipodepessoa.—Otipoquedádocesparameninasingênuas—disseela,pegandoochocolatemesmoassim.—Nãocreioquevocêsejaingênua—retrucouele.—Podeapostarquenão—disseela,opedaçodechocolatedesaparecendodentrodesuaboca.—Jánãosouingênuahámuito,masmuitotempo.— Venha, então, se quiser — disse ele, olhando para o relógio acima deles. Estava ficandotarde.OsHérculesolhavamdiretoparaarua,osolhosfixose imóveiscomosenãohouvessemsemovidoumcentímetrodesdeodiaemqueoescultorosesculpiunapedraviva.—Temmaischocolate?—pediuelacomabocacheiadecacau.—Não—disseGeorge,começandoacorrerparaumaruaestreita.—Oh—resmugouEdiedecepcionada.Elenãosevirouparaverseelaoestavaseguindo.Depoisdealgunsmetros,ouviuavozdeEdiepeloseuouvidodireito.—Porqueestamosindonessadireção?Estámaismolhadodoquenasruasmaislargas.—Ninguémbotaestigmasnosfundosdeprédiosouemvielas—explicouele.—Bempensado—disseelademávontade.—FoimaisumaidéiadoseuamigoContador?—Não.Essaeudeduzipormimmesmo.

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AMIGOSAUSENTESO DICIONÁRIO OBSERVAVA OS advogados que tinham assuntos matinais no tribunal. Sentiu ospombospousandoemsuaperucaesedivertiucomoruídoquefaziamaoseposicionarem.—Perdão,Sr.Johnson.Umapergunta.Cordial,podeconfiar.Eleolhouparabaixo.OContadorolhouparaele.—Devomeapresentar,talvez?—Não é necessário. Você deve ser o Contador. Não percomuito nessa posição, meu senhor.Nós talvez não tenhamos tido muita razão para conversar, mas o vejo entrando e saindo,checandoosrelógiosecontandosempararassuascontas.—Ah, sua fama lhe precede. Realizações magníficas. Homem de muitas palavras,ET CETERA.Mimmesmo,poucas.Porémdesejoconhecimento.—Abuscadeconhecimentoéumadascoisasquenoselevamacimadobovino ruminante,meusenhor. Istoeahabilidadedeapreciarumcachimboeumaboaxícaradechá.Sevocênão temmalícia, então não faço objeção em conhecê-lo e iluminá-lo o quantominha tênue lâmpada desaberpossalançarsualuznomiasmatenebrosoquenoscircunda.OContadorcurvou-seemumasériedereverênciascurtas.—Eternamenteagradecido.Dívidadegratidão.Assuntomenino.—Menino?Oquehácomomenino?Quemenino?—Meninoincomum.Andacommenina.Meninafagulha.ODicionárioteveumarrepioesesacudiu.—Oh,aquelemenino.Oquehácomele?—Conheci.Noitepassada.Rapazdecente.Emapuros.ProcuraoCoraçãodePedra.—Eumbalaiode encrencas ele causana suabusca.Por acaso sabedeumcuspido conhecidocomoArtilheiro?OContadorsesacudiuparacimaeparabaixo,comumaexcitaçãocordial.—Certamente.Definitivamente.Bem,não.Masgostariade.Gostariadeentrar emcontatocomele.Contarsobreomovimentodomeninoedamenina.Precisamdeajuda,creio.—OArtilheiromesmopodeserqueestejaalémdeajuda,paradarou receber.Saiudaquisemcondiçõesdealcançarseuplintoantesdaviradadodia,sintodizer.OContadorparoudesecurvaredespencoucomoumamarionetequetemsuascordascortadas.—Mas.Oh,sei,sei.Tragédia.Gostariade...Infortúnio.Gostariadefazeralgoporeles.Uma pausa. Um resmungo. E o som de um homem rasgando de má vontade uma folha de umdicionáriomuitoantigo.OContadorolhouparacima.ODicionáriolimpouagargantacomumruídoexplosivo.—OArtilheiro tem amigos, é claro. Podeme incluir como umdeles. Porém outros amigos de

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umanaturezamaismarcial são, a essa altura dos eventos, osmais indicados.Umapalavra aosventos,porassimdizer.OSenhortemumacanetaoulápis,poracaso?Eleseguravaumapequenafolhadepapel.—Talvezpossamosnosaliaremrecrutarumpombo?

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EMLINHARETA(OUCOMOVOAUMCORVO)OCORVOBATEUASASesubiuacimadasolidezdevidrobrilhante,nadireçãonoroeste,atravésdachuva.Abaixodeleseencontravaumconjuntomistodeedifíciosaleatoriamentecombinadossemumindícioderimaourazão,alémdoacidentehistóricoedoestragodotempo,deumincêndioedebombardeios aéreos.Ali se encontravam também telhadospontiagudos e agulhas rasgandoocéu a alturas consideradas impensáveis na época de suas construções, mas que agora erammenosprezadasportorresdeescritórioseblocosgigantescosdeapartamentosqueosrodeavam.O Corvo aproveitou uma corrente de ar de um dos sistemas de ventilação de um prédio eespiraloumaisalto.Enquantofaziaisso,olhouparatrás,paraomantodeedifíciosdacidadeàssuascostas,ondehaviamenostorresemaisblocos,mantoestecortadopeloriosinuoso,contidopelosaterrosemambasasmargens.OCorvo se lembrou do rio vivo, de suas curvas agoramais agudas emenos profundas do quequandooconheceu,umaserpentesemovendoparaointeriordaterranumritmomuitolentoparaser notado pela humanidade. Ele agora estava contido entre cimento emuro, domado, feito umcanal, longe de ser um rio vivo.OCorvo se lembrou do tempo em que elemoviamoinhos degrãos.Agoraaúnicacoisaquegiravaàsuamargemeraaquelaroda-gigantenoSouthBankondeaspessoaspagavamparaadmiraroqueoCorvodesfrutavadegraçageraçãoatrásdegeração.OCorvocontinuouseucurso,oretalhodacamisetadeGeorgeesvoaçandonoseubico.Àfrentedele, à distância, viu a partemais densa de prédios iluminados de dentro para fora contra asnuvensmetálicas.OCorvosemediucontraasilhuetabulbosadeumdeles,quepareciamaisumpepinogiganteesticadogrosseiramenteemevidência,ecomeçouadescer.Emlinharetaentreeleeopepino,umquilômetroàfrente,ficavaolimitelestedeumgigantescocomplexo de cimento e vidro, como uma fortalezamontada em forma de pirâmides quadradas,comoziguratesetorresfinas.Dentrodestacidadelafuturísticahaviafontesepasseiosemníveisdiferentes.Emuitoconcreto.OCorvosabiaquesobasuperfície,nocantosuldestecomplexo,passavaem tempos remotosomurodaantigacidade.E lembravadequandoapequenina igrejabranca abandonada numa pequena e lisa ilha verde dentro da fortaleza de concreto fora oedifíciomaisaltonaquelaárea.OCorvofezacurvaaoredordeumdosblocospontiagudosedesceubruscamenteatéumcantoesquecido no complexo.Havia uns poucos canteiros de flores elevados, açoitados pela chuva.Na realidadenãoerambemcanteirosde flores.Foramplantadoscomavegetação robustaparaenfrentaroclimadacidade,vegetaçãoquequasecombinavadeigualparaigualcomocinzadospisosdecimento, tantopelacorcomopelafaltadeoriginalidade.Oúnicosinaldeexuberânciaficavaporcontadascavalinhas.O Corvo pousou no chão em frente ao canteiro de cavalinhas e ficou olhando suas pontaspenosasseremaçoitadaspelachuvaepelovento.Acimadelesformava-seumafigurapoderosaecurvada,pretaebrilhantenachuva,comaáguadeslizandosobreseudorsomaciçoelongilíneoerefletindoasluzesaoredor.Eraumafiguradecaracterísticas decididamente másculas; abaixo da cintura, um homem com pernas fortes emusculosasprontasapulardeseupedestalrodeadodecavalinhaseatacardesurpresaqualquer

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transeunte. Sua principal característica era, contudo, a predominância dosmúsculos da cinturaparacima:nãoerammúsculosdeumhomem,esimopoderbrutoemaciçodeumtouroadulto.Osombrossecurvavamsobacabeçadetouroadornadacomchifresagressivoseafiados,etãobem executado foi o trabalho do escultor que o ruído de um touro possesso parecia permear aatmosfera,mesmosejamais—paraumolhocomum—houvessesemovidoourespirado.OCorvopousounoseuombro,soltouoretalhoquecaiunocanteiroàsuafrente,seachegouaoouvidoespetadodobovinoegrasnoualgumacoisa.Acimadeles,astorresdosblocosdeapartamentosdesistiramdesegurarasnuvensdechuvaemumsó lugar e asdeixaramsemoverparaoutraspartesdacidade.Aoqueachuvacessoueumpequenoburacodeazulsurgiunateladenuvensnocéu,oCorvoiniciousuatrajetóriaparaosulmaisumavez.Nocanteiro,atrásdascavalinhas,paraaquelesolhosqueviamoquerealmenteestavaláenãooque não estava, não se via mais um Minotauro. Era apenas um círculo de terra recentementeremexida,ondeumapatahaviacascadoochãoantesdesearrebatarnumafúriaveloz.

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DEPOISDOPUDIMGEORGEEEDIEPASSAVAMporumanovaáreadocentrodeLondres.Eraumlugarondeosedifíciosmodernos se erguiam altos em cada lado das ruas,mas essasmesmas ruas, pelos nomes, pelaestreitezaepeloacasodeseusângulos,denunciavamfazerpartedeumaplantamuitoantigadeLondres. Eles viraram em uma rua levemente aladeirada chamada Pudding Lane, ou a rua doPudim.—NãoseiporquechamamumaruadePudim—resmungouEdie,estreitandoagolaaoredordopescoço.—Era aqui que ficavam as padarias— explicouGeorge, contente de se achar numa parte deLondresqueeleconhecia,pelomenosatravésdasliçõesdehistória.—Foiaquiquecomeçouoincêndio.—Queincêndio?—OGrandeIncêndio.Em1666.Começouemumfornodepadariaporaqui.—Vocêsabededatasefatos?Alémderico,vocêdeveserumgênio.—Nãosourico,Edie.Eestaéumadatafácildeselembrar.Éumcigarroetrêscachimbos.—Éoquê?—perguntouEdie,perplexa.—Éassimqueagenteaprende.O“um”pareceumcigarroeo“seis”écomoumcachimbo.Sabecomoé,cachimbos,fumadosporvelhinhos?—Nãoconheçonenhumvelhinho.Enãoaprendisobreincêndionenhum.—Bom,sevocênãoacreditaemmim,olheali—disseGeorge,virandoàesquerdano fimdaPuddingLane.Umacolunaaltadepedraesticava-seacimadacabeçadeles,dominandoumapequenapraçaqueficava no topo de uma ladeira baixa. George imaginou que ela parecia uma versão menosimponentedaColunadeNelson.Talvez fossepelaalturadosprédiosquea rodeavam,quenãoofereciam oportunidade para se apreciá-la à distância; ou talvez fosse porque o frontãoquadrado em que a coluna foi colocada possuía uma porta no meio, e dentro dela uma luzamarela brilhava. Por isso a colunamais parecia um farol do que uma coluna de triunfo. E éclaro,nãohaviaqualquerfiguratriunfantenotopodacolunadepedracinza.Emvezdisso,haviauma jaula quadrada que beirava suas laterais, pintada em branco e cinza. E dentro desta jaulaincomumhaviaumaurnadouradacomflamasamarelaspetrificadas.Mesmoemumdiacinzentocomoaquele,odouradofaiscavacontraacidadeopacaaoseuredor.EdieopuxoudevoltaparaaPuddingLane.—Oquê?—Ficoucegoderepenteparanãovermaisdragões?—Dragões?—disseele,ansioso.—Notopodoplinto!Ele espiou pelo canto da esquina. E lá estavam. George não havia notado os quatro dragões

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talhadosgrosseiramenteemcadacantodoplinto.Osdentesdavamumaaparênciadesesperada,comosesuaspatasestivessemficandocansadasdeseseguraraoscantoseeles fossemcairdecabeçanochãoaqualquermomento.—Eutenhoquesubiratélá—disseele,olhandoparaachuvafina.—Aindachove.—Elesnãosãogárgulas,George.Achoquearegrade“nãovoarnachuva”sófuncionaparaasgárgulas que têm como função canalizar a água da chuva. Além disso, eles têm um jeito...maldoso.Elatirouseuvidrodomar.Estavaopacoesemvida,mostrandoque,apesardaproximidadeedacaraameaçadora,aquelesdragões,pelomenosporenquanto,nãoconstituíamameaça.—Pode ser que sejam estátuasmortas— disse ele.—OContadorme disse que ummonte deestátuas não semovemmais porque estãomortas.Morreramemguerras entre os cuspidos e osestigmas.Percebendoaarmadilhaquesuabocaestavaarmandoparaelecair,resolveuparar.—Queguerrasentrecuspidoseestigmas?—perguntouEdie.— Isso é história antiga — disse ele rapidamente, querendo mudar de assunto. E analisouminuciosamenteoseurelógiodepulso.—Émelhorcontinuarmos.Nãotenhomuitotempo.Ele não ia contar para ela que, ao fazer oArtilheiro lutar com o Pterodáctilo, ele havia dadoinícioaumaguerraentreoscuspidoseosestigmasquenãoserianadaantiga.—Olhe. Provavelmente não vai ter problema para a gente— disse ele, indicando o vidro domar.Edieenfiouovidrodevoltanobolso.—Rá—foioqueconseguiudizernomomento,maspôstodoosentimentoquepodiademonstrarnaquele“rá”.Os dois ficaram observando os dragões commuita atenção para qualquer sinal de movimentoenquantocaminhavamatéabasedacoluna.—George—disse ela, acenando coma cabeça para umaplaca na pedra do lado esquerdodaporta.AplacaavisavadopreçodobilheteparavisitaroMonumento.Paracriançaseraumalibra.—Nãotemosduaslibras—disseela.—Vocêvaiterdesubirsozinho.Eleolhouparaajaulaacima.—Vouomais rápido que puder.Você fique protegida ali—disseGeorge, apontandopara umprédiomodernodefachadademármoremarromlustroso.Edietremeu.Eletirouseucasaco.—Tome. Ponha isso. Para se aquecer. Vou estar lá dentro, subindo os degraus. Lá dentro nãoestámolhado.Ecomcertezavouficarcomcalorquandochegarláemcima.Ela ficou surpresa com a oferta. Pegou o casaco devagar, mas enfiou seus braços nas mangascomdecisão.—Obrigada.—Denada.—Oquevocêvaifazerseachuvaparareumdessesdragõesnãoestivermortoeacordar?

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Georgedeudeombrosetentoumostrarmaisconfiançadoquesentia,emborasoubesseagoraquetentaresconderascoisasdeEdieerainútil.Seusolhospareciamarrancaraverdadedascoisas.Era isso,oueleestavaficandomeio tontocomtodaacorreriaefaltadesono.Umapontadadefomelheespetouoestômago,maseleignorou.— Tem uma jaula lá em cima. Como uma jaula para tubarões. Sabe como é, aquela que aspessoasusamparanadarcomostubarões.—Eunãonadocomtubarões.Deveseracoisamaischatadomundo,nãoacha?Depoisdeumalongapausa,eledecidiuqueaquelaeraumaperguntaretórica.—Vaidartudocerto.Elasabiaagoraqueo“Vaidar tudocerto”ou“Nãovaiacontecernada”eraoequivalenteparaGeorge ao assovio no escuro, uma maneira de ele lidar com seus nervos e temores. Decidiudeixarpassarporqueeletinhaemprestadoocasacoeofrioestavapassando.George olhou para a coluna de pedra desbotada e para as nuvens também cinzentas queatravessavamocéuacimadela.—Émelhoreuirlogo.Parecequeotempovaimelhoraraqualquermomento.Deuumsoproerespiroufundo,comoummergulhadorsepreparandoparapulardotrampolim.—Agora,comoéqueeudevofazerparaapanharumachamacomtodaessachuva,eunãofaçoamínimaidéia.Bom,éagoraentão.Elesevirouefoiatéaporta,umolhoespiandoosdragõesimóveisaopassarporbaixodeles.—Boasorte.Ediefoiparaseuabrigodooutroladodapraça.Nomeiodocaminho,virou-seeficousurpresade vê-lo parado na porta que levava à escada, olhando para ela com uma expressão estranha.Georgemudou assim que viu que ela estava olhando para ele. No entanto, por um instante dedescuido, ela viu toda a hesitação e o temor sob aquela bravura que ele tinha demonstrado nocaminho. Ele transformou a expressão num sorriso confiante e acenou para ela, antes deempurraraporta.— George! — ela gritou, correndo de volta sob a chuva fina. Para sempre depois ela seperguntouporquefezoquefeznaquelemomento,masabriuozíperdeseucasacoeentregouaeleovidrodomar.—Paralhedarumavisoseascoisasmudarem.Vocêsabe.Elesentiuumnónagarganta.Sabiamuitobemoquantoovidrodomarsignificavaparaela.—Edie...Elaacenouparaeleirecorreuparaoabrigo.—Masnãováperdê-lo.Agoraseapresse.Ele ficouolhandoatéelaalcançaro toldonasaídadoprédio.Depoisenfiouovidronobolso,segurouaportaeentrou.Ládentrohaviaumacatracadeduasviaseumpequenoguichêdoladodireito,ondeumhomemse sentava lendo um jornal e tomando o chá escaldante de uma garrafa térmica. Elemal olhouquandoGeorgepôsamoedaemfrentedajanelinha.Entregouumbilheteeumfolhetoevoltoualerseujornalcomumgrunhidoquesooucomo“Nãoestouparabrincadeiras”.George tossiu, foiparaocentrodoplintoeolhouparacima. Iluminadapelaspoucas lâmpadasem intervalos regulares, uma escada de pedra em espiral levava ao topo da coluna, com seu

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corrimãopintadodepreto emoldurandoo espaço restritode ar comoumaconchade caramujo.Nocentro,aunssetentametros,eleviuoreflexodeumaluzbrancaquevinhadeumaportaquedavaparaajaulaeparaocéu.Apesardaslâmpadas,oespaçodavaaimpressãodeserantigoemuitodistantedacidadeaoredor.Tinhaocheirodistintodepedraseca,apesardachuvaláfora.Georgeolhouparaovidrodomarecomeçouasubir.Subia trêsdegrausdecadavezecontavaenquantosubia.Quandoelealcançouotrigésimodegrau,Ediecomeçavaaficarpreocupadaláfora.Nãoeraumapreocupação específica. Embora com estátuas pulando de prédios e correndo atrás dela,tentando amassar sua cabeça entre duas grades, ela não achava que precisava ser muitoespecífica a respeito de sua preocupação.Na verdade, não era uma preocupação propriamentedita.Eramaiscomoumvazioinsistente,comoquandoumapessoaderepentenotaumaausência.Umavezela teveumadordeouvido,umadordaquelashorríveis, tantoquenão sabia como iacontinuaragüentando.Entãosuamãeleuumahistóriaparaelaeaprimeirahistórialevouaumaoutrahistória.Depoisdeumtempinho,elaacabouesquecendodador,oqueeramuitobom.Sóque todas as histórias chegam a um fim, e aquelas que sua mãe estava contando não eram aexceção da regra. Quando ela parou de ouvir a última história, o mundo real retornou, ela selembroudador,eoouvidovoltoua latejar.Oqueelasentiaagoraeraexatamenteoquesentiunaquele espaço de tempo entre perceber que a história tinha acabado, sabendo que haviaesquecidodador,eacertezaeoconhecimentoabsolutodequeela,ador,estavaparavoltar,edessavezaindamaiscruel.Elaestavasentindoafaltadovidrodomarmaisdoqueachouqueiasentir.Deviaserisso.NãopoderiaestarcomsaudadesdeGeorge,emquemelanãosabia,fezquestãodelembrar,sedeviaconfiarounão.Masentãoporqueelatinhalheentregadoovidrodomarsenãoconfiavanele?Puxouocasaco,ocasacodele,maisapertado.Aofazerisso,sentiuumacoisadura.ProcurounobolsoeachouacabeçaquebradadoDragão.Seusolhosopacosolhavamparaelaeissoafezcolocá-ladevoltanobolsorapidinho,derepentepreocupadaquepudesseacordarosdragõesporalgumprocessoobscuro.Edie desejou ainda mais ter seu vidro do mar. Já o possuía há tanto tempo. Porém só tinharevelado sua função quando ela chegou na cidade—mas isso talvez porque não havia coisascomoestigmasnolitoral,oupelomenosnolugarondeelacresceu.Seulitoralnãoeraafluenteosuficiente nem para ter lixeiras especiais para cocô de cachorro, imagine então estátuas ougárgulas.Uma sombra escura passou entre ela e o céu. Edie ergueu a cabeça por simples reflexo, masrelaxouquandoviuqueeraapenasumpássaro,nãoumdragãoougárgula.Noentanto, logoficou imóvel.Achuvaestavapassando.Defato,nomomentoemquepercebeuque a chuva ia parar, a chuva já tinhaparado.E é claro, porEdie saber oque sabia, ela tinharazão para se alarmar. Porém, a coisa que a deixaria aterrorizada era algo completamentediferente.Eestavaatrásdela.Algumacoisasaindodassombras,comoumaescuridãosetornandovisível.

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ATRÁSDEEDIETUDOFUNCIONAEMCICLOS;seEdienãotivessedadoovidrodomarparaGeorge,elanãoestariaimaginandoolitoraleodiaemquesoubequesuamãenãovoltariamais.Seelativesseovidrodomar, talvezpressentissealgumacoisa.Éclaroque,seela tivesseovidronamão, talvezelefizesseissoporela.Maselanãotinhaeelenãopressentiu,porissoelanãosabiaoqueestavaportrásdesiatéqueumamãocobriusuabocaeaoutraapuxouparaaescuridãodassombrasquerodeavamapraça.George respirava pesado e havia perdido a conta dos degraus. Estava no trezentos e algumacoisa quando alcançou a porta no topo. Enfrentou a brisamolhada e olhou para o céu raivosoque cobria a mistura desordenada de prédios ao seu redor. A escuridão era iluminadaCOMFLASHES traiçoeirosdo solde invernoquecomeçavaa surgirdo seu ladodireito.O rioTâmisapassava surpreendentemente próximo, se alargando liso embaixoda silhueta familiar daTowerBridge para o leste. Quando ele se virou para o norte, notou um agrupamento de prédiosmodernosebrilhantesseesticandoentreblocosdeescritóriosmaisantigosesujos.OprédioemformadepepinosedestacavaacimadeumprédioformadodecanoseaçoqueeraconhecidocomoEdifícioLloyds.Georgeviuumaporçãodeguindastescrescendocomoervasdaninhasentreosprédiosprontoseaqueles em construção. Continuou seu giro na direção oeste até parar e ficar de frente para oconhecidomeioglobodaCatedral deSaintPaul.Teria sidoumavisãoperfeita da cúpula e desuas colunas de apoio se não fosse por um bloco negro que obscurecia a visão no meio docaminho entre oMonumento e a Catedral.A torre negra possuía um risco diagonal distinto demetalprateadoquerefletiaospoucosraiosdesolqueinsistiamemperfurarafaixadenuvens.Quando conseguiu respirar normalmente de novo, ele pensou como pareciam tristes emalqueridostodosaquelestelhados,comoaspartesórfãsdeprédiosqueninguémolhava,anãoserqueestivessememlugaresaltoscomooqueeleestavaagora.Nahoraemquecomeçouaseconscientizaretrazersuamenteparaopresente,percebeuqueaáguaquesopravanabrisavinhadajaulaquerodeavaopasseio,enãodasgotasdachuvaquejánãocaíamais.Olhouparaaurnadouradacomaflamacongeladaacimadele.Opoucodesolquesurgiabateunaurnaeafezbrilharcontraopanodefundodenuvenscinzentas.Umpássarobatendoasasaspousouemcimadela.Ele decidiu que as chamas na urna pareciam mais um cardo dourado ou uma alcachofra. Epensou também que o pássaro não ficaria muito à vontade entre aqueles espetos, dourados ounão.DepoisGeorge lembrou que tinha parado de chover e pensou nos dragões agachados com suascarasraivosas.OlhouparaovidrodeEdie.Estavaopaco,mas aomesmo tempo faziaumzunido, dando à suamãoumavibração leve,maspersistente.Georgeolhouparaacidadeláembaixo.Acimadele,opássarodeuumpuloparalongedacoroadechamaseocupouoarentreosoleovidro.Asombraqueformoupareciapararavibração.Sempensar,elemoveuovidroparaaluz

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fracadosoleelecomeçouavibrardenovo,apenasporuminstante.Logoasombrabateuasassobre o vidro e ficou ali. George o moveu e desta vez a sombra o antecipou e continuoubloqueandoosol.Georgeolhouparaopássaro.Eraumcorvo.Emboraumbico,porsuaanatomiapeculiar,impeçaumpássarodesorrir,Georgeteveadistintaimpressão de que naquela faísca de vida no olho do Corvo estava um desafio, como a dizer“Tentedenovo”.E ele tentou. Fingiu virar para a esquerda, mas pôs o vidro para a direita. O Corvomovimentava-secomele,comoseestivessepresoporcordões.Seusolhospiscavamcomoqueparecia escárnio.George sabia agoraqueCorvoera aquele,porqueamaneira comoele ficavapenduradono ar desafiava as leis básicasda aeronáutica avícola.Lembrou-se exatamenteparaondeoFuzileiroohaviamandadoedeonde,portanto,elehaviaretornado.O Corvo dava a impressão de saber exatamente o que George estava pensando. Parecia quebalançavaacabeçaconcordandoenquantopairavanoar.SaberqueoCorvoestava fazendode tudoparaqueGeorgenãocolocasseovidrocontra a luzdosolodeixouaindamaisdeterminadoavencê-loepôrovidrono sol.Quedificuldade teriaele? Enquanto corria para o canto, o Corvo atravessou o ar entre ele e o raio de sol,acompanhandocomoseestivessesobretrilhos.—Oquevocêquer?—Georgegritouparaoanimal.—CRAC—grasnouele.Commalícia,pensouGeorge.—Vá embora!— gritou, e segurou o vidro esticando o braço. Isso o aproximou da grade dajaula.Emummovimento tão rápido quanto umpensamento, oCorvo subiu no ar, pôs a cabeçaentreasgradesetentouarrancarovidrodesuamão.—Nãovai,não!Georgepulouparatráseseencostounaparededepedradomonumento.Escondeuasmãosatrásdas costas por segurança.OCorvo se pendurou nas grades e ficou virando a cabeça para cá epara lá, como se calculasse quanto tempo George ainda continuaria com aquilo. Suas penaspareciamaindamaisnegrascomosoldiretamenteatrásdele.Pareciaumburaconegronomeiodaclaridade.Georgesentiuumsulconapedraatrásdesuascostas.Teveumaidéia.Enfiouovidroali.Depoisfechouamãocomoseaindao tivessee fingiu irparaaesquerdadenovo,masvirou-separaadireita.Opássaroseguiusuamãocomoseeleaindativesseovidro,mantendoasombra.Georgesevirouomaisrápidoquepôde.Ovidropresonaparederefletiualuz,comoseoraiodeluzfosseseupróprioholofote.Ovidrovibrou,zuniuederepenteacendeu-secomumachamapálidaquerolavanassuasbordascomoumacoroadefogo.—Sim!—gritouGeorge.— CRAC— grasnou o Corvo, o mais próximo de um gritinho de surpresa que um bico podiafazer.Odiscode fogovibrante se sacudiupara foradovãodaparedeepulouparaochãodentrodajaula. O Corvo deu um bote para pegá-lo, mas passou ummetro longe, por causa das grades.Georgeagachou-separapegarovidrodomar.OfogolatejouvorazmenteeGeorgedecidiunãopegá-lo,masseinclinousobreele,olhandoparaovidrocombordasdefogo.

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Nãosabiaoqueesperavaver.Talvezpalavrasescritasemchamas.Ouummapa.Oualgocomoumaboladecristalflamejante.Oqueeleviufoi...nada.Apenasumvidroopacocomumaneldechamasnabeira.Logo as chamas morreram e ele se transformou no que sempre fora... o fundo de uma garrafaquebradaháanos,polidapelomarepelapraia.Georgeficou tãodecepcionadoquequandoaschamasseacabaramele levouamãosempensar—asuamãodacicatriz—parapegá-lo.Se o corte do Dragão tinha causado uma dor impossível de imaginar, esta dor foi ainda pior,porque a outra tinha doído apenas na sua mão. Esta dor começou no seu pulso quando elesegurou o vidro,mas logo espalhou-se da dor da cicatriz na suamão, espiralando ao redor dopulso e serpenteando pelo seu braço. Era como se uma trepadeira espinhosa tivesse crescidocom uma velocidade impressionante, cravando seus espinhos no pulso, subindo pelo seucotovelo e alfinetando a parte superior de seu braço. Porém, em vez de continuarmachucandoseu braço e sua pele, na axila a dor foi para dentro como se a espinhenta trepadeira houvesseusado seus espinhos para aniquilar o seu peito, enrolando-se ao redor de seu coração, seuspulmões e suas vísceras. Ele não conseguia respirar, seu coração batia irregularmente e elesentiuumanáuseacomojamaishaviasentidoantes.Aúnicacoisaqueoimpediadevomitareraadorvisceralquedominavaseuestômago.Então George começou a se sacudir e a tremer quando a mensagem presa no fogo do vidrocomeçouasecomunicarcomele.Sentiuumapequenapausaemtodaadoreotremor,enaqueleinstante traiçoeirodealívioele teveummomentode lucidezparasaberqueeraporaquiloqueEdiedeviapassarquandopressentia.Eelesentiu.Masoquelheveionãofoiopassado,comoparaEdie.OqueoatingiufoioAGORA.Sentiu como se umamão gigante e implacável forçasse sua cabeça a olhar para o vidro. Seusolhos estavam abertos, e ele não conseguia piscá-los, mesmo quando começaram a arder e asecar.Emchoquesdedorenáuseaovidrorevelouumaimagem,depoisoutraemaisoutra.ElaseramavisãodotopodoMonumento.Elepercebeuavistanadireçãoemqueolhava,espalhadanochãodajaula.Era um quadrado estreito de um rio turvo, formado entre duas tiras horizontais de murocimentadodeumprédiodeescritórios,deum lado,edeuma torreeumaagulhadeuma igrejacomumameia-cúpuladooutro.Depois a visão pulou para frente e para os lados e ele estava olhando para o cume de umedifício de escritórios em que uma pérgola de madeira, completamente fora de lugar, cobertacomplantasmoribundas,rodeavaumsistemadeventilaçãoquecuspiavaporparaocéu.Maisumpulodoloridoea lentedavisão fezumZOOM.Eleseachouolhandoparaaparedeemcurva do prédiomais além, uma fachadamoderna de pedra que contrastava com uma linha deprédiosvitorianosaolado.Depois a visão fez outroZOOM, lançando-o para frente, a sobrevoar Londres, e ele viu algumacoisa conhecida: era a base da Torre Negra, aquela enjaulada com listras diagonais em açoprateado.Entãoadoreoapertodiminuíramnahoradoreconhecimento,eeleprecisouseconcentrarparanão vomitar quando o próximo pulo o levou à perspectiva da catedral de Saint Paul, antes de

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descerabruptamenteparaabasedaTorreNegraegiraratépararnumúltimoquadroqueera,elesabia—porqueestavaemolduradaporchamas—oqueeletantoprocurava.APedradeLondres.Sóquenãotinhanadademístico.Nãoparecianadamágico.Nãopareciaterumahistóriaexcepcional.Nemmesmopareciaalgointeressante.PareciaSIMcomoprédiomaissujo,maistriste,maisesquecidodetodaLondres;umprédiosemnemmesmoadignidadedeumadistinçãodesuaépoca.Havia,contudo,algumacoisaaoníveldacalçadaquepulsavacomumaluzfraca,masorestodoprédio era um bloco de escritórios sem vida, negligenciado e abandonado pela falta deinquilinos.George observou o último quadro, tentando controlar seu estômago embrulhado e seu coraçãodescompassado, tentandoentendercomoerapossívelqueofimdoseupesadeloedasuabuscapudesse estar em um lugar que parecia o tipo de prédio onde uma firma de importação eexportaçãodeumpaísdeTerceiroMundoalugariaumasalaporummêsoumenos,antesdeiràfalência,deixandodepagaroalugueloudeesvaziarseuscestosdelixo.

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AMIGOSANTIGOS,TRAIÇÕESNOVASQUANDOAVISÃO FAISCANDOparaGeorge transmitida pelo vidro domar cessou e o disco opacovoltou a ser apenas o fundo de uma garrafa, ele o deixou cair e ajoelhou no chão, apenastentandolembrarcomoeraumarespiraçãonormal.Oalívioquesentiudadorterdesaparecidofoienorme.FoitãoenormequeelenãopercebeuosprimeirospuxõesquandooCorvoconseguiupegarpelobico,atravésdasgrades,apontadeseucadarço.Eraumpássarorobusto,eoque lhefaltavaemtamanhoelecompensavaemforça.Noterceiro puxão,George percebeu e se virou,meio desequilibrado.OCorvo já tinha passado oseupéatravésdasgradeseestavabatendoasasasparatráscomgrandedeterminação.—Ei!—Georgegritou,dandoumpontapénopássarocomsuapernalivre.Opássaropuxou seupéentre asgrades comuma força inesperadae continuoubatendoas asasparatrás.—Ei, pare com isso!—gritouGeorge, tão surpreso coma força impressionante do pássaro ecom sua insistência que quase deu um riso misturado com uma onda de pânico. Histeria, elepensou, enquanto chutava o pássaro de novo.Mas o que aconteceu é que ele apenas acertou agradedemetalsólidaesentiuumadorquenãoeranadaimaginárianopéenotornozelo.O pássaro não deu sinal de notar nada e empurrou sua perna por cima da parede de setentametros, fazendo com que as coisas agora não parecessem mais tão engraçadas ou absurdas.Pareciatambémqueelenãoestavaemperigoverdadeirodecairporcausadasbarrasdemetal,mas agora sua perna estava presa entre elas e suas mãos se seguravam na jaula. Ele puxou apernapendurada,masopássaronãosemoveu.Outracoisasemoveu.Foiseusapato.SeusapatofoipuxadodopéeoCorvoficounoarporuminstantecomosapatopenduradopelobico,maisparecendoumpássaroqueacaboudepegarumaminhocasomenteparadescobrirqueaminhocausavaumsapatode tamanhonormal.OCorvocuspiuocadarçoe lançou-secontraapernadacalça.Quando se ouviu o ruído seco do sapato atingindo a calçada lá embaixo, o Corvo já tinhaagarradoapernadacalçaeaestavapuxandoporcimadaparede.Georgesegurou-senajaulaepuxounadireçãooposta,masopássaropareciadobrarseusesforços.— Você não vai conseguir me empurrar pela jaula! Então me largue!— gritou ele. Sua coxaestavacomeçandoadoerpelaforçacomqueopássaropuxava.Entãoadorcomeçouadiminuirporqueasgradescomeçaramaseabrir.Algumacoisavoouatéasgradesecomeçouaempurrá-las,separando-ascadavezmaiscomumruído penetrante demetal resistindo.A coisa empurrava usando os ganchos nas pontas de suasasas de morcego e assoviava com o esforço que fazia através do cano enferrujado queatravessavaomeiodesuacaradegatoselvagem.Era o gato-gárgula de Saint Pancras, aquele que George vira pela última vez no terraço do

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apartamentodesuamãe.Como o Corvo, ele parecia ter uma força muito desproporcional ao seu tamanho. Grunhia echiava através do cano de água enquanto empurrava e fazia força, e George percebeu que eletalvez tivesse a força necessária para arrancar as grades. Se elefizesse isso, George virariageléiaseespatifandoláembaixodepoisdecairsetentametros.Omonstroempurrouasgradeso suficientepara enfiar suacabeçaentre elas e rosnarpara ele.Instintivamente,Georgeprocurouseproteger.Suamãoagarrouocanosalientedoseurosto,queparecia um cano de espingarda enferrujado, e empurrou tentando afastar a gárgula para longedele.—Váembora!Nãotenhomedodevocê!A gárgula sacudiu a cabeça como um cachorro com um rato entre as mandíbulas, e Georgecontinuousegurandoocanoeoempurrandoparaforadajaula.—Nãotenhomesmo!—elegritou,tentandoconvencerasimesmo.—Éapenasumabica!Umabicahorrorosa,feitaparaassustar,masnãoassustanada!Deitadocomoestava,decostas,eledobrousuapernalivreparadarumchutenacaradagárgula.—Saia daqui, sua bica!Vá embora!— gritouGeorge, enfiando a bota no peito da coisa comtodaasuaforça.George ouviu um ruído de arrastado quando a gárgula foi projetada para fora da jaula.Um deseus ganchos se soltou da grade e ele ficou se balançando no ar por um instante. Georgeaproveitoupara tentar puxar a pernaqueoCorvo segurava,masoCorvoparecia ancorado emumblocodear.Agárgulaentãovoltouaseaproximarcomumavelocidadeassustadoraeferoz.Georgeteveummomento apenas para notar que a boca do monstro estava completamente aberta e guinchandoporque algo havia mudado, e sentiu a razão da mudança nas suas mãos. Um pedaço de metalenferrujado.Georgearrancouocanodabocadomonstroquandolhedeuochute,eissopermitiuque sua boca viesse com todos os dentes livres prontos para abocanhá-lo com ferocidadedobrada.BLAM.Agárgulafoiprojetadaparaumladoporumabalaatiradaládebaixo.BLAM.Asegundabalaafrouxousuasgarrasdagrade.Georgeteveaimpressãodequeeleficouparadonoar,comoumcoioteemumdesenhoanimadoquandoodesertoacabaderepenteeelecomeçaapedalarnomesmolugarsobreumcâniondemilquilômetrosdealtura.A surpresa da gárgula era cômica.A boca, livre do cano, estava aberta em uma reconhecívelexpressãode“Hããã?”.—Adeus,Bica—disseGeorge.BLAM.ABicasefragmentouempoeiraeestilhaços,poeiraquefoisugadaporumredemoinhodeventogirandoaoredordomonumentoedepois foi levadaparacima,paraonoroeste,nadireçãodosgalpõesdetrensdooutroladodaavenidaEuston.OCorvoparoudepuxare,semafrouxarseubicodacalçadeGeorge,olhounadireçãodeonde

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vieramasbalas.GeorgenãosabiacomooFuzileirooencontrara,massabiaquesópoderiaserele.OCorvoolhouparaGeorgedenovo.Davaa sensaçãodeestarmuitodecepcionado, epareceudar de ombros. Então começou a puxar a perna deGeorge comuma fúria inédita.As unhas deGeorgeprocuravamumvãoemqueseagarrarnasplacasdemetaldochão.BLAM.OCorvo foiatingidoegiroucomoumahélicenapontadapernadele.Georgesentiuumalíviobruscoquandoseubicoseabriuparacomentar:—CRAA.—grunhiuoCorvo.BLAM.Opássarovirouumasúbitaboladepenasnegrasoleosas.EGeorge, livre,nãovacilounemuminstanteecorreu.Desceuaescadaemumavelocidadeestonteante.Atravessouacatracacomviolênciaeempurrouaporta,sabendoquesedeparariacomoFuzileiroeEdie,eestavatãoaliviadoeextasiadoquenãopercebeuseusapatonomeiodacalçada.Tropeçouneleedeuumapiruetanoar,terminandoem um baque dolorido na calçada antes de olhar e ver uma silhueta escura recarregando orevólver.NãoeraoFuzileiro.—Melhorolharparaondevai,meu rapaz—disseavozgravequeGeorgepensoununcamaispoderouvirdenovo.—Nãosabeotipodeproblemaqueterácorrendodessejeito.EraoArtilheiro.Edie saiude trásdoArtilheiroe sorriuparaGeorge.Foioprimeiro sorrisoabertoqueeleviuemseurosto.Pareciaqueosolbrilhavadedentrodela.Seus olhos escuros faiscavam de entusiasmo e alívio. Sabia que ele sentia alívio ao ver oArtilheirotambém.Sentiumaisquealívio.Sentiu...—Devagar—disse oArtilheiro quandoGeorge se levantou e se jogoupara ele.OArtilheiropôs suamão enorme na frente eGeorge, que estava a ummilímetro de fazer papel de bobo aoabraçarumhomemtãograndepuramenteporalíviodevê-lodenovo,segurouamão,apertando-aesacudindo-aparacimaeparabaixoemgenuínagratidãoeexcitação.—VocêestáBEM!—eleexplodiu.—Querodizer,vocêestá...OK!— Você também não está mal, pelo que vejo — resmungou o Artilheiro, soltando a mão ecoçandoanucanumademonstraçãodoquepoderiaserconstrangimento.—Vocêestavabrigandocomaquelesdoiscomoninguém.Pelojeitovocêcriouumpoucodearrojo,eudiria.—Osdoismepegaram—admitiuGeorge.—Euestavaapenastentandosalvarminhapele.—Àsvezes tudooquesepodefazeré tentar.Masenquantose tenta,nãosedesiste,e issoéametadedocaminho.Edieestavaexultando.—Eleapareceudonada.Eeupenseiqueeleeraumestigma,masdepoisviqueeraele,eentãoaquele pássaro apareceu e ele estava se preparando para atirar e aí o estigma realmenteapareceu e você estava brigando e ele não conseguiu mirar, mas aíBLAM BLAM BLAM! — elaimitouoArtilheiroatirando.—Foifantástico!

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Georgemediucomosolhosadistânciaentrea jaulano topodoMonumentoeacalçada,edeuumsorrisoparaoArtilheiro.—Aquilofoipontariademais!—Foiboa.—Não,euquerodizer,vocêpoderiatererrado.— Não sou pago para errar — disse o soldado, voltando o revólver ao coldre. — Sou oArtilheiro.OrostodeGeorgedoíadetantoqueelesorria.—Evocênãoestámorto.—Daúltimavezqueolhei,nãoestavanão.—Daúltimavezqueeuolhei,vocêestavamuitoferido—disseEdie.—Faloutambémcomosefossemorrer.DaíoFuzileirodissequeseurecadofoi...—Euacheiqueestava.Equasefuiprobeleléu.ODragãonãoaceitaprisioneiros,emeferiudeverdade.ChegueiatéoparquedeSaintJamesemeatoleinalama.Quasemeafogueinolamaçal.Penseiquetinhachegadominhahoraeissoéapuraverdade.—Masvocêalcançouseuplinto.Antesdameia-noite...—Não—ele esfregou o queixo.—Umdosmeus companheiros apareceu eme carregou paracasa.OOficial.Salvouminhapele.—Evocêsalvouaminha—disseGeorge,amarrandoocadarço.—Vocêconseguiu?—perguntouEdie.—Conseguiudescobrirofogo?—Consegui—elesorriueapontou.—Ficaali,do ladoopostodeuma torrenegraqueéumaespéciedejaulacomcortesdiagonaisdeaçoprateado...—RuaCannon—disseoArtilheiro.—Certo.Sigam-me.EEdie,tentenãoseperder,hem?OArtilheiro foi na frente. Eles os seguiram ligeiro. Edie sorria apesar de não querer.Georgepercebeuumaexpressãodesconhecidanorostodela.—Oquefoi?—perguntouele.—Edie.ElemechamoudeEdie—disseelatentandoparardesorrir,ecorou.—Bom,éseunome,nãoé?—Elegeralmentemechamade“aquelafagulha”ouela.—Agenteacabaseacostumandocomvocê.Georgeriudeseuconstrangimento.—É?—elaquasepareciasatisfeita.—Bom—disseGeorge—,agenteseacostumacomqualquercoisa...EladeuumsoquinhocordialneleenquantoatravessavamaruaatrásdoArtilheiro.—Estoufelizdetê-lodevolta—disseela,osolhosfixosnascostasdoArtilheiro.—É—disseGeorge.—Estoufelizporvocêestaraquitambém.—Caleaboca.—Não.Éverdade.Eulhedevouma—disseelesedefendendo.

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—Não,nãodeve.Elespararamumpoucoenquantoumtáxifaziaumretornonafrentedeles.—Realmente.Sejasincera,mediga:porqueaindaestácomigo?— Porque você voltou para me pegar. Sem pensar. Com aquele estigma me pendurando pelacabeça.Foiporissoquelhedeiovidrodomar.Georgesentiu-semal.Paroudesorrirechutouochão.—Edie,eunãovolteiparavocêsempensarprimeiro.Querodizer,nofimeufui,maschegueiapensaremcorrer,emfugir...Elaolhouparaele,absorvendoaverdadedoqueeledizia.—Sintomuito.Gostaria de ter sidomais corajoso, sem pensar sobre fugir.Mais como ele—disse George, apontando com o queixo para onde o Artilheiro esperava impacientemente dooutro ladoda ruaestreita.O táxi fez suamanobra, cantouospneuse se foi.Elapuxouobraçodeleecorreramparaooutrolado.—Talvezsejamaiscorajosopensaremfugireacabarficando.Enãoéapenasporcausadisso— disse ela. — Talvez por eu ter perdido a razão quando as esfinges me deram mais umapergunta.SeeutivesseperguntadosobreoCoraçãodePedravocêteriachegadolámaisrápido.—Vamos chegar lá mais rápido se vocês dois pararem de tagarelar e apressarem o passo—disseoArtilheiro,estalandoosdedosparaeles.—Nãosãoapenasoterroreomedoquefazemagenteparardepensar—Ediecontinuoucomavoz baixa. —A raiva faz isso também. Assim, todas as coisas, algumas das coisas por quepassamos, foramminha culpa. Se eu não tivesse perguntado sobre o pressentimento, você teriachegadolámaisrápido.—Outalveznãochegasseládejeitonenhum.—Não.Vocêchegouaqui.Eraparaserassim.Amarcanasuamão,teropoderdefazercoisas.TEMDESER,George.Quero dizer, eu não faço idéia do que temde ser,mas sei que é para ser.Querodizer,seupai,eleeraumfazedor,certo?Vocênãopercebeuainda?Elenãoqueriafalarsobreseupai.Porissoignorouaperguntadela.— Edie. Sinceramente. Como você poderiaNÃO ter perguntado o que era pressentir? Querodizer, ser uma coisa, uma coisa tão, não sei bem, esquisita e assustadora eNÃO SABER o que édeixariaqualquerummaluco.Nãotinhacomovocênãoterperguntado.—Paremdematraquear e fiquemde olho no céu—disse oArtilheiro, parando para que eleschegassemperto.—Podeserqueeutenhaapenasmachucadoodanado.—É—disseEdie,correndoagoraparamanteropasso.—Nãoachoquemachucá-losejasuficiente,seforomesmopássaroquevimosserdestruídonanoitepassada.—Éomesmo, sim—disseoArtilheiro.—Não sepodematá-lo.Domesmo jeitoquenão sepodemataraMemória,eéissooqueeleé.—Oquê?—perguntouEdie, tropeçandoemumapedradecalçadamalcolocada.OArtilheirosegurou-a antes que caísse e a pôs de pé sem olhar para baixo. O gesto reflexivo de umcavalheiroadeixouatônita,tantoqueelaesqueceudaperguntasobreopássaro.Elanãosabiase

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agradeciaounão.Ficouinesperadamenteconfusa,enãosabiaporquê.—Oquequerdizer?—perguntouGeorge.—Amemória sempre encontra umamaneira de sobreviver.Mesmo que não haja ninguémpararecordá-la,elasearmazenaempedraseesperaatéqueumserdamesmaespécievenhacutucá-laeabri-la.EdietocounoombrodeGeorgeenquantocorriam.—Podemedardevolta?—perguntouela.—Oquê?—disseele,nomomentoemquepercebeuoqueelaqueriadizer.—Meuvidrodomar.—Oh—disseele.Elaparou.Eleparoutambémdoispassosdepoisevirou-se,tentandoacharumjeitodeexplicar.—VOCÊODEIXOULÁ!—engasgouelaemdescrença,poupandoGeorgedeterdepedirdesculpas.—Vocênãoestáfalandosério,ouestá?—Foitudomuitoconfuso.Euestavasendoatacado.Nãolembrei...Edie olhou para ele. Sentiu no seu âmago como se um elevador com o cabo quebradodespencasse,criandoumvácuoprofundoenquantocaía.A traiçãoaatingiucom tantaviolênciaqueadeixoutontaeenjoada.— Vamos buscá-lo mais tarde. Quero dizer, logo. Depois que chegarmos na Pedra — disseGeorge,percebendoqueoArtilheiroestavacaminhandodevoltaatéeles.Todaa alegria, o calor eo alívioqueEdie sentiuquandooArtilheiro apareceu foramsugadoscomo se jamais houvessem existido, e em seu lugar agora havia uma frieza, uma solidão e, nocentrodetudo,omesmoburacodesempre,ovazio,acarência.Elanãoconseguiapensarnoquedizerparaele.Elaconheciaosabordeumatraiçãoeissoerabempior.Edie simplesmente se virou e refez seus passos por onde vinham. Em quatro passos, ela jáviravaaesquina.O Artilheiro olhou para George, seu rosto inescrutável, o que o deixou ainda pior. Georgesentiu-seultrajadoderepente.Estavatãoperto.Todoaquelepesadeloiaterminar.—Oquê?OqueixoquadradoenormesebalançoudeumladoparaooutroenquantooArtilheirosacudiaacabeça,dandoa impressãodeumaenormedecepção.OsensodeultrajeemGeorgecomeçouasubireaseespalharnasfacesenopescoço.—Oquê?Nãofizdepropósito!Tudoaconteciaaomesmotempo!Lembra-se?—Vocênãoentende,filho...—Então émais uma coisa para omonte—cuspiuGeorge.—Podepôr emcimadomonte decoisas que eu não entendo. Não entendo nada disso, não quero nada disso, não pedi por nadadisso,eu...—Vocêesqueceuapedradocoraçãodela.—Oquê?—Ovidrodomarésuapedradocoração.Apedradocoraçãodeumafagulhaéessencialparaela.Évitalparaoquesão.

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—Masagenteestáquasechegando!Olhe!Estamosaqui!Eleapontouparaaruaestreita,paraaTorreNegraeparaoprédiosemadornosdooutrolado.Oqueixogigantedeuumaúltimasacudideladenegação,aindamaisdeterminada.—Vocêestáaqui—seupolegarapontouporcimadeseuombro—eelaestálá.—Mas...—Elaestálá.Semsuapedradocoração.Eestásozinha.

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NUMPISCARDEOLHOSEDIECHEGOUNAPEQUENAPRAÇAaos pés doMonumento.A porta estava trancada.Ela não podiaacreditar. Estivera lá havia tão pouco tempo e estava aberta. Ela bateu com força namadeirapintada,antesdenotarumpedaçodepapelãoenfiadonamoldurada janelinhadevidro:“Voltoemcincominutos”,dizia,malescritocomcanetadefeltrovermelha.Eladeuumpassoparatráseolhouparaajaulanotopo.Seucoraçãobatiarápidoeseusjoelhostremiam.Ovidrodomarafariasesentirmelhor.Tudooqueprecisavaeratê-lopertodesi.Nahoraemqueestivessecomelenasmãos,nãosentiriamaisaqueleburaconoseuâmago.Tentou então controlar sua respiração. Inclinou a cabeça para o céu e fechou os olhos. Cincominutos eram trezentos segundos, que eram trezentos elefantes. Ela contou os elefantes na suamente,tentandonãoapressar,tentandofazercadaelefantedurarumsegundointeiro...Enquanto Edie conta, vamos tirar uma foto da cidade. Visualize a cena: umamenina de frenteparaumaporta aospésdeumacoluna alta, deolhos fechados, balançando-sedeumpéparaooutro, os cabelos longos e negros se movimentando em contraponto, contando elefantes nacabeçaparasemantercalma.Fiqueaícomela.Conteunselefantestambém.Façaoutrafoto.Algumacoisaestáfaltando.Acolunaestálá.Aportatambém.Ameninanão.Olhedevoltaparaaprimeira foto, a fotocomamenina.Haviaoutracoisanacena,umacoisanegraeindistintaàesquerdadoquadro.Umacoisanegra,indistinta,masparecidacomumtouro.Algumacoisaavançandoparaamenina.Agoraolhepara a segunda foto.O esboçodeum tourodeduaspernas saindoda fotonapontaesquerda da moldura. Nos seus braços o corpo de uma menina, com a boca se abrindo emchoque.ÉassimavelocidadedoMinotauro.Tãorápidoqueoatendentedoguichêestavaremovendoaplacadaportanomesmoinstanteemqueohomem-touroapareceueagarrouEdie,semqueelevissenadinha.FoirápidoassimqueEdiefoitiradadecena.Sepiscou,nãoviu.

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OPACTOCOMOCAMINHANTEOsOLHOSDOARTILHEIROperfuravamGeorge,oque fazia elequerervirarumabola e rolarparaescapardaintensidadedaqueleolharfixo.Alémdisso,sentiaochamadodaPedranofimdarua.OArtilheiropiscouduasvezes.—Estúpidasfagulhas.Vamos.ElesevirouecorreuatrásdeEdie.Georgeficouemchoque.—Ei!OArtilheiroparoueolhouparatrás.—Paraondeestáindo?—perguntouGeorge.—Paraondeprecisamdemim.OArtilheirovirouaesquinaedesapareceu.George queria ajudar Edie. Também queria devolver a coisa que ele quebrara e fazer asreparaçõescomaPedraeacabarcomtudoaquilodeumavez.Esefosserápidotalvez...Lembrou-sedequenãoestava como casaco.Edie estava.Eo fragmentode cabeçadoDragãoestavadentrodobolsodocasaco.—Estúpidasfagulhas.Numaondade raiva,maisnegradoquea torreàsua frente,elecorreuatrásdoArtilheiroedeEdie. Cada passo que dava para longe da promessa de segurança o cortava como navalha e odeixavacadavezmaiscomraivadelaedeseuapegoidiotaàquelevidrodomar.O Artilheiro chegou à base do Monumento. Nenhum vestígio de Edie. Esticou a cabeça elevantou um pouco o capacete de zinco, tentando ver se ela já estava no topo da coluna. Nãohavianinguémláenenhumsinaldemovimentovisívelpertodajaulaacima.OArtilheirofezumarevistarápidaaoredordoplinto.Quandovoltouàfrentedaporta,Georgeestavachegandonapraça.—Ondeelaestá?OArtilheirodeudeombroseapontouparaaporta.—Talvezestejasubindoaescada...Georgesacudiuacabeça.—Elanãotinhadinheiroparapagaraentrada—disseele,mostrandoaoArtilheiroopedaçodobilhete.—Entãoémelhorvocêentrarever.Eseelanãoestiver lá,émelhorvocêvoltarcomapedradocoraçãoparadevolveraela.Georgelembroudostrezentosetantosdegrauseficoucommaisraivaainda.—Estábom.Entãoalgumacoisaseacendeunasuamente.

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—Pedradocoração?OArtilheirodeudeombros.—Pedradocoração,pedradamemória,pedradavisão...temváriosnomes.Georgeficoutonto.—Esperaaí.EstouprocurandooCoraçãodePedraeoestouprocurandocomalguémque,comovocê agora se lembrou deme dizer, carrega uma coisa chamada pedra do coração, e você nãoachaissoIMPORTANTE?OArtilheirocoçouacabeçaconstrangido.—É.Bom.Não.Onegócioéquenuncachamamde“CoraçãodePedra”,sabecomoé,chamamde pedra damemória ou pedra do coração.Além do quê— ele parou para pensar numa coisaquepudessefazê-loseexplicar—,alémdisso,vocêdissequeovidrosómostrouoCoraçãodePedra,queficanaruaCannon.Entãonãoéquesejaovidroemsi,ouquea fagu...EdiesejaoCoraçãodePedraotempotodoenãopercebemos,nãoé?Assim,nãohouvedanonenhum,entãovamosnosapressarebuscarovidroparaela.Agenteconversadepois,tácerto?EleentãoempurrouGeorgeparaaporta.Georgemostrou o bilhete para o atendente.OArtilheiro ouviu omenino explicando que haviadeixadoalgumacoisaláemcimaeoatendenteodeixouentrarcomumresmungo.OArtilheiroficoualiviado.Georgeofezsesentirestúpido,comoseeletivesseDEIXADOpassaralgo.Eraporqueomeninohaviamudado.Ascoisasqueeleenfrentavaagoraoestavamdeixandomaisdiretoemaissegurodesi.Nãoeramaisomeninoqueixosoquepareciaserquandooviupelaprimeiravez.OArtilheirosorriu.Ele deu a volta ao redor da coluna de novo e uma coisa chamou sua atenção. Era um cheiro.Franziuasnarinaseseinclinouparavermaisdepertoumamarcanacalçada.Eraumarranhadono chão que tinha levantado a pedra um pouco, como se tivesse sido feita quando o cimentoaindaestavamolhado.Porémapedradacalçadanãoeradecimento.Erauma lajeantiga.MaspelosgrãosqueoArtilheiropegoueesfregouentreosdedos,amarcaera recente,e tinhasidofeitaporalgocomforçasuficienteparadeixarumrastronalajedepedra.Eleandoumaisummetroparatráseencontrouumacoisaqueodeixouparalisado.Eraorastrodeumapataafundadanoasfaltonabeiradarua.Elelevantouacabeçaepôsamãonorevólver.Entretanto,nãohavianadaparasever.Umprédiocomercialdesovouumapequenamultidãodehomens e mulheres vestidos com trajes escuros. Eles caminhavam para longe do Monumento,rindoeconversando,asgravatascoloridasesvoaçandonabrisa.Foi então que ele viu a figura solitária caminhando na sua direção em meio ao fluxo bem-humoradodeempregadossaindoparaoalmoço.Umafiguraalta,comumcasaco longoeverdedeTWEED,osfiosdecabeloqueescapavamdocapuzdopulôveraçoitadospelovento.OCaminhanteveiodiretoatéele.Semtentarchamaraatençãoparaoquefazia,oArtilheiroseendireitoue,comoquemnãoquernada, andou alguns metros para sua esquerda, parando na frente da porta, caso Georgeretornasse.ElenãosabiaoqueoCaminhantequeria,mas sabiaque eramelhorGeorgenão esbarrar comele.OArtilheirohaviaesperado suavisitadesdeomomento emqueviuoCorvopuxandoapernadeGeorgena jaulaacimadeles.

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—Achei mesmo que você não custaria a aparecer. Nunca está muito longe daquele pássaromedonho,nãoémesmo?OCaminhante fez o que se pode chamar de uma pausa emmovimento na frente doArtilheiro,mudando de um pé para o outro enquanto omedia com os olhos. Jogou então o capuz para ascostas,expondoaoselementosseurostocinzaechupado.—Evocê,por acaso,viu aquelemalditopássaro?Elenuncaestáondedevia.Seestivesse, euteriachegadoaquimuitomaiscedo.—Desculpe,amigo,maseletevedeir.OsolhosdecorvioletaolharamparaoArtilheirodecimaabaixocomdesdémesefixaramnorevólverqueeleseguravacasualmente.—Tevedeir?—Estavacausandoaborrecimento.Seéquevocêmeentende.—Entendoperfeitamente.Eleémuitobomnoquesitoaborrecimento.Éumadesuasqualidadesmaisrefinadas.Osdoisseentreolharam.—Elevaivoltarmuitofurioso.—Nãoéproblemameu—retrucouoArtilheiro.Os olhos do Caminhante faiscaram. O meio sorriso se curvou num momentâneo sorriso deantecipação,comoumhomemfamintoquesenteoaromadeumapadariaàdistância.—Perdoe-me,porémeupensoocontrário.Achoqueéproblemaseu,sim.Umacoisaqueelefazénãoesquecerdenada—eseus lábios formaramumsorrisoafetadoedetestável—porseroqueeleéetudomais,seéquevocêentendeminhaalusão.—Devocênãoqueroentendernada.Ondeestáamenina?—Amenina?—Vi os rastros do Touro, Caminhante. Onde ela está?OCaminhante começou a andar de umladoparaooutromaisnotadamente.Trêspassosparaum lado,umameia-volta, trêspassosdevolta.—Nãoeraminhaintençãoincluirameninanosplanos.Elaéumadistraçãoparaoestratagema.—Eminglês,porfavor.— Pode ter certeza de que a língua que falo é um inglês melhor e mais antigo do que osgrunhidosquesaemdesuaboca,meucombatentede lata—zombouoCaminhante.—OTourotinha um retalho de roupa que pertencia ao menino. Eu quase o surpreendi no apartamento. OTouroseguiuseufaro.Sabebemcomocriançasestimulamseuapetite.—Entãoparaqueelefoipegaramenina?— Em todo empreendimento bem planejado há sempre a possibilidade de uma variável nãocalculada.Nestecaso,oquetranspareceéqueomeninodeuseucasacoparaamenina.OTouronãotemculpanenhuma.—Paraondealevou?—EncontreicomeleescavacandoseucaminhonovelhocanaldaruaFleet.Vocêsabeondeelevive.Decepcionadoporeletermetrazidoumamenina,emvezdomenino,deixei-olevá-lapara

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casa com ele. Tudo o que você tem de fazer agora é encontrar omenino e levá-lo até lá parafazer a troca. É uma tarefa tão simples que eu creio que até mesmo uma coisa grosseira emecânicademetalcomovocêpoderáefetuá-lasemmuitaconfusão.O Artilheiro cerrou o punho e se controlou para não amassar aquela cara de escárnio. Pelomenosnãoatésabermais.—Liberteamenina.— Quando você trouxer o menino para o Touro. Então o Touro me entregará o menino. Nãoprecisodela.Precisodomenino.Precisodaquiloqueomeninotem.—Eporquê,ServodaPedra?—cuspiuoArtilheiro.—Háreparaçõesaseremfeitas.—Elefaráasreparações.Estátentandofazerissodesdequepercebeuoquefez.—Ouoqueeleé.—Dissoelenãosabeainda.—Vocênãocontouaele?—Não contei a ele porque não tenho certeza do que ele é. E o que importa é que o que vocêquerfazernãoécerto.Elevaifazerasreparaçõesdele...OCaminhanteexplodiuderepente,ocuspevoandonoespaçoentreosdois.—AoinfernocomasreparaçõesDELE!NãodouamínimaimportânciaàsreparaçõesDELE!VocêachaqueeugostodeseroServodaPedra?EueraumHomemdePoder!EuTIVEservos,enãoapenasosdecarneeosso!EuquerooquefoiquebradoparaqueeufaçaasMINHASreparações.Ele então olhou fixo para oArtilheiro. O acesso apenas intensificou a fúria de seu olhar. OArtilheirodeudeombros.—Peloqueouvi,vocêtemdeserviràPedraporqueaofendeucomsuaganânciaesuacobiçademaispoder.Ele,poroutrolado,contrariouaPedrasemterconsciênciadoquefazia.—Querdizerqueaignorânciadeletriunfasobreaminhainteligência?Eucreioquenão:—Comparadocomoquevocêdeveterfeitoparaacabarexcomungado,elenãofeznada.—Estápedindoporele?Queemocionante.InfelizmenteaPedranãoésentimental.Seeufizerosacrifíciodele,umafraçãodaminhamaldiçãovaiserapagada.Etalvez...SuamãotiroudobolsodopulôverumaestatuetaqueeletinhatiradodoquartodeGeorge.—Possuo a imagem dele também. Feita por um fazedor.A Pedra talvez troque um servo pelooutro...—Caminhante,eunãovoudeixarvocêfazerisso.—Nãotemcomomedeter.OArtilheirolevantouorevólver.OCaminhantefezcaradeescárnioerevirouosolhos.Tirouosfioslongoseescassosdecabelodorostocomumtoquedepulsoirreverente.—Evocêcertamentenãopodemematar.BLAM.BLAM.Dois tiros, tão rápidosquequasesecombinaramemumsó.AestatuetadeGeorgeexplodiuempó emil cacos. O impacto das balas fez o Caminhante ser jogado para trás numa pirueta, seu

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longocasacocortandooarquandoeleatingiuacalçada.— Mas posso impedir que você coloque a imagem dele na Pedra — disse o Artilheirosecamente.—Nãovaiserdessejeitoquevocêvaireclamaraalmadele.OCaminhante ficou no chão por ummomento, tomando fôlego.Mas logo pulou e ficou de pé,nummovimentosurpreendentepelasuaagilidade,ebateuapoeiradaroupa.Os dois, calmos, olharam para os furos das balas no pulôver. Por acaso, talvez, os projéteisobliteraram o desenho bordado no pulôver, trocando o “John Deere” para “John Dee”. E nãohaviasangue.—Eugostavadestepulôver—disseoCaminhante,pausadamente.—Entãodevemeagradecer,Sr.Dee—disseoArtilheiro,pondoorevólvernocoldre.—Pelomenosagoraestáescritocerto.OCaminhantefaziaumdramaemexaminarascostasdocasacoondeasbalas,aquitambémsemnenhum vestígio de sangue, haviam saído. Na verdade, ele tentava controlar uma fúria imensaqueferviadentrodele.Sorriusemconvencer,oslábiosbrancosdetensão.—Vocêéapenasumacoisa.Feitademetal.Feitoporumserhumano.Lembre-sedisso.Umserhumanoofez,umhumanopodedesfazê-lo.Eusouumserhumano.OArtilheirosacudiuacabeça.—Vocênãoéumserhumano,Caminhante.Vocênãotemmaisnadadeumserhumano.Enãotemhámuito,masmuitotempomesmo.OCaminhanteestirouamão.— Atirar primeiro e pensar depois é sempre um estratagema ruim, Artilheiro — disse ele,apalpando os furos que oArtilheiro fez no seu pulôver.A pele por baixo não tinha umamarcasequer.—Essesfuroslhecustarão,porqueelesmelembraramdesua...capacidade.Passeaquiorevólver.EuNÃOqueroquevocêenfrenteoTourocomumavantageminjusta.—Estásonhando!— O problema de ser um soldado é que você sempre pensa que pode resolver qualquerproblemaaoapontarumaarma.Masnãodestavez.Entregueaarmaouasbalas,oueujuropelamãoqueomoldouquevoudeixar oTouro fazer o que ele temde fazer comamenina, comousemomenino!Levantouamãoeestalouosdedos.—Pelamãoqueomoldou,Artilheiro,TODASasbalas!OArtilheiro rasgou um saquinho de seu cinturão e estirou para o Caminhante, que o pegou eolhoudentro.—Easbalasdentrodorevólver,Artilheiro.Todasasbalas,semescondernenhuma,ejurepelamãoqueomoldou.O Artilheiro pareceu empalidecer. Desmontou o revólver e levantou-o, segurando o cilindroentreo indicadoreopolegarquasecomrepugnância,vendoasbalascaíremdentrodosaconamãodoCaminhante.—Agorajure!—disseoCaminhante,asperamente.—Pelamãoquememoldou,aíestãotodaselas.

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—VocêsabeapuniçãosequebraroJuramentodoFazedor.—Quemquebrajuramentosévocê.Maseuconheçoapunição.— Quebre o juramento e ficará condenado a vagar. Para sempre. Nenhuma criança vale essesacrifício.Vocênãoconseguenemimaginaradorqueévagarparasempre.EleolhouparaoArtilheiro.Depoiscomeçouacaminharbruscamente, a cabeçavirada sobreoombro.—Encontreomenino.Leve-oparaoTouro.Umavidaporumavida.Troca justa.Estas sãoasminhascondições.EseeletentarseaproximardaPedrasemmedaroqueeuquero,seeletentarfazerSUASreparaçõesenãoasminhas,euaindapossocausarmaisdanoparaummortaldoquevocêouqualquerumdosseuspossaimaginar.Ouevitar.EfazendoumgirocomseucasacodeTWEEDremendado,elesefoi.

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ORUGIDODOTOUROFINALMENTE EDIE CONSEGUIU respirar de novo. Quando o Minotauro a agarrou na calçada, oimpacto foi tão grande que lhe tirou o ar dos pulmões e não a deixou respirar. Então tudocomeçouarodareaescurecer,eeladesmaiou.OimpactoviolentodaspatasdoMinotauronacalçadadeveterfeitoelavoltarasi,etalvezatémesmofeitoseuspulmõesvoltaremafuncionar.Ela respirouoarqueerametade fumaçadeóleoDIESELeengasgoudenovo.Depoiscomeçouaespernear.Estavasendoesmagadanomeiodaquelepeitomaciçoenegro,curvadocomoaquilhade um grande barco, coberto de pêlos ásperos que semoviam, embora fossem feitos demetal,comopêlosdeanimal.Elaouviaasbatidasdocoraçãogigantecontraoseuouvidodireito.Seuolhodireitotinhasidoespremidonopeitodomonstro.Podiaouvirtambémoprofundoruídoofegantedarespiraçãodoanimal.ComseuolhoesquerdoelaviaumafraçãodeLondres.Osuficienteparasaberqueaquiloqueacarregavacorriacomotrânsito,acompanhandoumônibus.Todas essas impressões a atingiram de uma só vez, como um caleidoscópio. Ela resistiu. Eesperneou.Aferaparoubruscamente,tãoderepentequeelaficousemar.Asmãosdaferaalevantarameacolocaram frente a frente com sua caramonstruosa, e ela viu pela primeira vez o que a tinhaagarrado.ElaviuacabeçadoMinotauro.Atestacomoumabigorna.Ofocinhocomoummalho.Olhosminúsculoscheiosdefúria.Chifresafiados,arqueadoseesticadosparaosladosnumacurvaameaçadora,prontosaestriparoqueviesseàsuafrente.E atrás dos chifres, atrás das orelhas planas, uma giba imensa de músculos sólidos que seassomavanafrentedelacomoumamontanhanegra.Edie sentiu a escuridão se espalhando no seu cérebro e sabia que precisava lutar contra ela.Sabiaqueprecisavacontinuarlutando.Abriuabocaparagritar,berrar,masantesque tivesse tempoparaqualquercoisa,oMinotaurose antecipou.Ergueu a cabeça, empinou o focinho e abriu a boca, revelando dentes afiados depredadorqueforamfeitosparatudo,menosmastigargrama.EentãooTourorugiu.Sempalavras.Apenasumrugidodetouro,purafúria,fomeesom,queaatingiucomoumaondadetrovãorolante.Havianotasgraves tãoprofundasqueo intestinodelasecontraiueseexpandiu, levadoporumterrortãoantigoetãoenraizadodentrodelaqueestavaalémdequalquerexplicação.

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Havianotasagudas,tãoagudasqueelapensouqueseusouvidosfossemexplodirdedor.Então seus olhos se fecharam num reflexo e os cabelos foram esticados numa rajada de hálitoquentequecheiravaacarnefrescaeossuáriosantigos.EEdiefezaúnicacoisaquepodiaparaimpedirqueaescuridãoalevasseembora.Usouaenergiaqueaindalherestavaegritou,gritoudiretonacavernanegraeúmidaqueeraabocadoTouro.EstavatentandoberrarmaisdoqueopróprioBelzebu.

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HORADEPARTIRDEVOLTAAOMONUMENTO,OArtilheiroficouolhandoparaaesquinaporondeoCaminhantehaviadesaparecidoerespiroudevagar.—Vocêentendeutudo?Nãohouveresposta.OArtilheiroseviroueestalouosdedosimpacientemente.—Tudobemagora.Vocêjápodeaparecer.Elejádeunopé.FoivigiaraPedra.Paraevitarquevocêchegueláantesqueeledêumjeitinhonascoisas.GeorgesurgiudoesconderijoatrásdaportadoMonumento.Pálidoeexausto.SeusolhosaindafixosnaesquinaporondeoCaminhantedesaparecera.—Queméele?OArtilheiro se agachou e apanhou as duas cápsulas vazias do chão. Olhou para os cilindrosvazios,enfiou-osnobolsoeseergueu.—OCaminhante.Vocêpegouapedradocoração?Georgetirouovidrodomardobolso.OArtilheirodeuumresmungo.—Não a perca. Ela já está num estado lamentável, e se você não entregar a Edie a pedra docoração,elavaiseraniquilada.—Oqueaconteceu?—OTourochispa—disseoArtilheiro,cheirandooareespiandoparaadistância.—Oquê?—disseGeorge.—OMinotauroalevou.—Minotauro?—Meio-touro, meio-homem. E todo ruim. O meio-homem odeia o meio-touro nele e o meio-touropensaqueapartehomeméoqueofaz infeliz.Umaferaprimitiva, feiaquedói.Perigosatambém.Muitoperigosaparaela.—Porquê?—perguntouGeorge,suamenterevirandoalembrançadaslendasgregasqueumdiaseupaileuparaelequandoestavamdefériasnumailhanoMediterrâneo.—Porqueosminotaurosachamquepodemsermenos touroemaishomemsedevoraremaquiloquequeremser.—Elevaidevorá-la?— Não exatamente. Ele vai ter o desejo de devorar, mas está sob ordens do Caminhante. OCaminhanteéumServodaPedra.Amaldiçoado,comoum...—Excomungado.OArtilheiroolhouparaele,impressionadoporummomento.—Estouvendoquevocêandouestudandoenquantoeuestavamerecuperando.—ConhecioContador.

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OArtilheiroolhoubemparaGeorge.—Conheceumesmo?—disseelelentamente.—Eleébomouruim?—perguntouGeorge,desúbitosentindoanecessidadeurgentedesaberporqueoArtilheirousouaqueletom.—Vocêvaiterbastantetempoparaconversarsobreissodepoisqueresgatarmosafagulha.—Edie—corrigiuGeorgecomfirmeza.—ElasechamaEdie.Ecomonósvamosdarumbrequeemumminotauro?Querodizer,aquelehomem,aquelacoisa,elepegoutodasassuasbalas.OArtilheiropareceuficarenvergonhadoporuminstante.—É.—Porquevocêdeixouelefazerisso?—Porqueele é traiçoeiro.Oueudava asbalaspara eleou eledavaEdie aoTouro.Vocênãoouviueledizer?—Sim,masnãoentendi.Tambémnãoentendiojuramento.—Ojuramentoéumacoisaqueumcuspidonãopodequebrar.JurepelamãodoFazedorevocêestáperdidosequebrarojuramento.—Perdido?Comouma estátua quenão chega ao seuplinto na virada dodia?ComooHomemGrade?AcabeçadoArtilheiroseviroucomorugidodistanteacrescentadoaobarulhodotrânsito.—Piorainda.Vocêvaga.Agorasecaleevamos.Nãotemosmuitotempo—disseele,bravo,ecalouGeorgecomumolhar.Começaramacorrer.—Paraondeelealevou?—perguntouGeorge,correndoaoladodele.—Você não estudou isso? Para onde osminotauros levam suas vítimas? Onde eles vivem emlendas?—disseele,apressandoaindamaisopasso.Georgecomeçouapensar.Lembrou-sedoheróigregoedeAriadne,afilhadorei,queoajudouadesenrolarumnoveloparaqueelepudesseacharasaídadeum...—Labirinto!Eleviveemumlabirinto?—gritouele.—NoLabirinto.Issomesmo.Masentãoasperguntasficaramforadequestãoporumtempo,porqueGeorgeprecisoudetodooseu íôlego para acompanhar oArtilheiro enquanto cruzavam as ruas e corriam pelas calçadas,sempresubindoparaonorte,cadavezmaissedistanciandodorio.OArtilheiroparoude repentenapontadeumacalçadaparadeixarpassarumônibus, levantouGeorgenosbraçoseatravessouaruaziguezagueandoentreos inúmeroscarros.Sacolejando-senosbraçosdosoldado,Georgeviuosmotoristaszarpandoporelessemsedarconta,enquantooArtilheiroosevitava.QuandochegaramaooutroladoeoArtilheiroopôsnochão,Georgeficouenjoado.—MasLondresnãotemlabirintonenhum—disseGeorgetentandosefirmarnochão.OArtilheirodeuummuxoxoecontinuouaandarparaonorte.—Algunsdizemquetodaacidadeéumlabirintoqueferve.Masnãosepreocupe...Eleapontouparaodesviofeitoporumbotaréualtoeescuroàfrentedeles.Passaramporplacas

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indicandooMuseudeLondreseporumaquedizia:“MuradadeLondres”.—Jáestamoschegando.Georgeseesforçavaparaacompanhar.Pareciaqueeleestavacorrendodesdesempre.Suavidasedividiaentreopassado,quandoelenãocorriaparanadaalémdebolas,eopresente,quandoelecorriaotempotodo.—NuncaouvifalardeumLabirintodeLondres—disseeleentreumaarfadaeoutra.O Artilheiro apontou para um muro de concreto entrecortado com passeios, entre prédiospontudosealtos.—Sortesua.Porqueaquiestamos.Umlugarescuroelabirínticocomoqualquerminotauropodiadesejar.OArtilheiropuxouGeorgeatéumaescadaesubiuosdegraus.Georgeleuaplacacomumasetaquedizia:“Barbican”.

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NASGARRASDOMINOTAUROBERRARNÃOAJUDOUEMNADA.Aliás,EdienuncaacreditouqueberrarcontraourrodoMinotaurofossefazeralgumefeito.Eracomojogarbolasdenevecontraumaavalancheparadetê-la.OMinotauroparoudeurrarquandousoutodooseufôlego.Ediesentiuquandoelesesacudiunachuva, como faz um cão. Notou também o jeito que ele olhou para ela, com seus olhosexcepcionalmenteminúsculosantesdevoltaracorrer.Eraumolhardequemodeiaoqueéeodeiatambémoquequerser.Elacerrouopunhoepensouemdar socos,masovaziodentrodela sugou todaa suaenergiaesuamãoapenassecontraiu.O vazio aumentava e parecia haver menos Edie e mais do nada, porque, de uma maneiraaterradora, o olho do Minotauro havia sugado ainda mais o que sobrara dela. Era um olhofaminto,umolhoardente,umolhoterrível.OMinotaurosubiuporumaescadaemespirale,ouvindoseuscascosarranhandoosdegrausdecimento, Edie tentou pensar no que deveria fazer. Sentiu que estava se dissolvendo de dentroparafora.Chegaramnumpasseioelevadocomachuvacaindo.Umvelhinhocomumandadorcaminhavaàfrentedeles,arrastando-senomolhado.Edieestirouamãoegritou.—Socorro!Ele não reagiu.Claro que não a via. Suamente não o deixava ver uma coisa tão inacreditávelcomoumameninaensopadacarregadaporumaestátuaferoz.OMinotauroparou.Olhouparaela.Olhouparaovelhinho.Seufocinhotremeueentãoelerugiumaisumavez.AgoraEdiesesentiatãovaziaqueosompareciareverberarcomoumecodentrodeseuvácuoesacudir cada molécula de seu ser. Sentiu a escuridão ameaçando tomar conta de sua visão esabiaquedessaveznãoconseguirialutarcontraela.OMinotauroderepentelevou-aparamaispertodeseufocinhoesuasnarinasderamumalongafungada.Estremeceucomo seo cheirodamenina fosse algo comoumestimulanteprimoroso, edepois,oqueeramaisrepugnante,Ediesentiuopesodesua língua inchadaegrossaseesticarparaforaelambê-la,dopescoçoatéoouvido,depoissobreoolhoedatestaatéoscabelos.AúltimacoisaquesentiuantesqueaescuridãoaenvolvessefoiamãodoMinotauroapalpandoseu corpo, suas pernas, seus braços, a gordurinha ao redor de seus rins, como um açougueiroinspecionandosuacarne.Então ele a levantou e correu, enquanto omundo para ela se transformoumisericordiosamenteemescuridão.

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OLABIRINTODELONDRESO ARTILHEIRO E GEORGE saíram da escadaria, deixando para trás o cheiro leve de urina quepermeavaoconcreto,eentãosedepararamcomumpasseioelevado.George escorregou.Ochão estavamolhado e escorregadio coma chuvaque agora começava acairtorrencialmente.Corrersobasnuvenspesadasdetempestadeeracomocorrernadireçãodealguma coisa de que seria infinitamente mais normal correr para longe. E isso o mais rápidopossível.OArtilheirosegurou-oeopôsdepé.DepoisparoueolhoufixamenteparaamãodeGeorge,amãocomamarcadeixadapeloDragão,egrunhiu.—Oquê?—perguntouGeorge.—AmarcadoFazedor.Afagulha,Edie,mecontou,umpoucoantesdeoCorvolhepegar.Estamarcaquerdizerquevocêtemumaescolha.Eeudiriaquevocêjáfezessaescolha.—Queescolhaéessa?EunãoescolhiNADAdisso!—protestouGeorge.— Escolheu, sim. Escolheu muitas coisas, meu filho. Está aqui. Para começar, você bem quepoderiateridoatéaPedraecolocadoseumundoemordem.Masemvezdisso,estáaqui.AcenoucomoseaprovassealgumacoisaqueGeorgenãosabiaoqueera.—Estámais forte.Mais alto emais forte do que quando o vi pela primeira vez.Não está sedesculpandoporseroqueé.Estábrigando.—Estouapenastentandocontinuarvivo.—Não.Seestivesseapenasfazendoisso,jáestariaemfrenteàPedrafazendosuasreparações,sempensaremmaisninguém.Nãoestariaaquicomigo,tentandoajudarEdie.EleolhouparaGeorgedecimaabaixo.—Vocêchegoumuitolonge,meuamigo,enãoapenasemquilômetros.Evocêsabeporqueestálutandoenãoapenasselamentandodavida?—Nãoporcausadessamarca—disseGeorge.—Está lutando porque você tem alguma coisa pela qual lutar.Amarca é o que lhe deixou emapuros,masétambémoquepoderálheajudaraselivrardeles.Amarcamostraquevocêpodeserumfazedor.—Eunãosoufazedornenhum!Eunãofaçonada.Amão,porém,jáestavadentrodobolso,moldandoobolinhodemassa.—Vocêpodenãosaberoqueé,maslhedigoumacoisa:osestigmassabem,edepoisdoquevientre você e o Dragão do Temple Bar, acho que sei também. Está nas suas veias e nos seusossos.Vocêchegou longe,meu filho.Pareciaque era feitode coisamuitoduvidosaquandomedeparei com você pela primeira vez.Assim é que são as coisas. É como o Jagger costumavadizernoseuestúdio:nãoéapenasobarroqueimporta,éoquesefazdele.George lembrou-se de seu pai, calmamente tragando um cigarro preso no canto dos lábios, as

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mãos trabalhandoa argila.Mas antesque se aprofundassena lembrança, oArtilheiro já estavacorrendodenovo.—Podemosfalarmaistarde.Temosmuitooquefazerpelafrente.George correu atrás dele, e percebeu que estavam em uma espécie de área restrita dentro docentrodeLondres.Aspassarelaselevadasemquecorriamdavamuma impressão futurísticaaolugar, especialmente se a visão de futuro incluísse janelas imundas e sem graça espiando devoltaparavocê.OArtilheiro corria eGeorge seguia atrás por uma passarela correndo paralela à rua, onde oscarrose táxispassavamvelozes, refletidosemummurodevidroà suadireita.George tevededesviar de um velhinho com um andador e colidiu com uma lixeira que parecia ser feita deborracha,masquelhedeuasensaçãodeserfeitadepedra.Eleignorouadoreseguiuadiante.À frente deles, a rua de quatro pistas sumiu por baixo de um grande arco que se encontravaembaixodeumprédiodetijoloeconcreto,comoseengolidaporumabaleia.Otopodoarcoerade vidro e ele viu as pessoas olhando vagamente de suas mesas no restaurante, mastigandodistraídossobumsinaldenéonanunciando“Pizza”.Eleschegaramaumátriocobertoquecorriaaolongodoarco,ederepenteasuperfíciedochãomudou para um lustroso piso, com barulho, cores e luz artificial brilhante. Canos de aço emdiagonais cortavam a parede de vidro à sua esquerda, apoiando o granito rosa polido à suadireita.Umaplacadizia:“PassarelaElevadadeBastion”.Deramavoltaemumaestátuadedoisdançarinosdetangoeretornaramaoarlivre.Georgenãosesentiatãolevecomoosdançarinos.Eracomosearrastassesapatosdechumbo.Estava cansado, e enquanto corriam virando aqui e atravessando ali, ele começou a se sentirtotalmente fora de controle, sem qualquer idéia de para onde estavam se dirigindo. Estava seperdendonolabirinto.Viuderelanceespaçosabertosàsuaesquerda,umreflexodeverdeeumaigrejabrancaforadelugarao ladodeumespelhod’água,masentãoentraramdenovoemumespaçocobertoporumtetobaixo.Apassarelapareciaabraçaro tetoaopassaremânguloretoatravésdeumaflorestadegrossascolunasdecimento.Neste longo espaço em forma de câmara, George sentiu como se estivesse no subterrâneo,emboraseussentidoslhedissessemqueaindaestavamuitoacimadoníveldochão.Alémdisso,tinhacadavezmaisdificuldadeemrespirar.—Vamos,meufilho,maisdepressa—disseoArtilheiro.Eleseapressou.Correramnadireçãodoquadradodeluznofimdapassarelamaliluminada.Quando emergiram sob a chuva, acharam-se em um espaço retangular de proporções enormes,completamenterodeadoporapartamentoscomsacadasemângulosqueseassemelhavamàquelaspirâmides astecas que ele vira em fotos na escola.A sensação de cidade perdida foi realçadapeloverdedeplantasquecresciamemcadasacada,overdebrilhantecontrastandocomocinzadoconcretoedovermelhodostijolos.Nomeiodestapraçaretangular,haviaumespelhod’águacomfontes,numabatalhaperdidacontraoaguaceiroselvagemqueobliteravaosseuschuviscosmetódicos.Osdoispisaramempoçasquecobriamostijolossobseuspésealcançaramumaoutrapassarelacoberta.

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Georgedesistiudetentarselocalizar.Concentrou-seapenasemnãoperderdevistaoArtilheiro.Paroudenotar as coisaseos lugaresporondecorria e apenas registravaoambientecomoumborrão.A não ser em ummomento, quando olhou à sua direita e viu uma estufa gigante, comvegetaçãotropicalecriançasemgruposparadasládentroolhandoparaachuva.Ele não acreditava que ele próprio havia estado tão desligado e entediado na sua excursão daescolaapenasumdiaantes.Sentiuachuvanoseu rostoquentee lembrou-sedequandoficouparadonosdegrausdoMuseudeHistóriaNatural,sentindo-setãoenfurecidoetãocertodequesersozinhoeraamaneiramaisseguradeprotegerasimesmo.Agora, nesse momento, ele teria dado qualquer coisa para fazer parte daquele grupodesinteressado por trás daquelas janelas embaçadas— feliz talvez não, mas pelo menos foradaquele terror; elenão estaria exausto, não estariaonde estava agora.Nãoconseguia acreditarque tudo o que havia se passado com ele estava acontecendo havia menos de vinte e quatrohoras.Foi nesse ponto que se lembrou que o relógio não parava. Se não chegasse logo à Pedra deLondres, talvezcontinuassevivendo—talveznãopormuito tempo,pelo jeito—naquiloqueoFradePretodissesechamarOCaminhoTortuoso.ÀfrentedoArtilheirosurgiuumedifíciocomercialcortandoocéu,suaparteinferiorseabrindocomoumarampadeesqui. Iluminadopordentrocontraasnuvensescuraseacortinadechuva,de alguma maneira a visão deste prédio, talvez pela sua estrutura de vidro e luz em vez deconcretomolhado,fezGeorgesesentirumpoucomelhor.OArtilheirovirouumaesquina.OMinotaurooatingiu.

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OTOUROEABALAO MINOTAURO ATINGIU O ARTILHEIRO na hora em que ele virou a esquina, surgindo do nada,agachadoeforte,comaferocidadedeumcarroemaltavelocidade,oschifressesacudindoparacimaeparaoslados.Ouviu-seobaquesurdodoimpacto,obarulhodistintodoarexpelidodospulmõesdoArtilheiromisturado com o grunhido feroz que o Minotauro fez ao retesar os poderosos músculos dopescoçoejogarosoldadoparaoalto,porcimadesuascostas.OschifresseengancharamnarededemetalpresaaocintodoArtilheiroealançaramzunindonacalçadamolhada.OArtilheiro caiu no chão, rolou e freou contra uma tina de cimento, fazendo a água jorrar. OMinotaurovirou-se.Foi somente quando ele se virou queGeorge notou que seus braços estavam cruzados sobre opeito, numa imitação grotesca de quem carrega umbebê— salvo que o que ele carregava nãoeranenhumbebê,eraEdie.Aquela não era aEdie queGeorge conhecia.Era umaEdie tão pálida que parecia translúcida,um fantasma descorado do que ela tinha sido, preso no peito de bronze escuro do Touro feitoumabonecadepano.Osolhos estavam fechados, e ele teve a nítida sensação, terrível, dequeelajáestavamorta,atéquenotouseuslábiosbalbuciandoalgosemsom,comosetentassedizeralgumacoisa,comoumasonâmbula.—EDIE!—elegritou.Onde quer que ela estivesse, dentro de sua própria mente, era certo que dali ela não podiaescutá-lo.OMinotaurocascouochãoeGeorgesentiuapassarelasacolejar,comodoismundosaocolidirem.OMinotaurolevantouamãoefezumgestomuitohumanoparaGeorge.—Fiqueondeestá—grunhiuoArtilheiro, ficandodepéecambaleandoparaoespaçoentreaferaeomenino.—Oquevamosfazer?—perguntouGeorge,engolindoemseco.—Voudarumaliçãonomaldito.TirouorevólverdocoldreemirouoMinotauro.—Ei,seumontedecarnebovina.Olheaqui.OMinotaurosecontraiuquandoviuaarma.—Masvocênãotemuma...—Georgecomeçouadizer.—Tenhosim—disseoArtilheirosemtirarosolhosdotouronamiradorevólver.—Masvocêjurou...—OCaminhanteémuitoastuto,astutodemaisparaoseuprópriobem.Sevocêquerenganarumcaraquepensasermuitoesperto,melhortentarumacoisasimples.Pusopolegarsobreocorpodoferrolho,escondendoumabalaquandodesprendiasoutras.Fiqueicomumtiro.

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—Masvocêquebrouseujuramento!As feiçõesdoArtilheiro seendureceram,a lisura se transformandonumadefensivamáscaradeindiferença.—Opçãominha.Ameninanãoescolheuisso.Nãopossodeixarqueaconteça.—Masvocêvai...—Nãoqueroouvirmaisnada—cortouoArtilheiro,levantandooqueixoparaoMinotauro.—Ponhaameninanochão,Zebu.Devagarinho.O Minotauro não largou Edie. Em vez disso, sacudiu-a nos braços e pendurou-a, como umabonecadepanoouumpanodeprato,pelosombrosnafrentedotorso,semelhanteaumescudo.—Bichoruimvocê,nãoé?—disseoArtilheiro.OMinotaurobufou.BLAM.OrevólvertremeunamãodoArtilheiro.OMinotauronãosemoveu.OtiroacordouEdieeseusolhosseesforçaramparaentenderondeelaestava.—Oqu...?—foioqueelaconseguiupronunciar.O Minotauro ergueu a cabeça e urrou furioso e, George pensou, triunfante. O som do rugidoecoou nos prédios de concreto ao redor deles. Depois ele baixou a cabeça e rosnouperigosamente.Georgenãoacreditounoquevia.—Oqueaconteceu?OArtilheiroengoliuemseco.—Errei.George sentiu como se as paredes do mundo ruíssem sobre ele. Sentiu um aperto no peito ecomeçouasentirfaltadear.—Oquequerdizercom“errei”?—perguntoueleentrearfadas.—Nãoacertei—olhouparasuaarmaincrédulo.—Minhasortejádevetercomeçadoamudar.—VocêéoArtilheiro.VocênãoERRA!—disseGeorgeporentreosdentes.—Foioquevocêdisse.—Tambémdisseparavocênãoacreditaremtudooquelhedizem.UmapausaenquantoocérebrodeGeorgeoscilavanoeixo.—Não,vocênãodisse!Issovocênãomedisse!—Oh...—OArtilheiro pareceu envergonhado.—Bom, então deveria ter dito.— Ele tossiuparalimparagarganta.—Estoudizendoagora.OMinotaurocascavaochão.Naverdadeochãoeradecimento,masestavaformandoondastãofacilmentecomosefossefeitodemanteiga.—Atire de novo — disse George, sua voz cheia de urgência. Não estava pensando direito.Estavacomeçandoaentrarempânico.—Atireantesqueeleataque.— Com o quê?— perguntou oArtilheiro. E abriu o revólver. O cartucho vazio caiu na poçad’águacomumbaquezombeteiro,umTLIMeumPLOP.—Nãotenhomaisbalas.Lembra-se?

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Agoranãoeramapenasasparedesdesmoronando.Ochãocomeçavaaengoli-lotambém.—OQUÊ?OArtilheiromostrouaarmavazia.—Ma...Oqu...Entãocomovocêvairesgatá-la?—Georgebalbuciou.OArtilheirodeudeombrosnumgestofatalista,queGeorgeinterpretoucomototalmenteforadepropósito dada a seriedade da situação. Cinco metros à frente a morte calmamente batia noconcretocomseucasco.Edietinhaosolhosfixosneles,olhosarregaladosdechoque.— Não sei, meu filho, se tivesse outra bala eu poderia desintegrá-lo em pedacinhos parasempre... mas sem nada para colocar no revólver — apontou para o Minotauro —, ele merasgaránomeio.Evocêtambém.Evocêsabeoqueosminotaurosfazemcomgarotinhas?—Não.Umapausa.OArtilheirodeuumafungada.—Sortesua.Melhornãopensar.Eelesnãomastigamcommuitaeducação.Georgepulavadetantafrustração.—Entãooquepodemosfazer?—Lutaratéofim?—disseoArtilheiro.George não queria chegar ao fim, lutando ou não.A atitude doArtilheiro era corajosa e dura,maspelaprimeiravezeleachoutambém...irritante.Precisavapensar...Suamãofoiaobolsoeinstintivamentecomeçouamoldarabolinhadecera.Eaidéialheveio.—Dêaquiocartuchovazio.—Oquê?—JÁ!O Artilheiro procurou no bolso e tirou os cartuchos vazios. Jogou-os por cima do ombro eGeorge,numreflexo,usandoasuamãomarcada,pegou-osnoar.—Voufazerumabala.OArtilheirovirouumolhosurpresoparaele.—Vocêoquê?Georgejáestavaenfiandoaceradentrodocartuchovazio.OArtilheirodeuummuxoxo.—Decera?Georgenãosedeuaotrabalhodeolharparaele.Suasmãostrabalhavamrápido.—Seeu soumesmoo “fazedor”, se esta cicatriz é amarcadeum fazedor, entãoporquenão?Voufazerumabala!—Sim,masdecera...—Vocêéfeitodebronze,masé flexívelosuficienteparasemover.Nãohárazãoporquenãofuncionariaaocontrário.Seeufizerbemfeito...Comovocêdisse,nãoéapenasomaterial,éoquesefazcomelequeconta—disseGeorge.—NãotireoolhodoTouro.Havia um tom novo e decisivo na voz deGeorge, e oArtilheiro se viu virando os dois olhos

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paraafrente,comofoiMANDADO.Assovioulentamente.—Vocêéquemmanda.Masseapresse,porqueele jáestásepreparandoparadaropuloenoschifrar.Ouviu-seumnovoriscadonacalçadaeumbaquelevequandooMinotauroderrubouEdie.—Lávemele.—Acheumjeitodedistraí-lo.Precisodeumtempinho—disseGeorge,irritado.—Sim,senhor—disseoArtilheirocomumsorrisofino.—Segureisso.Vouficarcomasmãoscheias.Passouorevolverparatrás,rápido,edepoisvirou-separaenfrentaroMinotaurocaraacara.Oschifressealojaramemcadaladodesuacinturaeelesejogourolandoparatrás,deixandoaforçadoimpactoimpulsioná-loparafrente.Georgeprecisoupularparanãoseramassadopelasduasestátuasacopladas.Aformadebalaqueeleestavamoldandosealisoucomsuaqueda.ElecorreuatéEdie,quejaziasobreumcanteirodeconcreto.OuviuumacolisãoàssuascostaseviuqueoArtilheiroeoMinotaurotinhamroladoemumsaltomortalcompleto.Obarulhovieradas botas do Artilheiro tocando o chão, enquanto ele se equilibrava de pé novamente. Elesegurou os chifres do Minotauro como o guidom de uma bicicleta enquanto o Minotauro oempurravapelacalçadaparaabeiradapassarelaelevada.Ochãofaiscavacomastachasdesuasbotasraspandoapedrasobassolas.George pegou o vidro do mar de seu bolso e pôs nas mãos fracas de Edie. Ouviu o seumurmúrio, mas não compreendia o que ela dizia porque sua atenção estava nas mãos quemoldavamacera.—Rápido,meufilho!—gritouoArtilheiro.Georgejáestavaconsertandoabalaquemoldava.Edie percebeu o que ele fazia. Seus olhos de súbito se iluminaram, como se a intensidade dovidrodomaratravessasseseucorpoeaenchessedeluz.—Issomesmo,George.FAÇAfuncionar.Elenãotevetempodeconcordar.Rolavaemoldavaaceranasmãos.OArtilheiro agora estava acuado entre o corrimão e o Touro.Abaixo ficava a rua repleta deautomóveis velozes. Ele lutava contra o poder imenso dos músculos bovinos do Minotauro,depoiscerrouosdenteseempurrou.—Oseuproblema,Zebu...Éque...vocêdariauma...ótimo...ensopado.Oualmôndegas.OMinotaurosacudiuoschifres.OArtilheirocontinuousegurando.—Sabeoqueéalmôndega,nãosabe,Zebu?OMinotauro sacudia violentamente a cabeça de um lado para o outro. OArtilheiro continuousegurando.—Sãocomobolinhosdecarne.Agora,issodáoquepensar.Então suabotadoexército comsuportede ferro subiunoespaçoentre aspernasdoMinotaurocomoummalho.EleochutoucomtodaaforçadeseucorpoeospésdoMinotauropularamdochãoporumcentímetroquandoabotaacertouoalvo.OMinotauroberroudedorefúria.Georgesentiuaforçadaqueleurrooatingircomoumaonda

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dechoque.Ourroanteriorforaumsussurrocomparadoaeste.OTourosesacudiuetentouferiroArtilheironomeiodopeito.OArtilheiroseesgueirouparaumladoeoimpactomandoumaisfaíscasdocorrimãoatrásdele.—Faça,George—disseEdie,emtomdeurgência.George baixou a cabeça e se concentrou na cera e no cartuchovazio.Trabalhou até formar umcone liso. Enquanto trabalhava, tentou ignorar os grunhidos e choques atrás dele. Pensou embalas.Pensounoqueelaspodemfazer.Pensounoqueelejáviraumabalafazendo.PensounelaspulverizandoassalamandrasnoMemorialdeArtilharia.PensounoCorvoexplodindoempenas,duas vezes. Pensou na gárgula virando pó na jaula no Monumento. Lembrou-se das balas nasmãos do Artilheiro quando ele calmamente recarregava o revólver. Imaginou a força que umprojétilpossuiquandoatravessaseualvo.Equandopensounoqueeraumabala,noquevira,emcomoeraseuformato,elepercebeuquesuasmãoscomeçaramarelaxarequasetrabalhavamporsimesmas, quase como se soubessem o que ele estava fazendo.A dor na cicatriz tinha paradocompletamente.Elealisouapontadabaladecerae,comapontadaunhadeseupolegar, fezumcírculosuaveaoredordotopo,comoviuembalasdeverdade.Georgeentãodestravouaarmaeenfiouabaladentro,comoviuoArtilheirofazer.De repente sentiu um redemoinho de pernas, botas, chifres e patas para o ar quando as duasestátuassechocaram.Haviamcolididocomumcanteiroelevadodecimentocomtantaforçaqueele se quebrou, lançando terra no chão ao redor dos corpos em combate.George atravessou apassarelaelevantouaarma.—Eufiz!OArtilheiro então olhou para ele, e naquele instante oMinotauro enfiou um chifre no espaçolivredasuacintura.Saíram faíscas e clarões semelhantes a uma pedra de amolar quando a ponta afiada do chifreperfurouobronze.—Ui—disseoArtilheiroemchoque.GeorgenãoacreditouqueoArtilheirotinhasidoferido.Nãodepoisdeeletervoltado.Nãodepoisdeterpensadoqueeletinhamorrido.O Minotauro sacudiu a cabeça, girando o chifre dentro da ferida com a ferocidade de umcachorro sacudindo sua presa, empurrando o Artilheiro contra o corrimão por cima, da ruamovimentada.OArtilheiroapoiou-senocorrimãocomascostase levantousuasmãosparadarumsocoporcima,nopescoçodoTouro.Suasmãosmudaramdedireçãoetocavamsemrumonocorrimão.Georgeficouhorrorizado.OArtilheirotinhavoltadosomenteparamorrerdenovo?Elesentiuogosto negro na boca, a coceira ardente no nariz e começou a correr para frente, segurando ogatilhodaarmacomasduasmãosemirandoomeiodacabeçaimensadoTouro.—Mire—gaguejouoArtilheiro.Georgedeuumpassoparaoladoeajustouoalvo.Nemporuminstanteaquelesentimentonegrodeixou lugar para ele pensar que armaNÃO iadisparar.Ele fez abala.Era tudooque sabia.Eagoraeleausariaparasalvarseuamigo.Seusamigos.

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OolhodoMinotauroabaixouemirouocanodaarma.Eraumolhocheiodeódioevoracidade,e,quandoobichourroueempurrou,Georgefirmouodedonogatilho.Noentanto,antesqueeleatirasse,houveumCRACKeoMinotauroeoArtilheirosumiram.OmundodeGeorgehaviaseestreitadoemumconedevisãotãorestritoqueeletevederecuarumpassoparaentenderoquehaviaacontecido.Seudedorelaxouogatilho.OMinotaurotinhaempurradooArtilheiroporcimadocorrimão,queseenvergou,mandandoosdoisvoandosobrearuamovimentada.Georgeseequilibrounabeiradovãoparaveroquetinhaacontecido.PAM!OArtilheiro eoMinotauro caíramcom toda força sobreo tetodeumônibusvermelho.Comoimpacto, oArtilheiro se contorceu e se livrou do chifre como uma espada escapando da suabainha.Eleaindateveforçasparadarumempurrãonofocinhodotouroemandá-loparaabeiradoteto,ondeasmãosdomonstroseguravamdesesperadamenteenquantooônibussemovimentava,semninguémperceberquehaviaumMinotauropenduradonatraseiraeumArtilheirodeitadonoseuteto.EdieseaproximoudeGeorgenabeiradadocorrimão.—Eleestáferido.—É—disseGeorge,desejandoqueelanão tivessepercebidoquefoiporqueelegritouqueoArtilheirosedistraiuetirouosolhosdoMinotauroporuminstantecrucial,oinstanteemqueomonstroaproveitouparachifrá-lo.—Vamossegui-loscorrendo.Osdoisdesceramaescadasemparar.—Escondaaarma—disseEdie.Eledeuumaolhadarápidaparaela.—Aspessoasnãonosnotamquandoestamoscomcuspidosporqueelesnãoconseguemvê-losenós não fazemos sentido.Agora, duas crianças sozinhas numa rua, uma carregando um canhãodessesaí?Façaoscálculos.Ele notou que ela tinha se recuperado e decidiu não fazer um comentário enquanto desciam aescadaemespiralatéarua,pulandotrêsdegrausdecadavez.

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AMORTEVEMDECIMAO ÔNIBUS GANHOU VELOCIDADE. No seu teto, o Artilheiro ficou de joelhos dolorosamente e seinclinousobreoburaconoseulado.— É apenas um buraco. Nada das partes mais importantes. Tem gente que vive com coisaspiores.Tirou uma atadura de seu invólucro e afrouxou a capa. Pressionou a atadura sobre o ladomachucadofazendoumacaretaerapidamenteenrolouacinturacomagaze,amarrandoaspontas.— Tudo em ordem — grunhiu ele. No entanto, deixou-se sentar com as pernas abertas. —Precisotomarfôlego.Elearfava.Inclinouacabeçaeolhouocéu,asnuvenseachuvaquemolhavaseurosto.Umberrofuriosoofezvoltaràrealidade.OMinotauroestavasubindodenovoparaotetodoônibus.OArtilheiroolhouaoredor.Nãovianadaquepudesseusarcomoarma.Oônibusaceleravaatéumcruzamento.Osemáforoacimadelestinhaacabadodeficarverde.OMinotauroficoudepé.OArtilheiroselevantoucomdificuldadeesepreparouparareceberoimpacto.—Venha,Zebu.Acabeoquecomeçou.ElesabiaquequantomaisdistraísseaatençãodoTouro,maistempoomeninoeafagulhateriamparaseesconder.Deuentãoumaolhadelaparaocruzamentoqueseaproximava.—Eunãosouafavordemachucaranimaisestúpidos,masnoseucasoabroumaexceção.O Touro urrou e preparou-se para atacar. O Artilheiro se firmou e, quando o Touro estavaprestesaatingi-lo,agachou-sebemrenteaoteto.AssimqueoTouropassouraspando,usoutodaaforçaquelherestavaparaseimpulsionarparaoalto.Usoutudooquetinhaesentiuaataduraqueacabaradepôrnacinturaserasgarcomoesforço.SenãofossepeloschifresafiadosepelosurrosdefúriadoMinotauro,acenateriaparecidoatéengraçada, como dois dançarinos desengonçados, um levantando o outro para o ar nummovimentodesajeitado.O ímpetodoTourosedeparoucomasubidadoArtilheiro.Oscascos se levantaramdo tetodoônibus e as pernas fizeram uma bicicleta no ar. Houve umTAMP e oArtilheiro caiu no teto denovo,enquantooMinotauroficoupendurado,seuschifrespresosnobraçodeaçoqueseguravaosemáforoacimadotrânsito,queseguiaseuritmo.EleberrouemfúriaenquantooArtilheiroseguiaemcimadoônibus.Seuurro foi tãopoderosoque fez os pingos que caíam no teto do veículo açoitarem o rosto doArtilheiro. Ele piscou eacenouparaoTouro.—Adeus,Zebu.Dizemqueomelhorbifeéaquelequesependura,nãoé?Ele não riu de sua própria tirada. Ficou olhando oMinotauro se contorcendo até que o ônibusvirou uma esquina e ele não o viu mais. Daí se concentrou em reatar a atadura sobre seuferimento.

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Pelo menos as crianças estavam seguras agora, pensou ele. E este pensamento lhe deu umadesculpaparasorrireignoraradorabsurdaquesentia.GeorgeeEdiecorriampelaruaatrásdoônibus.Orevólverfaziaumvolumepesadonobolsodomenino. Por sorte, era uma rua de mão única, assim não havia chance de perder o ônibus secorressembastante.Umcaminhãoaltocompetiacomeles,bloqueandoavista.Negociaram uma curva e se acharam no meio de um trânsito intenso, e nada do ônibus. Ocaminhãopassouporeles.—Paraondeforam?—disseEdie,recuperandoumpoucoofôlego.—Seilá—respondeuGeorge.—Eleprovavelmentevaisedarbem,vocênãoacha?—Esperoquesim.Elarevirouobolsoparapegarovidrodomar.—Estátudobem,nãoestá?—perguntouele.Ovidroincandescia.—Não.Deramumavolta,espiandopelarua.Nãoviamnada.—Oqueé?—perguntouGeorge,asmãosderepentesefechandonaformaconfortantedocabodorevólvernoseubolso.—ONDEestá?—disseEdie,intrigada.Ouviram um barulho. Não muito alto. Um rangido, acima deles. Ao mesmo tempo, os doispararamdeolhararuaprocurandooperigoembaixoeolharamparacima,exatamentesobresuascabeças.Uma coisa negra e chifruda se contorceu e se desvencilhou do cabo do semáforo acima deles,caindocomoumabigorna.Os dois tiveramum instante para pular e se livrar dos cascos quando oTouro caiu no asfalto,masnãoosuficienteparaselivrardasmãosqueosagarraram—EdiepelobraçoeGeorgepelagarganta.Tampouco tiveram tempo de tapar os ouvidos contra o rugido de vitória que explodiu entre osdentesdoTouroquandoele levantouosdoisnoarcomoumtroféueberrouseu triunfoparaasnuvensacima.George viu queEdie lutava e chutava, aomesmo tempo emque gritava alguma coisa para ele,maselenãoouviaumapalavra.Eantesqueelepudessepensarnoquefazeragora,oMinotauroo segurou de frente para seu focinho, o cheirou e o lambeu com sua língua grossa como umalesmagigante.George se engasgou. Em seguida foi levantado no ar e agora foi a vez de Edie ser cheirada.Quando a língua se desenrolou para lambê-la também, ele viu os olhos dela implorarem e viucomoelaseretraiu.ViutambémcomoissodavaprazeraoMinotauro,viuquesuabocaseabriuemummeiosorrisoestranhoeresfolegante;eissofoidemaisparaGeorgesuportar.Não foi tanto o olhar malicioso da fera, mas o tremor nos olhos de Edie que levou Georgeàquela fúria profunda que o impelia a protegê-la e o fez tirar a mão do casaco, a mão queseguravaorevólver.ApontouaarmafirmementeetentouficarimóvelenquantocolocavaoMinotauronamira.Equandoelefezisso,Edieconseguiufalarumaúnicapalavradeconselho.

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—Mire.Eleajustouamiraesedeparoucomoolhovirando-separaenfrentaroseusobamiradaarma.OTourocomeçouaurrareaquelesentimentonegrocomeçouainundarsuabarriga.Nemporuminstante ele pensou que a bala que ele fez não funcionaria; pensou apenas que ele poderiaestragartudoseerrasse.Quandoaarmaestremeceunassuasmãos,eleseconcentrouapenasemcontrolarotremoretudoficousilenciosonaqueleinstante.Entãoopequenoolhosobamiraderepentepareciatãograndecomoasportasdeumceleiro.BLAM.Georgesentiuaarmadarumsolavanconasuamão.OurrodoTouroparoudesúbito.AsmãosseabriramemumespasmoeGeorgeeEdiecaíramnochão.AcabeçadoTourosacudiuparatrás,parafrente,paratrásdenovo,cadavezmaisrápido,eeletentavadarumberro,ocorpoemespasmoscomosetentasseextrairabala—abaladeGeorge— da sua cabeça. Então ele ficou de pé, olhou para longe com um olho derramando o quepareciabronzelíquido,rosnouecomeçouadarumbote,masseestateloucomoumapedra.Pormuitotempo,tudooqueGeorgeouviuforamasbatidasdoprópriocoraçãoesuarespiração.—Namosca—disseoArtilheiro.GeorgepôsEdiedepéeficaramolhandooArtilheiromancaratéelescomumsorrisodolorido,mastriunfante.Aospésdeles,acarcaçadoMinotaurocomeçouasedesintegrarnumapilhachiantede limalhaqueoventocomeçouadispersar.—Caramba!Agoramedigaquevocênãotemasmãosdeumfazedor.EnahoraH,hem?OArtilheiroestavaferido.GeorgeeEdiepercebiampelojeitoqueeleandava,curvadoparaumlado,amãosegurandoumaataduraaredordesuacintura.—Pelomenoseleestácaminhando.Provavelmentequerdizerquevaidartudocerto,nãoacha?—disseEdiebaixinho.Georgeolhouparao relógio.Eram15hl3.Procurounobolsodocasaco,aquelequeEdieaindausava,eachouacabeçadoDragão.—Olhe,tenhodechegaratéaPedraemmenosdemeiahora—disseele.—Melhoriragora.Aíeuvoltoevamosacharumjeitodeajudá-loavoltarparaoseuplintoantesdameia-noite.ElatirouocasacoeoentregouaGeorge.—Vamosjuntos—disseoArtilheiro.—Chegamosatéaquijuntos,vamosatéofimjuntos.—Masvocêestáferido.—Eusei.Minhasortevirou...—Porquevocêquebrouseu...— Chega de conversa. Precisamos nos apressar. E você precisa de mim, meu filho, porque oCaminhantevaiestarvigiandoaPedraeeunãofiztudooquefizparavervocêacabarnasmãosdelenoúltimomomento,nãoé?Ele liderou o caminhou, ficandomais ereto a cada passo, visivelmente empurrando a dor paralongedesuaconsciênciaenquantocaminhava.

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ATORRENEGRADoLADOOPOSTOdanegligenciadaerepelentefachadadoprédiocomercial,nomeiodaqualestáembutidaaPedradeLondres,ficaumaestação.Doladodeforadaestação,comoemmuitasdasestaçõesemLondres,háumabanquinhadeumhomemquevendejornais.As pessoas têm enchido as ruas da cidade com seus gritos para atrair fregueses para suasmercadoriasdesdequenasceuaidéiadecomércio.Ohomemqueagoraanunciavaonomedeseujornal havia destruído sua voz ao usá-la como propaganda sob sol e chuva, frio e calor,exacerbadopelohábitodefumartrêsmaçosdecigarrosdealtoteordealcatrãopordia.Osomquefaziaeraumaespéciedeestenografia,emvezdeumadescriçãoclaradeseuproduto.—Stannid!Qui temStannid{6}—gritavaeleacadavintesegundos.No resto do tempo ele tossia, cuspia e assoava o catarro que escorria do nariz. O ruídocomeçavaairritaroCaminhante,queandavadeumladoparaooutronometrodecalçadaatrásdele,sobasombradaTorreNegra.Elesesafoudeumacuspidadecatarroqueojornaleiroesguichounasuadireçãoedecidiuqueassimerademais.SeoCorvoestivesseali,elepoderiaficarmaistranqüilo,porqueosolhosdoCorvo deixavam passar menos do que esqueciam e, é claro, ele não esquecia quaseabsolutamentenada.Sendoassim,eletinhadeficarvigiandoaPedradooutroladodaruaeessehomemdetosseirritanteoestavafazendoperderaconcentração.Ele estirou amão e tocou de leve no ombro dele. O homem se virou, chocado de ver alguématrás de si, tão perto durante esse tempo todo. Antes que pudesse dizer qualquer coisa oCaminhantesorriuefaloucomcalma.—Váparacasa.Vocêestádoente.Provavelmentedoentíssimo.Podeatémorrer.O jornaleiro começou a tremer. Esqueceu que tinha acabado de ver o Caminhante. Não teveconsciência de que acabara de ouvi-lo. Sentiu-se terrível, doente e cheio de pavor. Eram osmalditoscigarros.Desceua tampademetaldabanquinhaepassouocadeado.Sentiuopânicosubirnoseupeito.Ficouimaginandoseconseguiriachegaremcasaantesquesofresseumataquedocoração.O Caminhante sorriu satisfeito, distraído, torcendo o fragmento de pedra ao redor de seupescoçocomamãoenquantoobservavaohomemiremboranumaexplosãodetosse.Ele deu a volta em uma coluna e pôs a mão no bolso. Tinha certeza de que poderia fazer omeninonãovê-loseelechegassemuitopróximodaPedra,massabiaqueoArtilheiro,seaindaestivessecomele,overia.Assim,tirouumdiscodepratadeseubolso.Eradomesmotamanhoeformato de um estojo de maquiagem de mulher. Girou o disco. Ouviu-se um clique e o discorevelou ser dois espelhos engenhosamente ligados um ao outro por um clipe, para facilitar otransporte. Ele os separou e pôs um de volta no bolso. O outro ele segurou do outro lado dacoluna.Posicionouoespelhoemtalânguloquelhepossibilitouumaboavisãodooutroladodarua. Ficou andando no mesmo lugar imperceptivelmente, os olhos fixos na Pedra. Enquantovigiava,lambiaoslábiossecos,amãoafrouxandoaantigaadagadabainhapresaaoseucinto.

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AÇOTEMPERADOOARTILHEIROPAROUNAESQUINAque levavaà ruaCannon,ondeaTorreNegracortavaocéuemsuajauladetubosprateados.—Vocêsnão semovamatéeuassoviar.Quandoeuderoassovio, significaqueestoucomele,ouqueocaminhoestálivre.Georgeolhouparaorelógio.Eram15h31.—Sótenhoonzeminutos—dissecomavozcalma.—Temtempo.Nãoapareçam.Voudaravoltaportrás.Paraverondeomalditoestá.Ediepôsamãopara impediroArtilheiro.Quandosuamão lhe tocou,umaondade impressõescomeçouainundá-la.Nãoeracomopressentir.Nãoeramedo.Nãotinhaaquelaformadecortesdolorososdopassado.Era fluido,mashavia umapulsaçãodedesconforto, comoumdente quevaicomeçaradoer.—Espere—disseela.—Umacoisaquenãoéboaestáparaacontecer.Eleolhoulongamenteparaela.Depoisdeuumsorrisocurto.—Fagulhasvêemopassado.Nãoo futuro.E coisas ruins acontecemo tempo todo.Épor issoquecontinuamosfazendooquefazemos.—Nãoéisso...Elesaiuàspressas.—Maistarde,estábem?— O que foi que ele quebrou? — perguntou Edie, os olhos fixos nas costas que sumiam nadistância.Georgeseencostoucontraabanquinhadejornalfechadaerespondeu.—ElefezumjuramentodequenãousariaumabalacontraoMinotauro.—Oquequerdizer?—Elesepôsnalinhadeperigo,comolevarumapragaoucoisaassim.Tudoparanossalvar.—Você quer dizer “me” salvar— disse ela secamente.Mas então um pouco da flama antigaretornoueseuqueixoseergueu.—Eunãopediparaelevir.Eladeuumchutefuriosonabanquinhadejornal,quetiniulamuriosamente,masissonãoafezsesentirmelhor.—Desculpe.Éomeutemperamento.Sempremeutemperamento.Seeutivesseficado...—disseela,olhandoparalonge.—Ficadooquê?—Nada.Elepôsamãonoombrodela.Ediesesacudiu.George,porém,nãosoltou.—Edie.Ficadooquê?—Se eu soubesse como controlarmeu temperamento, não creio que estaria onde estou agora.

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Nãoteriaficadosozinha.Teriaumafamília—eladeuumarisadacurtaquesooumaiscomoumsoluço.—Teriaumpai,pelomenos...porpiorquefosse.Seeusoubessecomomecontrolar.Elesficaramparadosporbastantetempo,amãodelenoombrodela,seusolhosnassuascostas.Osolhosdelaestavamemumlugarcompletamentediferente,um lugarcomomarnohorizonte,seixos nos pés e um trem passando cheio de olhos que não viam e um maquinista acenandocontente,interpretandoacenademaneiracompletamenteerrada,olhandoparaooutroladoantesdeveroqueelatevedefazercomohomematrásdela.—Simplesmentevem.Meatravessacomoumventoruim.Nãopossofecharasportasedeixá-loparafora.Sopraparadentrodemimcomoumventonegroeeuentronoredemoinhoeentãoé...edepoiseu...—Nãosepreocupe.Vaificartudobem.—Não.Nãovai—disseumavozcorroídapelomauhumor.—Nãoparavocê.Nadajamaisvaificarbemparavocêoutravez.O Caminhante se materializou atrás de George, segurando a longa lâmina afiada da adaga naalturadesuagarganta.

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APEDRADELONDRESAMÃOLIVREDO CAMINHANTE apalpou os bolsos de George, que não pôde se mover.A lâminatocavaseupomo-de-adãotãorentequeelenemseatreviaaengolir.—Porfavor—pediuele,tentandomanteravozsemtremer.—Sóqueroquetudoissotermine.Sóqueroirparacasa.OsdentesdoCaminhantesemostraramnumrosnadosemhumor.—Ninguémvaiparacasa.Ninguémnuncavaiparacasa.AspernasdeEdiecomeçaramatremer.Elabateucomospésnochãoparaconterotremor,masnãofuncionou.Não era apenas a adaga, o homem com o longo casaco verde, ou ainda o veneno em sua voz.Tudoissoeraruim;tudoissoeramuito,muitoruimmesmo.Masnãoeranadacomparadoàcoisaqueestavacausandoaqueleterrorabsurdo.Oquelhecausavatantoterror,oqueabriuoburaconegroemvoltadeseuspés,foiofatodequeelajátinhavistoaquelaadagalustrosaeoCaminhante.Ela sabia que ele era capaz de cortar a garganta de George sem perder o sorriso, porque, éclaro,aúltimavezqueelatinhavistoaquelehomemfoiquandoeleestavaafogandoameninaemumburacogélidonoCarnavalnoGelo.Até mesmo isso ainda não era a pior coisa de todas.A pior coisa era muito terrível para sepensar,porissoelabateuopéparaesqueceregritoucomele.—Deixeeleempaz!O Caminhante a ignorou completamente, enquanto sua mão revistava com cada vez maisdesesperoosbolsosdeGeorge.—Cadêacoisaquevocêquebrou,menino?Podemedizer.Tudooqueeuqueroéacoisaquevocêquebrou.Tudooqueeuqueroécolocá-lanapedra...FinalmentesentiuacabeçadoDragãonobolsodocasaco.Georgesentiuocheirodeseuhálitonoouvido,permeadodefomeeruína.—Aquiestá.Tiredobolso,menino,emeentregue.SouEUquemvaifazerasreparações.ÉparaMIMqueaPedravaisorrir.Edie sentiu umpuxão entre ela e oCaminhante.Ele estava tão preocupadoobservandoGeorgepegar a pequena cabeça do Dragão de seu bolso que tinha deixado de observá-la. Ela tinhasentido esse puxão antes, mas geralmente era quando alguma coisa especialmente ruim estavatentandofazê-latocarnela.Coisascomumatristezamuitoprofundaexerciamessetipodepuxão.Elanuncaentravaemcemitériosaoredordeigrejas,porexemplo,porqueaslápidesapuxavamcomo ímãs. No entanto, nenhum humano jamais provocara um puxão assim. Foi então que elapercebeuoqueera.Eraapedracomofuronomeio.ApedrapenduradanopescoçodoCaminhante.

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—Deixeeleempaz!—elagritou.OCaminhanteergueuseusolhosvioletaeolhouparaela.TiroualâminadagargantadeGeorgeeavançouparaelafazendoumziguezaguerápidonoar.—Caleaboca,suaintrometida,oulheabrocomoumsacodebatatas.Vocêvaisederramarpelacalçada,esabeoquê?Ninguémvaiseimportar.—Vãosim—disseGeorge.EenquantoalâminaerafustigadanafrentedeEdie,enãoemcimade sua garganta, ele segurou firme a cabeça doDragão e arremessou-a por cima do ombro nacaradoCaminhante,comtodaaforçaqueconseguiujuntar.OCaminhantecambaleouparatrás,umamãocobrindoumolho,aoutracortandocomaadagaoespaço onde George se encontrava. Só que George não estava mais lá. Tinha rolado para alateral,paralongedasgarrasdoCaminhante,tentandoselivrar.Equaseconseguiu.Alâminaarranhouumadesuascostelas,fazendoumcortedemeiometronasuacamisa,erascoua lã grossa de seu casaco.A adaga se prendeu nas fibras e o Caminhante a usou para puxarGeorgeparapertodele.Georgedesesperadamentetentoutirarosbraçosdocasacoparaescapardela,masnãohouvetemposuficiente.—Agoravocêvaimorrer,menino!Nãoeranecessário,masagoravai...PelaPedra,eujuroquevai!—gritouoCaminhante.—Esevocêcegouomeuolho,juropelaPedraquevoufazervocêSOFRERmuitoacaminhodeseuQUIETUS!—Não!—berrouEdie, pulandopara cimadoCaminhante comoumgato selvagem, levada derepentepelopuxãodapedra,intuitivamentesabendooquedeveriafazer.O Caminhante viu a menina pulando para cima dele, os cabelos negros esvoaçando, os olhosfaiscando,epormaisquetentassearrancaraadagaparaferi-la,elenãosentiufúria,nemraiva.Sentiualgoquetinhaquaseesquecido,porquenãosentiaissoháséculos.Sentiumedo.GeorgebateuacabeçadoDragãocom toda forçanosdedosdoCaminhante, fazendosuaadagavoarlongenacalçada.AmãodireitadeEdiefoideencontroàgargantadoCaminhanteesefechounapedrapenduradaemseupescoço.Suamãoesquerdaagarrouaorelhadeleenãosoltou.Ediesentiuometaldeseubrincofurandosuapalma,mascontinuousegurandocomoumcãoraivoso.Entãoopassadoaatingiucomaquelaconhecida sensação repugnante, comclarõesdedor edenáusea.Seuscabelos se arrepiaramemumcírculoquandoochoquea atingiu.AcabeçadoCaminhantependeu para trás. Seu casaco também se abriu como um leque porque o que ela via o atingiutambém.Georgeconseguiu se livrardaúltimamangadocasacoquandoaprimeira imagematravessouocérebrodeEdie.Efoiissoqueelaviu.Umasalaemumpalácio.Membrosdacortedecoleteemeias,espadaspenduradasdoseulado.Babadosbrancosaoredordopescoço.Janelasdechumboevidrorefletindovelas.

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Umamulher em trajes tão largos como as velas de um barco atravessava a sala, seus cabelosvermelhos como fogo, um babado ao redor do pescoço também. O rosto mais branco que obabado.Eladissealgumacoisaparaumhomemqueseinclinavanumamesura.“...não falhe, JohnDee” foi tudo o queEdie ouviu, quando ela entregou uma bolsa de couro esaiu.Ohomemficouolhandoelasairdasala.EraoCaminhante.Outra cena.Edie foi tomada pormais umaonda de náusea.Tentou fechar os olhos.Eles foramforçadosaseabrirdenovo.Agoraelaestavanumaoficinaescura.Aúnicailuminaçãovinhadeumavelaedeumbraseiro.Umvultocomumsolidéucolocavafogolíquidodeumcaldeirãodemetalemumafôrma.Enquantoofogolíquidoesfriava,aluzdiminuiu,enaincandescênciavermelhaelaviuohomemseviraregritaralgumacoisafuriosa.EraoCaminhantedenovo.Otempoasacudiudenovoparaanoite.Agoraelaviuumarua.AantigaLondresàluzdalua.Prédiosdemadeiraepedrasalientavam-sesobreopavimento.Umaigreja.Aoladodaigreja,narua,umapilastraquadrada.Aoladodapilastra,oCaminhante.Embaixodapilastraumsinaltalhadoquelia:“PETRALONDINIUM”.Umclarãodemetal.Umbaquedemartelo.OCaminhanteextraindoumtorrãodapedra.O ventou aumentou e levantou as folhas em redemoinho. Então Edie ouviu um ruído como umfarfalhardeasasbatendoseaproximandoderepente.EntãooCaminhanteficouimóvel,cheiodeculpa.ElogoaperspectivamudoubruscamenteeseaproximoudanucadoCaminhante,comoseprontoaatacá-lo.Elesevirou,osolhossearregalaramempurohorroreelegritou:—NÃO!OpassadoacaboueEdievoltouaopresente.OCaminhanteaindagritava,osolhosarregalados,noaquieagora.Elasoltouapedraeseafastou.UmvultoescuropassoucorrendoporcimadeseusombroseagarrouoCaminhantepor trásemumabraçoimensoeapertadoquenãodeixavaespaçoparaescapar.Elesolharamparaovulto.EraoArtilheiro.—Eunãofaleiparaficaremescondidos?Apesardeaindaestarsesentindoenjoada,EdieabriuumsorrisojuntocomeleeGeorge.—Agora,quehorassão?

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OSACRIFÍCIOOARTILHEIROSEGUROUOCAMINHANTEemumabraçofirmedebronze,imobilizandoseusbraços.AcabeçadoCaminhantese inclinoupara frente,oscabelosgrisalhoseoleososcobrindoo rosto.OpressentimentodeEdiepareciatersugadosuaenergiaesuaforçadevontade.Georgeolhouparaseurelógio.Quatrominutos.—Tenhoqueir.—É—disseoArtilheiro.—Eboasorte.OtomnavozdelefezGeorgepararesevoltar.—Oqueacontece?QuandoeucolocaracabeçadoDragãoemcimadaPedra?—Vocêconsegueoquequer.Põeumfimatudo.—Eoqueissoquerdizer?—Andalogo—disseEdie.—Digaaele—disseumavozmaldosa.AcabeçadoCaminhanteseergueuumpoucoeumolhovioletaespiouparaGeorge.—Digaparaeledizeradeus.George sentiu que havia uma longa lista de perguntas para as quais ele deveria saber asrespostas,masqueagoranãotinhaotempoparaperguntar.—Oqueacontece?OCaminhantedeudeombros.— É o fim. Você faz suas reparações. Você volta para sua visão de uma Londres segura econtente,SANS cuspidos,SANS estigmas,SANS qualquer coisa estranha ou inexplicável paraperturbarsuavidasuaveefeliz.Ejávaitarde.—Masvoumelembrardetudoisso,nãovou?—Edie—disseoArtilheiro.—LeveGeorgeparaaPedra.—SeeucolocarissonoCoraçãodePedra,vocêestádizendoqueeu...oquê?Vouesquecerdevocês?OCaminhantecuspiu.—CoraçãodePedra?AquiloalinãoéoCoraçãodePedracoisanenhuma.AquiloéaPedradeLondres.Masissomesmo.Vocêfazsuasreparaçõesfrívolaseretornaparaumaexistênciaaindamenosrelevante.—Edie!—cortouoArtilheiro.ElapegouobraçodeGeorgeeopuxounadireçãodoprédiosujocomapedraencaixadaemsuafachada.AmentedeGeorgenãoparavaderodar.Atrásdeles,oCaminhantedeudeombros,enfiandoamãodesoslaionoseucasaco.—Não,nãovai,não—disseoArtilheiro,apertandoaindamais.

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Edie puxouGeorge até o gradil baixo no lado do prédio.Atrás dele, ficava a Pedra, inocentecomoqualquerpedaçodealvenaria.Excetopelo fatodequeEdiesentiaumpuxãoruime fortevindodelá.—Vá.Ele olhou para o relógio. Um minuto e meio. Noventa segundos para dizer alguma coisa quefizessesentido.Sóquenadafaziasentido.Especialmenteaquiloquenãosaíadesuamente.GeorgeolhouparaEdie.Seuqueixosearrebitounaquelehabitualgestoinsolente,mashaviaumsorriso e olhos brilhantes de um negro profundo quase se assemelhando aos cabelos que lhesserviamdemoldura.—Estoucomumpoucodemedo—disseele.—Todomundotemmedo—respondeuamenina.—Seeu fizer isso, euachoquenão...Querodizer,você ficará...OueuvouparaumaLondresemquetudoissonãofazsentido.Assim,eunãovouacreditaremvocê—elelimpouagarganta.—Nãovouconhecervocê.Querodizer,vocêaindaestaráaqui,nestaLondresdoavesso.Estelugarquedámedo.Eestarásozinha.—Vouficarbem—disseela,repetindopalavrasqueeramdele.—Depressa.Elaabriuosorrisoeseusolhospareciambrilharaindamais.Eleolhouparaela.—Vocênãotemmedodenada.—Eusei.Porissovouficarbem.Agoravá.Ele ficou olhando para ela. Queria se lembrar de tudo. Seu rosto, o formato de seu queixoarrebitado,seusorrisofino.—Edie,eseasesfingesmederamumarespostaquecontémdoissignificados?Querodizer,istoseriatotalmenteplausívelporseremoquesão,vocênãoacha?—George, se apresse, por favor. Você sabe o que as esfinges disseram: “Seu remédio jaz noCoraçãodePedra,eaPedradoCoraçãovaiseroseualívio.Parapôrumfimaoquecomeçou,você deve primeiro encontrar o Coração de Pedra e depois deve fazer o sacrifício e asreparaçõesparaconsertaroquefoiquebradoaocolocarnaPedradoCoraçãodeLondresaquiloqueénecessárioparaoseureparo!”Agorafaçaisso!Otempoestápassando.Lembre-sedoqueoFradedissesobreisso!E,àmençãodoFradePreto,Georgetremeu.TremeuporqueselembroudoqueoFradetinhaditosobre as esfinges tecendoenigmasmesmoquandodavam respostas.Aomesmo tempo,do cantodeumolho,viuoCaminhante se contorcendopara se libertardasmãosdoArtilheiro epensouno escárnio com que ele havia falado que a Pedra de Londres não era o Coração de Pedra...EntãopensounoFradePretodenovocomumaurgênciatãotransparentequeelequaseacreditouterouvidonovamenteavozsono-rosaealegredizendo:“...OQUEPODERIASERMELHORPARAELASDO QUE DAR UMA RESPOSTA COM DOIS SENTIDOS? EXCETO UMA COM TRÊS! O QUE É O CORAÇÃO DEPEDRA?QUEMDIRÁ?”Georgevirou-separaEdie,umaidéianovaexplodindodelenumjatodepalavras.— Edie, espere, pare de falar e escute. Apenas escute! O Coração de Pedra e a Pedra doCoração de Londres? E se forem duas coisasDIFERENTES, em vez de serem duas maneiras dedescreveramesmapedra?EseestaPedradeLondresforaPedradoCoraçãodeLondres,masoCoraçãodePedraforumaoutracoisa,algumacoisaquenãoestamosvendo?

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Elanegoucomacabeça.Nãoqueriacontinuarcomnenhumaconversa,queriapôrumfimàquilo.—Quetipodecoisa?Querodizer,esqueça...— Não sei o que o Coração de Pedra pode ser, mas sei o que o Frade disse, ele disse quepoderiaserqualquercoisa,qualquerlugar,qualquerum...—Nãohátempoparaisso,George—disseela,secamente.Elesentiuodesespero,comoseestivessequasecompreendendo.—Não, sériomesmo, e sehouvermais sentido aquidoque eu apenas reparar oquequebrei evoltarparacasa,paraminhasaulasdematemáticaeparaumbandodemeninosquenãogostamtantodemimenemeugostodeles?Querodizer,Edie,vejaisso!Emostrousuamãoparaela,amãocomamarcadofazedor.—EufizaBALA,Edie.EelaFUNCIONOU!Ese...Elanegoucomacabeçaeointerrompeu.—Nãohátempopara“ese”,George.Esteéomomentoemquevocêfazoquetemdefazer...eadeus,estábem?Nãoháporquenósdoisficarmospresosaqui,certo?Écomoosalpinistas:umcaieficapenduradopelacordaeooutroseseguraomáximoquepode,masnofimdascontas,acorda sópodecomum,entãoporqueambosdevemcairdamontanha?Vá,George.Vocêagoraestá seguro. Vá para casa. Ninguém volta para casa, ele disse, mas você vai! Sim, você éespecial, George. Você vai conseguir fazer a coisa que todos eles disseram que você nãoconseguiriafazer:vocêganhoudeles,nãopercaseutempoNÃOINDOparacasa.Façaissoterumsignificado ao ir para casa e ser feliz! Corte a corda!Não é sua culpa se eu estou penduradanela.Sefossevocêqueestivessependurado,eucortariaacordasemhesitaruminstante,agoravá!—Não.Eleolhouparaorelógio.—Nãovoudeixarvocêsozinhaaqui.Nãovouesquecertudoisso.—Vocêéumidiota!Vocêpodeficarlivre!—Evocêficarápresaaqui.Sozinha.—Eusoubemecuidarantesdeconhecervocê.—Nãosoube,não.—Edaí?Sevocêesquecertudosobreissoaqui,nãosaberádenadamesmoenemvaiprecisarsesentirculpado,seuidiota,seuidiotaabsoluto!Eelalhedeuumtapa.Norosto.Eeleficoualiparado.Eeladeuoutro tapa.Eleapenasolhouparaela,algumacoisaseendurecendodentrodele.—VÁ!Destavezelafechouamãocomforçae,quandolhedeuosoco,orostodelesesacudiuesanguebrotoudeumlábio.—Eulhedisseparanuncamaismebater—disseele,comavozdura.—Eeu lhedisseparanuncamaismedizeroquefazer—retorquiuela,amãosefechandoemumpunhonovamente,sepreparando.

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—Aindaestáaqui?—ameaçouEdie.Eleseviroueseinclinousobreagrade.—Tudobem.Atélogo.— É.Até logo— disse ela, vendo ele virar as costas e caminhar. Depois ela deu a volta ecaminhouatéoArtilheiro,esfregandoalgumacoisanoolho.—Vaificartudobem—disseoArtilheiro.—Vocêvaificarbem.— Não diga, é mesmo? — disse o Caminhante, afetando um tédio extraordinário na voz. —Fagulhasnuncaficambem.Elasacabamquasesempreemfinalinfeliz.Conteaverdadeparaela.—Comlicença,porfavor.—EraavozdeGeorge.Ediesevirou.Eleestavaparado,comcaradeconfuso.Nãohaviasinaldereconhecimentonosseusolhos.Erahorrível. Parecia desorientado e se desculpando como na primeira vez em que o vira. Todo ovigorqueeledemonstrouaocompletarsuabuscapareciatersidoarrancadodele.—Desculpe,mas eu estou... você sabe onde estou?—disse ele, parecendo envergonhado.—Desculpe,masnãoseicomochegueiaqui.Achoquesofrialgumacoisa.Faziaumgestodequemestavadesamparadoeperdido.Elase lembroudomeninodequemnãotinhagostadologoquandoconheceu.—Desculpe,maseutambémnãofaçoidéia.Eentãovirou-separairembora.—Edie.Ela parou. E então sabia. Voltou-se. George sorriu para ela. Ereto e irreverente. Ele jogou acabeçadoDragãoparaoarepegou-adevolta.—Resolvi ficar com isso aqui.Paradescobrir comoéoCaminhoTortuoso—disse, e piscouparaela.Umapiscadacomolampejodeaço.—Vocênãoselivrademimassimtãofácil,não.E, para grande constrangimento dos dois, eles se viram se abraçando e rindo, embora, nomomento em que perceberam o que faziam, tenham parado imediatamente e apenas sorrido umparaooutro.—Essafoiumabrincadeirademaugosto—disseela.—É.Masvocêmereceu.Todaaquelahistóriabobade“cortaracorda”.—Vocênãoprecisavafazerisso,George.Falosério.Nãotenhomedodenada.—Eusei.Ficaramemsilêncioporummomento,pararamdesorrireseolharam.Elarespiroufundo.—Tenhomedodetudo.—Eutambémseidisso.Elenãosabiaoquefazeroudizer.Porissodeuumsoquinhoamigonoombrodela.— Que nojo — disse uma voz horrenda atrás deles. — Você encontrou o seu próprioCoraçãozinhodePedra.OCaminhanteaindaestavapresopeloArtilheiro,quesorriaesacudiaacabeça.— Infelizmente, temos de ir agora— disse o Caminhante, retirando as mãos dos bolsos. Eleconseguia apenasmover a parte inferior dos braços, mas no fim foi o suficiente. Os espelhos

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brilharamemcadaumadesuasmãos.Elemanteveosespelhosparalelosumaooutro.Eantesquealgumdelespudessefazerqualquercoisa, o Caminhante levantou um joelho e, com um movimento brusco, num piscar de olhos,tocouopéemumdosespelhospequenos.Assim que o pé tocou no espelho, houve um clarão e a cabeça doArtilheiro se deslocou paratrás com tanta violência que seu capacete caiu. Com um pequeno redemoinho que preencheu oespaçoondeestavamantes,osdoispareciamtersidosugadosparadentrodoespelho.Porummomentoterrível,tudooquehaviaeramosdoisespelhossuspensosnoar,paralelosumaooutro,ocapacetedoArtilheiroeaadaganochãoentreosdois,comoumatigelanegraeumafaca.Derepente,osquatroobjetostambémsumiram.GeorgeeEdieficaramolhandoparaoespaçovazio,paralisadosdehorror.—ElelevouoArtilheiro!Ediedeslizouparaochão,precisandoseapoiarnaparededoprédio.—OArtilheirosefoi.Elanãoconseguiaacreditar.—Enemaomenossabemosparaondeeleolevou!Georgesentou-seaoseulado.Sentiu-secansado.Exausto.Noentanto,tinhaumacerteza.—Vaidartudocerto—disseele.—Como?—retrucouela,comumtomabatidonavoz.—Não sei—disse ele, olhandoaspessoasque emergiamda estaçãodometrôda ruaCannoncomo se nada estranho tivesse acontecido.—Mas sei que agora é a nossa vez.Abota está nooutropé.—Oquê?—Nóstemosdesalvá-lo—elesorriu,tentandomostrarconfiança.—Vaidartudocerto.Elaolhouparaele,tomadadesúbitopelohorrorepelafrustração.—Nãovai.Vai...Ela olhou para o lugar onde oArtilheiro tinha estado e tentou se lembrar onde havia visto ocapaceteeaadagadaquelemesmo jeito,comouma tigelanegraeuma faca.Entãoa lembrançade alguém gritando para ela “...portões em espelhos!” do outro lado de uma extensão de águacongeladaveioàsuamemória.Masantesqueelapudessefazeraconexão,alembrançadaquelegelo tomou conta dela e aquela outra coisa aterrorizante, a coisa que ela tinha suprimido aogritarparaoCaminhante,chegouàsuamemóriatambém,eeraumarealizaçãotãoatrozqueelaprecisoucontaraGeorge.—George.Euovi!AquelequecarregouoArtilheiro.Euoviantes...—VocêviuoCaminhanteantesdehoje?Eladissequesimcomacabeça,o terror subindonasuagargantaporquesabiaoque tinhaquecontar,sabendoquedizeremvozaltasófariaacoisamaisreal.—Deviaserunscemanosatrás,outalvezatéduzentosanos!

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—Oquê?—EuoviquandotiveavisãodopassadolánoTâmisa.EuovinoCarnavalnoGelo.—Nãopodeser...—Visim.Eeleestavaafogandoalguém.Era...Era...Elanãoconseguiaterminar.—Era...horrível?—ofereceuele.—Eraeu.Eleolhouparaela.—Eraumameninacomumgorrodaquelesantigos.Eleaafogou,eelaeraeu.Porumbomtempo,osdoisficaramolhandoparalongeenãodisseramnada.— Bom— disse George por fim. — Não podemos deixar que isso aconteça também, não émesmo?Eenquantoosolbaixavanocéu,elesselevantaramemsilêncioecaminharamjuntosnadireçãodaluz.

FIM

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AGRADECIMENTOSTODASASESTÁTUAS,CUSPIDOSEESTIGMAS deste livro realmente estão lá nas ruas, esperando serdescobertos.Sevocêtivervontadededescobri-los,oumesmosomenteasuaLondresdoavesso,eu recomendo pegar oLONDONCOMPENDIUMdeEdGlinert, botar no bolso e sair explorando asruas de Londres. Eu fiz isso, e ainda faço, e o considero indispensável. Igualmenteindispensáveis, embora menos portáteis, são os livrosLONDON ENCYCLOPE-DIA, de ChristopherHibbert e BenWeinreb, eLONDON:ABIOGRAPHY,de PeterAckroyd.O livro deste último autor,HAWKSMOOR, foi uma das duas obras que me fizeram sair da rotina de minha Londres e irprocurarasoutras,umaprovocaçãopelaqualficoeternamentegrato.Aoutraobrafoiumacópiaempoeirada deLONDON, de H.V. Morton, uma mistura rara de impressões que eu tambémrecomendoprocuraremsebos.Em uma nota mais pessoal, agradeço imensamente a Katie Pearson pela citação de D.H.Lawrence no início do livro.Gostaria de agradecer tambémaomeu (na época comdoze anos)afilhadoAlexanderDarbypelaleituradoprimeirotrechodolivroepormedizerqueeudeveriadescrever melhor as coisas. E finalmente agradeço a Jack e Ariadne, e especialmente aDomenica, por se encaixarem tão bem no papel de sondagem e primeiros ouvintes da história,comotambémpelacrençairrefutávelnela.AúnicacoisamaisgostosadoqueescreverCORAÇÃODEPEDRAfoilê-loparavocêsduranteanoite.Estelivropertenceavocês.

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{1}COCKNEY.sotaquetípicodoshabitantesdapartelestedacidadedeLondres.(N.T.){2}Eminglês,Adam,onomedaruaemqueospersonagensseencontram.(N.E.){3}Nooriginal,Mudlark and Frost Fair.Mudlark era uma prática antiga da população londrinamais pobre, que catava na lama do rioTâmisa, emmaré baixa, objetos emateriais como cobre e ferro para vender.OFrost Fair (Carnaval noGelo) se iniciou no ano de 1564,quandoo rioTâmisacongeloueoshabitantesdacidadeorganizaramumaespéciedecarnavalnogelonomeiodorio.Apráticadurouaté1814,eapartirde2005foireintroduzida,agoraàmargemsuldorio,pertodoGlobeTheatre,jáquehojeemdiaoTâmisanãocongelamais.(N.T.){4}Pequenasbolsaspenduradasnafrentedesaiotesescoceses,partedavestimentatradicionaldaEscócia.{5}Eminglês,“fetter”querdizer“grilhão”.(N.E.){6}TheEveningStandard,jornalinglês.(N.T.)